MARCO HELENO BARRETO Símbolo e sabedoria prática Carl Gustav Jung e o mal-estar da modernidade UFMG/2006 SÍMBOLO E SABEDORIA PRÁTICA C.G. Jung e o Mal-estar da Modernidade Aluno: Marco Heleno Barreto Orientador: Prof. Dr. Fernando Rey Puente Trabalho apresentado ao Departamento de Filosofia da FAFICH/UFMG, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Área de Concentração: Filosofia Linha de Pesquisa: História da Filosofia Universidade Federal de Minas Gerais 2006 100 Barreto, Marco Heleno B273s Símbolo e sabedoria prática : Carl Gustav Jung e o mal-estar 2006 da modernidade / Marco Heleno Barreto . – 2006. 255 f. :il. Orientador: Fernando Rey Puente. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Filosofia. . 1. Jung, C. G. (Carl Gustav), 1875-1961 2 . Psicologia- Teses 3. Psicanálise – Teses 4. Ética – Teses 5. Modernidade - Teses I. Rey Puente, Fernando. Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Filosofia. III.Título DEDICATÓRIA O retrato não me responde, ele me fita e se contempla nos meus olhos empoeirados. E no cristal se multiplicam os parentes mortos e vivos. Já não distingo os que se foram dos que restaram. Percebo apenas a estranha idéia de família viajando através da carne. Carlos Drummond de Andrade, Retrato de Família Este trabalho, que traz cifrada a experiência de minha vida, é dedicado a todos aqueles que a tornaram possível: meus parentes mortos e vivos, os que conheci e os que não conheci. Mas, dentre todas as presenças que fluem no rio do sangue, algumas reconfortantes na alegria do encontro, outras vibrantes na calidez da memória, outras ainda silenciosas na continuidade do desconhecimento ou do olvido, dedico especialmente este trabalho a meu irmão João Bosco, que nos anos difíceis e aflitos de minha juventude emprestou-me os primeiros livros de Jung, nos quais eu viria a encontrar a afinidade espiritual que aqui se transmuta em trabalho acadêmico. Este trabalho, fruto de uma paixão perene, é também uma modesta homenagem a Carl Gustav Jung, em quem meu sentimento e minha fantasia lúdica reconhecem o meu mais imprevisto antepassado. Áspero amor, violeta coroada de espinhos, cipoal entre tantas paixões eriçado, lança das dores, corola da cólera, por que caminhos e como te dirigiste a minha alma? Por que precipitaste teu fogo doloroso, de repente, entre as folhas frias de meu caminho? Quem te ensinou os passos que até mim te levaram? Que flor, que pedra, que fumaça, mostraram minha morada? O certo é que tremeu a noite pavorosa, a aurora encheu as taças com seu vinho e o sol estabeleceu sua presença celeste, enquanto o cruel amor sem trégua me cercava, até que lacerando-me com espadas e espinhos abriu no coração um caminho queimante. Pablo Neruda Esplêndida razão, demônio claro do cacho absoluto, do reto meio-dia, aqui estamos, ao fim, sem solidão e sós, longe do desvario da cidade selvagem. Quando a linha pura rodeia sua pomba e o fogo condecora a paz com seu sustento, tu e eu erigimos este celeste efeito. Razão e amor despidos vivem nesta casa. Sonhos furiosos, rios de amarga certeza, decisões mais duras que o sonho de um martelo caíram na dúplice taça dos amantes. Até que na balança se elevaram, gêmeos, a razão e o amor como duas asas. Assim se construiu a transparência. Pablo Neruda AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Fernando Rey Puente, meu orientador, que demonstrou extraordinária capacidade de dedicação e disponibilidade ímpar na orientação deste trabalho, desde o momento da elaboração do projeto inicial. Ao Prof. João A.A.A. MacDowell, reitor do ISI – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, pelo apoio e incentivo durante o período do doutorado. Aos professores Francisco Javier Herrero e Carlos Roberto Drawin, pelas valiosas críticas e sugestões a meu trabalho no exame de qualificação. Aos professores José Raimundo Maia Neto e Lívia Mara Guimarães, sob cuja inspiração elaborei a visão acerca do ceticismo epistêmico de Jung. A Rita de Cássia Lucena Velloso, pelo estímulo a ingressar no programa de doutoramento. RESUMO Neste trabalho, concedendo-se que há uma dimensão filosófica reconhecível no campo da psicoterapia contemporânea, busca-se determinar a natureza desta dimensão como análoga à phronesis ou sabedoria prática constitutiva da vida filosófica segundo as escolas da Antiguidade. Para tanto, a psicologia analítica concebida por Carl Gustav Jung é tomada como objeto de análise, demonstrando-se como em sua dimensão prática ela pode ser adequadamente compreendida como uma forma de sabedoria prática, nomeadamente como uma hermenêutica vivida das imagens simbólicas. Paralelamente a essa demonstração, o sentido histórico, filosófico e cultural da psicologia analítica é explicitado a partir de sua inserção na experiência da modernidade, como uma busca de respostas para os sofrimentos anímicos engendrados por esta mesma experiência. PALAVRAS-CHAVE Psicoterapia, psicologia analítica, sabedoria prática, modernidade, símbolo, Carl Gustav Jung. SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................... 1 Capítulo Primeiro - Sabedoria Prática e Modernidade ........................................... 27 1. Sabedoria Prática: linhas fundamentais da concepção de phronesis ..... 28 1.1 A propósito da noção de sabedoria .............................................. 28 1.2 Phronesis e Práxis .......................................................................... 32 1.3 Phronesis, Orexis e Phantasia ....................................................... 36 1.4 Phronesis e Empeiria ...................................................................... 39 2. Modernidade: definição e descrição .......................................................... 44 3. O ocaso da sabedoria prática clássica ...................................................... 49 4. Conseqüências ............................................................................................. 57 Capítulo Segundo – Em Busca do Sentido: o Resgate do Símbolo ........................ 64 1. O problema: niilismo, sentido e símbolo .................................................. 64 2. Raízes do Iconoclasmo Ocidental ............................................................. 73 3. A recuperação antropológica do símbolo na psicologia analítica .......... 84 4. Para além da redução antropológica ........................................................ 96 Capítulo Terceiro – Tradição, Modernidade, Experiência Simbólica .................. 110 1. Tradição e modernidade na perspectiva da fenomenologia do Ethos ....110 2.Tradição, modernidade e experiência simbólica na psicologia analítica 114 3.A crise da modernidade na experiência pessoal de Jung ........................ 123 4.A psyches therapeia de C.G.Jung: experiência simbólica como forma de sabedoria prática ................................................................................ 128 Capítulo Quarto – Um Ceticismo de Alma Romântica .......................................... 162 1. O limite epistemológico: um ceticismo epistêmico mitigado .................. 167 2. Jung, o Romantismo e o Idealismo Alemão............................................. 184 3. Considerações finais................................................................................... 210 Conclusão ................................................................................................................... 215 Anexo I – Sobre a Divergência entre Freud e Jung ................................................ 237 Bibliografia ................................................................................................................. 242 INTRODUÇÃO Em sua Einführung in die Philosophie, e mais precisamente ao tratar do tema da orientação filosófica da vida, Karl Jaspers afirma a certa altura: ”Mas hoje em dia, no campo da psicoterapia, surgiu algo que já não é da alçada da medicina no seu âmbito de ciência médica: é filosófico e carece, portanto, de comprovação ética e metafísica, como todo o intento filosófico.”1 Essa afirmação encerra, in nuce, o problema a partir do qual nascem as interrogações que norteiam o presente trabalho: como compreender, de um ângulo histórico-filosófico, essa emergência de “algo filosófico” no campo incerto de uma disciplina relativamente recente, que não cessa de reivindicar sua cidadania no concerto das ciências humanas? Como esse fenômeno da cultura moderna relaciona-se a uma “orientação filosófica da vida”? Como compreender o estatuto desse “campo da psicoterapia”, que em virtude dessa mesma emergência fica distendido confusamente a meio caminho entre a ciência e a filosofia? Como realizar a tarefa prescrita por Jaspers, de “comprovação ética e metafísica” – vale dizer, de legitimação filosófica – desse campo, corroborando assim o ponto de vista do próprio Jaspers? Estas questões deslocam o eixo da reflexão filosófica da discussão – freqüentemente infrutífera - acerca da problemática cientificidade reivindicada pela psicologia, introduzindo a consideração da natureza, extensão e legitimidade da inscrição de certas escolas psicológicas na tradição filosófica. Eis um problema espinhoso, que encontra resistências tanto por parte da filosofia – ainda muito zelosa em preservar a pureza de uma contemplação desinteressada, desencarnada - quanto por parte da psicologia – ainda muito pouco disposta a abrir mão de sua pretensão a se constituir exclusivamente como ciência, no sentido moderno dessa noção, e gozar dos privilégios inerentes a um tal status. Acolhendo a percepção de Jaspers citada acima, propusemo-nos circunscrever esse “algo filosófico” que surge no campo da psicoterapia contemporânea, afirmando 1 JASPERS, K. Iniciação Filosófica. Lisboa: Guimarães Editores, 1998, p. 128. Entenderemos aqui psicologia e psicoterapia como noções que remetem essencialmente uma à outra, sendo assim intercambiáveis, a psicologia representando o corpo de conhecimentos que instrui uma determinada intervenção clínica – a psicoterapia -, que por sua vez é a fonte das experiências que são transpostas para o plano da teoria, constituindo a psicologia. Evidentemente, estamos nos atendo, além disso, exclusivamente ao setor da psicologia clínica. que o que aqui está em jogo é o destino moderno da sabedoria prática e as novas figuras por esta assumidas em virtude da reorganização dos saberes estabelecida na modernidade. Em outros termos: o estatuto de parte significativa do campo da psicologia deveria ser pensado não exclusivamente em termos de cientificidade, na acepção moderna, mas por referência à sabedoria filosófica e, portanto, à Ética. Essa perspectiva converge com a posição de Hans Georg-Gadamer, expressa em Verdade e Método nos seguintes termos: “(...) a noção de método que serve de base à ciência moderna veio substituir um conceito de ‘ciência’ que se orientava justamente em direção a essa capacidade natural do ser humano [a hermenêutica, entendida como “a faculdade prática de compreender, quer dizer, uma perspicácia sutil e intuitiva para conhecer aos demais”]. Isto suscita a pergunta geral de se não continua havendo até hoje, dentro do sistema das ciências, um setor que se inspira mais nas antigas tradições do conceito de ciência que no conceito metodológico da ciência moderna. Cabe perguntar se isto não é válido ao menos para um âmbito concreto das chamadas ciências do espírito (...) Pois bem, há pelo menos um exemplo no âmbito da teoria da ciência que poderia dar uma certa legitimidade a essa reorientação da reflexão metodológica das ciências do espírito, e tal é a ‘filosofia prática’ fundada por Aristóteles.”2 E mais adiante Gadamer reafirma sua intenção de “mostrar que a filosofia prática de Aristóteles – e não o conceito moderno de método e de ciência – é o único modelo viável para formarmos uma idéia adequada das ciências do espírito.”3 Eis o motivo pelo qual as ciências humanas, ao se constituírem como ciências hermenêuticas, penetram necessariamente no campo da filosofia.4 Retornando à tese que propusemos, falávamos de um destino moderno da sabedoria prática, pois o problema que circunscrevemos deve a sua gênese ao fosso escavado na aurora da modernidade pela separação entre a sabedoria clássica, com seus fundamentos metafísicos, e a nova ciência experimental que se firma com Galileu e Newton, e ao subseqüente triunfo em todos os âmbitos da racionalidade tecnocientífica sobre a sabedoria, resultando numa espécie de interdição e restrição dramática desta, e por conseguinte deixando desamparada a capacidade humana de dar sentido e orientação à própria existência. Tal situação será precocemente percebida por Rabelais quando, ao expressar um pressentimento destinado a se tornar profético e que era compartilhado por toda a corrente humanista da Renascença, pronunciar a célebre sentença: “Ciência sem consciência não é senão ruína da alma.” 2 GADAMER, H.-G. Verdad y método- II. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1992, p.294 (A interpolação elucidativa entre colchetes encontra-se à p. 293). 3 id., p.309. 4 Cf. VAZ, H.C.L. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992, p.63. Por seu turno, a razão filosófica desde Descartes, em sua vertente hegemônica, será capturada pela interlocução com a Ciência, tornando-se obcecada pela problemática epistemológica e gnosiológica referida à nova racionalidade, revelando-se, por fim, incapaz de suprir a consciência reclamada na intuição rabelaisiana. A indigência espiritual do homem moderno vem confirmar a ruína da alma pressentida por Rabelais, engendrando um sofrimento cujo motor profundo é precisamente a busca de sentido, de orientação, numa palavra: de sabedoria. Privada de seu espaço institucional, progressivamente restringida no âmbito filosófico em virtude da maciça polarização deste pela interlocução com a ciência, a sabedoria vai experimentar um destino problemático e, ganhando novas valências em função da reformulação radical de seus fundamentos a partir da metafísica da subjetividade, será amputada de certos elementos incompatíveis com a nova fundamentação, os quais reaparecerão em endereços inesperados. A lacuna instalada na consciência moderna pelo desaparecimento virtual destes elementos da sabedoria clássica vai se traduzir em sofrimento da alma – já que esta, ao que tudo indica, não pode passar sem “uma terra real onde possa crescer, crer e embelezar”, e onde possa “se enraizar e concretizar suas íntimas esperanças”5. E é assim que a carência de sabedoria vai levar o homem moderno a demandar, literalmente, psyches therapeia, na esperança e na necessidade de encontrar um sentido para sua existência, sentido seriamente negado ou ameaçado em uma cultura que se precipita na paradoxal atmosfera niilista que ela mesma engendra. Histórica e concretamente, porção significativa de tal demanda vai se dirigir às ciências médicas. Porém, dado que a sua motivação profunda escapa aos limites epistemológicos e metodológicos das ciências da natureza, ela vai obrigar os médicos pioneiros a exorbitar de tais limites e, indo em busca de sentido e cura para os sofrimentos humanos que se lhes deparam, fundar o campo da psicologia médica, com sua extensão na psicoterapia clínica. Assim, a própria razão histórica de ser da psicoterapia faz com que de partida ela se constitua orientada para um conhecimento do ser humano que já não pertence ao estrito âmbito científico. Por outro lado, na medida em que este conhecimento está indissoluvelmente ligado à tarefa prática da psicoterapia, que em última análise almeja a uma reorientação da forma de viver e estar no mundo, ele deságua no âmbito mais vasto da sabedoria prática. 5 Cf. DURAND, G. L’âme tigrée. Paris: Denöel, 1980, p. 14. Surgida assim da experiência humana concreta, historicamente configurada, e a ela devendo sempre se reportar, a psicoterapia contemporânea liga-se, portanto, à família daquela antiga ciência do homem aludida por Gadamer, a qual tem como finalidade fundar preceitos que rejam a conduta na vida, que sejam eficazes no enfrentamento da presença do mal na existência humana, orientando-a para a realização das aspirações legítimas que definem o ser humano. Por isso, ela pode ser vista como integrando um capítulo original da história da sabedoria filosófica. Resumidamente, seria esta a razão histórico-filosófica superficial pela qual no campo da psicoterapia surge “algo filosófico”, obrigando muitas das escolas ou linhas que o constituem a, em última análise, propor respostas à ruína da alma moderna.6 Nesse campo, a escola que mais originalmente marcou tanto a compreensão do ser humano quanto as propostas de intervenção psicoterapêutica na contemporaneidade é aquela que, grosso modo, poderia ser designada como a da psicologia do inconsciente. Nela, a psicanálise freudiana é seguramente a corrente que mais influência exerceu sobre a cultura, inclusive sobre o meio acadêmico. Além disso, é aquela que mereceu maior atenção por parte da reflexão filosófica. Por outro lado, freqüentemente situada na periferia “herética” do empreendimento freudiano, mas ainda dentro da novidade representada pela (re)descoberta contemporânea do inconsciente, a psicologia analítica de Carl Gustav Jung, a despeito de sua inegável influência sobre a cultura do século XX7, não tem merecido a mesma consideração por parte da filosofia. Exceção feita a Gaston Bachelard, que se utiliza amplamente do pensamento de Jung em sua vertente noturna, as referências a Jung no “primeiro escalão” da filosofia contemporânea são discretas, 6 Para uma visão panorâmica sobre o campo da psicoterapia, cf. JACKSON, S. Care of the Psyche. A History of Psychological Healing. New Haven: Yale University Press, 1999; EHRENWALD, J. (ed.) The History of Psychotherapy. Northvale: Jason Aronson Inc., 19912; TALLIS, F. Changing Minds. The History of Psychotherapy as an Answer to Human Suffering. London: Cassel, 1998; cf. também a coletânea de artigos reunidos em ELLENBERGER, H. Médecines de l’Âme. Essais d’Histoire de la Folie et des Guérisons Psychiques. Paris: Fayard, 1995. 7 Deixando de lado o campo originário da psicologia, a influência e/ou a convergência entre psicologia analítica e cultura do século XX podem ser atestadas na teologia, na literatura, na antropologia, nas artes figurativas, no cinema, no teatro, na dança, na história, na física, na arquitetura, na cultura popular, e – last but not least – também na filosofia. Cf. CAROTENUTO, A. Jung e la cultura Del XX secolo. Milano: R.C.S. Libri S.p.A., 1995. Cf. também BARNABY,K. e D’ACIERNO,P. C.G.Jung and the Humanities. Toward a Hermeneutics of Culture. New Jersey: Princeton University Press, 1990; ROCCI,G. C.G.Jung e il suo Daimon. Filosofia e Psicologia Analitica. Roma: Bulzoni, 1991; VVAA. Presenza ed eredità culturale di Carl Gustav Jung. Milano: Raffaello Cortina Editore, 1987; cf. ainda o número 46 dos Cahiers de l’Herne, dedicado a Jung (Paris: Éditions de l’Herne, 1984). Por esta razão, uma radiografia filosófica da psicologia analítica forçosamente representa uma contribuição à Filosofia da Cultura, bem como à compreensão das aspirações de fundo que em última análise participam decisivamente dos rumos e das figuras que essa mesma cultura tomará. marginais e muitas vezes veladas. Quando são explícitas, oscilam entre uma avaliação positiva genérica e uma aversão declarada. Por exemplo: Henri Bergson, em 15 de junho de 1922, escrevia a Adolf Keller: “Tenho grande respeito pelo trabalho de Jung, que não é interessante somente para o psicólogo e o psicopatologista, mas também para o filósofo! É aqui que a psicanálise encontrou a sua filosofia.”8 Já Walter Benjamin escreve a Gershom Scholem sobre Jung, em 2 de julho de 1937: “Desta vez desejo apenas relatar que as semanas em San Remo estão totalmente reservadas ao estudo de C.G. Jung. Pretendo sedimentar metodicamente certos fundamentos das ‘Passagens Parisienses’ através de uma controvérsia em que me posiciono contra os ensinamentos de Jung, sobretudo os referentes aos arquétipos e ao inconsciente coletivo. Além do significado metodológico interno, isto teria também um significado público e político; talvez tenha ouvido que Jung tomou partido recentemente, com uma terapia que reservou somente à alma ariana. O estudo dos seus ensaios do começo desta década – alguns dos quais retrocedem à anterior – me ensinou que essa assistência ao nacional- socialismo veio sendo preparada há muito tempo. Nessa ocasião, pretendo investigar a figuração do niilismo médico na literatura –Benn, Céline, Jung.” E informa em 5 de agosto do mesmo ano: “En attendant, comecei a me aprofundar na psicologia de Jung em San Remo, uma obra verdadeiramente diabólica, que só se pode atacar com magia branca.”9 A originalidade da perspectiva inaugurada por Jung, e os mal-entendidos a que ela se prestou, abrem um espaço ainda pouco explorado, e sob muitos aspectos inexplorado, pela reflexão filosófica atual. Jung, dentre os psicólogos e psicanalistas contemporâneos, é quem inegavelmente possui a maior envergadura intelectual, tendo se formado em estreita convivência com o pensamento de pelo menos três dos nomes representativos do universo filosófico moderno-contemporâneo – Kant, Schopenhauer e Nietzsche. Além disso, ao longo de sua vida manteve-se a par das direções tomadas pela problemática filosófica contemporânea – freqüentemente com uma atitude crítica ou de franca resistência, embora muitas convergências com a fenomenologia, o existencialismo e o personalismo possam ser indicadas. Ao contrário de Freud, em sua autobiografia Jung reconhece explicitamente sua afinidade com os filósofos que 8 Citado em SHAMADASANI, S. Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science. Cambridge: C.U.P., 2003, p. 230. 9BENJAMIN, W. e SCHOLEM, G. Correspondência. 1933-1940. São Paulo: Perspectiva, 1993 (pg. 268- 269 e pg. 276). freqüentou, afinidade que deve ser estendida a Platão, ao Neoplatonismo como também ao Romantismo Alemão, e que deixa suas marcas em toda a sua elaboração teórica. A originalidade das concepções de Jung frente ao arcabouço teórico estabelecido por Freud faz com que sejam mais do que uma simples derivação (ou deturpação) deste, resgatando, afirmando e interpretando de outra forma dimensões da experiência humana que são redutivamente tratadas na psicanálise, ou que então são simplesmente ignoradas. As vias abertas por Jung como resposta ao dilema da modernidade que se encarna no sofrimento psíquico do homem contemporâneo guardam uma originalidade singular frente àquelas traçadas por Freud e seus herdeiros “legítimos”. Podemos afirmar com segurança que, em Jung, encontramos verdadeiramente uma alternativa, no sentido forte do termo, ao projeto antropológico e ético implicado na perspectiva freudiana. A leitura freudocêntrica da psicologia analítica é equivocada, como bem o demonstrou Sonu Shamdasani, historiador da psicologia e talvez o maior especialista na abordagem histórica da psicologia junguiana, num trabalho que, situando precisamente as idéias de Jung no ambiente cultural de onde elas se originaram, ajuda a desmontar a “lenda junguiana” – e também, de passagem, a “lenda freudiana” -, que oferecem o mito de uma originalidade e criatividade ex nihilo de “pais fundadores” geniais. Esse livro – Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science (Cambridge: C.U.P., 2003) - juntamente com a obra clássica de Henry Ellenberger, The Discovery of the Unconscious.The History and Evolution of Dynamic Psychiatry (New York: Basic Books, 1970), serviram-nos como ponto de apoio para a compreensão que aqui apresentamos. Jung percebia claramente a inserção de sua obra na história e cultura ocidental, e na problemática gerada pela modernidade. Para ele, o sofrimento espiritual do homem moderno resulta da derrocada dos “fundamentos de sua visão de mundo”10 e da destruição de seus referenciais éticos.11 A inclusão do horizonte ampliado da história e 10 “A situação espiritual de uma época como a nossa, conturbada em alto grau pelas paixões políticas, abalada pelo caos de revoluções de Estado e pela derrocada dos fundamentos de sua [visão de mundo], afeta de tal maneira o processo psíquico do indivíduo que o médico não pode deixar de dedicar uma atenção especial aos efeitos que provoca na psique individual. (...) [Ele] precisa descer à arena dos acontecimentos do mundo e participar da luta das paixões e opiniões, pois do contrário só conseguirá perceber as inquietações do seu tempo de modo distante e impreciso, tornando-se incapaz de compreender ou mesmo de ouvir o sofrimento de seus pacientes. Ele não saberá qual a linguagem mais adequada para lidar com o paciente e retirá-lo do isolamento em que se encontra, já que a sua incompreensão reforçará ainda mais esse estado.” OC X-2, p.1. 11 Diz Jung: “a simples reflexão sobre a razão por que certas situações de vida ou certas experiências são patogênicas nos faz descobrir que a maneira de ver as coisas muitas vezes tem um papel decisivo. (...) Assim que a análise da situação psíquica de um paciente atinge o campo dos seus pressupostos espirituais, da cultura na compreensão psicológica do sofrimento subjetivo leva Jung a entender a psicologia como uma forma cultural que surge vinculada aos problemas gerados pela configuração espiritual moderna. Se, sob o aspecto teórico, enquanto concebida como uma espécie de antropologia fundamental, a psicologia levanta uma certa pretensão de universalidade, em sua face prática – a psicoterapia – ela é explicitamente dirigida ao indivíduo moderno, o que significa o reconhecimento consciente de uma restrição em sua eficácia e aplicação concretas. Vista sob outro ângulo, essa restrição significa que a psicologia moderna vem lidar com certos problemas do ser humano que encontravam encaminhamentos diversos em outras culturas, bem como em outros momentos da linha de evolução histórica da cultura ocidental.12 Assim, é possível traçar uma espécie de genealogia da psicologia, que se enraíza no passado remoto do mundo moderno. Jung buscava estabelecer essa filiação histórico-cultural de sua própria psicologia. Em uma carta a Erich Neumann, seu discípulo e colaborador, ele afirma: “A psicologia analítica (...) lança as suas raízes profundamente na Europa, na Idade Média cristã, e por fim na filosofia grega.”13 Por tais motivos, podemos dizer que em Jung, conscientemente e mais uma vez contrariamente a Freud, não é a psicologia que se põe a explicar a cultura, mas é a cultura que permite entender a psicologia e dar-lhe uma referência concreta quanto ao encaminhamento prático da ação do psicoterapeuta. Assim sendo, a configuração da psicologia analítica como forma de sabedoria prática não será acidental em Jung, mas conscientemente articulada em uma meditação crítica e continuada sobre a condição moderna, em seu impacto sobre o indivíduo, aí incluídas certas posições filosóficas entra-se também no domínio das idéias gerais. O fato de tantas pessoas normais nunca criticarem seus pressupostos espirituais – já pela simples razão de serem inconscientes – não prova que os mesmos sejam válidos ou até inconscientes para todos os homens, e menos ainda que não possam tornar-se fontes de gravíssimos conflitos de consciência [moral]. Muito pelo contrário, quantas vezes os preconceitos gerais herdados, por um lado, e a desorientação na moral e na visão do mundo, por outro, são as causas mais profundas de graves distúrbios do equilíbrio psíquico, sobretudo na nossa época de transformação revolucionária.” OC XVI, § 22. 12 “O tratamento da alma, nos tempos que nos antecederam, visava as mesmas realidades fundamentais da vida humana que a psicoterapia moderna.” OC XVI, § 216. A forma de tratamento, contudo, dependerá das coordenadas culturais, sociais e históricas particulares em que essas “mesmas realidades fundamentais” são vividas. 13 Cartas I, 22/12/1935, a Erich Neumann. decisivas da modernidade, tendo como horizonte imediato a tarefa primeira de toda psicoterapia.14 Essa consciência que Jung tinha a respeito da natureza profunda da praxis psicoterapêutica contemporânea pode ser comprovada. Em uma entrevista concedida a Stephen Black, em julho de 1955, para o programa “Panorama”, da BBC Television, indagado a respeito da terapia psicanalítica Jung afirma: “A alma humana é muito complexa e, por vezes, consome-se metade da vida para chegar a algum ponto concreto no desenvolvimento psicológico de um indivíduo. Nem sempre é, em absoluto, uma questão de psicoterapia ou de tratamento de neurose. A psicologia também tem o aspecto de um método pedagógico na mais ampla acepção da palavra. (...) É algo como a filosofia antiga. E não o que entendemos por uma técnica. É algo que diz respeito à totalidade do homem e que a desafia – no paciente ou em quem quer que seja a parte que recebe, bem como no médico.”15 Perguntado por Black sobre como esse tipo de tratamento se compara com a religião, com a prática religiosa, Jung responde: “Eu preferiria dizer: como se compara com a filosofia antiga? Você sabe, as nossas religiões são conhecidas como credos, como confissões de fé. Ora, é claro, isso nada tem a ver com um credo. Tem unicamente a ver com o processo de individuação natural, ou seja, o processo que, por assim dizer, se inicia com o nascimento. Cada planta, cada árvore, cresce a partir de uma semente e torna-se, no final, digamos um carvalho ou um pinheiro. E assim o homem torna-se o que está destinado a ser. Pelo menos, ele deve chegar lá. Mas a maioria foi detida no caminho por condições externas desfavoráveis, toda a espécie de obstáculos ou distorções patológicas, educação errada – uma quantidade interminável de razões para não se atingir a meta a que cada pessoa está destinada, o nível final a que ela pertence.”16 Dezenove anos antes, em Nova York, após um jantar de despedida, Jung afirmara em um discurso de improviso a mesma idéia: “Isso parece religião, mas não é. Estou falando apenas como um filósofo. As pessoas, por vezes, chamam- me um líder religioso. Não sou. Não tenho mensagem nem missão. Procuro apenas compreender. Somos 14 O volume X das Obras Coligidas, intitulado “Civilização em Transição”, reúne textos de Jung que tratam de vários aspectos da problemática da modernidade, embora as reflexões sobre a situação espiritual do homem moderno estejam abundantemente presentes em todo o restante das suas obras, bem como nos seminários e cartas. Dos ensaios reunidos no volume X, parecem-nos fundamentais “O Problema Psíquico do Homem Moderno” e “Presente e Futuro” (este, publicado em inglês como brochura sob o título “The Undiscovered Self”, foi um dos escritos mais populares de Jung). 15 “As Entrevistas de Stephen Black”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.) C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 231 (observe-se que nessa passagem Jung usa o termo “psicoterapia” no sentido de um tratamento técnico de neuroses). Em 1912, numa apresentação da teoria psicanalítica, Jung já formulara a mesma idéia sobre o sentido pedagógico da psicanálise: “Se por educação entendermos um meio que pretende, através da poda e do cerceamento, transformar uma árvore numa bela forma artificial, então a psicanálise não é um método educativo. Mas os que têm a concepção mais elevada de educação hão de preferir aqueles métodos que entendem que, para se criar uma árvore, é preciso que ela realize, da melhor forma possível, todas as condições de crescimento nela colocadas pela natureza.” OC IV, § 442. 16 Ibid., p. 232. filósofos na antiga acepção da palavra, amantes do saber. Isso evita a companhia por vezes discutível daqueles que oferecem uma religião.”17 E a relação entre a prática psicoterapêutica e a filosofia (antiga) está igualmente registrada em suas obras coligidas: “Nós, os psicoterapeutas, deveríamos ser filósofos, ou médicos-filósofos – não consigo deixar de pensar assim. Aliás, já o somos, em que pese admiti-lo, porque é grande demais a diferença entre o que nós exercemos e aquilo que é ensinado como filosofia nas faculdades.”18 O que ressalta dessas posições é a vinculação explícita que Jung faz entre a praxis psicoterapêutica e a dimensão prática da filosofia antiga19 – perdida pela filosofia moderna-contemporânea em sua migração para o ambiente acadêmico universitário. A opinião de Jung não representa mera posição inconseqüente de um não especialista em matéria filosófica. Ela converge com toda uma linha de interpretação da natureza da filosofia antiga, encabeçada por Pierre Hadot20, que insiste na unidade profunda e indissolúvel entre especulação teórica e forma de vida prática como característica distintiva da vida filosófica na Antigüidade. Mas talvez o mais cabal referendo à posição de Jung se encontre em um magistral estudo de Pedro Laín-Entralgo, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica (Madrid: Revista de Occidente, 1958).21 Através de um detalhado e rigoroso 17 “A Psicologia Analítica é uma Religião?”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.), C.G.Jung: Entrevistas e Encontros, p. 103. O discurso de Jung foi reconstituído a partir de anotações dos presentes, compiladas por Eleanor Bertine, Jane Pratt e Esther Harding, e revistas por Edward Edinger. 18 “Psicoterapia e Visão de Mundo”, in OC XVI-1, § 181. (O texto é de 1942, e na seqüência Jung ameniza a recusa da analogia com a religião, dizendo: “Também poderíamos chamá-lo de ‘religio in statu nascendi’, já que, na grande confusão que envolve tudo o que está nos primórdios da vida, não existe uma separação que evidencie uma diferença entre filosofia e religião. E a dificuldade constante da situação psicoterapêutica, com o mundo de impressões e perturbações emocionais, não nos dá condições de fazer uma exposição precisa dos princípios básicos, extraídos da vida, que possa ser apresentada às faculdades de filosofia ou de teologia. (...) Um sábio respeitar dos seus limites ainda não representa um manual de filosofia, e uma jaculatória em hora de perigo de vida ainda não é um tratado de teologia. No entanto, ambos jorram de uma atitude filosófico-religiosa, própria do dinamismo mais espontâneo da vida.” Ibid., §§ 181-182) 19 “O psicoterapeuta deve ser um filósofo no antigo sentido da palavra. A filosofia clássica era uma certa visão do mundo bem como de conduta. Para as autoridades mais antigas da Igreja até mesmo o Cristianismo era uma espécie de sistema filosófico com um código de conduta correspondente. Havia sistemas filosóficos para um modo de vida satisfatório ou feliz. Também a psicoterapia significa algo desse gênero.” Cartas II, 21/4/1947, a R. Otto Preiswerk. Quanto à filosofia moderna, Jung achava que “já não inclui uma forma correspondente de vida e por isso só consiste de palavras.” Cartas II, 09/09/1953, a Carleton Smith. 20 Cf., dentre os muitos trabalhos de Hadot, O Que é a Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 1999; Exercices Spirituels et Philosophie Antique. Paris: Albin Michel, 20022; La Philosophie comme Manière de Vivre. Paris: Albin Michel, 2001. 21 É profundamente lamentável que este soberbo livro de Laín-Entralgo seja praticamente esquecido pela filosofia acadêmica, e também pelas faculdades de psicologia que formam psicólogos clínicos: o aspirante exame das fontes gregas, de Homero a Aristóteles, Laín-Entralgo demonstra como na Grécia antiga, a partir das origens mágico-religiosas constatáveis no epos homérico, passando pelos poetas e pelos primeiros filósofos, se gesta uma autêntica “psicoterapia verbal científica”, isto é, uma doutrina acerca do emprego terapêutico da palavra humana, esboçada claramente pelos sofistas, e formulada de modo genial em Platão. O logos, em sua dupla acepção de palavra e razão, ocupa eminentemente o centro do sistema simbólico na cultura grega. Por este motivo, a logoterapia é tão antiga na medicina ocidental quanto a cultura ocidental mesma.22 Os gregos tiveram a cristalina percepção da eficácia terapêutica da palavra, bem como de suas limitações. Contra Bía, a cega e surda violência dos homens, e contra Ananke, a invencível necessidade dos movimentos naturais, a palavra humana nada pode.23 Porém, quando se trata do universo das coisas humanas (ta anthropina), que em certa medida desvincula- se do determinismo da natureza (physis) para organizar-se segundo os modos da convenção (nomos), abre-se uma dupla possibilidade: a de uma discórdia (stasis) entre convenção e natureza, e a de uma intervenção terapêutica pela palavra que estabeleça a concórdia (homonoia). Eis aí o fundamento grego da psyches therapeia. Empédocles e Pitágoras situam-se ainda no limiar da transformação experimentada pela mentalidade grega com o advento da razão filosófica a partir das raízes mítico-religiosas. Assim, neles encontramos fundidas a consideração do aspecto mágico ao aspecto racional da palavra e de seu uso terapêutico, prenunciando apenas potencialmente a ruptura que se verificará no decorrer do século V.24 Essa ruptura irá opor em uma relação complementar e, por vezes, antitética, a palavra (epos, mythos, logos, glotta) à obra (ergon), determinando o espaço em que se conceberá a ação da persuasão (peitho) pela palavra. A percepção do poder humano do uso do logos estará nas raízes do movimento da sofística. Nesse contexto, Górgias compara a ação da palavra à dos medicamentos, e reconhece claramente o poder das a psicoterapeuta nele encontraria matéria para refletir em profundidade sobre as origens e a natureza do campo de ação de sua escolha, o que talvez contribuiria para que exercesse sua profissão com mais lucidez. 22 Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 53. 23 Cf. id., p. 129-131. 24 Avaliando a posição de Pitágoras e Empédocles com relação ao uso da palavra, diz Laín-Entralgo: “na pessoa de Empédocles, como na de Pitágoras, fundiram-se em unidade vital e histórica duas atitudes mentais só incompatíveis quando as traduzimos a nossos atuais modos de pensar, tão esquematizadores do ‘racional’ e do ‘irracional’, e em definitivo tão afastados dos que tinham vigência na Sicília e na Magna Grécia, durante a primeira metade do século V.” La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 121. Em Empédocles, “o saber cosmológico do filósofo e a doutrina catártica do ‘homem divinizado’, do theios aner, não são senão dois modos distintos de uma mesma Sofia, o modo teorético e o modo soteriológico.” Id., p. 122. idéias e crenças, bem como a possível ação terapêutica da persuasão.25 Suspendendo a questão da verdade, ele reconhece que a persuasão é de certa forma “engano” (apate), que pode contudo ser justificado quando se busca com ele o bem do persuadido. Privilegiando o pólo do nomos, Górgias propõe uma terapêutica para a alma que consiste em substituir, por meio da persuasão de que o sofista se faz mestre, um estado habitual-convencional de opiniões e crenças, eventualmente desvantajoso para o paciente, por um outro estado mais conveniente.26 Antifonte desenvolve a posição de Górgias, privilegiando o pólo da natureza e insistindo em que é preciso um conhecimento da causa (aitia) da aflição que acomete a pessoa – e nisso ele se revela menos relativista que Protágoras e Górgias. Porém, Antifonte tende a ver no nomos apenas a fonte de coacções perturbadoras da atitude natural, e assim sua regra terapêutica será a fidelidade absoluta à physis – o que entranha o risco de um individualismo desenfreado.27 Demócrito já avançara em relação a Antifonte, ao perceber que existem “doenças do modo de viver” (nosos biou), decorrentes da incontornável destinação do ser humano à vida social, regida pelo nomos, mas salientando que é a configuração pelo nomos que torna os impulsos da natureza no homem verdadeiramente humanos. Por isso, há uma íntima correspondência entre natureza e educação28, cabendo a esta discernir as diferentes necessidades naturais, para obedecer às que são imperiosas, e escolher entre as demais aquelas que são convenientes, traduzindo-as e transpondo-as em nomoi razoáveis, e combater as que são prejudiciais.29 Platão, para Laín-Entralgo, será o fundador da psicoterapia verbal científica (isto é, não-mágica), e diante dele Górgias e Antifonte aparecem como a “pré-história” dessa 25 Cabe ressaltar a íntima relação histórica que o movimento sofístico manteve com a medicina “técnica” ou “científica”, emergente no mesmo momento em que surge a razão filosófica, resultando numa mútua influência que fará nascer a figura bifronte do médico-filósofo ou filósofo-médico, a que Jung se refere como o antepassado cuja escola cumpre ao terapeuta moderno freqüentar (cf. OC XVI, § 190, citado adiante, nota 56). Para uma excelente visão da medicina grega e de suas relações com o pensamento filosófico, veja-se JAEGER, W. Paideia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1979, p. 939-995. A medicina hipocrática, contudo, não aprofundou o uso propriamente terapêutico da palavra, e com isso não elaborou uma psicoterapia verbal de caráter científico (cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 199-241). 26 Sobre Górgias, cf. id., p. 131-144. 27 Sobre Antifonte, cf. id., p. 144-150. 28 “A natureza e o ensinamento são coisas análogas; o ensinamento transforma os homens, mas por esta transformação cria natureza (physiopoiei).” Demócrito, fragmento 33, citado por LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 151, que pondera: “É possível para a physis do homem existir sem convenções, sem nomoi? Acaso o homem não é um ser física e constitutivamente ‘nômico’ ou ‘convencional’?” id., p. 150. 29 Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 151-152. mesma psicoterapia.30 Recolhendo e superando as contribuições de seus predecessores, Platão proporá uma definição compreensiva da saúde humana, que Laín-Entralgo resume assim: “A saúde anímica de um homem, condição de sua saúde somática e necessário pressuposto para a reta administração de qualquer medicamento, consiste, pois, na boa ordem das duas partes principais de sua alma: aquela em que predomina o racional ou lógico, modificável pela ação da dialética, e aquela outra em que prepondera o irracional ou acreditador, susceptível de educação ou psychagogia (Fedro, 261 a- 271 c) pelo encanto persuasivo da epode, o ‘belo discurso’ ou o ‘mito’. (...) Em todas as ordens da existência, as racionais e as acreditadoras e afetivas, a perfeição humana consiste em homoiosis theo ou ‘assimilação do homem a Deus’ (Teeteto, 176 a-b).”31 Quando a ordem harmoniosa das partes da alma é rompida, a psyches therapeia consistirá na produção de temperança ou moderação (sophrosyne) que, descritivamente considerada, consiste em “um conjunto de crenças, saberes, apetites e virtudes bela e ordenadamente combinados entre si (kosmios) (Cármides, 159 b)”32, “de modo que ‘o que por natureza é melhor prevaleça sobre o que é pior’ (República, IV, 430 e- 431 a).”33 A doença psíquica é, pois, causada pela ausência de medida (ametria), pela desordem dos desejos e dos atos. A sua cura é a “purificação da alma” (katharsis tes psyches), a adequada reordenação verbal das crenças, saberes, sentimentos e impulsos que constituem o conteúdo da alma humana.34 Mas para ocorrer, a katharsis deve atender a uma dupla exigência: a primeira, já levantada por Górgias, é o conhecimento 30 Cf. id., p. 179 e 195. 31 Id., p. 174-175. 32 Id., p. 171. “A saúde do homem inteiro, o que cada homem chama, sem necessidade de outras especificações, ‘minha saúde’, é algo mais que eukrasia somática. Requer que a alma possua um ordenado sistema de ‘persuasões’ ou ‘convicções’ (peitho) e de ‘virtudes’ intelectuais e morais (aretai) (Fedro, 270 b); requer, em suma, a sophrosyne que o ‘belo discurso’ de Sócrates deve produzir na alma de Cármides.” Id., p. 177. Sobre toda essa temática envolvendo a concepção clássica de saúde, ver também REALE, G. Corpo, Alma e Saúde. O Conceito de Homem de Homero a Platão. São Paulo: Paulus, 2002. 33 Id., p. 195. 34 Cf. id., p. 192. A “desordem da alma” ou ametria pode ser aproximada dos efeitos produzidos pela “unilateralidade da consciência”, na perspectiva de Jung. Os análogos em Jung da “perversidade” e da “ignorância” que acometem a alma enferma segundo Platão seriam a “unilateralidade” e a “inconsciência”, com a “inflação do eu”. A analogia da terapia com o procedimento terapêutico-filosófico possui, portanto, um fundamento real. Jung afirma que a psicoterapia não é um método simples e evidente, mas “um tipo de procedimento dialético, isto é, de um diálogo ou discussão entre duas pessoas”, em que há uma interação entre ambas, e lembra que “originalmente a dialética era a arte da conversação entre os antigos filósofos, mas logo adquiriu o significado de método para produzir novas sínteses. (...) Esta é talvez a maneira mais moderna de formular a relação psicoterapêutica médico-paciente” (cf. OC XVI, § 1). Nossa posição converge inteiramente com a de Laín-Entralgo, que afirma que “é seguro que um cultivo prático e conseqüente dos pontos de vista platônicos teria conduzido de imediato à edificação de algo assim como uma ‘psicanálise grega’” (La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 232), o que surpreendentemente não aconteceu na medicina hipocrática, mas apenas nas escolas filosóficas, sob formas diferenciadas. Inversamente, a analogia real existente entre a relação terapêutica contemporânea e a relação dialógica filosófica reenvia a praxis psicoterapêutica à filosofia antiga, como Jung lucidamente percebeu. pelo terapeuta da índole e do estado da alma do paciente (que pressupõe um saber sobre os “tipos” ou “aspectos” – eide – de que a alma humana é capaz), para que o logos terapêutico, em seu conteúdo e forma, se adéqüe finamente à peculiaridade e à situação individual35; a segunda exigência é a de que o paciente “entregue” a sua alma ao terapeuta, comportando tal entrega dois aspectos: a confiança na eficácia do método terapêutico e na idoneidade do terapeuta, e a expressão de si mesmo, que possibilita ao terapeuta conhecer a peculiaridade e a situação da alma que lhe é “oferecida”.36 Ressalve-se que os gregos já se davam conta de que o conhecimento de si mesmo pelo paciente, comunicado ao médico na anamnese, era insuficiente porque constitutivamente limitado à opinião – que pode ser falsa e enganadora -, donde a necessidade por parte do médico de conhecer aquilo que o doente não pode dizer.37 Analogamente, no contexto da formação filosófica apresentava-se a mesma situação – e a maiêutica de Sócrates ilustra exemplarmente um dos modos mais famosos com que procediam os filósofos-médicos. Por fim: a ação do filósofo-terapeuta na visão platônica consiste em admoestar persuasivamente o paciente com “belos discursos” (kaloi logoi) e argüir ou refutar com eficácia o conjunto de crenças, saberes, sentimentos e impulsos, impondo evidências ou infundando persuasões nocivas e falsas38, mas sabendo sempre que, “desde o ponto de vista da ação terapêutica, o logos do médico será kalos quando seu conteúdo e sua 35 Cf. id., p. 175-176. O equivalente a essa exigência em Jung está, por um lado, na consideração dos tipos psicológicos, e, por outro, na ênfase sobre o conhecimento do simbolismo universal que apresenta as estruturas antropológicas do imaginário, correspondentes às configurações arquetípicas da alma humana. 36 Cf. id., p. 176. 37 Cf. LAÍN-ENTRALGO, p. 218-219. 38 Cf. id., p. 193-194. Sob esse aspecto, na situação psicoterapêutica contemporânea, em especial na psicologia do inconsciente, e com mais força ainda em Jung, o papel do terapeuta está menos em argüir intelectualmente e infundir persuasões salutares do que em sondar os “aspectos da alma” para agir em conformidade com eles e com o kairos; o real fundamento da psicagogia não é o terapeuta, mas a natureza individualizada tal como se manifesta nas múltiplas instâncias da psique do paciente. O terapeuta será sempre um intérprete da natureza, e não um agente a serviço de qualquer norma, seja ideal ou social. Obviamente, a eficácia terapêutica da interpretação depende de sua capacidade persuasiva – ela deve “tocar” o paciente, ser reconhecida e aceita por ele. Mas, pelo menos em princípio, a interpretação pretende ser a expressão da verdade no indivíduo – e é esta que cura o paciente, pois corresponde à sua “natureza” ou, em outros termos, à sua individualidade pessoal. A complexidade infinita das configurações individuais e das situações contingentes exclui categoricamente a possibilidade de uma norma terapêutica geral de conteúdo definido e prescritivo – o que é remédio para um, é veneno mortal para outro, e tudo depende da ocasião propícia (kairos) que, como lembra o adágio antigo, é “fugitiva”, razão pela qual a tão necessária experiência (empeiria) pode ser, segundo o mesmo adágio, “enganadora”. forma se achem retamente ordenados à peculiaridade e à situação da alma do paciente.”39 Aristóteles, apesar de não haver nenhuma alusão em seus escritos a uma psicoterapia verbal em sentido estrito, vai receber o ensinamento platônico e estabelecer com precisão o estatuto da palavra persuasiva, usando para tanto o saber médico como um dos principais analogados.40 Laín-Entralgo, desenvolvendo e interpretando com sobriedade e rigor as posições de Aristóteles, propõe um quarto gênero da palavra persuasiva retórica: o gênero terapêutico ou curativo.41 Desse modo, ele descobre convincentemente em Aristóteles um teórico “larvar” da psicoterapia verbal e, inversamente, afirma que “o psicoterapeuta faz retórica aristotélica sem o saber”, acrescentando que isso seria demonstrado mediante uma análise retórica de qualquer dos casos clínicos de Freud.42 O encontro psicoterapêutico pode ser melhor esclarecido quando visto a partir da lição aristotélica sobre o encontro retórico, em que se põem em conexão mútua dois 39 LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 176. Portanto, a tradição platônica não deve ser considerada como uma ingênua – e ineficaz – doutrinação intelectual que desconsidera as variáveis presentes na relação terapêutica. Como lembra Laín-Entralgo, “de modo algum pensa Platão que a ação ‘encantadora’ de um belo discurso ou de um mito seja por completo inteligível mediante as razões discursivas da mente humana; que seja uma idéia ‘clara e distinta’, como séculos mais tarde se dirá. (...) A epode filosoficamente aceitável pertence, em suma, ao ‘daimônico’, isto é, ao que põe em mútua relação os homens e os deuses.” (La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 173) De todo modo, em face da objetividade absoluta da Idéia do Bem em Platão, será Aristóteles quem, mostrando a inevitável relativização do bem humano objetivo segundo a variabilidade ilimitada das situações práticas, insistirá sobre a contingência que envolve o agir ético, do qual a intervenção psicoterapêutica é uma modalidade. 40 Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 243-244. “Discípulo de Platão, Aristóteles sabe bem que a palavra humana pode persuadir, além de convencer. Junto ao logos dialético há, complementarmente, um logos retórico, o logos que a arte retórica nos ensina a exercitar. Haverá também, por conseguinte, um ‘silogismo retórico’, o ‘entimema’, cujo simples nome (en e thymos, ‘no ânimo’) já indica que a sua operação psicológica é mais ‘cordial’ que ‘cerebral’, se orienta mais para a afetividade que para a inteligência. Simétrica do Organon, a Retórica de Aristóteles – cume do caminho que durante um século foram balizando Córax e Tísias, Górgias e o Fedro platônico – é o tratado técnico da palavra persuasiva.” (op. cit., p. 245) “O logos dialético e o logos retórico têm, por fim, um mesmo sujeito, e entre a dialética e a retórica não há oposição, mas correlação e complemento ([Retórica] I, 1, 1354, a 1). Frente a Platão, ‘Aristóteles aceita em definitivo – diz certeiramente A. Tovar – que a retórica não persegue apenas deloun (fazer ver), senão que lhe é lícito também psychagogein (conduzir as almas), para o que há que estudar o caráter e as paixões. E com isso consegue, ao aperfeiçoar a dialética e ao mesmo tempo transigir com as posições sofísticas tradicionais na retórica, uma verdadeira síntese em que sofística e platonismo se confundem.’ “ (op. cit., p. 249) 41 “Se o estado de doença é em alguma medida modificável por persuasão, poderá negar-se a existência de um gênero terapêutico ou curativo no corpo da retórica?” (La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 250) Laín-Entralgo aproxima e deriva a persuasão terapêutica da persuasão deliberativa ou política – esta, obviamente, tratada por Aristóteles. 42 Cf. La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 257. Na verdade, James Hillman faz um ensaio nessa direção em “The Fiction of Case History. A Round with Freud”, in Healing Fiction. Barrytown: Station Hill Press, 1983, p. 1-49. E também, num sentido mais amplo, em “Sobre a Necessidade de uma Psicologia do Comportamento Anormal: Ananke e Atena”, in HILLMAN, J. (org.) Encarando os Deuses. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992, p. 9-54. caracteres (ethe), o de quem fala e o de quem escuta.43 Esse encontro propicia uma transformação, via persuasão, no domínio das paixões, as quais exercem uma influência determinante sobre o modo de ver e julgar as coisas, ou seja, sobre as opiniões e crenças do sujeito. Assim, crenças antigas se modificam, surgem novas crenças, ou reaparecem crenças adormecidas, sendo decisivo o esclarecimento a respeito de si mesma que a alma de quem ouve ganha através da palavra do orador.44 O encontro retórico – ou psicoterapêutico – possui uma dimensão específica no que diz respeito à transformação das paixões, e aqui o recurso à compreensão aristotélica da katharsis trágica complementa a analogia retórica com a relação psicoterapêutica.45 Ao contrário do logos persuasivo, que só implicitamente se acha referido à psicoterapia verbal em Aristóteles, o logos catártico é expressa e essencialmente relacionado por ele à medicina. A purificação das paixões desmedidas era ingrediente fundamental no tratamento médico, na educação do cidadão, na vida filosófica e na instituição eminentemente grega da tragédia ática. Analisando globalmente a ação catártica da tragédia, Aristóteles mostra como o estado de ânimo do espectador da ação trágica, e de seu personagem, a quem aquele se identifica pelo sentimento de philanthropon (comunidade e solidariedade com a desgraça do herói), é modificado pela katharsis: a confusão e ignorância iniciais (poderíamos dizer: tumulto afetivo e inconsciência) transmutam-se em ordem – dolorosa ou feliz, conforme o desenlace da ação trágica – e esclarecimento ou conhecimento. Portanto, a katharsis não se reduz a mera purgação de paixões: inclui um elemento cognitivo, que Aristóteles designa com o termo anagnorisis ou 43 Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 257-258. O célebre dictum psicanalítico –“não se interpreta a transferência, interpreta-se na transferência” – confirma a aproximação entre a relação psicoterapêutica e o encontro retórico (além disso, é também possível esclarecer a ação da interpretação e seus efeitos pretendidos mediante a analogia teatral, o que nos remete à Poética de Aristóteles). 44 Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 258-259. “A palavra do orador, com efeito, conduz o ouvinte a ver a realidade e a ver-se a si mesmo de um modo inédito, e às vezes descobre-lhe zonas de sua própria vida de cuja existência não suspeitava antes.” ibid. Laín-Entralgo compara, em total consonância com a opinião de Jung: “Também no encontro psicoterapêutico se produz um choque mais ou menos harmonioso entre o caráter do médico e o do paciente; também no caráter deste e em sua disposição – que agora recebe o nome de enfermidade – predominam com tal motivo tais ou quais paixões; também o psicoterapeuta procura modificá-las, conforme aos fins que em cada sessão se proponha; também o tratamento médico vai suscitando no doente opiniões e crenças novas, ao mesmo tempo em que o esclarece e ilumina a respeito de si mesmo; também, enfim, é a felicidade – agora sob a forma de saúde, uma das partes da eudaimonia ([Retórica] I, 5, 1361, b 3-7) – o fim a que a cura se ordena. A adição de um quartum genus ao corpo da Retórica de Aristóteles não parece ser ocorrência gratuita e infundada.” Op. cit., p. 259-260. 45 Laín-Entralgo, reconhecendo a diversidade de interpretações acerca da concepção aristotélica da katharsis trágica, agrupa-as em três modalidades: estética, moral e médica, desenvolvendo seus argumentos a partir desta última (cf. La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 265-266). reconhecimento.46 O logos é o fundamento tanto da ordenação das paixões, pela contemplação (theoria) imitativa da ação trágica encadeada segundo um texto ordenado, quanto do reconhecimento que ela produz, um conhecimento pela força da dor, segundo a fórmula de Ésquilo (pathei mathos: “pela dor ao conhecimento”). Por isso mesmo, a katharsis, como afirma Menéndez-Pelayo47, coincide com o restabelecimento da sophrosyne nos diálogos socráticos de Platão e deságua em um tipo específico de prazer, que Laín-Entralgo compreende assim: “A catarse trágica foi prazerosa porque convinha a toda a natureza do homem. (...) Prazer, repetirei uma vez mais, é a perfeição de uma atividade natural não estorvada (...) A atividade a que outorga prazer e coroamento a hedone trágica é um trânsito existencial – dianoético, afetivo e corporal a um só tempo – desde a confusão e a desordem ao bem ordenado esclarecimento. (...) Passando, pois, da ordem das aparências à ordem das essências, o prazer trágico seria o pertinente à humana atividade de conhecer-se melhor a si mesmo e dispor mais flexível e conscientemente do próprio destino.”48 A analogia teatral oferece uma forma valiosa de compreender a situação psicoterapêutica, e em especial o método junguiano da imaginação ativa, em que se consubstancia o espírito original da abordagem terapêutica da psique por Jung. Fundamentalmente, tenta-se perceber a confusão afetiva dilacerante como encenação imaginária, levando-se o paciente à posição de espectador ativo de si mesmo – com o que se cria uma certa distância entre o sujeito e a realidade imediata de suas pulsões, pela mediação das imagens. Segundo Aristóteles, a imagem é sempre uma imitação (mimesis) de algo – dos desejos e pulsões, por exemplo, dado o íntimo enraizamento da phantasia no desejo (orexis) – , e a imitação permite aprender, dá prazer e simultaneamente afasta e aproxima do real, sendo por natureza purificação.49 Não é difícil correlacionar a doutrina do De Anima com os temas da anagnorisis, da hedone e da katharsis da Poética. Sem a luz da phantasia e da inteligência prática o desejo é força dionisíaca cega e potencialmente dilacerante, fragmentadora, gerando aquela “situação de surpreendente e confuso desconhecimento”50, carregada de sofrimento e aflição, que enreda o sujeito tenazmente e prepara o caminho para a anagnorisis ou reconhecimento, a qual advém justamente pela intervenção da imaginação e da 46 “Ao estado trágico do ânimo e à catarse em que se resolve pertence em segundo lugar um momento dianoético ou lógico. O conhecimento de que se falou não é uma iluminação inefável; é sobretudo um processo psicológico de expressão verbal.” LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 325. Cf. Ainda p. 311, 314, 315, 322. 47 Citado por Laín-Entralgo, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p.331. 48 La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 329-330. 49 Cf. FRÈRE, J. Les Grecs et le Désir de l’Être. Des Préplatoniciens à Aristote. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 369-375. 50 Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 316. inteligência prática. Pela experiência pessoal e pelo conhecimento dela advindo, o analista desempenha uma função similar à do coro na tragédia grega. Este representa “o círculo humano que mais diretamente compartilha com o herói as terríveis vicissitudes de seu destino. Seus membros são, entre outras coisas, uma espécie de espectadores mais próximos da ação trágica e mais imediatamente afetados por seus maravilhosos eventos; e tão singular situação os faz ser ao mesmo tempo intermediários do efeito trágico e orientadores da concreta expressão deste na alma do espectador.”51 Assim como o coro na peça trágica, a intervenção do psicoterapeuta costuma ser parcimoniosa, medida e atenta ao momento propício (kairos). No ato particular da interpretação convergem o modo retórico e o modo trágico do logos: sua intenção é produzir um reconhecimento (ou “tomada de consciência”) e uma mudança de posição do sujeito – vale dizer, das crenças e opiniões que estruturam inconscientemente seu conflito. Com a elaboração de Aristóteles a especulação grega original acerca da psicagogia verbal atinge o seu ápice. As escolas do período helenístico, bem como seus prolongamentos e derivações da época imperial, mesmo se concedêssemos a Laín- Entralgo que não tenham criado inovações dignas de nota no tocante à compreensão teórica do assunto, confirmam na prática o uso filosófico da palavra terapêutica. Uma vez que a tônica da filosofia pós-aristotélica recai na dimensão ética, as três grandes escolas helenísticas - epicurismo, estoicismo e ceticismo – ilustram à perfeição a tese de Pierre Hadot quando define a filosofia antiga como modo de vida ou exercício espiritual. A vida filosófica consistirá em uma forma de psyches therapeia sustentada no logos, tendo como alvo a eudaimonia, que supõe a maestria sobre os desejos. Em uma excelente apresentação da filosofia helenística sob o ângulo privilegiado da dimensão prática e existencial, Martha Nussbaum a caracteriza exatamente como uma “terapia do desejo”.52 O filósofo é então concebido como um “médico compassivo cujas artes curariam muitos tipos difundidos de sofrimento humano.”53 51 LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 320. 52 Cf. NUSSBAUM, M. The Therapy of Desire. Theory and Practice in Hellenistic Ethics. Princeton: P.U.P., 1994. Ver também VOELKE, A.-J. La Philosophie comme Thérapie de l’Âme. Études de Philosophie Hellénistique. Paris: Éditions du Cerf, 1993; DOMANSKI, J. La Philosophie, Théorie ou Manière de Vivre? Les Controverses de l’Antiquité à la Renaissance. Paris: Éditions du Cerf, 1996. Quanto à aplicação prática do pensamento filosófico, existem bons motivos que levam alguns intérpretes – por exemplo, Michel Foucault (A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 21-22) e Simone Weil (La Source Grecque. Paris: Gallimard, 1953, p. 77) – a considerarem Aristóteles como uma exceção à tese de Pierre Hadot sobre a união indissolúvel de especulação teórica e vida prática nos “exercícios espirituais” das escolas antigas, nele vendo apenas um teórico “puro” (devemos esta observação ao professor Fernando Rey Puente). Nessa perspectiva, o Estagirita seria também menos um filósofo-médico, como certamente o foram os filósofos do período helenístico, do que um professor em Se a filosofia grega como um todo elaborou e praticou uma fina concepção da psyches therapeia, que em última análise coincidia com a própria vida filosófica, então a phronesis ou sabedoria prática assume uma relevância indubitável na compreensão de ambas, na medida em que ela cumpre uma função decisiva na realização humana e na busca da eudaimonia, meta comum a todas as escolas filosóficas da Antigüidade. Nesse sentido, a analogia entre a praxis psicoterapêutica e a filosofia antiga, reivindicada por Jung e que aqui referendamos por meio das reflexões de Pedro Laín-Entralgo, autoriza uma leitura da psicologia analítica a partir da noção de sabedoria prática. Tal é o foco fundamental da tese que apresentamos neste trabalho. Retornando a Jung, vimos que para ele a psicoterapia, entendida em seu sentido mais profundo, deve auxiliar o homem a “tornar-se o que está destinado a ser”, a realizar sua meta – e aqui ecoa a máxima sapiencial de Píndaro, que orientou a vida filosófica na Antigüidade: “Torna-te o que és”. Disso resulta que uma compreensão adequada do empreendimento junguiano pode ser feita em perspectiva ética, e portanto filosófica, conforme a sugestão de Gadamer mencionada anteriormente. Neste trabalho não privilegiamos a discussão acerca da legitimidade – problemática, discutível – dos conceitos e categorias formulados por Jung, a começar pela noção central de seu pensamento: a de arquétipo. Também não nos propusemos, em primeiro plano, discutir a questão conexa da validade dos métodos por ele empregados, e em especial o método comparativo, forte sustentáculo para a tese da existência dos arquétipos – contra o qual já no início do século XX Franz Boas sentido convencional. Mesmo se concordássemos com esta posição, ela não obsta a que a reflexão teórica de Aristóteles sobre o logos terapêutico, e sobre o agir ético em geral, sirva-nos para compreender tanto a vida filosófica concreta da Antigüidade como a praxis psicoterapêutica contemporânea. 53 NUSSBAUM, The Therapy of Desire, p. 3. Epicuristas, céticos e estóicos “praticavam a filosofia não como uma técnica intelectual neutra dedicada à exibição de astúcia mas como uma arte engajada e mundana de atracar-se com os tormentos humanos. Eles concentravam sua atenção, por conseguinte, em problemas de significação humana diária e urgente – o medo da morte, amor e sexualidade, raiva e agressão – problemas que são às vezes evitados como embaraçosamente confusos e pessoais pelas variedades mais neutras de filosofia. Eles confrontavam esses problemas como surgiam nas vidas humanas comuns, com uma aguçada atenção às vicissitudes dessas vidas, e àquilo que seria necessário e suficiente para melhorá-las. Por um lado, esses filósofos ainda eram plenamente filósofos – dedicados à cuidadosa argumentação, à explicitação, à compreensividade, e ao rigor que normalmente foram buscados pela filosofia, na tradição da reflexão ética que se inicia (pelo menos no Ocidente) com Sócrates. (Eles se opunham, com isso, aos métodos característicos da religião popular e da magia.) Por outro lado, seu intenso foco sobre o estado de desejo e pensamento no discípulo fez com que buscassem uma compreensão renovadamente complexa da psicologia humana, e levou-os a adotar estratégias complexas – interativas, retóricas, literárias – destinadas a capacitá-los a se envolverem com o que haviam compreendido.” Ibid., p. 3-4. A caracterização por Martha Nussbaum da tradição platônica como menos imersa no mundo, e portanto menos atenta às peculiaridades que envolvem a situação terapêutica, parece- nos unilateral e discutível. levantava sérias objeções a partir do campo da antropologia. Tais questões não podem ser contornadas quando se trata de estabelecer aquilo que hoje pode ser mantido da contribuição original de Jung, distinguindo essa parte “viva” daquela outra “morta”, que não resiste à prova do referendo intelectual, e que por isso deve ser deixada de lado como proposta de compreensão legítima e reconhecida no estado atual do conhecimento sobre o ser humano. Não é nosso propósito aqui enveredar por um tal tipo de “junguianismo crítico”, depurando o legado de Jung daqueles elementos que, à luz da crítica filosófica contemporânea (em especial a partir do paradigma da linguagem), aparecem como obsoletos, superados, ingênuos ou inconsistentes de um ponto de vista racional.54 Também não propomos aqui uma retomada de todo o contexto a partir do qual emerge a psicologia de Jung. Esse contexto nos reenvia à complexa rede de idéias e doutrinas que constitui o panorama intelectual diversificado do século XIX e inícios do século XX, englobando campos do saber que freqüentemente fecundavam-se reciprocamente, como a filosofia, a medicina, a psicologia, a psiquiatria, a antropologia, a biologia, a fisiologia, a sociologia, em suas várias derivações e ramificações, as quais por vezes convergiam, por vezes se opunham radicalmente. Essa tarefa já foi realizada brilhantemente por Sonu Shamdasani, na obra mencionada anteriormente. Assim sendo, ao escolhermos a psicologia de Jung como objeto de nossa reflexão filosófica interessa-nos antes de mais nada compreender seu sentido histórico e cultural, e para tanto assumimos um duplo objetivo: em primeiro lugar, desenvolver e comprovar a posição de Jung, exposta discreta mas persistentemente, acerca da analogia entre a praxis psicoterapêutica que ele propõe e a filosofia antiga em sua dimensão prática; e em segundo lugar, compreender tal posição em sua significação no interior da experiência mais ampla da modernidade. Em outros termos: tomados como uma expressão de uma dada cultura, em um momento histórico específico, pretendemos compreender a experiência de Jung e o pensamento dela resultante em sua natureza essencial e à luz daquilo a que ele pretendia dar uma resposta, e que designamos como sendo o dilema da modernidade. O que Jung estava fazendo, qual o sentido de sua proposta, e o que fazem ainda hoje todos aqueles que, assumindo ou defendendo a validade da mesma, de formas diversas vivem e trabalham tomando como referência a compreensão de ser humano e mundo que Jung forjou e/ou assumiu? 54 Para isso veja-se TREVI, M. Per uno Junghismo Critico. Roma: Giovanni Fioriti Editore, 20002. O mais radical crítico de Jung dentro da própria tradição junguiana é, na atualidade, Wolfgang Giegerich. A leitura de seus trabalhos sempre desafiantes forneceu-nos valioso material para reflexão. Nosso trabalho é uma tentativa de responder a essa indagação, desenvolvendo a compreensão que Jung tinha a respeito da dimensão prática de sua psicologia, a qual coincide integralmente com a intuição de Jaspers a que nos referimos no início.55 Para tanto, e apoiados no que expusemos até aqui, construímos nossa análise do pensamento de Jung tomando como eixos referenciais duas noções: a de modernidade e a de sabedoria prática. A tese que avançamos em nosso trabalho, e que justifica o título que lhe demos, é a de que a psyches therapeia56 proposta por Jung representa uma tentativa de opor ao mal-estar espiritual engendrado pela modernidade uma forma contemporânea de sabedoria prática, que se especifica como uma hermenêutica vivida das imagens simbólicas. Com esta expressão pretendemos enfatizar a noção que nos parece ser a chave-mestra que franqueia e condiciona o acesso ao pensamento de Jung: a noção de símbolo.57 É pela contribuição que dá ao campo dos estudos sobre o simbolismo que Jung se inscreve na corrente mais ampla do pensamento hermenêutico contemporâneo, e se alinha com os nomes de Henry Corbin, Mircea Eliade, Gaston Bachelard, Paul Ricoeur, Ernst Cassirer, para citar apenas alguns dos que compartilham a mesma atitude para com a relevância antropológica do símbolo. Cabe lembrar que Jung está na origem 55 Registre-se, contudo, que Jaspers desenvolveu uma arraigada antipatia pelo tipo de psicologia do inconsciente correspondente à posição de Jung, e a criticava intransigentemente. Para uma exposição da perspectiva de Jaspers e uma crítica consistente da mesma, veja-se HILLMAN, J. “The Pandaemonium of Images: Jung’s Contribution to ‘Know Thyself’”, in Healing Fiction. Barrytown: Station Hill Press, 1983, p. 51-81. 56 Ao usarmos preferencialmente a expressão grega psyches therapeia para nos referirmos à dimensão prática da psicologia elaborada por C.G. Jung, nós o fazemos não por quaisquer veleidades de uma erudição que não possuímos, mas para indicar que, como o próprio Jung afirma, aquilo que está em jogo na situação psicoterapêutica ultrapassa o âmbito estritamente médico, o tratamento de neuroses classificáveis, para abarcar o sofrimento espiritual mais amplo proveniente do horizonte histórico-cultural moderno, o qual vem pôr em questão a auto-realização humana e, por isso, reclama um tipo de conhecimento e apresenta um tipo de meta que não pertencem às especialidades científicas, mas, como Jung percebia, aponta na direção da filosofia antiga: o conhecimento de si mesmo e a meta de tornar-se o que se é, que definem a natureza do “cuidado da alma” pelo menos desde Sócrates. Essa dimensão passa despercebida quando usamos o termo “psicoterapia”, que está associado coloquialmente a uma forma de “técnica” de solução de problemas psicológicos. Nesse sentido, Jung dizia: “O nosso ensino moderno da medicina, bem como o da psicologia e filosofia acadêmicas, não dão ao médico a formação necessária, nem lhe fornecem os meios indispensáveis para enfrentar as exigências, tantas vezes prementes, da prática psicoterapêutica, de um modo eficaz e compreensivo. Sem nos envergonharmos das insuficiências do nosso diletantismo histórico, vamos ter que freqüentar mais um pouco a escola dos filósofos-médicos daquele passado longínquo, do tempo em que o corpo e a alma ainda não tinham sido retalhados em diversas faculdades. Apesar de sermos especialistas, por excelência, nossa especialidade, curiosamente, nos compele ao universalismo, à profunda superação da especialização, para que a integração de corpo e alma não seja apenas conversa fiada.” OC XVI, § 190. 57 Por negligenciar a centralidade da noção de símbolo para a compreensão da psicologia de Jung, vários autores se equivocam ao tomá-la como uma “religião secular” (cf. RIEFF, P. O Triunfo da Terapêutica. São Paulo: Brasiliense, 1990) ou como um mero “culto carismático” (cf. NOLL, R. O Culto de Jung. Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Ática, 1996). Mesmo um historiador sóbrio e imparcial como Sonu Shamdasani erra o alvo nesse ponto, quando descobre em Jung um “projeto para uma psicologia mediúnica” (cf. SHAMDASANI, S. “Automatic Writing and the Discovery of the Unconscious”, in Spring, vol. 54, 1993, p. 100-131). da fundação do círculo de estudos de Eranos, que se reunia anualmente em Ascona, Suíça, congregando especialistas dos mais diversos campos do saber e produzindo um pensamento valioso, à margem das modas intelectuais de proveniência francesa, pensamento genuinamente interdisciplinar que tem como pano de fundo a retomada do simbolismo.58 Contudo, nossa tese encontra uma dificuldade de fundo a ser superada. Na verdade, Jung sempre reivindicou o estatuto de ciência para a psicologia analítica, sendo esse o motivo pelo qual, em várias ocasiões, ele se injuriava quando a interpretavam como filosofia, protestando que ele era um “empirista”, que não tinha um “sistema” nem “doutrinas”, limitando-se a analisar os “fatos empíricos” – como se isso estivesse excluído da própria filosofia... O que estava em jogo em sua reivindicação era a procura de legitimidade e reconhecimento para a psicologia analítica, e, no contexto em que ele desenvolveu seu pensamento, a legitimação pela cientificidade impunha-se obrigatoriamente. Sonu Shamdasani afirma que a psicologia de Jung tinha dois lados: “um que era inteiramente prático, e um outro que era inteiramente teórico. Por um lado, ela constituía um método de tratamento ou educação, e por outro, era uma teoria científica, relacionada a outras ciências. Essa divisão foi mantida [por Jung] durante sua carreira subseqüente. O que ele ainda tinha que fazer era estabelecer como essas partes se relacionavam.”59 De acordo com nossa linha de interpretação, Jung necessariamente deveria esbarrar em dificuldades consideráveis – e mesmo insuperáveis - ao tentar estabelecer a relação ou unidade orgânica do aspecto prático e do aspecto teórico, pois ele reconhecia a natureza filosófica da praxis psicoterapêutica, conforme mostramos anteriormente, mas propunha um modelo teórico que se apresentava como uma certa forma de cientificidade, não filosófica, e que pretendia enraizar-se epistemologicamente na Crítica da Razão Pura de Kant. 58 Para um enquadramento do sentido histórico e civilizacional dessa retomada, veja-se DURAND, G. “Situação Atual do Símbolo e do Imaginário”, in A Fé do Sapateiro. Brasília: Editora da UNB, 1995, p. 25-54. Em nosso segundo capítulo faremos uma apresentação sucinta do destino do pensamento simbólico no Ocidente, mostrando a inserção de Jung nesse autêntico movimento espiritual cuja história, segundo Gilbert Durand, corresponderia a uma “anti-história da mentalidade ocidental”, na qual encontrar-se-iam “poetas como Dante, místicos como Eckhart, Tauler ou Ruysbroeck, teósofos como Gilles de Viterbo, filósofos como Nicolau de Cusa, Gémiste Pléthon, Marsilio Ficino, alquimistas como Arnaud de Villeneuve, Flamel e Paracelso, sábios visionários como Swedenborg” (DURAND, op. cit., p. 30), todos expoentes da “ressurgência das imagens”, e aos quais acrescentaríamos, com o próprio Durand, Jung e todo o círculo de Eranos. 59 Jung and the Making of Modern Psychology, p. 74. Por outro lado, a unidade orgânica entre praxis e episteme é uma exigência, posta pela razão, que condiciona a legitimação intelectual e ética do saber psicológico. Não basta reconhecer, com Jung, que “logo que a psicologia se torna de certo modo útil e prática como, por exemplo, na psicoterapia, deve necessariamente ser filosófica”.60 É preciso dar as razões desse fato, que não são óbvias. Por exemplo: por que a física, ao se tornar “útil e prática”, nem por isso se torna “filosófica”? A possibilidade de “tornar-se filosófica” já deve estar necessariamente implicada na constituição mesma da forma teórica – caso contrário assistiríamos a uma misteriosa e inexplicável (ou ilegítima) metamorfose de uma ciência em filosofia. Em outras palavras: se a praxis psicoterapêutica é afirmada como sendo de natureza filosófica, a teorização psicológica deve, ainda que apenas implicitamente, ser congruente com uma forma filosófica para que a coerência entre episteme e praxis possa ser pensada. Ora, a autocompreensão que Jung tinha de sua psicologia como teoria científica é problemática justamente na medida em que o vínculo com a sua aplicação prática perde a sua inteligibilidade. Tal problema revela-se insolúvel se nos ativermos aos termos da autocompreensão de Jung: “Pratico a psicologia em primeiro lugar como [uma] ciência. Em segundo lugar, ela me serve como [instrumento de] psicoterapia.”61 Desta forma, é preciso enfrentar o problema posto pela suposta cientificidade da psicologia analítica, pois com nosso paradigma de leitura filosófica pretendemos formular não uma interpretação exterior ao pensamento de Jung, que funcione como uma espécie de cama de Procusto à qual o obrigamos a se ajustar, mas propor uma forma de captação da sua essência mesma, que se sustenta e justifica a partir de um exame crítico de seus fundamentos práticos e teóricos. Por isso é necessário ir além da cisão epistêmica entre as duas dimensões da psicologia analítica, para explicitar a sua unidade fundamental, o que significa que nossa tese deve incluir uma tarefa ulterior: trazer à tona o pano de fundo filosófico da teorização de Jung. Para tanto nos apoiamos, por um lado, no testemunho de Jung em suas Memórias. Parece-nos que a unidade de teoria e prática radica-se na experiência vivida por Jung, de que ambas são reflexo e elaboração consciente.62 Por outro lado, conforme mostraremos a seu devido tempo, o próprio Jung reconheceu – ainda que de forma 60 Cartas I, 5/01/1931, a Charles R. Aldrich. 61 Cartas II, 25/04/1952, a Vera van Lier-Schmidt Ernsthausen. 62 A melhor elucidação do princípio que governa a psicologia de Jung a partir de suas raízes em sua experiência fundante encontra-se em GIEGERICH,W. The Soul’s Logical Life: Towards a Rigorous Notion of Psychology. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998, especialmente p.55-78. relutante – a afinidade de suas concepções teóricas ao Romantismo e ao Idealismo alemão, o que significa admitir afinal que o seu “empirismo” não era absolutamente “não filosófico”, e que sua teorização psicológica não poderia ser também absolutamente “científica”. Por isso não seguimos Shamdasani ao designar o lado prático da psicologia de Jung como “psicologia analítica” e o lado teórico como “psicologia complexa”, preferindo considerar essa unidade fundamental de ambas as vertentes e nos referir ao pensamento de Jung pela denominação mais consagrada de “psicologia analítica”, dando prioridade à sua raiz prática e existencial e interpretando a sua dimensão teórica como sendo, em última instância, organizada em torno de algumas concepções filosóficas de índole claramente romântica. Desta forma, ao termo da discussão sucinta da problemática epistemológica e da exposição do perfil filosófico que caracteriza a psicologia analítica a interpretação da psyches therapeia junguiana como forma de sabedoria prática estará plenamente legitimada, na medida em que assim a via para a comprovação metafísica prescrita por Jaspers fica desobstruída, apesar de não nos propormos aqui enveredar por tal via, desenvolvendo esse aprofundamento específico do pensamento de Jung.63 Quanto ao marco teórico que adotamos, acreditamos encontrar no pensamento de Henrique Cláudio de Lima Vaz um referencial adequado para nossa tarefa. Ele está presente, explícita ou implicitamente, ao longo de toda a nossa reflexão neste trabalho. Nossa escolha se justifica não só pela inquestionável qualidade filosófica do pensamento vaziano, original, rigoroso, claro e de uma amplitude admirável, mas também por ele ter sido construído a partir de uma interrogação fundamental que acompanha permanentemente todo o esforço especulativo de Lima Vaz: justamente a interrogação sobre a modernidade, em sua gênese, natureza e destino.64 A presença constante desse problema, por sua vez, vai determinar o sentido do desenvolvimento dos grandes complexos temáticos que caracterizam seu pensamento: a ética, a antropologia filosófica e a filosofia da cultura. Por isso, a reflexão ética em Henrique Vaz, assentada nos alicerces da filosofia antiga – e em especial em Aristóteles –, enquadra-se segundo uma consideração atenta das novas condições de exercício da razão no regime mental moderno, e volta-se para os problemas que delas derivam. Portanto, este marco teórico atende ao duplo objetivo que assumimos em nossa tarefa, permitindo a interpretação ético-filosófica da psicologia de Jung segundo a categoria da sabedoria prática, que remete à filosofia antiga, em termos da situação espiritual moderna. 63 Um exemplo bem-sucedido de tal aprofundamento pode ser encontrado na obra supra-citada de Wolfgang Giegerich. 64 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade, p.7. O pensamento de Henrique Vaz constitui o eixo de referência central de nosso marco teórico, o que não significa que não tenhamos lançado mão de outras referências quando o tema o exigia, como poderá ser constatado ao longo de nosso trabalho. Além disso, toda a reflexão de Henrique Vaz apoia-se numa rigorosa Erinnerung dos momentos cruciais da história da filosofia nos quais tomaram forma as grandes respostas aos problemas postos desde a origem a uma civilização da razão. Essa rememoração, que visa encontrar o centro das experiências epocais do espírito que decidiram o rumo tomado por esta mesma civilização, constitui-se necessariamente como interpretação e, como tal, coloca-nos em situação de autêntica interpelação perante a experiência interpretada, o que vem conferir densidade e profundidade à tarefa de respondermos aos problemas e interrogações que nos desafiam no presente. Finalmente, a leitura vaziana da modernidade, que manifestamente privilegia o destino da metafísica ocidental como ângulo de interpretação, parece-nos excepcionalmente fecunda para elucidar em profundidade o problema da sabedoria prática no regime mental moderno, na medida em que intenta compreender o sentido da revolução operada pela metafísica moderna da subjetividade nos fundamentos da práxis, e suas conseqüências sobre o âmbito da ética, e por extensão sobre a questão da sabedoria aqui enfocada. Nessa medida, ela nos parece capaz de fundamentar uma avaliação justa e pertinente sobre os problemas que se apresentam na resposta de Jung aos desafios do niilismo moderno.65 Para cumprir a tarefa que nos propusemos, dividimos nossa reflexão em quatro capítulos: no primeiro, estabelecemos o enquadramento histórico do problema da sabedoria prática, apresentando em termos gerais as coordenadas que permitem formular nossa tese da correspondência entre sabedoria prática e psicoterapia contemporânea; no segundo, retomamos o enquadramento histórico, mas desta feita concentrando-nos sobre a situação do pensamento simbólico na marcha histórica da civilização ocidental, para entender a proposta junguiana de um resgate da sensibilidade simbólica em toda a sua extensão; em seguida, complementamos no terceiro capítulo a abordagem do segundo, tratando do significado da recuperação de uma sensibilidade simbólica quando compreendida à luz da relação entre modernidade e tradição, e daí passamos à demonstração de que a psicologia analítica preenche os requisitos exigidos para que seja interpretada como uma forma de sabedoria prática; finalmente, no último capítulo, ao fazermos a avaliação da sabedoria prática junguiana sob um ponto de vista sistemático, mostramos a dificuldade representada pela opção epistemológica feita por Jung, que então recenseamos em suas linhas fundamentais, para expor o seu caráter problemático, e 65 Talvez valha a pena mencionar que não encontramos nenhuma referência a Jung no pensamento de Henrique Vaz, que, ao que parece, considerava o psicólogo suíço como representante de um certo “irracionalismo”, não condizente com seu temperamento intelectual. Porém, encontramos um “lapso” junguiano em uma passagem de seus escritos de filosofia, quando, ao tratar da figura do sábio, expressão concreta da racionalidade prática e paradigma da conduta ética, Vaz afirma que ele “aparece sob os mais variados perfis e muitas vezes revestido dos véus da legenda, em praticamente todas as tradições culturais”, e é “de resto, um dos mais poderosos arquétipos do inconsciente coletivo e veículo provavelmente insubstituível da transmissão do ethos”. Escritos de Filosofia IV, p. 52. ao mesmo tempo para revelar a inconfundível têmpera filosófica romântica da psicologia analítica, que assinala a direção do passo teórico que Jung não deu, e que comprometeu a unidade orgânica entre praxis e episteme em sua psicologia. Isso nos permitirá uma visão mais ampla sobre as relações da psicologia analítica com o niilismo moderno, que apresentaremos em nossa conclusão. CAPÍTULO PRIMEIRO SABEDORIA PRÁTICA E MODERNIDADE Talvez não seja exagerado afirmar que, em meio a todas as transformações fatídicas que determinaram os rumos da humanidade – do domínio do fogo à invenção da roda, do advento da agricultura ao surgimento das grandes religiões mundiais - , cabe um lugar de destaque àquelas mudanças que acompanharam e constituiram essa experiência decisiva que costumamos designar pela palavra modernidade. De fato, pode-se constatar facilmente o profundo e radical impacto exercido pelas linhas de força da modernidade sobre todo o arco das configurações humanas em escala planetária, sejam elas sociais, econômicas, políticas, subjetivas ou culturais. A instalação humana no mundo viu-se indelevelmente modificada, em formas e graus variados, pela expansão do espírito moderno em sua investida dominadora sobre todas as culturas e sociedades, mesmo aquelas mais avessas ao perfil específico que define tal espírito. Observada a partir de sua hora avançada, na qual nos cabe viver, a experiência moderna, com todas as suas conseqüências e efeitos aparentemente irreversíveis, desperta assombro e angústia, e por isso mesmo se oferece como genuíno objeto para a reflexão filosófica, que assume assim a tarefa de estabelecer as estruturas fundamentais que definem a própria modernidade. Ao termo dessa tarefa, o que era objeto revela-se por sua vez horizonte de compreensão para a interrogação filosófica que se debruce sobre qualquer aspecto da realidade conformada segundo as coordenadas modernas. O problema de que nos ocupamos neste trabalho pertence legitimamente ao campo delimitado pela experiência moderna. Trata-se, em resumo, dos destinos da sabedoria prática (phronesis) dentro do espaço humano configurado pela modernidade. Nosso objetivo neste primeiro capítulo é examinar as causas da exclusão da sabedoria prática do sistema de razões próprio do novo regime mental, para em seguida apontar as conseqüências de tal exclusão, criando assim um ponto de apoio que permitirá compreender um fato cultural específico: o nascimento da psicoterapia contemporânea. A tese aqui defendida é a de que esse evento significa uma tentativa de recuperação do espaço próprio da sabedoria prática, o que implica traçar uma linha de filiação de certas escolas da psicologia contemporânea à tradição filosófica. Inversamente, o conjunto de exigências e necessidades humanas que pressionaram no sentido da criação da psicoterapia contemporânea atesta, em sendo válida a tese proposta, que o abandono dos fundamentos da sabedoria prática clássica vem causar uma espécie de “mal-estar na cultura”. Esse mal-estar, concretizado em sofrimento psíquico no indivíduo formado na cultura moderna, estampa a indigência espiritual de um mundo que voltou as costas às raízes de sua sabedoria. A fim de cumprir o objetivo indicado acima, é preciso em primeiro lugar expor sinteticamente as linhas estruturais da concepção clássica de sabedoria prática, mostrando sobre quais fundamentos ela se apoia. A seguir, dada a imprecisão semântica que afeta a própria noção de modernidade, é necessário definir o sentido e o uso que faremos dessa categoria, descrevendo seus traços principais, para assim poder examinar as transformações operadas pela experiência moderna sobre os fundamentos clássicos da phronesis, com o que estaremos em condições de compreender a situação – ou a não- situação – da sabedoria prática na modernidade. Este é o roteiro seguido na apresentação de nosso argumento. 1. Sabedoria prática: linhas fundamentais da concepção de phronesis 1.1 A propósito da noção de sabedoria Tomada em sua acepção mais genérica – e portanto mais vaga -, sabedoria significa o âmbito do conhecimento experiencial e reflexivo do homem, que tem como finalidade permitir-lhe ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, situar-se melhor no ser, e orientar a realização de suas aspirações em todas as dimensões de sua vida. A amplitude dessa definição permite que ela abarque as mais variadas formas historicamente nomeadas como sabedoria, indo da habilidade técnica, passando pela sagacidade nas relações humanas, pelo saber acumulado na experiência, à contemplação ou conhecimento dos princípios últimos da realidade. Uma importante distinção a ser feita dentro dessa categoria ampla e ambígua de sabedoria diz respeito à sua legitimação. Nesse sentido, podemos falar da sabedoria própria dos saberes éticos, que se legitimam exclusivamente pela referência seja à experiência recolhida nas tradições das diversas culturas, seja à revelação formulada na experiência religiosa, e de sabedorias filosóficas (no plural), que, mesmo tomando como ponto de partida os saberes éticos, aspiram à legitimação racional, discursiva. Se restringirmos o nosso foco às concepções de sabedoria representativas da tradição filosófica grega antiga, veremos que elas emergem de um fundo originário em que dois termos, destinados a ocupar uma posição central no discurso ético, ainda não estão precisamente diferenciados do ponto de vista semântico e conceptual: sophia e phronesis. Assim, sophia significa em Homero a habilidade para praticar uma operação determinada; posteriormente passa a indicar qualquer “arte”; já em Teógnis refere-se claramente à inteligência prática, oscilando a partir de Heródoto entre um sentido teórico e um sentido prático; a distinção entre os dois sentidos, apenas eventualmente esboçada em Platão, vai ser categoricamente estabelecida por Aristóteles, que reserva para a sophia o sentido exclusivamente teórico; finalmente, a partir das escolas helenísticas, observa-se a tendência a uma atenuação da linha demarcatória traçada por Aristóteles, prevalecendo o ideal de uma fusão do aspecto teórico com o prático. Analogamente, a amplitude do espectro semântico original de phronesis permitia que se designasse com tal termo praticamente toda atividade mental. Acompanhando a linha evolutiva da noção de sophia, phronesis permanece freqüentemente indistinta da sabedoria teórica66, para ganhar em Aristóteles o perfil exclusivamente prático de sabedoria como guia do homem no mundo (ao mesmo tempo em que se diferencia também claramente de outra noção vizinha, a de techne). Se nas escolas pós- aristotélicas os dois sentidos voltam a se reunir, esta união contudo se faz doravante portando a marca da distinção feita pelo Estagirita, sob a forma da dupla determinação da sabedoria como virtude prática e como conhecimento teórico. Empenhando-se em verter essa distinção para a língua latina, Cícero fixará os termos que acompanharão o uso filosófico das noções de sophia e phronesis: sapientia e prudentia, respectivamente. Na verdade, mesmo em sua forma mais categórica, como a apresentada por Aristóteles, a distinção entre as esferas teórica e prática não deve ser tomada como uma separação radical quando temos em vista o spiritus rector que animava a filosofia antiga. Como afirma decididamente Pierre Hadot em seus trabalhos67, a vida filosófica antiga era indissolúvel e simultaneamente teórica e prática, traduzindo-se como maneira de viver ou, segundo sua expressão, como “exercício espiritual”, determinando assim muito concretamente a forma de existência em todas as situações práticas68. Além disso, cabe lembrar que o saber teórico por excelência, a 66 Cf., por exemplo, Heráclito, fr. B 112; Platão, Cármides, 166d-167a, e Protágoras, 332a ss. 67 Cf. HADOT,P. Exercices Spirituels et Philosophie Antique. Paris: Albin Michel, 2002; O Que é a Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 1999; ver também La Philosophie comme Manière de Vivre. Paris: Albin Michel, 2001. 68 “A filosofia era o exercício efetivo, concreto, vivido, a prática da lógica, da ética e da física. A verdadeira lógica não é a teoria pura da lógica, mas a lógica vivida, o ato de pensar de uma maneira correta, de exercer seu pensamento de uma maneira correta na vida de todos os dias. Há pois uma lógica vivida, que consiste, dizem os estóicos, em criticar as representações, isto é, as imagens que vêm do mundo exterior, em não se precipitar para dizer que tal coisa que acontece é um mal ou um bem, mas refletir, criticar a representação. Isso é evidentemente verdadeiro também para a ética. A verdadeira ética não é a teoria da ética, mas a ética vivida na vida com os outros homens. Ocorre o mesmo com a física. A verdadeira física não é a teoria da física, mas a física vivida, quer dizer uma certa atitude a respeito do cosmos. Esta física vivida consiste de partida em ver as coisas tais como elas são, não de um ponto de metafísica, surgiu como um esforço intelectual visando a orientação no mundo mediante um saber que conduzisse à sabedoria e à felicidade, estando pois articulado à ética.69 Aliás, poderíamos dizer que, mesmo em uma atmosfera intelectual adversa ao pensamento metafísico, como aquela em que vivemos, ainda é possível legitimamente tomar posição em favor da remissão do ético ao metafísico.70 A diversidade das formas clássicas de articulação do plano teórico ao plano ético e as diferentes propostas de sabedoria prática filosófica que daí resultam podem ser reconduzidas a um denominador comum, a saber: sua referência, explícita ou não, a duas máximas sapienciais veneráveis: “Conhece-te a ti mesmo” e “Torna-te o que és”. Tais máximas encerram um pressuposto – que poderíamos traduzir como o inacabamento fundamental do homem -, o qual dá sentido ao imperativo da realização de si mesmo mediada por uma forma específica de conhecimento – o conhecimento de si mesmo, de que depende a determinação dos fins especificamente humanos que norteiam a auto-realização. E, de Sócrates até nossos dias, as modalidades filosóficas de sabedoria prática distinguir-se-ão segundo a originalidade quanto à forma de interpretar e dar cumprimento a essas máximas, bem como quanto às estratégias de legitimação racional de seus preceitos – que implicam a questão da fundamentação metafísica ou ontológica que lhes dá sustentação. Por outro lado, apontando a remissão mútua entre cosmologia, antropologia e ética, Rémi Brague nos lembra que a sabedoria prática antiga era predominantemente uma “sabedoria do mundo”, correspondendo assim a uma “cosmologia vivida”, na medida em que, mais do que simplesmente situar o ser humano por relação ao universo físico, tomando-o como um dado básico, ela supunha a interrogação sobre o que é o homem e sobre o que ele deve ser, a partir de considerações relacionadas à estrutura do universo. Em outros termos: a cosmologia, implicando uma antropologia que englobava uma reflexão sobre a forma pela qual o homem pode ser o que ele verdadeiramente é, ou seja, uma reflexão ética, compunha o quadro de referência mais amplo que permitia definir a atitude mediante a qual o homem poderia realizar plenamente sua humanidade – atitude que coincide com a sabedoria prática.71 vista antropomórfico e egoísta, mas na perspectiva do cosmos e da natureza.” HADOT, La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 154-155. 69 Cf. CONILL,J. El Crepúsculo de la Metafísica. Barcelona: Anthropos, 1988, p. 15. Cf. também VAZ,H.C.L. “Platão Revisitado. Ética e Metafísica nas Origens Platônicas”, in Kriterion, v. XXXIV, n. 87, 1993, p. 9-30. 70 “Es gibt keine Ethik ohne Metaphysik: essa afirmação de Robert Spaemann sendo, na verdade, o nosso ponto de chegada nessa exposição, desvenda a significação profunda de nosso ponto de partida. Ela exprime lapidarmente um implícito até aqui não enunciado mas que exprime afinal nossa convicção profunda: a de que o itinerário de uma Ética viável nas terras da razão moderna deve recuar aquém das suas fronteiras e reencontrar a trilha platônico-aristotélica, para tentar prolongá-la na floresta de racionalidades que cobre a cultura desse fim de milênio. Não estará aqui uma alternativa possível para o desconcerto ético do nosso tempo?” VAZ, “Ética e Razão Moderna”, in Síntese Nova Fase, v. 22, n. 68, jan.-mar./1995, p.78. 71 Cf. BRAGUE, R. La Sagesse du Monde. Histoire de l’Expérience Humaine de l’Univers. Paris: Fayard, 1999 (aqui p. 12, 15 e 21). Rémi Brague assinala, igualmente, as formas de sabedoria antiga que não consideravam a cosmologia como um saber importante para a determinação da situação prática – notadamente certas linhas da sofística, o cinismo e os cirenaicos. Além disso, epicuristas e pirrônicos só consideravam a física em vista da ataraxia, não buscando um modelo cósmico para a conduta humana, e assim, propriamente falando, a sabedoria que propunham não era uma sabedoria do mundo, no sentido que Brague dá a esta expressão. Cf. La Sagesse du Monde, p. 49. Mas, no sentido de Pierre Hadot (cf. retro, nota 3), mesmo as especulações físicas dos epicuristas, ao se articularem à questão prática, também poderiam constituir uma “física vivida”, sem o estatuto da imitação stricto sensu do modelo cósmico, Essa forma de “sabedoria do mundo” que articulava cosmologia, antropologia e ética marcou a tradição de pensamento dominante durante um longo período, que se estende da Antigüidade à Idade Média.72 Para os nossos objetivos, não é necessário fazer um inventário das diversas concepções de sabedoria prática segundo as várias escolas e períodos do pensamento antigo e medieval. Basta tão-somente delimitar uma estrutura conceptual essencialmente representativa daquelas concepções, sem entrar nas divergências, por vezes drásticas, que contrapõem uma escola ou estilo de vida filosófico a outro, e que possa servir como ponto de leitura razoavelmente aplicável e seguro para a distinção entre o espírito da ética antiga e o universo ético moderno. Pelo exposto anteriormente, parece-nos legítimo tomar tal estrutura em sua formulação aristotélica, visto que a mesma marcará profundamente a tradição filosófica ocidental, constituindo-se em verdadeiro ponto de referência para todo o pensamento ético até o advento da modernidade. Além disso, é em Aristóteles que a noção de phronesis apresenta sua forma mais rica, abarcando a maior diversidade de aspectos. As formas posteriores de sabedoria prática serão construídas como reação ao modelo aristotélico, ou então como uma recuperação de um ou vários de seus aspectos, mas nenhuma delas apresentará “a diversidade contraditória do arquétipo perdido”.73 1.2 Phronesis e Praxis A decidida distinção feita por Aristóteles entre razão teórica e razão prática estabelece o espaço do ethos como o campo de atuação próprio a esta última74. Esse campo, no qual se situa a praxis, atividade prática da psyche que é regida pelo logos75, guardando porém a intenção de uma harmonização com o Todo pela inserção ordenada no mesmo, que Hadot designa como “consciência cósmica”. 72 Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 12. Nesta obra encontra-se uma boa visão panorâmica, enfocando a questão sob o ângulo da correlação entre sabedoria e natureza nas escolas mais representativas do pensamento antigo e medieval. 73 Cf. CANTO-SPERBER, M. (org.) Dicionário de Ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, verbete “Prudência” (assinado por Pierre Pellegrin). 74 Para o que se segue, apoiamo-nos fundamentalmente em VAZ, Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura, especialmente p. 80-134, e desenvolvemos certos pontos a partir das fontes indicadas em nota ao texto. Observe-se aqui que a leitura vaziana da ética aristotélica atém-se deliberadamente às suas grandes linhas, remetendo as questões mais especializadas ao seu tratamento em sede própria, através de rica indicação bibliográfica. Henrique Vaz não se propõe a dar uma contribuição original aos estudos sobre Aristóteles, mas sim a utilizá-los na interpelação aos graves problemas suscitados pela modernidade. Como nosso trabalho versa sobre um desses problemas, a opção pelo tratamento vaziano da ética aristotélica fica justificada. 75 Onde encontramos, portanto, um logos da psyche, que corresponderia a uma “psicologia” em versão antiga. Como toda concepção ética pressupõe uma determinada antropologia, assim a leitura da Ética a Nicômaco pode ser feita em contraponto com a antropologia do De Anima. Para a comprovação da tese organiza-se em torno a dois focos: o das “coisas humanas” (ta anthropina) e o da “virtude” (arete). Assim, o saber imanente à praxis, o qual é um tipo de conhecimento intelectual específico, possuindo um método e um gênero de certeza próprios, orienta as escolhas que se apresentam nas situações contingentes características das “coisas humanas” no sentido dos modelos de realização propostos nas virtudes éticas. A excelência nessa orientação constitui a virtude intelectual da phronesis ou sabedoria prática, que assume pois o centro de gravidade da teoria aristotélica da praxis. No tipo modelar que encarna essa excelência, o phronimos ou sábio76, encontramos a medida para a realização concreta da virtude, medida que se define em relação tanto ao agente quanto aos componentes de sua ação (ou seja, o objeto, o tempo, as circunstâncias, os destinatários, o fim e o modo)77. Instalada em meio às “coisas humanas” e sempre a elas referida, a sabedoria prática é definida por Aristóteles como uma “disposição prática, acompanhada de uma regra verdadeira, concernente ao que é bom e mau para o homem”.78 Por sua própria definição, vê-se como a phronesis supõe a determinação do bem humano e, na medida em que há uma hierarquia de bens segundo uma ordem determinada, a definição do bem absoluto ou último para o homem, que Aristóteles demonstra ser a eudaimonia ou felicidade.79 Esta, por sua vez, consiste em uma atividade (energeia) que é feita de ações propriamente humanas (praxeis), que têm o seu fim em si mesmas. Aqui radica-se a distinção também clara feita por Aristóteles entre praxis e poiesis (produção): a que sustentamos basta, pois, demonstrar a correspondência estrutural entre essa “psicologia” antiga (na sua face de sabedoria prática) e a psicologia junguiana, o que faremos no capítulo terceiro. 76 A tradução de phronimos por “sábio” é problemática, se levarmos em conta que usualmente esse termo é aplicado a sophos, enquanto phronimos costuma ser traduzido por “prudente”, no âmbito dos estudos especializados de ética antiga. Contudo, dada a inflexão que atinge a noção de prudência na modernidade, e que a torna bastante diversa da phronesis clássica, a utilização de seu derivado parece-nos ainda mais problemática e inconveniente. Por outro lado, no âmbito coloquial “sábio” designa alguém experiente na arte de viver – ainda que freqüentemente sem referência ao elemento racional constitutivo da phronesis. O enfraquecimento dos termos “sabedoria” e “prudência”, que se observa desde Descartes, atinge também seus derivados. Por isso, e mais uma vez considerando que o conceito fundamental para nossa tese é o de modernidade, optamos pela utilização de “sábio”, mais satisfatória para traduzir as facetas do phronimos antigo para a sensibilidade moderna em sua compreensão não especializada. Uma outra justificativa para esta opção é o fato de ela também ser adotada em várias passagens dos escritos de Henrique Vaz, quando trata da problemática ética. 77 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 108 e nota 123. 78 Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140 b 5. 79 Na verdade, a tradução de eudaimonia por “felicidade” é insatisfatória. “Felicidade”, com as conotações de sentimento subjetivo que o sentido moderno lhe atribui preferencialmente, não consegue expressar a riqueza semântica do grego eudaimonia, que significa a excelência do indivíduo na humanidade e sua auto-realização nessa excelência (Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 52 e nota 67). A inadequação dos termos permite entrever a diferença entre o eudaimonismo antigo, fundado na objetividade do bem, e o eudaimonismo moderno, fundado no sentimento subjetivo de felicidade (cf. VAZ, Escritos de Filosofia IV, p. 91 nota 21). operação técnico-produtiva não é uma energeia mas uma kinesis (movimento) que tem o seu fim fora de si mesma, na obra produzida. A praxis visa a perfeição do agente; a poiesis visa a perfeição da obra externa. A forma de saber correspondente à primeira é a sabedoria prática, ao passo que a correspondente à poiesis é a techne.80 A phronesis é a virtude ou excelência da parte calculadora, opinativa ou deliberativa da alma racional, e promove a articulação dos fins (“o que é bom para o homem”) aos meios capazes de os realizar. Ela não deve, contudo, ser entendida como o instrumento de um empirismo hedonista nem segundo um pragmatismo rasteiro, reduzido às decisões quotidianas ordinárias. Por um lado, é preciso salientar a centralidade da vinculação estrutural entre phronesis e praxis81, e enfatizar a natureza própria desta última, que se refere à ação que aperfeiçoa o agente, sendo pois especificamente humana e humanizadora. A praxis, por outro lado, está suspensa à definição dos fins especificamente humanos, e estes fundamentam-se em uma determinada concepção antropológica82. A realização plena da forma humana, tal como definida na concepção antropológica de base, coincide com o fim último a ser captado pela phronesis, que assim orienta a praxis segundo a referência da eudaimonia. Na obra concreta da sabedoria prática, a deliberação em torno a qualquer situação particular deve pois estar referida ao fim último da auto-realização humana segundo a sua essência. Esta referência pressupõe, como lembra Julia Annas em The Morality of Happiness83, a consideração da vida humana em sua totalidade: para Aristóteles, o fim último deve ser pensado e realizado “na vida completa”. Eis a razão de um certo utilitarismo de vistas curtas ser inteiramente estranho à concepção de sabedoria prática tal como a filosofia antiga a entendia. Nos quadros da formulação aristotélica, cabe à ontologia da forma dar sustentação e fundamento à teoria da praxis. A ordem e finalidade em cada indivíduo tem o seu princípio intrínseco na essência, sendo a forma o ato da essência. No caso do ser 80 Sobre a distinção praxis-poiesis e a sua fundamentação metafísica na distinção entre energeia e kinesis, ver NATALI, C. “A Base Metafísica da Teoria Aristotélica da Ação”, in Analytica, vol. 1, nº 3, 1996, p. 101-125. Cf. também, na mesma revista, o artigo de Bernard BESNIER, “A Distinção entre Praxis e Poiesis em Aristóteles”, p. 127-163. 81 Vinculação que fica estampada na tradução de phronesis por “sabedoria prática”, razão pela qual adotamos sem restrições essa expressão em nosso trabalho. 82 “A noção aristotélica de ação [praxis] é um conceito complexo, estritamente ligado à antropologia de Aristóteles – antropologia que põe o homem como um ente intermediário entre a esfera puramente natural e a esfera do divino. A teoria da ação é fruto coerente de tal ponto de vista e bem representa, sobre o plano dinâmico, a sua ambígua complexidade.” NATALI, C. “A Base Metafísica da Teoria Aristotélica da Ação”, p.123. 83 Cf. ANNAS,J. The Morality of Happiness. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 27-46. humano, a forma, que Henrique Vaz identifica ao núcleo ontológico da ipseidade pessoal84, é denominada por Aristóteles psyche, especificando-se pela presença da inteligência (nous). Aristóteles assenta o uso mensurante e normativo do nous tanto no domínio da physis (uma vez que o agir ético supõe a boa disposição natural, physike arete) quanto no domínio do ethos (já que a virtude ética propriamente dita, ethike arete, desenvolve-se por educação como hábito). Se o ethos, espaço da realização humana, se eleva sobre a physis, rompendo o círculo da necessidade natural pela autodeterminação instauradora constitutiva da praxis, nele no entanto conserva-se a razão profunda da própria physis, manifestada no finalismo do bem inscrito na forma (eidos) de todos os seres como tendência imanente à atualização plena. Isso significa afirmar a presença normativa da physis no próprio ethos, que se constitui assim como uma “segunda natureza” referida à “natureza humana” gravada no eidos. A passagem da virtude natural à virtude ética, feita pela intervenção da razão prática, reatualiza no plano da praxis concreta a mesma suprassunção originária que marca a elevação do ethos sobre a physis.85 A praxis, cujo momento crucial é a decisão racional ou escolha deliberada (prohairesis), implica uma passagem da potência ao ato tanto do objeto da faculdade apetitiva quanto daquele da faculdade do discernimento, que se unificam assim na própria ação. A atividade virtuosa significa, portanto, a realização pelo agente de suas possibilidades propriamente humanas. Sendo os conceitos de ato e potência, que regem tanto a metafísica quanto a antropologia aristotélicas, igualmente fundamentais para a reflexão ética86, a phronesis assenta-se necessariamente sobre esta base metafísica. Nas situações humanas em que intervém, a sabedoria prática comporta-se como regra em relação às virtudes éticas e como condição em relação à sabedoria teórica (sophia). De fato, sendo a virtude ética uma mediania (mesotes), ela se define por 84 Cf. Escritos de Filosofia V, p. 17-18. 85 Para a afirmação do papel fundamental da abordagem naturalista para a filosofia moral aristotélica, veja-se ENGBERG-PEDERSEN, T. Aristotle’s Theory of Moral Insight. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 261. No contexto mais amplo da mentalidade antiga, a busca bem sucedida pelo metron, capital para a eupraxia, traduz-se como harmonização com o cosmos, preservação da correspondência bem ordenada entre a esfera humana e o cosmos. O microcosmos encontra seu modelo normativo no macrocosmos, uma vez que ambos são regidos pelas mesmas leis, e estas são de natureza moral (como fica estampado nas idéias de justiça, isonomia, temperança, amizade, aplicadas a ambas as esferas, sustentadoras da ordem – kosmos – como um bem objetivo, não instituído pelo homem, e que deve ser respeitado). Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 41. 86 Cf. PERINE, M. “Ato e Potência: Implicações Éticas de uma Doutrina Metafísica”, in Kriterion, n. 94, dez./1996, p. 7-23. “Toda decisão racional impõe uma passagem da potência ao ato. É nesse ponto que a ética se enxerta na metafísica, e esse cruzamento é decisivo para a compreensão da antropologia de Aristóteles, porque é na sua metafísica que se encontra a chave da sua antropologia.” Op. cit., p. 19. referência ao sábio (phronimos), modelo exemplar de uso da reta razão (orthos logos) que determina exatamente o justo meio pelo qual ele se pauta, e a reta razão é aquela que se conforma à sabedoria prática (phronesis). Por outro lado, se a sabedoria prática não institui os fins, propriamente falando, ela no entanto os capta e promove a sua articulação com os meios capazes de realizá-los. Segue-se que, sem a sabedoria prática, a consecução de quaisquer fins humanos seria ou impossível ou resultado do acaso, e nesta última hipótese não haveria mérito nem virtude verdadeira, desaparecendo toda a problemática ética. Já no tocante à virtude intelectual suprema (sophia), a sabedoria prática comporta-se como condição não no sentido de submetê-la aos seus princípios, ditando-lhe ordens, mas sim no de refletir sobre como alcançá-la, o que significa que a phronesis opera em vista de sophia87. A realização da vida contemplativa depende das circunstâncias exteriores, requerendo portanto um domínio prévio das situações vigentes no âmbito das coisas humanas, e tal domínio é orquestrado pela sabedoria prática. Sendo assim, é lícito afirmar que, mesmo sendo hierarquicamente inferior à sophia, a sabedoria prática é imprescindível à realização do ideal contemplativo do sophos. É precisamente essa dupla referência às virtudes éticas, por um lado, e à sabedoria teórica, por outro, que faz a sabedoria prática ocupar o centro de toda a vida ética na concepção aristotélica. 1.3 Phronesis, Orexis e Phantasia Sob o ponto de vista da psicologia do ato moral, a sabedoria prática orienta teleologicamente o campo da escolha (prohairesis), na medida em que esta sempre implica uma forma de raciocínio e reflexão relativos às coisas humanas, sendo portanto escolha deliberada. Referida ao desejo que expressa o fim intencionado de forma não- racional, a sabedoria prática torna-o um desejo refletido (orexis dianoetike), que assim move o processo de decisão. Desse modo, na decisão unificam-se a faculdade apetitiva e a faculdade intelectiva como intelecto desejante ou desejo razoável. O que torna possível essa unificação é a capacidade natural das tendências e impulsos que pertencem 87 Cf. PERINE, M. “Phronesis: Um Conceito Inoportuno?”, in Kriterion, v. XXXIV, n. 87, 1993, p. 31- 55, aqui p. 45-46. Sendo a natureza da relação entre phronesis e sophia em Aristóteles objeto de discussão polêmica entre os especialistas, adotamos aqui uma das posições defendidas nesse debate sem retomá-lo a fundo, o que estaria além de nossa competência e dos objetivos desse trabalho. à alma sensitiva e concupiscível, sendo por si não racionais e desmedidos, de participarem de certo modo da razão ao se adequarem ao seu domínio88. O desejo (orexis) na concepção aristotélica cobre um amplo arco e surge em diferentes níveis, indo da epithymia não racional à prohairesis e à boulesis racionais.89 Enquanto princípio motor único da psyche, o desejo goza de um certo primado face ao intelecto prático, já que o intelecto não pode mover sem o desejo.90 Ontologicamente, o nível do desejo é anterior ao do nous, o que implica em que o intelecto deve apoiar-se no desejo para realizar sua atividade própria. Por outro lado, se o desejo guia o intelecto prático, este por seu turno fornece-lhe uma regra que permite superar a conflitividade potencial existente entre os vários tipos de desejo: o bem prático, objeto do desejo e causa final do agir ético, é da ordem daquilo que pode ser diferente do que é, o que significa que pode ser um bem verdadeiro (to agathon) ou somente um bem aparente (to phainomenon agathon) – abrindo-se desse modo a possibilidade para o desejo ser reto ou não, donde a necessidade do intelecto para retificá-lo ou torná-lo justo.91 Ademais, dada a ambivalência característica dos desejos, que permeiam a totalidade do composto humano, podendo ser alógicos ou lógicos, é preciso lembrar que o desejo alógico pode mover contra o raciocínio e prevalecer sobre a deliberação (boulesis), ou então a deliberação pode esclarecer e refrear o desejo alógico, orientando-o para o fim verdadeiro conforme suas diretrizes racionais. Cabe observar que o desejo, encerrado no presente mas aberto ao futuro sob influência da razão, é fundamentalmente temporal92, podendo ser desejo da imediatidade ou do prazer iminente – como seria o caso da epithymia entregue a si mesma - ou então ordenar-se a uma satisfação planejada por motivos refletidos – caso em que prevalece o comando de boulesis e prohairesis e a respectiva instrução racional. Aristóteles afirma que só em seres que possuem a percepção do tempo ocorre a presença de tendências desiderativas contrárias em um mesmo indivíduo, “pois neles a razão leva em consideração o futuro, onde se encontra o bem a que aspiram, mas o desejo [alógico] percebe apenas o prazer iminente.”93 A oposição entre desejo e razão instala a 88 Cf. Ética a Nicômaco, I 13, 1102 b 23-31. 89 A esse respeito, cf. FRÈRE,J. Les Grecs et le Désir de l’Être. Des Préplatoniciens à Aristote. Paris: Les Belles Lettres, 1981, p. 321-365. 90 Cf. De Anima 433 a, 22-23. 91 Cf. De Anima 433 a, 26-30. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 361-362. 92 Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 362. Cf. também De Anima 433 b, 5-10. 93 PUENTE, F.R. Os Sentidos do Tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001, p.326. fragmentação no ser humano; a sua unificação representa a forma ideal da auto- realização. Percebe-se como o desejo, sendo uma potência (dynamis) da alma, desempenha na concepção aristotélica uma função eticamente essencial. Jean Frère chega mesmo a afirmar que a inteligência prática é o mais alto grau do desejo94, na medida em que, ao aspirar a uma meta, ela deseja ordenar meios em vista de um fim, determinando assim a praxis. Contudo, parece necessário enfatizar a distinção entre inteligência prática e desejo, mesmo reconhecendo o entrelaçamento profundo entre ambos, pois afinal a sabedoria prática é uma virtude intelectual, que – repita-se – fornece a regra indispensável ao desejo, ao passo que o resultado exemplar obtido mediante essa submissão do desejo à razão, estampada na mediania (mesotes), encarna-se nas diversas virtudes éticas. Na verdade, toda a reflexão ética grega encaminha-se no sentido de se constituir como uma ciência da medida que tem como referência analógica a medicina. Aristóteles encontrava na arte médica o modelo para desenvolver o método adequado ao objeto da ética. A analogia terapêutica faz da sabedoria prática uma genuína forma de terapia, construída em torno da noção de medida (metron) e orientada para a cura dos excessos do desejo.95 Nesse sentido, sendo o desejo uma das forças fundamentais da psyche, podemos afirmar que a phronesis é constitutivamente uma forma de psyches therapeia. Além da referência recíproca entre inteligência prática e desejo, há também uma interação mútua entre desejo e imaginação (phantasia), assinalada pelo parentesco profundo entre a espontaneidade de ambos96, e é assim que desejo, imaginação e inteligência prática encontram-se entrelaçados indissoluvelmente.97 Se, como assinalado anteriormente, o desejo é o princípio motor único da psyche, deve-se observar que sem imaginação não há desejo98, pois é a phantasia que representa o bem para o qual o desejo tende, constituindo por isso o aspecto cognitivo presente no próprio desejo. A imaginação, por seu turno, pode ser perceptiva (aisthetike) ou deliberativa (logistike), a primeira modalidade sendo encontrada em outros animais, e a segunda sendo 94 Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 357. 95 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 45-46. Ver também as obras de Pedro Laín-Entralgo e Martha Nussbaum que mencionamos em nossa introdução. 96 Cf. De Anima 427 b,14 – 429 a, 9. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 353. 97 Cf. De Anima 433 a, 13-21. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 361. 98 Cf. De Anima 433 b, 27-29. Cf. sobre esse tema ENGBERG-PEDERSEN, Aristotle’s Theory of Moral Insight, p. 134-136. prerrogativa humana, segundo Aristóteles99. A distinção faz eco àquela entre desejos alógicos e desejos lógicos, e põe em evidência a comunicação das faculdades não racionais com o nous. Assim, no ato da deliberação confluem e encadeiam-se desejo, imaginação e inteligência, que participam portanto da obra de phronesis. Ao implantar a sabedoria prática tanto na inteligência (nous) quanto no desejo (orexis)100, Aristóteles a estabelece como a mediadora privilegiada da auto-realização humana, que fornece o melhor sentido para o grego “eudaimonia”. A própria definição aristotélica do ser humano pelo princípio da decisão racional (prohairesis), na medida em que esta é simultaneamente intelecto desejante (orektikos nous) e desejo refletido (orexis dianoetike), permite entrever um aspecto da unidade antropológica fundamental a partir da qual a sabedoria prática realiza sua atividade. 1.4 Phronesis e Empeiria Tendo sido apresentada até aqui em sua face interna ou subjetiva, por assim dizer, é necessário agora voltarmo-nos para a outra face da sabedoria prática, que diz respeito às circunstâncias e condições objetivas de seu exercício. As situações humanas, que compete à sabedoria prática apreciar e julgar, caracterizam-se por uma indeterminação essencial que pode ser resumida numa palavra: contingência101. Aristóteles apresenta o domínio em que se exerce a sabedoria prática como o daquilo que pode ser diferente do que é, ou seja, aquilo que não é necessário e que não pode, por isso, tornar-se objeto de ciência (episteme). O contingente está submetido à temporalidade, e assim pode-se compreender que a concepção da sabedoria prática é solidária de uma concepção do tempo ou, como diz Pierre Aubenque, de uma ontologia da contingência.102 Disso resulta que uma condição fundamental para a possibilidade concreta da sabedoria prática é a pressuposição de algum tipo de inteligibilidade do contingente. De fato, se o contingente não possui a inteligibilidade mais “forte” que caracteriza o necessário, objeto da theoria e de sua episteme, nem por isso ele é ininteligível, 99 Cf. De Anima 433 b, 29-30 e 434 a, 5-10. 100 A razão é a causa formal, o desejo a causa eficiente e o bem a causa final do agir ético. Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 120-123. 101 Para um exame mais preciso das noções diferenciadas de contingência e indeterminação em Aristóteles, ver ZINGANO, M. “Particularismo e Universalismo na Ética Aristotélica”, in Analytica, vol. 1, nº 3, 1996, p. 75-100. 102 Cf. AUBENQUE,P. A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 110 ss. podendo portanto ser objeto do conhecimento próprio à doxa e à phronesis. É esta inteligibilidade mais “fraca” (daquilo que se verifica não sempre, tou aei, mas muitas vezes, tou pollakis) que atravessa o campo ético, constituindo a racionalidade da praxis e assinalando a presença do logos regulador e ordenador no domínio contingente das coisas humanas. O que “enfraquece” a inteligibilidade das coisas humanas não é uma ausência de lei, que significaria simplesmente anulação de qualquer inteligibilidade, mas a distância insuprimível entre a lei em sua generalidade e a realização da mesma na complexidade infinita de relações particulares. Dito de outra forma: a determinação do particular pela lei geral se dá sempre pela interveniência de múltiplos fatores variáveis que conformam a diversidade das circunstâncias. Contudo, no fundo de toda a variabilidade das situações e circunstâncias ainda persiste a determinação pelo bem como fim, entendido como telos imanente. A relativização deste pela contingência não implica na sua pulverização, como acontece em um relativismo que simplesmente nega a objetividade do finalismo do bem, a qual é consubstancial à abordagem naturalista e metafísica em Aristóteles. A “boa ação” (eupraxia) constitui a felicidade (eudaimonia), que é o fim (telos) absoluto do ser humano, ou, em outros termos, o seu bem supremo. Desse modo, o bem, que assume infinitas faces de acordo com as circunstâncias, continua sendo, na teoria aristotélica da praxis, o pólo objetivo que sustenta a inteligibilidade das coisas humanas, iluminando todo o campo da decisão e suportando a racionalidade da praxis.103 A sabedoria prática refere-se a essa inteligibilidade do contingente pela mediação decisiva da experiência (empeiria). Na verdade, a articulação à empeiria é absolutamente crucial para se compreender a operação da phronesis. Entendida como a memória atual de muitos casos particulares semelhantes, é a experiência que permite à sabedoria prática avaliar a situação particular em vista da decisão. Por sua vez, o que torna semelhantes os casos particulares é a forma de universalidade implícita, imanente ao dinamismo do bem, que é captada na e pela experiência, e formulada no âmbito da razão pela sabedoria prática. 103 Aristóteles alinha-se à tradição ontológica antiga que afirma a identidade entre o ser e o bem (ens et bonum convertuntur, segundo a fórmula escolástica medieval). No interior dessa tradição, o dever-ser, relativizado pelas circunstâncias, inscreve-se no horizonte maior do ser e estampa, ao mesmo tempo, a não coincidência do imperfeito com o bem e sua tendência – implantada na forma como sua causa final – à atualização plena no ser. Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 135-137. A correspondência entre experiência e memória põe a claro a necessária vinculação entre empeiria e o tempo. Não é outra a razão de Aristóteles insistir em que não se pode ser sábio quando se é jovem, pois a experiência, componente fundamental da sabedoria prática, desenrola-se no tempo, sendo-lhe correlativa. No entanto, deve-se observar que a temporalidade própria à empeiria é eminentemente qualitativa, uma vez que supõe o reconhecimento e a distinção de diferenças e semelhanças nas configurações que compõem as circunstâncias vividas, registradas na memória e comparativamente organizadas na construção da própria experiência. Em outros termos, não aristotélicos: a experiência não se adquire por mero acúmulo de eventos experimentados na seqüência cronológica de um tempo físico quantitativo, mas pela organização desses eventos em unidades significativas do tempo vivido, nas quais as relações ou o entrelaçamento entre os diversos elementos que compõem uma dada configuração empírica, única e ao mesmo tempo comparável por semelhança a outras, desempenham um papel essencial. Além disso, como sustenta o dinamarquês Troels Engberg-Pedersen, as virtudes éticas, adquiridas por habituação, incluem experiência, e o próprio processo de habituação já é um modo de se adquirir empeiria (ao mesmo tempo em que o desejo está sendo conformado à medida dos valores próprios do ethos).104 O tempo próprio à experiência e à ação que nela se apoia é o kairos dos antigos, precisamente o tempo entendido em sua dimensão qualitativa, o “bem no tempo” (en chrono).105 É ele que participa da deliberação presente comandada pela sabedoria prática, sob a forma da ocasião apropriada ou momento oportuno para a realização de um ato com vistas a determinado fim, constituindo-se pois em um ingrediente fundamental das circunstâncias contingentes a serem consideradas pelo phronimos na determinação de sua ação.106 Em um outro sentido, mais amplo, kairos indica não apenas uma circunstância temporal estrita, mas “a circunstância em todo o seu 104 Cf. ENGBERG-PEDERSEN, Aristotle’s Theory of Moral Insight, p. 218. A propósito da analogia entre o hábito e a experiência, ver PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 311. 105 Cf. Ética a Nicômaco 1096 a 26, e o comentário em PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 319. 106 Após avaliar a natureza de um dado kairós, o sábio deve decidir “se é recomendável proceder imediatamente à sua fruição ou antes se é desejável buscar ulteriormente outras ocasiões (ou melhor: uma ocasião única) mais proveitosas ainda, situadas em um futuro direta ou indiretamente determinável.” E. MOUTSOPOULOS, “La fonction du kairos selon Aristote”, in Revue Philosophique, 1985, n. 2, p. 224- 225. Segundo Moutsopoulos, para Aristóteles a temporalidade seria “reestruturável segundo um critério determinável e determinado, a saber o kairos, zona simultaneamente modal e nodal, que colore, axiologicamente, por sua própria nuance, a realidade objetiva, como também a realidade dos vividos”, exibindo assim a “aplicabilidade funcional (...) do intencional ao objetivo, nos limites do campo de atividade da consciência”. Op. cit., p. 226. Tal aplicabilidade será fundante do “espaço hermenêutico” antigo. Ver adiante, capítulo segundo. complexo de variáveis temporais, locais, relacionais e finais”107, assinalando em uma situação concreta “a totalidade, a plenitude implícita a cada momento de uma ação”108, o que torna explícita a significação axiológica da temporalidade. A correspondência entre a ação humana e o tempo propício vem relativizar o bem humano, fazendo com que ele só possa ser concretamente determinado no contexto complexo de uma situação particular. Dessa correspondência nasce para a sabedoria prática a sua tarefa específica, que consiste no difícil problema de adaptação recíproca entre os meios disponíveis no momento presente e os fins prescritos pelo eidos humano e apresentados nas virtudes éticas109. A contingência temporal implica, assim, o sacrifício inevitável de uma parte do bem integral em favor de outra, introduzindo um mal menor, como agudamente observa Pierre Aubenque110. A indeterminação do mundo, sendo por um lado, a “forma propriamente aristotélica do mal”111, abre por outro lado o espaço especificamente humano da deliberação e da ação. Se a praxis é necessariamente relativizada pelo bem humano, e se este por seu turno se relativiza pelas circunstâncias, então a virtude da sabedoria prática só pode ser pensada como uma imersão num mundo afetado por uma espécie de inacabamento ou de indefinição, que representa um convite à ação humana no sentido de determiná-lo e conduzi-lo à meta da perfeição segundo o orthos logos. Vê-se assim que a sabedoria prática observa tanto a indefinição ou desmedida das paixões e desejos quanto a indeterminação do mundo para realizar sua obra própria. Em face da contingência que afeta a esfera das “coisas humanas” incluindo os elementos constitutivos da situação, a phronesis ordena-se pela sophia, contempladora da ordem racional reinante na parte celeste do cosmos, para então implementar no tempo o ideal moral, que consiste numa espécie de imitação concretizada daquela ordem cósmica onde impera a razão112. A indeterminação das circunstâncias, que favorece a 107 PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 321. 108 Ibid., p. 322. 109 “A ação será virtuosa quando ela ocorrer no momento oportuno (kairos), ou seja, não podemos afirmar para muitos tipos de ação que elas são em sentido absoluto (aplos) virtuosas ou não, sem analisá-las em sua facticidade constitutiva.” PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 320. 110 Cf. AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 159. 111 AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 144. Cf. Metafísica, Θ, 9, 1051 a 17-21. Cabe notar, contudo, que o mal definido negativamente como privação de determinação é, por outro lado, carência que aspira à determinação pela forma, o que significa aspiração ao ser pleno, e portanto ao bem. A prioridade ontológica da forma sobre a matéria exclui por princípio qualquer modalidade de dualismo metafísico que pretendesse ver na matéria um princípio positivo do mal. 112 Aristóteles dá à idéia de contemplação (theoria) sua forma clássica, mas deixa sua doutrina inacabada ou mesmo indefinida, o que abre espaço para a controvérsia das interpretações. Se a contemplação é inequivocamente apresentada como o modo de vida mais elevado (Cf. Ética a Nicômaco, X), seu objeto determinação pelo acaso (tyche), é também o fundamento da ocasião propícia (kairos) que se abre à deliberação humana para a determinação pela razão113. Em resumo: a sabedoria prática, sendo uma virtude intelectual, pressupõe contudo tanto o desejo e a imaginação quanto a experiência, que são não-racionais, em sentido técnico aristotélico, apesar de não serem irracionais (o que tornaria o desejo impermeável à razão prática, a imaginação um estorvo a mais para a repressão dos desejos, e a experiência desprovida de uma forma de conhecimento racionalmente formulável). A realização do fim absoluto do ser humano – a eudaimonia – formalmente determinado pelo eidos efetiva-se pela interpenetração das faculdades anímicas que misturam profundamente suas raízes na psyche. Do jogo entre a determinação eidética e a contingência da situação, mediado pela ação conjunta de razão, desejo, imaginação e experiência, resulta a diversidade de formas humanas de auto-realização, que têm em comum a razoabilidade que pode lhes conferir a presença da sabedoria prática. E, finalmente, toda a compreensão aristotélica do agir humano inscreve-se no marco do objetivismo antigo, que se caracteriza pela lei da mútua reflexão entre kosmos e psyche, a qual rege por extensão a operação da phronesis. pode ser o deus da Metafísica, ou o próprio intelecto humano entendido com “deus interior” (cf. Ética a Eudemo, VIII, 3, 1249 b16), ou ainda o kosmos em sua ordem divina (Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 143-144). A opção interpretativa que considera o kosmos como objeto de contemplação tem como conseqüência alinhar o pensamento aristotélico com as correntes dominantes na Antigüidade sobre esse ponto: a cosmologia tem uma dimensão ética, e, reciprocamente, a tarefa de conformar as situações humanas segundo o modelo cósmico, que estampa visivelmente a realidade do bem, confere à ética uma dimensão cosmológica. Rémi Brague diverge de Aubenque quanto a esse ponto. De fato, na concepção aristotélica de phronesis não seria apropriado falarmos de uma imitação do cosmos no sentido restrito que Brague dá a essa expressão: diante da infinita diversidade das situações contingentes que circunscrevem o espaço da vida moral, a constância das revoluções celestes não poderia fornecer regras satisfatórias para as decisões particulares no âmbito das coisas humanas. Porém, parece-nos exagerado dizer que as escolhas da sabedoria prática “não repousam em nada sobre a estrutura do universo físico” (BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 177 e nota 146). Pois a articulação entre antropologia, ontologia e ética em Aristóteles parece-nos evidente, e a consideração dos fins humanos, referidos à essência, na determinação da ação, inscreve-se num cenário maior de afirmação da ordem objetiva que sustenta a concepção orgânica de natureza e de kosmos própria do espírito grego, ao qual evidentemente Aristóteles não faz exceção (lembremos, de passagem, que a antropologia do De anima é um capítulo integrante da física do Estagirita, sendo pressuposta em toda sua reflexão ética). É por não perceber ou não concordar que a “natureza humana”, elucidada pela “ontologia do humano” ou antropologia filosófica, é verdadeiramente natureza, embora com sua conformação única, que Brague não afirma que “realizar concretamente a perfeição da humanidade do homem por uma praxis que torna possível o desdobramento dessa essência” ( La Sagesse du Monde, p. 136) significa no fundo uma imitação do cosmos entendido como ordem. Isso o levaria a ampliar a sua noção de “sabedoria do mundo” na direção da “consciência cósmica” de Pierre Hadot. 113 Aubenque observa como há aqui uma reabilitação antropológica do tempo, em face da sua desvalorização física como “degradação da eternidade”: a estrutura contingente do kairos torna-o um “auxiliar benevolente” da ação humana. Cf. A Prudência em Aristóteles, p. 170. Cf. Ética a Nicômaco, I, 7,1098b 24. No mesmo sentido, ver PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 327. 2. Modernidade: definição e descrição114 Pelo exposto, pode-se perceber como a noção de sabedoria prática guarda vínculos profundos e estruturais com o universo espiritual clássico. A reorganização radical desse universo, da qual surge a modernidade, atinge em cheio o domínio das “coisas humanas”, provocando uma reformulação drástica da teoria do agir humano, ao termo da qual a razão prática será desenhada em perspectiva distinta daquela que levou Aristóteles a estabelecer a estrutura conceptual da ética antiga. Os fundamentos do campo da racionalidade da praxis serão revolvidos, e quando seus novos contornos surgirem já não haverá o mesmo lugar nem a mesma função para a sabedoria prática, que será então definida de modo significativamente distinto da sua versão antiga. Estando o destino e as perspectivas da phronesis ligados a essa experiência radical, é preciso equacionar a sua situação por referência ao espírito que inaugura o novo regime mental que é designado pelo termo “modernidade”. A literatura que tenta abarcar o fenômeno da modernidade é vastíssima e sobretudo complexa, como o próprio objeto sobre o qual ela versa. Muitas são as formas de se abordar esse tema, e o seu exame compreensivo torna-se cada vez mais amplo, exigindo um esforço necessariamente interdisciplinar. Por outro lado, o uso indiscriminado da noção de modernidade traz consigo um desgaste da mesma, a qual tende assim à imprecisão e ao esvaziamento que marcam o destino dos conceitos que se tornam chavões dentro de um jargão vulgarizado. Assim, de partida é conveniente e necessário delimitar o uso específico que faremos da noção de modernidade. Tomada em sua acepção propriamente filosófica, que é a que nos interessa aqui, “modernidade” é uma categoria que exprime uma forma típica de leitura do tempo pela razão. O exame da etimologia do termo nos fornece um ponto de partida valioso para a captação dessa forma. Substantivo abstrato, “modernidade” deriva do adjetivo “moderno”, que por sua vez remonta ao advérbio latino “modo”, que significa “há pouco” ou “recentemente”. Assim, etimologicamente, “moderno” exprime a qualidade daquilo que aconteceu no tempo recente, enquanto “modernidade” refere-se ao caráter 114 Baseamo-nos nessa seção nos seguintes textos de H.C.L.Vaz: “Ética e Razão Moderna”, in Síntese Nova Fase, v.22, n. 68, 1995, p. 53-84; “Fenomenologia e axiologia da modernidade”, in Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade, p. 11-30; e Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura, p. 225- 230. ou essência que determina tudo o que se diz “moderno”, por contraposição àquilo que determina o que se diz “antigo”, ou então “tradicional”. Portanto, o que o exame preliminar da etimologia de “modernidade” nos revela é a pressuposição de uma diferença ao mesmo tempo qualitativa e essencial na representação do tempo. Essa diferença corresponde a um certo privilégio conferido à experiência presente, no sentido de que o tempo presente liberta-se da primazia do “antigo” ou “tradicional”. O passado deixa de ser uma instância normativa auto-legitimadora para submeter-se a uma outra estrutura axiológica, inaugurada pela novidade qualitativa atribuída ao tempo presente, diante da qual a tradição precisa ser ou justificada, ou desqualificada criticamente, vale dizer: racionalmente. Desta forma, percebe-se como existe uma vinculação intrínseca entre modernidade e razão crítica. A normatividade desloca-se da tradição para a razão: para uma consciência moderna, a manutenção da normatividade tradicional só pode ser entendida como recuperação reflexiva, assim como a sua desqualificação só pode legitimar-se como superação crítica. Neste sentido fundamental e abrangente, pode-se dizer que há uma equivalência conceptual entre modernidade e filosofia, o que explica a razão de a experiência moderna ser genuinamente ocidental, pois somente a cultura ocidental, a partir da experiência grega, colocou a razão no centro de seu universo simbólico, definindo-se como civilização da razão. Assim, podemos acolher a definição proposta por Henrique Vaz: “modernidade significa a reestruturação modal na representação do tempo, em que este passa a ser representado como uma sucessão de modos ou de atualidades, constituindo segmentos temporais privilegiados pela forma de Razão que neles se exerce.”115 Dado que a razão crítico-filosófica pode assumir várias formas, segue-se que haverá tantas formas de modernidade quantas forem as formas de razão que historicamente ocuparem o centro do sistema simbólico-cultural. Em outras palavras: as variações e modalidades distintas de razão crítica obrigam-nos a falar de modernidades, no plural, para depois qualificarmos a modernidade de que tratamos segundo a forma hegemônica de razão que a especifica. A história da razão filosófica pode ser encarada, pois, como uma sucessão de modernidades distintas. A modernidade que nos interessa, aquela que virá excluir a forma clássica de sabedoria prática de seu sistema de razões, é a que recebe de Descartes a sua certidão de 115VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 229. nascimento, podendo ser chamada de modernidade moderna ou pós-renascentista (em que o qualificativo refere-se a uma cronologia histórica ou a um movimento da cultura) ou então de modernidade pós-cristã (qualificada pela referência à substituição de um universo ético fundamental). A partir de agora, salvo indicação em contrário, referir- nos-emos à modernidade moderna, por comodidade, simplesmente como “modernidade”.116 Segundo a definição apresentada, uma fenomenologia da modernidade deve expor os traços distintivos da forma específica de Razão por referência à qual se organiza o universo da cultura moderna. O evento especulativo que dá a chave de acesso e compreensão a toda a modernidade pode ser enunciado de forma concisa: no centro do novo sistema de razões instala-se o Eu legislador. A metafísica da subjetividade assim inaugurada, substituindo a metafísica clássica do ser, dará o tom fundamental de toda a nova mentalidade que se constituirá por aluviões sucessivos a partir da Renascença. Na antevéspera dessa revolução encontramos a crise institucional que sacode a Universidade de Paris no último quartel do século XIII, selando o fim do projeto de conciliação entre razão e fé que define toda a cultura teológica medieval.117 Por um paradoxo que só a visão histórica pode apreender, a dissolução desse projeto será feita em perspectiva teológica e com a finalidade precípua de salvaguardar o espaço da fé diante da ameaça pressentida no impropriamente chamado “averroísmo latino”. A possibilidade de uma restauração do naturalismo necessitarista antigo, em concorrência e mesmo em oposição ao modo de vida cristão, determina a condenação de 1277. Após esse ato de autoridade, todo o pensamento teológico move-se no sentido de uma crítica ao auxílio que a razão filosófica poderia prestar à compreensão da fé. Ao termo desse processo, deflagrado em nome da defesa da fé, abre-se um espaço para um saber natural não mais regido pelo programa da fides quaerens intellectum, saber que portanto fica entregue a si mesmo e a objetivos que não dizem respeito à vida na fé. Como já foi assinalado por Étienne Gilson118, não é casual o fato de justamente nos meios onde se realiza a dissociação entre razão e fé surgirem as primeiras descobertas e 116 Essa questão aparentemente terminológica oculta uma outra, polêmica, a respeito de avaliações críticas da modernidade moderna, que não podem ser desqualificadas meramente como uma defesa regressiva e restauradora de uma atitude “pré”-moderna. Esse tipo de desqualificação supõe uma espécie de univocidade histórica da experiência moderna, que é recusada já na própria definição de modernidade aqui utilizada. 117 A esse respeito, ver as magistrais análises de Henrique Vaz em Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade. 118 Cf. GILSON, E. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 795. fórmulas de uma nova forma de saber, que prenuncia o advento da moderna ciência experimental, destinada a substituir a visão de mundo antiga, solidária da cosmologia e ontologia aristotélicas, pela concepção mecanicista do universo infinito e homogêneo. A destruição crítica dos pilares da metafísica aristotélica, levada a cabo principalmente nos meios ockhamistas-nominalistas, prepara o terreno para a implantação moderna da metafísica da subjetividade. Na verdade, já no final do século XIII o conceito unívoco de ser, formulado por Duns Escoto, aliado ao primado do esse objectivum, igualmente de proveniência escotista, abre o caminho para a reorganização da ontologia em torno ao pólo da representação e do Sujeito.119 Seguindo esta linha de evolução, aberta com a inflexão que a condenação de 1277 impõe ao pensamento teológico tardo-medieval, as diversas racionalidades ou figuras da Razão moderna encontrarão seu denominador comum na peculiar relação que se estabelece gradualmente, num itinerário que conduz de Descartes a Hegel, entre os pólos de inteligibilidade do Ser e do Sujeito. Ao passo que a Razão clássica inscrevia as raízes do Cogito no Ser, distinguindo rigorosamente o domínio lógico do metafísico e subordinando aquele a este, a Razão moderna opera uma inversão em que o Ser passa a ser absorvido pelo Cogito, resultando na logicização do Ser que caracteriza a metafísica da subjetividade e que estará consumada na Ciência da Lógica hegeliana.120 Essa inversão radical, por sua vez, sustenta-se sobre a primazia atribuída à racionalidade lógico-matemática, que se converte assim em racionalidade-matriz para todo o universo da Razão moderna, segundo a qual se decide sobre a legitimidade racional de qualquer saber que aspire a ser reconhecido como conhecimento válido. Em face desse novo critério, adianta-se a racionalidade empírico-formal própria das ciências da natureza assentadas sobre a originalidade do método experimental de fundamento cartesiano-galileano. Assim, a inversão metafísica que está na base do sistema de razões moderno faz com que se multipliquem e se ordenem as formas de racionalidade 119 Sobre esse ponto, cf. Escritos de Filosofia VII, p. 186-189; cf. ainda Escritos de Filosofia III, p. 156- 166. Para as antecipações medievais de linhas de desenvolvimento do pensamento filosófico posterior (contemporâneo), veja-se também MURALT, A. de L`Enjeu de la Philosophie Médiévale: Études Thomistes, Scotistes, Occamiennes et Grégoriennes. Leiden: E.J.Brill, 1991. 120 A linha de evolução da metafísica da subjetividade recapitula, em sentido inverso e evidentemente em contexto hermenêutico distinto, a dialética da medida que conduzira, na Grécia clássica, da crise instaurada pela sofística com a submissão das coisas à medida do homem (representada pela célebre sentença de Protágoras) à submissão platônica do homem e das suas coisas a Deus (cf. Leis, IV, 716 c) e à submissão aristotélica do cognoscente à medida da verdade das coisas (cf. Metafísica X, 1, 1053 a 30-b 3). Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p.38-39 nota 8. Cf. também Escritos de Filosofia III, p. 156-166. segundo os procedimentos metódicos fundamentais da experimentação e da construção lógico-matemática.121 Como conseqüência dessa inversão, a Razão moderna será estruturalmente operacional, unindo indissoluvelmente theoria e poiesis, e tornando-se potente instrumento para a dominação seja da natureza, seja da sociedade e dos indivíduos. Arrastada pela irresistível atração exercida pela racionalidade tecnocientífica, atração exponenciada pelo fulgurante sucesso na dominação efetiva da natureza, a racionalidade filosófica será como que aprisionada à interlocução privilegiada com a Nova Ciência, com a qual ela compartilha a mesma base metafísica. Correlativamente, a cosmologia que se apoiava sobre a ontologia clássica das essências cede lugar a uma nova imagem de mundo, construída principalmente a partir da revolução científica. A noção eminentemente grega de um kosmos qualitativamente diferenciado, intrinsecamente regido por um finalismo universal, estampando visivelmente o domínio da ordem, da razão, da beleza e da proporção122, é substituída pela imagem do universo infinito e homogêneo, concebido segundo o modelo de uma máquina, funcionando mecanicamente sem qualquer sentido imanente, limitando-se a simplesmente existir. A idéia de natureza subjacente a esta imagem é traçada exclusivamente de acordo com a racionalidade matemática. A nova concepção da natureza, objeto de dominação e exploração com vistas à satisfação das necessidades vitais humanas, já não guarda nem remotamente qualquer traço de ligação com a antiga e venerável physis, que na imutabilidade de sua ordem oferecia-se à theoria como o fundamento de um nomos objetivo ao qual a praxis humana deveria referir-se.123 A cosmologia moderna vem assim neutralizar o mundo, tornando-o eticamente indiferente. 121 Cf. VAZ, “Ética e Razão Moderna”, in Síntese Nova Fase, vol. 22, n. 68, 1995, p. 65. 122 A respeito da formação da idéia de kosmos na Grécia Antiga e a consolidação definitiva do seu sentido de “mundo” no Timeu, veja-se BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 29-38. 123 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 163. Barbara Cassin ressalva que “a predominância da idéia de natureza não poderia de modo algum caracterizar de maneira global a Antiguidade”, relembrando a crítica ao conceito de natureza desenvolvida no movimento da sofística (Cf. CASSIN, B. Aristóteles e o Logos. Contos da Fenomenologia Comum. São Paulo: Loyola, 1999, p. 124-127.) Ainda assim, é inegável a existência dessa predominância ou, pelo menos, de uma função de destaque concedida ao conceito de natureza na maior parte das escolas representativas da filosofia antiga, mesmo que com articulações e sentidos diversos, atestando um preceito comum: não fazer violência à natureza e deixar-se guiar por ela. E, como quer que seja, é no naturalismo grego antigo que os meios teológicos do século XIII vão identificar o perigo a que se expõe a fé no ensino dos averroistae, estando pois historicamente ligado o processo que abre caminho à modernidade com uma concepção de natureza de feitio antigo. 3. O ocaso da sabedoria prática clássica A nova forma de razão moderna delimita um campo de inteligibilidade que não compreende essências, nem passagem da potência ao ato. Sendo intrinsecamente operacional, e atendo-se por isso ao modelo das relações lógico-matemáticas, ela se aplicará adequadamente aos meios. A justificação racional dos fins, por outro lado, enfrentará dificuldades consideráveis124 após o abandono das estruturas constitutivas da ética antiga e medieval. Em todo caso, a reformulação do sistema de razões segundo um novo espírito vem redesenhar o cenário da teoria da praxis, exigindo uma redescrição de sua racionalidade própria. O projeto cartesiano de uma moral racional definitiva, construída segundo as regras unívocas do método, expressa o fascínio dominador exercido por esse novo espírito instaurador da modernidade, o mesmo que, animado pela intenção de uma objetividade inexpugnável e imune às incertezas oriundas da intromissão indesejável da experiência vivida, faz da matematização do real a chave-mestra para a obtenção de um novo saber. O mundo que se descortina com este gesto instaurador corresponde àquele “reino da quantidade” do qual estão proscritas quaisquer formas de saber que se refiram a qualidades, significados, correspondências, e, principalmente, finalidades: a teleologia correlativa à noção antiga de physis é deixada para trás, junto com o seu fundamento ontológico.125 O universo e a natureza assim representados de nada servem ao homem em sua tarefa de traçar o roteiro e captar a regra de sua auto-realização126. A ruptura dos laços que enfeixavam homem e cosmos segundo a universalidade nomotética de um mesmo logos faz com que a situação do ser humano no mundo sofra uma verdadeira revolução: entre o homem antigo, espelho da ordem cósmica, que contempla o céu estrelado perscrutando o modelo objetivo segundo o qual determinar sua conduta, e o homem 124 Alasdair MacIntyre chega a afirmar que o projeto iluminista de justificar a moralidade estava necessariamente fadado ao fracasso. Cf. Depois da Virtude. Bauru: EDUSC, 2001, p. 73-114. 125 Por outro lado, a “morale par provision” cartesiana, tributária das correntes céticas anteriores e contemporâneas a Descartes, atesta uma recuperação da relação eu-mundo que devolve ao cogito a empiricidade que ele perdera, mesmo às custas do sacrifício da ciência e da metafísica. Cf. VIEGAS, S.M. “De Descartes a Hegel: Destino da Moral Provisória”, in Síntese Política Econômica Social, n. 10, 1977, p. 45-60. 126 É bem verdade que, como lembra Henrique Vaz, “a persistência da imagem da grande Natureza prolonga-se bem dentro dos tempos modernos – basta lembrar Goethe e o romantismo alemão – e assume prevalentemente a forma moralizante do estoicismo.” (Escritos de Filosofia VI – Ontologia e História, p. 175 nota 31.) Mas, em definitivo, a linha hegemônica de evolução da nova idade de cultura segue em outra direção: a do “itinerário para a antropologia”(cf. ibid.) ou, mais precisamente, a da antroponomia. moderno, construtor do universo científico, que se arrepia diante da indiferença dos espaços infinitos à presença humana, cava-se um abismo de conseqüências decisivas, indo do desenraizamento à náusea sartreana.127 A eudaimonia antiga coincidia, de alguma forma, com a harmonização com o cosmos, sendo portanto uma noção constitutivamente afim à forma cosmocêntrica do pensamento antigo; a felicidade moderna implica a dominação de uma natureza que não é vivida como matriz originária do espaço humano, mas apenas como matéria a ser moldada na execução do projeto baconiano de uma sociedade do bem-estar, inscrevendo-se assim na forma antropocêntrica da mentalidade moderna.128 No âmbito das “coisas humanas”, a centralidade que cabia anteriormente à sabedoria prática será reivindicada pelo Eu construtor manejando a razão operacional, e a reunião da praxis com a poiesis sob a primazia desta última significará a submissão do agir ético às regras da produção da obra ad extra, desaparecendo assim a distinção clássica entre praxis e techne. O aperfeiçoamento do agente segundo sua essência própria, finalidade central da praxis antiga, é substituído pelo ideal do sucesso na realização de obras que consolidem e confirmem o poder de dominação do Eu construtor. Desaparece, portanto, a noção de energeia que, como fim imanente, coroava a perfeição da praxis: a própria 127 “Da física aristotélico-escolástica da ‘forma’ e da ‘tendência’ à física galileano-newtoniana da ‘massa inercial’ e da ‘força’, não é só a evolução de um estilo de descrição dos fenômenos a outro que tem lugar. São as linhas de uma visão do ‘mundo’, na qual o homem antigo se movia com segurança e familiaridade, que se desfazem e, no novo espaço que então se abre, o homem moderno sente antes de tudo seu desamparo – como em G. Bruno, o estremecimento e a vertigem heróica ante o infinito da extensão matemática.” VAZ, Escritos de Filosofia VI, p. 111. No capítulo XII (“O fim de um mundo”) de La Sagesse du Monde, Rémi Brague apresenta uma descrição sucinta da nova sensibilidade moderna para a situação humana dentro da nova imagem de mundo oferecida pela cosmografia científica. O aforismo 125 d’A Gaia Ciência expressa à excelência tal sensibilidade na fala do insensato, onde a nova situação – ou a falta de lugar – do homem no mundo aparece associada ao tema conexo da morte de Deus. 128 “Para que a moral pudesse se desligar da cosmonomia e tentar se conceber exclusivamente como ‘autonomia’, era preciso que o cosmos já tivesse perdido sua função constitutiva com relação ao sujeito humano, e que ele não aparecesse mais senão como cenário indiferente onde se desdobra uma atividade humana que lhe é, no fundo, estranha e que não lhe deve nada daquilo que a faz aceder a sua humanidade. Ora, é exatamente o que aconteceu ao conceito de natureza com os Tempos modernos. A idéia de uma imitação moral da natureza tornou-se impossível porque nosso conceito de natureza se modificou. O mundo não pode mais nos ajudar a nos tornarmos humanos.” (BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 247.) A sensibilidade que caracteriza várias das manifestações do movimento ecológico contemporâneo expressa uma inconfundível nostalgia das formas de relação com a natureza perdidas com o advento da modernidade. Sobre o tema das relações transformadas do homem contemporâneo com a natureza, em sua incidência ética, conferir Hans JONAS. Le Principe Responsabilité: une Éthique pour la Civilisation Technologique. Paris: Cerf, 1992, p. 17-30. A proposição de uma “consciência cósmica” por Pierre Hadot, baseada em sua experiência pessoal e apontada na filosofia antiga (mas também em certos momentos da modernidade), inscreve-se nessa mesma linha: “Não se trata aliás somente de uma contemplação puramente estética, que tem sem dúvida um valor capital, mas de um exercício destinado a nos fazer ultrapassar, uma vez mais, nosso ponto de vista parcial e unilateral, para nos fazer ver as coisas e nossa existência pessoal em uma perspectiva cósmica e universal, de nos recolocar assim no acontecimento imenso do universo, mas também, poder-se-ia dizer, no mistério insondável da existência. É isso o que chamo consciência cósmica.” HADOT, La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 158. noção de auto-realização experimenta um deslocamento de sentido com a implantação do regime mental moderno. De fim imanente visado pela atividade prática e coincidente com a “vida feliz” (eudaimonia) ou o “bem viver” (eu zen), ela passa a significar o sucesso conquistado pelo agente no domínio das circunstâncias da vida, coincidindo com a perfeição de uma obra exterior ao próprio agente, índice seguro da assimilação da atividade prática à atividade técnica ou poiética.129 Isto significa nada menos que o esvaziamento da noção de virtude (arete) entendida como perfeição e medida qualitativa da ação humana. A auto-suficiência do indivíduo moderno, já expressa filosoficamente no Cogito cartesiano e definitivamente apresentada na autonomia do sujeito transcendental kantiano, difere profundamente da autarqueia aristotélica, correlativa da praxis virtuosa do phronimos que se reporta à norma imanente de seu agir. Um institui a partir de si mesmo os seus próprios fins; o outro os lê na forma imanente da physis transposta para o registro do ethos para esculpi- los em sua existência concreta como vida virtuosa. Assim, a transposição da praxis para o domínio da poiesis e sua sujeição aos imperativos desta resulta numa redefinição radical da própria noção de praxis, “que passa a ser pensada segundo a categoria básica da igualdade aritmética que reflui sobre os agentes, tornando-os iguais e diferenciados apenas pelo simples número com que são contados na seqüência de uma sucessão numérica.”130 Eis aí a premissa fundamental para o nascimento do homem de massa da sociedade contemporânea, resultado simultaneamente lógico e histórico da transferência do conhecimento normativo da ação para o terreno do saber técnico. Por outro lado, desfeito o seu vínculo à universalidade nomotética objetiva fundamentada na physis, a praxis passa a referir-se tão-somente ao Eu legislador- construtor, que se absolutiza como princípio gerador de valor e torna-se igualmente instância axiológica universal, única capaz de legitimar os valores por ela mesma criados. A conseqüência dessa mudança será o surgimento de um pragmatismo generalizado131, dentro do qual a manutenção da referência à “prudência” (tradução 129 A técnica exercida em uma cultura cuja forma mental é cosmocêntrica restringia-se ao aspecto parcial da comodidade e utilidade; a tecnologia que desponta na forma mental antropocêntrica moderna converte- se em projeto fundamental de humanidade, enunciado na célebre passagem do Discurso do Método como a determinação a “tornarmo-nos mestres e senhores da natureza”. A tecnologia moderna assume assim uma função ética que não lhe cabia no mundo antigo e medieval. É essa mudança de estatuto que permite compreender a absorção da praxis pela poiesis e a redefinição, não exclusivamente marxista, da praxis como transformação técnica da natureza. Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 240-242. 130 VAZ. Escritos de Filosofia II, p. 111. 131 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 147. latina correspondente à phronesis) escamoteará a diferença radical que a separa da sabedoria prática clássica. Na verdade, a prudência moderna perde a dimensão ética que definia a phronesis e assim passa a significar a mera astúcia ou habilidade empírica.132 O triunfo da poiesis e a potência impressionante do novo conhecimento científico dão à humanidade moderna os poderes de um “deus de prótese”, remodelando o mundo objetivo como mundo das formas produzidas pela tecnociência, segundo o critério da utilidade para a satisfação de suas necessidades. No novo mundo, a imagem de homem correspondente traz as marcas do novo fundamento de inteligibilidade. A cosmonomia antiga sancionava o modelo antropológico do microcosmos; a teonomia medieval, suprassumindo-a, definia o ser humano pela relação de criaturalidade segundo a fórmula da imago Dei; a antroponomia moderna exalta o homo faber, cuja expressão emblemática pode ser encontrada na figura literária de Fausto. Genuíno mito da modernidade, o solitário demiurgo de si mesmo deixa para trás Deus e a Natureza para realizar seu projeto final de uma dominação ilimitada, capaz de criar um mundo inteiramente construído por objetos técnicos, no qual ele se enclausura para finalmente não divisar senão os muitos reflexos de si mesmo.133 O confronto com o sujeito kantiano da razão prática pura, tão comum quanto problemático134, é, não obstante, ilustrativo da distância que separa o universo ético do phronimos daquele de seu sucessor moderno. Para determinar a decisão em uma situação concreta, o sujeito moral kantiano despreza solenemente as circunstâncias contingentes e orienta-se exclusivamente pela pureza do imperativo categórico, que lhe indica com clareza a posição do dever, entendido como obediência à universalidade de uma razão que não relativiza sua autonomia absoluta em favor da consideração das condições que enredam os imperativos hipotéticos nas contingências da experiência. Já o phronimos é por excelência o representante da ação enraizada no conhecimento da experiência, e por isso situar-se-ia justamente no plano dos imperativos hipotéticos (configurados como “regras de habilidade” ou “conselhos de prudência”), cuja normatividade na dimensão propriamente moral é recusada por Kant. 132 Sobre o enfraquecimento dos termos “prudência” e “sabedoria” na modernidade, vejam-se os verbetes “Prudência” e “Sabedoria e Temperança” in CANTO-SPERBER, M. Dicionário de Ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003 (assinados respectivamente por Pierre Pellegrin e Jean- Louis Labarrière). 133 Para a correlação entre Fausto e o espírito da modernidade, veja-se BERMAN, M. Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar. A Aventura da Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 37-84. 134 A respeito dos problemas consideráveis nas aproximações Aristóteles-Kant, veja-se CASSIN, “Aristóteles com e contra Kant: sobre a idéia de natureza humana”, in Aristóteles e o Logos, p. 87-127. A incerteza que cerca a deliberação instruída pela sabedoria prática desaparece, em tese, da decisão moral regida pelo dever puramente racional ditado pelo imperativo categórico. Substituída pela austeridade da lei moral kantiana, a virtude perde seu lugar central no novo universo da moral puramente racional sonhada por Descartes e apresentada por Kant, no qual a sabedoria prática, verdadeira artífice da virtude, fica exilada e mesmo rejeitada nas margens subjetivas do conhecimento prático135. A vinculação estrutural da razão prática à experiência em sua pretensão de determinar a vontade é criticada em Kant. A universalidade dos princípios morais não conhece condições nem exceções ditadas pela experiência, e sua validade soberana eleva-se por sobre a contingência das “coisas humanas”. A busca da felicidade, posta como fim último para o agir ético na concepção antiga, vem, na visão kantiana, conspurcar a pureza e a autonomia da vontade. O agente moral kantiano representa a contrapartida prática do cientista-filósofo: este deixa para trás a imagem antiga de um cosmos qualitativamente ordenado, aquele faz ruir os fundamentos da ética grega, enraizada na experiência e constitutivamente eudaimonista.136 A universalidade categórica da razão prática kantiana, sendo no fundo homóloga à da racionalidade-matriz de corte lógico-matemático, é essencialmente ideal e formal: não apela à experiência, não se refere aos desejos humanos, não visa à felicidade (ainda que a mereça), eleva-se por sobre as circunstâncias contingentes sendo rigorosamente incondicional, tem validade absoluta para todos os seres racionais. Ao passo que o phronimos antigo age como um genuíno articulador que visa a melhor conciliação 135 Kant reconhece, é bem verdade, que a “prudência” não é negligenciável, atribuindo-lhe um estatuto “pragmático”, vale dizer, empírico. Contudo, na medida em que recusa a noção de auto-realização segundo uma essência que determina os fins para o homem empírico, Kant recusa também a função própria da sabedoria prática, que assim decai de sua dignidade clássica para a condição reduzida de mero instrumento a serviço da utilidade “pragmática”. Definitivamente, perde-se a eminência moral que caracterizava a phronesis antiga. Por isso, parece-nos equivocada a posição expressa por Pierre Pellegrin, segundo a qual “em certo sentido, toda a ética aristotélica poderia ser anexada por Kant à sua própria moral, com a condição de alojar esta ética na esfera pragmática, no sentido kantiano do termo.” (apud CANTO-SPERBER, M. (org.) Dicionário de Ética e Filosofia Moral, verbete “prudência”). Pellegrin deixa de considerar o fator decisivo para a ética de Aristóteles que é seu enraizamento na metafísica das essências, totalmente alheia à filosofia kantiana, o que parece suficiente para impugnar a possibilidade de anexação de toda a ética aristotélica pelo modelo kantiano. Para o tema da “prudência” em Kant, cf. AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 297-342. 136 “A cosmonomia não se deixa alinhar nem de um lado nem de outro da distinção tornada popular, e emprestada a Kant, entre ‘autonomia’ e ‘heteronomia’. Ela escapa à alternativa assim posta – como aliás a maior parte das morais concretas. É com efeito a inserção no cosmos que permite ao sujeito moral ser autenticamente ele mesmo, ser verdadeiramente um autos. Essa conformidade não consiste portanto em se dobrar a uma lei exterior, outra (heteros). Para o homem antigo e medieval, o kosmos não é justamente uma instância exterior à qual tratar-se-ia de obedecer. Ou ele o é tanto quanto a lei moral kantiana. Para o homem antigo, ‘o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim’ não se distinguem por nada de essencial. Para nós, seres finitos, explica Kant, a lei moral deve aparecer como uma pressão exterior, quer dizer, como dever, porque nós temos um lado ‘patológico’. Do mesmo modo, segundo o homem antigo, a ordem do kosmos nos aparece como algo de exterior, porque nossa situação terrestre não nos permite um ponto de vista favorável. É apenas a inserção no kosmos lá onde ele é mais plenamente ele mesmo – como, em estilo kantiano, a obediência à lei moral – que nos confere uma autêntica liberdade.” BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 178. possível entre os vários e heterogêneos ingredientes que determinam a situação prática, o sujeito moral kantiano comporta-se despoticamente ao desprezar o teor da situação e de seus ingredientes para determinar sua ação exclusivamente segundo os princípios universais e imutáveis da razão pura. O phronimos está imerso no mundo e no tempo; o sujeito moral kantiano, em última análise, já acedeu à atemporalidade própria do imperativo categórico137. Incidentalmente, o confronto com o modelo moral kantiano nos introduz em um outro tema capital para a compreensão da mentalidade moderna: o da relação do homem com o tempo, a qual é igualmente afetada pela “virada antropocêntrica” que abre a modernidade. Na verdade, a nova representação moderna de tempo tem uma premissa decisiva na substituição da concepção antiga do tempo cíclico da repetição pela concepção bíblico-cristã de um tempo finito e histórico de estrutura linear e evolutiva.138 Contudo, a estrutura teleológica teonomicamente orientada da visão de mundo cristã-medieval preservava essencialmente as valências qualitativas do tempo que definiam o kairos e sua captação na experiência, apenas dotando-o de novos referenciais de interpretação. Com a supressão daquela estrutura teleológica, a premissa dava um inesperado fruto na forma da representação de um tempo histórico de estrutura linear139, aberto à ação construtora humana mas desprovido de um fundamento transcendente que lhe fornecesse as coordenadas para seu encaminhamento. Mais uma vez, o Eu construtor chama a si a função de definidor do sentido da história, e acalenta a idéia de um progresso regido pela razão esclarecida em sua maturidade, idéia que viria desabar na época contemporânea diante do desmentido brutal da barbárie crescente que revelou a sombra catastrófica e inextirpável do projeto iluminista.140 137 Um cotejo com o modelo ético empirista também revelaria o fosso escavado entre o universo espiritual moderno e o clássico no tocante à concepção do agir moral. Basta suprimir a referência ao eidos e à energeia para tornar incomensuráveis a ação do phronimos e a do indivíduo moderno na concepção empirista, em seus prolongamentos utilitaristas e emotivistas. Cf. a esse respeito MACINTYRE, Depois da Virtude, p. 115-140. 138 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 139. 139 Ver “Cristianismo e Consciência Histórica”, in VAZ, Escritos de Filosofia VI, p. 165-217. O otimismo da correspondência entre consciência histórica cristã e consciência histórica moderna, estabelecida naquele texto de 1960, vai ser depois reavaliado como “unilateral” por Henrique Vaz. Cf. Escritos de Filosofia I, p. 67, nota 82, e Escritos de Filosofia VII, p. 139-145. A inversão levada a cabo pelo processo de imanentização do teológico no histórico, que investe o Eu construtor com as prerrogativas do Deus Criador, aparecerá então em toda a sua significação, dando o sentido à pergunta que motiva a reflexão vaziana: “pode o estudioso que se professa cristão permanecer dentro desse universo da tradição filosófica ou deve, por honestidade intelectual, emigrar para o campo do fideísmo dogmático, de uma praxeologia voluntarista, da evasão mística ou, simplesmente do sentimento religioso puramente subjetivo?” Escritos de Filosofia VII, p. 7. 140 Para uma crítica das pretensões triunfalistas da razão iluminista, veja-se ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. Sobre a noção de Por outro lado, essa nova modalidade de experiência do tempo é correlativa ao processo de absorção da praxis pela esfera da poiesis e ao conseqüente desaparecimento da noção de energeia. Isso significa que toda ação humana passa a ser definida em termos de movimento (kinesis), tendo o seu fim posto fora de si mesma e projetado no tempo futuro em que a obra se consuma. A perfeição da energeia, que coincidia com a própria ação virtuosa no momento mesmo de sua execução, por ter seu fim próprio imanente, fica suprimida e é substituída pela estrutura própria da poiesis, que implica o encadeamento de movimentos parciais e fragmentários ao longo de um período de tempo indeterminado, só cobrando seu sentido ao termo da cadeia total de movimentos. Se o desejo humano é eminentemente temporal, a nova situação de experiência do tempo vem transpor a sua realização para um momento incerto localizado no futuro, além de eliminar a normatividade axiológica do passado.141 Perde-se com isso a possibilidade de fruir no presente a eudaimonia que coroava a eupraxia.142 A condição moderna implica, portanto, uma insatisfação e uma inquietação que não encontram resposta no tempo presente,143 estando aí a origem e o sentido da atração exercida pelas várias utopias modernas sobre a nova consciência. Também no âmbito da representação do tempo físico manifestar-se-á a influência da mesma linha de força que conduz à valorização da idéia de progresso, sob a forma da tradução da “natureza” em termos de “história”, e do “tempo” em termos de “evolução”144.O idealismo alemão tentará, especialmente com a majestosa construção do Sistema hegeliano, recuperar o sentido do próprio tempo físico, subordinando-o à dialética da manifestação do Espírito. O materialismo posterior, notadamente com o evolucionismo darwiniano, recusará a solução hegeliana e definirá a evolução no tempo em termos puramente mecânicos, atribuindo-a às forças de seleção e adaptação. E, por fim, o triunfo da tecnociência como forma modeladora do universo social assinalará a “progresso” em sentido antigo e moderno, vejam-se DODDS, E.R. The Ancient Concept of Progress and Other Essays on Greek Literature and Belief. Oxford: Clarendon Press, 1973, e ROSSI, P. Naufrágios sem Espectador. A Idéia de Progresso. São Paulo: Editora UNESP, 2000. 141 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 16-21. 142 “O movimento é em si mesmo sempre incompleto (ateles), só podendo ser dito completo de modo parcial e não absoluto, pois ele só o será em vista de um limite (peras) que lhe é fixado externamente.” Já “a natureza de uma atividade [energeia] é ser completa a cada instante. Nela não pode ocorrer um movimento, pois este pressupõe grandeza e tempo (...) Sendo assim, é preciso que as atividades ocorram instantaneamente como um todo. Elas não possuem uma estrutura extensa e diacrônica na qual início e fim são necessariamente diversos entre si, como no caso dos movimentos, mas inextensa e sincrônica, ou seja, uma estrutura na qual início e fim coincidem sem, contudo, contradizer-se.” PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 317-318. 143 Mais uma vez, a personagem de Fausto expressa à perfeição a natureza do anseio moderno. Ver as reflexões de Pierre Hadot em La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 254-261. 144 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VI, p. 175. perda de referência visível de uma concepção qualitativa do tempo. O ocaso das grandes utopias modernas anuncia então o fim da história. 4. Conseqüências Se a sabedoria prática que caracteriza o phronimos corresponde a uma compreensão antropocêntrica do mundo, mais antiga e mais profunda que a ciência, como assinalou Éric Weil145, deve-se todavia observar que esse antropocentrismo difere radicalmente daquele que se verifica na “virada antropocêntrica” moderna, na medida em que a compreensão do mesmo centro e de tudo que se organiza a partir dele é profundamente diversa nos dois casos. No primeiro, a relação originária do homem ao mundo se faz segundo as categorias da pertença e do enraizamento, e assim a condução dos assuntos humanos busca sempre uma conciliação com a totalidade que a razão interpreta e na qual ela se inclui. No segundo caso, a relação do homem ao mundo se faz segundo as categorias do estranhamento e da dominação, e é somente o arbítrio da vontade livre que define os rumos da ação humana na modelação do mundo. A sabedoria prática no primeiro caso é a laboriosa operária da sempre incerta e precária auto-realização humana. A prudência no segundo é a conselheira de um Eu soberano enredado no projeto de extensão ilimitada de seu próprio poder. Sua distinção, segundo uma perspectiva clássica, corresponderia à oposição que separa o metron da hybris. A efetivação concreta do projeto moderno de dominação da natureza atinge o momento decisivo com a revolução industrial, responsável pela transformação revolucionária das condições de vida do mundo moderno, que ingressa a partir de então na forma capitalista de organização social. Urbanização em escala jamais vista, aumento explosivo da densidade demográfica, das forças de produção, do volume de transações comerciais, dos meios de comunicação e transporte, reconfiguração das relações de trabalho, surgimento da sociedade de massas com todos os seus problemas, artificialização crescente da vida: eis os aspectos visíveis da mudança radical que afeta a face do mundo, num processo que se inicia na segunda metade do século XVIII, se estende pelo século XIX, e atinge a sua consumação em nossa época. A racionalidade matriz da modernidade mostra a que veio e exibe os frutos de sua potência espantosa. 145 Éric Weil, citado em PERINE, “Phrónesis: um conceito inoportuno?”, art. cit., p. 52. No novo mundo por ela conformado, a tradição é atropelada pelo ímpeto irresistível das novas forças históricas146, a função de doação de sentido exercida pela religião é posta em xeque, a ciência se adianta como saber paradigmático que atrai para si a crença anteriormente depositada em outros endereços. Privado das suas raízes tradicionais, ao indivíduo não resta outra alternativa a não ser envolver-se e viver sob as novas condições. O antropocentrismo moderno, que guarda em si a chave de decifração de toda essa revolução, promove uma cisão fatal entre o Eu transcendental, subjetividade universal que constitui o verdadeiro centro do sistema de razões, e o indivíduo empírico, que se vê capturado pela rede dos grandes sistemas do saber, da praxis e da técnica construídos a partir daquele centro impessoal. Da perspectiva do eu empírico, a cisão se traduz num dramático dilema: ou sacrificar sua pessoalidade para adequar-se àqueles sistemas que configuram seu mundo147, ou preservar sua identidade pessoal sob a condição de criar um espaço para realizá-la – mas é então que sente todo o doloroso desamparo que lhe cabe como herança e desafio por ter nascido neste mundo, e nesta época. Nenhum dos sistemas objetivos próprios da subjetividade universal pode auxiliá-lo na tentativa de recuperar o espaço da auto-realização, e a cisão se manifesta como inadequação entre o sujeito empírico e o mundo objetivamente constituído pelas racionalidades predominantes. Assim, é tal cisão entre o Eu transcendental e o Eu empírico, agravada pela marcha inexorável da modernidade, e a despeito do esforço especulativo hegeliano, que vai dar origem àquele mal-estar referido na abertura deste capítulo. Como assinala Gilbert Durand, o dilaceramento da consciência moderna resulta do divórcio entre uma objetividade desumanizante e uma consciência desesperada entregue à derrelição, sofrendo a aniqüilação das esperanças subjetivas, tanto individuais como coletivas.148 Incapaz de compreender-se a si mesmo, frustrado em sua aspiração fundamental – a ser verdade, como quer a ética antiga, que a “auto-realização segundo a sua essência” corresponde a um impulso natural consubstancial à humanidade -, o indivíduo vê-se 146 Novamente, Goethe expressa esse conflito no destino trágico de Gretchen e na chacina de Filemon e Báucis: o ímpeto insaciável que move Fausto destrói a tradição social, moral e religiosa à qual ele não mais pertence. 147 “Na verdade, nunca como no espaço da modernidade o ser humano é permanentemente intimado a tornar-se outro a partir de sua própria identidade penosamente conquistada, a arrancar-se de si mesmo, a alienar-se, em suma, a tornar-se social.” VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 15-16. 148Cf. DURAND, G. L’Âme Tigrée. Paris: Denöel, 1980, p. 13-14. entregue a um sofrimento que jorra de uma cisão que ele igualmente não consegue compreender, tornando-se um enigma para si mesmo. Aqui, em definitivo, situa-se a função intransferível da filosofia: é a mirada filosófica que permite articular teoricamente a compreensão em profundidade da situação espiritual decorrente do regime mental moderno. Por outro lado, no entanto, a própria atmosfera intelectual da modernidade faz com que seja perdida gradualmente a concepção antiga de filosofia como modo de vida, como terapêutica, bem como seus aspectos pessoais e comunitários,149 concepção que se expressava em formas literárias filosóficas como a consolação, o diálogo e a correspondência (epístola), que atravessaram a Idade Média e atingiram a Renascença e mesmo a modernidade nascente, para então serem descartadas em face do privilégio crescente dos tratados sistemáticos. Esse movimento é correlativo à progressiva formalização e institucionalização da filosofia, resultando simultaneamente na perda de contato com o mundo da vida e na sua paradoxal transformação em um ofício altamente especializado encerrado nos muros acadêmicos, em que a construção ou a análise de edifícios conceituais se tornam fins em si mesmos. A relação dialógica, pessoal e comunitária, essencial à concepção de filosofia como modo de vida, cede o lugar a um ensino que, como acentua Pierre Hadot, ao se dirigir a todos não se dirige a ninguém.150 Essa transformação da filosofia, em sua absorção pelo espírito universitário adequado a uma sociedade industrial de massas, reflete-se no abandono pela reflexão ética da questão prática fundamental: “Como devo viver?”151, considerando-se a 149 Esta é a posição defendida por Pierre Hadot. Cf., por exemplo, La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 98-100. Poderíamos assinalar a importante exceção representada pelo desenvolvimento, após a consumação do empreendimento hegeliano, da corrente existencialista que, de Kierkegaard a Heidegger, tenta recuperar no plano propriamente filosófico a dimensão da filosofia como modo de vida. Igualmente notável nesse sentido é o pensamento ímpar de Nietzsche que, significativamente, proclamava-se um “psicólogo do futuro”. Também o romantismo alemão poderia ser arrolado como integrante desse movimento, e a psicoterapia que nasce a partir do século XIX compartilha de muitas das aspirações espirituais e intuições presentes nesse mesmo movimento, as quais reagem às carências produzidas pela mentalidade formadora do mundo moderno. 150 Cf. La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 99. Também Henrique Vaz assinala essa metamorfose da filosofia: “Platão propõe um paradigma da vida filosófica que permaneceu elevado por longos séculos sobre toda a tradição intelectual do Ocidente. No limiar da modernidade, nós o vemos ainda inspirar um Descartes, um Spinoza, um Leibniz. Ele começa a desvanecer-se apenas quando a filosofia deixa de ser vocação para tornar-se profissão e é obrigada a integrar-se nos enormes mecanismos burocráticos da sociedade da produção e do consumo, dentro dos quais somos hoje forçados a praticá-la.” Escritos de Filosofia III, p. 26. 151 É o que Julia Annas reconhece quando diz: “como a filosofia pode ajudar aqui? Se a questão surge de tipos de pensar cotidianos sobre a própria vida e da insatisfação com a mesma, como poderemos ser favorecidos encontrando a resposta pelos tipos muito abstratos de reflexão que a filosofia nos oferece? E assim nós nos afastamos da expectativa de que a filosofia responda à questão, ‘Como deveria ser minha vida?’ Uma grande parte da literatura moderna e da psicologia origina-se e gira em torno ao modo como totalidade da existência humana ou a “vida completa”, questão que traduz o cerne de todo o problema da auto-realização. Ora, é precisamente para responder a essa questão e a esse problema que a sabedoria prática antiga se empenhava. Assim, não é de causar surpresa o fato de, entre as tentativas de dar alívio ao sofrimento humano gerado pela cisão entre subjetividade transcendental e subjetividade empírica, ressurgir, mesmo que de forma camuflada, confusa e fragmentária, a figura desterrada da antiga phronesis. O “recalcado da modernidade”, retornando para fazer-se ouvir sob a forma de sofrimento, solicita novamente o socorro da sabedoria prática. Decisiva para os rumos desse processo histórico é a crítica de Schelling ao Eu transcendental de Fichte, e a ênfase sobre o inconsciente como fundamento básico da existência do mundo e da consciência. A Naturphilosophie de Schelling, estabelecendo a identidade absoluta do Espírito em nós e da Natureza fora de nós, promove simultaneamente uma historicização da natureza e uma naturalização da história, o que tem por conseqüência a restituição da significação filosófica da medicina e da atitude terapêutica. Se as dificuldades da história apresentam-se como dificuldades da natureza, então elas podem ser tratadas como doenças, e é isso o que será proposto pela medicina influenciada pelo pensamento de Schelling, em suas intercessões com o Romantismo alemão.152 O conceito romântico de natureza, diferentemente do conceito científico e positivista, presta-se a um uso ético-político em que ecoam alguns harmônicos longínquos da visão de mundo em que se enraizava a sabedoria prática antiga, as pessoas refletem sobre suas vidas e sobre se elas são como deveriam ser, mas o pensamento sobre a própria vida não mais é visto como central à filosofia ética, pelo menos à teoria ética.” The Morality of Happiness, p. 27. Posição que concorda notavelmente com a seguinte observação de C.G.Jung: “Também existem clientes – e não são poucos – que, embora não sofram de uma neurose formulada clinicamente, vão procurar o médico, devido a um conflito psíquico ou qualquer situação de vida difícil, e lhe falam de problemas cuja resposta está diretamente ligada à discussão de questões de princípio. Tais pessoas, muitas vezes, sabem perfeitamente bem – e isso o neurótico raramente ou nunca sabe – que os seus conflitos são provenientes do problema fundamental da atitude perante a vida, e que esta depende de certos princípios ou idéias gerais, ou seja, de certas convicções religiosas, éticas ou filosóficas. Esses casos levam a psicoterapia muito além do quadro da medicina somática ou da psiquiatria e a fazem penetrar em campos que, no passado, eram reservados aos sacerdotes e aos filósofos. Hoje em dia, na medida em que estes já não cumprem com o seu papel, ou o público não mais confia em sua capacidade, as lacunas que o psicoterapeuta eventualmente tem que preencher vão se tornando visíveis. Em outras palavras, vai ficando cada vez mais claro o quanto a cura da alma [pelos sacerdotes], por um lado, e a filosofia, do outro, se distanciaram da realidade da vida. A crítica que se faz ao sacerdote é que já se sabe de antemão o que ele vai dizer, e ao filósofo, que o que diz não tem utilidade prática alguma. Por estranho que pareça, ambos – salvo raríssimas exceções – têm uma solene antipatia pela psicologia de que estamos falando aqui.” OC XVI, § 250. 152 Esta é a tese de Odo Marquard, exposta em Transzendentaler Idealismus, Romantische Naturphilosophie, Psychoanalyse (Cologne: Verlag für Philosophie Jürgen Dinter, 1987), referida em SHAMDASANI, S. Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science. Cambridge: C.U.P., 2003, p. 171-174. modulados segundo a sensibilidade histórica moderna.153 A Naturphilosophie romântica retoma, mesmo quando sob a polarização “titânica” do espírito moderno, a intenção originária que fez nascer a metafísica e à qual se referia, de vários modos, a sabedoria prática: propor uma “inteligibilidade de conjunto que assegure a inserção harmoniosa do homem no universo.”154 Por isso, não é casual o fato de nos círculos de influência da Naturphilosophie romântica encontrarmos antecipações de vários temas e conceitos que ressurgirão na Tiefenpsychologie do século XX, pois em ambos os casos encontramos tentativas de responder e superar um mesmo problema: as cisões e dilaceramentos próprios da mentalidade moderna e do mal-estar na cultura que ela engendra.155 Mesmo quando a influência romântica manifesta sobre a medicina desaparecer, cedendo o lugar à ascendência do espírito positivista e à crença cientificista nas promessas de progresso pressentidas no potencial da ciência, a demanda por alívio dos sofrimentos concretos dos indivíduos continuará endereçada aos médicos, já que este 153 Comenta Shamdasani: “Assim, não é acidental o fato de que muitos dos filósofos da natureza eram médicos ou tinham relações explícitas com a medicina, nem que fisiologistas como Karl Friedrich Burdach e Johannes Müller se engajavam com a filosofia da natureza. O desencantamento do conceito de natureza da filosofia transcendental conferiu valor filosófico à atitude terapêutica, um desenvolvimento que culminou na concepção de Friedrich Nietzsche do filósofo como um médico da cultura.” Jung and the Making of Modern Psychology, p. 174. 154 GUSDORF, G. “Apologie pour la Naturphilosophie”, in Les Sciences Humaines et la Pensée Occidentale, vol. 12: Le Savoir Romantique de La Nature. Paris: Payot, 1985, p. 330. Gusdorf defende o projeto fundamental da Naturphilosophie contra sua desqualificação positivista e cientificista no século XIX: “A questão não é somente a de saber se essa visão de mundo é contraditada por tal fato, tal experiência sobre tal ponto particular. Antes, seria preciso se interrogar sobre a questão de saber se a simples acumulação de verdades científicas devidamente controladas assegura ao ser humano uma base suficiente no seio do universo.” (ibid.) Lembrando que a ciência “não nos ensina grande coisa sobre nossas opções primeiras e últimas, nossas razões de ser e de sentir”, já que “a maior parte da existência escapa às luzes do entendimento racional” por “obedecer a influências não justificáveis, a pulsões pessoais ou sociais, a preconceitos sem fundamento”, Gusdorf declara: “Se a verdade científica não é compatível com a existência dos homens, o único recurso é pôr-se em busca de uma verdade humana, estranha às requisições de um saber inumano.” (ibid., p. 331) Tal recurso conduz em linha direta à sabedoria prática, e é esta exigência que, no fundo, faz nascer a psicoterapia contemporânea. 155 “O caráter sintomal dos aspectos constitutivos da visão romântica recobre o largo espectro dos fenômenos que indicam a mudança das estruturas da sociedade pré-industrial: a separação da arte quer do artesanato quer do modo de produção industrial que se iniciava, o começo da dependência dos produtos literários e artísticos às leis concorrenciais do mercado, a justificativa ideológica da religião como instrumento legitimador do poder e da ordem – que denuncia o arrefecimento do sagrado -, o nivelamento dos valores morais à regra benthamiana do maior interesse e da melhor utilidade, a marginalização social de toda atividade improdutiva, o princípio fiduciário da moralidade burguesa, as relações possessivas da moral doméstica e do casamento, a separação entre as esferas sexual e sentimental do amor, o filisteísmo como atitude da maioria dominante em relação às letras e às artes – desde então confinadas ao plano da neutralizante respeitabilidade que constitui a cultura estética – e, por fim, a mecanização e a racionalização da vida, posteriormente as relações comunitárias dentro de uma civilização cada vez menos rural e cada vez mais urbana. A estrutura social emergente dessas mudanças não oferecerá ao processo de individualização condutos abertos para a vida coletiva. Tornada menos móvel e mais estranha, como um mecanismo alheio à consciência, atrofiando a individualização à falta de reajustamentos internos, a vida coletiva contribuirá para ‘a alienação, a introjeção, a subjetividade e a introversão das energias sublimadoras’ (K. Manheim).” NUNES, B. “A Visão Romântica”, in GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 19852, p. 55. sempre foi o compromisso básico da medicina, desde a Antigüidade. Por tal motivo, também não é de se estranhar que parcela significativa desse “mal-estar da cultura”, privado de resposta adequada no domínio da filosofia e da medicina institucionalizadas, e reforçado pela defasagem e insuficiências da resposta religiosa em uma sociedade pós- tradicional laicizada, vá insistir em bater às portas dos consultórios médicos na segunda metade do século XIX, desconcertando o saber oficial de uma medicina já então plenamente conformada segundo os cânones metodológicos e epistemológicos das ciências naturais. Do descompasso entre o compromisso de uma vocação, atenta às necessidades de uma situação concreta, e os limites de um saber científico nascerá a psicoterapia contemporânea, obrigada a forjar um discurso novo que traduza as experiências de uma situação clínica peculiar, à qual não se aplicam as exigências do método experimental nem os critérios de inteligibilidade da razão instrumental.156 Esse discurso – a Psicologia – padecerá assim, desde o início, da suspeita de ilegitimidade epistemológica, que acirra a desconfortável dificuldade de definir a sua identidade própria. Se pusermos entre parênteses as retomadas exclusivamente teóricas no campo da filosofia acadêmica, o destino concreto da phronesis, em meio à derrelição de um mundo sem physis, sem Deus, organizado segundo uma racionalidade estritamente operacional, será o de exilar-se junto a saberes não mais reconhecidos, por terem sua legitimação racional indeferida segundo o critério da racionalidade-matriz. A sabedoria prática deverá ser procurada, portanto, também ali para onde o anátema do “não- científico” ou do “irracional” fizer confluir tudo o que não se adéqüe às regras do Método. É nessa região obscura que plantará algumas de suas raízes mais fortes a psicoterapia nascente. É dela também que extrairá sua seiva vital a psicologia analítica de Carl Gustav Jung. 156 A obra clássica de Henri Ellenberger (The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic Psychiatry. Nova York: Basic Books, 1970) apresenta uma excelente reconstituição e contextualização ampla das origens da psicoterapia contemporânea. Comentando sobre a forma de organização peculiar da “psiquiatria dinâmica moderna”, que destoa da organização própria das ciências naturais (enquanto corpo de conhecimentos relativamente unificado quanto ao objeto e ao método) e se assemelha à forma própria das correntes filosóficas da Antigüidade, com sua divisão “em uma variedade de ‘escolas’, cada uma com sua própria doutrina, seu próprio ensinamento, seu próprio treinamento”, Ellenberger pergunta: “Tudo isso significa que a psicoterapia dinâmica é uma regressão na direção do passado, ou, antes, que a abordagem científica se mostrou insuficiente para cobrir a inteira personalidade do homem e deve ser suplementada por outras abordagens?” (op. cit., p. 48) Ao termo de seu livro ele sugere mais uma vez a analogia da psicoterapia com a filosofia (cf. op. cit., p. 895-897) e vislumbra uma cooperação entre psicólogos e filósofos que permitiria “alcançar uma síntese superior e planejar um enquadramento conceptual que faria justiça às rigorosas exigências da psicologia experimental e às realidades psíquicas experimentadas pelos exploradores do inconsciente.” (op. cit., p. 897.) CAPÍTULO SEGUNDO EM BUSCA DO SENTIDO: O RESGATE DO SÍMBOLO 1. O problema: niilismo, sentido e símbolo Uma das figuras mais originais produzida pela civilização moderna, e que ao mesmo tempo estampa o paradoxo radical da modernidade, é o fenômeno do niilismo, que se difunde insidiosamente por todas as esferas da cultura, participando dessa atmosfera inconfundível para a qual foi cunhada a expressão “pós-modernidade”. Fenômeno essencialmente destrutivo, segundo a perspectiva que se adote, o niilismo afeta radicalmente a situação humana no mundo, minando as possibilidades de se afirmar um sentido para a vida. O triunfo do absurdo, gerador da “consciência cínica”, representa o mais temível desafio posto à definição da própria humanidade na cultura contemporânea. Diante da arrasadora vaga do niilismo, a pergunta crucial que se coloca para o homem do século XXI refere-se às razões de viver, vale dizer, ao sentido possível, se não da vida, pelo menos para a vida. Tomado em sua acepção existencial, o termo “sentido” indica um conteúdo significado, exprimindo “a inteligibilidade do objeto de acordo com o vetor teleológico no qual ele se situará na compreensão e na linguagem do sujeito”. Nesta acepção, o sentido não se limita ao campo neutro da acepção lógico-linguística, que “cinge-se à estrutura semântica da linguagem na sua qualidade de lugar das significações e, por conseguinte, de lugar da elaboração do sentido”, mas a ultrapassa “para penetrar no terreno da existência do sujeito, essencialmente orientada para os fins que ele se propõe ou para os quais é naturalmente movido.”157 Portanto, a possibilidade de um sentido, na acepção existencial, supõe a realidade do conteúdo significado no interior da relação com um sujeito que a intenciona a partir de suas necessidades existenciais. É a interrogação acerca do sentido que anima a reflexão filosófica em suas origens gregas, tendo como objeto o ser, como conteúdo significado pela linguagem, sob a forma do cosmos, do ser humano, da vida, do divino. A orientação no mundo, a partir da analogia metafórica com a orientação ou direção no espaço, articulando-se com 157 VAZ, H.C.L. Escritos de Filosofia III, p. 154. a busca da vida melhor e, conseqüentemente, com a temática da arete e da eudaimonia, converte-se na razão de ser da metafísica grega. Com a experiência socrática, a pergunta pelo ser revela-se explicitamente pergunta pelo sentido,158 integrando o momento teórico ao momento prático da vida filosófica. Sob o ângulo gnosiológico, o problema do sentido em sua acepção existencial apresenta-se como o problema da representação do ser na inteligência, que desponta no movimento da sofística e recebe da tradição platônico-aristotélica as formulações que prevalecerão no período antigo e medieval. Sob o ângulo ético, ele desemboca no problema da dialética do mensurante e do mensurado, que já opunha Platão a Protágoras, e que, a partir da refutação platônico-aristotélica do relativismo sofístico, impor-se-á como um denominador comum no itinerário da ontologia clássica. A transformação nominalista das coordenadas do universo mental do homem ocidental, anunciando a passagem dos tempos medievais para os tempos modernos, incide diretamente sobre os termos em que se formulava o problema do sentido, impondo ao mesmo um novo sistema de referências intelectuais.159 A subordinação da representação subjetiva (entendida como o sinal formal que mediatiza a relação de identidade intencional do ato cognoscitivo com o objeto extramental) ao ser (entendido como face objetiva do objeto conhecido) é então invertida, e a representação (agora entendida como norma ou medida da cognoscibilidade do objeto) passa a assumir o centro do universo mental, triunfando sobre o ser. De Duns Escoto, com o primado do esse objectivum (ou ser representado), a Descartes, com a centralidade fundacional do Cogito, pode ser traçada a linha de evolução que conduz à modernidade e que redefine os termos do problema do sentido.160 Na dimensão ética, a primazia da representação sobre o ser, transformando o modo como o homem pensa e interpreta a realidade, termina por fazer do sujeito a origem exclusiva dos princípios axiológicos segundo os quais ele determina normas, valores e fins, para atender às suas necessidades naturais ou artificiais. O espectro de Protágoras reaparece encarnado na direção matricial da modernidade. Finalmente, 158 Cf. Escritos de Filosofia III , p. 155. 159 Cf. Escritos de Filosofia III, p. 156. 160 Henrique Vaz sustenta que essa linha de evolução atravessa a filosofia moderna até atingir G. Frege e Edmund Husserl, alcançando “finalmente um estatuto quase canônico no pensamento contemporâneo.” (Cf. Escritos de Filosofia III, p. 161.) Subentende-se aqui a referência à “reviravolta linguística”, que parece ditar as condições de legitimidade para o exercício da razão filosófica na contemporaneidade. desqualificado o ser como raiz objetiva para a determinação da ação humana virtuosa, resta à ética moderna a aposta de encontrar na imanência do sujeito seu novo fundamento. O destino de tal aposta estampa-se na crise do sentido que acompanha a irrupção do niilismo moderno.161 Henrique Vaz, reconhecendo a face humana da produção do sentido existencial na liberdade, não hesita contudo em atribuir o niilismo contemporâneo, com suas manifestações mais explícitas na experiência da morte e da violência, à lógica moderna da liberdade antropocêntrica: “Mas a liberdade pode tornar-se, igualmente, o lugar da gênese do não-sentido quando o movimento dialético que se estabelece entre ela e a razão inverte a direção do seu movimento, e este passa a desenrolar-se totalmente na imanência do sujeito. Então, a razão contemplativa do ser é substituída pela razão fabricadora do aparecer. Eis aí o que está em jogo na virada antropocêntrica da cultura moderna. Nela, o modelo poiético se vê dotado de função normativa não apenas para o conhecimento da natureza mas também para o exercício da liberdade. Então o homem experimenta, de fato, uma contradição vivida entre seu ser finito e situado e a pretensão ontológica, de alcance infinito, de ser o criador absoluto do sentido. Essa contradição está instalada no cerne do projeto da civilização moderna, e é ela que determina o seu destino. Esse destino se torna hoje visível no projeto de uma civilização que dispõe de todos os instrumentos e recursos materiais para assegurar a sua sobrevivência e seu progresso tecnológico, mas assiste inquieta a uma crise profunda do seu universo simbólico e das suas próprias 161 Observada a partir da perspectiva platônico-aristotélica, a edificação da razão moderna tendo como horizonte último o mundo dos fenômenos corresponde necessariamente ao abandono do sentido, que tem o ser por referência, pelo não- sentido, que tem por referência última a aparência – ou seus homólogos modernos: a representação e o fenômeno. A ruptura do vínculo com o ser tem como conseqüência lógica, nessa perspectiva, o niilismo, que etimologicamente associa-se à imagem “de um fio que se rompe, de um ser cujos vínculos se desfazem e que, por isso, se acha ou livre ou à deriva”. (CANTO-SPERBER, Dicionário de Ética e Filosofia Moral, verbete “niilismo”, assinado por Bertrand Saint-Sernin) Para um aprofundamento da noção de niilismo, consultamos a seguinte bibliografia: SOUCHE-DAGUES, D. Nihilismes. Paris: PUF, 1996; VOLPI, F. O Niilismo. São Paulo: Loyola, 1999; OTTONELLO, P.P. Struttura e Forme del Nichilismo Europeo. I- Saggi Introduttivi. Roma: Japadre Editore, 1987; POSSENTI, V. Il Nichilismo Teoretico e la “Morte della Metafisica”. Roma: Armando Editore, 1995; MOLINARO, A. (Org.) Interpretazione del Nichilismo. Roma: Herder/Università Lateranense, 1986; D’AGOSTINI, F. Lógica do Niilismo. Dialética, Diferença, Recursividade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002; PERINE, M. “Niilismo ético e filosofia”, in Id. (org.) Diálogos com a Cultura Contemporânea. Homenagem ao Padre Henrique C. de Lima Vaz, SJ. São Paulo: Loyola, 2003; PERINE, M. “Violência e niilismo. O segredo e a tarefa da filosofia”, in Kriterion, vol. XLIII, n. 106, p. 108-126, jul/dez 2002; BANNOUR,W. “Le Nihilisme”, in JACOB, A. (org.) Encyclopèdie Philosophique Universelle. Tome I: L’Univers Philosophique. Paris: PUF, 2000, p. 207-213; DESCHAMPS, J. “Nihilisme”, in AURROUX, S. (org.) Encyclopèdie Philosophique Universelle. Tome II: Les Notions Philosophiques. Paris: PUF, 2002, p. 1748-1750. razões de ser. (...) O espetáculo que nos oferece a modernidade ao mesmo tempo triunfante e em profunda crise, se a considerarmos desde o ponto de vista desse dever ético fundamental que é, para o homem, a instauração do sentido na sua vida – o dever de realizar a verdade da sua existência -, é o desencadear-se aparentemente incontrolável do não-sentido da violência e da morte: violência brutal das armas e dos meios de destruição de massa, violência sutil da propaganda e da manipulação da informação, violência cega do terrorismo, violência silenciosa e universal da injustiça nas relações políticas, sociais e econômicas entre indivíduos, grupos e nações: e ao termo desses e de outros caminhos da violência, o esgar insensato da ‘morte moderna’. ” 162 E, conseqüentemente, Henrique Vaz também aponta para a condição fundamental posta para a superação dessa crise civilizacional: “Muitas saídas são apontadas e algumas efetivamente tentadas para a crise da modernidade. É permitido, porém, pensar que nela permaneceremos ou dela não sairemos enquanto não se universalizar a experiência da inanidade do não-sentido do humanismo antropocêntrico. Somente essa experiência poderá dirigir as energias espirituais da civilização para o reencontro da fonte transcendente do sentido ou para descobrir uma nova estrutura da experiência do Transcendente que se torne princípio inspirador de uma realização mais autenticamente humana dos grandes ideais da modernidade.”163 Eis a senha que nos remete ao objeto de nossa análise: a psyches therapeia de Carl Jung. No centro das preocupações de Jung encontra-se justamente o problema do sentido. Na verdade, é permitido afirmar que todo o seu pensamento organiza-se em torno desse centro. Tal afirmação encontra referendo autorizado em Aniela Jaffé, discípula, colaboradora e secretária de Jung, que em seu livro Der Mythus vom Sinn sustenta que a busca de sentido foi o principal empenho do psicólogo suiço – daí sua tese de que o mito de Jung e, por extensão, da psicologia analítica, foi o mito do sentido.164 162 Escritos de Filosofia III, p. 172-174. 163 Escritos de Filosofia III, p. 174-175. 164 Cf. JAFFÉ, A. O Mito do Significado. São Paulo: Cultrix, 1989. Também James Hillman, ex-diretor de estudos do Instituto C.G.Jung de Zurique e fundador da corrente pós-junguiana da Psicologia Arquetípica, confirma a preeminência da questão do sentido no pensamento de Jung – questão, aliás, de que Hillman se desinteressa. Cf. HILLMAN, J. On Paranoia. Dallas: Spring Publications, 1988, p.33; cf. também HILLMAN, J. Entre Vistas. São Paulo: Summus Editorial, 1989, p.66-67. Muito cedo Jung deu-se conta de que o sofrimento psíquico de boa parte de seus clientes não poderia ser classificado segundo as categorias nosológicas próprias da psicopatologia psiquiátrica: “Aproximadamente um terço dos meus clientes nem chega a sofrer de neuroses clinicamente definidas. Estão doentes devido à falta de sentido e conteúdo de suas vidas. Não me oponho a que se chame essa doença de neurose contemporânea generalizada.” “Não podemos esquecer que não se trata de pessoas que ainda não tiveram oportunidade de provar sua utilidade social, e sim, de pessoas que já não conseguem encontrar sua razão de ser na utilidade social, e que se defrontam com a questão mais profunda e mais perigosa do sentido da sua vida individual.” 165 Reconhecendo que os conflitos dessas pessoas são “provenientes do problema fundamental da atitude perante a vida”, implicando “convicções religiosas, éticas ou filosóficas”, Jung percebe que “esses casos levam a psicoterapia muito além do quadro da medicina somática ou da psiquiatria e a fazem penetrar em campos que, no passado, eram reservados aos sacerdotes e aos filósofos.”166 Assim, cabe à mentalidade da época (Zeitgeist) e à visão de mundo (Weltanschauung) um papel decisivo na determinação do equilíbrio psíquico, “sobretudo na nossa época de transformação revolucionária”, na qual as causas mais profundas do sofrimento devem ser buscadas nos “preconceitos gerais herdados” e na “desorientação na moral e na visão de mundo”.167 Em suma, para Jung “a falta de sentido na vida é uma doença da alma cuja extensão completa e plenas conseqüências nosso tempo até agora não começou a compreender.”168 Jung compreendia a situação espiritual contemporânea à luz dos desenvolvimentos históricos que forjaram a consciência moderna.169 Concedia papel de destaque às transformações decorrentes do cisma protestante, em sua incidência sobre a forma da vida religiosa. Vale a pena citar uma passagem onde ele reflete longamente sobre os efeitos dessas transformações: “A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. (...) A história da evolução do protestantismo é uma iconoclastia crônica. (...) O homem 165 OC XVI, § 83 e 103. 166 OC XVI, § 250. 167 OC XVI, § 22. 168 OC VIII, § 815. 169 Justa ou injustamente, ele censurava a Freud a falta de “perspectiva histórica”. protestante foi relegado a uma falta de proteção de tal ordem que faria tremer o homem natural. A consciência esclarecida nega-se a reconhecer tal fato, mas procura em silêncio em outro lugar o que foi perdido na Europa. Buscam-se imagens efetivas, formas de pensamento que tranqüilizem inquietações do coração e da mente e os tesouros do Oriente são encontrados. (...) Hoje seria isto um problema? Será que podemos vestir como uma roupa nova símbolos já feitos, crescidos em solo exótico, embebidos de sangue estrangeiro, falados em línguas estranhas, nutridos por uma cultura estranha, evoluídos no contexto de uma história estranha? (...) Estou convencido de que o depauperamento crescente dos símbolos tem um sentido. O desenvolvimento dos símbolos tem uma conseqüência interior. (...) Tentar cobrir a nudez com suntuosas vestes orientais, tal como fazem os teósofos, seria cometer uma infidelidade para com a nossa história. Não caímos no estado de mendicância para depois posar como um rei indiano de teatro. Mais vale, na minha opinião, reconhecer abertamente nossa pobreza espiritual pela falta de símbolos, do que fingir possuir algo, de que decididamente não somos os herdeiros legítimos. Certamente somos os herdeiros de direito da simbólica cristã, mas de algum modo desperdiçamos essa herança. Deixamos cair em ruínas a casa construída por nosso pai, e agora tentamos invadir palácios orientais que nossos pais jamais conheceram. Aquele que perdeu os símbolos históricos e não pode contentar-se com um substitutivo, encontra-se hoje em situação difícil: diante dele o nada bocejante, do qual ele se aparta atemorizado. Pior: o vácuo é preenchido com absurdas idéias político-sociais e todas elas se caracterizam por sua desolação espiritual. (...) Da mesma forma que os votos de pobreza material, no cristianismo, afastavam a mente dos bens do mundo, a pobreza espiritual renuncia às falsas riquezas do espírito, a fim de fugir não só dos míseros resquícios de um grande passado, a “Igreja” protestante, mas também de todas as seduções do perfume exótico, a fim de voltar a si mesma, onde à fria luz da consciência, a desolação do mundo se expande até as estrelas. (...) Já herdamos essa pobreza de nossos pais.”170 Há aqui claramente, embora não nomeadamente, o reconhecimento da situação espiritual típica do niilismo, e a aposta em um sentido – paradoxal - do mesmo.171 Também à ciência cabe, na percepção de Jung, um papel importante na conformação da peculiar situação do homem moderno, alienado do mundo por intermédio de um desencantamento (Entzauberung) que essa mesma ciência vem consumar: “Por causa da mentalidade científica, nosso mundo se desumanizou. O homem está isolado no cosmos. Já não está envolvido na natureza e perdeu sua participação emocional nos acontecimentos naturais que até então tinham um sentido simbólico para ele. O trovão já não é a voz de Deus nem o raio seu projétil vingador. Nenhum rio 170 OC IX-1, §§ 22-30. Como Jung bem percebeu, a psicologia contemporânea está enraizada na história dos desdobramentos da experiência protestante. 171 Em sua correspondência, Jung afirma em uma passagem não haver sido tocado pessoalmente pelo niilismo: “Devo confessar que o niilismo nunca foi problema para mim. [Tive] bastante, e mais do que o bastante, com o que existe na realidade.” (Cartas II, 26/12/1953, ao pastor Willi Bremi) O que não o impede de se defrontar, inequivocamente como na passagem citada, com o niilismo contemporâneo, que pode ser entendido como o dilema espiritual próprio da “consciência esclarecida” típica do humanismo antropocêntrico moderno. contém qualquer espírito, nenhuma árvore significa uma vida humana, nenhuma cobra incorpora a sabedoria e nenhuma montanha é ainda habitada por um grande demônio. Também as coisas já não falam conosco, nem nós com elas, como as pedras, fontes, plantas e animais. Já não temos uma alma do mato que nos identifica com algum animal selvagem. Nossa comunicação direta com a natureza desapareceu no inconsciente, junto com a fantástica energia emocional a ela ligada.”172 Temos aqui traçado o itinerário moderno do “Conhece-te a ti mesmo” em sua dimensão terapêutica, segundo Jung. O inconsciente, “que contém justamente aquilo que mais importa conhecer”173, organiza-se em função das configurações históricas da cultura, e assim é nele que se encontram as possibilidades de compensação da consciência moderna. A alienação, o desencantamento, o vazio niilista e o desenraizamento são sintomas que convocam a compensação inconsciente, movida pelo impulso natural para a totalidade e manifesta na atividade produtora de símbolos espontânea da psique, especialmente nos sonhos. Nessa compensação Jung acredita encontrar-se a via de recuperação daquela comunicação perdida com a natureza e da energia emocional correspondente174, bem como a revitalização da experiência religiosa deteriorada ao longo das vicissitudes do cristianismo moderno175. Resumidamente: o confronto com o inconsciente é visto por Jung como a chave para o resgate do sentido da vida e a conseqüente superação do niilismo e da desolação espiritual que afeta o mundo moderno.176 À centralidade do problema do sentido da vida corresponde, no quadro de conceitos da psicologia analítica, a noção de símbolo. Como vimos há pouco, em sua avaliação sobre o iconoclasmo da Reforma Protestante, entendida como um dos fios 172 OC XVIII, § 585. 173 OC VII, prefácio (p. XIV). 174 Cf. OC XVIII, § 586. 175 Vários cristãos, incluindo sacerdotes e pastores, dão testemunho favorável a respeito do efeito positivo da experiência psicoterapêutica em molde junguiano para as suas vidas religiosas. Talvez o exemplo mais forte – e também o mais doloroso – tenha sido o do padre dominicano Victor White, que confessa ter experimentado a revitalização de sua fé mediante a análise com Jung, mas que terminou por se afastar dele em virtude de discordâncias a respeito do problema do mal. A história da relação Jung-White pode ser acompanhada parcialmente na correspondência entre ambos. Cf. Cartas, passim. Jung recebeu uma benção apostólica de Pio XII pelo efeito benéfico do tratamento que ele conduzira em uma católica cujo confessor trabalhava no Vaticano. 176 “Se ainda existem em nós certos vestígios primitivos – e certamente existem – pode-se imaginar quanta coisa existe em nós, pessoas civilizadas, que não acompanha nossa pressa desenfreada na vida diária, produzindo aos poucos uma divisão e uma contravontade que às vezes pode assumir a forma de uma tendência destrutiva da cultura. Os acontecimentos das últimas décadas mostram claramente que é este o caso.” OC XVIII, § 1289. Note-se, portanto, que Jung não atribui ao inconsciente e suas tendências compensatórias – por vezes destrutivas - a solução do dilema espiritual moderno, mas ao confronto entre a consciência e inconsciente, que possibilita a transformação do antagonismo e da cisão cultural e subjetiva. Tal transformação, por sua vez, torna-se possível graças à “função transcendente” que produz os símbolos. Ver adiante. condutores da modernidade, é o “depauperamento dos símbolos” ou a “perda dos símbolos históricos” que conduz em linha direta àquela “pobreza espiritual” que se defronta com o horror do vazio niilista, com a desolação do mundo, e que busca desesperadamente uma alternativa a essa situação insuportável na procissão de pseudo- absolutos que a história contemporânea conhece bem, ou então em espiritualidades exóticas, que podem mitigar paliativamente a sede de símbolos, mas deixam irresolvido o problema fundamental da modernidade faustiana que gerou essa mesma sede. Significativamente, o último texto escrito por Jung (“Símbolos e a Interpretação de Sonhos”, posteriormente intitulado “Chegando ao Inconsciente”), concluído pouco tempo antes de sua morte, destinava-se a integrar uma obra conjunta, sob sua coordenação, a qual se transformou numa espécie de best seller de introdução ao pensamento junguiano. O título dessa obra - O Homem e seus Símbolos – resume todo o interesse e o sentido da psicologia analítica: fornecer uma compreensão simultaneamente teórica e prática do ser humano a partir do fato central da própria humanidade, a saber, a auto-expressão por meio da atividade simbólica da psique. Sob um ponto de vista histórico-cultural, Jung afirmava que a intenção fundamental de seu pensamento era recuperar para uma consciência moderna a capacidade de compreensão simbólica.177 Mas ele percebe lucidamente que essa compreensão, própria de uma sensibilidade ou atitude simbólica da consciência, depende em grande medida da Weltanschauung cultural que legitima e suporta, ou não, tal modalidade de consciência. Para Jung, a atitude simbólica justifica-se parcialmente pelo “comportamento das coisas”178, mas de outra parte “é resultado de certa [visão de mundo] que atribui um sentido a todo evento, por maior ou menor que seja, e que dá a este sentido um valor mais elevado do que à pura realidade. A esta concepção se contrapõe outra que sempre coloca o acento na crua realidade e subordina o sentido aos fatos. Para esta atitude não existe símbolo algum, quando o simbolismo depende exclusivamente do modo de observar.”179 177 “Existe a mesma dificuldade entre uma fé concreta ou histórica e uma compreensão simbólica. Pode-se dizer que é um problema de nosso tempo se nossa mente é capaz de um desenvolvimento tal que possa entender o ponto de vista simbólico ou não. (…) tento insinuar o ponto de vista simbólico numa atitude racionalista.” (Cartas II, 23/02/1955, a E.V.Tenney,). 178 Trataremos desse aspecto adiante, na seção 4 deste capítulo. 179 OC VI, § 908. Na seqüência, Jung afirma que mesmo para essa atitude “realista” existem símbolos: “precisamente aqueles que levam o observador à suposição de um sentido oculto. A imagem de um deus com cabeça de touro pode ser explicada como sendo um ser humano com cabeça de touro. Esta explicação, porém, mal pode sustentar-se diante da interpretação simbólica, pois o símbolo é por demais evidente para ser ignorado.” O problema do sentido simbólico, ao referir-se intrinsecamente à atitude da consciência, formula-se em Jung segundo dois registros: o primeiro – que não desenvolveremos aqui – pode ser chamado estrutural e é contemplado na teoria dos tipos psicológicos180. O segundo – que nos interessa – refere-se ao fenômeno cultural da Weltanschauung, sendo portanto de índole histórica. Relembremos que Jung equaciona a crise espiritual moderna vinculando-a à “desorientação na moral e na visão de mundo” que caracteriza nossa época “de transformação revolucionária”. Assim, a intenção declarada de restituir à consciência moderna a sensibilidade simbólica perdida só faz sentido a partir da constatação prévia dessa perda histórica e da transformação da visão de mundo que está em sua base. Reciprocamente, a restituição da atitude simbólica implica, ou mesmo pressupõe, uma transformação concomitante da visão de mundo. Ao longo de toda a sua obra, Jung identifica a consciência moderna iconoclasta à “atitude racionalista”181 que exclui a sensibilidade simbólica e que ele 180 Apenas a título de indicação, a atitude simbólica, em jargão junguiano, é própria da função “intuitiva”, especialmente em sua modalidade “introvertida”. Por outro lado, constata-se facilmente que o realismo perceptivo que define o tipo “sensação extrovertida” sente-se pouco à vontade com a linguagem dos símbolos. 181 A crítica constante ao “racionalismo” gerou o equívoco, freqüente tanto em críticos quanto em seguidores da psicologia analítica, de que Jung seria no fundo um “irracionalista”, descartando ou menosprezando a função da razão em favor do “sentimento”. Nada mais descabido! Isso só faria gerar um outro desequilíbrio – o sentimentalismo, também criticado por Jung. O que ele pretende é despertar a razão esclarecida moderna de uma forma de “sono dogmático” – a presunção de soberania absoluta e da conseqüente auto-fundamentação. Assim, ele afirma: “Longe de mim desvalorizar o dom divino da razão, esta suprema faculdade humana. Mas como senhora absoluta ela não tem sentido, tal como não tem sentido a luz num mundo em que está ausente seu oposto, a obscuridade.”(OC IX-1, § 174); “[Para encontrar o caminho para si mesmo] é necessária a relativização do racionalismo, mas de modo algum uma renúncia à razão, pois o razoável para nós é o direcionamento para a pessoa interior e para suas necessidades vitais.” (Cartas III, 8/1/1956, a Eugen Böhler); “é preciso precaver-nos contra uma valorização excessiva do inconsciente. Do contrário, existiria o perigo de subestimar o consciente, o que nos levaria, finalmente, a concepções totalmente mecanicistas. Mas isso contraria o nosso instinto, que coloca a consciência como ‘arbiter mundi’. Mas como os racionalistas atribuem uma importância excessiva ao consciente, considero sadio dar ao inconsciente também o valor que lhe é devido; no entanto, não se deveria valorizá-lo mais que o consciente.” (OC XVI, § 51) Na medida em que a própria noção de símbolo exige necessariamente a presença de uma compreensão, a razão hermenêutica tem uma função central na psicologia analítica. Mas na medida em que o símbolo é um produto espontâneo da imaginação, mergulhando suas raízes profundamente nas estruturas não racionais do ser humano, o projeto de Jung implica uma relativização da pretensão tipicamente moderna de uma soberania absoluta da razão. À razão cabe a tarefa de interpretar, mas essa tarefa supõe o conteúdo “transracional” que é apresentado pelo símbolo, e só por ele – e o símbolo não é o tenta contrabalançar com o cultivo das imagens simbólicas, sendo essa afinal a forma própria de sua psyches therapeia e a significação essencialmente moderna da mesma. Como vimos, Jung localiza historicamente a inflexão que conduz à perda do sentido simbólico na Reforma Protestante e na ciência moderna. Na verdade, em seu livro Aion. Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo182, ele identifica já no século XI os sinais da inversão espiritual que aponta para a modernidade. Uma vez que a sua proposta para a superação da crise espiritual da modernidade consiste no resgate do símbolo, a pergunta que se impõe é: como e por que a mentalidade moderna se constituiu excluindo a sensibilidade simbólica? Quais os fundamentos desse iconoclasmo que gera aquela situação espiritual à qual vem responder a modalidade de psicoterapia proposta por Jung? É o que veremos sinteticamente a seguir. 2. Raízes do Iconoclasmo Ocidental Para compreendermos em profundidade o que está em jogo na “demanda pelo símbolo”, é conveniente remontarmos à transformação introduzida no âmbito das relações entre o homem e o mundo, e em especial no espaço de significação que a presença humana abre para si no mundo, com o advento da forma mental moderna. Henrique Vaz propõe a expressão “espaço hermenêutico” para designar o espaço de significação próprio da forma mental antiga e medieval, e que se caracteriza pela possibilidade de manifestação de um sentido e pelo desenvolvimento de um saber regido pela lei da correspondência entre realidades fundadoras (ou arquetípicas) e a linguagem que fixa a imagem dessas realidades na forma de escritura típica das chamadas “civilizações do livro” – aquelas que se formaram sob o signo do primeiro tempo-eixo, produzindo obras espirituais que testemunham a experiência fundamental do mesmo: a experiência da transcendência. Como forma da relação significativa com o mundo, o “espaço hermenêutico” possibilita o estabelecimento de uma leitura produto de uma atividade reflexiva consciente e racional, segundo Jung, mas antes a auto-expressão espontânea da própria psique. Para Jung, indiscutivelmente “o símbolo dá a pensar”, e as “categorias existenciais” que Paul Ricoeur reclamava ao fim de La Symbolique du Mal podem ser encontradas ao longo de toda a reflexão junguiana, eminentemente voltada para a existência, de onde ela toma sua motivação e para onde ela sempre retorna. 182 OC IX-2. propriamente simbólica da realidade. Tal possibilidade assenta-se sobre uma determinada concepção da verdade, entendida como revelação, e sobre uma correspondente concepção de linguagem, entendida como estrutura heurística capaz de desvelar a verdade captada no “espaço hermenêutico”.183 Ao universo de significações fundamentais próprias do “espaço hermenêutico” corresponde uma imagem de mundo bem definida, exemplarmente representada na concepção grega do mundo como cosmos, bem como uma imagem antropológica igualmente característica – a do ser humano como microcosmos ou então como criatura. A mesma lei de correspondência que estrutura o “espaço hermenêutico” determina a relação entre o humano e o mundo, permitindo que este seja o suporte objetivo de um sentido que o homem deve “ler” para encontrar a sua posição e o seu sentido particular no cosmos: eis aí o fundamento para a clássica imagem do universo como um grande livro que, atravessando todo o medioevo, chegará até Descartes.184 Henrique Vaz adota uma definição ampla da noção de símbolo em sua reflexão sobre o “espaço hermenêutico”185. Porém, a definição restrita – como a utilizada por Henri de Lubac186, e que aqui adotamos – parece-nos mais apta para indicar um nível ainda mais profundo das conseqüências resultantes da transformação mental implicada no advento da modernidade. Parece-nos que a opção de Vaz é perfeita para definir os contornos mais gerais da diferença entre o regime mental antigo-medieval e o moderno, mas ao preço de perder de vista uma importante transformação interna ao espaço de significações fundamentais da cristandade latina medieval, transformação que prepara a supremacia da positividade do conceito sobre o poder de evocação do símbolo como 183 Cf. Escritos de Filosofia I, p. 172. 184 “Pode-se recolocar nesse contexto todo um complexo de idéias que constitui um traço fundamental da visão medieval de mundo, a saber aquilo que se chama simbolismo. Já se escreveu muito sobre esse assunto, e em vários estilos, tanto expondo as listas de correspondências quanto estudando a sensibilidade que lhe é subjacente. A idéia de base é a de que o mundo está ligado ao homem pela presença em ambos de um mesmo sistema de significação. O mundo é pleno de sentido, e de um sentido que o homem é capaz de decifrar e de aplicar a si. A sabedoria será sabedoria do mundo ao consistir em interpretar corretamente as mensagens das coisas. Para os cristãos, essa mensagem se refere antes de tudo a Deus, que deixou sua marca sobre o criado e que nele transparece. Mas, através do mundo, Deus nos propõe também modelos do que nós devemos fazer.” BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 141-142. 185 “Considerado do ponto de vista da sua estrutura semiótica, o universo da ciência antiga era o universo de um simbolismo ontológico, segundo a acepção original da palavra sym-bolon. Nele, as coisas eram aproximadas imediatamente uma da outra no campo de visão (ou de leitura) do sujeito, segundo uma rede de correspondências em que tudo significava e era significado: a res se desdobrava imediatamente em signum. O discurso tornava-se, então, a universal significatio ou o lugar de manifestação formal das coisas-sinais.” Escritos de Filosofia I, p. 194-195. No espaço dessa concepção ampliada, “também a verdade clássica é ‘simbólica’: adaequatio intellectus et rei, é o ‘símbolo’ fundamental que permite estabelecer a correspondência entre o intelecto e a coisa.” (ibid., nota 195) 186 Cf. DE LUBAC, H. Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge. Paris: Aubier, 19492. forma racionalmente legitimada de conhecimento. É a este nível que deve ser referido o esforço de Jung em recuperar para a consciência moderna uma sensibilidade simbólica que começa a ser banida ou interditada em nome de uma positividade do mundo físico que só pode ser captada legitimamente pela razão, e que, na acepção restrita, não possui qualquer sentido simbólico. Encarado sob esse ângulo, o verdadeiro lance inaugural da transformação que conduz à modernidade encontra-se na recepção de Aristóteles ocorrida na cristandade latina do século XIII. É então que uma concepção positiva de natureza, típica da física aristotélica, vem substituir-se à concepção simbólica oferecida pela matriz neoplatônica dominante na Alta Idade Média.187 Avaliando as conseqüências desse evento para a consciência moderna sob o ponto de vista da necessidade vital do símbolo ou “pensamento indireto”, Gilbert Durand considera-o como uma das fontes da “catástrofe metafísica” ocidental, a qual consolida o iconoclasmo que interdita o acesso simbólico ao real e à transcendência. A tese de Durand, tomada de empréstimo a Henry Corbin, parece-nos unilateral por sustentar uma equiparação entre a recepção de Aristóteles e o pensamento do Estagirita, e por desconsiderar as possibilidades de desenvolvimento presentes no interior deste. A prudência parece exigir um pouco mais de cautela no tocante a referendar sem mais a posição esposada por Durand. Se, de fato, em suas grandes linhas a gnosiologia do Estagirita não se interessa pelo problema do símbolo, e se a sua física igualmente não se conforma às exigências do simbolismo ontológico stricto sensu, parece-nos contudo equivocado tomar inadvertidamente o aristotelismo como uma espécie de “proto-positivismo” racionalista. A despeito da manifesta e por vezes cômica incapacidade de Aristóteles para apreender o simbolismo dos mitos platônicos, por exemplo, em seu nível hermenêutico próprio, a gnosiologia do Estagirita não proíbe necessariamente uma captação simbólica da verdade – apenas não a tematiza detalhadamente. Lembremos que Aristóteles admite formas de captação da verdade superiores àquela “normalmente” seguida pela razão humana - como nos casos do êxtase, do entusiasmo e da melancolia, em que a inspiração divina ou a força da natureza prevalece sobre o procedimento racional discursivo ordinário. Nesses casos, ao ser comandada por um princípio superior à razão discursiva (logos), a imaginação 187 Cf. DURAND, G. A Imaginação Simbólica. Sâo Paulo: EDUSP/Cultrix, 1988; id. Science de l’Homme et Tradition. Le Nouvel Esprit Anthropologique. Paris: Berg, 1979; DE LUBAC, H., Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p.248-277. Sob uma ótica diferente, Henrique Vaz reconhece no século XIII as mais profundas “raízes da modernidade”: cf. Escritos de Filosofia VII. revela-se genuinamente simbólica. Por outro lado, a excepcionalidade desses casos não implica em uma ruptura, transgressão ou insuficiência dos esteios da ontologia aristotélica.188 Em face desse ângulo de abordagem, parece-nos que seria possível desenvolver, dentro dos princípios legítimos e próprios do pensamento aristotélico, uma doutrina do simbolismo ao mesmo tempo distinta da versão neoplatônica, que oferece uma fundamentação ontológica específica, e da versão moderna, que impõe uma redução antropológica crítica. Assim sendo, o foco da “catástrofe”, em sua raiz medieval, estaria menos no campo da metafísica ou ontologia do que na adoção de um método unilateral: de fato, é sob a indução de uma forma de racionalismo assentada em bases aristotélicas que o abandono do pensamento simbólico tem início na cristandade latina. Isso pode ser comprovado, bem antes do auge da escolástica no século XIII, já nas disputas teológicas sobre a Eucaristia no século XI. O surgimento da corrente dos dialéticos, representada por Anselmo de Besate e Berengário de Tours, vem pôr em questão a forma de inteligência do simbolismo ontológico, sintetizada pelos Padres da Igreja a partir de esquemas neoplatônicos corrigidos pelo criacionismo e transmitida à cultura medieval.189 O racionalismo dos dialéticos do século XI anuncia a ruptura irreversível do equilíbrio que a mentalidade patrística estabelecera entre inteligência e mistério na forma do pensamento simbólico. De fato, para Agostinho, por exemplo, entre razão e mistério não se verificava qualquer oposição, encontrando-se antes ambas unidas sob a forma da mystica ratio ou “razão misteriosa”190. Com a fundação do “racionalismo cristão” medieval por Anselmo e Abelardo, a inteligência dos mistérios muda de registro, e já não pode mais ser 188 Para as devidas referências em Aristóteles, cf. Ética a Eudemo, 1225 a 27 ss.; 1248 a 26- b 1; 1248 a 33; 1248 a 39-41; cf. Ética a Nicômaco, 1150 b 25 ss; 1152 a 28-29; cf. De Memoria et Reminiscentia, 453 a 10; 451 a. Cf. também os comentários de Jackie PIGEAUD, in ARISTÓTELES. La Verité des Songes. De la Divination dans le Sommeil (Parva Naturalia 462 b- 464 b). Paris: Payot & Rivages, 1995. 189 Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 253. 190 Apenas a título de exemplo dessa união, citemos uma passagem onde transparece cristalinamente a estrutura racional que fundamenta o simbolismo e prescreve uma forma de vida correspondente: “Na verdade, a criatura racional nutre-se desse Verbo como de seu melhor alimento. Ora, a alma humana é racional. Está, porém, retida por castigo de seu pecado em liames mortais. Ela é reduzida, assim, a um estado de grande debilidade. Deve esforçar-se para perceber as realidades invisíveis, por conjecturas, através das realidades visíveis. É porque o alimento da criatura racional tornou-se visível. Sem nada mudar em sua natureza, revestiu-se da nossa, a fim de levar a Ele, que é invisível, aqueles que só procuram as coisas visíveis. Desse modo, Aquele que a alma por seu orgulho abandonara, em seu interior, ela reencontra-o fora dela, na humildade. E só será imitando essa humildade visível que voltará à sua elevação invisível.” AGOSTINHO, O Livre-Arbítrio, II, 10, 30 (conforme a tradução brasileira de Nair de Assis de Oliveira: São Paulo: Paulus, 1995, p. 185.) expressa a não ser de forma demonstrativa.191 A partir de então observa-se um fosso crescente “entre a teologia ‘racionalista’ de um Anselmo ou de um Abelardo e a teologia ‘simbolista’ ou mística de um Rupert e de um Hugo [de São Vítor]”.192 Pode-se dizer que a razão hermenêutica agostiniana, que era idêntica à contemplação religiosa dos mistérios, cede lugar a partir do século XI à razão demonstrativa anselmiana. O coração do procedimento simbólico é atingido por essa mudança de método da inteligência, que culmina com a elaboração da quaestio, método por excelência do procedimento da razão teológica na Escolástica medieval. O racionalismo cristão dá origem a uma “reação mística”, que contudo não faz senão reforçar a clivagem entre inteligência e mistério que a corrente combatida havia engendrado. Por isso, o simbolismo no qual a fé cristã se expressa e que oferece no século XII alguns de seus frutos mais amadurecidos já se inclina na direção do alegorismo. A batalha entre “racionalistas” e “místicos” no século XII se trava sobre um campo que já é definido por uma nova mentalidade, um novo modo de pensar, com novas categorias e nova ordem de problemas.193 Um dos resultados decisivos dessa transformação de mentalidade é a desvalorização do símbolo, cujo alcance noético será progressivamente recusado, substituído ou reduzido ao estatuto de alegoria ou comparação. Se de fato, como afirma Durand, o triunfo do conceptualismo de proveniência aristotélica na escolástica do século XIII, sob a forma de uma preferência crescente pelo conceito em detrimento do símbolo, assinala um momento decisivo na interdição epistêmica do simbolismo na civilização ocidental, as fontes medievais dessa interdição não se esgotam no plano gnosiológico, sendo secundadas por uma revolução no plano ontológico, a qual por sua vez ainda não se consuma integralmente no próprio século XIII. Com efeito, a metafísica tomasiana do actus essendi, que tem na noção neoplatônica de participação um dos seus eixos de sustentação (sendo o outro a doutrina da analogia do ser, síntese de aristotelismo e neoplatonismo), ainda preservava o espaço ontológico necessário para a legitimação do pensamento simbólico, que tem em comum com a concepção da adaequatio rei et intellectus a exigência de uma distinção entre ser e representação com primazia para o esse, o que igualmente é contemplado na metafísica tomasiana. Em outros termos: o que é posto de lado no plano 191 Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 267. 192 Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 265. 193 Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 256. gnosiológico poderia ainda ser recuperado no plano ontológico. E, de fato, é a forma deste plano ontológico que em última análise torna possível, mesmo sob a dominância da metodologia demonstrativa do racionalismo escolástico, a integração dos temas da revelação bíblica por uma teologia posta sob o signo do lema anselmiano da fides quaerens intellectum.194 Durand reconhece implicitamente essa situação, ao notar que em Tomás de Aquino há uma separação cuidadosa entre a função humana de conhecimento e a Revelação, lembrando que o uso e a interpretação desta fica contudo reservado ao clero.195 Tal observação – correta – atinge tão-somente o aspecto sociológico da questão, deixando de examinar o desenvolvimento de uma compreensão racional das condições da Revelação enquanto forma específica de conhecimento em Tomás.196 A crise institucional na Universidade de Paris, deflagrada pela corrente do aristotelismo heterodoxo (ou “averroísmo latino”) dominante na Faculdade de Artes, marca o início do abandono do projeto medieval de conciliação entre razão e fé. A repercussão dessa crise atingirá o reduto ontológico do simbolismo. A mudança metafísica em curso se estampa já em Duns Escoto que, ao proscrever a analogia tomasiana de derivação neoplatônica pela concepção da univocidade do ser, e principalmente ao inverter as relações entre ser e representação, abre caminho para a destruição da legitimidade ontológica do pensamento simbólico, ou mais exatamente para a redução antropológica moderna do simbolismo. Episódio decisivo na consolidação da proscrição do pensamento simbólico no Ocidente é a Reforma Protestante. Apesar da tendência alegorizante notada por Henri de Lubac já a partir do século XI, o magistério da Igreja Católica manteve-se, pelo menos até o Concílio Vaticano II, como uma espécie de conservatório de imagens simbólicas que, mesmo sendo privadas gradualmente de sua seiva vital por exegeses cada vez mais enrijecidas em face das transformações históricas da modernidade, ainda conseguiam 194 A análise de Henri de Lubac corrige a generalidade dessa afirmação, ao endossar a posição de J. de Ghellinck em L’essor de la littérature latine au XIIe siècle , segundo a qual mesmo no âmbito da revelação o simbolismo se torna cada vez mais um alegorismo, no sentido moderno da palavra, “com suas leis de interpretação, suas ‘chaves’ de explicação e sua teoria dos nomes, que acentuam sua rigidez”.(Cf. De LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p.256). 195 Science de l’homme et Tradition, p.21. 196 Uma estimulante reflexão sobre o tema da revelação em conexão com a problemática antropológica e psicológica do simbolismo, a partir de um referencial teórico aristotélico-tomista, pode ser encontrada em Victor WHITE. God and the Unconscious. Chicago: Henry Regnery Company, 1953 (vejam-se especialmente os capítulos VI, “Aristotle, Aquinas and Man”, e VII, “Revelation and the Unconscious”). cumprir a função própria de veiculação do sentido simbólico. A Reforma vem acirrar o Bildverbot ocidental moderno, deixando desamparada a necessidade anímica de imagens.197 E na medida em que o espírito protestante representa uma das linhas de força que constroem a modernidade, esta recebe, em sua constituição mesma, esse radicalizado interdito religioso ao pensamento simbólico.198 Na verdade, o iconoclasmo promovido pela Reforma não atinge a totalidade do pensamento simbólico, mas principalmente a sua dimensão visual, que ganhara importância crescente nos séculos que antecederam Lutero. A polêmica protestante visa a estética das imagens, estátuas e quadros, e se estende ao culto dos santos. Contudo, assim como no judaísmo e no islamismo, o iconoclasmo protestante é compensado pelo culto às Escrituras e à música – e a obra de Bach testemunha a profundidade atingida pela estética protestante em sua pureza iconoclasta.199 A despeito disso, o espírito protestante alia-se por fim à interdição das imagens simbólicas, que transfiguram as imagens sensíveis para evocar um sentido transcendente, mas que justamente por isso promovem um certo laço entre o transcendente e o sensível. Este aspecto pode ser melhor compreendido a partir da redução do estatuto do “céu” na teologia luterana.200 Na tradição bíblica, tanto “céu” quanto “terra” recebem sentidos diversos. Essa multiplicidade semântica poderia encontrar um denominador comum: “com a expressão ‘céu’ é designada a parte da criação aberta para Deus”201, e assim o “céu” teologicamente considerado significa, para a “terra”, “o reino das possibilidades criadoras de Deus”, sendo portanto uma transcendência relativa da “terra”, assim como esta representa uma imanência relativa do céu.202 Em outros termos: pelo “céu”, a “terra” é como que arrancada de sua mera positividade física e transformada num cenário de teofanias. Karl Barth afirma existir uma analogia ou correspondência entre a relação de “céu” e “terra” e a relação entre o Criador e sua criatura.203 A assimilação patrística da doutrina platônica das Idéias permitiu 197 Jung, como se viu, percebeu agudamente esse aspecto do espírito protestante, nele vendo uma deficiência em relação ao imaginário católico tradicional. 198 Afirmação que, de Lutero a Bultmann, pode ser facilmente comprovada. 199 Cf. DURAND, G. O Imaginário. Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998, p. 16-27. 200 Para o que se segue, veja-se MOLTMANN, J. Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 235-270. 201 MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 241. 202 Ibid. 203 Cf. MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 239. Vê-se aqui a presença do esquema de feitio neoplatônico, tal como apresentado na segunda divisão da natureza, a “natureza que cria e é criada”, no De Divisione Naturae de João Escoto Erígena (século IX). originalmente a articulação racional-teológica do imaginário bíblico referente aos símbolos de “céu” e “terra” segundo as exigências do criacionismo.204 Ora, Lutero exclui as distinções medievais de caráter neoplatônico ao identificar o “céu” com a presença de Deus ou, em outras palavras, ao divinizar o “céu”, retirando- o assim da criação.205 A conseqüência dessa elevação do “céu” à majestade não criada de Deus é a supressão daquela transcendência interna relativa da criação, resultando na concepção de um mundo “unitário, homogêneo, que é infinitamente transparente e infinitamente sujeito à pessoa humana”, absorvido na total imanência.206 Jürgen Moltmann, teólogo protestante, sugere o exercício de se imaginar um mundo sem “céu”: “seria um mundo que não estaria aberto ‘para cima’, para Deus, um mundo sem essa transcendência qualitativa. Um tal mundo seria um sistema fechado que descansa sobre si e que gira em torno de si. (...) E se um tal mundo sem céu quer ser pensado como mundo que se transcende a si mesmo, então ele deve ser um universo sem fim. Em lugar da infinitude qualitativa do céu, coloca-se a infinitude quantitativa da sua expansão. Relacionada ao tempo, em lugar daquela abertura do mundo, que é simbolizada pelo céu qualitativamente diferente, deveria ser colocada a abertura para o futuro, na qual o mundo se supera constantemente a si mesmo. Também isso significaria a transformação da infinitude qualitativa numa infinitude quantitativa.”207 Não é difícil perceber como, na história da ortodoxia do protestantismo, à restrição iconoclasta da expressão simbólica vem se aliar aqui a destituição do fundamento ontológico-teológico do simbolismo, que, paralelamente, a nova imagem de mundo gerada nos meios científicos impunha. Por outro lado, como observa Moltmann, “a divinização luterana do céu foi um dos pressupostos para que a moderna ‘crítica do céu’ conduzisse ao ateísmo: se Deus e o céu são identificados, então com o céu também cai o próprio Deus.”208 De Lutero a Feuerbach assistimos ao desdobramento interno de uma problemática teológica que paradoxalmente tende a destruir o seu próprio fundamento. O niilismo, resultado final de tal desdobramento, pode assim ser visto em 204 Cf. MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 246. 205 A partir de uma perspectiva erigeniana, poder-se-ia dizer que a opção teológica presente na identificação luterana Deus = céu corresponde a suprimir a segunda divisão da natureza e deslocar o céu para a quarta, a natureza que não cria e não é criada, ou seja, Deus entendido para além de sua autodeterminação como Criador. 206 Cf. MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 254 e 256. 207 MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 242. 208 MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 256. Goethe sintetiza no Fausto esse complexo movimento instaurador da modernidade fazendo a entrada de Mefistófeles no mundo e seu encontro manifesto com Fausto se dar no momento em que este, repetindo o gesto de Lutero, traduz a Bíblia para o alemão. “No princípio era a Ação”: eis aí a auto-expressão de Fausto como signo do espírito moderno em seu ativismo “poiético”, voltado para a transformação da Terra e mirando sempre o futuro. sua conexão com a história da recusa teológica do pensamento simbólico em toda a sua amplitude. Privado de sua fundamentação gnosiológica pela adoção do aristotelismo escolástico, o simbolismo ainda encontrava a possibilidade de se legitimar ontologicamente pela persistência de esquemas neoplatônicos, e teologicamente pela distinção Deus-céu; Duns Escoto abre o caminho para a impugnação da legitimação ontológica; Lutero impugna a legitimação teológica. Somando-se aos desdobramentos ocorridos no terreno teológico, a nova forma de ciência surgida com a revolução que se estende de Copérnico a Newton contribuirá poderosamente para a proscrição do pensamento simbólico, desqualificado em face do dogma maior da objetividade científica e da redução antropológica crítica que pretende sancioná-la. O método instaurado por Galileu, ao reforçar “o grande mito da indiferença e da separação do cosmos e do homem”209, ergue uma barreira que lança o descrédito sobre a relação de correspondência que estruturava a visão antiga de cosmos e fundava o alcance ontológico da hermenêutica antigo-medieval. Assim, o advento e posterior triunfo do universo científico sufoca na raiz qualquer leitura simbólica da realidade, que pressupõe justamente a adesão orgânica das partes de um todo qualitativamente diferenciado, e em especial a correspondência entre a alma e o cosmos. Com o cosmos, cai também o simbolismo. O cartesianismo, que pretende fundamentar a Nova Ciência, instaura o reino do algoritmo matemático, no qual o signo triunfa sobre o símbolo. Como assinala Gilbert Durand210, sob o império do Método o símbolo evapora-se em signo, consolidando a primazia da explicação cientificista, que culmina com a redução “semiológica” do ser ao tecido de relações objetivas, liqüidando no significante “tudo aquilo que era sentido figurado, toda recondução à profundidade vital do apelo ontológico.”211 Na mesma linha, Henrique Vaz salienta como o “espaço hermenêutico” da mentalidade antigo- medieval, que possibilitava a evocação de um sentido transcendente na forma do 209 DURAND,G. Science de l’Homme et Tradition, p. 25. 210 Cf. DURAND, A Imaginação Simbólica, p. 25-27. 211 Id., p. 27. Durand observa que Descartes admite um único símbolo, o próprio “eu penso”, símbolo último do ser; mas a consciência “à imagem e semelhança de Deus” da terceira Meditação é “um símbolo deveras perigoso, já que o pensamento e, portanto, o método (ou seja, o método matemático) se torna o único símbolo do ser” (id., p. 25), na medida em que o método reivindica a prerrogativa de ser o método universal. Por outro lado, se colocarmos entre parênteses a especificação da consciência pelo método matemático, temos no “símbolo único” cartesiano a premissa moderna da redução antropológico-crítica do simbolismo. pensamento simbólico, registrado nos “livros sagrados”, será desestruturado pela irrupção do novo espaço de significações próprio da civilização científico-tecnológica, que se caracteriza pela circulação de informações destituídas de alcance simbólico ontológico. Das “civilizações do Livro” à moderna “civilização do impresso” tem lugar uma profunda reestruturação das condições do saber que impugna as leis de construção do “espaço hermenêutico”, tornando aberrante a proposição de um simbolismo ontológico.212 Por fim, a supremacia da historicidade na compreensão do homem, que encontra sua exacerbação no historicismo, também contribui decisivamente para a derrocada da sensibilidade simbólica no regime mental moderno. A compreensão quantitativa de tempo nela implicada, e a sua articulação com a verificabilidade empírica tomada como critério de verdade, exclui de partida a leitura simbólica do tempo, eminentemente qualitativa, que encontrava expressão acabada na concepção de história sagrada ou história salvífica. A “História Sagrada” é fundamentalmente uma narrativa simbólica carregada de sentido, e não se presta aos procedimentos de reconstituição arqueológica prescritos pela verificabilidade empírica própria da “história profana”.213 Apesar de sua originalidade face a narrativas míticas mais simples consistir na inserção da revelação na própria história, vindo dar a esta seu sentido e sua destinação, a “história sagrada” enraiza-se em fatos históricos que são transfigurados pela própria intervenção divina 212 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia I, p. 159-189. Henrique Vaz designa o espaço de significações moderno como “espaço da comunicação”, e observa que nele o livro é um meio informativo, ao passo que no “espaço hermenêutico” ele é lugar do sentido (cf. id., p. 169, nota 29). Tal diferença resulta de uma transformação mais fundamental: “as condições e a natureza do saber que aparece com seus traços já definidos na ciência galileana mostram que ele não obedece, na sua estrutura epistemológica, às leis de construção do ‘espaço hermenêutico’. A concepção ‘especular’ da verdade, na qual o texto podia alçar-se à condição de reflexo de uma realidade arquetipal, cede lugar a uma concepção ‘operacional’, onde o texto, avaliado de acordo com os critérios de eficiência e economia de um simbolismo convencional, se insere na tarefa de ‘modelagem’ da realidade segundo as exigências de uma razão que experimenta e calcula. Na verdade, o grande livro do mundo está escrito em linguagem matemática. Mas esta linguagem deve ser permanentemente inventada e testada, o que significa, afinal, que o livro do mundo está ainda por escrever. A herança pitagórico-platônica de Galileu é traída por sua prática científica: essa se define já num novo espaço de saber, e obedece a uma nova concepção da realidade.” (id., p. 175) 213 “Sendo o Livro mais uma narrativa de instauração do que história narrativa com pretensões objetivas, impõe-se uma recusa do fio histórico e arqueológico em benefício do sentido escatológico.” “Afirmar escandalosamente que o Cristo ressuscitou, inscrever essa ressurreição como o sentido condutor do ciclo do ano litúrgico, é fazer explodir o determinismo da história, pois para a história só existe o tempo irreversível e entrópico, a morte sem ressurreição.” DURAND, G. A Fé do Sapateiro. Brasília: Editora da UNB, 1995, p. 47 e 42. Encarada sob a perspectiva da distinção entre tempo sagrado e tempo profano, a empreitada de desmitologização do Cristianismo levada a cabo por Bultmann, supostamente a serviço da plausibilidade da fé, aparece como, no mínimo, temerária. transcendente, e assim adquirem uma dimensão trans-histórica que os faz ultrapassar o simples alcance de fatos históricos datáveis e localizáveis.214 O tempo mensurável da “história profana”, encerrado na pura imanência do devir histórico, não abriga qualquer espaço para um sentido que não seja o depositado pelos atores humanos em seus embates e projetos na história.215 A redenção cristã, que se realiza na história com o evento da Encarnação, será substituída na modernidade pela poderosa crença na salvação pela história. E é exatamente tal substituição que veta a interpretação propriamente simbólica de um dado evento histórico, determinando a primazia do arqueológico sobre o escatológico. O fato histórico reduzido a um acontecimento empírico elimina a epifania de um mistério. O imperialismo da historicidade positiva mata o símbolo, pois este, como observa Gilbert Durand, não se refere ao momento cronológico de um acontecimento material qualquer, “mas sim a um advento constitutivo das suas significações.”216 Na verdade, a sensibilidade simbólica não desaparece totalmente nos tempos modernos. Ela sobrevive, sob formas e graus variados, na Renascença, na Contra Reforma, nos Exercitia Spiritualia de Inácio de Loyola, em Vico, no romantismo e em certos momentos do Idealismo alemão.217 Está igualmente no centro do “Kampf um Creuzers Symbolik” no século XIX, estreitamente associada à disputa sobre o estatuto do mito218, tendo como pano de fundo a retomada do neoplatonismo. Contudo, trata-se de fato de uma sobrevivência, ou “resistência do imaginário”, que só vem confirmar a hegemonia e o primado do conceito, do signo e do fato na pedagogia oficial que molda a mentalidade moderna. No cenário da nova ordem de razões da modernidade, o 214 Cf. GIRARD, M. Os Símbolos na Bíblia. Ensaio de Teologia Bíblica Enraizada na Experiência Humana Universal. São Paulo: Paulus, 1997, p. 64-66. Sobre os fatos históricos/trans-históricos da narrativa bíblica, Girard comenta: “O colete de tempo e do espaço no qual eles estavam encerrados enquanto fatos históricos não é mais totalmente apropriado; ele salta, explode, e esses fatos singulares se tornam acontecimentos de valor absolutamente universal, trans-temporal e trans-espacial”, com o que os acontecimentos trans-históricos da história bíblica adquirem um alcance mítico. Cf. id., p. 65. 215 Assim, a hipóstase da história como explicação última, “fundada sobre um cristianismo mal assimilado e sobre os ‘progressos’ da tecnologia e dos ‘meios de produção’ ”(cf. DURAND, G. “O Universo do Símbolo”, in Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 87), comporta-se em relação ao símbolo como uma forma moderna de evemerismo. 216 DURAND, G. “O Universo do Símbolo”, in Campos do Imaginário, p. 89. 217 Cf. DURAND, O Imaginário, p. 16-30. 218 Veja-se uma excelente exposição desse trajeto histórico da ciência do mito em JESI, F. O Mito. Lisboa: Editorial Presença, 1977. simbolismo ontológico passa a ser descartado como, parafraseando Henrique Vaz, a persistência de “espécies raras de uma época que tramontou”219. Dessa maneira, o resgate do símbolo, entendido no duplo sentido do genitivo objetivo (o símbolo como algo a ser resgatado) e do genitivo subjetivo (o símbolo como aquilo que vem resgatar algo ou alguém), aparece em toda a sua problematicidade quando considerado à luz das raízes iconoclastas da história intelectual da modernidade. Para receber o selo de legitimidade intelectual, ele deve de início passar pela prova de atender às condições do campo epistemológico que irrompe com a modernidade. A confluência das célebres interrogações de Kant na pergunta sobre o que é o homem indica o caminho dessa prova. As “ciências hermenêuticas” modernas diferem da hermenêutica antiga na medida em que, perdida a correspondência entre cosmos e alma e questionado radicalmente o alcance ontológico do simbolismo, o sentido que elas recolhem do símbolo deverá necessariamente ser pensado em chave antropológica e crítica.220 É precisamente nessa chave que a princípio se dá a recuperação da sensibilidade simbólica proposta por Jung, como veremos a seguir. 3. A recuperação antropológica do símbolo na psicologia analítica No século XX, quando, principalmente pelas vias da antropologia cultural e da psicanálise, for recuperada a atualidade do pensamento simbólico lato sensu, de início a primazia do modelo epistemológico antroponômico moderno, com a sua sanção filosófica no criticismo kantiano, prescreverá o limite dentro do qual essa recuperação será permitida: o limite interno à própria subjetividade. Em outras palavras, o símbolo não mais estará fundado sobre a lei de correspondência entre micro e macrocosmos, mas será encarado tão-somente como uma forma de auto-expressão do próprio homem, um reflexo especular de si mesmo – mesmo quando distorcido ou “deformado”. Impugnado o seu fundamento ontológico ampliado, o símbolo será inicialmente revalorizado em chave antropológica. Mesmo o desenvolvimento das ciências hermenêuticas, com a sua especificidade e diferenciação com respeito às ciências da natureza estabelecida por 219 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia I, p. 174. 220 Cabe observar de passagem que, no fundo, a crise que afeta a teologia na modernidade nasce das mesmas raízes iconoclastas que determinam a interdição do pensamento simbólico. Reciprocamente, a recuperação do símbolo no pensamento contemporâneo abre para a teologia a via de superação de sua crise. Sobre esse tema, ver VAZ, Escritos de Filosofia I, p. 159-189 (capítulo VIII: “Fé e Linguagem”). Wilhelm Dilthey, não logrará de início ultrapassar o círculo encantado da redução antropológico-crítica.221 A despeito de Freud ter se mantido alheio à problemática diltheyana, adotando por toda sua vida uma concepção de ciência exclusivamente naturalista, é sabido como o nascimento da psicanálise está ligado à questão hermenêutica.222 O enigma representado pelos sintomas histéricos, desafiando a explicação neurológica, bem como a localização anátomo-patológica, será decifrado pelo jovem médico vienense mediante a compreensão de seu significado oculto. Assim, a psicanálise nasce para fora da medicina, e toda a terapêutica psicológica que ela desenvolve relaciona-se à explicitação do significado do sintoma neurótico na ação fundamental do psicanalista: a interpretação. O lance verdadeiramente decisivo na fundação da psicanálise será a afirmação da realidade da psique, com o conseqüente corolário de uma causalidade especificamente psíquica. Freud conceberá tal causalidade segundo o modelo de um rígido determinismo inconsciente, que comanda todo o acontecer psíquico. Ademais, o próprio psiquismo será visto como uma espécie de “campo de batalha”, em que se opõem sistemas e forças, e assim a conflitividade ineliminável marcará a concepção antropológica freudiana. Todo o saber psicanalítico, incluindo a dimensão teórica dos modelos do “aparelho psíquico”, seus princípios de funcionamento, as considerações dinâmicas e econômicas, tudo enfim pode ser referido em última análise à questão do conflito constitutivo do ser humano e de seu sentido transformado em sintoma, em face da impossibilidade momentânea de uma expressão direta na consciência, segundo a lógica da realização dos desejos que governa o psiquismo inconsciente. No âmbito do campo teórico estabelecido por Freud, toda imagem, toda fantasia, enfim, todo símbolo produzido pelo homem será invariavelmente reconduzido ou reduzido à causalidade inconsciente que, para a psicanálise, refere-se ao conflito que se instala, de uma forma ou de outra, em torno da sexualidade humana.223 Por conseguinte, para Freud a expressão simbólica é derivada de uma deformação ou disfarce produzido 221 O pensamento romântico do século XIX será uma das últimas expressões de um enfoque do símbolo – e notadamente do sonho – que abarca dimensões que transcendem a subjetividade. A este respeito, ver o belo livro de Albert Béguin, L’Âme Romantique et le Rêve. Essai sur le Romantisme Allemand et la Poésie Française. Paris: Corti, 1991. 222 A bibliografia a respeito é extensa. Citamos, a título de referência, o trabalho de Carlos Roberto DRAWIN. Angústia e Saber: Elementos para uma Leitura Filosófica da Psicanálise na Dialética da Modernidade. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 1999. 223 Dados os objetivos e limites de nosso trabalho, deveremos nos contentar com simplificações, por vezes grosseiras, que não fazem justiça à complexidade e riqueza da problemática psicanalítica. pelo trabalho de elaboração inconsciente em face da censura, que se impõe na situação do conflito consciente versus inconsciente, resultando que o símbolo é uma outra forma de dizer ou alegoria que, desfeitas as vias da elaboração deformadora pelo trabalho analítico da interpretação – que percorre, portanto, o caminho inverso da deformação produzida pela elaboração inconsciente -, aparece como um desejo ou pensamento comum recalcado. A redução psicanalítica, portanto, tem como conseqüência tomar o símbolo como um efeito-signo, ou sintoma, por onde é postulada a igualdade lógica entre simbolizante e simbolizado, que por sua vez permite a substituição de um pelo outro segundo uma reversibilidade que fundamenta a interpretação semiótica promovida pela psicanálise. Resulta daí a univocidade da explicação causal psicanalítica224: por mais complexos e brilhantes que sejam seus movimentos, a hermenêutica psicanalítica será incuravelmente redutora.225 Será precisamente o caráter implacável – e, para Freud, inegociável – dessa redução que fará Jung apartar-se da psicanálise e seguir seu caminho próprio. É comum indicar-se a diferença fundamental entre a psicanálise de Freud e a psicologia analítica de Jung na proposição por este último de um “inconsciente coletivo” estruturado a priori por “arquétipos”, distinto do “inconsciente pessoal” constituído empiricamente pelo mecanismo de recalcamento, descrito pela psicanálise. Tal visão é fomentada pelo próprio Jung.226 Todavia, a aparente simplicidade dessa distinção é enganosa e oculta uma complexidade que merece ser examinada rapidamente. 224 Responsável pela queixa de Freud a Jung a respeito da “monotonia da análise”: cf. OC V, § 9. 225 Sobre esse aspecto, veja-se DURAND, A Imaginação Simbólica, capítulo II. Parece-nos sóbria a avaliação de Umberto Galimberti a esse respeito: “Desconstruído o nosso modo habitual de pensar para reconduzi-lo às suas origens arcaicas, onde desejos impedidos, desviados e convertidos custodiam aquele núcleo de sentido que o Eu, enganando-se, representa como sua criação, Freud se propõe evidenciar o engano do Eu mostrando que as suas criações culturais e religiosas outra coisa não são do que disfarces simbólicos de desejos recalcados onde toda a nossa infância e o nosso arcaísmo exprimem, no sonho e na neurose, a sua ineliminabilidade, pela qual o homem pensa ter uma história enquanto é simplesmente executor de um destino. O Eu não é o autor de suas palavras, mas as suas palavras são embelezamento que disfarça um discurso já pronunciado por suas representações inconscientes em termos que, na sua imediatidade, seriam improponíveis. A decodificação revela sempre a mesma trama, o símbolo reenvia sempre ao mesmo texto. O texto narra a angústia da criança que vem ao mundo sem proteções e sem defesas. A psicanálise nos persuadiu e ninguém, nem mesmo Jung, contesta esta arqueologia do símbolo, este reenvio ao passado próximo da nossa infância e ao passado remoto da humanidade.” GALIMBERTI, U. “Jung e la Filosofia dell’Occidente”, in CAROTENUTO, A.(dir.) Trattato di Psicologia Analitica. Volume Primo: La Dimensione Culturale. Torino: UTET, 1992, p. 13. No mesmo lugar, Galimberti afirma que “sobre o modo de ler o símbolo se consuma a separação entre Freud e Jung.” 226 Veja-se, por exemplo, o ensaio Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978 (in OC VII). Em primeiro lugar, é falsa a afirmação de que, para Freud, o inconsciente é exclusivamente formado mediante o recalcamento “secundário” – que é aquele a que Jung se refere ao falar da formação do “inconsciente pessoal”. Já em 1908 Freud afirmava claramente que nem tudo o que está no inconsciente provém do recalcamento secundário.227 A elaboração da noção enigmática de um “recalcamento primário” ou “originário” (Urverdrangung) vem sustentar precisamente esse ponto. E por fim, ao propor a sua “segunda tópica” em O Ego e o Id (1923), Freud mais uma vez deixa clara a não coincidência entre inconsciente e recalcado.228 227 “As fantasias inconscientes podem ter sido sempre inconscientes e formadas no inconsciente; ou, o que acontece com maior freqüência, foram inicialmente fantasias conscientes, devaneios [diurnos], desde então deliberadamente esquecidas, tornando-se inconscientes através [do ‘recalcamento’].” (FREUD, S. “Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade”, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 164, itálicos nossos) Um tratamento excelente da noção de fantasia na psicanálise pode ser encontrado em LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens da Fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. 228 “Reconhecemos que o Ics. não coincide com o [recalcado]; é ainda verdade que tudo o que é [recalcado] é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é [recalcado].” (FREUD, S. “O Ego e o Id”, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 30, modificado.) No prefácio do mesmo ensaio podemos conjecturar uma alusão velada a Jung quando Freud diz: “Nestas páginas são abordadas coisas que ainda não constituíram assunto da consideração psicanalítica e não foi possível evitar invadir algumas teorias que foram apresentadas por não analistas ou por ex-analistas, em sua retirada da análise. Por outro lado, sempre estive pronto a reconhecer o que devo a outros pesquisadores; neste caso, porém, não me sinto onerado por tal débito de gratidão. Se a psicanálise até aqui não demonstrou sua apreciação de certas coisas, isto nunca se deveu a que ela desprezasse sua consecução ou procurasse negar sua importância, mas porque seguia um caminho específico, que ainda não conduziu até tão longe. E, finalmente, quando as alcança, as coisas têm para ela uma aparência diferente da que têm para outros.” (ibid., p. 23, itálicos nossos). Em segundo lugar, e Jung o reconhece explicitamente229, Freud percebeu precocemente a existência de “vestígios” ou “resíduos arcaicos” nos sonhos, não adquiridos através da experiência individual, entre o material que é trabalhado pela “elaboração onírica”. Daí provém a hipótese de uma “estrutura filogenética herdada” da psique, que, apesar de não ser realçada no texto freudiano, será mantida até os seus escritos tardios.230 A noção freudiana de “protofantasias” (Urphantasien) responde à mesma necessidade teórica de explicação dos fenômenos que levaram Freud a afirmar aquela “estrutura herdada” da psique. Contudo, manifestamente Freud oscilou a respeito do peso a ser dado à protofantasia ou à experiência individual na determinação dos conteúdos do inconsciente.231 E no entanto, apesar da homologia teórica plausível entre arquétipo e protofantasias, e entre inconsciente coletivo e Id, Freud estava certo, como diz Umberto 229 Cf. JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 19814, p. 150: “Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessaram a Freud: o dos ‘resíduos arcaicos’ e o da sexualidade.” Cf. “Chegando ao Inconsciente”, in O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p. 67: “precisamos levar em conta o fato (primeiramente observado e comentado por Freud) de que num sonho muitas vezes aparecem elementos que não são individuais e nem podem fazer parte da experiência pessoal do sonhador. A estes elementos, como já mencionei antes, Freud chamava ‘resíduos arcaicos’ – formas mentais cuja presença não encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas, representando uma herança do espírito humano.” Além disso, Jung é forçado a reconhecer que mesmo o “inconsciente pessoal” apoia-se, no fundo, em fatores “coletivos”: cf., por exemplo, o ensaio “O Conceito de Inconsciente Coletivo” (in OC IX-1, § 91), onde Jung observa que as psicologias de Freud e Adler, que insistem na natureza pessoal da psique, baseiam-se não obstante em certos “fatores biológicos universais” – nomeadamente, o instinto sexual e o impulso de auto-afirmação – os quais não são de forma alguma meramente peculiaridades pessoais, sendo dados a priori, distribuídos universalmente. São fatores hereditários com um caráter dinâmico ou mobilizador, “que muitas vezes se encontram tão afastados do limiar da consciência, que a moderna psicoterapia se vê diante da tarefa de ajudar o paciente a tomar consciência dos mesmos.” (ibid.) As concepções de Freud e Adler, portanto, não negam os “instintos”, que são “forças motrizes especificamente formadas”, e por isso mesmo “são analogias rigorosas dos arquétipos, tão rigorosas que há boas razões para supormos que os arquétipos sejam imagens inconscientes dos próprios instintos; em outras palavras, representam o modelo básico do comportamento instintivo.” (ibid.) Porém, ao passo que a psicanálise remete a diversidade de formações arquetípicas a um único núcleo – o “complexo de Édipo” -, Jung opta por explorar as diferenças daquelas mesmas formações. Segundo Jung, o Édipo é um arquétipo, mas Freud considerou-o o arquétipo (cf. McGUIRE, W. e HULL, R.F.C. C.G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 260). 230 Ver, por exemplo, Análise Terminável e Interminável, de 1937, onde Freud se refere à “herança arcaica” e a sua “transmissão hereditária”, patente no “simbolismo” (in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 273-274). 231 Exemplar dessa hesitação é o famoso caso clínico do “Homem dos Lobos”, onde vemos Freud oscilar entre a originariedade da protofantasia da “cena primária” (Urszene) e a derivação empírica dessa estrutura fantasmática. Segundo Jean Laplanche (Vida y Muerte em Psicoanálisis. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1973, p. 49) tais oscilações sem fim demonstram “que Freud não tem definitivamente em suas mãos a categoria da ‘realidade psíquica’.” É exatamente isso que Jung lembra a Freud na correspondência sobre o problema do incesto como “símbolo”, e que Freud reconhece com indisfarçável mau humor. Podemos dizer, à luz do comentário de Laplanche, que Jung àquela altura já agarrara firmemente a noção de realidade psíquica em suas mãos e daí extrai as conseqüências teóricas, especialmente a de uma autonomia radical do inconsciente por relação às “provas reais” da experiência individual, o que o levará à formulação da noção de inconsciente coletivo. Galimberti232, em não conceder à reflexão psicológica de Jung o título de psicanálise, pois esta, além de possuir seu “caminho específico”, quando alcança “coisas apresentadas em teorias de ex-analistas em sua retirada da análise” o faz de uma forma diferente233. Onde estaria, portanto, o cerne dessa diferença? Na verdade, de um ponto de vista filosófico podemos seguramente localizar o epicentro da divergência entre Freud e Jung nas distintas concepções que ambos têm a respeito da natureza do símbolo, com as conseqüências práticas e teóricas que daí decorrem. A dissidência de Jung vem à tona quando eclode a discordância a respeito do significado do incesto, que Jung afirma ser um símbolo, e Freud insiste em se tratar de um desejo sexual concreto.234 Mas o que exatamente quer dizer Jung quando afirma que o motivo do incesto é “simbólico”? E o que Freud recusa nessa proposição? O que, no fundo, está em jogo e leva à dissensão dos dois? Em 1916 – portanto no momento em que começava a emergir da crise que viveu após a ruptura com Freud -, Jung publica Collected Papers on Analytical Psychology, editados por Constance Long. Os dois prefácios que escreveu para esta obra, o segundo para a edição de 1917, revelam que ele já tinha plena compreensão filosófica daquilo que o separara de Freud. No primeiro, a polêmica deflagrada em 1912 em torno ao estatuto do incesto é retomada, e a diferença de abordagens é expressamente referida à noção de símbolo: “A escola de Viena adota um ponto de vista exclusivamente sexualista, ao passo que a escola de Zurique assume uma concepção simbolista. A escola de Viena interpreta semioticamente o símbolo psicológico, como um sinal de certos processos psicossexuais primitivos. Seu método é analítico e causal. A escola de Zurique reconhece a possibilidade científica dessa concepção, mas discute a validade exclusiva, pois interpreta o símbolo psicológico não apenas semioticamente, mas também simbolisticamente, isto é, atribui ao símbolo um valor positivo. O valor do símbolo não depende apenas de causas históricas; sua importância maior está no fato de ter um significado para o presente e para o futuro, em seus aspectos psicológicos. Para a escola de Zurique o símbolo não é apenas um sinal de algo reprimido ou dissimulado, mas é ao mesmo tempo uma tentativa de compreender e mostrar o caminho do ulterior desenvolvimento psicológico do indivíduo. Assim acrescentamos um significado prospectivo ao valor retrospectivo do símbolo. Por isso, o método da escola de Zurique não é apenas analítico e causal, mas sintético e prospectivo, reconhecendo o fato que a mente humana se caracteriza por fines (fins) e por causae (causas).”235 232 Cf. GALIMBERTI, “Jung e la Filosofia dell’Occidente”, p. 13. “Que os símbolos sejam significantes não é uma verdade mas uma possibilidade que não se pode verificar com os instrumentos da psicanálise, que reportam à primeira infância, e nem mesmo com a teoria dos arquétipos, que, não se contentando com a primeira infância, remonta à infância da humanidade, reforçando, neste retorno, não o perfil prospectivo de Jung, mas o método reducionista da psicanálise de Freud.” (ibid., p.17) 233 Cf. retro, citação de Freud na nota 72. 234 A dissidência pode ser acompanhada na leitura da correspondência mantida por Freud e Jung. Dada a importância decisiva desse assunto, julgamos oportuno recensear os momentos centrais da discordância e apresentá-los em anexo. Cf. Anexo 1. 235 OC IV, § 673-675. Em Tipos Psicológicos a mesma posição é reafirmada: “Podemos dizer que a fantasia deve ser entendida tanto causal quanto finalisticamente. À explicação causal ela aparece como Como se vê, Jung não recusa a interpretação freudiana. Apenas afirma ser ela unilateral por enfatizar exclusivamente o princípio mecanicista, sem reconhecer a legitimidade e a necessidade do princípio teleológico. Poderíamos dizer que o mecanicismo subjacente à perspectiva da psicanálise de Freud é mantido, integrado e suprassumido na perspectiva da psicologia analítica de Jung. Toda essa problemática é conscientemente entendida por Jung à luz da lição kantiana, a que ele se refere textualmente no segundo prefácio: “na minha opinião, a natureza da mente humana nos obriga a adotar o ponto de vista finalista. Não se pode negar que vivemos e trabalhamos, em psicologia, diariamente, tanto com o princípio da finalidade quanto com o princípio causal. (...) Temos que ter sempre em mente que a causalidade é um ponto de vista. Ela afirma a relação inevitável e imutável de uma série de eventos: a-b-c-z. (...) A finalidade também é um ponto de vista e é empiricamente justificada pela existência de séries de eventos onde a conexão causal é evidente mas o significado deles só se torna compreensível em termos de produtos-fins (efeitos finais). (...) Se quisermos trabalhar de forma realmente psicológica, deveremos conhecer o significado dos fenômenos psicológicos. (...) É impossível considerar a psique apenas do ponto de vista causal; temos que considerá-la também do ponto de vista final. (...) KANT mostrou claramente que os pontos de vista mecanicista e teleológico não são princípios constitutivos (objetivos), isto é, qualidades do objeto, mas apenas princípios regulativos (subjetivos) de nosso pensamento e, como tais, não se contradizem, pois posso conceber, sem dificuldade, a seguinte tese e antítese. Tese: Todas as coisas nasceram segundo leis mecanicistas. Antítese: Algumas coisas não nasceram de puras leis mecanicistas. E. KANT acrescenta: A razão não consegue demonstrar nem um nem outro desses princípios porque a possibilidade das coisas não nos pode dar a priori um princípio determinante, seguindo apenas as leis empíricas da natureza. (...) Obviamente, considero como necessários ambos os pontos de vista, tanto o causal quanto o final, mas gostaria de frisar que, desde KANT, sabemos que os dois enfoques não se contradizem se forem considerados como princípios regulativos do pensamento e não como princípios constitutivos do próprio processo da natureza.”236 um sintoma de um estado fisiológico ou pessoal, resultado, por sua vez, de [eventos antecedentes]. À explicação finalística, porém, a fantasia se apresenta como símbolo que procura, com ajuda de materiais disponíveis, caracterizar ou apreender certo objetivo ou, melhor, certa linha de desenvolvimento psicológico futuro.” (OC VI, § 808) 236 OC IV, § 687-690. A referência a Kant pode ser comprovada na segunda parte da Crítica da Faculdade do Juízo (“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”). Cf. a edição brasileira: KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 (tradução de Valério Rohden e António Marques). Para a antinomia citada por Jung, ver o § 70 (op. cit., p. 228-229). Ainda sobre a necessidade de ambos os princípios explicativos (mecanicista e teleológico), ensina Kant no § 78: “Na verdade a razão (...) tem que proceder cuidadosamente e não procurar explicar como teleológica toda a técnica da natureza (...) mas sim considerá-la sempre possível mecanicamente. Só que excluir completamente, por essa razão, o princípio teleológico e querer perseguir o simples mecanismo onde a conformidade a fins se mostra, sem qualquer dúvida, para a investigação racional da possibilidade das formas da natureza, através das suas causas, em relação com uma outra espécie de causalidade, tem que A passagem mostra a diferença do significado causal de um evento psíquico, estabelecido pela interpretação “semiótica” freudiana, para o sentido prospectivo estabelecido pela interpretação “simbólica” junguiana: o símbolo-sintoma da psicanálise é compreendido em perspectiva causal-mecanicista; o símbolo na perspectiva junguiana é compreendido em perspectiva teleológica.237 Em outras palavras: o inconsciente freudiano “só sabe desejar”, e esse desejo é a repetição disfarçada de um evento passado, que ao mesmo tempo encobre e revela uma estrutura fixa, donde a compreensão do símbolo se esgotar na decodificação que expõe a forma velada com que ele realiza um desejo; já Jung, além disso, vê a psique como um “sistema auto- regulado” que manifesta uma tendência prospectiva à realização de todas as suas potencialidades,238 donde a compreensão do símbolo avançar para a captação das linhas de força que dirigem o desenvolvimento psíquico. levar a razão a divagar de modo fantasista no meio de impensáveis fantasmas de poderes da natureza, assim como a tornava exaltada uma simples forma de explicação teleológica que não tome em consideração o mecanismo da natureza.” (op. cit., p. 252) E conclui mais adiante (op. cit., p. 256): “Mas o certo é que [o tipo de explicação mecânica] será sempre insuficiente para as coisas que chegamos a reconhecer como fins naturais, por mais longe que o levemos. Por isso teremos que subordinar todos aqueles princípios a um princípio teleológico de acordo com a constituição do nosso entendimento.” 237 Em 1946, retornando ao problema do incesto no conteúdo específico do fenômeno da “transferência”, Jung reafirma sua posição distinta com relação a Freud: “Como se sabe, o conteúdo de fantasia do instinto pode ser interpretado redutivamente – ou seja, semioticamente como uma auto-representação concreta do instinto, ou então simbolicamente como o sentido espiritual do instinto natural.” OC XVI, § 362. E nas suas memórias, editadas por Aniela Jaffé, ele afirma a importância da sexualidade, em sua psicologia, como uma das expressões da totalidade psíquica, comentando: “Minha preocupação essencial era, no entanto, aprofundar a sexualidade, além de seu significado pessoal e seu alcance de função biológica, explicando-lhe o lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud, sem que este o compreendesse.” JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 150. 238 Trata-se do impulso da individuação, que se enraíza na totalidade pessoal do Si-mesmo. Examinaremos estas noções no próximo capítulo. A propósito, Zeljko Loparic observa como a psicanálise pós-freudiana , a partir da “experiência clínica adquirida durante décadas pelos melhores entre os psicanalistas”, “buscou cada vez mais se distanciar das metáforas mecânicas e dinâmicas de cunho fisicalista introduzidas por Freud na sua teoria das pulsões e, mais genericamente, do naturalismo freudiano.” LOPARIC, Z. “O Conceito de Trieb na Psicanálise e na Filosofia”, in MACHADO, J.A.T. (org.) Filosofia e Psicanálise: Um Diálogo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 133. Loparic dá como exemplo o psicanalista inglês Donald W. Winnicott que se afasta do mecanicismo da teoria pulsional freudiana ao reconhecer algo desconhecido por Freud e pela psicanálise tradicional: os chamados “processos maturacionais”, que Winnicott define como uma “tendência inata para crescimento e evolução pessoal”, tendência “integrativa” que caracteriza a própria “natureza humana” e que visa “atingir o status de unidade (de indivíduo)” (Cf. LOPARIC, op. cit., p. 134 ss.). A aproximação com a noção junguiana de individuação é evidente, e com isso seria de se esperar uma aproximação com a concepção do simbólico em Jung – e isso de fato acontece, apesar de Winnicott não perceber ou não reconhecer: veja-se WINNICOTT, D.W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, especialmente capítulos IV e V. Explorando a noção de “fantasiar” em um texto de Freud de 1911, Winnicott encaminha-se (inadvertidamente?) na direção de Jung, chegando mesmo, em uma intervenção clínica que ele mesmo narra, a reconhecer (involuntariamente?) a realidade da anima (cf. op. cit., 103-120). Também a distinção winnicotiana entre falso e verdadeiro self encontra precedentes paralelos na psicologia de Jung. Uma vez que a noção de símbolo integra, como mostramos, a real originalidade em psicologia da perspectiva de Jung, é conveniente passarmos em revista os seus caracteres distintivos, a começar pela definição mesma dessa noção. Para Jung, símbolo é definido como “a melhor formulação possível de algo relativamente desconhecido, não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica”.239 E ele acrescenta a distinção entre “símbolo vivo” e “símbolo morto”: “Enquanto um símbolo for vivo, é a melhor expressão de alguma coisa. E só é vivo enquanto cheio de significado. Mas, uma vez brotado o sentido dele, isto é, encontrada aquela expressão que formula melhor a coisa procurada, esperada ou pressentida do que o símbolo até então empregado, o símbolo estará morto, isto é, só terá ainda significado histórico.”240 Entendido como “síntese tensional” de opostos, o símbolo vivo caracteriza-se por sua plurivocidade semântica inesgotável e por sua ambigüidade constitutiva, que vetam qualquer formulação unívoca de sentido, bem como uma interpretação que venha exaurir a sua potência de produção ilimitada de significados.241 A natureza simbólica de algo depende em parte da atitude da consciência que observa o fenômeno dado242, e em parte do “comportamento das coisas”. Jung reconhece que há processos que não têm sentido simbólico algum, sendo mera conseqüência ou sintoma, e portanto devendo ser interpretados semioticamente; mas há também processos que não derivam simplesmente de algo, trazem em si um sentido oculto e pressionam na direção de uma expressão simbólica, em sentido próprio. Donde caber ao bom senso e ao espírito crítico o discernimento da natureza simbólica ou então sintomática de alguma coisa.243 239 OC VI, § 904. 240 OC VI, § 905. 241 Cf. OC IX-1, § 80. Cabe observar aqui que a inesgotabilidade de sentido está de certo modo contemplada na semiótica freudiana a partir da proposição da “sobredeterminação” e da correspondente “super-interpretação” dos produtos do inconsciente. A diferença está em que, pelo menos em tese, tudo o que determina o símbolo-sintoma poderia ser reconduzido à univocidade de significado resultante da interpretação psicanalítica, enquanto que na perspectiva simbólica junguiana, em tese, em si mesmo o sentido do símbolo não poderia ser definitivamente interpretado, por transcender radicalmente – isto é, em sua raiz - a própria razão que interpreta e a expressão particular que assume em um dado contexto. Percebe-se nesse ponto a têmpera iluminista de Freud, ao passo que Jung, nolens volens, inclina-se mais fortemente na direção da tradição romântica, como mostraremos no último capítulo. 242 “Depende da atitude da consciência que observa se alguma coisa é símbolo ou não”.(OC VI, § 907) “Para desvendar seu caráter simbólico [i.é., dos sonhos], é necessária uma disposição consciente bem específica, a saber, a vontade de entender o conteúdo do sonho como simbólico.” (OC X, § 29). “Portanto, o inconsciente só terá para nós uma função criadora de símbolos se estivermos dispostos a reconhecer nele um elemento simbólico. Os produtos do inconsciente são pura natureza. A natureza não é por si só um guia, pois não existe em função do homem. (...) Pode-se usar o inconsciente como fonte dos símbolos, mas com a necessária correção consciente que, aliás, temos que aplicar a todo fenômeno natural, para que possa servir aos nossos objetivos.” OC X, § 34. 243 Cf. OC VI, § 911. A esta característica do símbolo na concepção junguiana Paolo Francesco Pieri dá o nome de “decisionalidade”, mas observa que “não se pode falar tout court de uma decisão racional de Por outro lado, sendo um produto psíquico complexo composto de dados de todas as funções psíquicas, tanto racionais quanto irracionais, o símbolo expressa sempre, em alguma medida, um aspecto da totalidade psíquica244. Inversamente, na medida em que essa totalidade escapa à apreensão direta, ela só pode se formular simbolicamente. O símbolo, para Jung, reúne o superior e o inferior, nasce das mais altas realizações espirituais do ser humano mas, por “conter as razões mais profundas de seu ser”, provém também das suas “moções mais inferiores e mais primitivas”.245 Assim, o símbolo aparece como uma coniunctio oppositorum, que supera dialeticamente o estado de “desunião fortíssima consigo mesmo”, e nisso radica o seu efeito terapêutico e “libertador”.246 Desta forma, a divergência teórica em torno à questão do símbolo desemboca em uma concepção terapêutica distinta da proposta pela psicanálise freudiana. Se o “símbolo” é meramente sintoma de um desacordo interno, e como tal constitui-se como disfarce que permite a expressão e realização da parte censurada ou recalcada, a sua interpretação “semiótica” justifica-se plenamente como forma de trazer à consciência o próprio conflito, levando o eu a se reconhecer em ambas as partes da oposição. Essa a função do momento “redutivo” – seja freudiano, seja adleriano – que é assumido positivamente na concepção ampliada da psyches therapeia junguiana. Contudo, esse momento deixa sem solução aquela mesma oposição, que não pode ser ultrapassada por qualquer artifício de técnica ou por um ato de vontade da consciência. Eis o que, por outro lado, justifica o momento “construtivo” ou sintético próprio do “método interpretar simbolicamente”, justamente porque a contrapartida da atitude simbólica da consciência encontra-se na própria imagem, que legitima aquela decisão – e aqui Pieri fala da “indicatividade” do símbolo, concluindo: “no plano semântico, o símbolo nunca pode ser traduzido em um significado circunscrito a não ser com a perda, no plano pragmático, da sua ação dirigida a suscitar significados.” Cf. PIERI, P.F. Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus, 2002, verbete “símbolo”. 244 “O símbolo é sempre um produto de natureza altamente complexa, pois se compõe de dados de todas as funções psíquicas. Portanto, não é de natureza racional e nem irracional. Possui um lado que fala à razão e outro inacessível à razão, pois não se constitui apenas de dados racionais mas também de dados irracionais fornecidos pela simples percepção interna e externa. A carga de pressentimento e de significado contida no símbolo afeta tanto o pensamento quanto o sentimento, e a plasticidade que lhe é peculiar, quando apresentada de modo perceptível aos sentidos, [provoca tanto a sensação como a intuição].” OC VI, § 912. 245 Cf. OC VI, § 912. 246 Cf. OC VI, § 912: “Para que esta colaboração dos estados opostos seja possível, ambos têm que estar conscientemente lado a lado em plena oposição. Este estado tem que ser uma desunião fortíssima consigo mesmo, de tal forma que tese e antítese se neguem e que o eu tenha que reconhecer sua participação absoluta em ambas. Se houver subordinação de uma das partes, o símbolo será principalmente produto da outra parte e será, na mesma proporção, menos símbolo do que sintoma, isto é, sintoma de uma antítese oprimida. Porém, na medida em que um símbolo é mero sintoma, também lhe falta o efeito libertador, pois não exprime o pleno direito à existência de todas as partes da psique, mas lembra a opressão da antítese, mesmo que a consciência não se dê conta disso.” hermenêutico” proposto por Jung, que acompanha o processo simbólico definido como uma vivência na imagem e da imagem.247 A capacidade “libertadora” do símbolo resulta de seu estatuto de mediação entre opostos, possibilitando a transição de um determinado estado psíquico a outro. O símbolo brota da natureza compensatória da auto-regulação da psique. Não sendo uma invenção da consciência, ele se origina de um movimento inconsciente compensatório à unilateralidade consciente.248 A compensação simbolicamente apresentada aponta, desse modo, para uma posição possível que consegue reconciliar os opostos numa unidade superior que abarca o inconsciente e a consciência.249 A transformação propiciada pelo símbolo, ao mesmo tempo em que soluciona um conflito, resulta numa ampliação da personalidade existente, sendo pois construtiva.250 Assim, o processo simbólico, vivido na dimensão temporal, encadeando-se numa série de transformações sucessivas, ordena-se pela totalidade pessoal. Se nem todo símbolo é imediatamente símbolo dessa totalidade, por outro lado é permitido afirmar que no fundo do dinamismo simbólico ela rege todo símbolo particular, na medida em que cada reconciliação simbólica de opostos é um momento constitutivo da realização efetiva da totalidade pessoal.251 247OC IX-1, § 82: “O processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem. (...) É óbvio que a riqueza dos símbolos oscila extraordinariamente. Tudo, no entanto, é vivenciado numa forma imagética, isto é, simbolicamente, não se tratando porém de perigos fictícios, mas de riscos muito reais, dos quais pode depender todo um destino. O perigo principal é sucumbir à influência fascinante dos arquétipos, o que pode acontecer mais facilmente quando as imagens arquetípicas não são conscientizadas.” O processo simbólico encontra expressão original na técnica da “imaginação ativa”, desenvolvida por Jung em seu confronto com o inconsciente na década de 1910 e que não tem qualquer correspondência na psicanálise ortodoxa. Veremos em seguida como do enraizamento do símbolo no arquétipo resulta a sua realidade-efetividade (Wirklichkeit). 248 “Não é possível inventar símbolos e, onde quer que apareçam, nunca são produzidos por intenção consciente e por escolha da vontade. Se tivéssemos adotado tal procedimento, nada mais teriam sido do que sinais e abreviações de pensamentos conscientes. Os símbolos [ocorrem a nós] espontaneamente, como podemos ver em nossos sonhos, que não são [inventados] por nós, mas acontecem.” OC XVIII, § 432. 249 “Pela atividade do inconsciente emerge novo conteúdo, constelado igualmente pela tese e antítese, e que se comporta compensatoriamente para com ambas. Uma vez que este conteúdo apresenta uma relação tanto com a tese quanto com a antítese, forma uma base intermédia onde os opostos podem unificar-se.” OC VI, § 914. Jung denomina “função transcendente” a este processo simbólico, entendendo por “transcendente” a capacidade própria do símbolo de criar uma passagem de uma posição ou atitude a outra, integrando os opostos até então irreconciliados no conflito. Cf. OC VI, § 908; cf. também OC VIII, §§ 131-193. Por isso, na visão de Jung o símbolo é o tertium datur entre dois opostos. Gilbert Durand observa que a “síntese” dos opostos no símbolo junguiano é mais um “sistema”, no sentido da lógica do físico Stéphane Lupasco, na medida em que as polaridades antagonistas são mantidas intactas no símbolo, não perdendo sua potencialidade de contradição. Cf. DURAND, A Imaginação Simbólica, p. 64 nota 20. 250 Não é casual o fato de o livro que sela a ruptura com Freud trazer em seu título a referência à capacidade transformadora do símbolo: Wandlungen und Symbole der Libido, posteriormente revisto e renomeado como Symbole der Wandlung. O novo conceito de “libido”, introduzido por Jung em 1912, já trazia embutida a mudança de perspectiva que analisamos aqui: assim como o símbolo em Jung difere do signo freudiano, a transformação que ele proporciona não pode ser reduzida à “sublimação” psicanalítica. 251 Ao contrário de muitos de seus entusiasmados seguidores, Jung sobriamente reconhece que essa realização efetiva da totalidade humana é muito relativa, limitada pela condição mortal ou finitude do ser Por fim, podemos afirmar que subjacente à concepção de símbolo em Jung encontramos uma concepção antropológica que difere significativamente da concepção implícita na psicanálise freudiana. Desse modo, aquela ruptura, que marcou a história da psicanálise, expressa a oposição não conciliada de duas perspectivas sobre o ser humano.252 A diferença a respeito da noção de símbolo compreende-se, portanto, em chave antropológica, o que significa dizer que, até aqui, o discurso sobre o símbolo e o sentido poderia se inscrever adequadamente no interior do espaço teórico constituído pela mentalidade moderna. Contudo, a antropologia psicológica de Jung não se encerra nos horizontes ampliados da subjetividade, dilatados pela experiência psicanalítica para acolher a relação dialética entre consciência e inconsciente, e por isso o próprio estatuto do simbolismo vai ultrapassar o círculo férreo do Cogito moderno, e assim apontar para as antigas estruturas que sustentavam o “espaço hermenêutico”. 4. Para além da redução antropológica O estudo comparativo de tradições simbólicas separadas no espaço e no tempo comprova a existência de uma universalidade de temas e motivos, a qual não pode ser explicada satisfatoriamente pela hipótese de uma transmissão ou difusão cultural de humano. Cf. Cartas III, 11/05/1956, a Rudolf Jung. A mesma humana sobriedade transparece em uma passagem de uma carta escrita aos 79 anos a Aniela Jaffé: “Eu me observo na tranqüilidade de Bollingen e, com toda a minha experiência de quase oito décadas, devo admitir que não encontrei uma resposta satisfatória para mim mesmo. Estou agora, como [antes], em dúvida sobre mim mesmo, e tanto mais quando procuro dizer algo definitivo. É como se [a familiaridade consigo mesmo nos alienasse ainda mais de nós mesmos].” Cartas II, 6/4/1954, a Aniela Jaffé. 252 Oposição que, encarada a partir da perspectiva de Jung, é antes uma suprassunção, que pode ser verificada na sua posição a respeito do princípio de Eros, que desmente a suposta - e falsa – desvalorização e desconsideração da sexualidade na psicologia analítica: “[Eros] por um lado, pertence à natureza primitiva e animal do homem e existirá enquanto o homem tiver um corpo animal. Por [outro] lado, está ligado às mais altas formas do espírito. [Mas] só floresce quando espírito e instinto estão em [correta] harmonia. (...) O excesso de animalidade deforma o homem cultural; o excesso de cultura cria animais doentes.” OC VII, § 32. Na mesma passagem Jung subscreve a posição de Platão a respeito de Eros, citando o Banquete. Podemos referendar essa subscrição: “Eros tem uma importância fundamental no pensamento de Platão, como sendo a única forma de experiência que conjuga as duas naturezas do homem, o Eu divino e a fera enjaulada. Porque Eros está francamente enraizado naquilo que o homem partilha com os animais, o impulso psicológico do sexo (um fato que infelizmente é obscurecido pelo abuso moderno e persistente da expressão ‘amor platônico’); no entanto, Eros também substitui o impulso dinâmico que conduz a alma em direção à procura de uma satisfação que transcenda a experiência terrestre. Assim, abarca todo o âmbito da personalidade humana e constrói a ponte empírica entre o homem tal como é e o homem como devia ser.” DODDS,E.R. Os Gregos e o Irracional. Lisboa: Gradiva, 1988, p. 235-236. À luz da divergência com Jung aqui examinada, a aproximação que Dodds sugere entre a concepção platônica e “o princípio freudiano da libido e da sublimação” (ibid.) mostra-se apressada e equivocada. uma sociedade a outra, sendo necessário radicá-la na regularidade e constância do espírito humano, que vive sempre e em toda parte algumas situações fundamentais e as expressa por meio de símbolos estruturalmente semelhantes. Sob o prisma psicológico, Jung vai explicar essa universalidade do simbolismo, corroborada na prática clínica, postulando a existência de estruturas invariantes da imaginação inconsciente, a que ele dará o nome de arquétipos, que em seu conjunto compõem o inconsciente coletivo. Estas duas noções correlatas tornaram-se uma espécie de identificador da psicologia analítica para o público culto, tendo além disso extrapolado o campo em que foram originariamente formuladas e se tornado patrimônio da cultura do século XX. Uma vez que os símbolos se enraizam nessas estruturas arquetípicas da psique humana, é necessário examinar as conseqüências que advêm para o estatuto do simbolismo da sua fundamentação nos “arquétipos do inconsciente coletivo”. Em primeiro lugar, é preciso notar que os arquétipos são inferidos por Jung a partir do exame dos símbolos. Isto significa que não existe uma experiência ou conhecimento imediatos dos arquétipos, mas apenas uma experiência e conhecimento através das imagens simbólicas – pois, como dissemos anteriormente, o processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem.253 Logo, estabelece-se entre o 253 Convém observar, porém, que do ponto de vista psicológico as imagens não são inofensivas representações mentais, meras “cópias da sensação”, mas fatores dinâmicos indissociáveis das forças profundas que compõem a afetividade humana, as quais, como bem se sabe, podem destruir uma vida, ou, no plano ampliado da escala social, levar milhões de pessoas, por exemplo, a marchar fascinadas por uma suástica e promover carnificinas e monstruosidades que põem em xeque a por vezes orgulhosa definição do homem como animal racional. Falando de sua crise pessoal, na qual esteve próximo da loucura, Jung relembra o risco e o caráter dramático da “vivência na imagem e da imagem”: “Na medida em que conseguia traduzir as emoções em imagens, isto é, ao encontrar as imagens que se ocultavam nas emoções, eu readquiria a paz interior. Se tivesse permanecido no plano da emoção, possivelmente eu teria sido dilacerado pelos conteúdos do inconsciente. Ou, talvez, se os tivesse reprimido, seria fatalmente vítima de uma neurose e os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do mesmo modo. Minha experiência ensinou-me o quanto é salutar, do ponto de vista terapêutico, tornar conscientes as imagens que residem por detrás das emoções.” (JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 158.) A propósito, cabe lembrar que, para Gilbert Durand, seguindo Jung e Cassirer, a “vivência na imagem e da imagem” nos estados psicopatológicos corresponde a uma degradação e a uma mutilação da imagem, provenientes de uma deficiência da função simbólica, “fazendo o princípio de individuação submergir de duas maneiras: a primeira – como nos ‘casos’ estudados pela psicanálise – pela dominação dos impulsos instintivos, que não conseguem mais ‘simbolizar’ conscientemente a energia que os anima, e então o indivíduo, em vez de se personalizar, se isola do mundo real (autismo) e assume uma atitude anti-social, impulsiva e compulsiva; a segunda, nos casos menos estudados, mas mais insidiosos, o equilíbrio é rompido em favor da consciência clara, e então se assiste a um duplo processo de liqüidação – muito freqüente e até mesmo endêmico em nossas sociedades hiper-racionalistas – liqüidação do símbolo que se estreita em signo, liqüidação da pessoa e da sua energia constitutiva metamorfoseada em um robô mecânico animada apenas pelas ‘razões’ do consciente social estabelecido.” DURAND, A Imaginação Simbólica, p. 62-63. Por onde se vê o alcance e o sentido social e cultural do projeto de recuperação da sensibilidade simbólica constitutivo da psyches therapeia junguiana. Sobre essa dimensão sócio-cultural, veja-se o ensaio Presente e Futuro, escrito em 1957, in OC X. símbolo manifesto e o arquétipo inferido uma relação de representação (Vorstellung) – o símbolo representa ou “epifaniza” o arquétipo que, em si, permanece irrepresentável, e portanto incognoscível.254 Esta distinção entre o arquétipo em si e a imagem arquetípica repropõe, refratado em âmbito psicológico, o esquema platônico do modelo-arquétipo supra- sensível e de sua imagem sensível.255 Ainda que redirecionada, a princípio, conforme a antroponomia do regime mental moderno, essa distinção preserva uma inegável marca metafísica, razão pela qual será questionada e abandonada em alguns meios pós- junguianos críticos, mais alinhados com as tendências anti-metafísicas do pensamento contemporâneo.256 Jung reivindica a filiação kantiana para sua concepção dos arquétipos do inconsciente coletivo, afirmando que eles estão para a imaginação simbólica assim como as categorias de Kant estão para o entendimento.257 Assim, ele pode afirmar que “A rigor, o inconsciente coletivo nem existe, pois nada mais é do que uma possibilidade, ou seja, aquela possibilidade que nos foi legada desde os tempos 254 “Não devemos confundir as representações arquetípicas que nos são transmitidas pelo inconsciente com o arquétipo em si. Essas representações são estruturas amplamente variadas que nos remetem para uma forma básica irrepresentável que se caracteriza por certos elementos formais e determinados significados fundamentais, os quais, entretanto, só podem ser apreendidos de maneira aproximativa. O arquétipo em si é um fator psicóide que pertence, por assim dizer, à parte invisível e ultra-violeta do espectro psíquico. Em si, parece que o arquétipo não é capaz de atingir a consciência.” OC VIII, § 417. A respeito do uso por Jung e das dificuldades de tradução para o inglês dos termos Vorstellung e Idee, cf. Cartas III, 15/08/1958, a Richard F.C. Hull (tradutor oficial das Collected Works de Jung). 255 Jung textualmente compara sua concepção de arquétipo à tradição filosófica platônica: “Platão confere um valor extraordinariamente elevado aos arquétipos como idéias metafísicas, como paradeigmata, em relação aos quais as coisas reais se comportam meramente como mimesis, como imitações, cópias. Como bem se sabe, a filosofia medieval desde Agostinho – do qual tomei emprestado a idéia de arquétipo – até Malebranche e Bacon ainda se encontra em terreno platônico, sob este aspecto, embora na Escolástica já desponte a noção de que os arquétipos são imagens naturais gravadas no espírito humano, e com base nas quais este forma os seus juízos.” OC VIII, § 275. A seguir, Jung aponta a redução antropológico-crítica moderna dos arquétipos platônicos: “A partir de Descartes e Malebranche, porém, o valor metafísico da idéia, do arquétipo, declina sensivelmente. Torna-se um ‘pensamento’, uma condição interna do conhecimento, como o diz claramente Spinoza (...) Finalmente Kant reduz os arquétipos a um [limitado] número de categorias da razão. Schopenhauer vai mais longe ainda no processo de simplificação, embora ao mesmo tempo volte a conferir um valor quase platônico aos arquétipos.” Ibid., § 276. 256 Notadamente na “psicologia arquetípica” encabeçada por James Hillman, e no “junguianismo crítico” de Mario Trevi. 257 Por exemplo, em OC X, § 14: “Mas não se deve confundir fantasias mitológicas com idéias hereditárias. Não se trata disso, mas sim de possibilidades inatas de idéias, condições a priori de produzir fantasias, comparáveis talvez às categorias de KANT. As condições inatas não geram conteúdos mas conferem determinadas configurações aos conteúdos adquiridos. Essas condições universais (...) são a causa da semelhança dos símbolos e dos motivos mitológicos”. É isto que permite a Gilbert Durand, ao termo de seu levantamento das “estruturas antropológicas do imaginário” – que é um ensaio de “arquetipologia geral” – propor o esboço de uma “fantástica transcendental”. Cf. DURAND, G. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Introdução à Arquetipologia Geral. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 375-434. primitivos na forma de imagens mnemônicas ou, falando em linguagem anatômica, dentro da estrutura cerebral. Idéias inatas não existem; existem possibilidades inatas de idéias que colocam determinados limites também às mais ousadas fantasias, colocam categorias, por assim dizer, à capacidade de fantasiar, colocam certas [formas] a priori, cuja existência não se pode afirmar sem a experiência. Elas só aparecem na matéria formada como princípios reguladores de sua formação”.258 E no entanto, o kantismo, manifesto ou aparente, só contempla a dimensão teórico-epistemológica da psicologia analítica de modo parcial e questionável. Pois, por outro lado, não é casual nem destituído de conseqüências o fato de Jung empregar a “linguagem anatômica” ao se referir aos arquétipos. Se, sob um ângulo epistemológico, eles se comportam como formas vazias, destituídas de conteúdo259, dadas a priori como condição de possibilidade de toda constelação simbólica, sendo portanto comparáveis analogicamente às categorias kantianas, do ponto de vista empírico e dinâmico Jung vai insistir em que eles são realidades vivas, enraizados na estrutura corporal humana, homologáveis aos instintos, comportando-se como forças concretas em operação na psique – e com isso a analogia com Kant já não se sustenta. Como nota Paolo Francesco Pieri, esta oscilação do estatuto teórico do arquétipo em Jung confere-lhe uma ambivalência que faz com que ele seja concebido, de um lado, como um “operador simbólico”, e de outro como um “fundamento objetivo”.260 É importante notar que o enraizamento corporal dos arquétipos estabelece uma continuidade entre a psique humana e a natureza em sua materialidade. Tal continuidade afetará, por conseguinte, o estatuto dos símbolos, que se fundamentam na base arquetípica da mesma psique: a simbolização humana é inseparável da corporalidade. Jung deixa bem claro esse ponto: 258 OC XV, § 126. (Aqui “idéias” traduz “Vorstellungen” e “forma” traduz “Idee”.) 259 “Devemos ressaltar mais uma vez que os arquétipos são determinados apenas quanto à forma e não quanto ao conteúdo (...) Uma imagem primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo no caso de tornar-se consciente e portanto preenchida com o material da experiência consciente. (...) O arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade [de representação que é] dada a priori.” OC IX-1, § 155. 260 Cf. PIERI, Dicionário Junguiano, verbete “arquétipo” (p. 46). Na verdade, Jung amadurece gradualmente sua reflexão sobre a natureza do arquétipo até apresentar, no encontro de Eranos em 1946, o resultado acabado de suas concepções na conferência intitulada Der Geist der Psychologie, posteriormente publicada nas obras reunidas sob o título Considerações Teóricas sobre a Natureza do Psíquico. Nesse ensaio fundamental, as relações entre arquétipo e instinto são tratadas demoradamente. Trataremos mais detalhadamente da relação entre a epistemologia de Jung e Kant no capítulo quarto. “No campo da medicina, as fantasias são coisas reais (...) Em última análise, o corpo humano também é constituído da matéria do mundo e é nela que as fantasias se tornam manifestas; sim, sem ela as ‘fantasias’ não podem ser experienciadas. Sem matéria, elas seriam mais ou menos como grades abstratas de cristal dentro de uma solução de lixívia em que o processo de cristalização ainda não começou. Os símbolos do si-mesmo surgem na profundeza do corpo e expressam a sua materialidade tanto quanto a estrutura da consciência discriminadora. O símbolo é o corpo vivo, corpus et anima (...) A singularidade da psique é uma grandeza em vias de realização, nunca de um modo total, mas aproximativo, a qual é ao mesmo tempo o fundamento imprescindível de toda consciência. As ‘camadas’ mais profundas da psique vão perdendo com a escuridão e [profundidade] crescentes a singularidade individual. Quanto mais ‘baixas’, isto é, com a aproximação dos sistemas funcionais autônomos, tornam-se gradativamente mais coletivas, a fim de se universalizarem e ao mesmo tempo se extingüirem na materialidade do corpo, isto é, nas substâncias químicas. O carbono do corpo é simplesmente carbono. Em seu nível ‘mais baixo’ a psique é pois simplesmente ‘mundo’.”261 Essa passagem, tomada fora de seu contexto, poderia ser lida como uma expressão de um materialismo mecanicista inconfessado. No entanto, o que surpreende nesse aparente materialismo é que ele tomará a direção inversa do materialismo científico tradicional: ao invés de reduzir o psiquismo a um epifenômeno da matéria, Jung percorre a continuidade psique-mundo para propor a hipótese de um fundamento objetivo do sentido que é formulado nos símbolos humanos, vale dizer, um fundamento que transcende a esfera da subjetividade.262 Esta proposição arrojada representa o termo de uma evolução no pensamento de Jung. Pois, dada a correlação psique-símbolo-sentido, poder-se-ia pensar que em Jung encontramos apenas uma versão da concepção subjetivista do símbolo e do sentido, inscrita no espaço teórico da redução antropológica moderna. E, de fato, é daí que ele parte, com sua cautela crítica. Num texto de 1929, época em que Jung já meditava sobre a possibilidade que conduziria à hipótese de um sentido objetivo, ele ainda se perguntava: 261 OC IX-1, §§ 290-291. Esta é a base para a concepção da materialidade da imaginação criadora em Gaston Bachelard, que se alimenta consideravelmente da psicologia de Jung. A este respeito, permitimo- nos remeter ao nosso estudo A Imaginação Criadora na Poética de Gaston Bachelard (Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 1994), onde demonstramos que a dimensão cosmológica da imaginação criadora bachelardiana apoia-se na noção junguiana de inconsciente. 262 Observe-se, contudo, que Jung, a partir de seu ceticismo epistêmico, que explicitaremos no último capítulo, toma suas distâncias tanto do materialismo quanto do espiritualismo, considerando ambos como expressões de formas arquetípicas opostas da psique humana, valorizadas diferentemente conforme as inflexões históricas do Zeitgeist. Cf. OC VIII, §§ 651-661. Para uma boa exposição acerca da posição de Jung com relação ao materialismo, consulte-se PIERI, P.F. Dicionário Junguiano, verbete “materialismo”. A crítica à ousadia metafísica da hipótese materialista, que reduz processos anímicos complexos a processos físico-químicos (cf. OC IX-1, §§ 117-118), é fundamental na abertura do espaço teórico para uma psicologia autônoma (isto é, distinta da biologia), que trabalha com a hipótese de que o fator anímico é “uma realidade autônoma de caráter enigmático” (ibid.). “Pode acontecer que uma coisa ou um fato tenha um significado em si? A única coisa certa é que quem interpreta, ou quem dá o significado, é sempre o homem. Por ora, isso é essencial à psicologia.” 263 Todavia, não é aí que a experiência de Jung se detém. Meditando sobre certos fenômenos “relativamente raros”, em que se tornava patente a coincidência significativa entre um evento subjetivo, psíquico, e um acontecimento externo, físico, sem que qualquer conexão causal entre ambos pudesse ser indicada ou mesmo cogitada, Jung se vê forçado a mirar para além da subjetividade, e propor a sua hipótese da sincronicidade.264 Ao tratar da causalidade, Jung atém-se ao sentido empírico dessa noção. Fiel ao seu criticismo epistemológico, ele se abstém de considerar a causalidade em sentido metafísico, pois esta não poderia ser estabelecida nem pela experiência nem pela reflexão filosófica. Assim, a relação causal empiricamente entendida pressupõe necessariamente as categorias de espaço e tempo.265 É por contraponto a esta forma empírica e mecanicista de causalidade que Jung propõe o princípio explicativo da sincronicidade, que ele define como a “coincidência, no tempo, de dois ou vários eventos, sem relação causal mas com o mesmo conteúdo significativo.”266 Note-se que a ênfase é posta na coincidência de sentido ou equivalência entre eventos psíquicos e eventos físicos, com a condição ulterior de que uma conexão causal seria impensável. Assim, a noção de sincronicidade pretende ser um princípio explicativo de certas 263 OC XVI, § 93. 264 Cf. o ensaio publicado em 1952, sob o título Synchronizität als ein Prinzip akausaler Zusammenhänge, integrando posteriormente o volume VIII das Collected Works. Um excelente estudo crítico sobre o tema, que mostra a sua vinculação à problemática filosófica da intuição intelectual, encontra-se em BISHOP, P. Synchronicity and Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung. Lewiston: Edwin Mellen Press, 2000. 265 “A causalidade está ligada à existência do espaço e do tempo e às mudanças físicas do corpo, pois consiste essencialmente em uma sucessão de causas e efeitos.” OC VIII, § 855. 266 OC VIII, § 849. Nessa mesma passagem Jung diferencia a sincronicidade do mero “sincronismo”, que é apenas a ocorrência simultânea de dois fenômenos, sem que haja a coincidência de conteúdos significativos. conexões entre eventos, independente e complementar ao princípio da causalidade, e a ele equivalente.267 Jung insiste em que sua hipótese da sincronicidade não se baseia em “pressupostos filosóficos”, mas sim “na experiência concreta e na experimentação”.268 Aqui ele se refere, por um lado, aos “fenômenos relativamente raros” da precognição, da clarividência, da telepatia, dos sonhos premonitórios, e por outro à experimentação de J.B.Rhine sobre a “percepção extra-sensorial”. Descrevendo os fenômenos sincronísticos de forma geral, Jung afirma que eles se constituem de dois fatores: “1) uma imagem inconsciente alcança a consciência de maneira direta (literalmente) ou indireta (simbolizada ou sugerida) sob a forma de um sonho, associação ou premonição; 2) uma situação objetiva coincide com este conteúdo.”269 Do lado subjetivo ou psíquico, os eventos sincronísticos radicam-se portanto no inconsciente. Além disso, Jung observa que, via de regra, eles estão ligados à afetividade, a qual repousa sobre os instintos, que por sua vez têm os arquétipos como “aspecto formal”, donde se conclui que a sincronicidade tem um fundamento arquetípico.270 267 Sobre a justificação para introduzir o princípio da sincronicidade, Jung diz: “As coincidências significativas são pensáveis como puro acaso. Mas, quanto mais elas se multiplicam, [quanto] maior e mais exata é a [correspondência], tanto mais diminui sua probabilidade e mais aumenta sua impensabilidade, [até que] não se pode mais considerá-las como mero acaso, mas, por não terem explicação causal, devem ser [pensadas] como arranjos que têm sentido. Sua ‘inexplicabilidade’, como já frisei, não é devida [ao fato de que sua causa é desconhecida], mas ao fato de que [uma causa nem sequer é pensável em termos intelectuais]. Isto acontece necessariamente quando o espaço e o tempo perdem o seu significado [ou] quando se tornam relativos, porque, em tais circunstâncias, a causalidade, que pressupõe o espaço e o tempo, torna-se quase impossível de ser determinada ou é simplesmente impensável.” OC VIII, § 957. Um dos instrumentos utilizados por Jung para desqualificar a explicação por “puro acaso” em situações onde uma relação causal se torna impensável é o cálculo estatístico, que pode demonstrar a extrema improbabilidade de certos acasos e assim abrir caminho para a plausibilidade de uma explicação pelo princípio da sincronicidade. 268 Cf. OC VIII, § 985. 269 OC VIII, § 858. Jung também compreende segundo a noção de sincronicidade a coincidência não causalmente determinável entre estados psíquicos discretos (isto é, em pessoas diferentes). Cf., por exemplo, OC XV, § 81. 270 Cf. OC VIII, § 846. “Os casos de coincidências significativas, que devemos distinguir dos grupos casuais, parecem repousar sobre fundamentos arquetípicos. Pelo menos os casos de minha experiência – e são em grande número – apresentam esta característica.”(ibid.) “As potências ativas (numinosas) do inconsciente são os arquétipos. Na grande maioria dos fenômenos espontâneos de sincronicidade que eu tive ocasião de observar e analisar percebia-se facilmente que havia uma ligação direta com um arquétipo. Este, em si, é um fator psicóide irrepresentável do inconsciente coletivo.” OC VIII, § 902. Em outra passagem, Jung explica o que deve entender-se aqui por fundamento: “a expressão ‘estar na base de’, apesar de suas conotações causalistas, não se refere a nada de causal, mas a uma qualidade existente que expressa simplesmente aquilo que ela é, e não outra coisa, ou seja, uma contingência irredutível Do lado objetivo ou físico, a hipótese da sincronicidade exige a indicação de uma estrutura análoga à do fundamento arquetípico e a ele correspondente – no sentido da antiga teoria da correspondentia, que Jung explicitamente vincula a sua idéia, dizendo que “a sincronicidade é uma diferenciação moderna dos conceitos obsoletos de correspondência, simpatia e harmonia.”271 Esse fundamento comum às duas ordens – a física e a psíquica – será, para Jung , o número: “Desde épocas remotas, o homem serviu-se de números para determinar as coincidências significativas, isto é, as coincidências que podem ser interpretadas. O número é algo de especial – poderíamos mesmo dizer misterioso. (...) Embora eu não tenha a pretensão de dizer algo de esclarecedor sobre a relação íntima entre dois objetos tão aparentemente incomensuráveis entre si como a sincronicidade e o número, contudo não posso deixar de acentuar que eles não somente foram sempre relacionados entre si, mas que ambos têm igualmente a numinosidade e o mistério como características comuns. O número sempre foi usado para caracterizar qualquer objeto numinoso (...). O número nos ajuda, antes e acima de tudo, a pôr ordem no caos das aparências. É o instrumento indicado para criar a ordem ou para apreender uma certa regularidade já presente, mas ainda desconhecida, isto é, um certo ordenamento entre as coisas. É o elemento ordenador mais primitivo do espírito humano (...). A hipótese de que o número tem um fundo arquetípico não parte de mim, mas de certos matemáticos (...). Por isso não é absolutamente uma conclusão tão ousada definirmos o número como um arquétipo da ordem que se tornou consciente. Fato notável é que as imagens psíquicas da totalidade, produzidas espontaneamente pelo inconsciente, ou os símbolos do Si- mesmo, expressos em forma mandálica, possuem estrutura matemática. (...) Essas estruturas não exprimem somente a ordem, como a criam também. (...) Daqui se deduz incontestavelmente que o inconsciente emprega o número como fator ordenador.” 272 Em um parágrafo que só consta da edição anglo-americana de suas obras, Jung aponta para o lado objetivo do número. Vale a pena citá-lo na íntegra, dado o caráter crucial desse ponto para a compreensão plena da hipótese da sincronicidade: “Geralmente se crê que os números foram inventados ou pensados pelo homem, e portanto não são nada mais que conceitos de quantidades, não contendo nada que não tenha sido previamente neles colocado pelo intelecto humano. Mas é igualmente possível que os números tenham sido encontrados ou descobertos. Nesse caso, eles não são somente conceitos mas algo mais – entidades autônomas que de alguma forma em si mesma. A coincidência significativa ou equivalência de um estado psíquico [e um estado físico] que não [têm] nenhuma relação causal recíproca significa, em termos gerais, que é uma modalidade sem causa, uma organização acausal.” OC VIII, § 955. 271 OC VIII, § 985. Jung dedica uma seção de seu ensaio para arrolar os “precursores da idéia de sincronicidade”, começando por Lao Tse e Chuang Tzu, passando por Hipócrates, Platão, Fílon de Alexandria, Teofrasto, Plotino, Pico Della Mirandola, os alquimistas medievais, Paracelso, e chegando a Kepler, Leibniz e Schopenhauer (a quem ele chama de “padrinho” de sua concepção, cf. § 828.) 272 OC VIII, § 870. contêm mais do que apenas quantidades. Ao contrário dos conceitos, eles são baseados não em quaisquer condições psíquicas mas na qualidade de serem eles mesmos, em um ser-assim que não pode ser expresso por um conceito intelectual. Sob essas condições eles podem facilmente ser dotados de qualidades que ainda têm de ser descobertas. Devo confessar que me inclino para a visão de que os números foram tanto encontrados quanto inventados, e que por conseguinte eles possuem uma autonomia relativa análoga àquela dos arquétipos. Eles teriam então em comum com estes últimos a qualidade de serem preexistentes à consciência, e portanto, ocasionalmente, de condicioná-la mais do que por ela serem condicionados. Também os arquétipos, como formas a priori de representação, são tanto encontrados quanto inventados: são encontrados na medida em que não se sabia de sua existência autônoma inconsciente, e inventados na medida em que sua presença foi inferida de estruturas representacionais análogas. Em consonância a isso, pareceria que os números têm um caráter arquetípico. Se assim for, então não apenas certos números e combinações de números teriam uma relação e um efeito sobre certos arquétipos, mas também o inverso seria verdadeiro. O primeiro caso é equivalente à magia dos números, mas o segundo é equivalente a investigar se os números, em conjunção com as combinações de arquétipos encontradas na astrologia, mostrariam uma tendência a se comportar de um modo especial.”273 O que se pode perceber é que Jung sugere um possível fundamento matemático e arquetípico para os fenômenos sincronísticos. Na verdade, ele discutiu essa possibilidade com alguns matemáticos de sua época, e verificou que ela era defendida por “certos matemáticos” – mas não por todos, evidentemente.274 De qualquer forma, essa possível fundamentação implica uma retomada, em pleno regime mental moderno, de estruturas próprias da matemática antiga, e em especial da metafísica dos números ideais no platonismo, onde encontramos uma meta- matemática.275 Jung não se equivoca quando, tratando dos precursores da idéia de sincronicidade, faz a Platão uma menção privilegiada: “A sincronicidade postula um [sentido] [que é a priori em relação à] consciência humana e que parece existir fora do homem. Semelhante hipótese ocorre sobretudo na filosofia de Platão, a qual admite a 273 CW VIII, § 871. 274 Sabemos que, após concluir seu ensaio sobre a sincronicidade, Jung esboçou uma continuação da investigação sobre os arquétipos dos números naturais, que permitiria um passo ulterior na compreensão da unidade de psique e matéria. Porém, dois anos antes de sua morte ele incumbiu sua discípula Marie- Louise von Franz de levar a cabo essa tarefa. Von Franz apresentou os resultados de sua pesquisa em 1970, no melhor e mais sóbrio livro sobre o tema: Zahl und Zeit: Psychologische Überlegungen zu einer Annäherung von Tiefenpsychologie und Physik (tradução inglesa: Number and Time: Reflections Leading Toward a Unification of Depth Psychology and Physics. Evanston: Northwestern University Press, 1974). Este trabalho sério e competente leva em consideração o estado atual do conhecimento matemático e físico, o que permite apreciar a hipótese da sincronicidade com o rigor exigido pelo pensamento racional. Para uma apresentação mais condensada, ver também VON FRANZ, M.-L. Adivinhação e Sincronicidade. A Psicologia da Probabilidade Significativa. São Paulo: Cultrix, 1991. 275 Para uma excelente exposição desse tópico em Platão, veja-se REALE, G. Para uma Nova Interpretação de Platão. São Paulo: Loyola, 1997, p. 167-180. Também pertinente ao contexto do problema aqui tratado são o capítulo décimo e o respectivo apêndice dessa obra, p. 195-238. À luz do trabalho de Reale, parece-nos que Marie-Louise von Franz, em seu de resto excelente livro, não conseguiu captar perfeitamente o sentido da doutrina dos números ideais em Platão. existência de imagens ou modelos transcendentais das coisas empíricas, as chamadas eide (formas, species), de que as coisas são cópias (eidola).”276 E em nota a esta passagem, Jung precisa melhor as conseqüências da aproximação ao platonismo: “Em vista da possibilidade de que a sincronicidade seja não só um fenômeno psicofísico, mas pode acontecer também sem a participação da psique humana, eu gostaria de mencionar que, neste caso, já não se deveria falar em [sentido], mas em equivalência ou conformidade.”277 Contudo, deve-se notar que se trata de uma aproximação ao platonismo, e não de uma tentativa de confirmação do mesmo, pois o criticismo epistemológico de Jung também aqui faz valer os seus direitos: a sincronicidade permanecerá sempre uma hipótese explicativa, restringindo-se ao campo “da experiência concreta e da experimentação”, e eximindo-se assim do ônus da demonstração racional que cabe à metafísica.278 276 OC VIII, § 932. 277 Ibid., nota 126. 278 A posição de Jung como uma “diferenciação moderna da teoria da correspondência” fica bem clara em sua avaliação de Leibniz e nas distâncias que toma deste seu “precursor”. Em Leibniz, com a doutrina da harmonia preestabelecida e do paralelismo psicofísico, o princípio da sincronicidade “torna-se a regra absoluta em todos os casos em que um acontecimento interior ocorre simultaneamente a outro exterior.” Jung contesta que, pelo contrário, “devemos ter presente que os fenômenos sincronísticos que podem ser verificados empiricamente, longe de constituirem uma regra, são tão raros, que quase sempre se duvida de sua existência.”(itálicos nossos) Apegado ao seu problemático empirismo, Jung não propõe uma explicação metafísica geral como Leibniz, limitando-se a reconhecer os raros fenômenos que parecem corroborar tal explicação, sem no entanto subscrevê-la – ou seja, sem ceder à tentação de dar o passo para além da fronteira epistemológica da psicologia empírica rumo à metafísica. Aliás, contra Leibniz Jung insiste em que a desarmonia das coisas nos impressiona tanto quanto a sua ocasional harmonia (cf. OC VIII, § 948). Apesar disso, ele conjectura que esses eventos sincronísticos, na realidade, certamente ocorrem muito mais freqüentemente do que se pensa e se pode provar, “mas ainda não sabemos se ocorrem de modo tão freqüente e com tanta regularidade, que se possa dizer que são fatos que obedecem a determinadas leis”, acrescentando uma observação importante em nota ao texto: “Aqui devo acentuar mais uma vez a possibilidade de a relação entre o corpo e a alma ser entendida como uma relação de sincronicidade. Se esta simples conjectura um dia se confirmar, minha atual opinião de que a sincronicidade é um fenômeno relativamente raro será corrigida.” (cf. OC VIII, § 928 e nota 125) Fica claro que, também no tocante à questão metafísica da relação entre alma e corpo, Jung preserva sua cautela crítica e suspende o juízo. A possível confirmação de sua conjectura é evidentemente remetida à “experiência concreta” e à “experimentação”, e não à razão metafísica. Mas essa esperança está fadada de antemão ao fracasso, pois não se pode comprovar cientificamente essa conjectura, já que por princípio ela cai fora dos limites A opção epistemológica que adotou, e da qual jamais se apartou, não impede Jung todavia de desenvolver, no plano das hipóteses e modelos sancionados por seu empirismo crítico, as possibilidades metafísicas implicadas em suas noções empíricas. Assim, na esteira da possível fundamentação da sincronicidade no número e nos arquétipos, e da verossímil coincidência de ambos, Jung retoma a idéia antiga de um mundo unitário ou Unus Mundus. A ontologia pressuposta em sua hipótese pode ser encontrada fora do horizonte moderno. É uma ontologia dessa estirpe que ele encontra na mentalidade chinesa antiga, estudada por seu amigo, o sinólogo Richard Wilhelm: “A realidade, opina Wilhelm, é conceitualmente cognoscível porque, segundo a concepção chinesa, há uma ‘racionalidade’ latente em todas as coisas. Esta é a idéia fundamental que se acha na base da coincidência significativa: esta é possível, porque os dois lados possuem o mesmo sentido. Onde o sentido prevalece, aí resulta a ordem.” 279 A “concepção chinesa” integra o amplo arco espiritual do “espaço hermenêutico”, e se deposita, como é próprio das “civilizações do Livro” que floresceram no assim chamado “tempo-eixo”, em vários livros sapienciais de alcance revelatório, como por exemplo o Tao Te King e o I Ching. Sem prejuízo da diversidade que especifica e distingue as várias concepções que se formularam nesse arco civilizacional, podemos nele perceber a “unidade da experiência filosófica”, que permite aproximações bem definidas entre o pensamento chinês e a filosofia grega antiga, no que diz respeito ao postulado de uma racionalidade latente comum a todos os níveis do real, e que se estampa visivelmente na ordem vigente no cosmos. Esse postulado, como vimos anteriormente, é o fundamento do “espaço hermenêutico”. A hipótese da sincronicidade só pode se sustentar pressupondo a legitimidade de tal postulado: a condição de possibilidade das coincidências significativas é que “os dois lados” possuam o mesmo sentido. Mas, justamente porque afirma algo sobre esses “dois lados”, essa condição de possibilidade não é meramente “transcendental”, no sentido kantiano, mas ultrapassa a subjetividade na direção de um “conceito unitário do ser”. Jung, atendo-se sempre ao seu proclamado empirismo, só pode formular a hipótese e deixá-la nesse nível; a fundamentação da hipótese escapa à alçada da psicologia, epistemológicos e metodológicos do conhecimento científico, tratando-se portanto de um problema essencialmente metafísico. 279 OC VIII, § 912. sendo tarefa eminentemente metafísica e, portanto, de uma outra ordem filosófica que não a da sabedoria prática, se assentirmos às razões da divisão aristotélica dos saberes. Mas Jung não se limita a olhar para trás e reconhecer as afinidades entre a concepção empírica da sincronicidade e concepções metafísicas interditadas pela crítica moderna. É no diálogo com a ciência contemporânea, e em especial com a microfísica, que ele discute e testa a utilidade e a validade da postulação de um princípio da sincronicidade e de seu corolário, de alcance metafísico, do Unus Mundus. Assim, ele afirma: “A sincronicidade não é uma teoria filosófica, mas um conceito empírico que postula um princípio necessário ao conhecimento. Não se pode dizer que isto seja materialismo ou metafísica. Nenhum pesquisador sério afirmaria que a natureza daquilo que pode ser objeto de observação e daquilo que observa, isto é, a psique, sejam grandezas conhecidas e reconhecidas. Se as conclusões mais recentes da Ciência se aproximam de um conceito unitário do ser, caracterizado pelo tempo e pelo espaço, de um lado, e pela causalidade [e pela sincronicidade], do outro, tal fato nada tem a ver com o materialismo. Pelo contrário, parece que aqui se oferece a possibilidade de eliminar a incomensurabilidade entre o observado e o observador. Se isto acontecesse, o resultado seria uma unidade de ser que teria de se exprimir através de uma nova linguagem conceitual, isto é, de uma ‘linguagem neutra’, como a chamou muito apropriadamente W. Pauli.”280 Portanto, Jung percebe claramente que a “possibilidade” aberta pela hipótese da sincronicidade, que ele discute com representantes da ciência “dura”, aponta na direção de um ultrapassamento da cisão instaurada pelo dualismo cartesiano, por um lado, e do materialismo, por outro. Conseqüentemente, abre-se também uma alternativa às visões de mundo associadas a essas duas posições metafísicas. A visão de mundo implicada na hipótese da sincronicidade e em sua extensão na noção de Unus Mundus revela seu parentesco ou semelhança com Weltanschauungen desaparecidas ou em declínio: “Uma vez que a probabilidade da lei natural não dá nenhum ponto de apoio para se pressupor que do acaso sozinho possam surgir sínteses mais elevadas como a psique, por exemplo, precisamos da hipótese de um sentido latente para explicar não só os fenômenos sincronísticos, mas também as sínteses mais elevadas. [O sentido] sempre 280 OC VIII, § 950. Wolfgang Pauli, prêmio Nobel de Física, será um interlocutor privilegiado de Jung nas especulações a respeito das convergências entre suas concepções psicológicas e as da física contemporânea. Um registro valioso dessa interlocução é a correspondência que ambos mantiveram e que está publicada em MEIER, C.A. (ed.) Atom and Archetype. The Pauli/Jung Letters, 1932-1958. Princeton: P.U.P., 2001. A leitura do epistolário de Jung e Pauli é particularmente instrutiva para se ter uma noção da seriedade intelectual com que Jung construiu e trabalhou a hipótese da sincronicidade, cujo destino foi o de ser apropriada de modo anárquico e carente de um mínimo de rigor pelos corifeus da New Age, sendo incorporada de forma desvirtuada e pouco séria ao conjunto dos dogmas desse movimento. aparece como inconsciente em primeiro lugar e por isso só pode ser [descoberto] post hoc; por esta razão persiste também sempre o perigo de [o sentido] ser [colocado] lá onde nada existe que a [ele] se assemelhe. Necessitamos das experiências sincronísticas para fundamentar a hipótese de um sentido latente, independente da consciência. Uma vez que a criação não tem sentido reconhecível sem a consciência reflexiva da pessoa humana, a hipótese do sentido latente atribui ao ser humano um significado cosmogônico, uma verdadeira raison d’être.” 281 Finalmente, relembremos que o diagnóstico de Jung a respeito da crise espiritual do homem contemporâneo atribui ao fator “visão de mundo” uma importância decisiva. Sendo assim, o significado terapêutico e cultural do resgate da sensibilidade simbólica almejado por ele atinge o seu limite máximo quando, com a sua extensão ao campo dos fenômenos sincronísticos, o simbolismo reclama uma visão de mundo compatível com a experiência de que o sentido não pode ser pensado como produto exclusivo do arbítrio humano, mas encontra um fundamento que transcende o próprio sujeito, um fundamento que Jung não teria dificuldade em descrever como “cósmico”. Mas convém observar que, também aqui, Jung permanece na atitude cética de suspensão de juízo a esse respeito: “O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de temperamento. Se o não-sentido prevalecesse de maneira absoluta, o aspecto racional da vida desapareceria gradualmente, com a evolução. Não parece ser isto o que ocorre. Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha.” 282 281 Cartas III, 10/03/1959, a Erich Neumann. A hipótese de Jung apresenta pontos de convergência com o chamado “princípio antrópico” elaborado na cosmologia física contemporânea. Por outro lado, sabe-se que, pouco antes de morrer, Jung lia “O Fenômeno Humano”, de Teilhard de Chardin, e considerava-o um grande livro. Cf McGUIRE,W. e HULL,R.F.C. C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p.406. 282 JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 310. Ao concluir seu ensaio sobre “A alma e a morte” (OC VIII, § 815), Jung levanta a questão decisiva do sentido da vida (portanto, ela emerge em conexão com a reflexão sobre a morte). Henrique Vaz afirma que a morte “aparece ao homem, ser inteligente e livre mas ciente de que deve morrer, como a contradição absoluta presente no coração da vida, ou como o não- sentido absoluto irrompendo no universo humano do sentido.” (Escritos de Filosofia III, p. 173) Jung, como psicólogo, suspende o juízo, e torce para que o sentido prevaleça. Henrique Vaz, como filósofo, ousa prosseguir, trilhando o caminho da metafísica para tentar afirmar a razoabilidade da prevalência do sentido. Recapitulemos os passos de nosso argumento. Em primeira instância, após a “catástrofe metafísica” que interdita o “simbolismo ontológico”, resta a sua recuperação ou preservação possível em chave antropológica. A “metaforização das referências cosmológicas”283, que assinala a irrupção do regime mental moderno, encontrará versões psicológicas distintas em Freud e em Jung.284 Mas a concepção junguiana de sincronicidade retoma o fio interrompido e perdido das estruturas de significação que fundamentavam o “simbolismo ontológico” no âmbito do “espaço hermenêutico” antigo e medieval, transpondo-o segundo as exigências e direções do espaço epistemológico traçado pelas ciências do homem, por um lado, e pela ciência contemporânea da natureza, por outro. Resumindo: os fenômenos sincronísticos exigem a postulação de uma autonomia do sentido relativamente independente da consciência humana, e mais, de uma equivalência ou objetividade do sentido, “que não é apenas um produto psíquico”285, reclamando como fundamento um “conceito unitário de ser”. Para que a recuperação da concepção antropológica de microcosmos não fosse apenas uma extravagância intelectual destituída de seriedade, ela precisaria se articular a uma imagem de mundo que lhe desse suporte e que sancionasse a lei de correspondência entre a esfera humana e a esfera do universo físico, exigência incontornável para que a utilização do próprio termo “microcosmos” por Jung fosse legítima e não equívoca. Esta exigência será atendida, na psicologia analítica, justamente com a teoria da sincronicidade, pois, como vimos, nela encontramos uma versão da relação de correspondência, versão moderna porque reivindica a convergência estrutural entre a teorização psicológica e os desenvolvimentos recentes da física, em particular da microfísica. Assim sendo, se a hipótese da sincronicidade é aceita, então forçosamente se impõe uma mudança na imagem de mundo, no sentido de uma unidade profunda entre os eventos psíquicos (ou espirituais) e os eventos físicos. Esta unidade supera o dualismo moderno de uma forma que se distingue do materialismo. Por um lado, ela apresenta analogias com concepções metafísicas passadas; por outro, aproxima-se, em vários pontos, do idealismo alemão. As conseqüências dessa superação não podem ser minimizadas: começando pela ruptura do “círculo encantado da consciência reflexiva”, traçado na fundação do pensamento moderno com o Cogito 283 Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 242-244. 284 A compreensão dos mitos cosmogônicos como expressões simbólicas das “origens e história da consciência” (Cf. NEUMANN, E. The Origins and History of Consciousness. Princeton: PUP, 1954 ), tributária de Jung, é um bom exemplo dessa tendência (que, nota bene, tanto em Neumann quanto em Jung evidentemente não exclui o “realismo do sentido” postulado na teoria da sincronicidade). 285 OC VIII, § 915. Cf. HILLMAN, J. On Paranoia. Dallas: Spring Publications, 1988, p. 33 cartesiano, afilia-se ao criticismo kantiano, mas também o supera para postular, com a validez da correspondência sincronística, um fundamento objetivo para a ação eminentemente humana de doação de sentido. Se é justa a nossa compreensão, podemos dizer que o resgate da sensibilidade simbólica no âmbito total da psicologia analítica representa uma tentativa de superação “por dentro” da interdição ao “simbolismo ontológico” estabelecida na constituição inaugural do espaço metafísico moderno, e uma recuperação de estruturas de significação análogas às que legitimaram o “espaço hermenêutico” pré-moderno. Não se trata, a nosso ver, de uma regressão, mas de uma reconstrução progressiva – portanto legítima, já que se faz respondendo às exigências do espírito moderno. Diante do desafio e do problema representado pela insuficiência das estruturas de significação próprias da modernidade, que deságuam naquela “inanidade do não-sentido do antropocentrismo moderno” assinalada por Henrique Vaz, Jung aposta num movimento para a frente, num sentido para a destruição iconoclasta dos símbolos ocidentais pela tendência niilista que parece atravessar a experiência da modernidade. Nessa perspectiva, o esgotamento dos símbolos culturais prepararia a destruição dos mesmos, mas esta destruição, por sua vez, representaria o momento que prepara a renovação do simbolismo pela ativação compensatória das fontes arquetípicas-instintivas, de onde jorram as imagens simbólicas humanas e o sentido com que elas enlaçam o homem, o mundo e a tradição. CAPÍTULO TERCEIRO TRADIÇÃO, MODERNIDADE, EXPERIÊNCIA SIMBÓLICA 1. Tradição e modernidade na perspectiva da fenomenologia do Ethos A relação com a tradição é constitutiva da definição ampliada de modernidade que apresentamos no primeiro capítulo, e mais ainda da definição restrita (“modernidade moderna” ou “pós-cristã”) que utilizamos neste trabalho. Neste caso, a relação que se estabelece é principalmente negativa, no sentido de que as forças que regem a modernidade voltam-se destrutivamente contra os esteios da tradição que a gerou, configurando uma forma ímpar de sociedade, que sob esse aspecto se caracteriza como pós-tradicional.286 Na perspectiva da Ética, a tradição, ao suportar e garantir a permanência das instituições de uma cultura, torna-se a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão histórica.287 Portanto, a tradicionalidade, significando a capacidade de ser transmitido, é um constitutivo essencial do ethos.288 Reciprocamente, a tradição, manifestando a íntima relação entre ethos e cultura, é sempre tradição ética. Como tal, ela ordena o tempo pela reiteração das normas e valores do ethos, segundo uma circularidade dialética em que o passado, “suprassumido na universalidade normativa e paradigmática dos costumes”289, é simultaneamente terminus a quo e terminus ad quem para o presente, e ambos – passado e presente – compõem o tempo qualitativo em que se exerce a praxis. A ação propriamente humana, portanto, refere-se ao passado, depositado na tradição, como a instância que funda e permite avaliar seu conteúdo ético.290 Na medida em que toda cultura está submetida à temporalidade, o desgaste do patrimônio simbólico de uma dada tradição é inelutável, o que significa que as bases de sua estruturação é afetada pela contingência que acompanha a historicidade própria do ser humano. A totalidade de sentido que uma cultura oferece aos seus membros, veiculada pelos símbolos coletivos que estampam a forma particular da organização sócio-cultural, é posta à prova pelas alterações exteriores e interiores que incidem sobre a instalação humana por ela promovida, e freqüentemente precisa ser renovada em função das novas situações e desafios com que sempre se defrontam as sociedades humanas. Dessa forma, a tensão resultante da oposição dialética entre presente e passado jamais é definitivamente superada, ressurgindo como desafio permanente no processo educativo em que se formam os membros de uma comunidade ética. Pensada a partir da 286 Veja-se uma boa caracterização da forma pós-tradicional de sociedade, sob o ângulo sociológico, em GIDDENS, A. “A vida em uma sociedade pós-tradicional”, in Em Defesa da Sociologia. São Paulo: UNESP, 2002, p. 21-95. 287 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 17. O ethos é “a face da cultura que se volta para o horizonte do dever-ser ou do bem.” Ibid., p. 19. 288 Cf. id., p. 19. 289 Id., p. 19-20. “Na estrutura do tempo histórico do ethos, o passado, portanto, se faz presente pela tradição, e o presente retorna ao passado pelo reconhecimento de sua exemplaridade.” Id., p. 20. 290 Cf. id., p. 20. relação dialética entre ethos e indivíduo, essa tensão aparece no momento da negação da universalidade abstrata do ethos como costume pela liberdade que define a particularidade da praxis como ato do indivíduo. Esse momento abre a possibilidade da situação de conflito ético. O conflito, entendido como conflito de valores e não como simples revolta do indivíduo contra a lei, é um momento estrutural do dinamismo histórico do ethos.291 Crises, conflitos, evoluções e mesmo revoluções pertencem à essência do ethos, cuja tradicionalidade não significa oposição ao tempo nem à liberdade e autonomia do agente ético que é o indivíduo.292 Por este motivo, a transmissão de um conjunto simbólico determinado ao sujeito empírico que se educa sob a tradição própria de uma cultura é o pressuposto para a preservação desse patrimônio coletivo, como também para a renovação do mesmo pelo indivíduo, alçado à condição de sujeito ético.293 A renovação pode ser tanto confirmação atualizada como recriação, conforme os limites configurados pelo ethos sejam mantidos ou então transgredidos. Em tese, a categoria de conflito ético permitiria compreender a relação entre tradição e modernidade. Mas a tensão imanente ao dinamismo histórico do ethos é fortemente exponenciada pela experiência particular da modernidade pós-cristã, e finalmente se mostra refratária à suprassunção dialética, constituindo o paradoxo do mundo moderno: não se trata aqui de um conflito regionalizado ou particular no interior de uma tradição, mas da redefinição das estruturas fundantes do todo social segundo um projeto que tende a extirpar as raízes que o tornaram possível. Pois, sob muitos aspectos, a renovação embutida na experiência da modernidade revelou-se, afinal, não uma recriação da tradição cultural do Ocidente, mas a manifestação inquietante da tendência à sua destruição, que culmina no niilismo ético característico de nossa época. Henrique Vaz aponta como causa fundamental do niilismo ético que acomete as sociedades ocidentais modernas a ruptura da tradição, entendida como processo dialético que suprassume a “oposição linear do presente e do passado na perenidade normativa do ethos”294. Na modernidade desarticula-se a relação essencial entre ethos e tradição devido à primazia do tempo quantitativo, que transfere do passado para o futuro 291 Cf. id., p. 31. 292 Cf. id., p. 21. 293 Cf. id., p. 21-35. 294 Id., p. 21. a normatividade do tempo, conferindo ao futuro “os predicados axiológicos que asseguravam a exemplaridade do passado na formação do ethos tradicional.”295 A prioridade da esfera econômica na sociedade da produção e do consumo, extensão da primazia da poiesis ou do fazer técnico na concepção da ação humana que singulariza a modernidade, também destrói o vínculo com a tradição, ao atingir o núcleo do ethos.296 Pois o próprio conceito de ethos implica a afirmação de uma finalidade imanente à praxis: a auto-realização do indivíduo, à qual tudo o mais se subordina, inclusive os bens exteriores materiais. O ethos se concretiza na praxis, que consolida o hábito (hexis), e este preserva a vigência do ethos e da tradição ética. Uma vez invertida essa relação na modernidade, pela absorção da praxis na esfera da poiesis297, ocorre a exclusão e supressão da objetividade dos fins próprios do domínio ético, com o conseqüente enfraquecimento do mesmo. Se a praxis desaparece na absorção pela poiesis, perdendo a sua especificidade ética, então o hábito já não diz respeito à perfeição do agente segundo as normas e valores da tradição ética, mas à perfeição do produto pela excelência do fazer técnico. Com isto, todo o domínio propriamente ético é posto entre parênteses. E na medida em que a esfera econômica passa a reger o todo do conjunto social, a suspensão converte-se em negação radical: o reducionismo economicista deságua no niilismo ético. Henrique Vaz diagnostica e descreve essa situação: “Os tempos atuais assistem ao aparecimento de uma notável e inquietante dissimetria no equilíbrio e sustentação do edifício da cultura – da morada do ser humano – provocada pelo crescimento vertiginoso e pelo fortalecimento social da techne de um lado e, de outro, pelo definhar e pelo enfraquecimento do ethos. Os efeitos dessa dissimetria tornam-se cada vez mais visíveis, sobretudo no comportamento das jovens gerações, nas condutas anômicas e no desconcerto existencial que obscurecem qualquer perspectiva de uma vida moralmente sensata, na qual normas e valores sejam reconhecidos e obedecidos na sua significação especificamente ética.”298 Em outras palavras, o niilismo atinge o enraizamento ético dos indivíduos, uma vez que a referência a uma tradição ética desaparece dos horizontes da sociedade contemporânea. Vaz observa que as resistências a essa situação originada pela primazia da esfera da produção provêm da própria sociedade, tornando-se visíveis na esfera da 295 Id., p. 20. 296 Cf. id., p. 23-25. 297 A primazia da poiesis na concepção da ação é homóloga à primazia do futuro na concepção do tempo, conforme assinalamos no primeiro capítulo. Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 21. 298 Escritos de Filosofia V, p. 219. cultura, “onde o ethos se explicita formalmente na linguagem das normas e valores e se constitui como tradição”299. Como assinalamos ao termo do primeiro capítulo, o nascimento da psicoterapia contemporânea pode ser compreendido como uma destas reações da cultura à força avassaladora com que as novas e revolucionárias estruturas da sociedade industrial reorganizam o espaço vital humano, deixando para trás as diretrizes fundamentais custodiadas pela tradição. Em particular, a psyches therapeia proposta por Carl Gustav Jung, que elegemos como objeto de análise, é conscientemente apresentada por seu fundador em relação ao dilema modernidade versus tradição. Vejamos então o que a psicologia analítica tem a dizer a respeito dos problemas psíquicos do sujeito moderno à luz da noção de tradição. Mas antes, para evitar mal entendidos, é preciso fazer uma ressalva.Toda a compreensão explicativa sobre a questão ética que encontramos em Jung situa-se, do ponto de vista de uma Ética filosófica sistemática como a de Henrique Vaz, no nível da particularidade, que é seu nível próprio e legítimo. Portanto, ela se atém à consideração fenomenológico-descritiva do problema, limitando-se a abordá-lo sob o ângulo das condições biopsíquicas, sócio-culturais e históricas que determinam a situação concreta em que se efetiva – ou não - o exercício da razão prática e onde se joga o destino histórico do indivíduo e de sua comunidade, bem como das soluções possíveis para seus problemas. 2. Tradição, modernidade e experiência simbólica na psicologia analítica Um dos temas fundamentais da compreensão de Jung acerca da situação espiritual moderna é justamente o tema do desenraizamento (Entwurzelung), que ele entende como sendo a ruptura da continuidade da tradição e uma alienação da consciência com relação a sua “base instintiva”. Na verdade, a sua proposta de psyches therapeia para o homem moderno pode ser entendida como uma tentativa de reconciliação entre a tradição, que lhe parecia imprescindível para a saúde psíquica300, e 299 Escritos de Filosofia II, p. 25. 300 “É muito estranho que não se perceba o que uma educação sem humanidades pode fazer ao homem. Ele perde a ligação com sua família, por assim dizer, com todo o tronco, a tribo – a conexão com o passado em que ele vive, em que o homem sempre viveu. O homem sempre viveu no mito, e pensamos que somos capazes de nascer hoje e de viver sem mito, sem história. Isso é uma doença, absolutamente a modernidade, que ele reconhecia irreversível na evolução histórica do espírito ocidental. Como vimos na seção inicial do capítulo anterior, Jung avalia a perda das raízes na tradição como um acontecimento dramático de que se origina a condição moderna, gerando o mal-estar espiritual que a caracteriza e que vem prenunciado no “depauperamento dos símbolos”. Mas trata-se, em sua visão, de um dado histórico, que como tal não pode ser negado. Por outro lado, ele percebe que de nada vale a nostalgia regressiva que olha para trás e anseia pelo retorno a condições de existência passadas, pois na história não há caminho de volta.301 A sua aposta-proposta para a saída desse mal-estar – a recuperação da sensibilidade simbólica – representa, em sua perspectiva, uma solução progressiva, na medida em que a formação dos símbolos a partir dos arquétipos do inconsciente coletivo permitiria restaurar o vínculo perdido com a tradição de forma renovada, e portanto em consonância com as necessidades e problemas de um novo tempo.302 anormal, porque o homem não nasce todos os dias. Ele nasceu uma vez, num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só está completo quando tem uma relação com essas coisas. Se crescermos sem relação alguma com o passado, é como se tivéssemos nascido sem olhos nem ouvidos. Do ponto de vista da ciência natural, não necessitamos de ligação com o passado, podemos varrê-lo, mas isso é uma mutilação do ser humano. Através da experiência prática, vi que essa realização tem o mais extraordinário efeito terapêutico”. Entrevista a Richard I. Evans, em 1957, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.) C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 310. 301 “Estou preocupado com o mundo [tal] como ele se apresenta hoje: sem Deus e espiritualmente desorientado. Na história não há [nunca] um caminho [de volta].” Cartas III, 8/02/1957, anônimo, p. 64. “Mas o homem que é do presente – seja qual for a razão – já não pode retornar ao passado, sem sofrer uma irreparável perda. Não raro esse retorno se torna impossível, mesmo que se esteja disposto a sacrifícios. O homem do presente deve trabalhar pelo futuro e deixar a outros a tarefa de conservar o passado. Por isso, além de construtor, é também um destruidor.” OC X, § 239. 302 Esta exigência de atualização dos símbolos é crucial para uma correta compreensão da posição de Jung com relação à questão tradição-modernidade. Assim, ele diz: “Esses acontecimentos do mundo contemporâneo revelam, por sua singularidade, o seu pano de fundo psicológico. A demência destrutiva e devastadora é a reação a esse afastamento da consciência em relação a sua posição de equilíbrio. Existe de fato um equilíbrio entre o eu e o não-eu psíquico, uma religio, ou seja, um levar em conta escrupulosamente a presença das forças inconscientes, que não podemos negligenciar sem correr perigo. Essa virada, resultante da alteração do estado de consciência, vem sendo preparada há séculos. (...) Será que as religiões fizeram um esforço para se adaptarem a essa evolução secular? A sua verdade pode, sem dúvida alguma, ser proclamada eterna com toda legitimidade, mas a roupa temporal que as reveste tem que pagar o tributo do que é transitório: deveriam levar em conta a transformação psíquica. A verdade eterna precisa da linguagem humana que se modifica de acordo com o espírito do tempo. As imagens primordiais são suscetíveis de transformações infinitas, mas nem por isso deixam de ser sempre as mesmas. No entanto só serão compreendidas de novo se renovarem a forma de se apresentarem. Elas requerem constantemente novas interpretações, se não quisermos que, devido a uma conceituação obsoleta, elas percam seu poder de atração (...) O que significa ‘vinho novo em odres velhos’? Onde buscar as respostas às misérias e desgraças de um tempo novo? Onde está o conhecimento da problemática da alma, levantada pelo desenvolvimento da consciência moderna? Jamais em tempo algum se viu uma tal hybris do querer e do poder desafiando assim a verdade ‘eterna’.” OC XVI, §§ 395-396. “Da mesma forma que a serpente troca de pele, assim também o mito precisa de nova roupagem em cada renovado éon, para não perder a sua força terapêutica.” OC IX-2, § 281. Os arquétipos, enquanto matrizes antropologicamente universais das formas culturais particulares, tendem a gerar símbolos estruturalmente análogos, os quais correspondem a supostas necessidades vitais permanentes da espécie humana, que são contempladas em formas e graus variados nas diversas tradições simbólicas que estampam a face particular de cada cultura. Em outras palavras, a unidade antropológica ou “natureza humana” implicada na noção de inconsciente coletivo tende a se efetivar na particularidade das tradições e no processo simbólico. Por outro lado, na medida em que o inconsciente é também organizado em função das configurações históricas e de tudo aquilo que uma dada configuração dominante deixa de lado ou exclui de sua constituição,303 uma configuração particular ultrapassada de uma tradição continua a levar, em certo sentido, uma existência inconsciente na psique coletiva de uma sociedade, na forma de potencialidades excluídas ou recalcadas pela nova configuração, o que pode ser detectado no exame de suas representações imaginárias. Assim, a reativação do inconsciente tende a trazer à tona essas potencialidades abandonadas que, no confronto com a consciência, podem ser reintegradas em forma renovada, especialmente quando alguma necessidade humana fundamental que elas contemplavam deixa de ser satisfeita na nova configuração, deflagrando assim o movimento compensatório inconsciente. A universalidade das estruturas arquetípicas da alma humana garantiria a possibilidade de se restabelecer uma integridade perdida. Ao símbolo na concepção de Jung, justamente por ser arquetipicamente conformado, e pela participação do arquétipo na correspondência psique-mundo postulada com a hipótese da sincronicidade304, aplica-se o que Georges Gusdorf diz do mito: ele intervém “como um protótipo de equilibração do universo, como um formulário de reintegração.”305 303 “Também a questão da relação entre consciente e inconsciente não é uma questão especial e sim algo que tem a ver intimamente com nossa história, com nosso tempo atual, com nossa [visão de mundo]. Muita coisa só se torna inconsciente porque nossa concepção do mundo não lhe dá espaço, porque nossa educação e formação jamais lhe deu estímulo e, se alguma vez apareceu no consciente como eventual fantasia, foi imediatamente reprimida. Os limites entre consciente e inconsciente são em grande parte determinados por nossa [visão de mundo]. Por isso devemos falar de problemas gerais se quisermos tratar adequadamente do conceito de inconsciente. Se quisermos compreender a natureza do inconsciente, não podemos ocupar-nos somente com os problemas atuais, mas também com a história do espírito humano em geral.” OC X, § 47. 304 Ver o capítulo anterior. 305 GUSDORF, G. Mito e Metafísica. São Paulo: Convívio, 1979, p. 24. Jung encara a Entwurzelung ou desenraizamento resultante da ruptura do vínculo com a tradição como “um dos mais graves males psíquicos”306, que implica a perda dos canais de expressão simbólica dos “instintos”. Assim, ele pondera: “A dissolução de uma tradição, por mais necessária que seja em certas épocas, sempre é uma perda e um perigo; um perigo para a alma, porque a vida instintiva – como o que há de mais conservador no homem – se exprime justamente através dos hábitos tradicionais. As convicções e os costumes transmitidos pela tradição estão profundamente arraigados nos instintos. Se são perdidos, a consciência separa-se do instinto: em conseqüência, a consciência perde suas raízes, e o instinto, agora sem expressão, retomba no inconsciente, cuja energia se reforça; esta, por sua vez, transborda para os respectivos conteúdos conscientes, o que torna então a falta de raízes do consciente realmente perigosa. Essa secreta ‘vis a tergo’ provoca um hibridismo na consciência, que se manifesta por uma supervalorização de si mesmo, ou por um complexo de inferioridade. Em todo caso, ocorre um distúrbio do equilíbrio, que é o terreno mais propício para os danos psíquicos.” 307 Como se pode ver, Jung pensa a tradição a partir de suas relações com o contínuo arquétipo-instinto e, por extensão, com a noção de símbolo. As tradições culturais diversificadas teriam um denominador comum no fato de todas estarem “arraigadas nos instintos” e, portanto, nos arquétipos, expressando-os mediante os grandes símbolos coletivos que delimitam a identidade própria de cada cultura. Uma determinada tradição corresponderia ao acervo de símbolos que organizam e dão sentido à forma particular de existência social e individual que ela sustenta. Na perspectiva da psicologia social, uma tradição representa a configuração particular das relações entre consciência coletiva e inconsciente coletivo. A “vida instintiva”, que se exprime nos hábitos tradicionais, é o representante do elemento de natureza no ser humano, e abarca toda o campo da afetividade, que apresenta uma relativa constância na espécie, bem como uma relativa maleabilidade, suficiente para abrir a possibilidade de modificação pela educação.308 O 306 OC XVI, § 216. 307 Ibid. 308 A teorização de Jung sobre os “instintos” acompanha aquela sobre os arquétipos e recebe sua formulação final em 1946, no texto “Considerações Teóricas sobre a Natureza do Psíquico” (OC VIII). A continuidade entre instinto e arquétipo significa um entrelaçamento entre a esfera instintiva e a esfera espiritual: “O instinto não é coisa isolada, nem pode ser isolado na prática. Ele sempre traz consigo conteúdos arquetípicos de caráter espiritual que, por um lado, o fundamentam e, por outro, o limitam. Em outras palavras, o instinto se apresenta sempre e inevitavelmente junto com uma espécie de visão de mundo, por mais arcaica, imprecisa e crepuscular que ela seja. O instinto nos dá o que pensar, e se não pensarmos nele livremente, então surgirá um pensamento compulsório, pois os dois pólos da alma, o fisiológico e o espiritual, estão ligados um ao outro indissoluvelmente. Por isso, não existe uma liberação unilateral do instinto, da mesma forma que o espírito, desligado da esfera instintual, está condenado ao ponto morto. Não se deve imaginar, contudo, que a sua ligação com a esfera instintual seja necessariamente harmoniosa. Muito pelo contrário, ela é cheia de conflitos e significa sofrimento. Eis por que o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade, mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento. A totalidade, a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria.” (OC XVI, § 185) desenraizamento, simultaneamente perda do liame com os instintos e com a tradição, representa para Jung uma patologia fundamental da modernidade, que ele atribui à perda da unidade simbólica entre espírito e matéria, “disso resultando o homem moderno, desenraizado e alienado numa natureza desprovida de alma.”309 A solução para o problema do desenraizamento moderno estaria na reconstituição daquela unidade simbólica perdida. Pois, como o símbolo “tem a grande vantagem de conseguir unificar numa única imagem fatores heterogêneos ou até mesmo incomensuráveis”310, seria somente através de uma experiência da realidade simbólica que o homem, “buscando em vão sua ‘existência’ e fazendo dela uma filosofia”, poderia encontrar seu caminho de volta a um mundo no qual ele não mais é um estranho.311 Pela experiência simbólica o homem moderno não só poderia recuperar o lastro perdido com a natureza, como também reintegrar-se à família humana, da qual o ímpeto faustiano da modernidade o alienara. Portanto, o símbolo abriria a possibilidade de resolver o conflito entre o “primitivo” ou “tradicional” e o moderno, ao integrar ou recuperar o enraizamento mítico e cosmológico sem sacrificar os ganhos da consciência moderna.312 Observe-se que Jung reconhece a imprecisão que cerca o uso da noção de “instinto”: “A noção de instinto está longe de ter sido cientificamente esclarecida. Ela diz respeito a um fenômeno biológico de [imensa] complexidade e representa, no fundo, um X, isto é, pura e simplesmente um conceito-limite, cujo conteúdo é de imprecisão absoluta. (...) O instinto é reconhecido como sendo uma das condições do psíquico, da mesma forma que o psíquico passou a ser considerado, e com razão, um dos condicionamentos dos instintos.” OC XI, §§ 493 e 495. Jung afirma que, no ser humano, os instintos aparecem “psiquificados”, e assim perdem a “inequivocidade”, ocasionalmente perdem também a “compulsividade”, tornam-se “variáveis”, passíveis “de diferentes aplicações” em virtude da “extraordinária capacidade de variação e transformação” de que é dotada a psique (cf. OC VIII, § 234- 235.) Disso resulta que a própria utilização do termo “instinto” é equívoca, tendo valor não tanto de um conceito, propriamente falando, mas muito mais de uma métáfora ou símbolo, indicativo da dimensão natural e corpórea do ser humano, cobrindo toda a esfera das pulsões, afetos e desejos. 309 OC IX-1, § 197. 310 Ibid. 311 CW IX-1, § 198. A realidade simbólica, na medida em que se enraiza na “vida instintiva”, requer uma nova relação com a natureza em sua dimensão corporal: “O fascínio da psique nada mais é que uma nova auto-reflexão, uma reflexão que se volta sobre nossa natureza humana fundamental. Por que estranhar então se esse corpo, por tanto tempo subestimado em relação ao espírito, tenha sido novamente descoberto? Somos quase tentados a falar de uma vingança da carne contra o espírito. (...) O corpo exige igualdade de direitos. Ele exerce o mesmo fascínio que a psique. Se ainda estivermos imbuídos da antiga concepção de oposição entre espírito e matéria, isto significa um estado de divisão e de intolerável contradição. Mas se, ao contrário, formos capazes de reconciliar-nos com o mistério de que o espírito é a vida do corpo, vista de dentro, e o corpo é a revelação exterior da vida do espírito, se pudermos compreender que formam uma unidade e não uma dualidade, também compreenderemos que a tentativa de ultrapassar o atual grau de consciência, através do inconsciente, leva ao corpo e, inversamente, que o reconhecimento do corpo não tolera uma filosofia que o negue em benefício de um espírito puro.” OC X, § 195. 312 Cf. SHAMDASANI, S. Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science. Cambridge: C.U.P., 2003, p. 328. “A marca distintiva do trabalho de Jung era a maneira como ele concebia a incrustração do indivíduo na história cultural, ou antes, a inerência da história cultural no indivíduo. Através da introspecção, um indivíduo poderia rever não somente sua história pessoal, mas sua história cultural e ancestral, como também a da espécie humana. Ao mesmo tempo, através dessa visão a Para Jung, o ethos, considerado sob a perspectiva psicológica, representa a pessoa inteira e é uma faculdade criativa do ser humano, emanando empiricamente de duas fontes: da consciência racional e do inconsciente irracional. Por isso mesmo, nessa perspectiva o ethos é uma instância especial da chamada “função transcendente”313, criadora de símbolos. Estes, como vimos no capítulo anterior, são para Jung uma expressão conciliatória da totalidade humana em seus aspectos conflitivos. Fenômenos essencialmente humanos, eles integram as polaridades antagônicas que caracterizam a condição desse estranho animal dotado de espírito, ou, se se preferir, desse espírito encarnado. Entendidos como a auto-expressão diversificada do mistério humano, os símbolos constituem a matéria viva do ethos. Por isso, se o ethos se eleva sobre a physis para recriar em sua ordem própria “a continuidade e a constância que se observam nos fenômenos naturais”314, é no patrimônio simbólico que a tradição transmite de uma geração à outra que se deve buscar a tentativa de conciliação entre as ordens instintiva e espiritual que constitui o perfil humano e ético de uma cultura. Jung percebe na cultura e no indivíduo modernos a ação dessa tendência destruidora que gera o desenraizamento ao romper com a tradição, e a designa, em algumas passagens, como “relativismo moderno”. Sua posição em face dela é dupla: por um lado, ele saúda “o abalo sofrido pelas nossas ilusões e limitações ocidentais devido ao esclarecimento”, considerando-o como “uma retificação histórica indispensável e de alcance imprevisível”, que “introduz um relativismo filosófico”, no qual vê “uma longínqua verdade do Oriente, cujos efeitos futuros, por ora, não podemos prever.”315 Como representante dessa tendência na psicologia ele indica Freud. Por outro lado, afirmando que “todo relativismo tem uma ação destruidora quando se arvora em história cultural aparecia sob uma nova luz. Interpretada de forma nova, ela deveria formar a base para uma nova psicologia.” SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 182. A historicidade do inconsciente segundo Jung, pensada freqüentemente a partir de uma fantasia evolucionista, integra-se nas metáforas topológicas utilizadas para descrever as “camadas” do inconsciente, que abrigaria portanto vários estratos correspondentes a níveis histórico-culturais diferenciados. Assim, no inconsciente do homem moderno encontrar-se-iam desde os resíduos da “mentalidade primitiva” até configurações análogas às formas culturais medievais. Todas essas configurações históricas estariam enraizadas, por sua vez, na camada “natural” que constituiria o fundo do inconsciente coletivo com seus arquétipos universais a-históricos. No inconsciente junguiano encontramos, portanto, a imbricação mútua entre natureza e cultura, ou entre matéria e espírito, que evoca imediatamente a Naturphilosophie romântica. Uma outra alternativa de interpretação e reconstrução crítica do pensamento de Jung seria a utilização de um referencial teórico hegeliano, como o faz Wolfgang Giegerich em seus numerosos trabalhos. 313 Cf. OC X, § 855. 314 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 17. 315 Cf. OC XVI, § 146. princípio supremo e último”, Jung aponta para a tendência integradora que, nascendo da mesma fonte “natural”, contrabalança o potencial destruidor do relativismo: “O fundo da psique é natureza e natureza é vida criadora. É verdade que a própria natureza derruba o que construiu, mas vai reconstruir de novo. Os valores que o relativismo moderno destrói no mundo visível, a psique no-los restitui.”316 Jung sustenta que a resistência contra a dissolução do que ainda subsiste do universo ético tradicional no homem moderno brota da própria natureza humana, raiz primeira de todo ethos, em sua atividade criadora de símbolos.317 O sintoma ou sofrimento psíquico, examinado em profundidade, em sua significação histórica e espiritual, é simultaneamente indício de uma obstrução da função básica e vital de enraizamento num ethos e pista para as vias de reconstrução adaptada e renovada daquilo que se vê dissolvido. Sob outra perspectiva e de modo complementar, encarado a partir da noção de “cultura”, esse conflito entre relativismo e conservadorismo, ou entre modernidade e tradição, é visto por Jung como correspondendo à “evolução histórica do espírito ocidental”318, que ele reconstitui através da oposição entre representações simbólicas dominantes e marginais, obtendo assim uma espécie de história cultural da dialética consciente-inconsciente, em que se apoia a compreensão do significado da tarefa psicoterapêutica: “Os problemas que a integração do inconsciente traz ao médico e psicólogo moderno só podem ser resolvidos dentro da linha histórica que acabamos de traçar, e o resultado equivalerá a uma nova recepção do mito transmitido, sendo porém pressuposta a continuidade da evolução. A tendência moderna à destruição e perda de consciência de toda tradição poderá, entretanto, interromper o processo normal de evolução durante vários séculos, e constituir um intervalo de barbárie. Isto já acontece onde impera a utopia marxista. Mas uma formação de sentido predominantemente técnico-científico, como a que caracteriza os Estados Unidos, pode gerar um retrocesso da cultura espiritual, acarretando um aumento considerável da dissociação psíquica. O homem não goza de saúde só mediante a higiene e o bem-estar, pois, se assim fosse, as pessoas mais ricas e esclarecidas também seriam as mais sadias. Mas não é isso o que acontece, quando se trata das neuroses; muito pelo contrário. O desenraizamento e a ruptura com a tradição neurotizam as massas e as preparam para a histeria coletiva. Esta última exige terapia coletiva, 316 OC X, § 187b. Lembremos, nesse contexto, as posições diametralmente opostas de Freud e Jung com respeito ao fato religioso. Neurose coletiva a ser superada pela razão psicanalítica esclarecida, segundo Freud, para Jung a religiosidade corresponde a uma necessidade natural do ser humano e as grandes religiões são, por isso mesmo, “sistemas psicoterapêuticos” (cf., por exemplo, OC V, § 553; OC XVI, §§ 20 e 249; OC XVIII, §§ 1231, 1494 e 1578.). 317 A utilização da noção de “natureza” em Jung é intencionalmente ambígua e remete ao Romantismo, imediatamente, e à filosofia da natureza medieval e antiga. Inscrita nessa concepção encontra-se a problemática dos “instintos”, que constituem o “fundo da psique” e que, devido ao seu caráter conservador, restituem os valores tradicionais que o “relativismo” destrói. Ver o próximo capítulo. 318 OC IX-2, § 273. que consiste na privação da liberdade e na implantação do terror. Por isso, onde impera o materialismo racionalista, os Estados transformam-se gradativamente menos em prisões do que em asilos de loucos.”319 Portanto, Jung pressente na situação contemporânea os indícios de um “intervalo de barbárie”.320 A interrupção do “processo normal de evolução” do espírito ocidental consiste na ameaça que paira sobre o indivíduo na sociedade de massas contemporânea - a ameaça da atomização e perda da própria individualidade. As formações de massa, correspondentes aos grandes sistemas impessoais do saber, da praxis e da técnica, suprimem a “diferenciação moral e espiritual do indivíduo” e a substituem pela finalidade da satisfação das necessidades materiais: “A decisão moral e a conduta de vida são, progressivamente, retiradas do indivíduo que, encarado como unidade social, passa a ser administrado, nutrido, vestido, formado, alojado e divertido em alojamentos próprios, organizados segundo a satisfação da massa.”321 Jung considera o “racionalismo científico” – que poderíamos traduzir por racionalidade instrumental – “um dos principais fatores da massificação”, responsável por deitar por terra “os fundamentos e a dignidade da vida individual ao retirar do homem a sua individualidade, transformando-o em unidade social e num número abstrato da estatística de uma organização”.322 Como antídoto ou “contrapeso” à massificação, Jung aponta a religião. Pois se é o “racionalismo científico” que organiza o mundo e as consciências na sociedade de massas, conforme os grandes sistemas objetivos a que se transfere a construção do mundo humano atribuída à subjetividade transcendental323, então a reequilibração da unilateralidade dessa forma de construção deve ser buscada naquilo que, por princípio, ela exclui – e a religião, tradicional portadora do ethos em todas as culturas 319 OC IX-2, § 282. 320 Também Henrique Vaz vê na situação que se manifesta na crise ética contemporânea uma ameaça aos “próprios fundamentos da civilização tão longamente e tão penosamente edificada.” (Escritos de Filosofia V, p. 219) O acirramento crescente e explosivo das tensões e contradições violentas, verificado nos eventos cotidianos em escala planetária, não aconselha uma atitude otimista. 321 OC X, § 499. “O ‘fazer’ e o ‘produzir’ (contradistintos do ‘agir’ no sentido aristotélico) tornam-se fins em si, submetendo todos os meios e rejeitando os fins propriamente éticos na esfera das convicções subjetivas do indivíduo.” VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 261. 322 Cf. OC X, § 501. Em uma carta a E.L. Grant Watson, de 09/02/1956 (cf. Cartas III) Jung reitera que a verdade estatística da ciência, ao desconsiderar o aspecto das exceções singulares – sobre os quais o artista e o poeta insistem -, perde o “sal da terra”, e destrói os valores indispensáveis à vida humana. Trataremos no próximo capítulo da afinidade de Jung ao Romantismo – que critica a concepção iluminista de natureza e ciência nos mesmos termos, e oferece em contrapartida uma concepção que insiste na individualidade orgânica da natureza, que suporta a individualidade pessoal do ser humano. 323 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 144-145. conhecidas324, encontra-se entre os conteúdos do recalcado pela pedagogia positivista e cientificista da racionalidade instrumental.325 Para Jung, ao passo que os mecanismos da sociedade de massas aprisionam o indivíduo numa cerrada rede de dependências às condições físicas e sociais do mundo, a religião o confronta com a dependência e relação pessoal a um princípio transcendente ao mundo.326 Contrabalançando assim o peso do mundo externo, as religiões “propiciam ao indivíduo a possibilidade de julgar e tomar suas decisões com liberdade.”327 A religião constrói, portanto, “uma reserva, por assim dizer, contra a óbvia e inevitável força das circunstâncias à qual está exposto todo aquele que vive somente no mundo externo e não tem nenhum outro fundamento sob seus pés a não ser o chão. Se só existe a realidade estatística, então ela é a única autoridade. Então há somente uma condição, e desde que nenhuma condição contrária existe, o juízo e a decisão são não só supérfluos como impossíveis. Então o indivíduo está destinado a ser uma função da estatística e conseqüentemente uma função do Estado, ou qualquer outro nome que se use para exprimir o princípio abstrato de ordenamento.”328 Nesse sentido, a religião representa uma espécie de proteção para a individualidade pessoal, e por isso mesmo Jung considerava as grandes religiões como sistemas psicoterapêuticos. Em última análise, a individualidade se opõe à massificação, e tudo aquilo que a promova atua como uma forma de resistência às tendências que pressionam o mundo ocidental moderno na direção do “intervalo de barbárie”, que 324 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 18. 325 Jung dá à noção de “religião” um significado generalíssimo: “Religião é – como diz o vocábulo latino religere – uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de ‘numinoso’, isto é, uma experiência ou um efeito dinâmico não causados por algum ato arbitrário da vontade. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador”. OC XI, § 6. Assim, a experiência religiosa, como experiência “imediata” do sagrado, desestabiliza a vida consciente. Se esta se encontra alienada de si mesma por adesão a qualquer organização coletivista, compreende-se então como a experiência religiosa pode, por desestabilização, devolver o indivíduo a si mesmo e opor-se à massificação. Note-se, de passagem, que nessa acepção a experiência religiosa é totalmente diversa daquilo a que Freud se refere em sua crítica à religião – um meio de estabilização ilusória da vida consciente. Jung também reconhece esse aspecto da religião institucionalizada – e não o desqualifica como ilusão, reconhecendo a sua função de proteção e manutenção do equilíbrio psíquico (cf. OC X, § 512) – mas o diferencia da experiência imediata do sagrado, que integra o processo de individuação. 326 Sob esse aspecto, Jung diferencia o “credo” da “religião”: “[O credo] admite uma certa convicção coletiva, ao passo que a religião exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, ou seja, extramundanos. [Um credo é uma confissão de fé voltada principalmente] para o mundo em geral, constituindo, assim, uma questão intramundana. Já o sentido e a finalidade da religião consistem na relação do indivíduo com Deus (cristianismo, judaísmo, islamismo) ou no caminho da redenção (budismo). Esta é a base fundamental de suas respectivas éticas que, sem a responsabilidade individual perante Deus, não passariam de [moralidade convencional].” OC X, § 507. 327 OC X, § 506. 328 CW X, § 506. consiste na substituição do indivíduo, em sua qualidade de pessoa, pelo homem de massa, “unidade substituível e infinitesimal” numa organização coletiva. Ao atribuir sentido e uma função inestimável à religião na sociedade contemporânea, Jung busca recuperar algo de essencial da tradição de que a modernidade se separou. Porém, a condição para esta recuperação respeita as exigências fundamentais da mentalidade moderna: trata-se de uma experiência individual, e não de uma irrefletida adesão convencional tradicionalista.329 E tal experiência requer novas categorias de compreensão, compatíveis com o estado histórico da consciência moderna. Jung acreditava que precisamente a noção de símbolo seria decisiva na elaboração dessas categorias, e por conseguinte na restauração do vínculo rompido entre modernidade e tradição. Por isso mesmo, a sensibilidade simbólica se lhe afigurava como o único remédio capaz de fazer frente à ameaça do niilismo e do desenraizamento modernos. 3. A crise da modernidade na experiência pessoal de Jung O sentido cultural e histórico da psyches therapeia formulada por Jung transparece na localização e função que ele dá à psicologia no interior da modernidade: “Os esforços da moderna psicologia do inconsciente representam uma reação salutar da psique européia que procura recompor as conexões perdidas com suas raízes através de uma conscientização do inconsciente.”330 Esta “moderna psicologia do inconsciente”, que tem como objetivo mais amplo recompor a continuidade com suas raízes, não é indiscriminadamente qualquer psicologia do inconsciente. Pois não se pode dizer que Freud, “mestre da suspeita” de paradoxal confissão positivista (enunciada sem rodeios em O Futuro de uma Ilusão), reivindique tal objetivo para a sua psicanálise – ainda que, na perspectiva de Jung, a psicanálise freudiana constitua um momento inicial no cumprimento dessa meta.331 Este 329 “Pertencer a [um credo], portanto, nem sempre implica uma questão de religiosidade mas, sobretudo, uma questão social que nada pode acrescentar à estruturação do indivíduo.” OC X, § 509. “O homem precisa da evidência transcendente de sua experiência interior, pois esta constitui a única possibilidade de se proteger da massificação.” Id., § 511. 330 OC XVIII, § 1494. 331 “Do ponto de vista da psique, o mundo ocidental se encontra numa situação crítica, e o perigo será ainda maior se preferirmos as ilusões de nossa beleza interior à verdade mais impiedosa. (...) Por isso não é de admirar que a escavação de nossa própria psique seja antes de mais nada uma espécie de drenagem. objetivo, em última análise, é próprio daquela “psicologia do inconsciente” que Jung elabora a partir da crise central de sua vida, vivida entre 1912 e 1918, e que Henri Ellenberger compreende segundo a categoria da “doença criativa”.332 Sob uma perspectiva ético-histórica, podemos dizer que é então que, de forma consciente e radical, Jung experimenta pessoal e dramaticamente em sua vida os efeitos do desenraizamento produzido pela modernidade, o que empresta a sua experiência o caráter de uma relativa exemplaridade.333 O momento culminante dessa experiência dá- se após o rompimento com Freud, e é relatado no capítulo “Confronto com o Inconsciente” de Memórias, Sonhos, Reflexões.334 Podemos referendar a interpretação ético-histórica de sua crise através das indicações que se referem àquele período. Em primeiro lugar, é preciso notar que o verdadeiro fascínio exercido sobre Jung pelo Fausto de Goethe, ao longo de toda a sua vida, revela seu envolvimento pessoal com o dilema tradição-modernidade.335 Sob esse prisma, o espírito que move a vida e a Só um grande idealista como FREUD pôde consagrar a um trabalho tão sujo a atividade de toda uma vida. (...) Portanto, nossa psicologia, isto é, o conhecimento de nossa psique, começa, sob todos os pontos de vista, pelo lado mais repugnante, a saber, por tudo que não queremos ver.” OC X, §183 e 186. 332 Cf. ELLENBERGER, H. F. The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic Psychiatry. New York: Basic Books, 1970, p. 657-748. O próprio Jung atesta a vinculação entre sua crise e sua psicologia: “Hoje posso dizer que nunca me afastei de minhas experiências iniciais. Todos os meus trabalhos, tudo o que criei no plano do espírito provêm das fantasias e dos sonhos iniciais. Isso começou em 1912, há cerca de cinqüenta anos. Tudo o que fiz posteriormente em minha vida está contido nessas fantasias preliminares, ainda que sob a forma de emoções ou de imagens. (...) Minhas buscas científicas foram o meio e a única possibilidade de arrancar-me a esse caos de imagens (...) Foram necessários quarenta e cinco anos para elaborar e inscrever no quadro de minha obra científica os elementos que vivi e anotei nessa época da minha vida.” In JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 170-176. 333 “Quando se ouve alguém falar de um problema cultural ou de um problema humano, nunca se deve esquecer de perguntar quem está falando. Pois, quanto mais geral o problema, tanto mais [o sujeito] ‘introduzirá secretamente’ sua psicologia pessoal na descrição. Isto poderá levar a distorções imperdoáveis e a falsas conclusões, com sérias conseqüências. Mas, por outro lado, o próprio fato de um problema geral envolver e assumir a personalidade inteira é garantia de que quem fala dele também o tenha vivenciado ou experimentado pessoalmente. Na segunda hipótese, ele nos apresenta o problema sob um ponto de vista pessoal, mostrando-nos portanto uma verdade, ao passo que o primeiro manipula o problema com tendências pessoais e o deforma, sob o pretexto de lhe dar uma forma objetiva. O resultado será simplesmente uma imagem ilusória sem qualquer base verdadeira.” OC X, § 157. 334 E mais extensamente em um seminário realizado em 1925. Cf. MCGUIRE, W. (ed.). Analytical Psychology. Notes of the Seminar given in 1925. C.G.Jung. Princeton: P.U.P., 1989. 335 “Quando li o Fausto não podia supor ainda quanto o estranho mito heróico de Goethe era coletivo, e profetizava o destino da Alemanha. Era por isso que me sentia pessoalmente atingido, e quando Fausto, em conseqüência de sua hybris e inflação, provoca a morte de Filemon e Baucis, acreditei ser culpado, um pouco como se, em pensamento, tivesse participado do assassinato dos dois velhos. (...) Fausto fez vibrar em mim uma corda e me atingiu de tal maneira que só podia compreendê-lo de um ponto de vista pessoal. O problema dos contrários, do bem e do mal, do espírito e da matéria, do claro e do obscuro, foi algo que me tocou profundamente. (...) Goethe, de alguma forma, havia esboçado um esquema de meus próprios conflitos e soluções. A dicotomia Fausto-Mefisto confundia-se para mim num só homem, e esse homem era eu! Em outras palavras, sentia-me atingido, desmascarado e, uma vez que era esse o meu destino, todas as peripécias do drama me concerniam pessoalmente.” in JAFFÉ, A. C.G. Jung. Mémórias, Sonhos, Reflexões, p. 209. A compreensão meramente pessoal da identificação ao problema faustiano vai ser posteriormente superada: “Enquanto não é reconhecido como tal, um problema coletivo toma sempre a forma pessoal e provoca, ocasionalmente, a ilusão de uma certa desordem no domínio da psique obra de Jung expressa-se na inscrição que ele esculpiu em sua torre de Bollingen: “Philemonis Sacrum – Fausti Poenitentia” (Santuário de Filemon – Arrependimento de Fausto). O crime de Fausto contra Filemon e Báucis é a metáfora perfeita da destruição da tradição pelo ímpeto dominador da consciência moderna. Reciprocamente, a identificação de Jung a Fausto e o anseio penitencial de expiação de uma culpa coletiva traduz-se em seu pensamento como o empenho em recuperar para a condição moderna um vínculo viável com a tradição. É o que ele mesmo confirma, ao dizer retrospectivamente em suas memórias: “Mais tarde, em minha obra, parti do que Fausto deixara de lado: o respeito pelos direitos eternos do homem, a aceitação do antigo e a continuidade da cultura e da história do espírito.”336 É igualmente revelador o fato de Jung abrir a narrativa sobre seu “confronto com o inconsciente” falando da desorientação e da incerteza que sentia, e da falência do “mito cristão” como fonte de sentido para sua vida.337 Essa experiência profundamente pessoal é, ao mesmo tempo, indício concreto de uma situação coletiva e cultural, e revela o impasse a que chega a modernidade: nascida da Idade Média cristã, ela perde em sua evolução histórica a continuidade com suas raízes, privando-se da orientação e do suprimento de sentido que elas ofereciam. E assim o indivíduo que sofre conscientemente o impacto dessa situação histórica, “tendo atrás de si tudo o que ruiu e foi superado, e diante de si o nada, do qual tudo pode surgir”338, mergulha nessa crise marcada pela incerteza e pelo desamparo, pois “admitir a modernidade significa declarar-se voluntariamente falido.”339 No limiar de sua crise, a arrogância faustiana com modulação nietzschiana ainda levava Jung a escrever que “o poder hipnótico da tradição ainda nos mantém agrilhoados, e por covardia e irreflexão o rebanho continua trotando pelo mesmo velho pessoal. Efetivamente, tais perturbações ocorrem na esfera pessoal, mas não são necessariamente primárias: são secundárias e decorrem de uma mudança desfavorável do clima social. Nesse caso, portanto, não se deve procurar a causa da perturbação na ambiência pessoal, mas sim na situação coletiva. A psicoterapia ainda não levou em conta, suficientemente, esta circunstância.” Ibid., p. 208. 336 In JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 210. Já Wolfgang Giegerich vê um fracasso na forma como Jung procurou realizar sua expiação do crime de Fausto. Cf. GIEGERICH, “Jung’s Betrayal of his Truth: the Adoption of a Kant-based Empiricism and the Rejection of Hegel’s Speculative Thought”, in Harvest. Journal for Jungian Studies, vol. 44, nº 1, 1998, p. 46-64. 337 Cf. JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 152. 338 OC X, § 150. 339 OC X, § 152. “Considerando todos os aspectos, acho que não estou exagerando se comparar a consciência moderna com a psique de um homem que, tendo sofrido um abalo fatal, caiu em profunda insegurança.” Id., § 155. “O abalo de nosso mundo e o abalo de nossa consciência são uma e a mesma coisa.” Id., § 177. caminho.”340 Quarenta e um anos depois, sua atitude é bem outra, e alude explicitamente à perda de raízes ocorrida em sua crise: “A filosofia oriental preenche uma lacuna em nós, mas sem resolver o problema colocado pelo cristianismo. Como não sou hindu nem chinês, devo contentar-me com meus pressupostos europeus, caso contrário corro o perigo de perder pela segunda vez as minhas raízes. Prefiro não arriscar algo assim, pois sei o que custa recompor uma continuidade perdida. Cultura é continuidade.”341 Se o “mito cristão” lhe parecia falido em 1912, em 1955 ele escreve ao padre beneditino Lucas Mensz: “Para a maioria das pessoas permanece oculto o fato de eu me basear no espírito cristão; devido à estranheza da [minha] linguagem e à incompreensão de meus anseios, mereço ser evitado.”342 E em 1959 ele explica a um correspondente inglês sua famosa declaração na entrevista à BBC em resposta à pergunta sobre se acreditava em Deus (“I don’t need to believe. I know.”), dizendo: “Sei que é uma maneira não convencional de pensar e entendo perfeitamente se ela dá a entender que não sou cristão. Mas eu me julgo cristão, pois me baseio totalmente em conceitos cristãos. Apenas tento fugir de suas contradições internas, introduzindo uma atitude mais modesta que leva em consideração a imensa escuridão da mente humana. A idéia cristã prova sua vitalidade através de contínua evolução, como acontece no budismo. Nosso tempo reclama sem dúvida alguns pensamentos novos neste sentido, pois não podemos continuar pensando de modo antigo ou medieval no tocante à esfera da experiência religiosa.”343 A novidade reclamada pelo nosso tempo brota de uma exigência própria da mentalidade moderna: “A consciência moderna abomina a fé e conseqüentemente as religiões que nela se baseiam. (...)[Ela só as considera válidas na medida em que o seu conteúdo de conhecimento parece concordar com sua própria experiência do pano de fundo psíquico.] Ela quer saber, isto é, experimentar originalmente por si mesma.” 344 340 CW VII, § 430. Passagem escrita em 1912 e deletada na revisão de 1917. Para a elaboração de sua experiência criativa do período 1913-1917 foi decisivo o contato com culturas não-européias, especialmente da África e do Novo México, que Jung conheceu em “expedições antropológicas” na década de 20. Numa passagem omitida da versão publicada das Memórias, ele afirma que suas experiências o haviam sobrecarregado “com um emaranhado de problemas cuja natureza exigia que eu estudasse a vida psíquica de não-europeus. Pois eu suspeitava que as questões postas para mim eram compensações por meus preconceitos europeus.” (citado em SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 322) E, em outra passagem omitida, ele revela o choque causado por esse contato em primeira mão com a alteridade cultural, que o levou a perceber como inadequados os “modos convencionais de conceber e lidar com problemas psicológicos”, e afirma: “Minha auto-confiança moderna sofreu uma derrota desconcertante. Simultaneamente mais rico e mais pobre, eu retornei dessas viagens para a tarefa de minha existência européia.” (id., p. 323) 341 Cartas II, 2/09/1953, à Condessa Elisabeth Klinckowstroem. 342 Cartas II, 22/02/1955, ao padre Lucas Mensz. 343 Cartas III, 05/12/1959, a Hugh Burnett. 344 OC X, § 171. Isso faz lembrar a declaração de Karl Rahner sobre a condição para se ser cristão nos novos tempos: “Já se disse que o cristão do futuro ou será um místico ou não o será”, entendendo-se por Este imperativo moderno da experiência soma-se a uma outra exigência fundamental para a recuperação do lastro com a tradição religiosa, e que diz respeito à linguagem enquanto suporte vivo das categorias humanas de compreensão em sua historicidade essencial. É na linguagem que o homem existe historicamente, e por isso a sua existência histórica é essencialmente expressividade. Por conseguinte, todo sentido que o homem elabora e expressa recebe necessariamente o selo da temporalidade histórica, e deriva sua vitalidade da vinculação à conjuntura cultural ampla em que ele é enunciado. Segue-se que uma transformação da conjuntura impõe a necessidade de novas formas de interpretação e expressão do sentido transmitido pela tradição. No caso da modernidade, como indicamos no primeiro capítulo, não estamos diante de uma simples transformação de conjuntura, e sim de uma verdadeira revolução estrutural. A consciência moderna, vinculada a uma visão de mundo gestada a partir da revolução científica, para recuperar o acesso ao sentido simbolicamente expresso na tradição da qual emergiu, requer preliminarmente a tradução de seus conteúdos segundo as coordenadas do espaço epistemológico constituído pelas ciências do homem. A incerteza e as dificuldades que envolvem essa tarefa são consideráveis.345 E não só isso: como apontamos no capítulo anterior, ao tratar da hipótese da sincronicidade, em sua radicalidade a experiência simbólica exige um ultrapassamento ou, pelo menos, uma ampliação da visão de mundo científica na direção de uma mística não fenômenos parapsicológicos raros, “mas uma experiência de Deus autêntica que brota do interior da existência”. RAHNER, citado em LIBÂNIO, J.B. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002, p. 21. Porém, na perspectiva cristã de Rahner, a mística é a consumação plena da fé. Também A. Malraux via na experiência mística uma possibilidade para o século XXI, entendendo por isso um acesso direto a Deus pela experiência (cf. LIBÂNIO, op. cit., p. 22). 345 Vejam-se as reflexões de Henrique Vaz sobre a incidência desse problema no pensamento teológico e na linguagem da fé em Escritos de Filosofia I (terceira parte: “Teologia e Linguagem). nova ontologia, o que aumenta ainda mais as dificuldades de uma restauração dos vínculos com a tradição. Como quer que seja, a “moderna psicologia do inconsciente”, elaborada por Jung a partir de sua experiência pessoal e profissional, representa confessadamente um esforço de tradução e disponibilização para a consciência racional moderna da sabedoria de vida presente nas tradições simbólicas que a humanidade construiu, e que Jung estudou com interesse inesgotável.346 O envolvimento crítico e apaixonado de Jung com o cristianismo expressa a particularidade moderna e ocidental de sua busca de recomposição da continuidade perdida com as raízes autênticas de sua “existência européia”. A validade e as limitações dos pressupostos teóricos de fundo de sua tentativa são questões que discutiremos no próximo capítulo e na conclusão. Por ora, basta-nos salientar o seu sentido e sua coerência com a compreensão que tinha das causas histórico-culturais da situação espiritual do homem moderno e dos problemas psíquicos dela decorrentes, bem como com a concepção teórico-psicológica que desenvolveu em torno das noções de arquétipo, instinto, símbolo e, por fim, das relações entre consciência e inconsciente. 4. A psyches therapeia de C.G. Jung: experiência simbólica como forma de sabedoria prática Como se dá a experiência do mal-estar da modernidade na situação individual, isto é, na experiência pessoal? O que poderia compelir a pessoa à experiência simbólica da realidade? 346 Dentro desse espírito, Jung escreve ao amigo Hugo Rahner: “Só sei aquilo que já disse: que a linguagem escolástica e seus pressupostos já não são adequados ao homem contemporâneo se quisermos transmitir-lhe alguma coisa sobre a psique humana. Isto eu não sei a priori, mas da repetida experiência.” Cartas I, 04/08/1945, a Hugo Rahner. Como vimos, Jung reconhece uma relação de continuidade entre a psicologia coletiva e a psicologia individual, de forma que, por um lado, os problemas coletivos e sociais de uma determinada época e cultura se impõem na esfera pessoal, determinando-a, e por outro lado a solução desses problemas começa com o indivíduo – pelo menos, essa é a sua crença, que ele expressa abertamente: “Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação. Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo. Em tempo algum, meditar sobre si mesmo foi uma necessidade tão imperiosa e a única coisa certa, como nesta catastrófica época contemporânea. Mas quem se questiona a si mesmo depara invariavelmente com as barreiras do inconsciente, que contém justamente aquilo que mais importa conhecer.”347 Dois anos mais tarde, Jung reafirma e especifica sua posição, ao meditar sobre o cenário criado pela primeira guerra mundial: “O espetáculo dessa catástrofe faz com que o homem, sentindo-se totalmente impotente, se volte para si mesmo, olhe para dentro e, como tudo vacila, busque algo que lhe dê segurança. Muitos ainda procuram fora de si mesmos; uns acreditam na ilusão da vitória e do poder; outros em tratados e decretos; outros, ainda, na destruição da ordem vigente. Mas são poucos os que buscam dentro de si, poucos os que se perguntam se não seriam mais úteis à sociedade humana se cada qual começasse por si, se não seria melhor, em vez de exigir dos outros, pôr à prova primeiro em sua própria pessoa, em seu foro interior, a suspensão da ordem vigente, as leis e vitórias que apregoam em praça pública. É indispensável que em cada indivíduo se produza um desmoronamento, uma divisão interior, que se dissolva o que existe e se faça uma renovação, mas sem impô-la ao próximo sob o manto farisaico do amor cristão ou do senso da responsabilidade social – ou o que quer que seja usado para disfarçar as necessidades pessoais e inconscientes de poder. O autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser humano às suas origens, ao seu próprio ser e à sua verdade individual e social, eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo de hoje.”348 Mas o que arrasta o indivíduo à incômoda tarefa do autoconhecimento, como mostra a experiência, não é uma espontânea e desinteressada vontade de se conhecer, mas um tipo de necessidade que obriga: um conflito, um sofrimento, muitas vezes manifestado sob a forma da “neurose psíquica” – expressão que Jung por vezes utiliza para cobrir genericamente o campo da psicopatologia, e que corresponde àquela “divisão interior” acima mencionada. Isso significa que a divisão neurótica possui um potencial de renovação, ligado ao autoconhecimento e à conseqüente possibilidade de 347 OC VII, pag. XIV (prefácio à edição de 1916). 348 OC VII, pag. XV (prefácio à edição de 1918). Em outro lugar, Jung afirma que “as terríveis forças desencadeadas pela guerra mundial levam à autodestruição porque carecem da sabedoria humana para orientá-las. Nossa visão do mundo revelou-se extremamente mesquinha, incapaz de dar a essas forças uma forma cultural.” OC X, § 31. devolver o ser humano às suas origens e à sua verdade individual e social. Reciprocamente, essa renovação exige aquela divisão interior, que é vivida com angústia como um “desmoronamento”349 e por isso mesmo não é buscada voluntariamente pelo indivíduo. Para Jung a neurose “é a expressão da pessoa toda que não pode ser tratada apenas nas categorias de uma especialidade médica”350, pois “se existe uma doença que não pode ser localizada porque procede da totalidade da pessoa humana, essa doença é a neurose psíquica.”351 A conseqüência desta ampliação na compreensão da neurose, correlata no nível clínico da compreensão histórico-cultural do sofrimento espiritual moderno, é que a própria definição da psicoterapia precisa ser ampliada. Trata-se de um procedimento que, de partida, destina-se a curar o mal-estar neurótico, “mas o que cura uma neurose?”, pergunta Jung.352 E afirma em seguida: “Para encontrar a verdadeira resposta a essa pergunta, a psicologia das neuroses precisa ir muito além de seus limites puramente médicos.”353 Assim, numa posição que certamente surpreende o leigo que desconhece o sentido e a natureza de sua praxis psicoterapêutica, Jung sustenta que “Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer realmente quem somos. Uma neurose estará realmente ‘liquidada’ quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá- la.”354 A neurose é, portanto, uma espécie de corretivo de uma “falsa atitude do Eu” – que deve “desmoronar” -, e representa uma oportunidade para o conhecimento de si mesmo. Isto significa que a neurose, ou sofrimento psíquico, remete em profundidade a essa “totalidade da pessoa humana”, que não se confunde com o Eu consciente empírico, abarcando também a dimensão inconsciente da personalidade, e que Jung designa com um termo distinto - Si-mesmo (Selbst): “A ‘personalidade supra-ordenada’ é o ser humano total, isto é, tal como é na realidade e não apenas como julga ser. A totalidade compreende também a alma inconsciente que tem suas exigências e necessidades vitais tal como a consciência. (...) Habitualmente chamo a personalidade supra-ordenada de 349 Observe-se que isso corresponde, na esfera pessoal, à aposta de Jung sobre um sentido para o niilismo que move o “iconoclasmo” ocidental. 350 OC XVIII, § 839. 351 OC XVI, § 194. 352 OC XVIII, § 840. 353 ibid. 354 OC X, § 361. Si-mesmo, e separo estritamente o eu, o qual como se sabe só vai até onde chega a consciência, do todo da personalidade, no qual se inclui além da parte consciente, o inconsciente. O eu está para o ‘Si-mesmo’ assim como a parte está para o todo. Assim sendo, o Si-mesmo é supra-ordenado ao eu. Empiricamente o Si-mesmo não é sentido como sujeito, mas como objeto, e isto devido à sua parte inconsciente, que só pode chegar indiretamente à consciência, via projeção. (...) O alcance indefinido da parte inconsciente torna portanto impossível uma apreensão e descrição completas da personalidade humana. Conseqüentemente, o inconsciente complementa o quadro com figuras vivas, que vão do animal até a divindade como os dois extremos além do humano. Além disso, o extremo animal é complementado pelo acréscimo do vegetal e do abstrato inorgânico, tornando-o um microcosmos. Estas complementações são encontradas com grande freqüência como atributo em imagens divinas antropomórficas.”355 Por transcender a consciência, em virtude de sua indeterminável extensão inconsciente, a totalidade pessoal do Si-mesmo em si é por princípio inobjetivável.356 Assim sendo, a experiência concreta que o sujeito faz de si mesmo como pessoa é necessariamente de natureza simbólica, pois tudo que escapa à apreensão direta precisa do símbolo para ser captado e expresso. Essa totalidade humana é, no fundo, uma noção metafísica; por esse motivo, Jung diz que o Si Mesmo, tomado não como imagem mas como realidade arquetípica “em si”, é uma noção transcendental e um conceito-limite, podendo todavia ser captado empiricamente através de símbolos, que apresentam uma fenomenologia especial própria, e que Jung estudou cuidadosamente.357 A grande variedade dessas manifestações simbólicas – que passam pelos motivos arquetípicos da pedra, da árvore, do animal prestativo, da criança, do velho sábio ou da grande mãe, das figuras do Anthropos, e atingem as formas geométricas abstratas – justifica a retomada da concepção antropológica do microcosmos, que Jung identifica ora ao inconsciente coletivo, ora ao Si-mesmo, e a postulação de uma possível continuidade entre a totalidade do ser humano e o todo da natureza. Tal continuidade, como vimos no capítulo anterior, é pressuposta na noção de sincronicidade, e a reproposição da concepção de microcosmos, respaldada pela experiência simbólica do Si-mesmo, vem 355 OC IX-1, § 314-315. “Designei esta [totalidade] que transcende a consciência com a palavra Si-mesmo (Selbst).” OC IX-1, § 278. Observe-se que o Si-mesmo é chamado tanto de totalidade “psíquica” quanto de totalidade “humana”. Para se compreender esta equiparação do “psíquico” ao “humano”, é preciso atentar para o fato de que a concepção de psique ou alma (Seele) em Jung engloba também as dimensões do corporal e do espiritual: “Corpo e espírito são para mim meros aspectos da realidade psíquica.” Cartas I, 10/09/1935, a H.A. Murray. 356 “Também o Si-mesmo é uma imagem psíquica [da totalidade transcendente do homem, a qual é transcendente porque indescritível e inatingível].” Cartas II, 13/01/1948, a Gebhard Frei. 357 Num sentido mais geral, isto é, na medida em que o Si-mesmo não é tomado apenas como um arquétipo (do sentido, da ordem etc.), que é o centro regulador da psique, mas como a totalidade dessa mesma psique, todos os múltiplos símbolos que expressam a atividade do inconsciente coletivo são símbolos do Si-mesmo. assim complementar com coerência a retomada da doutrina da correspondentia verificada na hipótese da sincronicidade, conforme assinalamos anteriormente.358 À noção de Si-mesmo articula-se outra, que lhe é intimamente relacionada, e que representa, na verdade, a sua contrapartida dinâmica. Jung vê em ação na alma humana um impulso à individuação, que expressa a tendência prospectiva desse “sistema auto- regulado” que é a psique, cuja meta é a realização de todas as suas potencialidades inatas, a atualização da totalidade imanente do Selbst. Apesar de o próprio Jung não ter se dado conta disso com clareza, a sua concepção acerca da individuação e do Si-mesmo evoca noções análogas encontráveis no pensamento de Aristóteles. Somente numa entrevista a Ximena de Angulo, em 1952, Jung admite a analogia com as noções aristotélicas. Tentando explicar o que entendia por individuação, Jung usa uma comparação extraída da própria fenomenologia simbólica das imagens psíquicas: “A individuação é um processo natural. É o que faz uma árvore tornar-se árvore; se interferirem nela, então adoece e não pode funcionar como árvore; mas se a deixarem entregue a si mesma, desenvolve-se até ser uma árvore. Isso é a individuação.” Então a entrevistadora intervém, e relata: “Perguntei-lhe se o que fazia uma árvore crescer para ser uma árvore não era a mesma coisa que a enteléquia aristotélica, as potencialidades inerentes, dentro da glande, que se desenvolvem até se transformarem num carvalho. Jung hesitou e eu tive que repetir a pergunta de outra maneira, mas então ele disse que era a mesma coisa.”359 Na verdade, a despeito de sua resistência a Aristóteles, Jung já havia se utilizado da noção de enteléquia para descrever a realização do Si-mesmo, num texto de 1940: “A meta do processo de individuação é a síntese do Si-mesmo. Observado por outro ponto de vista, prefere-se o termo ‘enteléquia’ ao de ‘síntese’. Há uma razão empírica pela qual a expressão ‘enteléquia’ [é, em certas condições,] mais adequada: os símbolos da totalidade ocorrem freqüentemente no início do processo da individuação e até podem ser observados nos [primeiros sonhos da infância remota]. Esta observação intercede a favor de uma existência [a priori da totalidade potencial], razão pela qual o conceito de enteléquia é recomendável. Na medida porém em que o processo de individuação [ocorre, 358 A noção de microcosmos está abundantemente presente nos escritos de Jung – basta conferir as remissões no verbete respectivo no índice geral das Obras Coligidas (CW XX). J.J. CLARKE afirma que “a principal contribuição de Jung ao pensamento moderno reside na revalidação e reformulação que fez da idéia muito antiga de que o homem é uma espécie de cosmo – um microcosmo” (Em busca de Jung. Indagações históricas e filosóficas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993, p.131). 359 “Comentários sobre uma Tese de Doutorado”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. C.G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p.191-201, aqui p. 195. Ximena de Angulo comenta a seguir: “Eu penso que o seu preconceito contra Aristóteles é tão grande que o fez relutar em comprometer-se; provavelmente porque ‘o pensamento aristotélico, dentro da Igreja, produz tamanha aridez intelectual e rigidez doutrinária’.” (Esta última observação retrata a posição de Jung). empiricamente falando,] como uma síntese, é como se paradoxalmente algo já existente [estivesse sendo reunido]. Deste ponto de vista o termo ‘síntese’ também é aplicável.”360 Ao que tudo indica, o uso da noção de enteléquia em Jung provém em linha direta de Hans Driesch, biólogo neovitalista do século XIX, que por sua vez a refere explicitamente a Aristóteles, não obstante as diferenças consideráveis existentes entre a biologia aristotélica e o neovitalismo.361 Como pode ser percebido pela passagem acima, justamente por desconsiderar o aparato conceptual aristotélico Jung se enreda em complicações desnecessárias ao tentar compreender o estatuto ontológico do Si-mesmo e sua relação com a individuação. Caso tivesse superado seu preconceito contra Aristóteles, e lançado mão dos conceitos de ato e potência, em suas relações com os conceitos de forma e atividade, que tornam inteligível tanto o movimento quanto a ação humana (praxis), o paradoxo de uma totalidade potencial existente a priori – e portanto já em ato – que precisa ser empiricamente sintetizada seria substituído por uma formulação mais rigorosa e precisa, do ponto de vista intelectual.362 Aplicada mais propriamente à esfera humana, a individuação coincide com o processo de tornar-se um ser humano completo e singular. Por outro lado, a simbolização desse processo mediante imagens naturais – a da árvore, por exemplo – não se resume a um artifício metafórico da linguagem: Jung entende a individuação como uma expressão do processo biológico geral, “mediante o qual todo ser vivo torna- se aquilo que está destinado a ser desde o começo.”363 A extensão do principium individuationis a um âmbito mais amplo do que o humano milita em favor de nossa 360 JUNG,C.G. OC IX-1, § 278. Lembremos que, em Aristóteles, a noção de enteléquia é fundamentalmente sinônimo de ato, e também de forma e energeia (cf. REALE, G. História da Filosofia Antiga. Vol. V:Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo: Loyola, 1995, verbete “enérgheia”, p. 88-89). Além disso, na aitiologia aristotélica a causa final está inscrita na causa formal, que tem preeminência sobre todas as demais causas. 361 Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 180-181. 362 De uma forma um pouco apressada, Marilyn Nagi afirma que Jung emprega a versão aristotélica de teleologia em suas concepções de individuação e Si-mesmo (cf. NAGI, M. Questões Filosóficas na Psicologia de C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 237-244). A sedução dos paralelismos, tão junguiana, não nos deve fazer perder de vista as diferenças existentes entre as duas formulações. No Eranos Tagung de 1946, o professor Walter Wili mais cautelosamente chamou a atenção para as afinidades existentes entre a ética de Aristóteles e concepções fundamentais na psicologia analítica (cf. WILI, W. “Probleme der aristotelischen Seelenlehre”, in Eranos Jahrbuch, vol. XII, 1946, p. 55-93). 363 JUNG,C.G. OC XI, § 460. afirmação de que os pressupostos metafísicos da psicologia analítica apontam na direção da ontologia clássica. Em consonância a esta extensão, Jung alude ao “si-mesmo mais íntimo de todo ser humano e animal, de plantas e cristais”364, que corresponde àquilo que todo ser vivo está destinado a ser desde o começo – em termos aristotélicos: à sua enteléquia. A individuação significa o impulso de realização plena daquilo que constitui a essência da espécie: “Todo ser vivo que é capaz de se desenvolver individualmente, sem restrições, melhor realizará, pela própria perfeição de sua individualidade, o tipo ideal de sua espécie, e além disso alcançará um valor coletivo.”365 Há, portanto, uma correspondência entre a “perfeição da individualidade” e a “realização do tipo ideal da espécie”.366 Jung utiliza o termo teleiosis para se referir à individuação, e diz que as imagens do Anthropos, enquanto homem completo (teleios) representam simbolicamente o Si-mesmo, definido como totalidade transcendente à consciência.367 A individualidade ou singularidade de um indivíduo é definida como “uma combinação única, ou como diferenciação gradual de funções e faculdades que em si e por si mesmas são universais”, e não como uma “estranheza de sua substância ou de seus componentes”.368 Por conseguinte, a individuação “significa precisamente a melhor e mais completa realização das qualidades coletivas do ser humano”.369 Em outros termos: individualidade e universalidade são mutuamente remitentes, e a individualidade deve ser captada junto à universalidade ou generalidade, e nunca contra ou além dela.370 364 Cartas II, 03/08/1953, anônimo (Essa passagem merece ser lida integralmente, pois exibe uma posição que lembra Nicolau de Cusa, quando Jung afirma que esse si-mesmo mais íntimo é Deus “mas infinitamente diminuído e aproximado de sua forma individual última”). 365 CW VII, § 504 (cf. OC VII, pag. 287). 366 Aqui a terminologia pode ser enganadora: o viés indubitavelmente biologizante de Jung desaconselha a interpretação do “tipo ideal” apenas como uma versão de idéia regulativa kantiana, justificando a aproximação ao eidos aristotélico: o Si-mesmo em Jung é decididamente uma realidade concreta, que se manifesta, por exemplo, nas grandes obras da cultura, bem como em certas experiências individuais. 367 Cf. OC XI, § 742 e 755: “O Si-mesmo é o teleios anthropos, o homem completo, cujos símbolos são [a criança divina] ou seus sinônimos.” Cf. Cartas II, 26/03/1951, ao pastor Werner Niederer: “No sentido psicológico, a teleiosis significa uma ‘integralidade’ e não uma ‘perfeição’ da pessoa. A totalidade não pode ser consciente, pois abrange também o inconsciente. Ela é, ao menos em sua metade, um estado transcendental, portanto é mística e numinosa. A individuação é uma meta transcendental, uma encarnação do anthropos.” 368 OC VII, § 267. 369 OC VII, § 267. 370 Cf. PIERI, P. F. Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus, 2002, verbete “individualidade”. Para Jung, esse nível de universalidade/generalidade enraíza-se, por um lado, na materialidade do corpo, e os símbolos do Si-mesmo humano expressam tanto essa materialidade quanto a estrutura da consciência discriminadora.371 Ao mesmo tempo, portanto, em que há uma distinção real entre Eu e Si-mesmo, há também uma relação recíproca: por um lado, o Si-mesmo é o fundamento imprescindível de toda consciência e aquilo que põe em movimento o processo de individuação; e, por outro lado, o Eu enquanto sede ou órgão da tomada de consciência é condição da individuação e da realização do Si-mesmo, na medida em que esta realização traduz-se na situação humana como a conscientização do Si-mesmo ou auto-conhecimento.372 Podemos entender a individuação segundo dois ângulos: o Si-mesmo se individua ou realiza através do Eu, ou no Eu, e o Eu se individua ao assemelhar-se ao Si-mesmo, realizando-o. A meta da individuação é a realização plena da totalidade do Si-mesmo. Porém, toda realização concreta sendo inevitavelmente particular, dados o seu condicionamento empírico e a limitação essencial da consciência empírica do Eu, resulta que se abre uma distância insuperável entre a meta da individuação e a sua efetivação empírica: eis o motivo que leva Jung a referir-se à individuação enquanto encarnação acabada do Anthropos como uma “meta transcendental”.373 Por isso mesmo, raríssimas vezes Jung emprega o particípio “individuado” para se referir a algum exemplo humano concreto de individuação. Pelo contrário: ele aceita serenamente o “fardo de ser humano” – a finitude -, e reconhece que “em última análise, todos ficamos presos em algum lugar, pois somos mortais e permaneceremos sendo uma parte daquilo que somos como um todo. A totalidade que podemos atingir é muito relativa.”374 O que significa, usando os próprios termos de Jung, que na individuação concreta o Eu – a parte – jamais realiza plenamente o Si-mesmo – o todo. Desta forma, a individuação é um processo estruturalmente aberto e interminável. 371 Cf. OC IX-1, §§ 290-291. 372 “O sentido da evolução humana está na realização desta vida. Ela é rica o suficiente em maravilhas. E não numa separação deste mundo. Como posso realizar o sentido de minha vida se me coloco como objetivo o ‘desaparecimento da consciência individual’? O que sou sem esta minha consciência individual? [Mesmo] aquilo que chamei de ‘Si-mesmo’ atua apenas graças a um ‘eu’, que escuta a voz daquele ser maior.” Cartas III, 02/08/1957, a Meggie Reichstein. Criticando a afirmação oriental de uma experiência sem imagens, com a conseqüente anulação do Eu, Jung diz: “A comparação com o sono profundo, do qual não resta lembrança alguma, também se refere a um estado em que nenhuma lembrança pode surgir, porque nada foi percebido. Mas na experiência satori algo foi percebido, isto é, que houve uma iluminação ou algo semelhante. E isto é uma imagem [definida] que pode ser comparada com a tradição e com ela ser harmonizada. (...) É simplesmente incompreensível que [uma experiência possa ser afirmada como tendo acontecido] quando não há ninguém [que a teve]. Esse ‘ninguém’ que afirma é sempre um [Eu]. Se não há [Eu], nada pode ser percebido.” Cartas III, 10/12/1958, ao Dr. James Kirsch. 373 Cf. Cartas II, 26/03/1951, ao pastor Werner Niederer. 374 Cartas III, 11/05/1956, a Rudolf Jung. As noções de Si-mesmo e de individuação são os pilares da concepção antropológica implicada na psicologia analítica.375 A psyches therapeia formulada por Jung organiza-se, em última análise, em torno a estes dois pólos.376 Como assinalamos em nossa introdução, para demonstrar a sua significação filosófica é preciso interpretá- la a partir de uma perspectiva ética reconhecida no campo da própria filosofia. Por este motivo, resumimos no primeiro capítulo as coordenadas fundamentais da concepção aristotélica de sabedoria prática. É chegado o momento de utilizá-las para cumprir a tarefa que nos propusemos. Aqui não se trata, propriamente falando, de comparar a concepção de phronesis de Aristóteles com a psyches therapeia de Jung. A simples comparação não faria muito sentido, principalmente por dois motivos: em primeiro lugar, porque a experiência humana sobre a qual Aristóteles se baseia para construir sua concepção não contemplava uma série de dimensões presentes na realidade visada por Jung – e em especial a dimensão da interioridade subjetiva, resultante do longo e acidentado itinerário histórico da noção e da experiência de pessoa no mundo ocidental, a partir de suas raízes cristãs377; e em segundo lugar porque a phronesis aristotélica está sólida e explicitamente ancorada em uma ontologia da forma que, mesmo concedendo a homologia relativa entre certas noções aristotélicas e modelos explicativos elaborados por Jung, estaria quando muito pressuposta na psicologia analítica, mas impedida de se 375 Tomando como referência a antropologia filosófica sistemática de Henrique Vaz, podemos compreendê-las a partir das duas categorias que representam o fecho do discurso antropológico vaziano: as categorias de pessoa e de realização. Cf. VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 141-252. 376 Isso não significa que, na prática psicoterapêutica, se possa prescindir de todas as outras categorias fenomenológicas elaboradas por Jung – sombra, anima, animus etc. – nem que se deva reduzi-las à categoria do Si-mesmo. Elas são indispensáveis para se compreender a multiplicidade de formas pelas quais a totalidade psíquica se manifesta. Uma abordagem terapêutica que se reduzisse ao ângulo do Si- mesmo, stricto sensu, estaria de antemão empobrecida pela perda da diversidade de aspectos que caracterizam a vida anímica. Nesse ponto, subscrevemos inteiramente a posição de James Hillman, que, sob o nome de “monoteísmo psicológico”, critica essa atitude que “usualmente apresenta o ego numa linha direta de confronto e compromisso com um único Si-mesmo, representado por imagens de unidade (mandalas, cristais, esferas, homens sábios e outros padrões de ordem). Mas, segundo Jung, o Si-mesmo possui várias instâncias arquetípicas. A enigmática relação entre o Si-mesmo e os arquétipos reproduz o antigo enigma do muitos-em-um e do um-em-muitos. Para dar pleno valor à multiplicidade diferenciada das figuras divinas, dos daimones e das criaturas míticas do mundo arquetípico, como também do mundo fenomênico de nossas experiências, onde a realidade psicológica é imensamente complicada e multiforme, devemos concentrar-nos intensamente na pluralidade do Si-mesmo, em seus muitos Deuses e nas várias modalidades existenciais de seus efeitos. Devemos pôr de lado as fantasias teológicas de totalidade, unicidade e outras imagens abstratas daquela meta chamada Si-mesmo.” HILLMAN, J. O Mito da Análise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 233. 377 Cf. VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 189-207. Para a inflexão moderna desse processo histórico na construção da identidade subjetiva, ver TAYLOR, C. As Fontes do Self. A Construção da Identidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1997. Ver também Rémi Brague, “Le Problème de l’Homme Moderne”, in LAFOREST, G. e DE LARA, P. (dir.) Charles Taylor et l’Interpretation de l’Identité Moderne. Paris: Cerf, 1998, e o bom ensaio de FIGUEIREDO, L. C. A Invenção do Psicológico. Quatro Séculos de Subjetivação. 1500-1900. São Paulo: Educ/Escuta, 1992. afirmar teoricamente de modo inequívoco em face da opção epistemológica cética feita por Jung, que apresentaremos e criticaremos no próximo capítulo. Além disso, essa ontologia pressuposta ou camuflada, sob muitos aspectos, quadra muito mais com a matriz neoplatônica (que, como é sabido, pretende assimilar o hilemorfismo aristotélico no interior de um enquadramento platônico), e mais ainda com a assimilação idealista e romântica do neoplatonismo no século XIX. E por fim, certas características determinantes das concepções psicológicas de Jung dificilmente encontrariam uma confirmação explícita no pensamento de Aristóteles – como por exemplo a conformação apriorística das estruturas universais da imaginação (não de seu conteúdo sensível concreto) e a própria abertura fundamental da individuação. A comparação, metodologicamente apropriada a uma abordagem como a da história das idéias, deveria ser feita em primeira mão com as matrizes filosóficas do século XIX, mais imediatamente ligadas à gestação da psicologia analítica.378 Isso não nos impede de tentar compreender a praxis psicoterapêutica junguiana, bem como seus modelos teóricos correlatos, à luz da teoria da praxis aristotélica e de seus fundamentos ontológicos.379 Nosso uso do referencial aristotélico, sempre levando em conta a sua assimilação na Ética sistemática de Henrique Vaz, é portanto de natureza metodológica. Assim, as noções aristotélicas de forma (eidos), ato (energeia, entelechia) e de realização humana (eudaimonia) podem fornecer um valioso ângulo de interpretação do sentido prático da psicologia analítica. A compreensão em chave biológica da individuação vem, no caso do ser humano, ser assumida em chave ética, o que significa que, mais do que simples momentos de um processo meramente natural, as experiências que constituem o processo de individuação inscrevem-se na categoria da praxis. Isto não deve causar estranheza, pois Jung, a despeito de sua inata “inclinação de amante da natureza”380, reconhece que o homem já não pode cumprir suavemente o processo biológico natural da individuação, uma vez que, a partir da conquista prometeica da consciência, impõe-se uma reviravolta trágica pela colisão entre consciência e natureza.381 Por um lado, Jung considera “um absurdo isolar a mente humana da natureza em geral”, pois “não há em princípio nenhuma diferença entre o animal e a psique humana. 378 Esboçaremos uma tal comparação no próximo capítulo, com o intuito de criticar a opção epistemológica de Jung e mostrar a necessidade de se reconfigurá-la. 379 Da mesma forma, seria teoricamente possível e legítimo fazer-se uma leitura do modo de vida filosófico neoplatônico, em seu aspecto prático, a partir do referencial conceptual aristotélico. 380 Cf. Letters II, 25/02/1958, a Karl Schmid (a tradução brasileira está escandalosamente errada). 381 Cf. Cartas II, 18/06/1949, a Armin Kesser. O parentesco dos dois é muito óbvio.”382 Por outro, a reflexividade que caracteriza a consciência (Bewusstsein) humana e torna o homem um ser singular na natureza é reconhecida em sua significação distintiva: “A contradição e o paradoxo sempre inerentes à avaliação que o homem faz de sua própria essência [é na verdade um objeto de admiração, e só se pode explicá-la como emergindo de uma extraordinária incerteza de julgamento – em outras palavras,] o próprio homem é um enigma [para si mesmo]. Isso [é compreensível, visto que lhe faltam os meios de comparação] necessários para o autoconhecimento. Ele é capaz de estabelecer com clareza as distinções entre si e os outros animais, no que diz respeito a sua anatomia e fisiologia, mas faltam-lhe critérios para a avaliação de si mesmo enquanto essência consciente, auto-reflexiva e dotada de linguagem. [Ele] é um fenômeno único no planeta, não podendo se comparar a nada semelhante. (...) [o homem continua a se assemelhar] a um eremita que sabe pertencer, do ponto de vista da anatomia, à família dos antropóides [mas que, a julgar pelas aparências, é extraordinariamente diferente de seus primos com relação a sua psique].”383 A característica de ser “um enigma sem solução, um milagre surpreendente, ou seja, um objeto de perplexidade” é, no entanto, “comum a todos os mistérios da natureza”.384 A oposição entre consciência, como princípio “espiritual”, e inconsciente, como princípio “natural”, é apenas um caso particular da oposição de princípios ou forças que caracteriza a concepção de Natureza em Jung, e portanto é também, de certa forma, “natural”.385 Mas ela introduz uma dificuldade específica, que justifica a função da cultura e, nesta, a tarefa da psyches therapeia: “É ao crescimento da consciência que devemos a existência de problemas; eles são o presente de grego da civilização. É o afastamento do homem em relação aos instintos e sua oposição a eles que cria a consciência. O instinto é natureza e deseja perpetuar-se com a natureza, ao passo que a consciência só pode querer a [cultura] ou sua negação. E mesmo quando procuramos voltar à natureza, embalados pelo ideal de Rousseau, nós ‘cultivamos’ a natureza. Enquanto continuarmos identificados com a natureza, seremos inconscientes e viveremos na segurança dos instintos que desconhecem problemas. Tudo aquilo que em nós está ligado ainda à natureza tem pavor de qualquer problema, porque seu nome é dúvida, e onde a dúvida impera, aí se enquadra a incerteza e a possibilidade de caminhos divergentes. Mas nos afastamos da guia segura dos instintos e ficamos entregues ao medo, quando nos deparamos com a possibilidade de caminhos diferentes, porque a consciência agora é chamada a fazer tudo aquilo que a 382 Letters II, 18/06/1957, a J. C. Vernon. Por vezes essa continuidade é levada ao exagero, como quando Jung afirma que “para [Freud] a consciência é uma aquisição humana. Eu, ao contrário, sou da opinião de que mesmo os animais têm consciência – os cães, por exemplo – e [empiricamente há muito a ser dito em favor disso], pois os conflitos de instintos [não são de todo desconhecidos no nível animal].” Cartas III, 12/07/1958, a Wilhelm Bitter. Raiando ao absurdo, Jung se refere aqui à consciência moral! (Gewissen, e não Bewusstsein). Nos momentos mais sóbrios, a continuidade é posta em termos mais plausíveis: “[Eu arrisco a conjectura], baseada em [certas] experiências, de que as camadas inferiores de nossa psique ainda têm caráter animal. É pois muito provável que também [os animais possuam] arquétipos semelhantes ou idênticos. É certo [que eles possuem] arquétipos, pois as simbioses animais-plantas demonstram claramente que deve haver uma imagem hereditária no animal que o leva a ações instintivas específicas.” Cartas II, 25/06/1946, ao dr. Robert Eisler. Cf. também, em OC VIII, o ensaio “Instinto e Inconsciente”. 383 OC X, § 525-526. 384 ibid. “Nossa psique é uma parte da natureza e seu [enigma] é igualmente [ilimitado].” OC XVIII, § 439. 385 Cf. OC VIII, § 98. Trataremos da concepção de Natureza em Jung no próximo capítulo. natureza sempre fez em favor de seus filhos, a saber: tomar decisões seguras, inquestionáveis e inequívocas. E, diante disto, somos acometidos por um temor demasiado humano de que a consciência, nossa conquista [prometeica], ao cabo não seja capaz de nos servir tão bem quanto a natureza.”386 A perda do vínculo instintivo desemboca em uma “desorientação nas situações humanas em geral”,387 o que significa admitir a necessidade imperiosa de uma orientação prática. Jung reconhece, portanto, que a cultura e a consciência estão obrigadas a tentar suprir o que a adesão imediata à natureza proporcionava em um imaginário “estado natural”.388 Porém, como consciência e cultura, em suas ilimitadas formas particulares, correspondem à destinação da “natureza humana”, como o próprio Jung não se cansa de reafirmar389, já o nascimento da humanidade representa uma ruptura da lei meramente natural, que impõe necessariamente a intenção restitutiva de uma integração perdida.390 Todo o paradoxo da condição humana transparece aqui: realizar-se humanamente implica, em Jung, arrancar-se ao estado de inconsciência natural, e reintegrar-se conscientemente à ordem da natureza, recuperando-a humanamente. A situação moderna representa uma substituição dessa intenção reconciliatória pelo projeto de dominação ilimitada da natureza. Em perspectiva psicológica, isso significa um desenraizamento radicalizado ou perda deliberada de contato com a esfera instintual, e Jung interpreta tal atitude como uma usurpação pelo Eu consciente da regência da totalidade psíquica que cabe ao Si-mesmo e que sempre leva em consideração o inconsciente. O resultado é a dissociação neurótica, e por essa razão a neurose é uma tentativa de cura (pois traz cifrada em si a marca de uma totalidade 386 OC VIII, § 750, grifos nossos. “O caminho percorrido até o Logos representa, sem dúvida, uma grande conquista, que deve ser paga no entanto com a perda dos instintos, isto é, com a perda de realidade”. OC XI, § 442. 387 OC XII, § 74. 388 Jung fala freqüentemente que o homem primitivo funciona de modo mais “natural” do que o homem moderno. O que nem sempre ele explicita é o fato de que, também nessa situação “primitiva”, o funcionamento “natural” deriva da tradição – e portanto da cultura -, que, poderíamos dizer, é mais “ecológica” nas sociedades arcaicas, ao passo que na modernidade a natureza é encarada como algo a ser submetido aos desígnios do homem, que nessa mesma medida se aliena radicalmente da ordem natural. Para uma crítica da visão de Jung sobre o homem “primitivo”, cf. RADIN, P. El Hombre Primitivo como Filósofo. Buenos Aires: EUDEBA, 1960; cf. também SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 323-338. 389 “O alvorecer da consciência, na verdade a própria consciência, é a meta mais importante da evolução humana.” Letters I, 10/07/1946, a Fritz Künkel. 390 “Jamais conheceu o homem a inocência de uma vida sem fratura. Há como que um pecado original da existência. (...) A manutenção da existência exige a busca de um equilíbrio frágil e ameaçado, do qual a menor das rupturas já impõe penalidades severas. Insegurança ontológica, geradora de angústias, como se a vida mesma do homem correspondesse a uma transgressão da ordem natural.” GUSDORF, G. Mito e Metafísica. São Paulo: Convívio, 1979, p. 24. Assim, a imagem arquetípica de uma conciliação do humano com o natural aparece como uma espécie de ideal regulativo que mobiliza o desejo humano e determina o impulso de individuação. rompida) e esta cura – que corresponde à substituição da dissociação neurótica pelo engajamento consciente no processo de individuação – expõe e supera a “falsa atitude do Eu”. Por isso, também, a psyches therapeia proposta por Jung é endereçada à consciência moderna, e no fundo representa um esforço no sentido de uma genuína conversão de uma forma de atitude para outra. Que tal esforço possa ser entendido a partir da concepção aristotélica da phronesis fica evidente, em primeiro lugar, pela aproximação que Jung faz entre a psicoterapia e a educação, entendida no sentido da vida filosófica nas escolas da Antiguidade; em segundo lugar, pela apresentação da individuação como uma realização moral; e em terceiro lugar, pela diferenciação que ele estabelece entre o procedimento psicoterapêutico e a técnica – diferenciação em que ecoa a distinção traçada por Aristóteles entre praxis e poiesis.391 Relembrando o que expusemos em nosso primeiro capítulo, vimos que a phronesis supõe a determinação do bem humano último, que Aristóteles demonstra ser a eudaimonia – significando a excelência do indivíduo na humanidade e sua auto- realização nessa excelência. A eudaimonia consiste em uma atividade (energeia) constituída por ações propriamente humanas e humanizadoras, que têm o seu fim em si mesmas (praxeis), e seu resultado final é a teleiosis – perfeição do agente, no sentido de atualização ou cumprimento do fim (telos) que está inscrito na essência do indivíduo. A realização ética do indivíduo, feita mediante a intervenção da razão prática, representa também uma realização da natureza, em certo sentido: como a razão profunda da physis está conservada no ethos, a educação virtuosa do sujeito empírico, 391 Cf. OC IV, § 442; cf. “As Entrevistas de Stephen Black”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.) C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 231; cf. OC XVIII, § 1172: “(...) a cura da neurose não é, em última análise, uma simples questão de habilidade terapêutica, mas uma realização moral (...) Nenhuma teoria pode informar sobre as exigências últimas da individuação, nem existem à disposição receitas que podem ser usadas rotineiramente.”; cf. Cartas I, 22/03/1935, a Otto Körner: “Sempre procuro mostrar às pessoas que o verdadeiro conhecimento da psique humana não precisa apenas de grande saber mas também de uma personalidade diferenciada. Em última análise não é possível tratar da psique com uma única técnica (...) Segundo penso, deve-se evitar a impressão de que a psicoterapia é uma técnica fácil.”; cf. OC X, § 335 e 337: “O que poderia lançar mais luz sobre o fato de que a psicoterapia não é simples ‘técnica’ do que a multiplicidade de técnicas, de opiniões, de ‘psicologias’ e de premissas filosóficas (ou de falta delas)? Não é precisamente esta multiplicidade e contraditoriedade que mostram tratar-se de algo bem superior do que mera ‘técnica’? (...) Por muito tempo imaginamos ser possível tratar a psicoterapia ‘tecnicamente’, como fórmula de receituário, um método operacional ou um teste de cores. O clínico geral pode lançar mão de todas as técnicas médicas existentes, não importando se tem esta ou aquela opinião pessoal sobre seu paciente, se defende esta ou aquela teoria psicológica, se possui convicções filosóficas ou religiosas. Mas na psicoterapia não se pode proceder assim. Querendo ou não, o médico está nela envolvido com suas convicções, tanto quanto o paciente. Inclusive é indiferente qual técnica emprega; o importante não é a ‘técnica’, mas a pessoa que usa determinado método. O objeto do método não é um preparado anatomicamente morto, nem um abscesso ou uma substância química, mas a totalidade de uma pessoa sofredora.” ao elevá-lo à condição de sujeito ético, atualiza no âmbito humano a tendência imanente à atualização plena que vigora em toda a extensão da physis. Poderíamos dizer que, na eudaimonia, a liberdade do agente não abole nem se opõe à natureza, mas a confirma. Examinando os fundamentos antropológicos da psyches therapeia de Jung, pode-se perceber que eles são compatíveis com esse enquadramento, preenchendo as exigências iniciais para a interpretação da mesma como forma de sabedoria prática. Como apontamos no capítulo primeiro, a realização plena da forma humana (enteléquia) coincide com o fim último a ser captado pela phronesis, que assim orienta a práxis segundo a referência da eudaimonia, e por isso a deliberação em torno a qualquer situação particular refere-se ao fim último da auto-realização humana segundo a sua essência. A individuação para Jung é entendida justamente como a realização ou atualização das potencialidades inatas do sujeito, inscritas na forma (eidos) ou enteléquia do Si-mesmo, e este é entendido como a realidade concreta que fornece a referência e o modelo para a “excelência do indivíduo na humanidade”. A psicoterapia busca facilitar essa realização, que vem restaurar a integração à natureza segundo a especificidade humana. A atividade fundamental na individuação é a tomada de consciência (vulgarizada no jargão psicoterapêutico com o termo “insight”), e como tal ela apresenta as características distintivas da energeia aristotélica: é um todo indivisível que ocorre no agora, sendo completa pontual e instantaneamente.392 Por outro lado, assim como em Aristóteles o fim último deve ser realizado na “vida completa”, também a individuação e a tomada de consciência em Jung se desenrolam ao longo da totalidade da vida humana. Vimos também que Aristóteles expõe a confluência e o encadeamento de desejo e inteligência na obra da sabedoria prática. Na decisão racional ou escolha deliberada (prohairesis) unificam-se inteligência e desejo. A oposição dos desejos alógicos à razão pode ser superada pela deliberação racional (boulesis), na medida em que esta esclarece e refreia os desejos, para orientá-los a seu fim verdadeiro. Podemos dizer que esta perspectiva está pressuposta na praxis psicoterapêutica de Jung, em especial na situação do confronto com o inconsciente. De fato, jamais Jung advogou uma entrega cega aos impulsos e tendências inconscientes, mas sim a sua consideração pela consciência na relação de confronto (Auseinandersetzung) ou diferenciação. Para ele, o inconsciente, rigorosamente falando, não deve ser tomado 392 Cf. PUENTE, F.R. Os Sentidos do Tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001, p. 316. como fonte de revelações que nos guiam: nós é que nos orientamos considerando as manifestações espontâneas ou “naturais” do inconsciente,393 o que significa que a razão prática deve necessariamente intervir para possibilitar tal orientação. Elie Humbert circunscreve a atitude adequada da consciência na relação com o inconsciente, segundo o modelo proposto na psicologia analítica, de acordo com três verbos utilizados por Jung ao descrever sua experiência inaugural: sich auseinandersetzen (confrontar-se com, ou diferenciar-se de), geschehenlassen (deixar acontecer) e betrachten (considerar, e também engravidar: a consideração dos conteúdos do inconsciente pela consciência pode deflagrar uma transformação nestes, em que o que estava contido embrionariamente vem à luz e “nasce” para a consciência – o que implica uma transformação da própria consciência).394 A simples inundação da consciência racional pelos afetos e imagens do inconsciente irracional pode resultar em comprometimento ou mesmo destruição da posição humana395, indo, em terminologia junguiana, da simples “inflação” à catastrófica “possessão”. Assim, é preciso dizer em alto e bom som que, em última análise, e por mais surpreendente que possa parecer, em Jung encontra-se um alto e decisivo valor atribuído à consciência (no sentido de Eu consciente). Cabe ao Eu e à sua atitude moral e reflexiva a palavra final quanto às possibilidades de uma transformação positiva. Acentua-se dessa maneira a responsabilidade moral do sujeito.396 393 Cf. OC X, § 20 e § 34. 394 Cf. HUMBERT, E. Jung. São Paulo: Summus, 1985, p. 19-23. Para o sentido pouco comum de betrachten como “engravidar”, ou mais exatamente “emprenhar”, cf. VIS, p. 661. 395 Cf. o relato de Jung in JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 158. Essa possibilidade catastrófica está sempre presente no imaginário mítico de todas as culturas, sob a forma do tema arquetípico da animalização de um personagem humano – por exemplo, os companheiros de Ulisses na ilha de Circe – que aponta para o apagamento da linha demarcatória entre a realidade animal e a realidade humana, mais complexa do que aquela. Nessa situação, manter a medida humana é a tarefa vital que cabe ao herói que se pauta pela phronesis. Sobre esse tema, tratado em vinculação com a experiência estética, permitimo-nos remeter às reflexões que desenvolvemos em um pequeno artigo: BARRETO, M.H. “Subjetividade e o Novo na Arte: Reflexões a partir de Adorno”, in Revista Kriterion, vol. XXXIII, nº 85, jan.-jul./1992, p. 49-58. 396 Cf. Cartas II, 07/01/1953, a Elizabeth Metzger: “Evidentemente a pessoa humana não é Deus; só a ele é possível conservar ou destruir a vida. A pessoa só tem possibilidades muito limitadas, mediante as quais pode escolher com liberdade prática dentro do alcance de sua consciência.”; cf. Cartas II, 10/12/1953, a rev. S.C.V. Bowman: “Só posso dizer que, até onde a consciência chega, a vontade é entendida como sendo livre, isto é, que o sentimento de liberdade acompanha nossas decisões, não importando se elas são realmente livres ou não. Esta última questão não pode ser decidida empiricamente. Onde a pessoa não está consciente, aí obviamente não pode haver liberdade. Através da análise do inconsciente amplia-se o horizonte da consciência e cresce automaticamente o grau de liberdade. Uma consciência plena significaria uma liberdade e responsabilidade igualmente plenas. Se os conteúdos inconscientes que se aproximam da esfera da consciência não foram analisados e integrados, então a esfera da liberdade fica diminuída pelo fato de tais conteúdos serem ativados e ganharem mais influência compulsiva sobre a consciência do que se fossem totalmente inconscientes.” À consciência cabe portanto um papel decisivo, mas isso não significa que ela se instale como o centro normativo: o confronto com as figuras do inconsciente, para Jung, assume a forma de uma atitude de negociação diplomática, e – mais uma vez - não de uma técnica.397 Ele é comparado ao procedimento alquímico, e explicitamente diferenciado da “escolha e decisão racionais”398 – o que parece indicar, à primeira vista, que a prohairesis está substancialmente modificada e mesmo negada na psyches therapeia junguiana. Mas, considerada mais detidamente, a questão assume outra figura. Jung está nesse ponto se afastando do racionalismo moderno, que institui a partir da consciência os fins que lhe agradam, e trata de implementá-los com a astúcia da técnica – a dominação das paixões, que, como é sabido, difere da articulação da phronesis no regime aristotélico. A ênfase sobre a “base instintiva”, entendida como correspondente à esfera da afetividade humana corporalmente enraizada, na compreensão do agir humano é atestada de longa data pela reflexão ética na história da filosofia. Em Platão, ela pode ser descoberta, por exemplo, em seu bestiário, que traduz o nexo entre o humano e o animal, bem como a possibilidade que se apresenta na condição humana de uma desregulação “monstruosa” da esfera instintiva.399 Em Aristóteles ela está na própria base da definição das virtudes éticas, que se formam na educação das pulsões do indivíduo segundo as medidas encarnadas nos costumes e valores do ethos, evitando-se pela mediania os extremos do excesso e da falta. Toda a ética helenística pode ser encarada como uma “terapia do desejo”, sob formas e metas variadas, tendo como denominador comum a ascese e a regulação da esfera das paixões humanas.400 Com Descartes, em seu tratado das paixões, a forma prudencial das relações entre razão e afetividade proposta por Aristóteles será substituída pela técnica do governo das paixões pela razão. Hobbes e o empirismo ético que se lhe segue promovem o abandono da razão prática em favor da primazia das paixões no agir humano. Kant, ao separar o âmbito moral do pragmático-empírico, junto com a eudaimonia exclui também a afetividade da vida ética. E também a ética contemporânea defronta-se com as aporias 397 Cf. Cartas I, 20/08/1937, a P.W. Martin. 398 ibid. 399 Cf. FRÈRE, J. Le Bestiaire de Platon. Paris: Kimé, 1998. Ver também o exame sucinto da “monstruosidade” que acompanha a insaciabilidade do desejo humano segundo Platão em SISSA, G. O Prazer e o Mal. Filosofia da Droga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, capítulo II. 400 Cf. NUSSBAUM, M. The Therapy of Desire. Theory and Practice in Hellenistic Ethics. Princeton: P.U.P., 1994. Também versando sobre a mesma problemática, merece ser lido outro livro de Martha Nussbaum: Upheavals of Thought. The Intelligence of Emotions. Cambridge: C.U.P., 2001. do empirismo e do formalismo, tentando pensar mais uma vez o problema da razão prática em suas relações com as forças anímicas que agem independentemente da razão. A psyches therapeia em Jung alinha-se muito mais com a concepção antiga de sabedoria prática, com seu foco no fim último da eudaimonia (aqui correspondente à meta ou fim da individuação, àquilo em vista de que a individuação é posta em movimento, ou seja, à realização do Si-mesmo), do que com a concepção moderna que propugna pela autonomia absoluta do sujeito. Podemos comprovar esta interpretação retomando o tema das relações entre a esfera instintiva e a esfera espiritual. Para Jung, a limitação da afetividade não precisa, não pode e nem deve ser despoticamente imposta pela razão consciente. Ela já é dada na própria “postura natural” do inconsciente, que é representada por imagens de animais e corresponde à parte animal do ser humano, ao enraizamento corporal do Si-mesmo.401 Mas, por outro lado, Jung afirma que o excesso de animalidade debilita o espírito, assim como o excesso de cultura produz animais doentes.402 A harmonia natural já está de partida comprometida pela colisão com a consciência, cuja diferenciação leva inevitavelmente à unilateralidade e, portanto, traz em si a tendência à desproporção.403 Assim sendo, a tarefa crítica da psyches therapeia está na correta articulação entre o pólo instintivo e o espiritual – é preciso encontrar a forma correta de “tornar-se animal”404. E a articulação 401 “Nós somos preconceituosos com relação ao animal. As pessoas não entendem quando lhes digo que deveriam se familiarizar com seus animais ou assimilar seus animais. Elas pensam que o animal está sempre pulando por sobre os muros e promovendo um inferno por toda a cidade. Mas na natureza o animal é um cidadão bem comportado. Ele é piedoso, segue o caminho com grande regularidade, não faz nada extravagante. Só o homem é extravagante. Assim, se você assimilar o caráter do animal você se torna um cidadão respeitador das leis, você procede bem devagar, e se torna razoável em seus caminhos, na medida em que puder suportar isso. Pois é muito difícil ser razoável”. VIS, p. 168. “No assim chamado instinto, isto é, na postura natural inconsciente já reside a harmonia. O corpo e suas capacidades e necessidades proporcionam espontaneamente aquelas determinações e limitações que impedem a desmedida e a desproporção. A individualidade espiritual baseia-se no corpo e jamais poderá realizar-se se os direitos do corpo não forem reconhecidos. Inversamente, o corpo também não pode desenvolver-se se a singularidade espiritual não for reconhecida.” OC VII, pag. 282 (CW VII, § 504). “O espírito em si não é mérito algum e tem um efeito peculiarmente [irrealizante] se não for contrabalançado por seu oposto material.” Cartas III, 20/07/1958, a Edward Thornton. 402 Cf. OC VII, § 32. 403 “A atitude natural e inconsciente é harmônica. Uma função psicológica diferenciada, porém, tem sempre uma tendência à desproporção devido à sua unilateralidade[, que é fomentada pela intenção racional e consciente].” OC VII, pag. 287. “Num certo sentido o animal é mais temente a Deus do que o ser humano, porque cumpre a vontade divina de modo mais perfeito do que o ser humano jamais sonhou. O ser humano pode desviar-se do caminho, pode desobedecer porque tem consciência. Por um lado, a consciência é um triunfo e uma benção; por outro, é nosso pior demônio que nos ajuda a inventar todo motivo e meios imagináveis para desobedecer à vontade divina. Oh! Sim, as coisas são bem mais difíceis do que deveriam ser!” Cartas II, 8/01/1948, ao Rev. Canon H. George England. Cabe lembrar que o animal não é um monstro, e quando descrevemos nossas monstruosidades como “bestiais”, subrepticiamente estamos projetando sobre a extremidade animal a desproporção que é tipicamente espiritual, e “caluniando” a natureza em suas obras normais. 404 Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 253. dos fins (“o que é bom para o homem”) aos meios adequados para os realizar, levando em consideração todas as variáveis presentes na situação empírica, é a tarefa da phronesis, a excelência da parte deliberativa da alma racional segundo Aristóteles. Na perspectiva aristotélica, a conflitividade potencial entre os vários tipos de desejo humano é compreendida em conexão com a percepção do tempo, prerrogativa dos seres racionais. Situando-nos em outro contexto histórico, podemos entrever aí a percepção não tematizada do papel da consciência na desestabilização da harmonia meramente natural Se a meta de toda praxis é atingir a mediania (mesotes), o que coloca a noção de medida (metron) no centro da vida ética, essa meta, mediada pela phronesis, particulariza-se de acordo com as contingências da situação. A orientação da razão prática imersa nas circunstâncias empíricas das “coisas humanas” deve atender à contingência constitutiva de suas relações particulares, para encontrar as vias possíveis e concretas de realização do fim verdadeiro. Lançando mão de outra linguagem, podemos dizer que a individuação deve se dar sempre no mundo, e considerar o que o mundo espera da pessoa.405 Como vimos, na perspectiva aristotélica é aqui que intervém a experiência (empeiria), que permite à phronesis avaliar a situação prática em vista da orientação da ação. Por seu enraizamento na situação particular, que relativiza as formas ilimitadas de realização do bem humano,406 a praxis psicoterapêutica desenrola-se necessariamente no tempo qualitativo ou kairos, e assim cabe ao discernimento próprio da sabedoria prática, instruído pela experiência 405 Cf. Cartas II, 04/04/1949, a Emma von Pelet: “Aquilo que [você] recebe do mundo e aquilo que [você] responde constitui sua relação com o mundo. Isto é o ‘sair para o mundo’. (...) Uma introversão fecunda é possível apenas quando há também relação [com o lado de fora]. (...) Encontrar a medida certa também [é uma forma de relacionar-se] com o mundo.” Cf. Cartas II, 22/11/1954, ao prof. Arvin U. Vasavada: “Vocês todos parecem interessados em como voltar para o Si-mesmo, em vez de [procurar] o que o Si-mesmo quer que façam no mundo, onde – ao menos neste momento – estamos colocados, provavelmente para determinado fim.” 406 “Também na questão do bem e do mal nós, terapeutas, só podemos confiar estarmos vendo as coisas de modo certo, mas não se pode ter certeza absoluta. Enquanto terapeuta, não posso abordar, em casos concretos, o problema do bem e do mal de modo teológico ou filosófico, mas apenas de modo empírico. Sendo minha atitude empírica, isto não quer dizer que relativizo em si o bem e o mal. Sei muito bem: isto é mau, mas o paradoxo é que nesta pessoa, nesta situação concreta, neste determinado grau de seu amadurecimento isto pode ser bom. Por outro lado, também vale: o bom no momento errado e no lugar impróprio se torna o pior. Se assim não fosse, tudo seria muito simples demais. Se não fizer um juízo a priori mas escutar os fatos concretos, não sei de antemão o que é bom ou mau para o paciente. Muitas coisas se nos apresentam mas não conseguimos desvendar seu significado.” OC X, § 866. “Kant diz com razão que o indivíduo e a sociedade deveriam passar de uma ‘ética da ação’ para uma ‘ética da convicção’. Mas só Deus pode perscrutar a última e mais profunda convicção que está por trás da ação. Por isso, nosso julgamento sobre o que é bom ou mau concretamente deve ser muito prudente e hipotético, jamais apodítico como se pudéssemos ver claramente todos os fundamentos últimos.” OC X, § 871. mas sempre levando em conta o nível de indeterminação das circunstâncias, escolher o curso apropriado de ação: “A questão propõe-se do seguinte modo: o que, para este indivíduo, e neste dado momento, surge como um progresso à altura da vida? Isto não pode ser respondido por nenhuma ciência, por nenhuma sabedoria de vida, por nenhuma religião, por nenhum bom conselho, mas só pela consideração absolutamente sem preconceitos da semente de vida psicológica que se expande da cooperação natural do consciente e do inconsciente, por um lado, e do individual e coletivo, por outro.”407 Todos os elementos anteriormente mencionados na situação em que opera a sabedoria prática estão aqui presentes: a consideração do momento qualitativo (kairos)408; a consideração do bem objetivo ou fim prático (prakton) a ser realizado (o “progresso à altura da vida”); a consideração da individualidade em que esse bem deve se atualizar, segundo a articulação da totalidade das dimensões subjetivas (o consciente e o inconsciente); a inoperância de preceitos ou guias de conduta universais e genéricos, que abre o espaço para a intervenção da razão prática409; a consideração da relação entre o individual – o agente - e o coletivo, relação em que se deposita a “semente de vida 407 OC VII, pag. 282-283. (CW VII, § 488-489). 408 Henri Ellenberger desenvolve uma breve e pertinente reflexão acerca da compreensão da noção de kairos no domínio psicoterapêutico em “La notion de kairos em psychotherapie (Temps pour comprendre et interpretation vraie)”, in ELLENBERGER, H. Médecines de l’Âme. Essais d’Histoire de la Folie et des Guérisons Psychiques. Paris: Fayard, 1995, p. 239-251. 409 “Nada é mais importante do que isto: deve-se considerar toda pessoa realmente como pessoa e tratá-la de acordo com suas peculiaridades. Costumo dizer aos jovens terapeutas: ‘Aprendam o máximo, saibam o máximo e, depois, esqueçam tudo quando chegarem ao paciente’. Ninguém é bom cirurgião pelo fato de saber de cor um livro sobre o assunto. (...) Sabe-se que esta doença foi tratada pelo autor X, no capítulo 17 de seu livro – e acha-se que o mais importante aconteceu. Mas o pobre paciente continua sofrendo.” OC X, §§ 881-882. Cf. Cartas I, de 25/09/1937, a B. Cully: “O senhor pode aprender muito a respeito da psicologia nos livros, mas cedo descobrirá que esta psicologia pouca utilidade tem na vida prática. Uma pessoa que se dedica à cura de almas deveria ter uma certa sabedoria de vida que não [consiste] apenas em palavras mas também e sobretudo na experiência. [Tal] psicologia, como eu a entendo, não é apenas uma soma de conhecimentos, mas também [uma certa sabedoria] de vida. Se ela for ensinável, então o será apenas com base na própria experiência da [alma] humana. E esta experiência só [é possível quando o ensinamento tem um caráter pessoal, isto é, quando você é pessoalmente ensinado e não genericamente].(...) Só o estudo em livros não lhe [seria] de grande valia, ainda que seja [indispensável]. O mais útil [seria] uma introspecção pessoal nos segredos da alma humana. Caso contrário tudo se resumirá a [um astucioso truque intelectual, consistindo] em palavras vazias que levam a um falatório [vazio].” psicológica” a ser captada e que fornece a linha de desenvolvimento ou atualização para nortear a ação prática. A psyches therapeia, enquanto modalidade de sabedoria prática, consiste em localizar e cultivar essas “sementes” de vida psicológica. Mas onde encontramos tal semente? Jung responde: “Alguns a procuram no consciente, outros no inconsciente. O consciente, porém, é apenas um aspecto, e o inconsciente outro. Encontramos na fantasia criadora a função unitiva que estamos buscando. Nela fluem conjuntamente [todas as funções que estão ativas na psique].”410 E assim encontramos a especificidade da phronesis junguiana: ela toma como foco privilegiado de referência para a decisão prática o Si-mesmo, e em especial a sua capacidade ou faculdade (dynamis) da fantasia criadora, cuja função específica é a criação de símbolos.411 As imagens simbólicas são a obra (ergon) da fantasia criadora, e por elas se expressam as múltiplas instâncias ou estruturas do Si-mesmo enquanto todo psíquico. Em especial os sonhos recebem a primazia quanto à informação acerca da situação do indivíduo.412 Isto não significa que se trate de uma retirada do mundo, o que configuraria uma espécie duvidosa de pseudo-espiritualidade. Trata-se antes de uma atenção às manifestações psíquicas que sinalizam os efeitos e as direções possíveis do 410OC VII, pag. 282-283. (CW VII, § 489-490). 411 Cf. OC VI, § 178. 412 “Os sonhos são produtos imparciais e espontâneos da psique inconsciente, escapando ao controle da vontade. Eles são pura natureza; mostram-nos a verdade natural sem enfeites, e são portanto adequados, como nada mais o é, para devolver-nos uma atitude que concorda com nossa natureza humana fundamental, quando nossa consciência tenha se desviado demais de suas fundações e chegado a um impasse. (...) Dar atenção aos sonhos é um modo de refletir sobre nós mesmos – uma forma de autoconhecimento. Não é a nossa consciência egóica que reflete sobre si mesma; antes, ela volta sua atenção para a realidade objetiva do sonho como uma comunicação ou mensagem do inconsciente, alma unitária da humanidade. Ela reflete não sobre o eu, mas sobre o Si-mesmo; ela rememora aquele estranho Si-mesmo, que era nosso desde o começo, o tronco de que cresceu o eu. Ele é estranho porque dele nos alienamos devido ao extravio da mente consciente. (...) Pode-se perguntar: existe algum método confiável de interpretação de sonhos? Podemos confiar em qualquer das várias especulações? Admito e compartilho dessas dúvidas inteiramente, e estou convencido de que não há de fato nenhum método de interpretação absolutamente confiável. Confiança absoluta na interpretação de eventos da natureza só é encontrada dentro dos limites mais estreitos – isto é, quando nada mais vem da interpretação do que aquilo que nela pusemos. (...) Ademais, quando consideramos a infinita variedade de sonhos, é difícil conceber que haveria um método ou um procedimento técnico que levasse a um resultado infalível. Na verdade, é bom que não exista nenhum método válido, pois senão o sentido do sonho seria limitado de antemão e perderia precisamente aquela virtude que torna os sonhos tão valiosos para os propósitos terapêuticos – a sua capacidade de oferecer novos pontos de vista.”” CW X, § 317-319 movimento vital como um todo, fornecendo assim uma valiosa fonte de informações sobre a situação total da pessoa em meio às obscuridades e incertezas das contingências da vida, situação que constitui o cenário fundamental no qual ela deve tomar suas decisões e orientar-se conscientemente na existência.413 A peculiaridade de uma psicologia do inconsciente encontra-se justamente aqui: essa orientação não é, em primeiro lugar, uma decisão tomada por uma consciência encerrada em si mesma, e em segundo lugar não se pauta apenas nem exclusivamente pelos dados exteriores da realidade objetiva. É nesse sentido que se deve entender a afirmação de que a individuação não é uma mera decisão racional, mas atende às posições “irracionais” do inconsciente. Evidentemente isso não significa uma temerária demissão do bom senso e da razoabilidade em favor de uma irracionalidade que, de resto, Jung não se cansa de igualmente criticar.414 O alvo da crítica à razão são as suas pretensões “totalitárias”, e não a razão em si.415 O que Jung identifica como racionalismo é a atitude subjetiva que instala a consciência e a razão como senhoras absolutas no âmbito das “coisas humanas”. A busca da medida adequada deve atentar para toda a complexidade da situação prática, onde intervêm fatores que escapam à determinação do sujeito: “a proporção correta não pode ser estabelecida apenas pela pessoa. Será estabelecida por circunstâncias peculiares sobre as quais temos pouco ou nenhum controle.”416 Mas a atitude racionalista moderna reproduz na esfera da interioridade (ou da totalidade da pessoa) a mesma relação que o sujeito da ciência estabelece com a natureza, transformando em objeto de dominação tudo o que não coincide com a própria 413 A modalidade de orientação prática integral assemelha-se àquela adotada pelo “homem arcaico”, que “traça sua vida - forçosamente – de acordo com os fatos externos e internos que ele não experimenta como distintos, como nós o fazemos. Ele vive em um só mundo, nós vivemos apenas numa de suas metades e acreditamos, ou não, na outra metade. Nós a tapamos com o chamado ‘desenvolvimento intelectual’ ”. Cartas II, 13/02/1951, a Heinrich Boltze. Contudo, por ser simbólica, a atitude consciente na sabedoria prática junguiana diferencia-se da consciência mítica stricto sensu, que é literalista ou dogmática. 414 Um grande equívoco sobre esse ponto enraizou-se na imagem que se faz de Jung, e em boa parte devido à compreensão empobrecida de muitos “junguianos”. A crítica ao “racionalismo”, ao invés de ser bem entendida, é transposta para uma inacreditável recusa da razão, eivada de sentimentalismo. 415 Ver o próximo capítulo. Cf. Cartas III, 8/01/1956, a Eugen Böhler: “é necessária uma relativização do racionalismo, mas de modo algum uma renúncia à razão, pois o razoável para nós é o direcionamento para a pessoa interior e para suas necessidades vitais.” 416 Cartas II, 12/09/1946, a Roger Lyons. (A passagem citada aqui refere-se a uma situação particular, mas pode ser generalizada, por traduzir bem um elemento fundamental de toda situação prática.) consciência racional. Deste modo, o centro da razão é capturado pela lógica da identidade, isolando-se das partes não-racionais, e abrindo a via para o projeto de um certo tipo de auto-controle, que é a versão subjetiva da relação de dominação da natureza.417 Nesta atitude, a consciência racional pode até explicar o inconsciente, revelar seus princípios, mas no momento especificamente prático de ouvir, interpretar e amoldar-se aos “traçados da vida” reconhecíveis no confronto com o inconsciente, geralmente opta por seguir as diretrizes já estabelecidas previamente a tal confronto. Assim, reconhece a “inteligibilidade” do inconsciente, mas não lhe ouve (no sentido de ob-audere) a palavra ou inteligência natural. Dessa atitude derivam o desenraizamento moderno e o sofrimento neurótico. Portanto, a especificidade dessa forma de sabedoria prática que é a psyches therapeia junguiana está em priorizar as imagens do inconsciente como pontos de apoio para a compreensão da posição do sujeito na situação prática e, conseqüentemente, para a decisão a respeito da ação adequada à realização em dado momento da “linha de individuação”.418 Como vimos no capítulo anterior, Jung compreende certas imagens psíquicas como símbolos, e a consideração teleológica da atividade da psique, base para a compreensão prospectiva de qualquer processo psíquico, vincula-se à noção de símbolo. Isso significa que a sabedoria prática em Jung constitui-se fundamentalmente como uma hermenêutica das imagens simbólicas – daí a definição de seu procedimento como “método hermenêutico”, ou “sintético-construtivo” (denominação que, por distinção ao método “analítico-redutivo” característico da abordagem psicanalítica, enfatiza a função unificadora e prospectiva do símbolo). No próprio ato da interpretação de uma imagem simbólica encontramos o fim prático (prakton) que a especifica: a tomada de consciência, fim que incide na própria ação da interpretação, ordenando-a ao 417 Esse tema foi muito bem desenvolvido por Theodor W. Adorno. Cf. Negative Dialectics. London: Rouledge and Kegan Paul, 1973. Cf. também, BARRETO, “Subjetividade e o Novo na Arte: Reflexões a partir de Adorno”. 418 Nesse ponto, novamente encontramos algo que não está contemplado na teoria aristotélica da praxis. Apesar de, como vimos no primeiro capítulo, Aristóteles afirmar o entrelaçamento de inteligência, desejo e imaginação – o que abriria a possibilidade de um desenvolvimento, segundo princípios genuinamente aristotélicos, na direção de um autoconhecimento e de uma parcela de orientação a partir das imagens psíquicas -, parece-nos que a matriz neoplatônica ofereceria mais imediatamente um enquadramento ontológico satisfatório e adequado para uma modalidade de sabedoria prática pautada pela consideração das imagens psíquicas, em todo o arco coberto pela concepção de simbolismo em Jung – aí incluída a hipótese da sincronicidade, que não quadra bem com a matriz aristotélica, apesar de não lhe ser totalmente incompatível (a esse respeito, ver as sugestões de Victor WHITE. God and the Unconscious. Chicago: Henry Regnery Company, 1953, especialmente o capítulo VII, “Revelation and the Unconscious”). fim último da realização do Si-mesmo – a qual, vale repetir, passa precisamente pela conscientização do Si-mesmo pelo Eu. A compreensão simbólica no método hermenêutico avança para a captação das linhas de força que dirigem o desenvolvimento psíquico: “Mediante esse processo, o símbolo inicial é ampliado e enriquecido: desta forma chegaremos a um quadro extremamente complexo e multifacetado. Configuram-se então certas linhas do desenvolvimento psicológico, de natureza tanto individual como coletiva. Não há conhecimento no mundo que possa provar a ‘certeza’ dessas linhas; o racionalismo, pelo contrário, pode provar facilmente que elas não são certas. Seu valor, no entanto, é atestado pelo extremo valor vital dessas linhas. (...) O traçado vital hermeneuticamente construído é breve, uma vez que a vida não segue linhas retas, pressentidas num futuro distante. Diz Nietzsche que ‘toda verdade é sinuosa’. Os traçados de vida, portanto, nunca são princípios ou ideais válidos para todos, mas pontos de vista e posições de validade efêmera. A baixa de intensidade vital, a perda sensível da libido, ou ainda uma impetuosidade excessiva indicam que o traçado foi abandonado e que se inicia, ou deveria iniciar-se, um novo.”419 O desenvolvimento psíquico aqui corresponde ao processo de individuação, e as linhas de força que o constituem, em toda a sua diversidade e mutabilidade, confluem para a enteléquia do Si-Mesmo, fim último visado pela individuação em seus “traçados de vida”.420 Um problema que poderia surgir nessa forma de decisão ou orientação prática diz respeito à diferença entre a universalidade das estruturas simbólicas arquetípicas e a singularidade da situação contingente particular. Jung é bem claro a esse respeito: “Esses símbolos, todos, são relativamente fixos, mas isso não nos garante aprioristicamente que, no caso concreto, o símbolo deva ser interpretado assim. Na prática, pode ser algo completamente diferente. Se tivéssemos que interpretar um sonho pela teoria, ou seja, se tivéssemos que interpretá-lo a fundo, de modo científico, certamente teríamos que referir tais símbolos a arquétipos. Mas clinicamente, isso pode ser o maior erro, pois a situação psicológica momentânea do paciente pode estar exigindo tudo, menos um desvio para a teoria do sonho. É, portanto, aconselhável, “in praxi”, considerar aquilo que o símbolo significa em relação à situação consciente, ou seja, tratar o símbolo como se ele não fosse fixo. Em outras palavras, é melhor renunciar a tudo o que se sabe melhor, e de antemão, para pesquisar o que as coisas significam para o paciente. Obviamente, a interpretação teórica interrompe-se assim a meio caminho, ou já nos passos iniciais. No entanto, o clínico que manipula demais os símbolos fixos pode cair numa rotina, num perigoso dogmatismo, que muitas vezes impede a sua sintonização com o paciente.(...) Não são raros os casos que, logo ao início do tratamento, desvendam ao médico, através de um sonho, toda a programação futura do inconsciente. O médico só pode percebê-lo graças ao seu conhecimento dos símbolos relativamente fixos. Mas por 419 OC VII, p. 291-294 (CW VII, §§ 493-501). Compreende-se então o motivo de o conhecimento de simbologia e de antropologia simbólica ser de fundamental importância na praxis psicoterapêutica: é a familiaridade com as formas típicas de expressão simbólica que permite ao psicoterapeuta reconhecer a direção tomada em cada caso individual pelo impulso espontâneo e co-natural à psique de superação dos conflitos humanos em geral, e das cisões que dilaceram a consciência moderna em particular. 420 “Qualquer que seja o significado da totalidade, do Si-mesmo do homem, empiricamente este Si- mesmo constitui uma imagem da finalidade da vida, produzida espontaneamente pelo inconsciente, para além dos desejos e temores da consciência. Representa a finalidade do homem total”. OC XI, § 745. motivos terapêuticos é totalmente impossível revelar toda a profundidade do significado de seu sonho. Por este lado, somos limitados por razões de ordem clínica. Do ponto de vista do prognóstico e do diagnóstico, estas informações podem ser do maior valor.”421 O conhecimento da universalidade implícita nos casos particulares, tematizada reflexivamente pela phronesis a partir da experiência, é indispensável na situação terapêutica, como Jung afirma. A universalidade implícita nos casos particulares semelhantes captados pela experiência poderia, em Jung, ser referida às estruturas arquetípicas da existência humana. O conceito de arquétipo em suas várias modalidades permite a formulação racional dessa universalidade, que, sendo tarefa da phronesis, autoriza a interpretação da dimensão teórica da psicologia analítica como um corpo de conhecimentos produzido pela sabedoria prática, não se confundindo com a mera experiência acumulada ou com a sabedoria de vida, apesar de a elas referir-se.422 Mas, assim como ocorre com a escolha deliberada na phronesis, a preeminência da particularidade da situação comanda a praxis psicoterapêutica. Dessa forma, a psyches therapeia junguiana “consiste por um lado numa tomada de consciência, o mais completa possível, dos conteúdos inconscientes constelados, e por outro lado numa síntese dos mesmos com a consciência através do ato [de reconhecimento]. Dado que o homem civilizado possui um grau de dissociabilidade muito elevado e dele se utiliza continuamente a fim de evitar qualquer possibilidade de risco, não é garantido que o [reconhecimento] seja acompanhado da ação correspondente. Pelo contrário, devemos contar com a extrema ineficácia do [reconhecimento] e insistir por isso numa aplicação significativa do mesmo. O [reconhecimento] por si mesmo não basta, nem implica alguma força moral. Nestes casos vemos claramente como a cura da neurose é um problema moral.”423 421 OC XVI, §§ 341, 342, 343. A “programação futura do inconsciente” não deve ser entendida como uma espécie de pré-destinação absoluta. Ela indica apenas a linha de evolução possível do processo de individuação, que dependerá, por um lado, do “preenchimento” contingente, imprevisível e variável pelos conteúdos da experiência, e, por outro, da atitude da consciência. Uma possibilidade inconsciente não é uma fatalidade inexorável: a individuação pode abortar, fracassar. E a certeza sobre sua forma concreta escapa à previsão mesmo do “clínico” mais experiente. 422 Vale aqui fazer referência à Ética a Nicômaco, onde Aristóteles relaciona phronesis (sabedoria prática) e empeiria (experiência). Cf. PERINE, M. “Phrónesis: Um Conceito Inoportuno?”, in Revista Kriterion, v. XXXIV, nº 87, jan.-jul./1993, p. 49-50: “A experiência implica uma forma de conhecimento universalmente formulável e já formulado, pois há uma certa captação do universal implícita em empeiria, enquanto esta é a memória atual de muitos casos particulares semelhantes. A obra de phrónesis, virtude da parte calculadora do intelecto que dirige o processo de decisão, consiste em tornar razoável, por um lado, a captação não-racional do fim operada pelo desejo (1139 b3), fazendo dele um desejo refletido (oréxis dianoetiké), e, por outro, em tematizar no âmbito da razão aquilo que há de universal, mas ainda não formulado, no conhecimento empírico da experiência. Dito de outro modo, phrónesis capta o particular à luz do universal, isto é, do fim, e capta-o ‘proaireticamente’, vale dizer, em estado de decisão, como particular protraído para o fim. Dito ainda de outro modo, phrónesis capta o particular no contexto racional-decisório, e não estratégico-pragmático, do cálculo dos meios-para-o-fim.” 423 OC IX-1, § 84. Aqui Jung estabelece uma distinção entre a tomada de consciência e a ação correspondente reclamada pela mesma como a sua aplicação significativa. Na verdade, a praxis psicoterapêutica só é autêntica quando ocorre a unidade entre esses dois aspectos, ou seja, quando o “problema moral” conscientizado é respondido com uma atitude de igual teor. Se na concepção aristotélica da phronesis o ergon próprio do ser humano está na vida na razão conforme à virtude, na psyches therapeia de Jung esse trabalho poderia ser sintetizado como o autoconhecimento ou o tornar-se consciente daquilo que é inconsciente. A tomada de consciência verdadeira, real, implica uma transformação da atitude e do modo de agir do sujeito, sendo simultânea e indissoluvelmente intelectual e prática. Ela obriga, por assim dizer, constitui-se como um compromisso do sujeito ao mundo, altera radicalmente a sua posição consciente no mesmo. Por isso, ela não é uma theoria desinteressada, mas um ato (energeia) da inteligência que é necessariamente prático.424 É genuinamente uma realização intelectual-ética específica que, lembrando um adágio alquímico freqüentemente citado por Jung, convoca a totalidade do ser humano: Ars requirit totum hominem. 425 Poderíamos dizer que, na maioria das vezes, a tarefa do “conhecer-se a si mesmo” é imposta por uma necessidade interna: não é um simples convite, que possa ser declinado, mas uma intimação, uma convocação que brota do próprio núcleo fundamental da pessoa, exigindo a realização ou atualização do Si-mesmo.426 Reencontrando o preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo” em sua significação original, ou seja, entendido não meramente como um exercício reflexivo mas como um apelo a situar-se melhor no ser427, a psicologia analítica descobre a exigência correlata 424 A partir de uma perspectiva dialética muito próxima da nossa linha de interpretação, Wolfgang Giegerich aprofunda e critica a distinção feita por Jung, afirmando que a verdadeira conscientização necessariamente traz em seu bojo a atitude prática correspondente. Ver GIEGERICH, W. Der Jungsche Begriff der Neurose. Frankfurt/M, Berlin, Bern, New York, Paris, Vienna: Peter Lang, 1999. (tr. italiana: Il Concetto di Nevrosi Secondo Jung. Dall’esperienza personale alla Riflessione. Milano: La Biblioteca di Vivarium, 2004.) 425 “No plano psicodinâmico entende-se que o Eu, de uma precedente ‘inconsciência’ do Si-mesmo, chega ao Si-mesmo, isto é, realiza uma tomada de consciência da própria individualidade. Com esta acepção o termo coincide com autoconsciência, e usa-se para indicar aquela unidade significante particular que nasce e se delineia na pergunta: ‘Sou eu, isto?’ Ao captar este significado do Si-mesmo, o autoconhecimento se distingue de qualquer ‘passatempo’ intelectual; isto é, ao tomar consciência de ‘ser como se é’ trata-se de assemelhar-se ao Si-mesmo, assim como ele encontra-se empiricamente.” PIERI, P.F. Dicionário Junguiano, verbete “Si-mesmo” (nesse verbete encontra-se uma apresentação detalhada dos vários sentidos e aspectos teorizados por Jung em relação à noção de “Si-mesmo”). 426 “É da necessidade e carência que nascem novas formas de vida, e não de exigências ideais ou de meros desejos.” OC X, § 190. 427 “Tratando o símbolo como um simples revelador da consciência de si, nós o amputamos de sua função ontológica; nós fingimos crer que o ‘conhece-te’ é puramente reflexivo, ao passo que ele é de partida um apelo através do qual cada um é convidado a melhor se situar no ser, em termos gregos, a ‘ser sábio’.” expressa no “torna-te o que és” pindárico, sob a forma do impulso da individuação. Da totalidade “potencial” irradia a força de atração que compele o indivíduo ao dever-ser da totalidade efetivada ou realizada: esse é o esquema pressuposto no processo de individuação. Por isso, a individuação é, essencialmente, uma realização moral: “Afinal são as qualidades morais de um ser humano que o obrigam a assimilar seu Si-mesmo inconsciente, mantendo-se consciente, quer pelo reconhecimento da necessidade de fazê-lo, quer indiretamente, através de uma penosa neurose (...), ampliando o âmbito de sua personalidade. (...) Poderia acrescentar que esta ‘ampliação’ se refere, em primeiro lugar, à consciência moral, ao autoconhecimento, pois os conteúdos do inconsciente liberados e conscientizados pela análise são em geral desagradáveis e por isso mesmo foram reprimidos. Figuram entre eles desejos, lembranças, tendências, planos, etc.”428 Jung diferencia a lei moral objetiva ou coletiva, à qual ele refere o conceito freudiano de superego, dessas “qualidades morais” individuais referentes à realização do Si-mesmo, e observa que freqüentemente esses dois âmbitos estão em conflito. Em um texto tardio sobre a consciência moral, ele faz uma distinção entre o comportamento “moral” e o comportamento “ético”: “Resumindo, gostaria de dizer que a consciência [moral] {Gewissen} é uma reação psíquica que se pode denominar moral, porque aparece quando a consciência psicológica {Bewusstsein} abandona a trilha dos costumes, da moral (dos mores) ou [repentinamente dela se lembra]. Portanto, [na maioria dos casos] a consciência [moral] significa [primariamente] uma reação a um desvio real ou suposto do código moral e corresponde, em grande parte, ao medo primitivo do não usual, do não costumeiro e, portanto, não ‘moral’. Uma vez que este comportamento é, por assim dizer, instintivo e, no melhor dos casos, apenas em parte resultado da reflexão, pode ainda assim ser moral, mas não pode ter a pretensão de ser ético. Esta qualificação ele só a merece se for reflexivo, isto é, se for submetido a um entendimento consciente. Isto só é possível quando surge uma dúvida fundamental entre dois modos possíveis de comportamento moral, portanto num conflito de deveres. Uma situação dessas só pode ser resolvida quando uma reação moral até então irrefletida for suprimida em favor de outra. Neste caso o código moral será invocado em vão e o intelecto judicante ficará na situação do burro de Buridan entre os dois feixes de capim. Aqui somente a força criadora do [ethos], que representa a pessoa inteira, pode dar a decisão final.” 429 Como se vê, nessa passagem Jung reserva o qualificativo “ético” para o comportamento reflexivo consciente, ao passo que o atributo “moral” designa a mera conformidade “instintiva” ou habitual ao ethos entendido como costume. O comportamento ético emerge na situação de um “conflito de deveres”, ou seja, de um autêntico conflito ético, tal como descrito por Henrique Vaz na sua fenomenologia do ethos.430 Um conflito dessa natureza é o que está, via de regra, cifrado no conflito de RICOEUR, P. “Le Symbole Donne à Penser”, in Philosophie de la Volonté II. Finitude et Culpabilité. Paris: Aubier, 19882, p. 487. 428 OC VII, § 218. “Consciência moral e autoconhecimento estão no fundamento de tudo aquilo que se manifestará na análise.” PIERI, Dicionário Junguiano, verbete “Si-mesmo”, p. 463. 429 OC X, § 855. 430 Cf. Escritos de Filosofia II, p. 28-35. que se origina a dissociação neurótica. Assim sendo, a cura da neurose, descrita por Jung como uma realização moral, na medida em que passa pela conscientização do conflito pelo indivíduo, e exige a sua tomada de posição frente ao mesmo, é mais propriamente uma realização ética. Nela estão implicadas, de certa forma, a deliberação (boulesis) e a escolha deliberada (prohairesis) que Aristóteles distingue na praxis virtuosa. E, por fim, a “força criadora do ethos, que representa a pessoa inteira” pode ser lida como sinalizando a relação dialética entre o ethos e o indivíduo, relação em que “a universalidade abstrata (no sentido da lógica dialética) do ethos como costume é negada pelo evento da liberdade na praxis individual e encontra aí o caminho da sua concreta realização histórica no ethos como hábito (hexis) ou como virtude.”431 Se lembrarmos, por outro lado, que o conflito ético é constitutivo do ethos como cifra da indeterminação característica da liberdade presente necessariamente em toda ação humana432, então o choque entre o indivíduo e o coletivo, tão freqüentemente assinalado por Jung, encontra sua inteligibilidade ética profunda.433 Encarada sob este ângulo, a individuação é um fardo, podendo implicar em culpa e reparação quando, na situação de conflito, a individualidade autoconsciente sente que “lesa” a coletividade, por arrancar-se da adesão inconsciente, não-reflexiva e espontânea à mesma. Vivida nessa situação paradoxal e tensa entre comunidade e indivíduo, entre o costume e a liberdade, a individuação mantém com a tradição uma relação igualmente dialética. Assim, o que à primeira vista poderia aparecer como uma espécie de ambigüidade de Jung com relação à tradição ganha outro sentido. De fato, a desvalorização da mera submissão irrefletida à tradição acompanha sempre as suas reflexões sobre a individuação. Por outro lado, como vimos, ele afirma categoricamente, e sem dar margem a dúvidas, que a ruptura com a tradição representa uma perda 431 VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 29. Cf. também VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 21, nota 24: “O indivíduo ético só alcança sua plena efetividade a partir do uso consciente da razão e do livre-arbítrio. Mas essa efetividade é a atualização de uma virtualidade presente na constituição essencial do ser humano que o predetermina necessariamente a desenvolver-se como ser moral. Essa virtualidade ética já é, portanto, constitutiva do ser humano desde a sua gênese no estado fetal e nos primeiros estágios da sua evolução na infância.” 432 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 30. Cf. OC VII, § 240: “Sem liberdade não pode haver moralidade.” 433 “O conflito ético coloca o indivíduo em face do apelo de exigências mais profundas e aparentemente paradoxais do ethos: o apelo a sacrificar o calmo reconhecimento dos limites e a segurança protetora das formas tradicionais desse mesmo ethos, e a lançar-se no risco de um novo e mais radical caminho da liberdade. Tal a idéia de transgressão que perpassa, como um motivo fundamental, a ética neotestamentária e que encontra sua expressão definitiva na palavra de Jesus: ‘Quem quiser, pois, salvar sua vida a perderá, mas quem perder sua vida por minha causa e da Boa Nova, a salvará’.” VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 34. Jung diz: “Nada pode poupar-nos do tormento da decisão ética.” in JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 285. inestimável para o homem moderno, e toda a dinâmica da individuação pode ser vista como uma busca de reparação dessa perda. Esta aparente ambigüidade desaparece quando examinamos em que consiste propriamente a individuação encarada segundo o aspecto de processo objetivo de relação com o outro.434 Essa relação modela-se pela mútua e indissolúvel remissão entre o Eu e o mundo, e a individuação comporta um duplo movimento de diferenciação e de integração entre os pólos constituídos por Eu e mundo, sob a condição de ser um processo consciente, reflexivo e livre. Portanto, o que se critica a partir dessa condição característica da individuação não é a adesão ao mundo como tal, mas a forma não crítica e inconsciente de identificação do Eu aos modelos e valores encarnados no mundo. Mundo aqui é o correlato do ethos, a face visível de manifestação e efetivação deste, o veículo e o suporte objetivo dos valores e costumes que definem o perfil ético particular das sociedades humanas, o meio humano no qual originariamente o indivíduo encontra-se imerso e do qual gradualmente ele emerge como Eu consciente a partir das interações entre Si-mesmo e mundo. Entendida nesse contexto, a individuação tal como descrita por Jung corresponde ponto a ponto ao movimento dialético que faz do indivíduo empírico um sujeito ético (ou pessoa moral), movimento compreendido pela circularidade do ethos435. Nessa medida, a sua homologia com a energeia aristotélica, em sua vinculação com a praxis, fica mais uma vez explicitada, e a afirmação de Jung de que a individuação significa uma “realização moral” fica melhor compreendida. Na prática, os dois aspectos (subjetivo e objetivo ou intersubjetivo) do processo de individuação estão indissoluvelmente ligados, e não raro é impossível distinguir um do outro. O reconhecimento da objetividade intrapsíquica do Si-mesmo é simultâneo ao reconhecimento do outro: a relativização do Eu, que significa a aceitação de sua finitude ou de seu estatuto de parte no todo psíquico, se faz acompanhar da ampliação de sua relacionalidade verdadeira, na medida em que a percepção da realidade psíquica das imagens do desejo permite distingui-las da realidade do “tu”. Reciprocamente, é a 434 “O processo de individuação tem dois aspectos fundamentais: por um lado, é um processo interior e subjetivo de integração, por outro, é um processo objetivo de relação com o outro, tão indispensável quanto o primeiro. Um não pode existir sem o outro, muito embora seja ora um, ora o outro desses aspectos que prevaleça. Há dois perigos típicos inerentes a esse duplo aspecto: um, é que o sujeito se sirva das possibilidades de desenvolvimento espiritual oferecidas pelo confronto com o inconsciente, para esquivar-se de certos compromissos humanos mais profundos e afetar uma ‘espiritualidade’ que não resiste à crítica moral; o outro consiste na preponderância excessiva das tendências atávicas, rebaixando a relação a um nível primitivo.” OC XVI, § 448. 435 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p.15. experiência tornada possível da realidade do “tu” que possibilita a percepção das realidades interiores da alma: “O ser humano que não se liga a outro não tem totalidade, pois [a totalidade] só é alcançada [através da] alma, e [a alma] não pode existir sem o seu outro lado que sempre se encontra no ‘tu’. A totalidade consiste em uma combinação do eu e do tu, [e] ambos se [mostram] como partes integrantes de uma unidade transcendente (...) Não se trata evidentemente de síntese [ou] identificação de dois indivíduos, mas da ligação consciente do eu com tudo aquilo que [foi projetado no ‘tu’]. Isso significa, portanto, que a realização da totalidade é um processo [intrapsíquico], que depende essencialmente de o indivíduo estar relacionado com outro ser humano. Estar relacionado [abre o caminho para a] individuação [e a torna possível]”.436 Em última análise, poderíamos dizer que o que está em jogo em profundidade no processo psicoterapêutico é a efetivação pelo Eu de uma genuína relação de reconhecimento de dupla direção: reconhecimento da alteridade do Si-mesmo, reconhecimento da alteridade do “tu”. Nesse sentido, a psyches therapeia de Jung pode ser entendida como forma daquele “laborioso e muitas vezes penoso trabalho de educação ética”437 que se choca com as obstinadas resistências encarnadas em “fatores poderosos que impelem os indivíduos e os grupos na direção das necessidades e interesses, em que o encontro com o outro é medido pelas categorias da utilidade, da dominação ou das satisfações subjetivas”.438 Se a individuação é uma realização ética genuína, ela deve pressupor a formação do sujeito e a sua educação para o ethos. O privilégio concedido por Jung à individualidade deu margem a equívocos quanto à avaliação de sua posição no tocante a esse ponto, freqüentemente interpretada como individualismo. Tais equívocos se desfazem quando atentamos para sua visão a respeito da relação entre educação e individualidade: “Quanto mais ‘científica’ pretende ser a educação, mais se orienta por [preceitos] gerais e mais impede o desenvolvimento individual da criança. Um desses [preceitos] gerais soa assim: ‘Deve-se levar em conta a individualidade do aluno e protegê-la’. (...) Este princípio, tão louvável em si, transforma-se na prática em absurdo, se as inúmeras peculiaridades dos alunos não se diferenciarem através da confrontação com os valores 436 OC XVI, § 454. 437 VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 73. 438 VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 70. coletivos. Se não for este o caso, só se estarão protegendo e desenvolvendo peculiaridades, sem considerar se elas serão proveitosas ou prejudiciais à criança em sua vida social no futuro. Nega-se a ela a importante experiência de que as peculiaridades não são válidas sem mais [só porque ela as possui]. (...) Existe o perigo de que a aplicação muito geral desse princípio forme individualistas inadaptados, ao invés de indivíduos capazes de adaptação. No primeiro caso, comanda um eu intolerante; no segundo, o eu conhece a existência de fatores que são iguais ou mesmo superiores à sua vontade própria. (...) A [posse de] peculiaridades não [constitui] mérito nem presente valioso da natureza. [É] um simples ‘estar aí’ que só adquire importância quando a consciência refletir sobre [ela], valorizá-[la] e submetê-[la] a uma decisão ética.”439 Como Jung não cansou de afirmar, a individuação não leva ao individualismo, mas à adesão complexiva entre o Eu e o mundo, ou seja, à integração reflexiva, consciente e crítica de um indivíduo diferenciado à sua comunidade. O sentido social da individuação é insistentemente lembrado por ele: “Muito embora a tomada de consciência da individualidade possa corresponder ao destino natural do ser humano, ela não é o fim último. Isso porque não é possível que o objetivo da educação do homem se reduza a produzir um conglomerado anárquico de existências individuais. Isso equivaleria a um ideal inconfesso de extremado individualismo, o que não passa de reação doentia a um coletivismo igualmente inadequado. Contrapondo-se a isso, o processo da individuação natural produz uma consciência do que seja a comunidade humana, porque traz justamente à consciência o inconsciente, que é o que une todos os homens e é comum a todos. A individuação é o ‘tornar-se um’ consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a humanidade toda, em que também nos incluímos.”440 439 OC X, § 894-896. 440 OC XVI, § 227. “Basta saber que a alma humana é tanto individual quanto coletiva e que o seu crescimento só é possível se estes dois lados aparentemente contraditórios chegarem a uma cooperação natural. No âmbito da pura vida instintiva, tal conflito obviamente não existe, apesar de que a vida puramente corporal também tenha que satisfazer à exigência individual e à coletiva.” OC VII, pag. 282. “Esta preocupação com o inconsciente tem interesse não apenas teórico mas prático. Pois, da mesma forma que a [visão de mundo] que tivemos até agora é fator decisivo na constituição [do inconsciente e seus conteúdos], assim também a reformulação de nossa visão de mundo, em consonância com os conteúdos ativos do inconsciente, tornou-se uma [necessidade prática]. É praticamente impossível curar definitivamente [uma neurose com drogas individuais], pois o homem não pode viver como indivíduo isolado, fora da sociedade humana. O princípio sobre o qual constrói sua vida deve ser um princípio [aceitável] de modo geral, do contrário prescindirá daquela moralidade natural indispensável ao homem como membro da comunidade. Mas este princípio, se não for relegado à obscuridade do instinto inconsciente, tornar-se-á uma [visão de mundo] bem elaborada, necessária a todos aqueles que costumam prestar contas a si mesmos sobre seu modo de pensar e de agir.” OC X, § 48. É esse contexto intersubjetivo que permite avaliar de maneira plena o conteúdo ético da individuação que, como assinalamos, é dialeticamente entendida em relação à socialidade humana.441 A realização da própria individualidade, que na formulação de Jung corresponde inequivocamente à passagem da universalidade abstrata do ethos à singularidade concreta da praxis virtuosa do sujeito ético442, implica em algum grau um auto-sacrifício do indivíduo empírico em face da universalidade das exigências profundas dos valores do ethos, por um lado, e da totalidade do Si-mesmo, por outro.443 Por isso mesmo, Jung categoricamente afirma que a individuação não pode ser entendida como auto-salvação ou auto-redenção444: ela depende de uma alteridade que interpela o Eu objetivamente na experiência ética, que é simultaneamente intimação comunitária e destinação interior. Jung afirma a remissão indissolúvel entre Si-mesmo e comunidade: “Na verdade, uma relação positiva entre o indivíduo e a sociedade, ou um grupo, é essencial, pois nenhum indivíduo subsiste por si mesmo, mas depende da simbiose com um grupo. O Si-mesmo, o verdadeiro centro de um indivíduo, é de natureza conglomerativa. Ele é por assim dizer um grupo. Ele é uma coletividade em si e, por isso, quando atua de modo mais positivo, sempre cria um grupo.”445 Fica claro que para Jung não há uma separação absoluta entre Si-mesmo e comunidade intersubjetiva, mas antes uma relação constitutiva: é a “natureza conglomerativa” do Si-mesmo que faz do ser humano um animal social, e reciprocamente uma configuração social particular remete à realização do Si-mesmo em sua dimensão comunitária. No entanto, persiste sempre um índice de diferença entre a realidade inabarcável do Si-mesmo e a sua expressão comunitária concreta e particular, e é tal diferença que abre para o indivíduo a possibilidade de diferenciação com respeito à coletividade. 441 Cf. Cartas III, 24/09/1959, a Mrs. C.: “Nós nunca nos bastamos a nós mesmos.” Cf. também a atitude crítica de Jung com relação à idéia do padre Lucas Mensz a respeito de um eu em completa possessão de si mesmo: Cartas III, 28/03/1955. 442 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 15 (cf. esquema da nota 19). 443 Sobre o tema do auto-sacrifício, cf., por exemplo, OC XI, § 387ss. Jung diz que se trata de uma disposição para o auto-sacrifício por parte da consciência empírica do indivíduo, pois “nem mesmo estamos em condições de decidir sobre a natureza desse auto-sacrifício, pois esta decisão depende do outro lado.” Cartas III, 21/12/1960, a Albert Jung. 444 Cf. Cartas II, 14/05/1950, a Joseph Goldbrunner: “Também é errado supor que a individuação seja auto-redenção. [Isso] é exatamente o que ela não é.”; Cartas II, 25/04/1952, a Vera von Lier- Schmidt Ernsthausen: “Descobri que, via de regra, quando aparecem espontaneamente conteúdos ‘arquetípicos’ nos sonhos, etc., deles emanam efeitos numinosos e curativos. São experiências psíquicas primitivas que reabrem muitas vezes para os pacientes o acesso a verdades religiosas soterradas. Eu mesmo passei por esta experiência. Longe de mim pensar em ‘auto-redenção’, pois dependo inteiramente do fato de me acontecer semelhante experiência ou não.” 445 Cartas II, 30/09/1948, a Sally M. Pinckney. Uma vez que o Eu consciente encontra-se irrevogavelmente situado entre os pólos dialeticamente entrelaçados do Si-mesmo e do mundo, a expressão de sua posição particular num dado momento por meio de uma imagem simbólica espontânea do inconsciente faz referência à sua situação global, e portanto aos dois pólos que a determinam. O dinamismo profundo da individuação conjuga o finalismo que comanda a realização do Si-mesmo no mundo e a consideração à forma intersubjetiva particular assumida por este mundo. Em outros termos: a individuação implica um esquema ternário envolvendo Si-mesmo, Eu e mundo, ou totalidade psíquica, consciência individual e comunidade ética. Por isso, uma imagem que retrate algo relativo ao estado da interioridade subjetiva do Eu necessariamente também implica uma referência, ainda que velada, ao estado de sua relacionalidade objetiva e intersubjetiva. Na medida em que a posição do Eu não pode ser pensada sem a referência ao mundo (isto é, ao ethos, aos “valores coletivos”), uma imagem simbólica que expresse tal posição necessariamente conjuga a tendência prospectiva (por originar-se da fantasia criadora e do impulso à realização do Si-mesmo) e a tradição coletiva (que constitui o meio em que concretamente o indivíduo existe e se situa). Como diria Jung, o Si-mesmo “quer” que façamos algo no mundo, “onde – ao menos neste momento – estamos colocados, provavelmente para determinado fim.”446 A “consideração absolutamente sem preconceitos da semente de vida psicológica que se expande da cooperação natural do consciente e do inconsciente, por um lado, e do individual e coletivo, por outro”447, debruçando-se sobre as imagens simbólicas da fantasia criadora que veiculam tal semente, encontra o entrelaçamento indissolúvel de Si-mesmo, Eu e mundo. Assim sendo, a hermenêutica das imagens simbólicas, forma própria da psyches therapeia junguiana enquanto modalidade de sabedoria prática, informando o sujeito acerca de sua linha de individuação ou “traçado de vida”, o defronta com a dupla e recíproca exigência da realização do Si-mesmo e da adesão consciente e reflexiva ao mundo, segundo as modalidades da diferenciação e da integração. É nessa situação complexa que cabe ao sujeito exercer a decisão ética e encontrar a melhor forma possível de atender ao imperativo maior de sua plena realização humana. Ao termo dessa exposição, gostaríamos que a imagem que reconstruímos da psyches therapeia junguiana como modalidade de sabedoria prática espelhasse a 446 Cartas II, 22/11/1954, ao prof. Arvin U. Vasavada. 447 OC VII, pag. 283. (CW VII, § 489). intenção de seu fundador, e correspondesse à impressão que uma conhecida de Jung tinha a seu respeito: “No fundo Jung era ... um apaixonado moralista. Sua moralidade é diferente daquela em que a maior parte de nós foi criada: é ao mesmo tempo mais permissiva e mais exigente. É sobretudo uma moralidade profundamente enraizada na fé – fé no valor do indivíduo e fé na potencialidade criativa do inconsciente.”448 Adendo: nota sobre o sofrimento Se a sabedoria prática visa a eudaimonia ou auto-realização humana, sendo esta o fim (telos) das coisas humanas segundo Aristóteles449, a contrapartida da vida feliz, ou pelo menos um ingrediente inevitável de qualquer vida, é o sofrimento. Qualquer concepção de realização humana que ignore a experiência do sofrimento torna-se ingênua e, por isso, irrelevante. É a realidade do sofrimento que impõe a necessidade da sabedoria prática. As escolas filosóficas da Antigüidade enfrentaram de modos diversos essa realidade, buscando caminhos viáveis de superação do sofrimento humano. Também Jung percebia na relação com o sofrimento um componente fundamental da existência e um assunto incontornável da psyches therapeia, que inclui entre seus objetivos possibilitar à pessoa adquirir “firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento”, já que “a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria.”450 Numa carta a um correspondente indiano, que lhe propusera a questão do sofrimento e de sua superação pela filosofia, Jung responde: “Concordo plenamente com sua opinião de que é um nobre esforço da filosofia procurar um caminho de felicidade para todas as pessoas. Naturalmente esse objetivo é inatingível sem erradicar o sofrimento do mundo. A filosofia precisa encontrar um caminho que provoque a destruição do sofrimento, para então alcançar um estado de felicidade. Parece-me tarefa muito pretensiosa querer eliminar o sofrimento do mundo, e não sou tão otimista para acreditar que isso seria possível. Ao contrário: creio que o sofrimento é parte essencial da vida humana, sem o qual jamais realizaríamos coisa alguma. Sempre procuramos fugir do sofrimento. Nós o fazemos de milhares de formas diferentes, mas nunca o conseguimos de todo. Por isso cheguei à conclusão de que deveríamos tentar, se possível, encontrar ao menos um caminho que possibilitasse às pessoas suportar o sofrimento inevitável, que é o destino de toda existência humana. Quando alguém consegue ao menos suportar o sofrimento, já realizou uma tarefa quase sobre-humana. Isto pode proporcionar-lhe um certo grau de felicidade ou satisfação. Se o senhor chamar isto de felicidade, nada tenho a objetar.”451 448 Miss A. I. Allenby, citada em BROME, V. Jung. Man and Myth. London: Granada, 1980, p. 16. 449 Ética a Nicômaco X, 1176 a 31. 450 Cf. OC XVI, § 185. 451 Cartas I, 16/09/1937, a V. Subrahmanya Iyer. Em nota a essa carta, encontra-se o relato de Walter Uhsadel, a quem Jung teria dito: “A humanidade precisa resolver o problema do sofrimento. O homem oriental quer livrar-se do sofrimento desprendendo-se dele. O homem ocidental tenta suprimir o sofrimento através das drogas. O sofrimento precisa ser vencido, mas só o será quando for suportado. E isto nós só aprendemos dele”, e apontou para a cópia de um vitral em sua biblioteca, representando a crucifixão de Jesus, de que dissera antes: “Veja, isto é o decisivo para nós.”452 O contínuo e apaixonado envolvimento crítico de Jung com o cristianismo moldou a sua atitude a respeito do sofrimento: mal necessário, ele atua como uma espécie de motor na realização humana, vale dizer, na individuação. Apresentações adocicadas e inocentes da psicologia de Jung esquecem-se dessa dimensão essencial, traindo o seu espírito profundo. Talvez essa traição seja indício da dominância silenciosa da modernidade pós-cristã, que só enxerga o lado negativo do sofrimento humano e torna-se, com o triunfo da tecnologia, cada vez mais intolerante a qualquer desconforto, seja material, seja psicológico. Porém, a psyches therapeia junguiana apresenta de partida duas exigências: a integridade do sentido moral e a disposição a suportar o sofrimento. Tanto uma como a outra parecem estar em declínio em nossa civilização, sendo o hedonismo amoral apenas uma das faces mais comuns e banais com que o niilismo moderno ocupa o cenário social contemporâneo, numa negação das raízes gregas e cristãs que definiram a têmpera espiritual do Ocidente, das tradições que deram à luz nossa problemática modernidade. Neste cenário, o destino de uma proposta psicoterapêutica como a formulada por Jung é incerto. Não sem razão, ele por vezes se mostrava desiludido ao final de sua vida com relação aos resultados da recepção de seu trabalho.453 A rememoração da sensibilidade simbólica, afinal, não parece ter se convertido em canal visível de reencontro do mundo moderno com as suas raízes e de recomposição do vínculo perdido com sua tradição. CAPÍTULO QUARTO UM CETICISMO DE ALMA ROMÂNTICA 452 Ibid. 453 Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 351-352. Uma vez estabelecida a caracterização da psyches therapeia em Jung como forma de sabedoria prática, cabe-nos agora avaliar o resultado que obtivemos, suas limitações e dificuldades. Conforme afirmamos anteriormente, a limitação constitutiva da compreensão explicativa própria das ciências humanas e dos modelos nelas inspirados faz com que ela só atinja o nível de particularidade do problema ético, nível onde se dá a efetiva realização do agir ético e da vida ética, condicionada pelas situações psicológica, sócio- econômica, cultural e histórica. O nível de universalidade do ethos, que Henrique Vaz define pela ordenação da razão prática ao horizonte universal do Bem454, não é alcançado pela compreensão explicativa, sendo por ela implicitamente pressuposto. Desde que não se incorra numa forma de reducionismo empirista, que consiste na abolição do nível de universalidade com a conseqüente restrição da inteligibilidade do agir ético às condições de seu exercício, a validade teórica da compreensão explicativa da particularidade é inquestionável. Por outro lado, sob o ponto de vista prático esta compreensão se mostra necessária e insubstituível, já que a realização efetiva da vida ética justamente se dá na situação concreta, configurada por condições contingentes, a cuja inteligibilidade se aplicam os vários discursos das ciências humanas. Deste modo, respeitadas as esferas de competência e a articulação dos níveis de inteligibilidade próprios, a Ética filosófica pode referendar os resultados da compreensão explicativa, e mesmo se beneficiar com eles, pois eles lhe trazem a vida pulsante da realidade efetiva cujo fundamento último, por seu turno, somente as categorias propriamente filosóficas da Ética permitem enunciar. Jung não se cansa de repetir que é um “empirista”. Vale portanto para a psicologia analítica o que acabamos de afirmar: a orientação da razão prática ao horizonte universal do Bem não pode ser tematizada no âmbito empírico em que o exercício da praxis psicoterapêutica se desenrola, mas deve estar pressuposta nesse mesmo exercício e, por isso, poder ser indicada por uma reflexão filosófica específica, tal como a que realizamos em nossa interpretação. É exatamente por esse motivo que pudemos interpretar a individuação ou realização do Si-mesmo como fim último, e para tanto nos situamos no plano da compreensão filosófica da universalidade. 454 Cf. Escritos de Filosofia V, p. 219-220. Assim, a relativização das formas ilimitadas de realização do bem humano não significa, como Jung declara explicitamente, que se proceda a uma relativização do bem e do mal em si.455 Pelo contrário: o horizonte universal do Bem está pressuposto no interior mesmo da relativização empírica de bem e mal que deve reger a consideração psicoterapêutica. Pois se os caminhos da individuação são tortuosos, paradoxais, contingentes, a própria individuação, categoria que torna inteligível a experiência simbólica, ao mesmo tempo apresenta-se como norma imanente para a mesma. Como ensina Henrique Vaz, a inteligibilidade da praxis pressupõe a normatividade imanente do fim.456 A psyches therapeia junguiana orienta-se por uma pergunta, que poderia ser formulada nos seguintes termos: “como, nessa situação concreta, a humanidade realiza- se da melhor maneira possível nesse sujeito?” Vê-se que o critério é o fim último da realização humana (e não algum interesse particular do indivíduo, ou seu bem-estar), e ele apresenta-se como o bem a ser realizado concretamente levando-se em conta a complexidade única (“individual”, ou particular) da situação como um todo. Em face da conflitividade inerente a uma tal situação, a decisão ordena-se implicitamente ao fim último da realização humana, na medida em que se busca a melhor maneira possível para tal realização, e a articulação da universalidade dos princípios com a singularidade da ação é feita justamente pela mediação da sabedoria prática que considera a particularidade da situação. Se refletirmos sobre os relatos fragmentários de intervenções e atitudes clínicas de Jung, dispersos em suas obras, correspondência e nos testemunhos de quem conviveu e trabalhou com ele, veremos com facilidade que na praxis psicoterapêutica ele claramente orientava-se pelo critério da individuação, que representava assim o foco da universalidade que regia a consideração da relatividade inerente à situação prática. Talvez seja oportuno insistir sobre esse ponto. Jung afirma que não se deve sucumbir nem ao bem nem ao mal.457 O critério da individuação supõe a integridade 455 Cf. OC X, § 866. Cf. também JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 285: “A relatividade do ‘bem’ e do ‘mal’ não significa de forma alguma que essas categorias não sejam válidas ou não existam. O julgamento moral existe sempre e em toda parte, com suas conseqüências características. (...) São os conteúdos do julgamento que mudam, submetidos às condições de tempo e de lugar, e em conseqüência destes.” 456 VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 8. 457 “Quando se toca no mal, corre-se o risco de se sucumbir a ele. Ora, o homem, de um modo geral, não deve sucumbir nem mesmo ao bem. Um pretenso bem ao qual se sucumbe perde seu caráter moral, não porque tenha se tornado um mal em si, mas porque determina conseqüências más, simplesmente porque se sucumbiu a ele. Qualquer que seja a forma que revele o excesso a que nos entregamos, como o álcool, a morfina ou o idealismo, é nociva. Nunca devemos sucumbir à sedução daquilo que é prejudicial. (...) racional e livre da consciência na decisão moral, o que significa que as capacidades simbólica e relacional devem estar íntegras – o fanatismo, o literalismo fundamentalista, todas as formas de exaltação maníaca, a instrumentalização das relações intersubjetivas, em suas ilimitadas formas, são indícios de que a experiência simbólica degradou, e de que a realidade do outro foi eclipsada pelo fascínio de uma imagem psíquica interna, imperando assim a inconsciência que, como Jung reconhece, exclui a liberdade. Mas esse critério não pode ser simplesmente subjetivo e individual – se é que, em toda situação particular, a intenção de encontrar a melhor maneira possível de realização da humanidade em uma pessoa revela-se como intenção de alcance universal. O critério da individuação ou da realização do Si-mesmo, enquanto fim último que se eleva sobre as múltiplas e cambiantes situações que constituem a contingência concreta da realização humana, orientando assim a decisão ética, precisa estar ancorado em uma dimensão universal, submetendo-se a um discurso sobre o ser do homem, sua “natureza”, as formas de sua realização/individuação, que permita estabelecer as bases universais para os nossos juízos de valor (sem que com isso estes juízos se convertam em “imperativos categóricos” que ignoram a contingência das situações: o universal precisa ser realizado concretamente de acordo com essa contingência – e esta é a prerrogativa da phronesis.) Essa exigência de universalidade está implícita em Jung,458 mas só pode ser tematizada por um discurso estritamente filosófico. Esclareçamos melhor este ponto mediante um exemplo. Numa carta a J. J. Putnam, de 8 de julho de 1915, Freud confessava sua perplexidade diante dos motivos que o levavam a aderir à existência ética segundo certos valores que a psicanálise não conseguia explicar: “Se me pergunto por que eu sempre busquei ser fiel, ter consideração pelo outro e até ser bom para com ele e por que eu nunca desisti quando percebia que se pode sofrer por causa disso, porque as pessoas são brutais e não se pode fiar nelas, aí de fato eu não sei a resposta. Sensatez sem dúvida, não há nisso.”459 A perplexidade de Freud, paradigmática para as ciências humanas em geral e portanto válida também para a psicologia analítica de Jung, diz respeito ao problema da fundamentação do agir moral. O que está na raiz deste problema é a possível vinculação Nada pode poupar-nos do tormento da decisão ética.” In JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 284-285. 458 Para se comprovar essa afirmação, vale a pena ler toda a a seção intitulada “Últimos Pensamentos” em JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 283-306. 459 Citado em GONTIJO, E. D. “A Psicanálise e a Fundamentação do Agir Moral: Breve Comentário de uma Carta de Freud a Putnam”, in Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 21, n. 65, 1994, p. 306. da Razão a um incondicional, que escapa por princípio à psicanálise e à compreensão explicativa de qualquer das ciências humanas, pois, repetindo, qualquer discurso que se situe no nível da particularidade com relação ao objeto da Ética não está em condições de expor a fundamentação inteligível última para a existência ética. Diante disso, abrem-se-lhe duas opções: ou renunciar a qualquer fundamentação, negando assim o nível da universalidade – e com isso estaria praticando, inadvertidamente ou não, “uma filosofia de cunho empirista incapaz de atingir o porquê do agir ético intersubjetivo na particularidade das situações”460, ou então ater-se aos seus limites epistemológicos e delegar a tarefa dessa fundamentação a um discurso legitimamente filosófico que possa de pleno direito se situar no nível da universalidade, nível “que assegura a possibilidade do encontro ético com o outro pela referência ao horizonte universal do Bem.”461 A partir de uma perspectiva propriamente filosófica, podemos responder à perplexidade de Freud quanto ao porquê do agir ético numa situação em que ele não traz vantagens imediatas ao agente - antes pelo contrário. Se o homem, como ensina a Antropologia Filosófica, é essencialmente um ser-com-os-outros-no-mundo, e se, como ensina a Ética, a razão prática ordena-se constitutivamente ao horizonte universal e incondicionado do Bem, então a autêntica realização humana deve se elevar sobre a particularidade das condições contingentes e negativas para ordenar-se segundo a razão prática àquele horizonte. O outro humano, mesmo sendo brutal e indigno de confiança, necessariamente nos diz respeito, participa e condiciona a nossa existência humana. Recusá-lo com a mesma violência e brutalidade que ele demonstra em seu comportamento não ético significa abdicarmos de nossa própria humanidade. A atração que o horizonte incondicionado do Bem exerce, se infelizmente não parece ser forte o suficiente para expressar-se sob a forma de um mundo um pouco mais justo, é testemunhada pela vida das grandes personalidades éticas, e, mais modestamente, vivida naqueles raros momentos em que conseguimos nos superar e às condições adversas do mundo para colocarmo-nos à altura das exigências de uma autêntica vida ética. Em última análise, Jung entendia o processo de individuação como sendo a manifestação empírica dessa atração, e por isso a individuação lhe aparecia como uma realização moral. Colocando-nos no plano da compreensão filosófica, podemos revelar o estatuto de fim último, e portanto a ordenação ao horizonte universal do Bem, segundo o qual a noção de individuação exige ser pensada. 460 VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 79. 461 Id., p. 78-79. Aqui, contudo, encontramos um obstáculo ou uma dificuldade para nosso paradigma de interpretação filosófica, privilegiando a categoria da sabedoria prática: Jung insistiu sempre em interpretar a dimensão teórica de sua psicologia segundo a categoria da ciência – ou seja, apesar de perceber o parentesco da psicoterapia com a vida filosófica antiga, conforme indicamos na introdução, ele não transpôs essa percepção para o nível teórico, o que significa que ele ficou enredado em um compromisso ou uma intenção teórica – a da cientificidade moderna – sem admitir que penetrava claramente no campo da filosofia e que, por conseguinte, a ele se subordinava ou subscrevia, o que terminou por criar uma cisão interna em sua psicologia que vem justamente reforçar a própria cisão a que ele pretendia responder no plano prático. Pior: não raras vezes a psicologia analítica avizinha-se daquela forma de “filosofia de cunho empirista” que nega o nível de universalidade na compreensão do agir ético, e isso em virtude de uma adesão obstinada e dogmática a uma opção epistemológica determinada, com a qual Jung presumia legitimar o estatuto científico de sua psicologia. Diante disso, e se, como sustentamos em nossa tese, a essência da psicologia analítica é melhor compreendida justamente através do modelo da filosofia prática – no que aplicamos a sugestão de Gadamer para as ciências do espírito-, então um passo necessário para a sua possível legitimação intelectual é demonstrar que, também no plano teórico, tal como Jung o elaborou, mais que científica a psicologia analítica é melhor interpretada como uma “filosofia camuflada”, sendo portanto passível de uma reconstrução crítica ou de um desenvolvimento teórico que a faça atingir a sua verdadeira essência epistêmica, ou seja, a sua necessária inscrição no universo filosófico, depurando-a da questionável condição de, sob a máscara da ciência, praticar uma pseudo-filosofia empirista inadequada e incompatível com a sua essência prática. Eis o motivo pelo qual a legitimação completa de nossa tese exige que analisemos criticamente a opção epistemológica feita por Jung, para então expormos a natureza do perfil filosófico que pode ser desentranhado das concepções teóricas fundamentais da psicologia analítica. 1. O limite epistemológico de uma ciência peculiar: um ceticismo epistêmico mitigado A presença de Kant no texto junguiano pode ser verificada em dois níveis, nem sempre claramente distintos: primeiro, como um ingrediente no sincretismo de seus argumentos – aparecendo então a impropriedade do uso de noções de Kant. É essa impropriedade, já apontada por diversos autores,462 que permite falar-se de uma leitura por vezes equivocada e ilegítima de Kant por Jung. Contudo, essa crítica não leva em consideração o fato de a utilização de Kant se dar também em outro nível: o de um referencial que inspira um enquadramento epistemológico não coincidente com a epistemologia kantiana original. Como quer que seja, em ambos os casos a questão de o “erro flagrante” de Jung ser na verdade uma transformação deliberada deve permanecer em aberto.463 Feita esta advertência preliminar, tentemos explicitar a posição epistemológica que está na base da psicologia analítica e a concepção de ciência que lhe corresponde. Uma das reivindicações mais insistentes feitas por Jung é a de que adotava um ponto de vista epistemológico proveniente de Kant, que para ele é “o” filósofo. De fato, em várias passagens é possível ver como Jung se esforça em ancorar epistemologicamente a psicologia analítica em Kant, e assim contornar várias críticas a ela endereçadas – como por exemplo a de hipostasiar idéias metafísicas com a teoria dos arquétipos464, ou a de estar cometendo um reducionismo psicológico ao tratar de temas teológicos465. Mas a assimilação da teoria do conhecimento de Kant leva Jung a reconhecer que, dada a natureza de seu objeto, também a psicologia não pode ser uma ciência segundo os critérios kantianos. E isso porque as condições de constituição do mundo dos fenômenos objetivos investigados pela ciência não valem para a própria psique. Jung sabe perfeitamente que “tempo e espaço são categorias epistemológicas, indispensáveis para a descrição dos corpos que se movem, mas incompatíveis com a experiência interna e seus conteúdos.”466 Portanto, a rigor os conteúdos da experiência 462 Ver, por exemplo, DE VOOGD, S. “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, in PAPADOPOULOS, R.K. e SAAYAMAN, G.S. (eds.) Jung in Modern Perspective. Bridport: Prism Press, 19912, p. 204-228. Mais consistente é o excelente trabalho de Paul BISHOP, Synchronicity and Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung. Lewiston: Edwin Mellen Press, 2000. 463 Cf. SHAMDASANI, S., Jung and the Making of Modern Psychology, p. 237. 464 “Epistemologicamente me baseio em Kant, o que significa que uma afirmação não [põe] seu objeto.” Cartas I, 08/02/1941, ao Dr. Josef Goldbrunner. 465 “Mas isso não quer dizer que aquilo que se chama inconsciente venha a ser idêntico a Deus ou ocupar o lugar de Deus. O inconsciente é apenas o meio do qual parece brotar a experiência religiosa. Tentar responder qual seria a causa mais remota desta experiência fugiria às possibilidades do conhecimento humano, pois o conhecimento de Deus é um problema transcendental.” OC X, § 565. 466 Cartas II, 25/10/1955, a Palmer A. Hilty. interna não podem ser definidos como fenômenos no sentido kantiano.467 A tentativa de aplicação das categorias da sensibilidade e do entendimento ao material psíquico revelar-se-ia, em última instância, estéril e irrelevante, na medida em que não faria avançar o conhecimento sobre a psique e seus processos. Por outro lado, a psicologia empírica admitida por Kant, tendo como objeto o funcionamento do “sentido interno”, configurar-se-ia como uma “descrição natural da alma”, mas não como uma ciência nem como uma doutrina experimental, uma vez que a observação da própria alma, segundo Kant, altera e distorce o estado do objeto observado.468 Jung é rigorosamente lúcido e consciente das limitações epistemológicas impostas à psicologia empírica pela identidade entre o sujeito e seu objeto – a psique: “Não que eu alguma vez creia estar totalmente certo; ninguém pode afirmar isto em assuntos psicológicos. É bom nunca esquecer que em psicologia o meio pelo qual se julga e se observa a psique é a própria psique.(...) Na psicologia, o observador é o observado; a psique não é apenas o objeto, mas também o sujeito de nossa ciência. Como estamos vendo, trata-se de um círculo vicioso e por isso temos de ter uma modéstia incrível. O melhor que podemos esperar é que todo mundo ponha as cartas na mesa e admita: ‘Conduzo as coisas de tais e tais formas e é assim que as vejo’. Aí poderemos comparar as experiências.” 469 Além do mais, a situação se complica pelo fato de a psique apresentar uma atividade inconsciente empiricamente detectável470, mas por princípio indeterminável: “A psicologia como ciência relaciona-se, em primeiro lugar, com a consciência; a seguir, ela trata dos produtos do que chamamos psique inconsciente, que não pode ser diretamente explorada por estar a um nível desconhecido, ao qual não temos acesso. O único meio de que dispomos, nesse caso, é tratar os produtos conscientes de uma realidade, que supomos originários do campo inconsciente (...). Tudo o que conhecemos a respeito do inconsciente foi-nos transmitido pelo próprio consciente. A psique inconsciente, cuja natureza é completamente desconhecida, sempre se exprime através de elementos conscientes e em termos de consciência, sendo esse o único elemento fornecedor de dados para a nossa ação. Não se pode ir além desse ponto, e não nos devemos esquecer que tais elementos são o único fator de aferição crítica de nossos julgamentos.” 471 A incognoscibilidade essencial da psique – axioma de extração kantiana - transfere-se para a noção de inconsciente, que descreve algo que Jung declara ser “de fato inconsciente”, quer dizer, escapa à apreensão direta pela consciência, e portanto ao procedimento experimental das ciências da natureza. Mas como empiricamente a psique 467 Cf. DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, p. 221. 468 Kant reserva à psicologia empírica um lugar no interior de sua Antropologia, e a Anthropologie in pragmatischer Hinsicht é um texto com que Jung estava familiarizado. 469 OC XVIII, § 277. Recorde-se que na Crítica da Razão Pura Kant proíbe o conhecimento da alma como objeto, uma vez que ela deve ser pressuposta a fim de conhecer qualquer objeto. 470 A base experimental de comprovação de uma atividade psíquica inconsciente é fornecida pelo teste de associação de palavras, desenvolvido por Jung no início de sua atividade psiquiátrica. 471 OC XVIII, § 8. inconsciente determina a consciência, a grande conseqüência da situação peculiar da psicologia empírica, de acordo com o ponto de vista epistemológico de Jung, é que ela só pode ser compreendida como uma forma de conhecimento de partida imperfeito, incerto, duvidoso, no melhor dos casos provável, mas nem por isso destituído de um rigor próprio. No fundo, portanto, Jung concorda em certo sentido com o interdito de Kant à psicologia como ciência – e em mais de uma oportunidade ele mesmo afirmou que o destino da psicologia empírica é abolir-se como ciência: “A psique é um fator muito complexo e tão fundamental a [todas as premissas] que nenhum julgamento pode ser considerado ‘meramente empírico’, mas deve sempre indicar com antecedência [as premissas] segundo [as quais] ele julga. Além disso, o conhecimento psicológico já não pode esconder hoje em dia o fato de que o seu objeto abrange ao mesmo tempo o seu próprio ser e que, por isso, em certo sentido, não pode haver ‘princípios’ e julgamentos válidos, mas apenas fenomenologia, o que significa em outras palavras pura experiência. Neste nível do conhecimento a psicologia como ciência deve renunciar a si mesma, mas só neste alto nível. Abaixo dele são possíveis os julgamentos e, portanto, a ciência na medida em que as premissas do julgamento são fornecidas, e nesta medida também a psicologia como ciência é possível. Mas se perder a consciência de sua condicionalidade ou se ainda não tiver alcançado esta consciência, será semelhante ao cachorro que persegue o próprio rabo.” 472 Como se vê, Jung dilata a noção de ciência para nela admitir “dois níveis" e deixa claro que a psicologia, afinal, pode ser uma espécie de fenomenologia descritiva da psique, que ele considera como um outro tipo de ciência, cujo método deve permitir o estabelecimento de categorias que permitam exprimir as regularidades observadas nos processos psíquicos: “Devido à enorme complexidade dos fenômenos psíquicos, um ponto de vista puramente fenomenológico é sem dúvida o único possível e que promete êxito a longo prazo. (...) O campo das manifestações psíquicas, provocadas por processos inconscientes, é tão rico e múltiplo, que prefiro descrever o fato observado e quando possível classificá-lo, isto é, subordiná-lo a determinados tipos. Trata-se de um método científico, empregado sempre que nos encontramos diante de um material variado e ainda não organizado. Podemos ter dúvidas quanto à utilidade e oportunidade das categorias ou tipos de ordenamento empregados, mas não quanto ao acerto do método. Como observo e examino há décadas os produtos do inconsciente no sentido mais amplo, isto é, os sonhos, fantasias, visões e delírios, não pude deixar de reconhecer certas regularidades ou tipos. Há tipos de situações e de figuras que se repetem freqüentemente de acordo com seu sentido. Por isso uso também o conceito de tema ou motivo a fim de designar estas repetições.”473 472 OC XVIII, § 1738. Cf. também: OC VIII, § 261,421, 429. 473 OC IX-1, § 308-309. “A minha metodologia científica não é nada fora do comum; ela procede exatamente como a anatomia comparativa, só que descreve e compara formas psíquicas.” Cartas I, 07/04/1945, ao pastor Max Frischknecht. “O empirista deve contentar-se portanto com um ‘como se’ teórico. Neste ponto, sua situação não é pior do que a [do físico atômico], se bem que seu método não seja [baseado em medição quantitativa], mas [é] morfologicamente descritível.” OC IX-1, § 143. Esses tipos, temas ou motivos correspondem evidentemente ao conceito de arquétipo474 que, em consonância com o nível “inferior” de cientificidade possível para a psicologia, deve ser tomado como um modelo descritivo, assim como todas as demais noções psicológicas utilizadas na transposição teórica dos fenômenos observados. Mas as próprias observações empíricas e respectivas classificações dependem de determinantes subjetivos psíquicos, constituintes daquilo que Jung chamou “equação pessoal”. Por “equação pessoal” Jung entende não uma disposição meramente individual, mas sim aquela posição, de início inconsciente ou pré-consciente, que molda a personalidade do sujeito e a partir da qual ele interpreta a realidade, suas experiências e a si próprio. A “equação pessoal” entrelaça-se com a visão de mundo (Weltanschauung) e com o espírito do tempo (Zeitgeist), noções que Jung utilizava para compreender a situação espiritual coletiva. A “equação pessoal” é, portanto, um precipitado histórico, social e cultural. Ela pode ser encarada como equivalente, no plano psicológico, à noção de pré-juízo (Vorurteil) na hermenêutica de Hans Georg Gadamer. À “equação pessoal” não escapam os próprios modelos descritivos, que para Jung apenas ilustram determinado modo de considerar as coisas.475 Daí a exigência de 474 Jung comenta na mesma passagem: “A crítica contentou-se em afirmar que tais arquétipos não existem. E não existem mesmo, assim como não existe na natureza um sistema botânico! Mas será que por isso vamos negar a existência de famílias de plantas naturais? Ou será que vamos contestar a ocorrência e contínua repetição de certas semelhanças morfológicas e funcionais? Com as formas típicas do inconsciente trata-se de algo em princípio muito semelhante. São formas existentes a priori ou normas biológicas de atividade anímica.” OC IX-1, § 309, nota 1. Vê-se mais uma vez a confluência de sentidos distintos: os arquétipos são categorias classificatórias, que descrevem algo real e objetivo; são formas a priori comparáveis às categorias kantianas; e são “normas biológicas” da atividade anímica. Mas a precedência de seu ceticismo epistêmico tem prioridade sobre suas incongruências explicativas: “Não sabemos o que é (isto é, em que consiste) um arquétipo, uma vez que a natureza da psique nos é inacessível; mas sabemos que os arquétipos existem e atuam.” OC XVIII, § 1567. 475 Cf. OC VIII, § 381. “Há muitas pessoas que ainda acreditam na possibilidade de se escrever uma psicologia ex cathedra, mas a maioria de nós está convencida de que uma psicologia objetiva deve fundamentar-se sobretudo na observação e na experiência. Esta fundamentação seria o ideal, se fosse possível. O ideal e objetivo da ciência não consistem em dar uma descrição, a mais exata possível, dos fatos – a ciência não pode competir com a câmara fotográfica ou com o gravador de som – mas em estabelecer [certas leis] que nada mais [são] do que [expressões abreviadas] de processos múltiplos que, no entanto, [são concebidos como sendo de alguma forma relacionados]. Este objetivo se sobrepõe, por intermédio [do conceito], ao puramente empírico, mas será sempre, apesar de sua validade geral e comprovada, um produto da constelação psicológica subjetiva do pesquisador. Na elaboração de teorias e conceitos [estão envolvidos muitos fatores pessoais e acidentais]. Há também uma equação pessoal [que é] psicológica e não apenas psicofísica. Desconfio do princípio da ‘pura observação’ na assim chamada psicologia objetiva (...) Esta equação pessoal psicológica aparece mais ainda quando se trata de [apresentar] ou comunicar o que se observou, sem falar da [interpretação e exposição abstrata] do material [empírico]. (...) Exigir que só se olhe objetivamente nem entra em cogitação, pois isto é impossível. Já deveria bastar que não se olhasse subjetivamente demais. (...) Reconhecer e levar em consideração o condicionamento subjetivo dos conhecimentos em geral e dos conhecimentos psicológicos em particular é a condição essencial da [avaliação] científica e [imparcial] de uma psique diferente da do se apresentar a “premissa dos julgamentos” nesse nível epistemologicamente problemático. E Jung se submete à exigência que ele mesmo levantou: “A premissa [subjacente a meus julgamentos] é a realidade [Wirklichkeit] das coisas psíquicas, um conceito que resulta do reconhecimento de que a psique também pode ser pura experiência.”476 Nesta declaração encontra-se o segredo do pensamento de Jung e a pedra angular de sua psicologia: a noção de psique, que kantianamente ele afirma não poder ser conhecida em si mesma, por possuir uma radical dimensão inconsciente477, mas cuja realidade efetiva (Wirklichkeit) ele assume como premissa de todas as suas proposições psicológicas. Assim, traduzido em outros termos, o nível “inferior” em que se situa a psicologia significa que ela só pode ser entendida segundo uma concepção cética de ciência, tratando-se mais especificamente de um ceticismo mitigado que assume uma premissa, não demonstrada racionalmente, mas empiricamente plausível e justificada. A extensão do ceticismo em Jung pode causar surpresa. Acompanhando as transformações ocorridas na teoria e na prática das ciências contemporâneas, que implicavam em uma definição de cientificidade muito diferente daquela em que se assentava o paradigma newtoniano conhecido por Kant, Jung atualiza sua concepção de ciência e a formula claramente em termos de um probabilismo cético. Assim, ele exibe uma posição epistemológica que já não pode nem remotamente ser referida a Kant, quando afirma que “não existem leis naturais, apenas probabilidades estatísticas”, complementando com a afirmação de que “como não existem leis axiomáticas, toda assim chamada ‘lei’ tem exceções. Por isso, nada é absolutamente impossível, exceto a contradição lógica (contradictio in adiecto).” 478 sujeito que observa. Esta condição só será satisfeita quando o observador estiver suficientemente informado sobre a extensão e a natureza de sua própria personalidade.” OC VI, § 8 (grifos nossos). 476 OC XVIII, § 1740. 477 “Eu nunca afirmei, nem acho que sei o que é, em última análise, o inconsciente em si e para si. É a região desconhecida da psique. Quando falo da psique, também não me vanglorio de saber o que ela é em última análise e até onde esse conceito pode chegar. Pois este conceito está simplesmente além de qualquer [conhecimento]. É mera convenção dar o nome de psíquico ao desconhecido que se nos apresenta. Experimentalmente este [fator] psíquico é algo bem diferente da nossa consciência.” Cartas I, 07/09/1935, ao pastor lic. Ernst Jahn. “Quando digo ‘psique’, entendo algo desconhecido a que dou o nome de ‘psique’”. Cartas III, 16/8/1960, a Robert C. Smith. “Para mim a psique é um fenômeno quase infinito. Não tenho a mínima idéia do que ela é em si, e sei apenas muito vagamente o que ela não é.” Cartas II, 17/06/1952, a R.J. Zwi Werblowsky. 478 Cartas II, 25/10/1955, a Palmer A. Hilty. Cf. OC XVIII, § 1188: “A verdade estatística deixa aberta uma lacuna para os fenômenos acausais, e como nossa explicação causalista da natureza contém a possibilidade de sua própria negação, ela pertence à categoria dos juízos transcendentais, que são paradoxais e antinômicos. Isto é assim porque a natureza ainda nos supera e porque a ciência só consegue nos dar um quadro aproximado do mundo, e não um quadro verdadeiro.” Certamente essa posição não quadra bem com as pretensões da teoria do conhecimento de Kant, sempre voltada para uma legalidade Ademais, no que diz respeito especificamente à psicologia, permanece incontestável o fato de que a natureza do objeto de investigação de uma psicologia do inconsciente foge a fortiori aos critérios kantianos do experienciável e do cognoscível. Concordando com Kant ao afirmar que a natureza essencial da psique é incognoscível, ou, em seus próprios termos, inconsciente em seus fundamentos reais, Jung confere-lhe um estatuto numênico. Ele observa e estuda os fenômenos psíquicos que expressam esse númeno hipotético, mas não pode se limitar a tomá-lo rigorosamente como conceito- limite negativo, já que postula a sua realidade efetiva (Wirklichkeit), empiricamente constatável nos efeitos que são a ele atribuídos. Jung vai além de Kant não apenas ao afirmar uma realidade “forte” para esse fator numênico e uni-lo por um vínculo de representação aos fenômenos psíquicos ou imagens arquetípicas,479 como também ao propor modelos descritivos do mesmo, o que representa uma transgressão flagrante do interdito kantiano. Se “arquétipo”, “psique”, “inconsciente” etc. são apenas modelos heurísticos, eles contudo indicam algo real e atuante – eis aí a premissa da Wirklichkeit der Seele -, o que significa que essa realidade indicada por tais modelos é, afinal, não só pensável mas também cognoscível, ao contrário da coisa-em-si kantiana. Esses modelos não são, portanto, conceitos-limite no sentido técnico kantiano, apesar da insistência de Jung em apresentá-los como tais.480 dos fenômenos naturais que se define pela necessidade e universalidade ancoradas na objetividade subjetiva do sujeito transcendental. Jung estava perfeitamente ciente disso: cf. OC XI, § 967. 479 “Aqui vale a pena notar que em Kant é a realidade fenomênica que é solidamente real, ao passo que as entidades numênicas (...) não podem escapar de um certo ar de irrealidade dado seu estatuto de postulado e sua persistente incognoscibilidade. Nas mãos de Jung, porém, a mesma dicotomia fenômeno-númeno recebe uma torção visto que Jung insiste em nos mostrar a realidade fenomênica das manifestações psíquicas. Em termos kantianos isso significa nada menos do que um convite a encarar o fenomenicamente irreal como o fenomenicamente real (...) Uma conseqüência ulterior é que na obra de Jung o numênico transcendente não pode deixar de soar como a ‘coisa real’ (em comparação com suas manifestações ‘meramente psíquicas’).” DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, p. 222. 480 “De certa forma, eu poderia dizer do inconsciente coletivo o mesmo que Kant disse da coisa-em-si, isto é, que ele é simplesmente um conceito-limítrofe negativo, o que no entanto não pode impedir-nos de formular sobre isso (...) hipóteses [sobre sua possível natureza como se ele fosse] um objeto da experiência humana.” (Cartas I, 08/04/1932, ao Dr. A. Vetter, itálicos nossos) Da mesma forma, Jung afirma do arquétipo do Si-mesmo ser ele um conceito-limite (cf. Letters II, 13/06/1955, ao pastor Walter Bernet; cf. OC XVIII, § 1672; OC XI, § 399 e 819; OC XII, § 247), mas ao mesmo tempo toma-o como um “conceito descritivo”, e não como uma “abstração vazia” mediante a qual “o arquétipo é progressivamente separado de um pano de fundo dinâmico e reduzido aos poucos a uma fórmula puramente intelectual.” (Cartas I, 08/04/1932, ao Dr. A. Vetter) Por isso, o Si-mesmo “não é tanto uma hipótese de trabalho, mas algo que foi encontrado” (Cartas II, 13/04/1946, ao Dr. med. Bernhard Milt; cf. OC XI, § 399 nota 19), correspondendo a “uma imagem psíquica da totalidade do homem, a qual é transcendente porque indescritível e inapreensível.” (Letters I, 13/01/1948, a Gebhard Frei) Mais uma vez aparece aqui o índice da transformação representada pela afirmação da realidade da psique: “A dificuldade que dá motivo a mal-entendidos é o fato de que os arquétipos são ‘reais’, isto é, podem ser estabelecidos efeitos cuja causa é chamada hipoteticamente de arquétipo como, por exemplo, nos efeitos da física pode ser estabelecido que sua causa seja o átomo (que é um simples modelo). (...) Para mim a Analogamente, todos os conteúdos dados à consciência na experiência interna são tomados como representações ou imagens da própria psique, e recebem o estatuto fenomênico, que no entanto não pode ser tomado no sentido próprio kantiano, pelas razões que expusemos. Dessa forma, a reivindicada filiação epistemológica kantiana de Jung revela-se problemática. Jung não poderia ser, quanto à epistemologia da psicologia que ele constrói, um kantiano de estrita observância.481 Aparentemente, ele não estava disposto a admitir que sua psicologia ultrapassava e mesmo transgredia o espaço teórico kantiano ao afirmar como premissa central a realidade e originariedade da psique, premissa que tinha conseqüências no plano ontológico. Essas conseqüências foram elaboradas em chave antropológica numa passagem fundamental de Tipos Psicológicos482. Abordando psicologicamente o problema da relação entre esse in re e esse in intellectu na controvérsia entre nominalismo e realismo, Jung evoca um terceiro nível ontológico – o nível do esse in anima – e o define como sendo correspondente à realidade da psique por ele postulada na psicologia contemporânea. Não nos interessa discutir aqui a compreensão limitada e talvez equivocada que Jung oferece do problema dos universais a partir do ângulo próprio em que histórica e filosoficamente ele se coloca. Basta-nos assinalar que a passagem permite comprovar que ele concedia um estatuto ontológico diferenciado à psique, e além disso referia a ela os outros níveis, ao afirmar o primado da fantasia, entendida como atividade imaginativa,483 na construção da realidade tal como pode ser humanamente experimentada: psique é algo real [wirklich], pois ela atua [wirkt], como pode ser constatado empiricamente. Deve-se admitir portanto que as idéias arquetípicas atuantes, inclusive o nosso modelo de arquétipo, baseiam-se em algo real, ainda que [incognoscível], assim como o modelo do átomo se baseia em certas propriedades [incognoscíveis] da matéria.” (Cartas II, 23/04/1952, ao prof. H. Haberlandt) Sobre a aproximação com a física, Jung diz: “A comparação da psicologia moderna com a física moderna não é conversa inútil. Apesar de [sua diametral oposição], as duas disciplinas têm um ponto muito importante em comum, isto é, o fato de ambas abordarem a região até agora ‘transcendental’ do Invisível e Intangível, o mundo do pensamento [meramente] análogo.” (Cartas III, 17/06/1956, ao prof. Benjamin Nelson) “Por isso os conceitos limítrofes são em parte de natureza mitológica em ambas as ciências. [Esta seria uma boa razão] para um exame epistemológico-psicológico [de seus] conceitos básicos.” (Cartas III, 10/09/1956, a Fritz Lerch) A comparação com a microfísica contemporânea – também ela não-kantiana – não deve ser levada longe demais, pois os modelos desta aplicam-se a uma realidade que pode ser quantificada e submetida a experimentação. Cf. OC VIII, § 421-422. 481 cf. DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, p. 221-222, 226. 482 Publicado em 1921, agora correspondendo ao sexto volume das Obras Coligidas. Para a passagem, cf. OC VI, § 63 ss. 483 Sobre os dois sentidos da noção de fantasia em Jung, veja-se OC VI, § 799-810. “Toda expressão lógico-intelectual, por mais perfeita que seja, retira da impressão objetiva sua vitalidade e imediatidade. Ela tem que fazer assim para poder chegar a uma formulação. Com isso se perde, no entanto, o que parece ser o mais essencial para a atitude extrovertida: a relação com o objeto real. Não há, portanto, nenhuma possibilidade de encontrar, através de uma ou outra atitude, uma fórmula de conciliação satisfatória. E mesmo que seu espírito o suportasse, o homem não poderia persistir nessa divisão que não diz respeito apenas a uma filosofia longínqua, mas ao problema diuturno do relacionamento do homem consigo mesmo e com o mundo. E como, no fundo, é desse problema que se trata, a divisão não pode ser resolvida discutindo-se os argumentos dos nominalistas e realistas. Para a solução, é preciso um terceiro ponto de vista, intermediário. Ao esse in intellectu falta a realidade tangível, e ao esse in re falta espírito. Idéia e coisa confluem na psique humana que mantém o equilíbrio entre elas. Afinal o que seria da idéia se a psique não lhe concedesse um valor vivo? E o que seria da coisa objetiva se a psique lhe tirasse a força determinante da impressão sensível? O que é a realidade se não for uma realidade em nós, um esse in anima? A realidade viva não é dada exclusivamente pelo produto do comportamento real e objetivo das coisas, nem pela fórmula ideal, mas pela combinação de ambos no processo psicológico vivo, pelo esse in anima. Somente através da atividade vital e específica da psique alcança a impressão sensível aquela intensidade, e a idéia, aquela força eficaz que são os dois componentes indispensáveis da realidade viva. Esta atividade autônoma da psique, que não pode ser considerada uma reação reflexiva às impressões sensíveis nem um órgão executor das idéias eternas, é, como todo processo vital, um ato de criação contínua. A psique cria a realidade todos os dias. A única expressão que me ocorre para designar esta atividade é fantasia. A fantasia é tanto sentimento quanto pensamento, é tanto intuição quanto sensação. Não há função psíquica que não esteja inseparavelmente ligada pela fantasia com as outras funções psíquicas. Às vezes aparece em sua forma primordial, às vezes é o produto último e mais audacioso da [combinação] de todas as capacidades. Por isso, a fantasia me parece a expressão mais clara da atividade específica da psique. É sobretudo a atividade criativa donde provêm as respostas a todas as questões passíveis de resposta; é a mãe de todas as possibilidades onde o mundo interior e exterior formam uma unidade viva, como todos os opostos psicológicos. A fantasia foi e sempre será aquela que lança a ponte entre as exigências inconciliáveis do sujeito e objeto, da introversão e extroversão.”484 Como Stephanie de Voogd já mostrara485, apoiando-se em reflexões de James Hillman486, a ontologia do esse in anima com seu primado da fantasia requer um modelo descritivo que conceda prioridade à metáfora sobre o conceito, o que significa que o símbolo – forma específica da atividade imaginativa - passa a ser a noção epistemológica fundamental. Neste ponto, portanto, intervém a terceira noção fundamental do espaço teórico em que Jung trafega: a noção de símbolo, definida por ele como “a melhor designação ou [formulação] possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada.”487 Dada a incognoscibilidade radical da psique em si mesma, transposta para a tese da primazia dinâmica do inconsciente, as imagens e representações arquetípicas investigadas pela psicologia do inconsciente serão sempre e em última análise símbolos da psique, e a própria psicologia, com seus modelos 484 OC VI, § 73. Parece-nos que a posição de Jung pode ser comparada em certa medida à de David Hume, para quem a imaginação é um dos pilares da natureza humana, “a grande operária da nossa experiência e da nossa ciência.” (LEROY, A-L. David Hume. Paris: PUF, 1953, p. 59) Também a concepção humeana do eu como um “feixe de impressões” apresenta analogias com a concepção do “complexo do eu” em Jung. 485 Cf. DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, p. 224-228. 486 Cf. HILLMAN, J. O Mito da Análise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 487 OC VI, § 903. Já indicamos no capítulo segundo a centralidade da noção de símbolo em Jung. descritivos, será um símbolo especial da psique.488 A psicologia, diz Jung, é um logos da psique que deve ser entendido em duplo sentido (genitivo objetivo e genitivo subjetivo): como conhecimento sobre a psique através de seus símbolos, e como expressão simbólica da própria psique. Note-se que o ceticismo epistêmico mitigado de Jung estende-se também à sua concepção de símbolo, fazendo-o atribuir pragmaticamente à verdade simbólica “uma validade temporária, pois é entendida apenas para uma determinada situação. Se a situação mudar, há necessidade de nova ‘verdade’, por isso a verdade é sempre relativa a uma determinada situação. Enquanto o símbolo for a resposta verdadeira e, portanto, capaz de solucionar uma situação que lhe corresponda, ele é verdadeiro, válido, ‘absoluto’. Mas, se a situação mudar e o símbolo continuar simplesmente perpetuado, ele nada mais é do que um ídolo que atua de modo empobrecedor e embrutecedor, pois só age inconscientemente e não dá nenhuma explicação ou esclarecimento.”489 Se é plausível a nossa interpretação, então, sob o ponto de vista epistemológico, a psicologia de Jung apoia-se fundamentalmente nessas três noções de psique, inconsciente e símbolo, sendo que as duas primeiras não devem ser tomadas como conceitos rigorosos, inscrevendo-se elas mesmas na categoria de símbolo, pois referem- se a algo de partida caracterizado como desconhecido e mesmo, mais radicalmente, como transcendente à apreensão consciente e intelectual definitiva. No seu conjunto, estas noções são os esteios de um modelo de compreensão que é, em última análise, ele mesmo simbólico.490 488 Cf. OC VI, § 906: “Na medida em que toda teoria científica encerra uma hipótese, portanto é uma descrição antecipada de um fato ainda essencialmente desconhecido, ela é um símbolo.” 489 Cartas I, 10/01/1929, ao dr. Kurt Plachte. Esta posição vale tanto para os grandes símbolos coletivos quanto para os símbolos pessoais que emergem no processo de individuação. Respondendo a um ensaio de uma estudiosa das culturas indígenas americanas sobre os símbolos pessoais que ele esculpira na pedra em sua torre de Bollingen, Jung escreve: “Não tenho convicções religiosas ou outras a respeito de meus símbolos. Eles podem mudar amanhã. São meras alusões, eles indicam algo, eles balbuciam e muitas vezes perdem seu caminho. Eles procuram apenas apontar para certa direção, isto é, para aqueles horizontes obscuros para além dos quais está o segredo da existência. Eles não são nenhuma gnose, não são afirmações metafísicas. Em parte são até mesmo tentativas fúteis ou duvidosas de expressar o inefável. Por isso seu número é infinito e a validade de cada um é incerta. Nada mais são do que humildes tentativas de formular, definir e dar forma ao [inexprimível]. ‘Wo fass ich Dich, unendliche Natur?’ (Fausto). Não é uma doutrina, mas simples expressão da experiência de um mistério inefável e uma [reação] a isso.” Cartas III, 11/02/1956, a Maud Oakes. 490 É isso, segundo cremos, que empresta ao texto junguiano a sua desconcertante mobilidade, sua volatilidade que irrita os nossos modos habituais de compreensão, e torna a sua leitura ao mesmo tempo extremamente difícil, penosa, e apaixonante. Exemplo paradigmático disso é o livro que selou sua ruptura com Freud, Símbolos da Transformação, onde assistimos à passagem aparentemente aleatória de um universo de imagens simbólicas a outro, entremeada com reflexões de cunho psicológico que trazem o leitor momentaneamente de volta à sobriedade da compreensão segundo conceitos, apenas para em seguida arrastá-lo de novo a uma nova constelação simbólica. Também os ensaios sobre o simbolismo alquímico (Psicologia e Alquimia, Psicologia da Transferência e Mysterium Coniunctionis) exibem o mesmo estilo. As exigências postas para a leitura de um texto assim são consideráveis, e não é sem razão Porém, o projeto de Jung para a psicologia tinha uma ambição maior. A afirmação da onipresença da psique na construção da realidade trazia em seu bojo a conseqüência de tornar problemática qualquer pretensão a uma objetividade pura, e em especial no caso da própria psicologia. Mas justamente a psicologia em tese poderia, através de uma reflexão metapsicológica sobre os modelos e estilos de expressão, descrição e conhecimento, estabelecer os modos típicos de estilos e construção de modelos, e portanto de apreensão e expressão da realidade. Era precisamente isto que a teoria dos tipos psicológicos de Jung tinha intenção de realizar491, e era a partir de tal intenção que a herança kantiana era reclamada: a psicologia crítica seria filha do criticismo de Kant. Jung acreditava que ela seria “de imenso valor não só para o círculo mais estreito da psicologia, como também para o círculo mais vasto das ciências em geral.”492 Mas este mesmo projeto não poderia escapar ao círculo vicioso constitutivo da psicologia empírica. Por fim, Jung reconhece honesta e coerentemente que, a despeito de sua intenção de fazer ciência, sua teorização psicológica, ao se imiscuir em outros domínios, estava determinada por sua equação pessoal: “Os problemas da psicologia complexa que aqui procurei delinear levaram-me a resultados espantosos até para mim mesmo. Eu acreditava estar trabalhando cientificamente, no melhor sentido do termo, estabelecendo, observando e classificando fatos reais, descrevendo relações causais e funcionais, para, no final de tudo, descobrir que eu havia me emaranhado em uma rede de reflexões que se estendiam muito para além dos simples limites das Ciências naturais, entrando nos domínios da Filosofia, da Teologia, da Ciência das religiões comparadas e da História do espírito humano em geral. Esta extrapolação, tão inevitável quanto suspeita, trouxe-me não poucos aborrecimentos. Sem falar de minha incompetência nestes domínios, minhas reflexões que mais de um crítico de talhe cartesiano – a começar pelo próprio Freud - se irritou com o texto impenetrável do “obscuro e confuso” Jung. 491 Tratava-se, portanto, de uma intenção originariamente epistemológica, que no entanto se eclipsou diante da intenção caracterológica que se impôs com a vulgarização da teoria dos tipos, sofrendo assim uma desvirtuação de que o próprio Jung se lamentava. A esse respeito, ver SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 61-99. 492 OC VIII, § 260. em princípio pareciam-me duvidosas, porque eu estava profundamente convencido de que a [assim chamada equação pessoal] tinha um efeito de peso nos resultados da observação psicológica.”493 Portanto, a peculiar forma de ciência ou “fenomenologia” que Jung elabora sobre bases céticas, confessadamente extrapolando os “simples limites das Ciências naturais”, revela-se como uma modalidade específica de ciência hermenêutica, e por isso pudemos caracterizá-la como um modelo de compreensão simbólico. Todavia, a referência a Kant faz com que Jung ultrapasse o limite de um ceticismo epistêmico circunscrito ao âmbito da psicologia empírica para defender uma posição de ceticismo metafísico: “Pode-se dizer de todas as afirmações metafísicas que sua realidade consiste em serem afirmadas, mas de nenhuma se pode provar que seja verdadeira ou falsa. Não pertence ao alcance de uma ciência como a psicologia verificar a verdade ou não de afirmações metafísicas. É um ponto de vista totalmente antiquado, e isto desde os tempos de Immanuel Kant, pensar que a pessoa humana pode formular uma verdade metafísica. Isto é e continuará sendo prerrogativa da [crença]. A [crença], por sua vez, é um fato psicológico e nem de longe significa uma prova. Na melhor das hipóteses este fato diz que tal crença existe e que ela corresponde a determinada necessidade psicológica. Como nenhuma necessidade humana é desprovida de fundamento, podemos deduzir que a necessidade de afirmações metafísicas repousa sobre fundamento correspondente, mesmo que este fundamento nos seja inconsciente. Com isto nada é afirmado e nada é negado. (…) Meu aparente ceticismo é [apenas o reconhecimento da barreira epistemológica]”.494 É notável a contradição interna que se manifesta nessa passagem: ao mesmo tempo em que, sobriamente, Jung reconhece que “não pertence ao alcance de uma ciência como a psicologia verificar a verdade ou não de afirmações metafísicas”, ele abandona a posição de psicólogo ao decretar que de nenhuma afirmação metafísica “se pode provar que seja verdadeira ou falsa”, e esse movimento imprudente é feito a partir da adoção dogmática da “barreira epistemológica” kantiana. Nesse ponto, vemos como Jung resvala para aquele tipo de “filosofia de cunho empirista” que denunciamos anteriormente: ele não se limita a evitar o problema da verdade e se ater à limitação epistemológica de sua forma de ciência; ele descarta implicitamente a questão da verdade ao declará-la “irrespondível”.495 Seu ceticismo epistêmico, legítimo se restrito ao âmbito de sua ciência, dá um passo problemático ao converter- se em ceticismo metafísico. À luz da interpretação que propomos, o próprio ceticismo metafísico reivindicado por Jung precisa ser redimensionado. Jung afirma que as proposições metafísicas, apesar de impossíveis do ponto de vista da teoria do conhecimento kantiana, representam necessidades humanas profundas, e por isso não podem ser eliminadas pela crítica racional.496 Ora, mas como a 493 OC VIII, § 421. 494 Cartas III, 8/6/1957, a Bernhard Lang. 495 Também nas Obras Coligidas Jung textualmente considera a questão da verdade “simplesmente irrespondível”, e acrescenta: “Por razões epistemológicas, esta questão já se tornou obsoleta há muito tempo. O conhecimento humano deve contentar-se com a produção de modelos que correspondem à probabilidade. Mais do que isto seria presunção descabida.” OC X, § 853. Ele recusa a possibilidade de afirmação de uma verdade absoluta pelo homem, justamente porque percebe na mediação psíquica incontornável um fator que torna quaisquer postulados humanos inevitavelmente humanos, vale dizer, relativos: “Somente se você for capaz de ver a relatividade, isto é, a incerteza de todos os postulados humanos, poderá experimentar aquele estado no qual a psicologia analítica faz sentido.” Letters II, May/1956, anônimo. 496 “Parece-me que julgamentos transcendentais do intelecto são impossíveis e, por isso, inúteis. Mas, apesar de Kant e da epistemologia, eles aparecem sempre de novo e não podem ser suprimidos. Isto é psicologia deve por princípio lidar com essas “necessidades emocionais”, não lhe resta outra alternativa a não ser ir além de Kant e propor modelos para a “compreensão empírica” dos fenômenos da experiência interior. A efetividade dessas necessidades e desses fenômenos pressupõe que esse “desconhecido em si” – a psique – tenha sua realidade afirmada, e assim, de conceito-limite negativo para o Kant da primeira Crítica, o númeno se converte em hipótese de trabalho com valor heurístico para Jung, mas – repita-se - uma hipótese que corresponde a algo positivamente encontrado na experiência interna. A demarcação de fronteira entre dois territórios distintos, inspirada em Kant mas comportando uma transformação fundamental, faz a psicologia analítica instalar-se no espaço de onde a metafísica toma seu impulso e motivação. A “verdade psicológica” para Jung trará as marcas que Kant atribuiu às proposições metafísicas: “toda afirmação sobre uma coisa desconhecida em si é necessariamente antinômica se quiser ser verdadeira”.497 A hipóstase metafísica se converte em hipótese psicológica, e Jung cautelosamente se exime do ônus da demonstração metafísica: “Acredito igualmente que a palavra ‘imagem primordial’ ou ‘arquétipo’ possa caracterizar as formas estruturais que estão na base da consciência, assim como a estrutura do cristal caracteriza o processo de cristalização. Devo deixar ao filósofo [hipostasiar o ‘arquétipo’] como o eidos platônico. [Ele não estaria tão longe da verdade, de qualquer forma].”498 Nesta passagem vemos Jung por um lado recobrar a lucidez e “deixar ao filósofo” aquilo que lhe compete, e por outro não se conter e imiscuir-se na problemática filosófica da verdade. Não cabe à psicologia empírica, justamente porque seu limite epistemológico veda o passo metafísico, indicar as vias de superação possível do limite que ela própria afirma: a psique.499 Por outro lado, também não cabe à psicologia empírica afirmar que o interdito kantiano não pode ser superado. Mas permanece evidente o fato de que as hipóteses e modelos em que Jung traduz suas observações psicológicas empíricas trazem em si certas implicações que não podem ser desenvolvidas nos quadros da Crítica da Razão Pura, que lhe serve de referência, e é isto o que obriga Jung a descartar ceticamente o problema da verdade. Esta é a tese do porque [provavelmente] representam necessidades emocionais e, como tais, são fatos psicológicos que não podem ser eliminados, [que é como aparecem] à compreensão empírica.” Cartas II, 02/05/1955, ao Dr. Walter Robert Corti. “Como nenhuma necessidade humana é desprovida de fundamento, podemos deduzir que a necessidade de afirmações metafísicas repousa sobre fundamento correspondente, mesmo que este fundamento nos seja inconsciente.” Cartas III, 8/6/1957, a Bernhard Lang. “A psicologia pode criticar a metafísica como sendo uma asserção humana, mas ela mesma não está em condições de fazer asserções desse tipo. Só consegue estabelecer que elas existem como uma espécie de exclamação, sabendo que nem esta ou aquela formulação são demonstráveis e, portanto, objetivamente justificadas, devendo, no entanto, admitir a legitimidade da afirmação subjetiva [enquanto tal]. Asserções desse tipo são manifestações psíquicas que fazem parte da natureza humana e não existe totalidade psíquica sem estas, mesmo que não lhe possamos atribuir mais do que validade subjetiva.” OC X, § 845. Cf. ainda OC XI, § 448, 835; OC XIV, § 558. 497 Cartas I, 07/04/1945, ao Pastor Max Frischknecht. 498 Ibid. 499 “Tudo o que nós tocamos ou com o qual nós entramos em contato transforma-se logo em [um] conteúdo psíquico, e assim estamos [envolvidos por um] mundo de imagens psíquicas, das quais algumas recebem o rótulo ‘de origem material’ e outras o rótulo ‘de origem espiritual’. Mas [como essas coisas se parecem enquanto coisas materiais em si ou coisas espirituais em si nós não sabemos], uma vez que só podemos percebê-las como conteúdos psíquicos, e nada mais. Mas não [posso dizer] que as coisas materiais em si ou as coisas espirituais em si [são] de natureza psíquica, [embora possa ser que não haja nenhum outro tipo de existência exceto a psíquica]. Se for este o caso, [então] a matéria não seria outra coisa a não ser uma definição da idéia divina, como acha o tantrismo. Contra tal hipótese nada tenho a objetar, mas [a mente] ocidental [renunciou], ainda que só recentemente, a afirmações metafísicas que per definitionem não são verificáveis.” Cartas I, 09/01/1939, a V. Subrahmanya Iyer. analista junguiano alemão Wolfgang Giegerich.500 Para ele, a barreira epistemológica kantiana imunizou a psicologia analítica contra o caráter especulativo, religioso e metafísico inerente a seus conteúdos, ajudando “a encapsular os temas especulativos experimentados ao atribuir-lhes o status de ‘fatos empíricos’”.501 Com efeito, o ceticismo epistêmico de Jung, apesar de ser consistente, coerente e rigoroso, não satisfaz à exigência de uma reflexão ulterior que seria mais adequada às suas hipóteses e modelos principais – a realidade da alma, a distinção arquétipo em si/imagem arquetípica, a hipótese de um sentido objetivo e de um saber absoluto (ou intuição intelectual) nos fenômenos sincronísticos, o platonismo do número-arquétipo na hipótese do Unus Mundus, a universalidade das estruturas arquetípicas da alma humana, o dinamismo do Si-mesmo e do processo de individuação. E por restringir-se ao aspecto epistêmico, isto é, por não se completar em um rigoroso ceticismo prático, paga o preço de deixar suas hipóteses e modelos como que “flutuando” de um ponto de vista teórico, entregues, quanto à verificação última, tão-somente ao assentimento não racional do sujeito da experiência. Wolfgang Giegerich coerentemente critica a posição anti-metafísica de Jung e dá o passo na direção de uma “noção rigorosa de psicologia”, recuperando, com o recurso a Hegel, a verdade implícita nas concepções de Jung mas por ele deserdada em favor da adoção de um empirismo baseado em Kant. Encarada sob este ângulo, a psicologia analítica herda a cisão kantiana e a ela responde articulando-se ao que poderíamos chamar de “fideísmo pragmático”, que é tão-somente a outra face do ceticismo metafísico de Jung. Mas, dada a conhecida distância que tomava da atitude de simples crença, Jung seria o primeiro a protestar contra essa expressão. Para justificá-la, é preciso examinar os sentidos que ele dá aos termos “fé” e/ou “crença”. “Fé” tem duplo sentido no uso junguiano: em primeiro lugar, opõe-se à “experiência”, que se identifica a “saber”502; em segundo lugar, corresponde à atitude 500 Cf. GIEGERICH, W. “Jung’s Betrayal of his Truth: The Adoption of a Kant-based Empiricism and the Rejection of Hegel’s Speculative Thought”, in Harvest. Journal for Jungian Studies, London, vol. 44, n. 1, 1998, p. 46-64; e id. The Soul’s Logical Life: Towards a Rigorous Notion of Psychology. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998. 501 “Jung’s Betrayal of his Truth: The Adoption of a Kant-based Empiricism and the Rejection of Hegel’s Speculative Thought”, p. 60-61. 502 “A consciência moderna abomina a fé e conseqüentemente as religiões que nela se baseiam. (...)[Ela só as considera válidas na medida em que o seu conteúdo de conhecimento parece concordar com sua própria experiência do pano de fundo psíquico.] Ela quer saber, isto é, experimentar originalmente por si mesma.” OC X, § 171. No mesmo sentido, Jung responde ao entrevistador da BBC que lhe pergunta se acreditava em Deus: “Não preciso crer. Eu sei” (“I don’t need to believe. I know.”) Cf. MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (eds.) C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 375. “A crença me que afirma aquilo que não pode ser alcançado pela razão em virtude da “barreira epistemológica”. Esses dois sentidos não são coincidentes e nem se superpõem facilmente. Por exemplo: Jung fala a respeito da “experiência imediata” de Deus na experiência religiosa. Pois bem: no primeiro sentido, não há “fé” nessa experiência/saber, pois trata-se justamente de uma experiência direta semelhante às experiências em que se baseiam os enunciados dos dogmas e símbolos religiosos instituídos – e portanto não é uma crença nestes dogmas e símbolos; mas se passamos à questão de estabelecer a objetividade extra-psíquica daquilo que foi experimentado, então intervém o segundo sentido, que impõe a abstenção cética de juízo (a psicologia empírica só pode falar da “imagem de Deus” enquanto fenômeno psíquico, e não de Deus em si mesmo como seu correlato objetivo), e nesse segundo sentido a objetividade fica entregue à “fé” ou crença pessoal, impulsionada pelo impacto da presença de uma alteridade numinosa na estrutura da própria experiência. Jung observa que nessa experiência o Eu é confrontado com um não-Eu psíquico (referência ao arquétipo do Si-mesmo), e este é empiricamente indistinguível de “Deus” – entenda-se: não se pode decidir pela imanência psicológica ou pela transcendência objetiva desse “não-Eu” apenas com os recursos de uma psicologia empírica. Para atender ao objetivo primeiro de dar alívio aos sofrimentos humanos que são endereçados ao psicólogo na situação clínica, Jung forja categorias de compreensão provisórias, empíricas, julgando sua validade em primeiro lugar a partir dos efeitos concretos que se poderiam verificar no estado da pessoa sofredora. Esse pragmatismo, fortemente tributário de William James, revela-se, continuando com nosso exemplo, quando ele observa a respeito da experiência religiosa: “É indiferente o que pensa o mundo sobre a experiência religiosa: aquele que a tem possui, qual inestimável tesouro, algo que se converteu para ele numa fonte de vida, de sentido e de beleza, conferindo um novo brilho ao mundo e à humanidade. Ele tem pistis e paz. Qual o critério válido para dizer que tal vida não é legítima, que tal experiência não é válida sendo essa pistis mera ilusão? Haverá uma verdade melhor, em relação às coisas últimas, do que aquela que ajuda a viver? Eis a razão pela qual eu levo a sério os símbolos criados pelo inconsciente. Eles são os únicos capazes de convencer o espírito crítico do homem moderno. Eles convencem, subjetivamente, por razões antiquadas: são imponentes, convincentes, palavra que vem do latim convincere, e significa persuadir. O que cura a neurose deve ser tão convincente quanto a própria neurose e, como esta é demasiado real, a experiência benéfica deve ser desagrada sob todos os aspectos, porque eu quero conhecer uma coisa, e então eu não tenho que acreditar nela se eu a conheço. Se não a conheço, parece-me uma usurpação dizer ‘Eu acredito’, ou o contrário. Penso que deveríamos ter no mínimo algumas razões mais ou menos tangíveis para nossas crenças. Deveríamos ter no mínimo algum conhecimento que torne uma hipótese provável.” Letters II, 6/6/1958, a Mrs. Otto Milbrand. dotada de uma realidade equivalente. Numa formulação pessimista: deverá ser uma ilusão muito real. Mas que diferença há entre uma ilusão real e uma experiência religiosa curativa? É uma diferença de palavras. (...) Ninguém pode saber o que são as coisas derradeiras e essenciais. Por isso devemos tomá-las tais como as sentimos. E se uma experiência desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais plena ou mais significativa para nós, como aqueles que amamos – então poderemos dizer com toda a tranqüilidade: ‘Foi uma graça de Deus’. (...) A aventura espiritual do nosso tempo consiste na entrega da consciência humana ao indeterminado e indeterminável, embora nos pareça – e não sem motivos – que o ilimitado também é regido por aquelas leis anímicas que o homem não [inventou], e cujo conhecimento adquiriu pela ‘gnose’ no simbolismo do dogma cristão, e contra o qual só os tolos e imprudentes se rebelam; nunca, porém, os amantes da alma.”503 O que é válido para o caso do incognoscível “Deus” aplica-se, de um ponto de vista epistemológico, a todos os incognoscíveis indicados pelos modelos descritivos da psicologia analítica. Assim, frustra-se a exigência de uma resposta racional à questão sobre a natureza verdadeira daquilo que se apresenta à consciência na experiência simbólica. Isso permite compreender a posição de Jung como uma articulação entre o ceticismo epistêmico e uma espécie de “fideísmo razoável”. Pois é preciso lembrar que a premissa sobre a qual repousa toda a compreensão psicológica de Jung e sobre a qual insistimos tanto anteriormente – a premissa da realidade da psique – é, em termos epistemológicos rigorosos, uma hipótese de valor heurístico. É ela que vem mitigar o ceticismo epistêmico de Jung. Mas, encarada a partir de uma posição cética radical, como aquela implicada no ceticismo metafísico assumido em honra a Kant, em última análise essa hipótese se mostra indistinguível de uma crença – razoável, plausível, verossímil, mas nem por isso menos crença, e uma crença que já fazia parte do repertório de pressuposições do contexto cultural em que Jung se formou. Em linguagem junguiana, ela estruturava a “equação pessoal” de que a psicologia analítica é expressão. Aqui se revela o significado do “mito do sentido” oferecido na psicologia analítica. Para uma consciência moderna, e especialmente em face da suspeita de ilegitimidade epistemológica da razão metafísica, a afirmação de um sentido radical da 503 OC XI, § 167-168. Também sobre a legitimidade e realidade das supostas “ilusões”, cf. OC XVI, § 111. Pode-se perceber, por outro lado, como o pragmatismo médico de Jung subscreve-se à tradição grega da retórica, sistematizada em Aristóteles. Pedro Laín-Entralgo sintetiza a posição aristotélica sobre a natureza da palavra persuasiva: “A missão da retórica não é, pois, persuadir, mas descobrir o que de persuasivo possa haver em cada caso, como a missão da medicina não é curar – assim, em absoluto -, mas averiguar como e até que ponto é curável cada doente ([Retórica] I, 1, 1355, b 10-15). À sua maneira, Aristóteles segue a idéia do paralelismo entre a medicina e a retórica que Platão havia exposto no Fedro.” La Curación por la Palabra em la Antigüedad Clásica. Madrid: Revista de Occidente, 1958, p. 249-250. Laín-Entralgo lembra também que pistis (crença, confiança) e peitho (persuasão) provêm de uma mesma raiz, e portanto aquilo que persuade alguém é igualmente aquilo em que se crê ou confia (pistis) (cf. op. cit., p. 250-251). Porém, a persuasão não elimina a problemática da verdade – e nisso o ceticismo de Jung afasta-se da posição aristotélica. existência torna-se extremamente problemática.504 Nesse clima adverso, os frutos da metafísica são deportados para o campo do mito (epistemologicamente entendido). Na medida em que Jung afirma a necessidade imperiosa de se viver um sentido, e uma vez que seu ceticismo não lhe permite avançar pela trilha perdida ou interditada da metafísica, só lhe resta de fato oferecer um mito do sentido – o que significa que o sujeito faz a experiência do sentido (prescindindo da fé em uma tradição) mas tem que suplementá-la com a crença, já que o fundamento transcendente de sua experiência por princípio subtrai-se quer à afirmação, quer à negação por parte de uma inteligência cética. A “traição de sua própria verdade” por Jung, denunciada por Giegerich, significa que ele se recusou a “filosoficamente chegar a um acordo com o absoluto, o transcendente”, e a “perceber seu viés kantiano como devastador para a psicologia”,505 pois a forma lógica em que ele assentou sua teorização “preclui absolutamente uma conexão entre (...) os mundos fenomênico e numênico”.506 Sem uma tal reflexão ulterior, a psicologia analítica encerra-se em sua própria “bolha”, como diz Giegerich, e não consegue responder convincentemente à acusação de ser apenas mais uma das “ilusões” de efeito terapêutico, tão comuns em nosso exuberante e triste mercado de desejos.507 Como o próprio Jung é o primeiro a admitir, em virtude das exigências práticas e prementes da situação clínica, ele não pôde sistematizar e aprofundar filosoficamente suas concepções psicológicas508. Seguindo a sua sugestão e aplicando à face teórica da psicologia analítica a perspectiva da “equação pessoal”, bem como seu método comparativo, podemos analisar morfologicamente a configuração daquilo que chamamos o perfil filosófico do seu pensamento e assim compará-lo com correntes do contexto cultural em que ele se forjou. Tal comparação descortina um outro cenário, bem mais condizente com os pressupostos, implicações e exigências de suas hipóteses e modelos psicológicos do que o cenário visado por sua obstinada – e equivocada – 504 A esse respeito veja-se o ensaio de Wolfgang GIEGERICH: The End of Meaning and the Birth of Man. An Essay about the State Reached in the History of Consciousness and an Analysis of C.G.Jung’s Psychology Project. www.beamish.org/Files/Giegerich_EndofMeaning.pdf. 505 GIEGERICH, “Jung’s Betrayal of his Truth: The Adoption of a Kant-based Empiricism and the Rejection of Hegel’s Speculative Thought”, p. 50. 506 Id., p. 52. A postulação do “arquétipo em si”, entidade evidentemente metafísica, salva, segundo Jung, a premissa teológica da transcendência (cf. Cartas II, 30/08/1951, ao dr. H.). Mas Jung se abstém de trabalhar as conseqüências e as exigências de sua própria postulação. 507 Giegerich afirma que a intenção expressa de reparação do crime de Fausto contra Filemon e Báucis, assumida por Jung, fracassa em virtude dessa “traição de sua verdade”. 508 Cf. OC XVI, § 181; OC XVIII, § 1731. reivindicação por uma cientificidade não filosófica. Ela revela que a inteligência cética de Jung era habitada por uma alma romântica, que ele tentava a custo camuflar, negar e reprimir. 2. Jung, o Romantismo e o Idealismo Alemão Ao longo desse trabalho, fizemos algumas vezes alusão às tangências e mesmo ao parentesco entre o pensamento de Jung e a Naturphilosophie idealista e romântica. Na verdade, mais do que uma mera coincidência casual e superficial de noções, temas e linhas de raciocínio, cremos encontrar nesse parentesco uma chave adequada de compreensão histórica da psicologia analítica, que permite referendar a necessidade e a legitimidade de um desenvolvimento, no plano teórico, do legado de Jung na direção de matrizes filosóficas mais adequadas à sua real essência epistêmica. Esta perspectiva não é original. Henri F. Ellenberger afirma que “dificilmente há um único conceito de Freud ou Jung que não tenha sido antecipado pela filosofia da natureza e pela medicina Romântica.”509 Sonu Shamdasani igualmente enfatiza a profunda dependência histórica da psicologia de Jung ao movimento romântico.510 Visando compreender certas inovações da psicanálise pós-freudiana, Suzanne Kirschner expõe as origens religiosas e românticas das noções de individuação e integração511, que estão já antecipadas e são centrais em Jung. Richard Noll, num livro que alcançou repercussão internacional, aponta o perfil romântico da psicologia de Jung, mas para desqualificá-la como “não-científica”, ou “uma regressão ou degeneração para a filosofia natural oitocentista”512 – o que, para sua perspectiva positivista, equivale a “falsa” ou “não digna de crédito”. 509 The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic Psychiatry. Nova York: Basic Books, 1970, p. 205. 510 Cf. Jung and the Birth of Modern Psychology, passim. 511 KIRSCHNER, S.R. The Religious and Romantic Origins of Psychoanalysis. Individuation and Integration in Post-Freudian Theory. Cambridge: C.U.P., 1996. Também dedicado à explicitação dos laços entre o Romantismo alemão e a psicanálise de Freud é o livro de Ricardo Sobral de Andrade, A Face Noturna do Pensamento Freudiano. Freud e o Romantismo Alemão. Niterói: Editora da U.F.F., 2001. Muitos dos vínculos que o autor descobre aplicam-se também, e talvez ainda mais propriamente, a Jung. Cf. também HUBBS, V. “German Romanticism and C.G. Jung: Selective Affinities”, in Journal of Evolutionary Psychology, vol. 4, nº 1-2, 1983, p. 8-20. O livro de Paul Bishop, Synchronicity and Intelectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung, expõe com precisão os vínculos da psicologia de Jung ao Romantismo. 512 O Culto de Jung. Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Ática, 1996, p. 298-299. Para uma crítica da posição de Noll, veja-se BARRETO, M.H. “Observações a respeito de ‘O Culto de Jung’, O reconhecimento da afinidade do pensamento de Jung ao Romantismo não significa que ele tenha partido intencional e imediatamente do conteúdo da filosofia da natureza romântica, ou de qualquer outra posição filosófica, na elaboração de sua psicologia.513 Ele não se cansa de repetir, quanto a isso, que não é um “filósofo”, e sim um “empirista” que não tem “postulados”, “sistema” nem “doutrinas”, e que se atém aos “fatos”.514 Porém, como vimos, Jung reconhece que sua psicologia empírica depende de uma premissa. E, como ele mesmo afirma, “na medida em que a psicologia leva em conta suas premissas, torna-se evidente sua vinculação com a filosofia e a história das idéias.”515 O que é premissa para Jung – a realidade da psique ou alma - corresponde a uma verdade estabelecida para a maior parte da tradição filosófica até Hume e Kant, quando então ela é posta em causa, problematizada, e a partir de então abrem-se-lhe três grandes alternativas, se não se quiser limitá-la ao estatuto que lhe é concedido no criticismo: trabalhada mediante uma crítica do interdito kantiano, ela é restituída como doutrina racionalmente estabelecida, mas profundamente transformada, no interior dos sistemas idealistas pós-kantianos; ou então é reduzida de modo materialista-mecanicista; ou, finalmente, é obrigada a se converter ceticamente em “premissa”. Considerando a questão nestes termos, é reveladora a interpretação que Jung faz do empenho de Kant na Crítica da Razão Prática como sendo “uma grandiosa tentativa de valorizar o esse in anima em termos filosóficos”516, pois, como se sabe, é na segunda Crítica que o acesso ao númeno, interditado na Crítica da Razão Pura, vai ser de Richard Noll”, in Síntese Nova Fase, v. 23, n. 74 (1996), p. 405-415. E para uma refutação das falácias subjacentes à sua reconstrução das origens do “movimento carismático” junguiano, sobre a qual se baseiam suas interpretações bombásticas, veja-se SHAMDASANI, S. Cult Fictions. C.G. Jung and the Founding of Analytical Psychology. Londres: Routledge, 1998. 513 “Ainda que eu deva muito à filosofia e me tenha beneficiado de sua rigorosa disciplina do método de pensar, sinto diante dela aquele respeito sagrado que é inato a todo observador dos fatos. A grande quantidade de conceitos e possibilidades de conceitos, que serpeiam na história da filosofia como um largo rio, inunda facilmente o jardinzinho experimental e bem demarcado do [empirista], ou ainda seu campo bem arado, ou mesmo suas terras ainda inexploradas. Confrontando o fluxo de acontecimentos com olhar não preconcebido, deve moldar para si um instrumento intelectual ‘livre de preconceitos’, e retrair-se temerosamente de todas as possibilidades de pontos de vista que a filosofia lhe oferece em exagerada quantidade como se fossem tentações perigosas.” OC XVIII, § 1730. 514 Cf., p. ex., OC XVIII, § 1731. Esta declaração precisa ser contextualizada para não ser tomada como uma simples contradição a tudo o que Jung diz a respeito da equação pessoal. Assim, mais adiante ele afirma: “Seria fora de propósito imaginar que pudéssemos – numa disputa honrosa com o Barão de Münchhausen – livrar-nos de [nosso próprio peso] e, assim, descartar o último e mais fundamental dos pressupostos, isto é, nossa própria disposição mental.” OC XVIII, § 1732. 515 OC XVIII, § 1739. 516 OC VI, § 63. Sintomática é a omissão à Crítica da Faculdade do Juízo, que Jung conhecia a ponto de citá-la textualmente em determinada ocasião. Cf. OC IV, § 688. Aparentemente ele só se interessou pela segunda parte da terceira Crítica (“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”), desconsiderando a primeira (“Crítica da Faculdade de Juízo Estética”). permitido como fundamento da própria razão prática. Parece que isso, na interpretação de Jung, seria um equivalente filosófico da premissa da Wirklichkeit da psique, o que emprestaria legitimidade à extensão que ele dá à realidade objetiva kantiana. De fato, Kant afirma que os postulados da razão prática “dão às idéias da razão especulativa em geral (por intermédio da sua relação ao prático) realidade objetiva e habilitam-na para conceitos cuja possibilidade, de outro modo, ela nem sequer poderia pretender afirmar.”517 Mas em Kant essa realidade objetiva fica necessariamente circunscrita ao domínio prático, não ampliando o conhecimento especulativo. O Idealismo Alemão unificará o fundamento dos domínios teórico e prático, ultrapassando a posição de Kant. Jung, em sua interpretação da Crítica da Razão Prática, faz um movimento análogo. Porém, optando por uma problemática fidelidade ao interdito kantiano, e recusando tanto a superação idealista quanto a redução materialista, só lhe restava seguir o caminho do ceticismo epistêmico para sua psicologia, sem tentar levar adiante aquilo que estava implícito em várias de suas noções e hipóteses centrais e que, como dissemos, não encontrava espaço adequado no interior do criticismo. Nessa restrição estaria, na expressão forte de Wolfgang Giegerich, a traição de sua verdade. De qualquer forma, não é portanto casual a possibilidade de indicarmos analogias entre a psicologia analítica e concepções dos sucessores de Kant. O próprio Jung reconhece o paralelismo e as afinidades entre suas “descobertas” e vários pontos do Idealismo Alemão. O fato de ele considerar a época posterior a Kant, sob o ponto de vista filosófico, como um “contramovimento lógico” e designá-la indistintamente sob a rubrica “Romantismo” revela sua compreensão do vínculo entre a psicologia e a filosofia desse período: “Kant traçou uma linha divisória através do mundo mental que tornou impossível até para o mais [ousado] salto da especulação penetrar no objeto. O romantismo foi o contramovimento lógico, expresso com mais intensidade e mais disfarçadamente oculto em Hegel, o grande psicólogo vestido de filósofo.”518 Nas poucas vezes em que se refere ao pensamento hegeliano, Jung o trata segundo a perspectiva psicológica do esse in anima e da equação pessoal, e assim considera Hegel “um psicólogo camuflado” que “projetava as grandes verdades da 517 KANT, Crítica da Razão Prática, A 238 (na tradução portuguesa de Artur Morão: Lisboa, Edições 70, 1989, p. 151). 518 OC XVIII, § 1734. esfera do sujeito sobre um cosmo por ele próprio criado.”519 Por ser considerado um romântico, Hegel aparece a Jung como fazendo a transição para a psicologia e, por isso, a sua forma filosófica parece-lhe “inautêntica”, um mero “veículo”.520 A filosofia de Hegel é “uma confissão altamente racionalizada e prodigamente decorada de seu inconsciente”521, e Hegel é portanto um “psicólogo camuflado” cujo pensamento exibe coincidências “notáveis” com as descobertas de Jung sobre o inconsciente coletivo.522 Segundo Wolfgang Giegerich, Jung assume de antemão que “a barreira de Kant é uma verdade indiscutível e na verdade define os limites da razão como tal. Mas isso teria de ser demonstrado. O que Hegel fez foi interpretado de modo não crítico por Jung como ‘transgressão dos limites da razão’. Jung simplesmente desqualificou a cuidadosa crítica filosófica de Hegel a Kant como não merecedora de uma resposta intelectual. Em vez disso, ele argumentou contra Hegel por meio de rótulos psicológicos, mas tal aplicação de diagnósticos psicológicos para difamar o oponente ao invés de refutar o que ele diz é deselegante.”523 Diríamos mais: Jung perpetra contra Hegel o excesso do “psicologismo desenfreado” que ele mesmo condena ao defender a legitimidade da crítica psicológica.524 E no entanto, esse psicologismo inadvertido resulta, como bem aponta Giegerich, da entronização dogmática de Kant como “o” filósofo, seguindo-se então o corolário de que a filosofia que ultrapassa a barreira kantiana não seria rigorosamente filosófica, mas em grande parte uma psicologia projetada, camuflada, e romântica. Mas inversamente, na medida em que pomos em suspenso esse dogmatismo kantiano sobre o qual se apoia o ceticismo epistêmico de Jung, podemos interpretar sua psicologia, em sua dimensão teórica, como uma filosofia “camuflada”. Na verdade, é no próprio Jung que encontramos o convite a tal inversão, quando ele diz honestamente: “Sempre fui de opinião que Hegel era um psicólogo inautêntico [uneigentlich], como eu sou um 519 OC VIII, § 358. 520 “Ao contrário de Kant, Hegel parece-me um pensador romântico e, com isso, um típico filho de seu tempo; é romântico também em sua transição para a psicologia. A forma [de pensamento] [denkerische Form] já não é autêntica, mas um veículo.” Cartas I, 31/07/1935, ao prof. Friedrich Seifert (que escrevera um ensaio intitulado “Dialética da Idéia e Dialética da Vida. O Problema dos Opostos em Hegel e Jung”). “Para mim é mais do que óbvio que aquelas afirmações da Filosofia que transcendem as fronteiras da razão são antropomórficas e não possuem nenhuma outra validez além [daquela] que [compete] às afirmações psiquicamente condicionadas. Uma filosofia como a de Hegel é uma auto-revelação [do pano de fundo psíquico] e, filosoficamente, uma presunção.” OC VIII, § 360. 521 Cartas III, 27/04/1959, a Joseph F. Rychlak 522 Cartas III, 27/04/1959, a Joseph F. Rychlak: “Na minha opinião bem incompetente, [Hegel] não é [nem mesmo] um filósofo propriamente, mas um psicólogo camuflado.(...) Nunca estudei propriamente Hegel, isto é, suas obras originais. [Não há nenhuma possibilidade de inferir] uma dependência direta, mas, como já disse, [Hegel professa as principais tendências] do inconsciente e pode ser chamado ‘un psychologue raté’. Naturalmente há uma coincidência notável entre certos pontos da filosofia de Hegel e minhas descobertas sobre o inconsciente coletivo.” 523 GIEGERICH, ‘Jung’s Betrayal of his Truth’, p. 48-49. 524 Cf. OC IX-1, § 151. filósofo inautêntico. Mas sobre o que é ‘autêntico’ cabe ao espírito da época decidir.”525 E examinando mais de perto essa “camuflagem” que encobre a “inautenticidade” filosófica de Jung, percebemos claramente que ela se assemelha às correntes idealistas e românticas que, segundo ele, fazem a transição para a psicologia. Em resumo: se o Romantismo prepara o caminho para a psicologia analítica, a psicologia analítica por sua vez participa da visão de mundo romântica, e essa relação incide sobre o plano teórico. Foi com surpresa que, tardiamente, Jung se deu conta pela primeira vez da afinidade de sua psicologia ao Romantismo.526 Mas logo a seguir ele aprofunda esse reconhecimento: “Não se pode negar que certas premissas significam reassumir idéias que são características do tempo do romantismo. Mas não são tanto os pressupostos ideais que justificam esta visão histórica, e sim o ponto de vista fenomenológico, chamado moderno, da ‘[pura] experiência’ que não apenas foi antecipado de certo modo pelo romantismo, mas que realmente pertence à sua verdadeira natureza. É mais próprio do romantismo ‘experimentar’ a psique do que ‘investigá-la’. Foi novamente a época dos médicos filósofos, um fenômeno que se manifestou pela primeira vez na época pós-Paracelso, sobretudo na alquimia filosófica, cujos representantes mais importantes eram médicos. Correspondendo ao espírito pré-científico da época, a psicologia romântica do início do século XIX foi filha da filosofia romântica da natureza. (...) O paralelismo com minhas concepções psicológicas justifica designar minhas idéias como ‘românticas’. Pesquisa semelhante [sobre seus antecedentes filosóficos] também justificaria esta designação, pois toda 525 Cartas I, 31/07/1935, ao prof. Friedrich Seifert. De um ponto de vista histórico-filosófico, a vinculação de Hegel ao Romantismo é contestável: apesar de sua doutrina ser inconcebível sem o Romantismo, Hegel se afastou dos românticos e, na Fenomenologia do Espírito, faz a crítica do movimento como um todo. Segundo Gerd Bornheim, “o pensamento de Hegel deve ser considerado o momento em que o Romantismo se supera a favor de um sistema plenamente racional. É bem verdade que seu sistema pode ser interpretado como o ápice do Romantismo, mas suas idéias não se coadunam facilmente com as concepções desenvolvidas pelo chamado grupo de Jena.” BORNHEIM, G. “Filosofia do Romantismo”, in GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 19852, p. 75-111, aqui p. 98, nota 40). 526 Em um prefácio ao livro de Rose Mehlich sobre a psicologia de Immanuel Hermann Fichte, filho de J.G. Fichte, de 1935, onde Jung diz: “Conheço naturalmente Leibniz, C.G. Carus e E. von Hartmann, mas não sabia até [agora] que minha psicologia era ‘romântica’.” OC XVIII, § 1732. Neste prefácio, Jung explica a afinidade entre sua psicologia e o Romantismo psicologicamente, como resultado de disposições típicas semelhantes: “Se existe, pois, um tipo de mente, isto é, uma disposição que pensa e interpreta ‘romanticamente’, sempre aparecerão conclusões semelhantes, quer sejam derivadas do sujeito ou do objeto.” Ibid., § 1732. E complementa depois: “Será o [empirista] em mim, ou será porque a analogia não é identidade que me faz considerar o ponto de vista ‘romântico’ simplesmente como ponto de partida e suas afirmações como ‘material comparativo’?” Ibid., § 1734. Esta explicação psicológica coincide com a interpretação filosófica de Benedito Nunes sobre a “sensibilidade romântica” como uma categoria psicológica universal. Mas, como ressaltam tanto Benedito Nunes quanto Gerd Bornheim, o Romantismo precisa ser compreendido também como fenômeno histórico bem determinado, para que a universalidade da categoria psicológica não redunde numa unilateralidade exagerada, que só se atém às semelhanças estruturais dos vários “romantismos” e perde de vista as profundas diferenças entre constelações culturais e históricas distintas. Cf. BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, e NUNES, B. “A Visão Romântica”, in GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 19852, p. 51-74. Jung também reconhecia a dimensão histórica de sua afinidade romântica, mas tendia a interpretá-la romanticamente, o que significa dar a primazia ao ponto de vista antropológico-psicológico. psicologia que conhece a psique como experiência é ‘romântica’ e ‘alquimista’ [do ponto de vista] da história.”527 Posteriormente Jung vai mais longe e afirma que o simples fato de falarmos do inconsciente é uma herança direta do espírito romântico.528 Contudo, ele continuará tentando se dissociar do movimento romântico, apelando para seu kantismo – leia-se: ceticismo – epistemológico, e recusando as “hipóstases metafísicas românticas” e seus juízos transcendentais.529 Em virtude dessa atitude, Paul Bishop fala de um “Romantismo relutante” em Jung.530 É sabido como, após estudos aprofundados sobre o simbolismo alquímico, Jung passou a ver na alquimia a precursora medieval não tanto da química moderna, mas de sua psicologia analítica. Contudo, antes de ter sido reinterpretada pelo pensamento psicológico de Jung no século XX, a alquimia, bem como boa parte da tradição hermética, fora objeto de interesse exatamente do Romantismo alemão, e a concepção romântica de natureza é tributária da concepção alquímica, o que nos permite referendar a posição de Jung quando interpõe a psicologia romântica, derivada da Naturphilosophie oitocentista, como um elo histórico entre a psicologia analítica e a alquimia. Por este motivo, ainda que paralelos e analogias possam ser estabelecidos entre Jung e Hegel, ou entre Jung e Fichte, parece-nos que o primum analogatum para sua psicologia, na comparação com as matrizes filosóficas do Romantismo, encontra-se na filosofia da natureza de Schelling, que exercerá forte influência nos círculos românticos, e assim é através dessa convergência que passa a afinidade de Jung ao Romantismo propriamente dito.531 Porém, não é nosso propósito aqui comparar diretamente a psicologia analítica com a filosofia do Romantismo, e isto por um motivo bem simples: a psicologia analítica evidentemente não é uma filosofia, no sentido rigoroso do termo – quando muito seria uma “filosofia inautêntica”, se levarmos a sério a bem-humorada confissão 527 OC XVIII, § 1739-1740. 528No seminário sobre a interpretação psicológica dos sonhos infantis (1938-1939), citado em SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 167. 529 Cf. Cartas II, 4/02/1943, a Arnold Künzli, e 2/05/1955, a Walter R. Corti. 530 Cf. BISHOP, Synchronicity and Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung, p. 10. 531 A leitura dos escritos de Carl Gustav Carus, médico romântico ligado aos círculos da Naturphilosophie, e de seu discípulo filósofo, Eduard von Hartmann, é decisiva na formação de Jung, e principalmente para sua concepção de natureza e inconsciente. Portanto, e apesar de Jung ter lido Schelling, a mediação com o espírito do Romantismo passa por Carus e von Hartmann - pondo-se entre parênteses a afinidade “tipológica” apontada por Jung. Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, capítulo 3 (“Body and Soul”). do próprio Jung. O empirismo pragmático que governa a sua construção, em alicerces céticos, não favorece a sistematização, o que tornaria sem sentido a comparação direta com os sistemas metafísicos fichteano e schellinguiano. Assim, pareceu-nos preferível proceder à comparação indiretamente, e evidenciar a “alma romântica” de Jung mostrando a coincidência entre noções centrais de seu pensamento e certas idéias diretrizes da visão romântica do mundo, a qual é historicamente tributária das espécies metafísicas do idealismo pós-kantiano.532 Isso, parece-nos, é suficiente para respaldar nossa posição de que, quanto à dimensão teórica, a psicologia analítica reclama um aprofundamento que revele a sua verdadeira referência epistêmica filosófica, e não científica como queria Jung. Tal aprofundamento – que não nos cabe fazer aqui – poderia seguir várias linhas distintas, sendo que o neoplatonismo parece-nos ser uma opção preferencial. Com isto, nossa interpretação da psyches therapeia junguiana como forma de sabedoria prática encontraria a sua legitimação mais ampla. E, incidentalmente, um tal aprofundamento superaria a “dissociação neurótica” entre praxis e episteme de que padece a psicologia analítica, que, ao esquivar-se de sua verdade, perde também a oportunidade de alcançar a sua real identidade. Como ponto de partida, devemos recordar que o Romantismo define-se por uma relação de oposição ao Iluminismo, e realiza a crítica do racionalismo esclarecido que, submetendo a atividade humana a um excesso de normas e convenções, levara a um estreitamento do homem e de seus valores.533 Conseqüentemente, apesar de não desprezarem a razão – como o comprova o interesse e a influência sobre eles exercidas pelas matrizes filosóficas de Fichte e Schelling -, os românticos a subordinavam ao sentimento, que ganha assim um lugar privilegiado em sua visão de mundo. O sentimento, como categoria psicológica definidora do Romantismo, deve ser entendido não como simples estado afetivo, mas como interioridade, intimidade e espiritualidade – o “objeto da ação interior do sujeito”.534 532 “As matrizes filosóficas da visão romântica do mundo podem ser localizadas nas espécies complementares desse idealismo – a metafísica do Espírito de Fichte e a metafísica da Natureza de Schelling -, que derivaram do criticismo de Kant. Não se deverá, contudo, identificar a visão romântica do mundo com a filosofia do Romantismo, que designa o conjunto dos sistemas idealistas e das doutrinas posteriores a Kant, inclusive a teologia sentimental de Schleiermacher, o realismo mágico de Novalis, menos o idealismo de Hegel.” NUNES, “A Visão Romântica”, p. 52. Em nossa comparação, apoiamo-nos substancialmente neste texto de Benedito Nunes. 533 Cf. BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 79. 534 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 52. Essa mesma valorização do sentimento encontra-se em Jung, que o considera uma das quatro funções de orientação da consciência, conforme a tipologia psicológica que propõe.535 Num outro sentido, Jung trata do sentimento em vinculação com os estados afetivos não-racionais – as emoções. E, por fim, é indiscutível a primazia que Jung confere à interioridade, base daquela ênfase sobre a “experiência da psique”, que ele aponta como sendo um dos traços distintivos da mentalidade romântica e que explica a afinidade entre sua psicologia e o Romantismo, por oposição à atitude racionalista de “investigar a psique”.536 Daí provém sua insistência – romântica - sobre o “irracional”, que não deve ser entendido como ininteligível ou contrário à razão, mas simplesmente como tudo o que transcende a necessidade racional por não ser posto pela razão humana: “Nossa vontade é uma função dirigida pela reflexão; logo, ela depende da qualidade da nossa reflexão. A reflexão – a verdadeira reflexão – tem que ser racional, isto é, sensata. Mas já foi provado, ou será possível provar algum dia, que vida e destino concordam com a nossa razão humana ou são racionais? Pelo contrário, temos base para sustentar que são irracionais ou, em última análise, que têm um fundamento que transcende a razão humana. (...) A plenitude da vida tem normas e não as tem, é racional e irracional. Por isso a razão e a vontade fundada na razão só têm validade em pequenos espaços da vida.”537 Assim, são “irracionais”, no sentido junguiano, o acaso, a liberdade, a vida, a natureza (só apreendida probabilisticamente pela racionalidade científica), as funções psicológicas da sensação e da intuição.538 Portanto, quando Jung critica o “racionalismo”, isso deve ser entendido na mesma linha da crítica romântica, ou seja, não uma deposição da razão, mas uma recusa dos seus excessos que atentam contra a vida.539 535 Cf. OC VI, capítulo X (“Descrição Geral dos Tipos”). Jung considera a função sentimento como uma função racional, judicativa com relação a valores e gostos. Note-se, contudo, que a valorização do sentimento, ao contrário do que acontece em muitos de seus seguidores, não significa em Jung desvalorização da razão – que ele designa como “função pensamento” - , como também não significa privilégio incondicional da função sentimento sobre as demais. 536 Cf. OC XVIII, § 1739. 537 OC VII, § 72. Para aprofundar esse sentido, leia-se OC IX-1, § 64-69. 538 “Dados naturais (por exemplo, a densidade máxima da água a + 4º C) são sempre irracionais. Sendo a afirmação científica indutiva, isto é, partindo de dados irracionais, ela deve ser irracional na medida em que é descritiva. Apenas as [deduções] são lógicas.” Cartas I, 07/04/1945, ao pastor Max Frischknecht. 539 “A intelectualização, quando ditatorial, leva inevitavelmente a um afastamento da natureza, ficando esta reduzida a objeto do pensamento racional, quer científico, quer filosófico.” BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 79. A defesa romântica – e junguiana – do “irracional” significa, no fundo, uma tentativa de restituição do vínculo com a natureza e com a tradição. No centro da visão do mundo romântica está uma forma típica de sensibilidade conflitiva, produzida por antagonismos insolúveis, e por isso mesmo animada por uma tendência à união dos opostos, que se expressa no afã de totalidade e de unidade tão característico do espírito do Romantismo. Este seria o núcleo psicológico universal da “atitude romântica”.540 A conflitividade que marca a sensibilidade romântica resulta da experiência da dissociação dos opostos, que, traduzida em outros termos, expressa a dolorosa consciência da finitude. Assim, a tendência à conciliação dos opostos corresponde, no fundo, a um anseio irresistível pelo in-finito, à busca nostálgica de reconstituição de uma unidade perdida.541 Em Jung, encontramos esta mesma sensibilidade. Pessoal e profissionalmente, ele viveu o dilaceramento dos opostos ao longo de toda a sua vida, e todo o esforço de sua concepção psicoterapêutica representa uma forma de aliviar a “desunião consigo mesmo”, raiz do sofrimento psíquico. Se para Jung a conflitividade e a fragmentação não podem ser definitivamente ultrapassadas, representando o “fardo de ser humano”542, não obstante ele percebeu em ação na alma humana tanto uma força diferenciadora quanto uma integradora, e traduziu a interação dinâmica dessas tendências opostas na 540 Sob o ponto de vista histórico, a visão de mundo romântica ganha ascendência quando essa sensibilidade conflitiva é acirrada em virtude das mudanças estruturais por que passa a sociedade européia a partir do surgimento do capitalismo. Cf. NUNES, “A Visão Romântica”, p. 52-53. Uma contribuição, em perspectiva sociológica e histórica, à compreensão da formação do ethos romântico a partir das vicissitudes da ética protestante encontra-se em CAMPBELL, C. A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. As conseqüências “irônicas” (no sentido sociológico presente em Max Weber) da degradação da ética romântica apontadas por Campbell, dentre elas sobressaindo-se o fenômeno da insaciabilidade do consumismo moderno movido por um “hedonismo autônomo e imaginativo”, vêm corroborar o veredicto de Hegel sobre a “má infinitude” definidora do espírito romântico. 541 “Uma das categorias básicas, fundamentais, que permitem compreender o Romantismo é a da unidade. Podemos mesmo dizer que todo o movimento se desdobra sob o signo da unidade. (...) A reconquista da unidade, do infinito sempre distante, determina a nostalgia romântica. Por isso mesmo, a nostalgia não é, como pretendem certos autores, um fenômeno primeiro do Romantismo. Primeiro, é o sentido do infinito, do absoluto interior à alma humana condenada à sua finitude, e que se extravasa no romântico sob forma de nostalgia, de Sehnsucht. (...) Por isso o eu, a subjetividade, não pode ser compreendido meramente como uma realidade psicológica. (...) esse subjetivismo tende a ser transcendido através de um alargamento sempre maior do eu, dando-lhe uma dimensão metafísica que o confunde com o Universo e, em última análise, com o Absoluto.” BORNHEIM,”Filosofia do Romantismo”, p. 91-92. 542 “Posso acompanhá-lo em seu processo de ‘tornar-se inteiro e santo’, [ou individuação,] mas não posso [subscrever] suas afirmações com relação ao ‘eu em completa posse de si mesmo’, e ao amor [universal] que tudo reveste, ainda que com [elas] o senhor se aproxime perigosamente do ideal da ioga [:] ‘nirdvandva’ (livre dos opostos). Sei que no decurso [do processo] cintilam semelhantes momentos de libertação. Mas eu os temo, pois sinto em tal momento que sacudi o fardo de ser humano, e que ele voltará a mim com peso dobrado.” Cartas II, 28/03/1955, ao padre Lucas Mensz. “Nós somos sempre humanos, e não deveríamos esquecer nunca que carregamos todo o fardo de sermos somente humanos”. CW XVIII, § 169. noção de processo de individuação.543 Enfocada pelo ângulo da conciliação dos opostos, a individuação representa o impulso à unidade e totalidade, que na psicologia analítica é referida ao arquétipo do Si-mesmo. A cisão estrutural que afeta a subjetividade humana, como conseqüência da oposição entre a consciência e o inconsciente, não pode ser suspensa, como já afirmava Freud, resultando disso a inevitabilidade do conflito psíquico. Jung mantém a posição freudiana,544 mas indica no símbolo, produto da função transcendente, a forma espontânea e natural que a psique encontra para conciliar os opostos. O símbolo, que, como temos insistido, é uma noção axial da psicologia analítica, evidentemente supõe a cisão em opostos. Deste modo, a coniunctio oppositorum, que Jung estudará com afinco na tradição alquímica, mas encontrando a sua presença em todas as tradições religiosas e culturais, ocupará um lugar privilegiado no seu pensamento. A ela será dedicada sua última e maior obra: Mysterium Coniuntionis, de 1955-56, que é, como indica o sub- título, uma “investigação sobre a separação e síntese dos opostos psíquicos na alquimia”.545 Portanto, não só o modelo descritivo da psique segundo a distinção consciência- inconsciente, como também todas as noções centrais de símbolo, função transcendente, individuação, Si-mesmo, fazem referência à temática romântica circunscrita pelas idéias diretrizes de opostos-unidade-totalidade.546 543 De passagem, cabe observar que essas duas tendências implicam-se estruturalmente segundo um polarismo dialético. A disputa de interpretações de Jung entre o privilégio a ser dado à unidade ou à pluralidade psíquicas não atenta para essa dependência estrutural: não se trata de optar entre uma visão ou outra, nem contra outra, mas necessariamente de uma visão com a outra, segundo a lógica dialética dos opostos, que rege o processo terapêutico no tempo, conforme o ritmo do solve et coagula alquímico: a individuação é tanto diferenciação quanto unificação. A ruptura desse vínculo resulta em paranóia (degeneração da tendência à unidade em totalitarismo) ou esquizofrenia (degeneração da tendência diferenciadora em fragmentação), ou seja, incorre no excesso por carência ou no excesso por abundância. Para um bom exemplo de leitura de Jung privilegiando a tendência diferenciadora, veja-se MARONI, A. Jung: o poeta da alma. São Paulo: Summus, 1998. Toda a psicologia arquetípica de James Hillman também privilegia esse ângulo de abordagem da alma humana, e se desinteressa das noções de Si-mesmo, símbolo, e sincronicidade. 544 “A psique está longe de [ser uma unidade homogênea]; pelo contrário, ela é [um caldeirão] borbulhante de impulsos, bloqueios e afetos contraditórios e o seu estado conflitivo é, para muitas pessoas, tão insuportável, que elas desejam a salvação apregoada pela teologia. Salvação do quê? Naturalmente, de um estado psíquico altamente duvidoso. A unidade da consciência [ou] da chamada personalidade não é uma realidade, mas um desideratum.” OC IX-1, § 190. 545 Nas Obras Coligidas, corresponde ao volume XIV. 546 Como corretamente aponta Richard Noll, “depois de 1916 a teoria psicológica de Jung se inseriu diretamente na tradição da Naturphilosophie especulativa ou metafísica, compartilhando com ela noções fundamentais como Einheit (unidade), Stufenfolge (sucessão de estágios de desenvolvimento gradual), Polarität (polaridade, ou interação de forças vitais opostas), Metamorphose (metamorfoses), Urtyp (arquétipo) e Analogie (analogia).” NOLL, O Culto de Jung, p. 298-299. Noll, porém, deixa de levar em conta a função crucial da noção de símbolo em Jung, e por isso sua interpretação desanda. Cf. BARRETO, “Observações a respeito de O Culto de Jung, de Richard Noll”. Kant legara a seus sucessores uma irredutível oposição entre o mundo da natureza e o mundo da espiritualidade. O ultrapassamento desse limite levará ao monismo ontológico que se estabelece quer na metafísica do Espírito de Fichte, quer na metafísica da Natureza de Schelling, e informa a visão romântica de mundo, constituindo um de seus traços mais fundamentais. Também aqui o Romantismo se oporá ao racionalismo iluminista. Por um lado, o caráter transcendente do sujeito humano (idéia moldada pela transcendência do Eu na filosofia de Fichte) quebra a uniformidade da razão e o individualismo racionalista. Por outro, o caráter espiritual da realidade (idéia moldada pela concepção de Natureza como individualidade orgânica na filosofia de Schelling) quebra a concepção mecanicista newtoniana dominante nos meios iluministas.547 Por conseguinte, postulada a identidade absoluta do Espírito em nós e da Natureza fora de nós, os românticos, seguindo a Naturphilosophie schellinguiana, reconhecerão na natureza a manifestação visível do espírito, e no espírito a presença invisível da natureza. Por isso, a experiência romântica da natureza se faz a partir da interioridade e, reciprocamente, a interioridade é expressão privilegiada da natureza. O precursor desta experiência será Rousseau, que se opõe à concepção cartesiana e enciclopedista que considerava a natureza em termos matemáticos e racionais, nela vendo apenas algo de exterior e objetivo.548 A concepção mecanicista do universo permitia integrar o homem e a natureza sob a regência de leis uniformes, mas apenas segundo um rígido determinismo causal.549 O nivelamento do sujeito à natureza física assim concebida excluía, por princípio, a originalidade pessoal que se manifestava na “experiência singular individual subjetiva, transgressora da uniformidade da razão”.550 A reação romântica, portanto, deveria rever tanto a concepção de natureza quanto a de sua experiência. Os patronos alemães dessa reformulação são Herder e Goethe, que também recusam o mecanicismo newtoniano e o substituem por uma concepção organicista, 547 Cf. NUNES, “A Visão Romântica”, p. 58. 548 A idéia iluminista de natureza pode ser assim definida: “conjunto daquelas disposições que, acessíveis ao livre exame analítico, seriam sempre iguais em toda parte, escapando à força do hábito, ao prestígio da autoridade, às tradições e aos caprichos das circunstâncias históricas, bem como à influência, considerada perturbadora, das paixões e dos hábitos.” NUNES, “A Visão Romântica”, p. 56. 549 Kant tentará salvaguardar a especificidade humana do espírito da redução mecanicista, recuperando o espaço da liberdade, mas legando o dualismo natureza-espírito, que o monismo ontológico idealista ultrapassará. 550 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 57. segundo a qual a natureza é um grande animal vivo, de cujo tratamento matemático só resulta desfiguração. A natureza, na concepção romântica, existe independentemente dos esforços e intenções humanas, e sua individualidade orgânica correlaciona-se à individualidade singular do sujeito, que é também natural e abarca aqueles atributos inatos, espontâneos, não premeditados, irrefletidos, involuntários e não determinados pela convenção social.551 Seguindo Goethe, os românticos estabelecem no próprio domínio da natureza uma unidade fundamental: “A idéia da natureza dividida em dois reinos separados, o orgânico e o inorgânico, parecia-lhes algo definitivamente caduco; a natureza toda deveria ser compreendida como um único organismo vivo, e caberia à ciência o conhecimento da história desse organismo.”552 Uma conseqüência, decisiva para a atitude romântica, dessa concepção de natureza sustentada pelo monismo ontológico, é a possibilidade de leitura analógica de todos os domínios do real, que se correspondem organicamente. É isto que permite ao mineralogista Werner dizer que “deveria existir um laço profundo, embora pouco aparente, uma analogia secreta, entre a ciência gramatical do Verbo, - essa mineralogia da linguagem, - e a estrutura interna da natureza.”553 Benedito Nunes interpreta esse aspecto da visão do mundo romântica e comenta sua significação histórico-espiritual: “Uma vez que o seu aspecto material significa o espírito que as anima, as formas naturais, por um lado produtivas e portanto criadoras, por outro expressivas e portanto simbólicas, oscilam entre o estado de coisa e o estado de linguagem, achando-se comprometidas pela dualidade da expressão e da criação – conceitos românticos mantidos com valência quase igual para a literatura. O universo inteiro fala e os corpos são os signos de sua linguagem. (...) Desse ponto de vista, a Natureza, que não foi para o Romantismo apenas a mais abrangente de suas tematizações, mas o foco precípuo sob o qual a imaginação intuitiva se afirmou e se exerceu, voltou a ser contemplada pelos românticos através da 551 Cf. CAMPBELL, A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, p. 257. 552 BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 97. Ressalte-se que o Romantismo não se alienou dos desenvolvimentos das ciências da época, integrando-os em sua concepção organicista de natureza. Indissoluvelmente filósofos da natureza e cientistas românticos foram, por exemplo, J. W. Ritter (físico romântico que representa no interior da Naturphilosophie a tendência empírico-experimental contra a tendência especulativa) e A. Werner (geólogo e mineralogista, professor de Novalis em Freiberg). Cf. BÉGUIN, L’Âme Romantique et le Rêve, passim. 553 Citado em BÉGUIN, L’Âme Romantique et lê Rêve, p. 83. Da mesma forma, Novalis afirma: “O homem não é o único a falar – o universo também fala – tudo fala – línguas infinitas.” (citado em NUNES, “A Visão Romântica”, p. 59, nota 28) E Gérard de Nerval escreve em Aurélia: “Como pude ter existido tanto tempo fora da Natureza, sem me identificar com ela? (...) Tudo vive, age, se corresponde.” (São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 82) Na concepção romântica de natureza pode ser percebido um movimento oposto ao desencantamento iluminista do mundo: enquanto este banaliza o sobrenatural, mergulhando-o no natural, o romantismo exalta o natural, elevando-o ao sobrenatural, donde a denominação de “sobrenaturalismo natural” que M.H Abrams propõe para caracterizar a dimensão religiosa do espírito romântico. Cf. CAMPBELL, A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, p. 257 , e KIRSCHNER, The Religious and Romantic Origins of Psychoanalysis. Individuation and Integration in Post-Freudian Theory, p. 153-161. perspectiva de coesão mágica, de envolvimento analógico entre palavras e coisas, da compreensão pré- clássica do mundo, dominante do Medioevo à fase renascentista.”554 Paradoxalmente, no momento em que a moderna metafísica da subjetividade se acirra no Romantismo, ela reencontra na sua concepção de Natureza um dos fundamentos que estruturavam o “espaço hermenêutico”. Para a atitude romântica, a Natureza transforma-se numa teofania, e essa teofania pode receber valência panenteísta compatível com o criacionismo (por exemplo, em Chateaubriand e Lamartine), ou então panteísta (por exemplo, em Shelley, Wordsworth e Novalis) – esta mais conforme às matrizes filosóficas de Fichte e Schelling. Finalmente, é preciso lembrar que, em Schelling, o princípio ativo real em operação na Natureza é inconsciente. O Espírito Absoluto, raiz da idealidade imanente à natureza, é, nesta, inconsciente e sem liberdade, tornando-se no ser humano consciência e liberdade. Entre consciência humana e inconsciente natural há uma relação de anterioridade e determinação, de forma que a consciência não pode ser ontologicamente tomada como um dado primário: “Schelling aponta o erro no qual facilmente incide o filósofo e que constitui a tentação perene de toda vida filosófica. Para ele, esse perigo consiste na tendência em considerar a consciência como um dado primeiro e original, como se ela fosse sua autogênese. O filósofo, perdido na contemplação especulativa, seria levado a ignorar o que Schelling chama de ‘pré-história da consciência’, quer dizer, o mundo que circunda o homem e sem o qual nem teria sentido falar em consciência. Quem melhor pode escapar a essa tentação de considerar a consciência como realidade autônoma e auto-suficiente é o físico.”555 O Romantismo acolherá a lição de Schelling, associando intimamente, portanto, as noções de Natureza e inconsciente.556 Parece-nos que daí deriva a ambigüidade da vivência romântica da Natureza, que oscila “entre um sentimento de proximidade, de 554 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 59 e 67. 555 BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 99. Mas ressalte-se que se trata de um físico organicista. 556 C.G. Carus e E. von Hartmann representam o elo de transmissão da noção romântica de inconsciente à “psicologia das profundezas”. união desejável e prometida, de compenetração a realizar-se, e um sentimento de distância, de afastamento irrecuperável ou de separação fatalmente consumada.”557 Pois, a despeito da comunidade de origem no Absoluto, persistirá sempre a diferença irredutível entre o estado subjetivo de consciência e o estado de inconsciência natural. Pelo fracasso de seu anseio por uma reintegração total, uma comunhão absoluta com a natureza, o espírito romântico será marcado pela inquietude, pela insatisfação e, por fim, pelo desespero. Retomando a comparação com a atitude de Jung sob este aspecto, observemos preliminarmente que a noção de natureza, que percorre seus escritos e suas reflexões como um verdadeiro leitmotiv, não recebe um sentido exato e unívoco em todas as passagens.558 Às vezes “natureza” se opõe a “espírito”, e designa geralmente tudo aquilo que funciona espontânea e inconscientemente, sem a intervenção da consciência humana – daí a inclusão da consciência na categoria do “espiritual” e a do inconsciente na categoria do “natural”; às vezes “natureza” engloba “matéria” e “espírito”, e estes são os opostos que a constituem. Nesse último sentido, que suprassume o primeiro, a “Natureza”, geralmente grafada nos escritos em inglês com inicial maiúscula, significa a totalidade do que existe, e portanto inclui a consciência e o inconsciente.559 A imprecisão da noção de natureza em Jung pode ser atribuída a seu ceticismo epistêmico, que também aqui deixa a sua marca. Assim, Jung escaparia a uma inquisição racionalista afirmando que “não podemos definir ‘natureza’ ou ‘psique’, podemos apenas [declarar] o que atualmente entendemos [que elas sejam].”560 557 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 65. 558 Para se ter uma visão panorâmica sobre a presença da noção de natureza e seus correlatos em Jung, é útil a consulta à coletânea de excertos de escritos de Jung sobre o tema editada por Meredith SABINI: The Earth has A Soul: the Nature Writings of C.G. Jung. Berkeley: North Atlantic Books, 2002. 559 “Nossa consciência desempenha uma função seletiva e é ela própria um produto da seleção, ao passo que o inconsciente coletivo é simplesmente Natureza – e como a Natureza contém tudo, ela também contém o desconhecido. Está além da verdade e do erro (...) Até onde podemos entender, o inconsciente coletivo é idêntico à Natureza na medida em que a própria Natureza, inclusive a matéria, é desconhecida para nós. Nada tenho contra a suposição de que a psique é uma qualidade da matéria, ou a matéria o aspecto concreto da psique, se ‘psique’ for definida como o inconsciente coletivo. Na minha opinião, o inconsciente coletivo é o aspecto pré-consciente das coisas no nível ‘animal’ ou instintivo da psique. Tudo o que é apresentado ou manifestado pela psique é uma expressão da natureza das coisas, da qual o homem é uma parte.” Letters II, 9/02/1960, a A.D. Cornell. “O inconsciente coletivo é neutro; nada mais é do que natureza, tanto espiritual quanto ctônica.” OC XVIII, § 1536. (A mencionada “função seletiva” deve ser entendida como discriminação e escolha de “regras e leis” que constituem a cultura, na qual a consciência se forma – segundo a circularidade dialética do ethos -, e sendo assim também um “produto da seleção”. Cf., p. ex., OC XIII, § 229, citado adiante.) 560 OC XVIII, § 439. “Essencialmente, sabemos tão pouco [do espírito] quanto [da matéria].” CW XVIII, § 583. Como quer que seja, a afirmação da continuidade entre a esfera espiritual e a esfera natural é uma das mais constantes e reiteradas posições que Jung expressa. Para ele, a “divisão da natureza em aspectos físicos e espirituais é mera discriminação que serve aos interesses do conhecimento humano”, e por isso “o processo de individuação, isto é, o tornar-se totalidade, inclui por definição o todo do fenômeno humano e o todo do enigma da natureza”.561 Portanto, Jung vê a Natureza como um grande mistério abrigando os princípios “espiritual” e “natural” – que ele, com sua habitual cautela cética, evita definir com precisão -, segundo uma oposição que faz nascer a energia psíquica ou libido: “o princípio espiritual, ([o que quer que isto seja]), se afirma contra o princípio meramente natural com força inaudita. Poderíamos mesmo dizer que isto também é ‘natural’, e que tanto um como o outro têm sua origem em uma só e mesma natureza. Não duvido absolutamente desta origem, mas devo ressaltar que esta coisa ‘natural’ consiste em um conflito entre dois princípios, aos quais se pode dar este ou aquele nome, segundo o gosto de cada um, e que esta [oposição] é expressão e possivelmente também a raiz daquela tensão que chamamos de energia psíquica.”562 A Natureza para Jung é essencialmente dinamismo conflitivo, oposição de princípios ou forças – eis aí a Polarität tão cara às concepções românticas. Esta conflitividade fundamental expressa-se, no âmbito humano da Natureza, nas relações entre consciência e inconsciente: “Nenhum código penal, nenhum código moral, nem a mais sublime casuística seriam capazes de classificar e decidir com justiça acerca das confusões, conflitos de deveres e tragédias invisíveis do homem natural em sua colisão com as exigências da cultura. O ‘espírito’ é um dos aspectos, a ‘natureza’, outro. Naturam expellas furca, tamen usque recurret. [Horácio, Epistulae, I, x, 24: “Tu podes afastar a natureza com o forcado, ela voltará do mesmo modo com passo apressado.”] A natureza não deve ganhar o jogo, mas não pode perdê-lo. Sempre que a consciência se fixa em determinados conceitos muito rígidos e se prende a regras e leis que ela mesma escolhe – o que é inevitável e próprio de uma consciência cultural – a natureza se manifesta com suas exigências inelutáveis. A natureza não é apenas matéria, mas também espírito. Se assim não fosse, a única fonte do espírito seria a razão humana. O grande mérito de PARACELSO é ter ressaltado a ‘luz da natureza’ como um princípio [e tê-lo enfatizado] de modo muito mais intenso do que seu predecessor AGRIPA. A lumen naturae é o espírito natural, [cujas operações estranhas e significativas] podemos observar nas manifestações do inconsciente; e isto desde que a pesquisa psicológica chegou à constatação de que o inconsciente não representa apenas um apêndice ‘subconsciente’, ou até mesmo um mero depósito de lixo da consciência, mas um sistema psíquico amplamente autônomo capaz de compensar [as unilateralidades e aberrações da atitude consciente, na maioria das vezes funcionalmente, embora às vezes ele as corrija à força]. A consciência pode extraviar-se como é sabido, tanto natural como espiritualmente, o que é conseqüência lógica da relativa liberdade da mesma. O inconsciente limita-se não apenas aos processos de instintos e reflexos dos 561 Cartas III, 21/12/1960, a Albert Jung. 562 OC VIII, § 98. Também para Schelling “é a priori certo que na natureza inteira atuam princípios divididos em dois, realmente opostos”, como também é certo que todo dualismo tende a superar-se através de um novo indivíduo. Cf. BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 101. centros subcorticais, mas também ultrapassa a consciência, antecipando com seus símbolos futuros processos da consciência. Por isso ele também é uma forma de supraconsciência.”563 A auto-regulação da psique, manifestada na compensação da consciência pelo inconsciente – que na passagem citada Jung homologa ao espírito natural ou lumen naturae -, sugere a existência de uma inteligência inconsciente ou sabedoria da natureza que Jung identifica à própria natureza, acrescentando a observação de que “se a natureza fosse consciente de si mesma, seria um ser superior de extraordinário conhecimento e compreensão”.564 Essa paradoxal supraconsciência inconsciente corresponde ao saber ou conhecimento absoluto postulado a partir dos fenômenos da sincronicidade, que abordamos no capítulo segundo: “Agrippa [de Nettesheim] sugere (...) que há um ‘conhecimento’ ou ‘[percepção]’ inata nos organismos vivos, idéia esta à qual Hans Driesch recorreu também em nossa época. Quer queiramos quer não, encontramo-nos nesta mesma situação [embaraçosa] assim que refletimos seriamente sobre os processos [teleológicos] da Biologia ou investigamos mais acuradamente a função compensadora do inconsciente, ou procuramos mesmo explicar o fenômeno da sincronicidade. As chamadas causas finais – torçamo-las tanto quanto quisermos – postulam uma precognição de alguma espécie. Não é, certamente, um conhecimento que possa estar ligado ao eu, e, portanto, não é um conhecimento consciente como o conhecemos, mas um conhecimento inconsciente subsistente em si mesmo, e que eu preferiria chamar de conhecimento absoluto. Não é uma cognição no sentido próprio mas, como disse excelentemente Leibniz, uma percepção que consiste – ou, mais cautelosamente, parece consistir – em simulacra (imagens) desprovidos de sujeito. Presumivelmente esses simulacra postulados são equivalentes aos meus arquétipos, que podemos encontrar como fatores formais nos produtos da fantasia.” 565 A hipótese da sincronicidade é inegavelmente uma versão da correspondência analógica presente na Naturphilosophie romântica, despida de sua certeza metafísica idealista pela estratégia cética adotada por Jung. Aliás, é curioso – e talvez revelador de uma resistência interior – que Jung não tenha arrolado entre os precursores da idéia de sincronicidade nenhum expoente do Idealismo e do Romantismo alemão.566 O reconhecimento de um sentido objetivo latente nos eventos físicos ou naturais pressupõe exatamente aquele laço profundo unindo a linguagem humana à estrutura interna da natureza de que A. Werner falava. Não nos parece, contudo, que Jung tenha prestado 563 OC XIII, § 229. Sobre a continuidade da consciência com o corpo, com a matéria e com o mundo, cf. também OC IX-1, § 290-291. Sobre o “princípio espiritual” na natureza, veja-se o belo ensaio “A Fenomenologia do Espírito nos Contos de Fadas”, em OC IX-1. 564 ZAR, p. 1393. Nessa passagem, Jung trata da imagem arquetípica do velho sábio, que encarnaria essa sabedoria instintiva natural, e que corresponde a uma das formas em que se manifesta o arquétipo do Si- mesmo (também designado como arquétipo do sentido ou do espírito: cf. OC IX-1, § 79). 565 OC VIII, § 921. Esse conhecimento inconsciente absoluto é anterior a qualquer estado de consciência e corresponde à hipótese do inconsciente coletivo que, como vimos, Jung identifica à natureza. Cf. ainda OC VIII, § 902, 913, 920, 938. 566 A hipótese da sincronicidade em Jung poderia ser interpretada como o espírito romântico tentando reencontrar-se com o espírito científico que decretara, no século XIX, a sua impugnação. particular atenção ao fato de que sua concepção de natureza, abundantemente utilizada em seus escritos, também era uma herança romântica, tanto quanto alquímica, e que era na verdade um grande símbolo em sua construção teórica e em seus argumentos. Este símbolo de talhe romântico desempenha um papel fundamental no seu pensamento. Todos os empréstimos e referências às disciplinas científicas pós-românticas, como por exemplo à fisiologia (estrutura do cérebro, sistema nervoso central, sistemas funcionais autônomos, etc.), à teoria da evolução (hereditariedade, adaptação, funcionalidade etc.), à biologia (instintos), devem ser remetidos e subordinados a essa concepção de natureza, que difere do conceito científico e materialista, pois pressupõe uma ontologia monista – o “conceito unitário do ser” que Jung percebia ser exigido pelos fenômenos sincronísticos e que ele propõe ao resgatar a noção alquimista de Unus Mundus. Como assinalamos no capítulo segundo, também em Jung encontramos, na relação entre natureza e sincronicidade, um parentesco tipológico com aquela “perspectiva de coesão mágica, de envolvimento analógico entre palavras e coisas, da compreensão pré-clássica do mundo, dominante do Medioevo à fase renascentista”, que o pensamento racionalista nascente nos fins do século XVII contribuíra para arcaizar.567 O monismo ontológico subjacente à Naturphilosophie tem ainda outra conseqüência. A experiência da temporalidade, lugar da dispersão inexorável de todo ente sensível, vem estampar de modo ainda mais radical a finitude da existência humana. Por isso, o anseio de reintegração e unidade fará com que a concepção romântica do tempo e da história obedeça à tendência de superação dessa insuportável fragmentação que o tempo nos impõe. Nesse sentido, na visão de mundo romântica o devir temporal está subordinado a um princípio teleológico imanente, que confere sentido a todos os eventos, quer sejam eles humanos ou naturais. Por um lado, é isso que permite a leitura analógica dos eventos naturais. Por outro, daí provém igualmente a noção de uma evolução – idéia fundamental em Schelling -, que, por estar radicada em um princípio Absoluto, converte-se numa espécie de história intemporal: a falta de sentido do tempo meramente quantitativo, sucessão infinita de instantes homogêneos, é substituída pelo sentido imanente de um tempo eminentemente qualitativo, articulado em um processo progressivo cuja meta é a integração plena de cada parte na totalidade, mas segundo um esquema último que é ele mesmo atemporal, e ao qual a natureza 567 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 67. obedece em sua dinâmica histórica evolutiva. O Absoluto, como causa final e estrutura fundamental da própria natureza, fornece o sentido ou a meta de toda a evolução, na medida em que é a origem “à qual toda natureza busca integrar-se sem jamais consegui- lo.”568 A noção de evolução é a outra face da noção de individuação: o principium contradictionis, que rege a interação dos opostos na natureza, é a condição para o principium individuationis que rege a evolução. Aqui, como indica Lidia Procesi, também Schelling, por estar por trás da inclusão dessa idéia diretriz na visão de mundo romântica, pode ser considerado um antecedente filosófico de Jung.569 Em Jung o principium individuationis é estendido a um âmbito mais amplo do que o humano. Se, em sentido estrito, a individuação coincide com o processo de tornar- se um ser humano completo e singular, por outro lado Jung a entende como “uma expressão do processo biológico (...) através do qual todas as coisas vivas tornam-se aquilo que, desde o princípio, foram destinadas a ser.”570 A individuação para ele, como dissemos, é tanto diferenciação – cada indivíduo tende a atualizar a plenitude particular, relativa e única que lhe cabe, em sua determinação específica, “desde o princípio” – como unificação – ao se diferenciar, o indivíduo no mesmo ato se unifica e participa da totalidade, integrando-a.571 Neste sentido, a concepção de Jung harmoniza-se perfeitamente com a da Naturphilosophie do primeiro Schelling, ressalvando-se a diferença cética que não lhe permite afirmar positivamente o Absoluto metafísico, mas tão-somente vislumbrá-lo num horizonte que lhe parece proibido para a razão humana.572 568 Cf. BORNHEIM, p. 101. 569 Cf. PROCESI, L. “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, in CAROTENUTO, A. ( dir.) Trattato di Psicologia Analitica. Volume Primo: La Dimensione Culturale. Turim: UTET, 1992, p. 47-66, aqui p. 60- 64. Nesse tópico da individuação, optamos por uma comparação a Schelling, e nisso orientamo-nos pela sucinta exposição de Lídia Procesi, que é extremamente condensada. Para uma exposição mais cuidadosa e pormenorizada, cf. PUENTE, F. R. As Concepções Antropológicas de Schelling. São Paulo: Loyola, 1997, especialmente o capítulo 3 (“Definição Teológica do Homem”). 570 OC XI, § 460, itálicos nossos. A teleologia implícita nessa posição exclui a interpretação do “naturalismo” de Jung em termos de um evolucionismo materialista-mecanicista. Essa ampliação do princípio de individuação e a continuidade com a natureza que ela supõe é a base para a revalidação e reformulação da idéia antiga de que o homem é um microcosmos, conforme assinalamos anteriormente. 571 A unificação para Jung não significa supressão da multiplicidade interna do próprio indivíduo, mas a sua harmonização em uma forma de equilíbrio dinâmico. No caso do ser humano, o símbolo não anula a potencialidade de contradição das polaridades antagonistas, mas a integra mantendo juntos (sym-ballein) os opostos. 572 “Os enunciados metafísicos são afirmações da alma [e são portanto psicológicos]. Mas o espírito ocidental, [que compensa seu conhecido ressentimento através de um respeito servil por explicações ‘racionais’], acha esta verdade óbvia demasiado evidente, ou a considera como uma negação inadmissível da ‘verdade’ metafísica. A palavra ‘psicológico’ ressoa a seus ouvidos como [‘apenas psicológico’]. De qualquer modo, para ele a alma é algo de extremamente pequeno, inferior, pessoal, subjetivo, ou algo do Mas a coincidência maior entre Schelling e Jung refere-se à fenomenologia da individuação humana. Nesse ponto, para compor o quadro comparativo completo deveríamos privilegiar as reflexões tardias de Schelling presentes na Philosophie der Offenbarung e na Philosophie der Mythologie, já bastante distanciadas da fase romântica do pensador de Leonberg. Schelling vê na separação do eu em relação à totalidade (separação do cosmos, da alma, de Deus, e em resumo da Natureza) a origem daquela “infinita falta de ser” que é experimentada como aniqüilamento do sujeito. Esta é a herança do racionalismo iluminista e, mais especificamente, do dualismo kantiano. A infelicidade da consciência universal e livre – tema que será celebrizado por Hegel – impõe a exigência de sua superação. A uniformidade da razão e da consciência na perspectiva iluminista revela-se à perspectiva romântica e idealista como alienação de si mesma. A unidade forçada da consciência defronta-se com a possibilidade de mudança, e assim enfrenta o desafio do nascimento da autoconsciência de fato desalienada. Nesse desafio está a possibilidade de constituição do sujeito humano como individualidade, ou seja, da sua individuação. Para Schelling, essa possibilidade se apresenta quando o eu é arrancado para fora de si pelo impacto com a totalidade do ser na qual descobre estar contido: esta é a figura do “êxtase da razão”, experiência em que o eu penetra em um estado totalmente desagregado, e que Lídia Procesi resume: A autoconsciência, princípio unificante, aprofunda-se em um ente – o ser humano elementar – cuja unidade é doravante dada apenas por seu ser definitivamente possuído por um único e tirânico princípio: o encontro com esse ser cego, que precede o pensamento, do qual este último nada sabe, é uma verdadeira e própria invasão, um arrebatamento. To theoblabes, to theoplekton tes psyches, segundo a imagem antiga usada por Schelling: o deus possui a alma, arrebatando-a, assim como a inteira potência mesmo teor. Por isto [ele prefere usar] o termo ‘espírito’, [embora ele goste de supor ao mesmo tempo que uma afirmação que na verdade pode ser de fato muito subjetiva é feita pelo ‘espírito’, naturalmente pelo ‘Espírito Universal’, ou até mesmo – em um aperto – pelo próprio ‘Absoluto’].” OC/CW XI, § 835. do ser, na qual o homem está contido mas que para ele se tornou de agora em diante de todo estranha, o possui, arrebatando-o.”573 Esta experiência de invasão ou arrebatamento é vivida pelo eu como um confronto com uma infinidade de fantasmas produzidos pela própria natureza inconsciente que o invade, comandada por uma imaginação compulsória. Tais fantasmas, representações à consciência das quais o eu é antes o objeto do que o sujeito, são expressões involuntárias da coisa em si, e a consciência não pode se lhes subtrair. Manifestam-se como múltiplas entidades onipotentes, estranhas e desordenadas: a experiência interna de desagregação é vivida sob a forma de personificações numinosas, correspondentes aos “deuses”. A recomposição da consciência não pode ser um retorno à condição prévia ao “êxtase da razão”, devendo portanto superar integrando a própria fragmentação da natureza. Essa recomposição, que representa a constituição do sujeito humano como individualidade, não é obra do eu, mas torna-se possível porque o eu renunciou à pretensão de autonomia absoluta ao abandonar-se extaticamente ao ser cego. Essa renúncia encontra a contrapartida na própria natureza inconsciente, que restitui à consciência sacrificada a força unificadora perdida: “Ao desaparecimento da força unificadora do eu corresponde, na cenografia da consciência alienada, a manifestação de uma entidade numinosa trágica: marcado pela servidão e votado ao sacrifício total, este deus de vários vultos exprime a única possibilidade de salvação e a única modalidade através da qual esta pode ocorrer. Se a autoconsciência é morta, fragmentada em um universo incompreensível de fantasmas, de figuras divinas onipotentes, só um deus que renuncie a possuí-la pode ressuscitá-la: um deus que não se imponha mais sob forma de representação, uma figura que renuncie à força que lhe é conferida pela coação a representar que enreda a consciência. Só um deus que morrendo renuncie à divindade e ao seu poder de evocar os fantasmas que sorvem em redemoinho o eu, um deus que ponha em cena o seu sacrifício, com o qual cede a sua numinosidade, pode liberar a razão extática.”574 Lídia Procesi sintetiza assim a visão de Schelling a respeito do processo de individuação: “A própria filosofia, portanto, é destinada a uma cisão radical, se quer tentar reencontrar a consciência perdida, ou seja, reconstruir o ente humano com os sinais que atestam-lhe todavia a existência. Por um lado permanecerá ciência do modelo do conhecimento, crítica da razão pura: epistemologia. Mas por outro deve se fazer experiência da razão 573 PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 61. 574 PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p.63-64. “A morte de Deus e a morte do deus (...) assinalam reciprocamente a esperança de uma nova vida para a egoidade. (...) só a morte dá a vida, só a extrema abjeção regenera a esperança, só a destruição da egoidade isolada na sua identidade, consente o nascimento da personalidade, do eu que no reconhecer a si reconhece o tu e reconhece a comunidade do mundo.” (id., p. 64) Por isso Cristo, para o idealismo schellinguiano, como para Jung (cf. Aion. Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo, OC IX-2), “é o modelo do Si-mesmo como individualidade supraordenada ao eu, tanto mais realizada em si mesma quanto mais aberta à comunicação com as outras individualidades e à comunicação com a plenitude da vida.” (PROCESI, ibid.). extática, deve ter a coragem não tanto de despotenciar a subjetividade, quanto, muito mais radicalmente, de desmantelá-la, aprendendo a devanear, se pretende poder recompor a fratura entre pensamento e ser, entre homem e natureza, ou dos homens entre si, e curar a sua fonte, isto é, a íntima cisão do eu. (...) Além dos limites do puro saber, Schelling empreende pois o percurso filosófico da terapia da alma: é a sua ‘filosofia positiva’, que é a reconstrução a posteriori da experiência eminentemente interna das modificações sofridas pela consciência para se fazer relação, antes de reconhecer o ser e os seres externos a si. A razão deve gradualmente recuperar-se, depois de ter passado através de uma dispersão total, na interioridade de um universo puramente fantasmático.”575 Esta é, ponto a ponto, a mesma concepção que Jung tem do confronto com o inconsciente. A leitura de Memórias, Sonhos, Reflexões ilustra exemplarmente a experiência do “êxtase da razão” schellinguiano. Muito do que Jung fala a respeito da individuação em seus livros coincide com esta visão de Schelling. Basta percorrer as páginas do ensaio O Eu e o Inconsciente576 para comprovar esta afirmação. Ali o itinerário da individuação é descrito como um processo que começa com a desidentificação do eu com relação à psique coletiva em sua forma de persona (uma função social, coletiva e abstrata, preenchida pelo sujeito), com o que se abre a experiência do inconsciente coletivo (o “ignoto oceano da coisa em si” em Schelling), marcada pela ambigüidade das várias e sucessivas figuras que se apresentam, basicamente reconduzíveis aos arquétipos da sombra, da anima/animus e do Si-Mesmo. A individuação é uma vivência da imagem e na imagem, e portanto se faz segundo a tendência à personificação própria da atividade imaginativa inconsciente. A “diferenciação entre o eu e as figuras do inconsciente”, a que é votado o esforço psicoterapêutico em Jung, é ao mesmo tempo condição para a desalienação do eu, enclausurado em uma falsa identidade, e para o encontro com o tu, mediante o 575 PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 61-62. 576 Integra o volume VII das Obras Coligidas. reconhecimento e a retirada das projeções inconscientes, que transformam o outro em simples reflexo especular de imagens inconscientes do próprio sujeito.577 Tanto em Schelling como em Jung, a passagem da uniformidade do ser à diferenciação e à constituição de individualidades se estrutura segundo três predicados fundamentais: a identidade, a diferença, a totalidade, que “são também as três experiências das quais depende a aniqüilação ou a regeneração da consciência.”578 A individuação é vivida como um sacrifício do eu – tema fundamental para Jung na separação de Freud, ao qual é dedicado o capítulo conclusivo de Símbolos da Transformação. Nessa mesma medida, ela evoca as imagens da morte, e comporta sempre um perigo real de aniqüilação da consciência pelas potências do inconsciente, perigo que se concretizou tragicamente em Hölderlin e Nietzsche. Por fim, a individuação vivida em profundidade corresponde, segundo Jung, a uma experiência religiosa – tanto morfológica quanto afetivamente. A valorização da religiosidade remete ao espírito religioso característico de todo o Romantismo, também partilhado por Schelling que, assim como Schleiermacher e também Jung, recusa a possibilidade de compreender a união com o divino através de métodos racionais e discursivos. Como os românticos em geral, Jung interioriza o sagrado e insiste em sua experiência subjetiva. Na experiência romântica, a aventura cristã e moderna de exploração das profundidades desconhecidas ou inconscientes da interioridade da pessoa encontrava nos sonhos um instrumento e fonte privilegiada de informações e experiências.579 O entrosamento da individualidade singular do sujeito com a individualidade orgânica da natureza fazia dos sonhos experiências essencialmente reveladoras da verdade, uma verdade poética ou simbólica a ser encontrada nos meandros da subjetividade, e não nas descrições objetivas da realidade exterior. Retomada em nova perspectiva no interior da experiência romântica, a prática da interpretação dos sonhos como via de acesso à interioridade sobreviverá ao ocaso do Romantismo, difundindo-se na cultura da segunda metade do século XIX, de onde será comunicada à nascente Tiefenpsychologie. 577 Por outro lado, para Jung só o encontro com o tu possibilita a individuação, como mencionamos no capítulo terceiro. 578 PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 62-63. 579 A esse respeito, a obra de Albert Béguin (L’Âme Romantique et le Rêve) continua a ser referência obrigatória. O pós-junguiano James Hillman a considera uma valiosa introdução à problemática da alma, que deveria ser lida por todo aspirante a psicoterapeuta. Também o tema da Entwurzelung, que abordamos no terceiro capítulo, bem como as propostas de sua superação, são de inconfundível têmpera romântica.580 O desenraizamento era percebido no Romantismo como um dos efeitos nocivos do racionalismo iluminista, que implicava a ruptura fatídica com as tradições. Dessa forma, a reintegração à Natureza se complementava, enquanto modalidade de reconciliação e anseio por integridade, com a recuperação do vínculo rompido com a tradição. Nesse sentido, o Romantismo foi um tradicionalismo, que José Guilherme Merquior vê como “uma estratégia de resgate das atitudes e modos de vida de origem, em última análise, religiosa, reprimidos pela marcha do racionalismo capitalista”, em que se opera uma rememoração reflexiva do irracional “contra o mundo desenfeitiçado, dessacralizado dos tempos modernos, abertamente exaltado pela Ilustração – o tradicional apelidado de irracional.”581 Isso permite compreender o sentido – romântico – da insistência de Jung sobre a necessidade de vínculos com o passado e a tradição, ampliando também a compreensão do sentido do “irracional” em seu pensamento. No entanto, Jung não acompanha o espírito romântico em dois de seus traços mais característicos: o esteticismo e o entusiasmo. A dimensão estética da atividade imaginativa é reconhecida integralmente por ele. Por isso, ele afirma do inconsciente: “sua mentalidade é de caráter instintivo; [ele] não tem funções diferenciadas, nem pensa segundo os moldes daquilo que entendemos por ‘pensar’. Ele somente cria uma imagem que responde à situação da consciência; esta imagem é tão impregnada de idéia como de sentimento e poderá ser tudo, menos o produto de uma reflexão racionalista. Seria mais certo considerarmos tal imagem como uma visão artística.”582 Mas o privilégio que os românticos conferem à figura do artista genial como aquele que consegue melhor realizar a tarefa de mediação entre os opostos do espiritual e do sensível, da razão e do instinto, do individual e do supra-individual, é relativizado por Jung. É claro que, para ele, certos indivíduos privilegiados são mais bem sucedidos nessa tarefa, que coincide com o processo de individuação, mas não necessariamente os artistas – nenhuma função social detém tal privilégio, que é dado ao indivíduo singular, 580 Ver o livro II (“Le Rêve, la Nature et la Réintégration”) em BÉGUIN, A., L’Âme Romantique et lê Rêve, p. 63-116. 581 MERQUIOR, J. G. Saudade do Carnaval, citado em NUNES, “A Visão Romântica”, p. 70, nota 69. 582 OC VII, § 289. Cf. OC VI, § 808, onde Jung fala da fantasia como característica principal da atividade artística do espírito, e vê o artista como criador e educador, entendendo suas obras como símbolos que prefiguram as linhas de desenvolvimento futuro, cujo valor depende da capacidade vital da individualidade criadora. e não à sua persona coletiva, mesmo que esta seja autêntica e corresponda à vocação que solicita o indivíduo a partir de sua interioridade. O artista pode até ser privilegiado como mediador que capta os conteúdos do inconsciente, mas não como modelo de individuação. Se, por um lado, Jung reconhece o papel social do artista como criador, educador e visionário, por outro ele expressa reservas quanto à capacidade de artistas em conciliar as exigências da realidade exterior com as solicitações da realidade interior, devido à configuração psíquica peculiar muito freqüente nos temperamentos artísticos, que ele explica psicologicamente assim: “Há casos – pude constatá-los principalmente entre artistas ou naturezas exaltadas - cujo eu não se localiza na persona ([a função de relacionamento] com o mundo real), mas muito mais na anima ([a função de relacionamento] com o inconsciente coletivo). Neste caso, indivíduo e persona são [igualmente] inconscientes. O inconsciente coletivo [então invade o mundo consciente, e] uma grande parte do mundo real [se torna] um conteúdo inconsciente. Tais pessoas têm [o mesmo medo demoníaco da realidade que as pessoas comuns sentem] do inconsciente.”583 Jung psicanalisa criticamente a exaltação e o entusiasmo, típicos mas não essencialmente necessários na atitude romântica oitocentista, considerando-os um dos efeitos negativos da anima, que pode alienar a pessoa da realidade – a isso corresponderia tanto a evasão quanto o esteticismo românticos. A desconfiança do esteticismo da anima o diferencia do veio que se expressa no projeto romântico para a cultura, que concedia a primazia à arte e denotava assim um forte rasgo esteticista. Jung transfere a primazia para a responsabilidade moral do sujeito ao dar ênfase ao caráter ético da “experiência da imagem e na imagem”, ficando a dimensão estética, assim como a dimensão intelectual, subordinada à dimensão ética584. A crítica de Hegel vai descobrir na visão romântica de mundo o sintoma da “má infinitude” típica do desejo e da “consciência infeliz”. Nesse ponto, Jung se aproxima da posição de Hegel. A inquietação, a ilimitação e a insatisfação que conformam a atitude espiritual romântica oitocentista já estão, em boa medida, “domadas” na psicologia analítica. Jung prega o envolvimento contínuo com o mundo, segundo medida e proporção (e não conforme a ilimitação dos desejos, do “mau infinito” que só gera insatisfação, inquietude e desespero românticos), ao mesmo tempo em que não 583 OC VII, pág. 290 (CW VII, § 510). “Há, por assim dizer, um interesse legítimo e outro ilegítimo com os problemas impessoais. São legítimas as [incursões] que surgem de uma profunda e autêntica necessidade individual e ilegítimas as que representam apenas uma curiosidade intelectual, ou a tentativa de evadir-se de uma realidade desagradável.” OC VII, § 288. 584 Cf. JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 164-171. Para uma crítica da resistência de Jung aos apelos estetizantes da anima, veja-se HILLMAN, J. The Thought of the Heart. Dallas: Spring Publications, 1984. deixa de criticá-lo radicalmente. Ele corrige a ilimitação romântica com o apelo à moderação, a busca do limite adequado em sintonia com o kairos, que caracteriza a phronesis antiga, e que ele remete à própria natureza, que “dispensa quaisquer declarações de princípios” e “contenta-se com tolerância e sábias medidas.”585 Dentro desse espírito, Jung critica a exaltação dionisíaca da experiência de Nietzsche, que teve um desenlace fatal: “Nietzsche ficou entalado na exaltação. Pelo êxtase não precisava ter rompido com o cristianismo. E isso não responde ao problema da alma animal, pois [um] animal extático é um disparate. Um animal cumpre a lei da sua vida, nada mais nada menos. Podemos chamá-lo de obediente e piedoso. O extático passa por cima da lei da vida e comporta-se [impropriamente] em relação à natureza. [Essa impropriedade] é prerrogativa exclusiva do homem, cuja consciência e livre arbítrio podem [ocasionamente desligar-se contra naturam de suas raízes na natureza animal]. Esta particularidade é a base imprescindível de toda cultura, mas também da doença psíquica, quando exagerada. A cultura é tolerável só até certo ponto. O dilema sem fim entre cultura e natureza, no fundo, é sempre uma questão de insuficiência ou excesso, nunca uma opção entre uma ou outra.”586 Os excessos românticos são moderados em Jung, talvez, pelo próprio ceticismo epistêmico, pela afinidade ao espírito de Goethe e Schiller, mas principalmente, acreditamos, pela lição imposta por sua sólida experiência de médico psiquiatra, pela qual ele se defrontou com as tragédias humanas causadas pela ruptura do frágil equilíbrio dinâmico das forças antagônicas da psique. Nesse aspecto, Jung é menos romântico do que herdeiro do espírito clássico e grego.587 De qualquer forma, a individuação, eixo da psyches therapeia proposta por Jung, passa para ele pela experiência plena do mundo.588 Talvez a melhor expressão de sua 585 OC VII, § 32. 586 OC VII, § 41. De passagem, é preciso observar que, se Jung é fortemente influenciado por Nietzsche, ele no entanto adota uma posição crítica em relação à sua experiência, dela tomando decididamente distância: Nietzsche é não somente uma fonte de suas idéias, mas também um exemplo de experiência humana trágica que é analisada psicologicamente. As imagens e símbolos dessa experiência, tal como aparecem em Assim Falava Zaratustra, foram objeto de uma extensa interpretação psicológica no seminário que Jung conduziu entre 1935 e 1939. 587 Paul Bishop lembra que também Baumgarten e Schiller advertiam sobre os riscos de uma imaginação excessiva (cf. “C.G. Jung and the Uses of Tradition”, in Harvest. International Journal for Jungian Studies, London, vol. 46, nº 1, 2000, p. 101). Os românticos - por exemplo: Hoffmann, Eichendorff e Tieck - também conheceram os perigos do “mundo dos sonhos” (cf. HUBBS, “German Romanticism and C.G. Jung: Selective Affinities”, passim). E Jung afirma que “a fantasia criadora, se não mantida dentro de limites adequados, pode degenerar em anormalidades perniciosas. Mas esses limites não devem ser artificialmente impostos pelo intelecto ou pelo sentimento racional. São limites colocados pela necessidade e pela realidade irrefutável.” OC VI, § 83. 588 Nesse ponto, encontramos uma convergência com Schelling, que critica os teosofistas por rejeitarem ou desprezarem a vida neste mundo, buscando um estado contemplativo na unidade, totalidade e interioridade da intuição. Sobre essa atitude, diz Schelling: “O homem que quer permanecer nesse estado não presta atenção e esquece o estado atual que se comporta em relação àquele estado pré- e supramundano como o estado de desenvolvimento (Entwicklung) em relação ao estado de involução (Einwicklung) e cuja intenção final é a de que, nele, aquilo que no outro era coetâneo e unido alcance a atitude realista, moderada e afirmadora do mundo esteja na carta que ele escreve a um professor indiano a respeito da experiência da totalidade ou do Si-mesmo: “O seu ponto de vista parece coincidir com aquele dos nossos místicos medievais, que tentaram dissolver- se em Deus. Vocês todos parecem interessados em como voltar para o Si-mesmo, em vez de [procurar] o que o Si-mesmo quer que façam no mundo, onde – ao menos neste momento – estamos colocados, provavelmente para determinado fim. Parece que o [universo] não existe com a finalidade única de a pessoa negá-lo ou dele fugir. Ninguém pode estar mais convencido da importância do Si-mesmo do que eu. Mas, como o jovem não fica na casa do pai, mas vai para o mundo, assim eu não olho para trás para o Si-mesmo, mas o recolho a partir de múltiplas experiências e o reconstituo novamente. O que deixei para trás, aparentemente perdido, eu o encontro em tudo o que me acontece no caminho e o recolho e o reconstituo como era. Para me livrar dos opostos, é imprescindível aceitá-los de imediato, mas isto me afasta do Si-mesmo. Devo [também aprender] como os opostos podem ser unidos, e não como podem ser evitados.”589 O temperamento realista de Jung o afasta, também, da tendência idealizante presente no Romantismo: “Enquanto possível, evito ideais e atenho-me à realidade.”590 Por outro lado, Colin Campbell relativiza a rejeição romântica do mundo, lembrando que ela é antes de mais nada “uma rejeição do mundo artificial e social do ‘adquirir e gastar’, e mostra uma estreita afinidade com a desconfiança do puritano ortodoxo sobre essa realidade imperfeita que é o produto da iniqüidade do homem.”591 Campbell assinala ainda os pontos em comum da ética romântica e da ética puritana: ambas são individualistas, orientadas para a interioridade, requerem intensa introspecção e indagação espiritual, recorrem a um “eu real” (diferentemente concebido nos dois casos) como a uma realidade secreta que legitima a resistência às indefensáveis exigências externas,592 além de darem um lugar central, no desenvolvimento espiritual, ao drama da conversão e salvação, em que cada alma tem um destino único.593 A inegável analogia com o modelo junguiano do processo de individuação confirma a posição de Suzanne Kirschner a respeito das origens religiosas e românticas da psicanálise – extensivas à psicologia analítica, evidentemente. 3. Considerações finais mais elevada forma de diferenciação (Auseinandersetzung) e de desdobramento (Entfaltung).” (SCHELLING, Weltalter, citado e traduzido em PUENTE, As Concepções Antropológicas de Schelling, p. 67-68; cf. também p. 83). 589 Cartas II, 22/11/1954, ao prof. Arvind U. Vasavada. 590 OC XVIII, § 1676. 591 CAMPBELL, A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, p. 308. 592 Cf. ibid. 593 Cf. id., p. 260. Ao longo de nosso trabalho indicamos reiteradamente a centralidade da noção de símbolo no pensamento de Jung. Ao examinarmos o seu teor epistêmico, sustentamos ser o símbolo a noção epistemológica fundamental na psicologia analítica. Isso, definitivamente, não se encontra em Kant, mas constitui a originalidade do pensamento de Ernst Cassirer que, partindo da crítica kantiana, tenta depurá-la de um positivismo cientificista que considera apenas a primeira Crítica, apoiando-se para tanto, em especial, na Crítica da Faculdade do Juízo. Cassirer confere à noção de símbolo uma eminência tal que o leva a definir o ser humano como animal symbolicum, propondo assim uma espécie de pansimbolismo que, no entanto, ainda está muito comprometido com a lógica da identidade proveniente da crítica e da epistemologia kantiana, o que o diferencia da concepção do símbolo em Jung.594 Aparentemente Jung não se deu conta de que sua real afinidade a Kant passava menos pela epistemologia da Crítica da Razão Pura do que pela estética da Crítica da Faculdade do Juízo. Paul Bishop expõe com clareza a dimensão estética da psicologia analítica e sustenta que “a psicologia de Jung como um todo pode ser encarada como uma continuação do programa da estética como estabelecido por Baumgarten, Herder, Goethe, Schiller, e Nietzsche. É dessa perspectiva que a realização intelectual de Jung e sua significação cultural podem ser melhor apreendidas.”595 Parece-nos, não obstante, necessário insistir sobre o inquestionável primado do ético sobre o estético em Jung, o que também o coloca na linhagem que parte de Kant, passa por Fichte e Schelling, para exercer influência sobre o Romantismo alemão como um todo. Como vimos, ao postular o esse in anima Jung o coloca como um intermediário entre o esse in re e o esse in intellectu. Ora, essa intermediação é feita, segundo a teoria do conhecimento kantiana, pela imaginação transcendental. Porém, a psique imaginativa em Jung não pode ser homologada à imaginação transcendental da primeira Crítica: intermediária entre a intuição sensível e as categorias do entendimento, a imaginação transcendental kantiana é esquematizante, vinculada à forma de um senso comum lógico. Os esquemas da imaginação transcendental em seu uso cognoscitivo em Kant não coincidem com as fantasias da psique em Jung. A fantasia do esse in anima aproxima-se mais da idéia estética da imaginação na Crítica da Faculdade do Juízo, 594 Cf. DURAND, G. A Imaginação Simbólica. São Paulo: EDUSP/Cultrix, 1988, p. 57-59. 595 BISHOP, P. “C.G. Jung and the Uses of Tradition”, p. 114. Cf. também BISHOP, P. “Epistemological Problems and Aesthetic Solutions in Goethe and Jung”, in Goethe Yearbook, vol. 9, 1999, p. 278-317; id. Synchronicity and Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung, p. 156-158; id. “The Birth of Analytical Psychology from the Spirit of Weimar Classicism”, in Journal of European Studies, v. xxix (1999), p. 417-440. que Kant define como “aquela representação da faculdade da imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, que conseqüentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível.”596 Kant diz ainda que “tais representações da faculdade da imaginação podem chamar-se idéias, em parte porque elas pelo menos aspiram a algo situado acima dos limites da experiência, e assim procuram aproximar-se de uma apresentação dos conceitos da razão (das idéias intelectuais), o que lhes dá a aparência de uma realidade objetiva; por outro lado, e na verdade principalmente porque nenhum conceito pode ser plenamente adequado a elas enquanto intuições internas.”597 A concepção de imaginação na terceira Crítica parece-nos ser o elo teórico que indica o ponto de partida para uma revisão crítica da dimensão teórica da psicologia analítica. A experiência do sublime, em particular, fornece um forte ponto de apoio para a nossa posição. A imaginação no sublime, confrontada com a irrepresentabilidade das idéias da razão (infinito, liberdade e totalidade), é libertada da forma de um senso comum (seja o lógico da imaginação esquematizante da Crítica da Razão Pura, seja o estético do juízo de gosto na Analítica do Belo da Crítica da Faculdade do Juízo) e atinge sua forma propriamente pura, no sentido kantiano. Na experiência do sublime, segundo Kant, a imaginação quase “enlouquece”, “arrisca-se a crescer até o entusiasmo” e se põe a expressar o inexprimível – em linguagem junguiana, a produzir símbolos. Kant faz o gosto “cortar as asas” do gênio, disciplinando e limitando a imaginação pela imposição de um acordo subjetivo com o entendimento, para garantir à obra do gênio a beleza tal como definida na Analítica do Belo, onde a forma sensível do objeto é o fundamento exterior necessário ao juízo de gosto. Evita-se assim o “choque” do entendimento submetendo-se a liberdade da imaginação à restrição de referir-se à forma do objeto enquanto representação (que pertence ao conceito do objeto) e assim, como observa Gérard Lebrun, “subsiste um núcleo comum entre a Gestalt estética e o Gegenstand teórico” em Kant.598 Mas no sublime, a ruptura desse vínculo e da restrição que ele impõe liberaria a imaginação do acordo com o entendimento via representação objetiva para deixá-la expressar as idéias da razão, o supra-sensível subjetivo segundo Kant. As idéias estéticas da imaginação, no gênio, voltam-se para as idéias da razão e 596 KANT. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense, 1995, § 49, p. 159. 597 ibid., p. 159-160. 598 LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 564. buscam expressá-las. Mas essa expressão não poderia se conformar a nenhum conceito: seria, em linguagem junguiana, eminentemente simbólica. É sabido o papel que a leitura da Crítica da Faculdade do Juízo nos círculos idealistas e românticos teve no ultrapassamento de Kant. As noções de imaginação e de gênio na terceira Crítica serão recebidas no período posterior a Kant e, trabalhadas e desenvolvidas reflexivamente, exercerão papel fundamental nas grandes construções teóricas que se erguem nesse mesmo período. A faculdade de apresentar idéias estéticas, própria da imaginação na Crítica da Faculdade do Juízo, e que Kant atribui também ao gênio, converte-se, para o Romantismo, em poder intuitivo cognoscente da imaginação poética, superior ao conhecimento empírico e correspondente “à capacidade expansiva e à força irradiante do Eu, à originalidade e ao entusiasmo, a elevação, a espiritualidade e a liberdade da vida interior.”599 Após a reavaliação kantiana da noção de gênio, este passa a ser entendido como a capacidade sintética que universaliza e transubstancia, e assim a fantasia se liberta da tutela da razão teórica kantiana e por conseguinte da ciência. O gênio alcança pela intuição aquilo que é vetado ao conhecimento racional: criando seu objeto sem imitar, o gênio torna-se o órgão da intuição intelectual, que se especifica como intuição artística. O Romantismo alemão, acolhendo a noção kantiana de gênio, confere-lhe “uma posição teórica e prática superior, de porte ético, estético e metafísico, supra-sumo da originalidade do indivíduo singular e do estado de entusiasmo.”600 Por fim: o gênio será uma das bases da Naturphilosophie de Schelling que, como sugerimos, representa uma das matrizes teóricas mais condizentes com a verdadeira essência epistêmica da psicologia analítica. Na medida em que, segundo a nossa interpretação, a psicologia analítica tem como fundamento a concepção de imaginação simbólica, ela pode ser comparada com a concepção romântica da poesia (que se assentava na combinação das linhas-mestras da metafísica do Espírito de Fichte com as da filosofia da natureza de Schelling): “Ora linguagem original e primitiva, ora linguagem intercomunicante dos domínios religioso, ético e filosófico, a poesia, superior à ciência, análoga à filosofia, capaz de exercer uma ação moral e de purificar a religião, sustentada por um processo apologético de dignificação, alça-se a um plano de universalidade cultural e histórica, penetrando 599 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 61. 600 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 61. horizontalmente em todos os domínios da cultura, e enlaçando-se verticalmente, desde os primórdios, ao desenvolvimento sócio-histórico.”601 Certamente Jung recusaria peremptoriamente a compreensão de sua psicologia a partir da noção romântica de poesia.602 Mas mesmo insistindo em apresentar a psicologia analítica, em sua dimensão teórica, como ciência, Jung opta por uma linguagem deliberadamente não científica, e muito mais literária (anima, sombra, animus, velho sábio, etc.), como forma de torná-la mais eficaz do ponto de vista terapêutico.603 Pelo menos aqui ele não cedeu às pressões que condicionavam à sua época a legitimação de um saber científico, e nisso ele foi mais fiel à verdade que se impunha em sua obra. Pela analogia entre a imaginação simbólica em Jung, a imaginação na terceira Crítica, e a imaginação poética nas construções dos sucessores de Kant, cremos legitimar nossa afirmação acerca da afinidade teórica de Jung ao Idealismo Alemão e ao Romantismo. O aprofundamento dessa afinidade levaria à superação da cisão interna da psicologia analítica, originada da inadequação entre o ceticismo epistêmico teórico e a natureza de sabedoria prática da psyches therapeia junguiana. Com isto, o legado de Jung poderia encontrar a sua legitimação intelectual ou, para retomar os termos de Jaspers que motivaram nosso trabalho, a sua comprovação ética e metafísica. CONCLUSÃO - I - A interpretação em chave ético-filosófica do pensamento de Jung que formulamos ao longo de nosso trabalho não desenvolveu uma importante dimensão do objeto em análise. Para não falsearmos a perspectiva de Jung, é imperioso observar que a experiência das múltiplas instâncias do Si-mesmo, na medida em que empiricamente este se apresenta como uma espécie de “personalidade” objetiva ou supra-ordenada que 601 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 62. A validade dessa comparação vem justificar o título do belo livro de Amnéris Maroni: “Jung, o poeta da alma”. 602 Mas é muito revelador o fato de que, na experiência de “descoberta” da anima, quando esta lhe sugere que o que ele está fazendo é arte, Jung não responde estar fazendo ciência, mas sim natureza – e aqui, mais uma vez, teríamos a justificação para a interpretação de sua obra à luz da Naturphilosophie romântica. Cf. JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 164-165. 603 Cf. OC X, § 83. se opõe ao eu e o interpela, guarda analogias evidentes com a experiência religiosa,604 e assim pode ser comparada, por exemplo, à experiência grega antiga do daimon, cuja versão homérica o helenista M.P. Nilsson resume assim: “Homero aplica o termo daimon aos deuses antropomorfos de forte individualidade, mas mais amiúde a individualidade vem concedida pela manifestação mesma do destino que ela impõe (...) O fato de que a fonte da atividade humana esteja oculta nas profundidades de sua alma não permite ao homem citar um deus individual determinado a modo de causa. O homem tem freqüentemente a impressão de ser impulsionado por uma potência obscura que se opõe a suas intenções e o conduz a um resultado final que ele não preparou nem desejou. Essa potência não poderia ser um dos deuses individuais, mas sim uma potência divina obscura, indeterminada, um daimon.”605 Jung interpretou explicitamente a noção religiosa de daimon em chave psicológica, referindo-a à experiência das figuras do inconsciente coletivo, ora segundo a categoria do Si-mesmo em sentido estrito,606 ora segundo as categorias de anima e 604 “ ‘Si-mesmo’ é algo que podemos verificar psicologicamente. Nós experimentamos ‘símbolos do Si- mesmo’, que não se deixam distinguir dos ‘símbolos de Deus’. Não posso provar que o Si-mesmo e Deus sejam idênticos, mesmo que na prática pareçam idênticos. Naturalmente, a individuação é em última análise um processo religioso que exige uma atitude religiosa correspondente – a vontade do eu submeter- se à vontade de Deus. Para não provocar mal-entendidos desnecessários, digo ‘Si-mesmo’ em vez de Deus. Empiricamente também é mais exato.” Cartas II, 15/06/1955, a Hélène Kiener. Entenda-se bem: a ação do psicoterapeuta, como Jung insistia e como indicamos na introdução, compara-se preferencialmente à psyches therapeia filosófica da Antigüidade; já a configuração e os conteúdos da experiência psicológica subjetiva freqüentemente apresentam analogias com a experiência religiosa. De qualquer modo, vale lembrar que o elemento religioso já estava integrado (e transformado) na vida filosófica antiga, e em especial na tradição socrático-platônica. Para uma excelente exposição sobre a posição de Jung acerca da experiência religiosa, veja-se CHAPMAN, J.H. Jung’s Three Theories of Religious Experience. Lewiston: The Edwin Mellen Press, 1988. 605 NILSSON, Les Croyances Religieuses de la Gréce Antique, citado em LAÍN-ENTRALGO, P. La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica. Madrid: Revista de Occidente, 1958, p. 20, nota 12. 606 Por exemplo, em OC XI, § 154, passagem em que fala do pressentimento pelos alquimistas de que o que buscavam era o Si-mesmo humano: “É evidente que este ‘Si-mesmo’ jamais foi concebido como uma essência idêntica ao eu; por isso mesmo foi descrito como uma ‘natureza oculta’ até mesmo na matéria inanimada, como um espírito, [um daimon], ou uma centelha [flamejante].” Em suas memórias, Jung faz o balanço final de sua vida nos seguintes termos: “Conheci todas as dificuldades possíveis para me afirmar, sustentando meus pensamentos. Havia em mim um daimon que, em última instância, era sempre o que decidia. Ele me dominava, me ultrapassava e quando tomava conta de mim, eu desprezava as atitudes convencionais. Jamais podia deter-me no que obtinha. Precisava continuar, na tentativa de atingir minha visão. Como, naturalmente, meus contemporâneos não a viam, só podiam constatar que eu prosseguia sem me deter. (...) como toda personalidade criadora, não era livre, mas tomada e impelida pelo demônio interior. (...) A falta de liberdade causava-me grande tristeza. (...) Entretanto, o daimon urde as coisas de tal modo que é possível escapar à inconseqüência abençoada e, em oposição à flagrante ‘infidelidade’, permaneço totalmente fiel. (...) O demônio interior e o elemento criador se impuseram a mim de forma absoluta e brutal.” In JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 308-309. Cf. Cartas III, 05/12/1959, a M. Leonard: “Este é o nome {Deus} que dou a todas as coisas que atravessam de maneira violenta e temerária o meu caminho voluntariamente traçado, a todas as coisas que [perturbam] meus pontos de vista subjetivos, meus planos e intenções e que mudam o curso de minha vida para melhor ou [para] pior. De acordo com a tradição, chamo o poder do destino neste aspecto positivo ou negativo, [e visto que] sua origem está além de meu controle, [‘Deus’, um ‘Deus pessoal’], pois meu destino significa na verdade eu mesmo, sobretudo quando [ele] se aproxima de mim na forma da consciência [moral] [como uma] vox Dei com a qual posso até mesmo conversar e discutir.” A tendência espontânea da psique de manifestar seus conteúdos sob forma de personificações foi aproveitada por Jung de forma criativa na técnica da imaginação ativa que, entendida em sentido mais animus, o que lhe permitia apresentar uma visão dos relatos antigos a respeito da experiência do daimon – por exemplo, no célebre caso de Sócrates607 - compatível com a sensibilidade moderna. Não desenvolvemos essa dimensão da individuação e do Si-mesmo aqui, pois isso nos afastaria do objetivo restrito que nos impusemos. Mas é preciso salientar que a consideração ontológica dessas duas noções fundamentais da psyches therapeia proposta por Jung precisaria ser complementada pela analogia teológica, para compor o quadro completo da compreensão filosófica de seu caráter de sabedoria prática. Nossa opção metodológica pelo referencial teórico aristotélico para a comprovação do estatuto de sabedoria prática da psyches therapeia junguiana poderia ser mantida no caso de um desenvolvimento da complementação teológica. A experiência psicológica do Si-mesmo guarda analogias estruturais com a inspiração divina reconhecida por Aristóteles nos casos de êxtase, entusiasmo e excitação melancólica608, em que a imaginação é comandada por um princípio superior à razão discursiva (logos)609. Esse princípio é o elemento divino em nós: “o princípio do logos não é o logos, mas algo mais forte. Que poderia haver de mais forte que a ciência e a inteligência ao mesmo tempo, se não deus?”610. Jackie Pigeaud assevera que se deve tentar pensar essa última passagem mesmo fora de seu contexto, dado seu caráter aforístico geral, e comenta: “O logos, isto é, a racionalidade, encontra a sua origem em algo mais forte do que ele; dever-se-ia dizer em algo que lhe é inassimilável, na força mesma. É deus; pode ser a natureza ou o natural. Quando a razão é ocultada, quando cedeu o lugar ao natural, isso se passa como para os melancólicos. ‘Os melancólicos têm sonhos verídicos; o princípio com efeito parece exercer um maior poder quando a razão se separou, assim como os cegos têm uma melhor memória, porque esta se separou dos objetos visíveis’ (Ética a Eudemo, 1248 a 39 –b 3).”611 amplo, constitui o cerne da originalidade de sua proposta psicoterapêutica. Cf. OC VII, § 312, 321ss; OC XIII, § 58, 61ss. 607 Cf. Cartas III, 09/01/1960, a Hugo Charteris, em que Jung interpreta a voz do daimon de Sócrates como manifestação da anima, e diz, criticando a perda da experiência do daimon com a subjetivização psicologizante moderna: “Mas quem escuta o daimon? Nós falamos mas ele não diz nada; ele nem mesmo existe; e, se existisse, não passaria de um erro patológico. A ‘ingenuidade’ de Sócrates é sua grandeza que supera a nossa. Sua humildade é um ideal que ainda não atingimos. Consideramos seu daimon como uma peculiaridade individual, se não algo pior.” Para uma interpretação psicológica mais complexa do daimon de Sócrates, cf. VON FRANZ, “The Dream of Socrates”, in Dreams. London: Shambhala, 1998, p. 35- 64. 608 Cf. Ética a Eudemo, 1248 a 33; Ética a Nicômaco, 1152 a 28-29. 609 Cf. De Memoria et Reminiscentia, 453 a 10; 451 a; Ética a Nicômaco, 1150 b 25 ss; Ética a Eudemo, 1225 a 27 ss.; 1248 a 39-41. 610 Ética a Eudemo, 1248 a 26- b 1. 611 PIGEAUD, in ARISTÓTELES. La Verité des Songes. De la Divination dans le Sommeil (Parva Naturalia 462 b- 464 b). (Traduit du grec et presenté par Jackie Pigeaud) Paris: Payot & Rivages, 1995, p. 57. Aristóteles admitia a superioridade da inspiração divina sobre o intelecto e a deliberação nesses casos. A concatenação dessa inspiração divina com o nous é extremamente problemática mas, pelo menos em princípio, poderia ser pensada. Assim, as obscuridades que cercam a famosa passagem de De Anima, 430 a 10-23, confirmada por De generatione animalium, 736 b 27-28, em que Aristóteles diz do nous - a essência do ser humano – que ele vem “de fora”, é imortal, transcendente e divino, convidariam a uma investigação das possíveis relações e tangências entre o nous, a psyche e o daimon religioso – e a história do aristotelismo antigo e medieval mostra que os peripatéticos não se furtaram a tal convite. Giovanni Reale resume as perguntas não respondidas a respeito do nous no texto aristotélico: “Esse intelecto é individual? Como pode vir ‘de fora’? E que relação tem com a nossa individualidade e com o nosso eu? E que relação tem com o nosso comportamento moral? Está subtraído a qualquer destino escatológico? E que sentido tem a sua sobrevivência ao corpo? Algumas dessas interrogações não foram sequer levantadas por Aristóteles, e estariam destinadas, de qualquer modo, a não ter estruturalmente resposta”.612 Em especial, as questões acerca da relação que tem o nous com a nossa individualidade, nosso eu, e com o nosso comportamento moral abrem o espaço para uma aproximação à sabedoria prática em Jung sob o ângulo teológico. Na experiência psicológica, o Si-mesmo aparece como “de fora” em relação ao eu, como uma alteridade “numinosa”, mas é teoricamente compreendido como sendo tanto o núcleo ordenador fundamental da psique como a totalidade desta. A transcendência do Si- mesmo à consciência não leva Jung a se decidir resolutamente pelo passo metafísico de afirmar sua transcendência à própria psique, que para ele é o meio em que se dá qualquer experiência subjetiva, independentemente da afirmação ou não de seus correlatos objetivos. Porém, por outro lado é inegável a persistência de um pressuposto metafísico “forte” na teorização junguiana: os arquétipos em si, sendo irrepresentáveis, têm um estatuto que poderíamos chamar, seguindo Kant, “numenal”, e que Jung caracteriza com o termo “psicóide”, para salientar a sua transcendência radical com relação à consciência, razão de sua incognoscibilidade, e a sua natureza “quase psíquica” ou “semelhante à psique”, o que significa, em última análise, que o arquétipo transcenderia a própria psique – e assim estaríamos aparentemente mais próximos da metafísica neoplatônica. 612 REALE, G. História da Filosofia Antiga, vol. II. São Paulo: Loyola, 1994, p. 398. A menção que fazemos ao neoplatonismo descortina um outro cenário teórico que poderia ter sido escolhido para a compreensão da psicologia analítica, e que apresentaria vantagens e desvantagens em relação à escolha do referencial aristotélico, tanto do ponto de vista ontológico quanto do teológico. Se a matriz aristotélica parece mais adequada para elucidar e comprovar a correlação phronesis-psicoterapia analítica, a matriz neoplatônica teria a vantagem de oferecer um referencial mais cômodo para a especificação da sabedoria prática junguiana como hermenêutica vivida das imagens simbólicas. A noção de símbolo em Jung inspira-se em grande parte na obra de Friedrich Creuzer, Symbolik und Mythologie der alten Völker besonders der Griechen. Creuzer, por sua vez, estava profundamente embebido pelo neoplatonismo de Plotino, Proclo e Olimpiodoro, de cujos textos originais fora editor, em 1820-22 e 1835. Assim, não é de se estranhar que a valorização do símbolo em Jung, essencial à sua práxis psicoterapêutica, apresente um inconfundível tom neoplatônico.613 Evidentemente, a questão das relações entre consciência e inconsciente não se colocavam para Aristóteles, muito menos nesses termos psicológicos. Por outro lado, há paralelos bem definidos entre a concepção junguiana da personalidade humana total, com seu núcleo na noção de Si-mesmo, e a distinção plotiniana entre psyche e hemeis.614 E.R. Dodds interessou-se pelas contribuições de Plotino à psicologia. Em seus comentários no colóquio Sources de Plotin615 Dodds fornece exemplos e estabelece paralelos entre Plotino e a moderna psicologia do inconsciente ou psicologia profunda. Também Philip Merlan, especialista em neoplatonismo, traça paralelos entre Jung e Plotino no que se refere à noção de inconsciente coletivo.616 No campo da Psicologia Arquetípica, James Hillman aponta Plotino como precursor de Jung em matéria de psicologia617. No entanto, Hillman reconhece de passagem que o método empírico-comparativo de Jung é mais próximo do modo de proceder de Aristóteles do 613 No tocante ao problema do símbolo, repita-se que, se é inegável que a gnosiologia aristotélica desinteressa-se da questão do simbolismo como modo de conhecimento ordinário, por outro lado Aristóteles admite a existência de outras formas de conhecimento não abarcadas em sua gnosiologia. Como sugerimos no capítulo segundo, seria possível um desenvolvimento a partir dos princípios fundamentais do aristotelismo que resultasse em uma teoria do simbolismo e de sua capacidade cognoscitiva “anômala”, por assim dizer. É o que faz Tomás de Aquino no tocante à revelação. 614 “[Plotino] aparentemente foi o primeiro a fazer a distinção vital entre a personalidade total (psyche) e a consciência do ego (hemeis) (...) Toda a sua psicologia depende dessa distinção entre Psyche e ego.” DODDS, E.R. The Ancient Concept of Progress and Other Essays. Oxford: Clarendon, 1973, p.135. Cf. PLOTINO, Enéadas I, 1, 7. 615 Génève: Vandoeuvres, 1960, p.384ss. 616 Cf. MERLAN, P. Monopsychism, Mysticism, Metaconsciousness. The Hague: Nijgoff, 1963, p.55. 617 Cf. “Plotino, Ficino e Vico – Precursores da Psicologia Arquetípica”, in HILLMAN, J. Estudos de Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981, p. 169-192. Hillman desenvolve seu argumento apoiando-se na literatura filosófica especializada sobre Plotino e o neoplatonismo (Dodds, Blumenthal, Inge, Merlan, Schwyzer e Warren). que de Plotino: “Jung tenta sustentar sua concepção da impessoalidade e da universalidade dos processos psíquicos básicos através da alusão a um substrato inferior, reunindo, à maneira de Aristóteles, evidências empíricas encontradas em almas alienadas e em culturas exóticas. Plotino não faz nenhuma tentativa nesse estilo.”618 Observe-se também que o conceito de enteléquia, com que Jung compreende o Si-mesmo enquanto totalidade psíquica, é assimilado do aristotelismo por Plotino, que no entanto explicitamente não o identifica à alma, já que esta, segundo o modelo metafísico platônico, não inere ao composto humano, sendo dele separável – o que não ocorre com a enteléquia. Mas Plotino não repete simplesmente Platão, elaborando uma antropologia nova em que, ao assimilar a crítica de Aristóteles a Platão, intenta compaginar o dualismo platônico com o hilemorfismo aristotélico, dando a impressão “de abrir para si um novo caminho forjando um hilemorfismo de novo cunho que, salvando ao mesmo tempo a transcendência da alma e a unidade do composto, ponha fim ao conflito entre o dualismo e o entelequismo.”619 Os dois aspectos mais salientes dessa nova antropologia são a existência de uma entidade intermediária entre a alma real e o corpo (uma “imagem da alma”) e a imanência dessa imagem da alma no corpo, a modo de forma ou enteléquia, resultando em uma união que Jesús Igal qualifica como hilemórfica ou “quase-hilemórfica”.620 Ao tentar atender às exigências postas por Aristóteles, Plotino diminui a distância entre a antropologia platônica e a aristotélica, sem contudo eliminá-la.621 De resto, a história do aristotelismo medieval mostra que é possível uma combinação, em formas e graus variados, das matrizes aristotélica e neoplatônica. Uma tal combinação poderia fornecer um instrumento de leitura adequado à complexidade das configurações teóricas implícitas na psicologia analítica. Da mesma forma, Werner Beierwaltes, eminente especialista em neoplatonismo, sustenta que se deve inscrever o Romantismo na tradição neoplatônica, e também desenvolve as analogias existentes entre neoplatonismo e Idealismo alemão622. E no 618 id., p. 175. 619 IGAL, J. “Aristóteles y la Antropología de Plotino”, in Pensamiento, vol. 35 (1979), p. 331-332. 620 Cf. IGAL, “Aristóteles y la Antropología de Plotino”, p. 332-333. 621 Além do artigo supracitado de Jesús Igal, para a relação neoplatonismo-aristotelismo em Plotino veja- se BLUMENTHAL, H.J. Plotinus Psychology. His Doctrines of the Embodied Soul. La Hague: M. Nyjhoff, 1971; cf. também BLUMENTHAL, H.J. “Plotinus’s Psychology: Aristotle in the Service of Platonism”, in International Philosophic Quarterly, 12 (1972), p. 340-364. 622 Cf. BEIERWALTES, W. Platonismo e Idealismo. Bologna: Il Molino, 1987. Cf. ainda, do mesmo autor, Pensare l’Uno. Studi sulla Filosofia Neoplatonica e sulla Storia dei suoi Influssi. Milano: Vita e Pensiero, 1991, p. 173-199 e 369-385; e ainda Identità e Differenza. Milano: Vita e Pensiero, 1989, p. 239-309. interior desse neoplatonismo alemão do século XIX elabora-se, em consonância com toda a tradição neoplatônica, uma típica maneira de se ler Aristóteles. Jung, mais próximo ao entelequismo de feitio aristotélico no tocante à antropologia, aponta contudo Plotino como o primeiro testemunho da noção de Unus Mundus que ele reabilita para compreender os fenômenos sincronísticos.623 Como quer que seja, a natureza simbólico-religiosa da experiência da individuação e do Si-mesmo, compreensível em termos moderados segundo a matriz aristotélica e em termos mais diretos segundo a matriz neoplatônica, não suprime a decisão ética que cabe ao eu consciente – o que significa que a psyches therapeia junguiana preserva integralmente seu caráter de sabedoria prática, mesmo no interior de uma experiência religiosa. - II - Um ceticismo de alma romântica, ou um romantismo despotenciado ceticamente: eis a imagem que resume a reconstrução que propomos em nossa interpretação do pensamento de Jung no quarto capítulo. E esta imagem entranha um problema, quando a superpomos às demais reflexões que desenvolvemos em nosso trabalho: mostramos como o sentido cultural da psicologia de Jung reside em sua tentativa de recuperar para uma consciência moderna a sensibilidade simbólica, como uma saída para o niilismo ético que parece se aninhar na trama mesma de sua constituição. Nomeado como “crise espiritual” do homem moderno, que se via obrigado pelo sofrimento psíquico a sair em busca de sua alma - conforme o título de um de seus livros mais populares, Modern Man in Search of a Soul -, o niilismo aparece na compreensão de Jung sob as formas da falta de sentido da vida, da desorientação moral e de visão de mundo, da massificação do indivíduo com a conseqüente destruição de sua individualidade pessoal. Se reunirmos as duas afirmações de Jung – a falta de sentido é a neurose contemporânea generalizada, e a cura da neurose é uma realização moral, ou um problema moral -, podemos sustentar nossa posição de que a psyches therapeia junguiana é fundamentalmente uma tentativa de resposta ao niilismo ético que se irradia a partir do centro simbólico da cultura ocidental moderna. 623 Cf. OC XIV-2, § 416 (CW XIV, § 761). Mas, dada a dupla natureza cética e romântica da psicologia analítica que extraímos da análise precedente, será que não estaríamos diante de uma das figuras que, pelo contrário, confirmam o triunfo inelutável do próprio niilismo? Por participar em larga medida da visão de mundo romântica, não estaria a psyches therapeia de Jung, com muito mais força ainda por proibir ceticamente qualquer fundamentação metafísica, inelutavelmente condenada ao fracasso de sua intenção fundamental? A promessa de uma possibilidade de superação do desenraizamento niilista pela experiência da realidade simbólica não se revelaria, ao seu termo, como uma ilusão – mesmo que uma ilusão que ajuda a viver melhor? Esclareçamos este problema. Nietzsche interpreta o Romantismo como “tardia justificativa da fé, hipérbole de uma grande paixão consumida”.624 Convergindo com a crítica de Hegel na Fenomenologia do Espírito acerca da má infinitude romântica, ele denuncia por debaixo de uma retórica de abundância a carência insaciável, que perpetua a fome de que nasceu a paixão romântica. Segundo Goethe, o Romantismo seria muito mais o sintoma de uma doença do que um estado eufórico de saúde. Se a experiência romântica do mundo é vivência de uma teofania, no entanto ela não consegue, por estar enraizada no “avultamento do sujeito” que se instila na tradição metafísica ocidental moderna625, se libertar de sua equivocidade fundamental: “Dialogando com as coisas, que lhe falam à alma, é de si mesmo que o poeta romântico sempre fala. Nas condições de sua sensibilidade conflitiva, o dinamismo da interiorização permanentemente reconduz à direção centrípeta – para dentro e para o Eu – a direção centrífuga da consciência – para fora e para as coisas.”626 Por fim, também o tema idealista da morte de Deus e da morte do deus, assinalando embora a esperança romântica de uma renovação do eu, está diretamente presente nas raízes do niilismo contemporâneo.627 Porém, o processo movido contra o Romantismo por seus críticos e/ou adversários está longe de ser cabalmente vitorioso.628 Há interpretações divergentes, que 624 Cf. NUNES, “A Visão Romântica”, in GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 19852, p. 74. 625 Cf. ibid. 626 NUNES, “A Visão Romântica”, p. 67-68. 627 Cf. PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, in CAROTENUTO, A. ( dir.) Trattato di Psicologia Analitica. Volume Primo: La Dimensione Culturale. Turim: UTET, 1992, p. 64. 628 Acima de tudo é preciso lembrar que a própria rubrica “Romantismo” não designa um fenômeno histórico e cultural homogêneo e unitário, como acentuou A.O. Lovejoy (cf. “On the discrimination of Romanticisms”, in Essays in the History of Ideas. Baltimore: John Hopkins Press, 1948, p. 228-253). Mais correto seria falar-se dos vários Romantismos que surgem no período oitocentista e diferenciá-los desenham um quadro bem diferente. Por exemplo: Georges Gusdorf sustenta que a acusação de niilismo levantada contra o Romantismo detém-se nas aparências: ontologia do nada, o Romantismo não é contudo um nada de ontologia629; filosofia do não, não é uma não-filosofia: o momento negativo caracteriza o fascínio da consciência romântica pelo Absoluto, que não pode se identificar às formas positivas que pretendem exprimi-lo. Por isso, a negatividade romântica, que não é negativismo para Gusdorf, se inscreve na tradição negativa da espiritualidade ocidental, cujas origens platônicas e neoplatônicas remontam ao ambiente cultural da Alexandria antiga, perpassando toda a teologia apofática medieval e cristã. Segundo Gusdorf, justamente a poética romântica triunfa sobre o Nada, respondendo a uma intenção metafísica e religiosa.630 E na extensão da poética romântica situa-se a experiência simbólica junguiana. Em face da polêmica sobre a caracterização do Romantismo como forma de niilismo – esse “reverso dialético perfeito da experiência do Absoluto real”631 -, permanece em suspenso a resposta à questão que formulamos acerca do fracasso da intenção fundamental da psicologia analítica: a natureza romântica da experiência simbólica, pelo menos até o momento, não pode ser categoricamente julgada (e repudiada) como expressão do triunfo do niilismo. De qualquer maneira, a suprassunção do ceticismo epistêmico de Jung em uma reflexão metafísica específica permanece como uma exigência a ser cumprida perante o tribunal da razão, no que diz respeito à suspeita de niilismo. - III - segundo seu teor específico. Como esse propósito foge de nossa alçada e de nossos objetivos, contentamo-nos aqui com uma apreciação bastante genérica. 629 “O Nada romântico evoca a presença total do Ser sem restrição, em sua identidade incaracterizável, antes que lhe sejam aplicadas as formas restritivas de nossa linguagem e de nosso intelecto.” GUSDORF, G. Les Sciences Humaines et la Pensée Occidentale. Volume X: Du Néant à Dieu dans le Savoir Romantique. Paris: Payot, 1983, p.116. Denise Souchez-Dagues confirma de início a posição de Gusdorf, quando afirma que “para Schelling, é ao reconhecer sua negatividade inelutável que o pensamento teórico se abre a uma positividade diante da qual ele se apaga completamente, abdicando de toda palavra, portanto de toda determinação, em uma alegria esfuziante que suprime mesmo toda apresentação. Então o ultrapassamento do niilismo se faz como o deixar-ser do niilismo. Por sua conjugação com a mística, a especulação descobre no niilismo o acesso a uma ontologia negativa, mesmo a uma me-ontologia.” (Nihilismes. Paris: PUF, 1996, p. 76) Mas em seguida a autora estampa uma posição frontalmente oposta à de Gusdorf, ao concluir que “assim se confirma que o ‘niilismo’ não é jamais um discurso simples: ele engloba na realidade a si mesmo e à sua crítica, reduplicando-se através de sua auto-negação.” (ibid.) Porém, poderíamos com igual legitimidade inverter a conclusão de Souchez-Dagues e incluir o niilismo como um momento dialético interno à própria experiência do Absoluto. Desta forma, a decisão acerca da natureza niilista da experiência romântica esbarra em uma espécie de antinomia problemática. 630 Cf. GUSDORF, op. cit., p. 115-119. 631 VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 175. Jung assume o primado da realidade humana na episteme moderna, mas, pretendendo seguir Kant e ampliar sua epistemologia, ele na verdade dela diverge ceticamente. Constrói assim uma psicologia cética que formula hipóteses e modelos sobre a coisa-em-si632. Mas, ao contrário do cético tradicional, antigo ou moderno, Jung não deixa de lado as “impressões” ou imagens que fornecem o material para a razão metafísica. Ele as toma, de acordo com sua premissa fundamental, como realidades psíquicas efetivas, e propõe um modo concreto de vida e ação a partir da sua interpretação, que Lídia Procesi avalia assim: “Se, com o fim da metafísica, não é mais possível a psicologia como ciência, é possível uma fenomenologia da experiência interna da qual nasce ou se regenera o eu, como paradigma da terapia da consciência (...) A psicologia analítica mantém, ao lado dos cânones operativos das ciências empíricas, uma rica e corajosa linguagem metafórica, e dela se serve como instrumento dúctil, na convicção de que o tratamento terapêutico deve antes de tudo poder reconhecer e reviver o sofrimento psíquico, respeitando o ser humano e a sua afetividade, acolhendo-o como pessoa, mais do que como corpo, evitando reduzi-lo a um mero objeto quantificável: por isso ela encontra um direto antecedente neste horizonte filosófico, no qual a ciência a que eminentemente compete o conhecimento do homem foi individuada e fundada como hermenêutica.”633 Contudo, o diagnóstico acerca do “fim da metafísica” é prematuro. Por um lado, a inteligibilidade metafísica conquistada no empreendimento do Idealismo Alemão não pode ser liqüidada tão facilmente como pretendem os arautos da morte da metafísica. Por outro lado, a certeza metafísica realista da metafísica antigo-medieval do ser poderia ser recuperada legitimamente passando pela interlocução com Kant e por seu possível ultrapassamento em bases não idealistas. Assim sendo, a epistemologia cética de Jung pode ser reconfigurada de acordo com uma nova fundamentação, mais adequada ao perfil teórico que se projeta a partir das concepções fundamentais da psicologia analítica, e mais afinada com a versão contemporânea da experiência simbólica – afinal, indiferente à verdadeira titanomaquia envolvendo as disputas entre legitimidade versus morte da metafísica, a alma humana continua a se manifestar através dos mesmos processos de simbolização (antinômicos) que permitem a compreensão e recuperação atual de experiências simbólicas passadas. Enquanto essa disputa não se decide, as pessoas continuam a buscar um sentido para suas vidas, sendo 632 Cf. Cartas I, 8/4/1932, a A. Vetter (citada no capítulo quarto). 633 PROCESI, L. “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 64-65. essa uma necessidade humana imperiosa.634 Impedida de fornecer, nessa situação, um sentido com o selo de garantia da certeza metafísica e/ou religiosa, doravante sempre problemática, a psicologia analítica só pode cumprir sua função prática apontando para as manifestações da alma e oferecendo aquilo que, afinal, define a vida e o pensamento de Jung: a possibilidade do mito do sentido. Porém, a ambigüidade própria de qualquer mito, e em especial na configuração mental moderna, não permite solucionar a vizinhança do ceticismo de Jung ao niilismo. O homem do espaço hermenêutico podia realizar a experiência da autoconsciência, ou do reencontro com a fonte autêntica de si mesmo, pela mediação da tradição, que lhe indicava, sob a forma de um símbolo fundamental, o modelo que correspondia à realização plena da humanidade, e portanto de sua individualidade pessoal profunda e desconhecida. Realizava o “conhece-te a ti mesmo” sob a égide desse modelo. No caso da civilização cristã, a Imitatio Christi ganha sentido nesse contexto635. O homem moderno, destruindo a marteladas o vinculum com a tradição, perde essa mediação e tem que fazer a experiência humana fundamental no interior da situação de nil-hylum, o que significa fazê-la imediatamente, ou seja, na interioridade da experiência subjetiva. Sob o ponto de vista cultural, podemos interpretar o fenômeno do niilismo, entendido como forma cultural dominante em que desemboca a experiência particular da modernidade, como indício de uma situação histórica particular, o que significa que encontramo-nos coletivamente no momento arquetípico da destruição. Tomados psicologicamente, os temas de destruição niilista podem ser compreendidos também como momentos estruturais do processo de individuação, que supõe a destruição de formas caducas de existência como condição para a emergência de formas renovadas.636 Aqueles temas integram o ritmo do ciclo vital, simbolizado pelo mitologema do renascimento, cuja universalidade confirma o seu caráter arquetípico. Vivemos, se encararmos nosso tempo por este ângulo, a agonia de um mundo que paradoxalmente destruiu os fundamentos de seus valores (niilismo ético) e que, incapaz por isso mesmo de encontrar uma norma transcendente e universal que 634 “A inquietação metafísica permanece e reponta aqui e ali no mundo da objetividade como inquietação sobre o sentido da imensa aventura na qual o homem moderno se lançou, e que as razões da utilidade não conseguem acalmar.” VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 218. 635 Cf. GILSON, E. L’Esprit de la Philosophie Médiévale. Paris: Vrin, 19982, capítulo XI (“La conaissance de soi-même et le socratisme chrétien”, p. 214-233). 636 A literatura junguiana trata desse tema a partir da constelação arquetípica puer-senex. Também nessa linha estaria a compreensão de Jung a respeito da inevitabilidade do iconoclasmo niilista ocidental. comande a organização e forneça o sentido de sua existência, precipita-se na auto- destruição que se verifica cotidianamente e de forma banalizada na escalada sem freios de violência, no alastramento das mais inacreditáveis perversões (pedofilia, canibalismo, parricídio, etc.), no insidioso vazio camuflado sob a luxuriante e inesgotável selva de informações, novidades de consumo e objetos tecnológicos. Porém, resta ainda a possibilidade de ser esta constelação cultural não uma estação terminal, mas um momento logicamente necessário de uma renovação civilizacional, ou parte integrante da experiência religiosa ocidental. 637 Bertrand Saint-Sernin conclui sua exposição sobre o niilismo no Dicionário de Ética e Filosofia Moral lançando um olhar para a sua possível superação: “Tudo se passa como se não nos restasse nada, para reencontrar a razão, além do caminho desviado, obscuro, arriscado, de um salto no escuro, de uma aposta: nós estamos expostos ao ‘nada’, e nos é pedido, segundo as palavras de Fénelon, ‘nada acrescentar a este puro nada’. O que isso mostra, senão que o homem, para sair do niilismo, não pode mais recorrer hoje em dia à velha farmacopéia metafísica ou positiva? Ele tem necessidade de uma ‘revelação’ que a sua razão e a sua alma possam entender. Este que fará ressoar esta esperança, se ele vier um dia, restituirá ao homem o seu rosto e colocará fim à figura presente e passada do niilismo.”638 Nos termos finais em que Saint-Sernin coloca a questão, a superação do niilismo depende de uma experiência, que em sua formulação aparece com os traços inconfundíveis de uma experiência religiosa – pois esse “que virá” para restituir ao homem o seu rosto só pode ser o próprio Deus, que se revela nessa experiência. De acordo com essa perspectiva, a superação do niilismo não depende apenas de uma opção da razão pela metafísica – ou contra ela -, mas de uma presença que se revela e é compreendida no interior da experiência, “pela razão e pela alma”. Portanto, é fundamental que o sujeito consiga compreender a sua experiência – e aí a razão tem algo a dizer. 637 “Mas, e se a exigência do Absoluto transcendente estiver inscrita na própria essência e no dinamismo mais profundo da Razão? E se foi a implacável dialética dessa exigência, desdobrando-se no terreno da teoria da representação, a levar a humanidade moderna ocidental à dramática experiência do niilismo, reverso dialético perfeito da experiência do Absoluto real, e a conviver com essas formas do não-sentido absoluto da violência e da morte, presentes como símbolos de uma civilização em crise, em todas as encruzilhadas do nosso tempo? Essas questões merecem ser postas e sobre elas convém refletir no momento em que ameaças nunca antes pressentidas pairam sobre a tradição do autêntico humanismo, sem dúvida o título mais incontestável de legitimação histórica que a civilização e a cultura do Ocidente podem ostentar.” (VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 175) 638 Bertrand Saint-Sernin, verbete “niilismo”, in CANTO-SPERBER, M. (org.) Dicionário de Ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2003. A forma religiosa que parece condicionar a possível superação do niilismo converge com o que a fenomenologia da experiência religiosa estabelece. A experiência da desolação, do vazio, da falta de sentido, é parte integrante da experiência maior do sagrado – vejam-se a espiritualidade do deserto, a “noite escura da alma” de São João da Cruz, e tantos outros relatos semelhantes dos místicos das mais diversas orientações culturais religiosas. Por isso, na perspectiva da fenomenologia da experiência religiosa o niilismo poderia ser compreendido como o equivalente de um momento estrutural da revelação do sagrado: o momento do “silêncio de Deus”639, que é praticamente insuportável – em todo caso: é uma experiência dificílima, diante da qual a tendência humana natural é a de se refugiar em alguma forma de idolatria que alivie a ausência de sentido com a oferta de um sentido bem “à mão” – e por aí se compreende o assim chamado “retorno do sagrado” na sociedade contemporânea, tão evidente na superabundante oferta de salvação dos mais variados matizes, ou em qualquer sucedâneo da experiência religiosa autêntica: “o mercado de desejos expõe seus tristes tesouros”.640 Por aí se compreende também a atitude inversa, que corresponde à consciência cínica, herdeira prática do desencantamento radical do mundo promovido pela razão esclarecida. Também Henrique Vaz arrisca um olhar na direção nebulosa da possível superação do niilismo: “Tudo, portanto, leva a crer que um passo além da pós-modernidade – e esse passo será dado necessariamente pelo homem do século XXI – consistirá em repropor, provavelmente em novos termos, nas diversas instâncias da cultura, sobretudo nas instâncias ética, filosófica e religiosa, o problema da transcendência como problema de um Transcendente que se eleve acima da natureza, do sujeito e da história. Que traços irão compor a figura do Transcendente aos olhos do homem que terá percorrido o caminho do individualismo moderno e da anomia pós-moderna? Talvez seja ainda prematura a tentativa de começar a decifrar esses traços nos sinais ainda incertos que anunciam um novo tempo. É possível, no entanto, prever que o reconhecimento do Transcendente ocorrerá por obra de um sujeito que terá reencontrado, em novas formas de experiência e consciência históricas, sua dimensão mais profunda, ou seja, exatamente sua abertura para a transcendência.”641 A posição de Vaz diferencia-se da de Bertrand Saint-Sernin (e também da de Lídia Procesi) na medida em que se abre para uma possível renovação da metafísica, 639 Cf. a carta a Karl Oftinger, de setembro/1957, onde Jung entende o “pavor ao silêncio”, manifestado na moderna exponenciação do barulho, como defesa diante da possibilidade de uma “revelação”, que só se dá na situação de um “silêncio mortal”. 640 DRUMMOND, Viagem na Família. 641 VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 118. (A mensagem cristã pode ser de alguma valia nessa nova experiência, “desde que a tentação da imanência tenha sido definitivamente vencida no discurso cristão”. Ibid.) evitando subscrever-se ao veredicto de seu fim irreversível. Tal renovação recupera para a razão a possibilidade metafísica de pensar a possível nova forma de experiência de um Transcendente, única via de real ultrapassamento do niilismo. Parece-nos que esse Transcendente, entretanto, pode a princípio ser concebido de duas formas: uma, para usar um termo hoje já caído em desuso até mesmo na teologia cristã, seria sobrenatural; a outra seria natural.642 Nos dois casos, estaríamos diante de uma transcendência real e radical com relação ao sujeito humano, e assim a “inanidade do antropocentrismo moderno”, com a forma de niilismo que lhe é correlata, seria superada. As duas formas corresponderiam à afirmação de Deus ou da Natureza como termos transcendentes radicalmente irredutíveis ao sujeito, e como fonte de valores normativos para o agir humano. No primeiro caso teríamos a forma criacionista; no segundo, a panteísta. O homem é parte da totalidade; essa totalidade o transcende, seja ela a Natureza, ou tenha como fundamento criador o Ipsum Esse Subsistens. E no caso da transcendência criacionista a situação é ainda mais clara: a condição de criatura já supõe uma diferença ontológica ineliminável entre a causa e seu efeito, o Criador e sua criatura, o Ipsum Esse Subsistens participado e os seres que dele participam e só existem na medida dessa participação.643 Na verdade, este é o problema interno à teologia contemporânea, que se defronta com as mesmas dificuldades postas pela metafísica da subjetividade para a afirmação de um Transcendente real. Henrique Vaz percebe claramente essa situação, e adverte os teólogos: “Instituir uma ontologia dos sinais com os quais se manifesta o objeto da fé, tal o desafio teórico fundamental de toda teologia. Estará, nesse caso, toda forma de ontologia teológica ou teologal, ao enunciar Deus e discorrer sobre o objeto da fé nos seus sinais, aprisionada no interior do paradigma ontoteológico? Se assim fosse, não restaria ao teólogo senão renunciar ao estilo do pensar teológico nas 642 Henrique Vaz reconhece também o significado cultural e histórico da recuperação de uma outra atitude com relação à natureza: “É lícito pensar que o frêmito ecológico que percorre hoje o mundo, além de outras razões ligadas ao instinto de sobrevivência da espécie, recebe inspiração e alento da necessidade profunda de buscar um princípio transcendente de valor, restabelecendo-se a estrutura ternária que permitiu aos grupos humanos na história constituir-se como comunidades éticas. É por isso que nos inclinamos a interpretar a exaltação quase mística da Natureza e a celebração da Gaia maternal como fonte primigênia de valor, o que tende a lançar a onda ecológica na contracorrente do grande fluxo da modernidade.” (Escritos de Filosofia III, p. 148) 643 Escaparia aos limites destas reflexões conclusivas acompanhar a crítica à insuficiência aporética da concepção panteísta-naturalista, que percorre a tradição platônico-aristotélica da metafísica. De qualquer modo, parece-nos que a relação entre a perspectiva panteísta e a criacionista não é, necessariamente, de exclusão, podendo ser pensada segundo a modalidade da inclusão ou suprassunção da primeira na segunda. É essa possibilidade que permite a Jürgen Moltmann propor uma “doutrina ecológica da criação” (cf. MOLTMANN, J. Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação. Petrópolis: Vozes, 1992) Cf. ainda o artigo do beneditino Willigis Jäger, “Mística – Fuga do Mundo ou Responsabilidade pelo Mundo?”, in Concilium/254, 1994/4: Espiritualidade (Mística e Crise Internacional), p. 587-601. suas formas tradicionais, por exemplo agostiniana ou tomásica, e inaugurar uma teologia de ‘Deus sem o ser’ ou de um Deus ‘desontologizado’. (...) Pretendemos apenas chamar a atenção para a inextricável aporia lógica inicial que se apresenta no propósito de um pensar sem ontologia (sem o ser) e que mina, a nosso ver, a possibilidade de uma teo-logia não metafísica, revelando, na verdade, nos discursos pretendidamente não-ontológicos, a presença de uma ontologia que não ousa dizer seu nome. (...) Com efeito, não se pode negar o discurso da ontologia senão com outro discurso, e esse, por sua vez, é necessariamente ontológico, pois nenhum discurso, articulado em enunciados inteligíveis, pode fazer a economia do ser. (...) Como discorrer sobre o Deus vivo da Revelação senão negando toda ontologia? Mas como negar a ontologia senão com o discurso de uma ontologia negativa que deve pressupor o ser para poder negá-lo? Ora, a negação do ser, como mostrou Aristóteles, refuta-se a si mesma. Não resta à teologia senão refugiar-se numa forma de narratividade poética – a exemplo do último Heidegger – ou numa mística do inefável.”644 A ruptura do círculo encantado em que a consciência reflexiva moderna se enclausura exige a reversão da relação entre o Cogito e o ser definidora da metafísica da subjetividade: não mais o ser absorvido no Cogito, mas o Cogito enraizado no ser.645 Esta fundamentação escapa à alçada da psicologia empírica e, no que diz respeito ao campo próprio de atuação de uma hermenêutica das imagens, só pode ser estabelecida filosoficamente por uma ontologia do símbolo, que teria condição legítima de alçar a hipótese da “concepção unitária do ser” e do correspondente fundamento objetivo do sentido ao seu estatuto metafísico legítimo.646 Na verdade, esse movimento metafísico é exigido pela própria visão de Jung: ao afirmar que a existência do mundo tem duas condições – a primeira sendo existir, e a segunda ser reconhecido por uma consciência647– Jung necessariamente afirma um princípio que transcende a psique e que é condição de possibilidade para todas as manifestações psíquicas: a existência. A premissa da Wirklichkeit der Seele pressupõe necessariamente este prius ontológico, pois para algo “atuar” é preciso primeiro que esse algo exista, já que o nada não atua, por definição. Por esse motivo, o ultrapassamento “existencialista” de Kant já está presente como exigência latente no pensamento de Jung, e por tal motivo a interlocução com o pensamento do segundo Schelling parece-nos legítima e fecunda. Por outro lado, a recuperação contemporânea da metafísica tomásica do actus essendi, à qual Henrique Vaz dá valiosa contribuição, 644 VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 277-279. Sobre a mesma problemática, cf. Escritos de Filosofia I, p. 190-222. 645 Cf RICOEUR, P. “Le symbole donne à penser”, in Philosophie de la Volonté 2: Finitude et Culpabilité. Paris: Aubier-Montaigne, 1960, p. 479-488, especialmente p. 487. 646 Acreditamos que uma ontologia do símbolo nos moldes daquela proposta por Karl Rahner (Escritos de Teologia.(vol. 4) Madrid: Taurus Ediciones, 1964, p. 283-321) estaria capacitada para fornecer uma fundamentação compatível com as hipóteses de Jung. 647 Cf. OC XVI, § 201; cf. também OC X, § 528. O mesmo dualismo de princípios subjaz à afirmação de Jung de que “a psique é o espelho do ser.” (OC XVI, § 203) fornece um referencial teórico-especulativo em que o próprio ceticismo epistêmico de Jung pode ser reconhecido e posto em causa: “Retirada do esse a sua inteligibilidade fontal, que implica a afirmação de um Absoluto transcendente, a pressuposição da imanência absoluta da razão finita deve conviver com a sem-razão do simples existir. Forma-se, desta sorte, uma dramática situação espiritual e intelectual, que o homem moderno tenta viver refugiando-se em atitudes que apenas aprofundam a sem-razão que as gerou, desde o cauteloso ceticismo ao declarado niilismo.”648 Dessa forma, em última análise, e como está confessado ao final de Memórias, Sonhos, Reflexões, na dimensão teórica da psicologia analítica a questão do sentido da vida fica em suspenso, sem poder franquear a barreira da dúvida. O “sentido latente” objetivo implicado na teoria da sincronicidade só pode permanecer no nível da hipótese. A restrição epistemológica aos limites céticos de sua psicologia faz com que Jung não pretenda apresentar, no plano teórico, uma fundamentação racional para a experiência do sentido, verdadeira essência do processo de individuação, que é pragmaticamente reconhecida e descrita no plano prático/empírico. Contudo, essa restrição faz o “mito do sentido” junguiano padecer da fragilidade resultante da ausência de uma ontologia que lhe dê suporte, e assim não conseguir escapar, por si só, à poderosa força gravitacional do niilismo contemporâneo.649 - IV - Em nosso último capítulo, assinalamos como o ceticismo epistêmico de Jung desdobra-se, na dimensão prática, em um pragmatismo que avalia a validade terapêutica de uma determinada situação psíquica conforme sua adequação à totalidade da experiência psicológica. A aferição não se dá em termos de bem-estar, e sim da capacidade expressa pelo sujeito de integrar um aspecto da totalidade pessoal, tendo como critério a preservação da diferença entre Eu e Si-mesmo e a sua articulação em uma relação na qual a consciência não é aliviada do “tormento da decisão ética”. 648 VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 103. 649 Dentre as quatro vertentes que levam à idéia de transcendência, Eric Voegelin inclui uma a que se poderia afiliar a concepção de experiência simbólica em Jung: “o processo de simbolização no seu encaminhar-se para adquirir uma estrutura analógica quando o fecho transcendente da ordem do ser se mostrar incognoscível em si mesmo”, repontando aí “a idéia da possibilidade de convivência de tradições diversas ou de um sincretismo de símbolos.” VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 205, itálicos nossos. Todo o problema do diálogo possível entre a psicologia analítica e a teologia cristã depende da definição da ontologia da transcendência. A “traição da própria verdade” em Jung, como indicamos, concordando com a crítica de Wolfgang Giegerich, consistiu em fechar as portas a uma reflexão filosófica de natureza metafísica, que chegasse a um acordo com o problema da transcendência,650 pela qual se pudesse alcançar a unidade possível entre praxis e episteme na psicologia analítica. Assim, somente uma abordagem filosófica está em condições de “salvar” o legado de Jung de sua contradição interna. À filosofia cabe a tarefa de recuperação reflexiva do “implícito metafísico” presente nas manifestações da vida cultural em suas aporias.651 Para Henrique Vaz, como para Hegel, a filosofia é “a única capaz de formular em sua radicalidade o pensamento da cisão” que revela a ruptura instalada na cultura ocidental, cabendo-lhe por isso também “pensar os caminhos que conduzem à unidade restaurada da cultura”.652 Mas aqui revela-se uma limitação que nos parece incontornável: a filosofia pode pensar os caminhos que conduzem à unidade restaurada da cultura, e pode talvez até mesmo prescrevê-los, mas não pode, por si só, construí-los concretamente, pois na matéria em que esses caminhos deveriam ser esculpidos encontram-se “forças irracionais”, que não se deixam docilmente mudar segundo os imperativos da razão, e que só podem ser enfrentadas efetivamente com os recursos da phronesis – e da ação política. Por isso, a compreensão filosófica sistemática também é insuficiente. A possível unidade de fundo entre o philosophos e o phronimos, entre theoria e praxis, entre sophia e phronesis, não permite que um dos termos substitua o outro em suas atribuições próprias.653 Giovanni Reale, em seu livro O Saber dos Antigos654, propõe uma “terapia para os tempos atuais” que, indicando no niilismo a raiz profunda de todos os males do homem contemporâneo, tenta recuperar as lições da filosofia antiga como base para uma atitude capaz de fazer frente ao desafio niilista e exterminá-lo na raiz. O diagnóstico de Reale coincide com o de Henrique Vaz, e fornece um dos eixos em que apoiamos nossas reflexões neste trabalho. 650 Jung admite que a postulação do arquétipo em si deixa espaço para a transcendência da “premissa teológica”. Cf. Cartas II, 30/08/1951, ao dr. H. 651 Cf. VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 32-33. 652 Cf. id., p. 46. 653 Jung ratifica nossa posição, ao afirmar que as premências da tarefa psicoterapêutica não permitem a tarefa de desenvolvimento filosófico e clarificação interna dos conceitos empíricos, acrescentando que quem realiza a primeira tarefa satisfatoriamente raramente será capaz de completar a segunda. Cf. OC XVIII, § 1731. 654 REALE, G. O Saber dos Antigos. Terapia para os Tempos Atuais. São Paulo: Loyola, 1999. Porém, uma objeção pode ser feita a essa terapia filosófica estritamente racional proposta por Reale: ela desconsidera a experiência do inconsciente, a qual se defronta a todo momento com a natureza refratária da afetividade humana às prescrições racionais, e assim uma terapia simplesmente dirigida à razão arrisca-se a expressar apenas um tipo de otimismo racionalista moderno, de cuja eficácia prática cabe duvidar. Pior: tal racionalismo arrisca-se ainda a incidir na inanidade de um certo humanismo, que tematiza a liberdade, a dignidade humana, e recua diante das monstruosidades que emergem do fundo da alma humana, adotando uma atitude de condenação e aconselhamento tão comum em uma postura moral exortativa, edificante, até mesmo verdadeira, mas impotente.655 Como dizia Jung, “a verdade mais bela de nada adianta se ela não se tornou a experiência íntima e própria do indivíduo.”656 Mas a apropriação dessa verdade, ou a realização dessa experiência íntima, não depende exclusivamente de uma decisão racional, voluntária e consciente do indivíduo: ela passa pela incerta e angustiante confrontação com o mal dentro e fora de si mesmo. Ao racionalista abre-se, assim, a saída honrosa de reconhecer o mistério humano – que participa de um mistério maior e mais insondável, o mysterium iniquitatis – e, caso exerça a razão dentro de uma atitude cristã, como o fazem Reale e Henrique Vaz, reconhecer também o desamparo e a impotência do homem e de sua razão finita e falível para superar o mal que ele mesmo perpetra, e, portanto, afirmar, obedecendo à sua fé, a necessidade da graça para que a terapia que propõe chegue a bom termo. Esta saída seria estruturalmente congruente com a experiência do inconsciente.657 Entenda-se bem: não se trata de pôr em dúvida a validade do discurso antropológico-filosófico ou ético. Ela é pressuposta de partida na tarefa psicoterapêutica, e por isso mesmo ela permitiu-nos levar a cabo nossa interpretação da psicologia analítica. Mas por elidir o problema do mal, reservando-lhe quando muito uma “nota” e honestamente declarando-se impotente diante dele658, a filosofia 655 “Os acontecimentos em nosso mundo moderno – onde a humanidade anda às cegas, sem ajuda e sem querer, de uma catástrofe para outra – pouco colaboram para fortalecer a fé no valor de nossa consciência e na liberdade de nossa vontade. A consciência deveria ser de suma importância, pois é a única garantia da liberdade e da possibilidade de evitar o desastre. Mas isso, ao que parece, continua sendo por ora mera esperança piedosa.” OC XVIII, § 754. 656 OC XVIII, § 1292. 657 Jung fala metaforicamente da “graça” nas transformações de conflitos psíquicos, e diz ainda: “Quando a natureza não colabora, o médico trabalha em vão” (OC XVIII, § 1575) – o que significa que a autonomia da razão é relativa, limitada, não absoluta, e depende do concurso de um fator que transcende consciência, vontade e razão, ao qual ele designa com o termo “inconsciente”. 658 “Diante do mistério do mal a Filosofia e a Ética se declaram impotentes.” VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 135. sistemática não é suficiente nas situações práticas em que se trata justamente de confrontar-se o mal, que se instala desde sempre no mundo, e opõe suas armadilhas à existência humana. Poderíamos dizer que, ali onde se detém a Ética como ciência filosófica do agir humano659, começa a tarefa psicoterapêutica como sabedoria prática. A falibilidade do livre-arbítrio sinaliza a presença de outro fator que atravessa e interfere com a auto-determinação consciente do sujeito: é a este fator que se refere a noção de inconsciente em psicologia, sob um ponto de vista empírico. A individuação, definida como confronto com o inconsciente – o que não significa o seu domínio pela consciência, nem o mero reconhecimento intelectual, mas o envolvimento vivo e moral – é o eixo da psyches therapeia que está obrigada a enfrentar aquilo que deixa impotente a Filosofia e a Ética. Só a Ética sistemática pode dar a razão de ser da sabedoria prática, ao tematizar a natureza do bem que esta busca alcançar na vida concreta; mas muito pouco ela tem a oferecer nas situações contingentes em que cabe à sabedoria prática cumprir a sua tarefa de escolha e orientação para a realização, sempre condicionada e portanto relativizada, do bem, pois aí a sombra do mal está invariavelmente presente: “Se entendemos então que o mal habita a natureza humana independentemente da nossa vontade e que ele não pode ser evitado, o mal entra na cena psicológica como o [parceiro igual e oposto] do bem. Essa compreensão nos leva de imediato [a um dualismo psicológico] que, de maneira inconsciente, se encontra prefigurado na cisão política do mundo e na dissociação do homem moderno. O dualismo não advém da compreensão. Nós é que nos encontramos [em uma condição dissociada]. Todavia, seria extremamente difícil pensar que teríamos de assumir pessoalmente essa culpa. Assim, preferimos localizar o mal em alguns criminosos isolados ou em um grupo, lavando as próprias mãos e ignorando a propensão geral para o mal. A inocência, porém, a longo prazo, não será capaz de se manter porque, como nos mostra a experiência, [o mal] está no próprio homem e não constitui um princípio metafísico como supõe a visão cristã. Esta visão possui a enorme vantagem de retirar esta dura responsabilidade da consciência moral humana, deslocando-a para o diabo a partir do justo entendimento de que o homem é bem mais uma vítima da sua constituição psíquica do que o seu voluntário criador. Considerando que o mal de nossa época lança tudo o que já atormentou a humanidade num mar de sombras, torna-se, de fato, necessário [perguntar como é que, com todo o progresso na administração da justiça, na medicina e na técnica, foram inventadas monstruosas máquinas de destruição que poderiam facilmente exterminar a raça humana].”660 659 “Diante do enigma ou do mistério dessa falibilidade do livre-arbítrio, a Ética se detém.” VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 137. 660 OC X, § 573. O professor Fernando Rey Puente sugere-nos uma interessante via de desenvolvimento teórico da psicologia analítica, centrada na reflexão de Kant sobre o mal radical e sua recepção e desenvolvimento pelo último Schelling, onde o pensamento da contingência é radicalizado. O passo de Kant a Schelling por esta via formaria um elo teórico congruente com a persistente reflexão sobre o problema do mal em Jung – reflexão que acabou por selar seu desentendimento final com Victor White. Um tal desenvolvimento se faria ao longo dessa “segunda via do Idealismo Alemão”, segundo a denominação proposta por Miklos Vetö. Cf. VETÖ, M. De Kant à Schelling. Les Deux Voies de l’Idéalisme Allemand (2 tomes). Grenoble: Jérome Millon, 1998 e 2000. A experiência psicoterapêutica com o inconsciente revela-se, em última análise, como uma forma peculiar de socratismo contemporâneo que, em face do otimismo racionalista, recomenda uma atitude de modéstia e humildade, entendidas menos como virtudes morais do que como realismo prático: o saber sobre o não-saber – vale dizer, em termos psicológicos, o reconhecimento da realidade do inconsciente e de sua autonomia por relação aos desígnios e poderes de nossa vontade consciente – implica o reconhecimento de que qualquer transformação substancial do indivíduo exige a auscultação661 das forças e configurações inconscientes pela consciência. A lição da experiência do inconsciente ensina que, sem o concurso deste (ou, para usar o símbolo fundamental de Jung, da “natureza”), nada acontece. A consciência é transformada nessa experiência, e também a oposição ao inconsciente é modificada. A orientação prática advém da interpretação dos sinais emitidos pelo inconsciente e da adesão consciente às linhas de desenvolvimento vital assim captadas. A “natureza” parece possuir uma tendência imanente à realização de cada indivíduo segundo a forma específica de suas partes, nisso consistindo a sua “inteligência”: “Parece que os médicos medievais sabiam algo a respeito, pois dedicavam-se a uma filosofia, cujas raízes provêm comprovadamente do mundo pré-cristão e era constituída de uma forma, que corresponde exatamente às experiências que hoje fazemos com os nossos pacientes. Esses médicos conheciam – além da luz da sagrada revelação – um lumen naturae, como uma segunda fonte de luz, independente, a que o médico pode recorrer, caso a verdade transmitida pela Igreja se revele ineficaz por algum motivo.”662 Mas a consideração da “natureza” como fonte de valor, orientação e conhecimento pode escamotear a grande dificuldade reconhecida e insistentemente apontada por Jung: o lumen naturae por si só não é suficiente - é preciso a ação discriminadora da consciência humana, pois a natureza em si é neutra, não revela nada, apenas se auto-manifesta, e somos nós que a interpretamos para poder servir aos nossos propósitos/fins.663 E por isso mesmo, sempre se coloca, diante do lumen naturae, a possibilidade da presença de Lúcifer – o portador da luz, que é, no mínimo, o reflexo 661 No sentido etimológico do latim ob-audere, de onde provém obediência, e que significa escutar respeitosamente. No mesmo sentido Jung recuperava a etimologia clássica, não patrística, de religio remontando a religere, que significa observar cuidadosamente e levar em consideração o numinoso (cf. OC XI, § 982). Daí vem o caráter religioso de certas experiências psicoterapêuticas, segundo Jung, e ele interpretava conseqüentemente a fé que se segue a tais experiências segundo uma etimologia peculiar do termo grego pistis: lealdade à própria experiência (cf. OC XI, § 74). 662 OC XVI, § 189. 663 Cf. OC X, § 34. Cf. OC XVI, § 252: “É que os símbolos gerados pelo inconsciente têm que ser ‘entendidos’ pela consciência, isto é, têm que ser assimilados e integrados para se tornarem eficazes. Um sonho não compreendido não passa de um simples episódio, mas a sua compreensão faz dele uma vivência.” especular de nossas intenções ou fins secretos na interpretação e utilização das informações da natureza. Não fosse isso – a presença ambígua do mal na constituição humana – a individuação seria não uma realização moral, mas um processo meramente natural. A psicoterapia como forma contemporânea de sabedoria prática perderia o seu sentido, convertendo-se em mera técnica para a construção progressiva do “admirável mundo novo”, e o racionalismo poderia apresentar suas credenciais pelagianas. NOTA SOBRE AS CITAÇÕES As citações da Obra Coligida de C.G. Jung serão indicadas com a abreviatura OC, seguida do número do volume em algarismos romanos, e do número do parágrafo. Optamos por utilizar a tradução brasileira como base. Porém, como a mesma é muito irregular, problemática e não confiável, corrigimos várias passagens a partir da edição alemã das Gesammelte Werke e da edição anglo-americana das Collected Works, sendo que nossas correções encontram-se indicadas por colchetes. Em certos casos, julgamos necessário indicar a referência anglo-americana com a abreviatura (CW). Também no tocante às cartas, indicamos o volume da tradução brasileira em três volumes (por exemplo: Cartas II), assinalando a seguir a data da carta e o destinatário. Quando necessário, corrigimos a tradução a partir da edição anglo-americana (Letters), colocando igualmente a correção entre colchetes. Os seminários utilizados são abreviados da seguinte maneira: Visions Seminars = VIS; Zarathustra Seminar = ZAR. Na Bibliografia indicamos detalhadamente os volumes das Obras Coligidas, Seminários e Cartas, e fazemos um comentário acerca das traduções e seus problemas. Quanto às obras de Henrique Vaz, optamos por indicar o título e o volume, apresentando na Bibliografia a referência completa. Em geral, na primeira ocorrência de uma obra citada damos a referência completa, e a seguir a indicamos apenas com o nome do autor e o título da obra. Todas as traduções de textos em outras línguas são de nossa responsabilidade. ANEXO I: Sobre a divergência entre Freud e Jung É interessante acompanhar a dissensão entre Freud e Jung no momento mesmo em que ela eclode, revelando a compreensão distinta que os dois têm acerca do símbolo e da forma como encarar os eventos psíquicos. Quando, em 1909, Jung se volta pela primeira vez para o estudo da mitologia, ele escreve a Freud dizendo que confirmava a intuição psicanalítica fundamental: “Já não tenho dúvidas sobre o que os mitos mais antigos e mais naturais querem dizer. É do complexo nuclear da neurose que, com absoluta “naturalidade”, eles falam.”664 Completamente alinhado à causa psicanalítica naquele momento, e na verdade um de seus principais articuladores, Jung escreve a Freud em 27 de abril de 1912 (carta 312 J) e lhe comunica a sua posição: “Como o senhor, estou absorvido pelo problema do incesto e cheguei a conclusões que mostram primariamente o incesto como um problema de fantasia. Originariamente, a moralidade era apenas uma cerimônia de reparação, uma proibição substitutiva, de forma que a proibição étnica do incesto pode não significar absolutamente incesto biológico, mas simplesmente a utilização de material incestuoso infantil na construção das primeiras proibições. (Não sei se estou me expressando claramente!) Se significasse incesto biológico, então o incesto pai-filha teria caído em proibição muito mais prontamente do que aquele entre genro e sogra. O espantoso papel da mãe na mitologia tem um significado que excede em muito o problema do incesto biológico – um significado que corresponde à pura fantasia.”665 A carta em que Freud respondia não foi preservada. Ao que tudo indica, ele não compreende ou não concorda com o que Jung diz, pois em 8 de maio de 1912 (carta 313 J) Jung tenta mais uma vez explicar sua posição: “Lamento muito a minha incapacidade de fazer-me inteligível à distância, sem remeter-lhe o volumoso material de apoio. O que quero dizer é que a exclusão do relacionamento pai-filha da proibição do incesto, habitualmente explicada pelo papel do pai como legislador (egoísta), deve ter-se originado do período relativamente tardio de patriarcado, quando a cultura estava suficientemente avançada para a formação de laços familiares. Na família, o pai era forte o bastante para manter o filho na ordem com uma sova, sem contradizer a lei, se, naqueles tenros anos, o filho demonstrasse quaisquer inclinações incestuosas. Na idade mais madura, por outro lado, quando o filho poderia realmente ser um perigo para o pai, e as leis eram portanto necessárias para reprimi-lo, o filho não tinha mais quaisquer verdadeiros desejos incestuosos pela mãe, com o ventre caído e as veias varicosas. Pode-se conjeturar quanto a uma tendência incestuosa muito mais genuína no primitivo período de matriarcado, sem cultura, isto é, na família matrilinear. Ali o pai era puramente fortuito e não contava para nada, de forma que não teria tido o menor interesse (considerando a promiscuidade geral) em decretar leis contra o filho. (Na verdade, não existia essa coisa, o filho de um pai!) Penso, portanto, que a proibição do incesto (compreendida como moralidade primitiva) era simplesmente uma fórmula ou cerimônia de reparação in re vili: o que era valioso para a criança – a mãe – e é tão desprezível para o adulto que logo é posta de lado, adquire um valor extraordinário graças à proibição do incesto e é declarada desejável e proibida. (Esta é a genuína moralidade primitiva: qualquer diversão pode ser proibida, mas é certo que se torne um fetiche). Evidentemente, o objetivo da proibição não é impedir o incesto, mas consolidar a família (ou a religiosidade, ou a estrutura social).”666 Freud retruca em 14 de maio (carta 314 F): 664 MCGUIRE,W. (org.) A Correspondência Completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung. Rio de Janeiro: Imago, 19932, p. 284 (carta 162 J). O “complexo nuclear” é o mesmo “complexo de Édipo”. 665 Em McGUIRE, op. cit., p. 506. 666 Id., p.507. “Certamente não será surpresa para o senhor que a sua concepção do incesto não esteja ainda clara para mim. Às vezes tenho a impressão de que não se afastou ainda do que pensamos até agora, mas isso só pode ser esclarecido por uma conversa mais detalhada. Quanto aos seus argumentos, tenho três observações a fazer; não são refutações, devem ser tomadas simplesmente como expressões de dúvida. 1) Muitos autores consideram um estado primordial de promiscuidade como altamente improvável. Eu próprio, com toda a modéstia, sou favorável a uma hipótese diferente em relação ao período primordial – a de Darwin. 2) O direito materno não deve ser confundido com a ginecocracia. Há pouco a dizer quanto a esta. O direito materno é perfeitamente compatível com a degradação poligâmica da mulher. 3) Parece provável que tenha havido filhos do pai em todas as épocas. O pai é alguém que possui sexualmente a mãe (e os filhos como propriedade). O fato de ter sido engendrado por um pai tem, afinal de contas, significado psicológico para uma criança.”667 Em 17 de maio (carta 315 J), Jung explicita longa e claramente sua posição: “No tocante à questão do incesto, receio causar uma impressão paradoxal ao senhor. Aventuro-me apenas a lançar uma conjectura audaciosa na discussão: a grande quantidade de ansiedade flutuante no homem primitivo, que conduziu à criação de cerimônias tabu no sentido mais amplo (totem etc.), produziu também, entre outras coisas, o tabu do incesto (ou antes: o tabu do pai e da mãe). O tabu do incesto não corresponde mais ao valor específico do incesto sensu strictiori do que a sacralidade do totem corresponde ao seu valor biológico. Sob esse ponto de vista, deve-se dizer que o incesto é proibido não porque é desejado, mas porque a ansiedade flutuante reativa regressivamente o material infantil e o transforma numa cerimônia de reparação (como se o incesto tivesse sido, ou pudesse ter sido, desejado). Psicologicamente, a proibição do incesto não tem o significado que é preciso atribuir-lhe, se se presume a existência de um desejo de incesto particularmente intenso. O significado etiológico da proibição do incesto deve ser diretamente comparado com o assim chamado trauma sexual, que, habitualmente, deve o seu papel etiológico apenas à reativação regressiva. O trauma é aparentemente importante ou real, e assim o é a proibição ou barreira do incesto, que, do ponto de vista psicanalítico, tomou o lugar do trauma sexual. Assim como cum grano salis não importa se um trauma sexual realmente ocorreu ou não, ou foi uma simples fantasia; psicologicamente é secundário se existiu ou não realmente a barreira do incesto, uma vez que é, essencialmente, uma questão de desenvolvimento posterior o assim chamado problema do incesto transformar-se ou não num problema de evidente importância. Uma outra comparação: os eventuais casos de verdadeiro incesto têm tão pouca importância para as proibições étnicas de incesto quanto as ocasionais manifestações de bestialidade entre os primitivos em relação aos antigos cultos animais. Na minha opinião, a barreira do incesto não pode ser explicada pela redução à possibilidade de verdadeiro incesto, assim como o culto animal não pode ser explicado por redução à verdadeira bestialidade. O culto animal é explicado por um desenvolvimento infinitamente longo, que é de importância primordial, e não por tendências bestiais primitivas – estas nada mais são do que a pedreira que fornece o material para a construção do templo. Mas o templo e o seu significado nada têm a ver com a qualidade das pedras da construção. Isso aplica-se também ao tabu do incesto, que, como instituição psicológica especial, tem um significado muito que maior - e diferente – do a prevenção do incesto, muito embora possam, de fora, parecer a mesma coisa. (O templo é branco, amarelo ou vermelho, de acordo com o material usado.) Como as pedras de um templo, o tabu do incesto é o símbolo ou veículo de um significado especial e mais amplo, que pouco tem a ver com o incesto de verdade, assim como a histeria com o trauma sexual, o culto animal com a tendência à bestialidade e o templo com a pedra (ou, melhor ainda, com a primitiva moradia de cuja forma é derivado).”668 667 Id., p.508. 668 Id., p.509-510. Observe-se que a analogia do templo e das pedras de que é construído, reiteradamente utilizada por Jung, é muito próxima daquela empregada por Dilthey para sustentar a diferença entre explicar (erklären) e compreender (verstehen), sobre a qual se baseia a distinção entre Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften. Finalmente Freud reconhece a diferença (carta 316 F): “Na questão da libido, finalmente, vejo a que ponto a sua concepção difere da minha. (Estou-me referindo, é claro, ao incesto, mas pensando nas suas anunciadas modificações no conceito de libido.) O que não consigo ainda compreender é por que razão o senhor abandonou a concepção mais antiga, e que outra origem e motivação a proibição do incesto pode ter. Naturalmente, não espero que o senhor me explique essa difícil matéria mais plenamente por carta; serei paciente até que o senhor publique as suas idéias sobre o tema. Valorizo a sua carta pela advertência que contém e pela lembrança do meu primeiro grande erro, quando confundi fantasias com realidades. Serei cuidadoso e conservarei os olhos abertos a cada passo. Se agora, porém, deixarmos de lado a razão e sintonizarmos o aparelho com o prazer, confesso ter uma forte antipatia pela sua inovação. (...) Creio que temos sustentado, até agora, que a ansiedade se origina na proibição do incesto; agora o senhor afirma, pelo contrário, que a proibição do incesto origina-se na ansiedade, o que é muito semelhante ao que foi dito antes da era da [psicanálise].”669 A partir de então, estava selada a ruptura entre o pai da psicanálise e aquele que ele pretendera investir como seu “príncipe herdeiro”. O símbolo na visão de Jung, entendido segundo sua tendência prospectiva e não meramente sintomática, não encontrava espaço no interior das coordenadas teóricas definidas por Freud. Ulteriormente, a teleologia em que se ancora a concepção junguiana de símbolo convergirá com a hipótese da sincronicidade. A menção aos “processos teleológicos” no campo da Biologia remete-nos à discussão com Freud, que repassamos no capítulo segundo. O finalismo que sustenta a concepção de símbolo em Jung já apontava na direção da hipótese da sincronicidade, somente formulada mais tarde. O próprio Jung faz essa conexão,670 quando diz que duvidava há muito tempo da validade exclusiva e absoluta do princípio de causalidade, e, citando uma passagem do prefácio de 1916 aos Collected Papers on Analytical Psychology, que transcrevemos no segundo capítulo, comenta: “A finalidade psíquica repousa em um ‘[sentido]’ preexistente que só se torna problemático quando é um arranjo inconsciente. Neste caso deve admitir-se uma espécie de ‘conhecimento’ anterior a qualquer consciência. Hans Driesch chegou também a esta conclusão.”671 A extensão do sentido simbólico, na hipótese da sincronicidade, a um âmbito extra-psíquico definitivamente é igualmente incompatível com os pressupostos freudianos. A oposição frontal de Freud à posição correspondente à hipótese da sincronicidade já está antecipada em A Psicopatologia da Vida Cotidiana: 669 Id., p.511. 670 Cf. OC VIII, § 843 nota 32. 671 Ibid. “diferencio-me de um supersticioso pelo seguinte: não creio que um acontecimento em cuja produção a minha vida psíquica não participou possa ensinar-me algo oculto sobre o perfil futuro da realidade. Ao contrário, creio que uma exteriorização não deliberada de minha própria atividade psíquica revela-me algo oculto, porém algo que só à minha vida psíquica pertence; certamente creio em um acaso externo (real), porém não numa casualidade interna (psíquica). Com o supersticioso ocorre o inverso: ele não sabe nada sobre a motivação de suas ações casuais e de seus atos falhos, crê que existam casualidades psíquicas; por outro lado inclina-se a atribuir ao acaso exterior um significado que se manifestará no acontecer real, a ver no acaso um meio pelo qual se expressa algo que para ele está oculto no exterior.”672 O irônico desta posição, a partir de uma leitura dialética e crítica, é que Freud deixa-se determinar pelo supersticioso: de fato, trata-se da afirmação de uma crença de Freud, a crença no determinismo psíquico absoluto – ou seja, na onipotência do princípio de causalidade na esfera psíquica - e a crença na ausência de qualquer significado em um acaso exterior. Mas essa crença não pode ser demonstrada pela razão, sendo portanto uma forma de “superstição” metafísica dogmática – isto é, não crítica - de Freud. A sincronicidade, com sua postulação de coincidências significativas em certos “acasos”, está de partida excluída da profissão de fé de Freud. Segundo este credo, Jung seria indiscriminadamente arrolado entre os “supersticiosos”673... Porém, a partir do criticismo de Jung, Freud seria arrolado precisamente entre os “dogmáticos” do positivismo novecentista.674 672 Cf. FREUD, S. “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VI. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 308 (a tradução aqui apresentada, feita diretamente do original alemão, é de Carlos Roberto Drawin). 673 O conhecido episódio narrado por Jung, quando de uma visita a Freud em Viena, em que ele antecipou a repetição de um estrondo na estante da biblioteca de seu anfitrião, é instrutivo. No momento em que se deu o fato, Freud ficou perplexo e mudo, Alguns dias depois, ele escreve a Jung dando uma explicação causal-natural para o estrondo – mas, nota bene, ele simplesmente se “esqueceu” do mais extraordinário: a precognição de Jung. Isso só poderia ser explicado por ele como mero acaso, mas uma tal explicação é tudo, menos convincente. 674 Cf., por exemplo, OC IV § 675; OC VIII § 705; OC XV, §§ 46-47. Uma leitura interessante no contexto de uma avaliação crítica da diferença demasiado simplista entre o “supersticioso” e o “esclarecido” encontra-se no ensaio de Jung sobre o homem arcaico (OC X, § 104-147), em que ele mostra como a diferença entre as duas posições está no conteúdo dos pressupostos, e não no fato de que sempre tenhamos pressupostos, nem na presumida falta de lógica da mentalidade arcaica. E aplica o argumento ao tópico da causalidade natural versus causalidade sobrenatural: “É nossa pressuposição, na verdade nossa convicção positiva, que tudo tem uma causa ‘natural’ que, pelo menos em teoria, é perceptível. O homem primitivo, por outro lado, assume que tudo é determinado por poderes invisíveis, arbitrários – em outras palavras, que tudo é acaso. Apenas ele não o chama de acaso, mas de intenção. A causação natural é para ele mera ficção, e não merece ser mencionada. Se três mulheres vão ao rio apanhar água, e um crocodilo ataca a do meio e a leva, nossa visão das coisas nos conduz ao veredicto que foi por puro acaso que aquela mulher particular foi levada. (...) [O primitivo] corretamente julga BIBLIOGRAFIA I – Obras de C.G. Jung Os escritos publicados de C.G. Jung foram reunidos em dezoito volumes, segundo um critério temático, aos quais se acrescentaram um volume contendo a bibliografia utilizada por Jung, e outro contendo o índice geral temático da Obra Coligida. A maior parte dos escritos originais foi redigida em alemão, mas há também um número considerável de escritos – aí incluindo os seminários, conferências, pronunciamentos e cartas – que foram redigidos e/ou proferidos em inglês. A edição anglo-americana das Collected Works, que até o momento continua a ser a referência de pesquisa internacional, foi elaborada com a participação do próprio Jung. Ela apresenta vários problemas referentes à tradução, mas no geral é confiável. A edição alemã, posterior às Collected Works, também apresenta problemas. Para uma visão ampla acerca do estado das fontes nas duas edições, consulte-se o recente livro de Sonu Shamdasani: Jung Stripped Bare, by his Biographers Even (London: Karnac Books, 2005). Uma nova tradução e edição, desta feita das obras completas de Jung, está sendo realizada, num projeto de longo prazo patrocinado pela Philemon Foundation, sob a direção de Sonu Shamdasani. Optamos em nosso trabalho por utilizar a tradução brasileira, que é feita diretamente do alemão. Contudo, além de equivocadamente ela se intitular como sendo as obras completas (e não, como seria correto, obras coligidas), a sua qualidade e confiabilidade são questionáveis. Há erros crassos de tradução e edição, que por vezes distorcem, deturpam e tornam ininteligível o pensamento de Jung. Por tal motivo, corrigimos a tradução em nossas citações, sempre que necessário, consultando as edições anglo-americana e alemã. O mesmo problema se verifica na tradução brasileira das cartas de Jung, e por isso procedemos da mesma forma. Quanto às comumente chamadas Memórias de Jung, elas na verdade resultam de uma edição feita por Aniela Jaffé, com alguma interferência dos herdeiros e editores de nossa explicação superficial ou mesmo absurda, pois de acordo com essa visão o acidente poderia igualmente não ter acontecido e a mesma explicação serviria nesse caso também – que foi por puro ‘acaso’ que não aconteceu. O preconceito do europeu não lhe permite compreender quão pouco ele está dizendo quando explica as coisas dessa maneira.” CW X, § 115-116. Jung, a partir do material escrito e ditado por Jung a Jaffé. Em vista disso, a sua confiabilidade deve ser vista com reservas. O próprio Jung se referia ao livro como sendo “a biografia feita pela sra. Jaffé”. Por este motivo, preferimos citá-la sob o nome de Aniela Jaffé, e não de Jung. Sonu Shamdasani expõe todo o caráter problemático desse escrito, que não é uma autobiografia de Jung, no livro que acabamos de referir, como também em um artigo importante publicado no Spring Journal (“Memories, Dreams, Omissions”, in Spring: a Journal of Archetype and Culture, 57 [1995], p. 115- 137). A seguir arrolamos as referências bibliográficas completas que utilizamos: - Obras Completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis: Vozes, 1978-, 18 volumes publicados: * Volume I: Estudos Psiquiátricos * Volume II: Estudos Experimentais * Volume III: Psicogênese das Doenças Mentais * Volume IV: Freud e a Psicanálise * Volume V: Símbolos da Transformação * Volume VI: Tipos Psicológicos * Volume VII: Estudos sobre Psicologia Analítica * Volume VIII: A Dinâmica do Inconsciente * Volume IX-1: Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo * Volume IX-2: Aion. Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo * Volume X: Civilização em Transição * Volume XI: Psicologia da Religião Ocidental e Oriental * Volume XII: Psicologia e Alquimia * Volume XIII: Estudos Alquímicos * Volume XIV: Mysterium Coniunctionis * Volume XV: O Espírito na Arte e na Ciência * Volume XVI: A Prática da Psicoterapia * Volume XVII: O Desenvolvimento da Personalidade * Volume XVIII: A Vida Simbólica Ainda não publicados: Volume XIX (Bibliografia Geral de C.G.Jung) e Volume XX (Índice Geral das Obras de C.G.Jung) - The Collected Works of Carl Gustav Jung. London: Routledge and Kegan Paul, 1953- 1983, 20 volumes. - C.G.Jung: Gesammelte Werke. Olten und Freiburg im Breisgau: Walter-Verlag, 1960- 1983, 20 volumes. - Cartas. Petrópolis: Vozes, 2003, 3 volumes. - Letters. London: Routledge and Kegan Paul, 1973-1975, 2 volumes. - Briefe. Olten und Freiburg im Breisgau: Walter-Verlag, 1972-1973, 3 volumes. - Notes of C.G.Jung’s Seminars (Princeton: Princeton University Press): . Dream Analysis ([1928-1930] 1984) Ed. William McGuire. . Nietzsche’s Zarathustra ([1934-1939] 1988) Ed. James L. Jarret . Analytical Psychology ([1925] 1989) Ed. William McGuire. . The Psychology of Kundalini Yoga ([1925] 1989) Ed. Sonu Shamdasani. . Visions ([1930-1934] 1997). Ed. Claire Douglas (2 vols.) II – Escritos de Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz: - Escritos de Filosofia I. Problemas de Fronteira. São Paulo: Loyola, 1986. - Escritos de Filosofia II. Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988. - Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997. - Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999. - Escritos de Filosofia V. Introdução à Ética Filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000. - Escritos de Filosofia VI. Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 20012. - Escritos de Filosofia VII. Raízes da Modernidade. São Paulo: Loyola, 2002. Aos Escritos de Filosofia acrescentam-se os dois volumes da antropologia vaziana: - Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. - Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992. Os artigos publicados apenas em períódicos constam da Bibliografia Geral a seguir. III – Bibliografia Geral ADORNO, T.W. Negative Dialectics. London: Rouledge and Kegan Paul, 1973. ADORNO, T.W. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995. ANNAS, J. The Morality of Happiness. Oxford: Oxford University Press, 1993. ARISTÓTELES. De l’Âme. (Traduit par Jean Tricot). Paris: Vrin, 2003. ARISTÓTELES. Éthique à Nicomaque. (Traduit par Jean Tricot). Paris: Vrin, 1997. ARISTÓTELES. La Verité des Songes. De la Divination dans le Sommeil (Parva Naturalia 462 b- 464 b). (Traduit du grec et presenté par Jackie Pigeaud). Paris: Payot & Rivages, 1995, p. 57. ARISTÓTELES. O Homem de Gênio e a Melancolia. O Problema XXX,1. 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