UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CAMILA FERREIRA SALES A EXPERIÊNCIA DA ANGÚSTIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA E NA ARTE DA PERFORMANCE Belo Horizonte 2016 CAMILA FERREIRA SALES A EXPERIÊNCIA DA ANGÚSTIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA E NA ARTE DA PERFORMANCE Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Estudos Psicanalíticos Orientador: Prof. Dr. Guilherme Massara Rocha Belo Horizonte 2016 AGRADECIMENTOS Agradeço carinhosamente a meu orientador, Guilherme Massara Rocha, que apostou na proposta incipiente deste trabalho e acompanhou seu desenvolvimento com apontamentos precisos, sempre poderando o equilíbrio entre o rigor teórico de uma escrita acadêmica e a criatividade da qual tal escrita não precisa prescindir. Seu cuidado no trato com o texto foi “suficientemente bom” para que a liberdade de criação tivesse lugar, porém sem desviar. Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de mestrado que viabilizou a dedicação exclusiva a esta pesquisa. Aos professores Oswaldo França Neto, Cristina Marcos e Paulo Vidal, agradeço imensamente às riquíssimas contribuições durante a banca de qualificação. Aos queridos amigos com quem partilho questões psicanalíticas – e outras tantas! Especialmente: Paula Paim, com quem as conversas são sempre intermináveis; Tatiana Sousa Pinto, incentivo constante na minha caminhada dentro da psicanálise; Daniel Good God, amizade preciosa que torna tudo mais leve; Raul Macedo Ribeiro, a quem de prontidão já tornei tão querido (quantos encontros transformadores!); aos colegas do mestrado com quem as trocas foram demasiado gratificantes. Muito obrigada a todos vocês! Às amadas do doce lar, mãe e irmã, indispensáveis na minha trajetória de mestrado e de tudo, agradeço o apoio e carinho, as risadas e os mimos, e principalmente a paciência com a presença impassível de uma mestranda em casa sempre a estudar... À Dinha, rainha, expresso minha imensa gratidão pela disposição incansável em ajudar, ouvir, comparecer, convidar, presenciar e outras tantas simpatias! E a Dorinha, lindíssima, por me acolher em sua casa no primeiro ano do mestrado com tanto sorriso. Agradeço à Vó-dinda por seu amor incondicional, por ser para mim reduto de afeto e afago. Desconfio que as estórias contadas desde a minha infância, associadas à elegância com a qual ela tece seus convívios sociais, são a eterna fonte inspiradora de minha vocação psi. Em tudo que faço reconheço um pouco dela. Aos amigos artistas que souberam acolher minha decisão de abandonar o Teatro Universitário para dedicar mais tempo ao mestrado, sou imensamente grata por me fazerem reconhecer que em todo escrever há um pouco de arte. Os encontros com a professora Denise Pedron foram valiosos para o desenvolvimento deste projeto. Agradeço, enfim, aos professores de psicanálise que foram essenciais nestes dois anos de pesquisa: Andréa Guerra, Jésus Santiago, Antônio Teixeira, Ângela Vorcaro e Gilson Iannini. Aos dois últimos especialmente pela composição da banca de defesa. O artista recriando imagens e objetos continua sendo aquele ser que não se conforma com a realidade. Nunca a toma como definitiva. Visa, através de seu processo alquímico de transformação, chegar a uma outra realidade – uma realidade que não pertence ao cotidiano. Essa busca é uma busca ascética, talvez a do encontro do artista, criador, com o primeiro criador. Renato Cohen RESUMO Sales, C. F. (2016). A experiência da angústia na clínica psicanalítica e na arte da performance. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais. O legado de Freud e Lacan sobre a primordialidade da experiência da angústia na clínica exige que nós, psicanalistas, não recuemos diante de novas investigações sobre este afeto. A importância de avançar na produção teórica a partir de deslocamentos, desafios, interrogações, suspeitas, inquietações e demais variáveis leva à proposição de novos problemas sobre a angústia. No caso desta pesquisa, a inspiração veio da arte da performance cujas especificidades convocaram a usá-la como recurso para pensar o afeto na clínica. O campo das artes oferece um espaço de trânsito para a teoria psicanalítica, o que pode ser bastante fértil para as pesquisas em psicanálise. Cabe, obviamente, respeitar a particularidade epistemológica e metodológica de cada campo de saber, sem que se reduza a arte à psicanálise ou vice-versa. Baseado nisso, o trabalho foi desenvolvido em três tempos. O primeiro consiste na retomada do conceito de angústia em Freud, a fim de verificar em quais pontos ele se relaciona com a dinâmica pulsional em jogo no processo de sublimação. Ao localizar a origem da angústia no trauma do desamparo, pode-se articular tal afeto com a força criativa dos artistas, bem como a identificação do espectador a obras que substancializam de alguma forma esse fator traumático. Num segundo momento, a abordagem da angústia é orientada pela teoria lacaniana e o flerte com a arte se dá pela via dos irrepresentáveis: das Ding e objeto a. A formulação de Lacan sobre das Ding abre possibilidades interessantes para pensar a opacidade da criação artística e a formalização posterior do objeto a. Por fim, a articulação da angústia com a dimensão do corpo leva à observação da performance, em que o apelo à dimensão corpórea convoca um olhar diferente. Talvez um olhar de estranhamento, já que essa figura artística ressalta um corpo mais disforme do que belo, mais real do que imaginário. Um corpo que, se seguirmos as indicações de Lacan a respeito da angústia freudiana, só pode ser Unheimlich. Com isso, conjectura-se que a angústia, ao mesmo tempo um possível motivo da sublimação, aparece como efeito de uma arte cuja notável característica é exatamente a de não apaziguar. Palavras-chave: Angústia. Arte da performance. Sublimação. Objeto a. Corpo. Psicanálise. RÉSUMÉ Sales, C. F. (2016). L´expérience de l’angoisse dans la clinique psychanalytique et dans l’art de la performance. Dissertation de Maîtrise, Programme de Post-graduation em Psychologie, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais. Ce que Lacan et Freud nous a laissé concernant la primordialité de l’expérience de l’angoisse à la clinique, exige que nous, les psychanalystes, ne reculons pas face aux nouvelles recherches sur cette affection. L’importance d’avancer dans la production théorique à partir des déplacements, défis, interrogation, soupçons, inquiétudes, et d’autres variées conduisent à la formulation de nouveaux problèmes sur l’angoisse . Dans ce cas l’inspiration vient de l’art de la performance dont les spécificités ont été convoquées à l’utiliser comme ressources pour penser cette affection dans la clinique. Mais pas seulement cela. Le domaine des arts offre aussi un espace de circulation pour la théorie psychanalytique, ce que peut être bien productif pour les recherches en psychanalyse. Il ne faut que respecter la particularité épistémologique et méthodologique de chaque savoir, sans alors réduire l’art à la théorie psychanalytique et vice-versa. Ayant comme soutient ces prémisses, le travail a été développé en trois parties. La première est la reprise du concept d’angoisse chez Freud, afin de vérifier sur quels points ce concept a un rapport avec la dynamique pulsionnelle en jeu dans le procès de sublimation. Après avoir trouvé l’origine de l’angoisse dans le trauma de la détresse, on peut faire un lien entre cette affection et la force créative des artistes, ainsi que l’identification du spectateur à des performances que substantialisent d’une certaine manière ce fait traumatique. En deuxième partie l’abordage de l’angoisse est dirigé par la théorie lacanienne et le flirt avec l’art se fait par les irreprésentables : das Ding et l’objet a. La formulation de Lacan sur das Ding ouvre des possibilités intéressantes pour penser l’opacité de la création artistique et la formalisation postérieure de l’objet a. Finalement, l’articulation de cette affection avec la dimension du corps nous mène à l’observation de la performance dont l’appel à la dimension corporelle demande un regard différent. Peut-être un regard d’extranéité, puisque la performance fait remarquer un corps plus difforme que beau, plus réel qu’imaginaire. Un corps que, si l’on suit les indications de Lacan en ce qui concerne l’angoisse freudienne, est Unheimlich. Enfin, on conjecture que l’angoisse, au même temps une raison possible de sublimation, apparait aussi comme un effet d’un art dont notable caractéristique n’est pas exactement apaiser. Mots-clés : Angoisse. Art de la performance. Sublimation. Objet a. Corp. Psychanalyse. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9 2 A ANGÚSTIA EM FREUD: SUA INCIDÊNCIA NA CLÍNICA E NA SUBLIMAÇÃO...................................................................................................................... 20 2.1 As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica: a atualidade da miragem freudiana................................................................................................................................. 20 2.2 Metapsicologia freudiana da angústia – parte 1........................................................... 25 2.3 Metapsicologia freudiana da angústia – parte 2........................................................... 37 2.4 A angústia no processo criativo...................................................................................... 46 3 DAS DING E OBJETO A: PERSPECTIVAS DA SUBLIMAÇÃO E ANGÚSTIA EM JACQUES LACAN................................................................................................................ 52 3.1 A sublimação entre a economia pulsional e o ideal social............................................ 55 3.2 O problema da dessexualização da pulsão..................................................................... 62 3.2.1 A origem em das Ding................................................................................................... 65 3.2.2 O campo de das Ding é o menos elevado..................................................................... 72 3.3 A sublimação como operação de opacidade.................................................................. 77 3.4 A angústia lacaniana........................................................................................................ 83 3.5 A anatomia é o destino: o corpo no centro da experiência da angústia e da arte....... 88 4 A EXPERIÊNCIA DA ANGÚSTIA NA ARTE DA PERFORMANCE........................ 93 4.1 Performance: o resgate da liberdade de criação........................................................... 96 4.2 O que não aconteceu (ou: o que retorna)..................................................................... 104 4.3 O que não aconteceu (ou: o corpo real)........................................................................ 109 4.4 A angústia que movimenta o desejo – e a criação....................................................... 115 5 CONCLUSÃO................................................................................................................... 121 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 125 9 1 INTRODUÇÃO “O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais que um palmo diante do nariz” (Freud, Inibição, Sintoma e Angústia) “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas a escuridão” (Agamben, O que é contemporâneo?) No texto A sexualidade na etiologia das neuroses, Freud (1898/1996) critica veementemente os médicos por atribuírem indevidamente a causa das neuroses à hereditariedade e à civilização e por não considerarem, seja por puritanismo ou incredulidade, a participação dos elementos sexuais na etiologia de tais doenças. O argumento de seus colegas é que a ‘doença dos nervos’ acomete especialmente aqueles que têm histórico familiar ou que estão estressados pelo excesso de trabalho. Freud parece impressionado com tamanha ignorância e tenta encorajá-los a largar os preconceitos morais e empreender seus esforços na investigação legítima da vida sexual dos pacientes. Sua aposta é de que uma maior franqueza e tolerância quanto às questões sexuais seriam do interesse de todos. Ele diz: “Isso só pode constituir-se em benefício para a moral sexual. Em matéria de sexualidade, somos todos, no momento, doentes ou sãos, não mais do que hipócritas” (Freud, 1898/1996, p. 254). Diante da hipótese de que o trabalho em demasia é responsável pelo adoecimento, Freud rebate que ninguém se torna neurótico pelo efeito do trabalho ou agitação; pelo contrário: “o trabalho intelectual é, antes, uma proteção contra a neurastenia” (Freud, 1898/1996, p. 259). Os mais incansáveis trabalhadores intelectuais são os que mais escapam à neurose. Imagina-se a surpresa do leitor quando ele recomenda aos médicos que esclareçam aos que se queixam do esgotamento pelo trabalho que eles adoeceram “não por terem tentado executar suas tarefas facilmente realizáveis por um cérebro civilizado, mas porque, durante todo o tempo, negligenciaram e prejudicaram flagrantemente sua vida sexual” (p. 259). A classe médica está na mira das contestações de Freud contra a negligência de assuntos tão importantes como a masturbação, o uso de anticoncepcionais e a vida sexual conjugal. Todas as evidências sobre a participação desses fatores na causalidade das neuroses eram absorvidas por uma moral sexual civilizada (Freud, 1908). E Freud não poupa esforços para defender que os neuróticos são apenas “pessoas sexualmente aleijadas” (Freud, 1898/1996, p. 261). 10 No contexto dessa defesa, podemos escutar uma indicação preciosa da relação, que ficará mais clara ao longo do tempo, entre o trabalho – especialmente o intelectual – e a doença. O primeiro, que irá se definir como uma das formas de sublimação, é uma proteção contra a neurose por ser um investimento da energia sexual inutilizada nas finalidades diretas. A verdadeira causa etiológica da doença é o acúmulo de libido não empregada, e não o excesso de trabalho. Logo, se Freud já vislumbra aqui, em meados da década de 90, uma função específica para a atividade sublimatória, trata-se de uma proteção contra o adoecimento neurótico, uma saída para a inibição do uso da energia sexual. Tal relação leva a um segundo ponto: esta energia, quando acumulada, gera angústia. Os textos dessa mesma época também vão declarar que a excitação sexual somática não descarregada é a etiologia da neurose de angústia. Isso significa que a sublimação também se apresenta como solução para a angústia? Se ela protege contra a neurose, pode-se conjecturar que ela serve de proteção também para a angústia, por não deixar a energia sexual se acumular, desviando-a para a atividade do intelecto? A hipótese que originou a pesquisa parte deste problema essencialmente econômico: a sublimação e a angústia estão intimamente relacionadas, a primeira servindo de escoamento para a segunda. A prática clínica conjugada com tais elementos teóricos levou então à inspiração da pergunta: a sublimação pode se apresentar como saída clínica para a angústia? Em outros termos, há um caminho que vai da estática à estética, do movimento zero causado pelo excesso de angústia que paralisa o sujeito, deixando-o inerte com relação a suas próprias chances de escolha, em direção ao movimento pulsante de uma criação estética? Não é estranho que a angústia se apresente como motivo da sublimação, uma vez que esta tem, como aponta Guilherme Massara Rocha, a importância de se servir como “um operador maior da redefinição dos destinos pulsionais e das escolhas desejantes que decorrem da subjetivação do desamparo original” (Rocha, 2010, p. 21). Ou, como comenta Ernani Chaves, “para Freud, a criação artística é sinônimo de ‘metamorfose’” (Chaves, 2015, pp. 16- 17). A sublimação, afinal, é o conceito mais nobre da teoria freudiana para pensar os destinos do conflito psíquico. Essa primeira interrogação de pesquisa levou ao esboço de um título cujos rastros ainda se farão vistos ao longo do texto, mesmo após sua substituição: “Entre a estática e a estética: possíveis destinos para a angústia”. No entanto, se por um lado a fluidez dos afetos no contexto clínico se apresenta inicialmente como saída desejável – desejável talvez por participar, em algum momento, do desejo do analista – por outro lado o exame mais detalhado 11 das vertentes da angústia nas teorias freudiana e lacaniana mostram a impossibilidade de levar a cabo essa hipótese. Porque o que se depreende de tais formalizações é que a angústia é ela mesma o destino. Esse ponto é essencial, pois causa uma torção na maneira de lidar com o afeto na clínica. Por exemplo, em Freud a angústia ganha, em 1926, o estatuto de afeto-sinal que influencia o mecanismo do recalque para a manutenção das taxas homeostáticas de energia psíquica. Ela adquire a importância de ser um sinalizador do perigo e, junto ao recalque, impedir o extravasamento de excitação no aparelho psíquico. A inflexão freudiana consiste justamente em ver a angústia não mais como adoecimento, neurotização, decorrente do acúmulo de energia sexual não descarregada (conforme os textos da década de 90). Ela se torna, antes, um afeto primordial na conjuntura psíquica, especialmente com o advento do eu: “o Eu é a genuína sede da angústia” (Freud, 1926/ 2014, p. 22). O que leva até mesmo a crer na neurose como saída desejável, como se não se tratasse mais de uma patologia (conforme o texto de 1895 citado acima), mas uma solução para lidar com algo mais arcaico: o trauma. A neurose, tal qual a angústia, se torna um destino para o desamparo. Na última conferência sobre a angústia, Freud (1933/1996) diz: “o que é temido, o que é objeto da angústia, é invariavelmente a emergência de um momento traumático, que não pode ser arrostado com as regras normais do princípio do prazer” (pp. 96-97). Também com Lacan é preciso indagar se a angústia não se oferece mais como destino do que propriamente como algo do qual o sujeito tem que se livrar. Pois se ela não tem a função de avisar um perigo, como Freud passou a afirmar em 1926, não é por isso que ela pode ser dispensada como sinal. A angústia serve, sim, de sinal: esse sinal “é da ordem da irredutibilidade do real” (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 178). Sua incidência deve ser apreendida no lugar vazio da estrutura – lugar de hiância, de fissura, de falta – na esteira do que Lacan diz a respeito do desejo: “Para dizê-lo elipticamente: que o desejo seja articulado é justamente por isso que ele não é articulável” (Lacan, 1960/ 1998, p. 819). A angústia na análise vetoriza o desejo. Donde se apreende sua função essencial de orientar a clínica, especialmente a contemporânea. Há hoje uma proliferação de supérfluos, dentre os quais se destacam os produtos da indústria farmacêutica, que prometem aos indivíduos rápida e fácil escapatória para o mal- estar que a angústia provoca. A psiquiatria rapidamente submete esse afeto ao programa de cura enquadrado nos manuais, assegurando o apaziguamento imediato daquilo que incomoda. Porque, é claro, a angústia incomoda. Como sugere Gilson Iannini, “os acontecimentos recentes mostraram que preponderou a solução paranoica da forclusão narcísica do vazio, com 12 os resultados nefandos de violência arrogante, etc.” (Iannini, 2004, p. 83). Ignorar a angústia, porém, não garante que ela não retorne por outra via (do real?), como a ciência e o direito estão aí para mostrar 1 . Sônia Leite (2011) explica que a angústia é real, ou seja, existe uma urgência na angústia que faz com que o paciente busque rapidamente o alívio para aquilo que invade seu corpo. “É o corpo que, em sua materialidade, se manifesta, grita” (Leite, 2011, p. 8). Por isso os pacientes recorrem à medicina com a impressão de que somente a prescrição medicamentosa será capaz de curar esse sofrimento. O que Freud (1895) nomeava como neurose de angústia, calcando o tratamento analítico sobre a via da transferência, tal como nas demais neuroses, a psiquiatria define como transtornode ansiedade, diagnóstico que inclui os ataques de pânico e a ansiedade generalizada (Leite, 2011). O que a psicanálise pode responder diante desse inquietante cenário? Cabe a ela ir de encontro com uma racionalidade que persiste em bloquear a angústia – e com ela o desejo, a falta, a castração, a produção subjetiva, a arte de cada um, enfim. Lacan propõe o atravessamento do fantasma, passando pela angústia, pois só nessa direção é possível ao sujeito colocar em causa seu desejo. Se ela faz parte da dialética do desejo, tratá-la por meio de psicofármacos é o mesmo que calar o sujeito. A proposta enunciada já em Freud, e que ganha novo elán com Lacan, é que a angústia não deve ser colocada no rol dos sintomas a serem eliminados, mas, ao contrário, é essencial que ela apareça no circuito analítico. Ela é, para a psicanálise, um mal (estar) necessário. É possível que nesta mesma direção se engaje a arte, em especial a contemporânea, na despatologização desse afeto para reinseri-lo em outro lugar no discurso – ou, como diz Freud (1900), em outra cena. Algumas obras artísticas parecem denunciar a forclusão do vazio ou o excesso de gozo que tampona a falta: Trata-se de discernir no espaço rarefeito e heterogêneo da arte contemporânea aqueles objetos que se impõem pelo que deles subsiste como matéria bruta e intensa, refratária ao serviço dos bens do capitalismo tardio e ao cânone legitimador da crítica especializada, mas que principalmente, impõe-se ao artista para além dele próprio (Iannini, 2004, p.86). Talvez por isso possamos dizer que tais objetos não são propriamente uma representação da realidade, como na estética clássica, e sim que eles mostram a inoperância do 1 Antônio Teixeira (2010), numa discussão sobre o filme “Laranja Mecânica”, dirigido por Stanley Kubrick, aponta um “parasitismo da lei pela mecânica” (p. 221). Quando o poder político se reduz a uma administração mecânica das regras, nos moldes da ciência moderna, apagando a dimensão da exceção, “o que se assiste é o retorno catastrófico, no real, da figura de exceção que se tentou suprimir” (p. 221). 13 conceito para representar a realidade. Ou seja, eles denunciam que nem tudo pode ser dito ou representado. Como defende Rocha, a arte a partir de Duchamp foi destituída da primazia do par imagem-sentido, causando a retração do domínio do imaginário e introduzindo a dimensão do real ao deslocar objetos da cena cotidiana para o espaço estético. Com isso, advém o informe, a subjetivação do estilo e a dissolução da fronteira entre obra e artista: Se a ciência moderna consiste, pode-se dizer, num certo esforço de tratamento do real pelo simbólico, servindo-se, para tanto, das armas da linguagem, a arte informada cientificamente de Duchamp sela um esforço de tratar o simbólico pelo real. Servindo-se, para tanto, da potência desestabilizadora das coisas (Rocha, 2008, p. 55). Ora, a angústia não é justamente o afeto que tem a potência de desestabilizar, uma vez que ela denuncia a falha na representação e sinaliza o real, como visto acima? Talvez seja este o passo para pensar o estranhamento causado por algumas obras, que parece advir não da representação da realidade, e sim da mostração de algo passível de gerar angústia. O discurso sobre a obra é esvaziado de densidade, não visa à afirmação de uma positividade conceitual. Ressalta, pelo contrário, a negatividade essencial da obra. Negatividade que já se estampa no processo sublimatório – como veremos em Lacan no Seminário, livro 7: A Ética da Psicanálise (1959-60/ 2008) com o conceito de das Ding – e atravessa as obras por ele forjadas. Desse modo, os objetos estéticos podem ser vistos como objetos pulsionais (Safatle, 2006) que interrogam o sujeito mais do que o apaziguam, evidenciando sua divisão constitutiva. Com isso é possível afirmar: longe de ser uma solução para a inquietação da angústia, a arte contemporânea proporciona, pelo contrário, a própria inquietação. A arte da performance foi eleita como recurso para pensar essa inquietação por torná-la mais evidente, uma vez que é o corpo que está em causa. Corpo que, como diz Sônia Leite (2011), tem relação estreita com o afeto da angústia. Cohen (2013) define a performance da seguinte maneira: “a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro ao vivo, já poderia caracterizá-la” (p. 28). Sua origem se localiza nas artes plásticas e no teatro, visto que ela advém da body art cujo princípio é fazer do artista sujeito e, ao mesmo tempo, objeto de arte, transformando-o em atuante, em escultura viva. É interessante observar o impacto que as performances contemporâneas causam no público. Não há quem não se afete, seja pela via do choque ou indignação, acompanhados da tão frequente pergunta mas isto aí é arte?, seja pela apreciação que também não deixa de causar, por vezes irreconhecivelmente, um certo estranhamento. Marina Abramovic, artista em 14 destaque nesta pesquisa, conta que se cansou de ouvir do público a pergunta “Por que isso que você faz é arte?”2. Não precisaremos repetir a pergunta aqui. O interesse da pesquisa é antes: “Por que vamos fazer dessa arte específica um motivo da pesquisa em psicanálise?”. Lacan, bem como Freud, não poupavam esforços em recorrer à arte como possibilidade de apresentação de seus conceitos. É assim que Lacan interpreta, no Seminário, livro 10: A Angústia (1962-63/ 2005), a escolha literária de Freud para falar do estranho, fenômeno considerado por Lacan paradigmático da angústia: “Não é a toa que Freud insiste na dimensão essencial dada pelo campo da ficção a nossa experiência do unheimlich. Na vida real, este é fugidio demais” (p. 59). No ensaio sobre a “Gradiva” de Jensen, de 1907, primeira análise de Freud sobre uma obra literária, ele compara o escritor criativo ao cientista dizendo que não cabe apenas a este último a tarefa de investigar os estados mentais patológicos. A descrição da mente humana é o campo mais legítimo do escritor: “desde tempos imemoriais ele tem sido um precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica” (Freud, 1907/ 1996, p. 47). Em seguida, afirma que não é a imaginação do artista a respeito do delírio e dos sonhos que deve ser posta à prova pelo exame científico, mas o inverso: “é a ciência que não resiste à criação do autor” (p. 54). Para Freud, o escritor preenche as lacunas deixadas pela ciência. Este endereçamento aos créditos do artista Lacan (1965/2003) o repete numa homenagem prestada a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de Lol V. Stein, ao dizer a respeito do analista: “...em sua matéria o artista sempre o precede...” (p. 200). Em matéria de corpo é possível que o artista também esteja bem à frente do analista. E se a angústia é um sentimento que afeta o corpo, nada melhor do que verificar na performance onde podemos aprender sobre ela. A performance apresenta a característica específica de mostrar uma certa duplicidade: o corpo é sujeito e objeto da obra ao mesmo tempo. Como explica Tracy Warr (2000), “rijo ou abatido, pelado ou pintado, parado ou em espasmos: o corpo é apresentado sob todos os pretextos (...). Superando as barreiras entre arte e vida, experiências visuais e sensuais, esses artistas representam bem a sensação de angústia e a desorientação individual do fim do século XX” (p. 1)3. Os artistas não apenas apresentam algo com o corpo como também se deixam 2 Documentário produzido pela HBO em 2012: “Marina Abramovic: The Artist is Present” (direção de Matthew Akers). 3 No original: “Bound or beaten, naked or painted, still or spasmodic: the body is presented in all possible guises (…) Breaking down the barriers between art and life, visual experience and sensual experience, these artists well represent the sense of angst and individual disorientation at the close of the twentieth century” (Warr, 2000, p. 1) 15 afetar por aquilo que o próprio corpo diz no momento da cena e também pelo que o público confere à obra. O questionamento que levou alguns artistas a subverter as formas estáveis de representação do corpo e inserir as dimensões do informe, temporalidade, contingência, instabilidade, dentre outras, foi o que impulsionou a arte da performance. O uso do corpo num lugar fora do habitual, como parte do movimento de levar a arte das galerias aos espaços mais inusitados, ao mesmo tempo em que aproximava a arte da vida real, provocava agora um estranhamento na maneira de ver a própria realidade. Um certo resgate – talvez à maneira freudiana – das dimensões esquecidas do risco, da morte, do perigo, da sexualidade, do onírico, etc. (ver capítulo 3). Inserir a experiência da performance numa pesquisa em psicanálise pode parecer, contraditoriamente, reducionista. De fato, se essa forma artística tem algo a dizer é exatamente que esse algo não pode ser dito. O corpo é apresentado em sua materialidade e é pela via da transmissão sem significante que aparece o enigma. Porém, se a linguagem é marcada pelo embaraço, não é por isso que se deve abster de encontrar nela a chance de simbolizar. Não se trata de uma exclusão da atividade simbólica, mas “de saber formalizar, graças à letra, um limite que aparece através da ação da simbolização própria ao significante” (Safatle, 2006, p. 39). Desse modo, pensar a arte como recurso para elucidar certos fenômenos da clínica pode indicar uma saída desejável diante da limitação do conceito, já que ela “se furta a uma conceitualização total de seu significado” (Freitas, 2008, p. 9). Ou seja, a arte conserva o elemento de opacidade sobre o qual sua própria atividade se constrói, resistindo à totalização simbólica, oferecendo-se como recurso ou “como suplemento às rasuras do discurso argumentativo” (Iannini, 2004, p. 770). Ednei Soares (2010) defende que o recurso à estética permite “uma formalização capaz de suportar a especificidade do objeto com que a psicanálise lida em sua clínica. Especificidade esta que a formalização conceitual não consegue abranger” (p. 246). A distinção entre tratamento conceitual e formalização condiciona a separação entre o positivismo científico e o recurso estético: enquanto a ciência trata a perda do objeto como impotência, dada a falibilidade do conceito, a estética atua exatamente sobre a formalização dessa impotência. A experiência da arte, portanto, permite “circunscrever o espaço epistemológico particular da psicanálise” (p. 247). Do mesmo modo que a experiência subjetiva do desejo inconsciente apresenta sua negatividade, a formalização do objeto em detrimento de uma conceitualização na 16 reflexão lacaniana sobre as artes se dá com o intuito de descobrir novas formas de subjetivação que abarquem essa experiência na clínica psicanalítica (Soares, 2010, p. 254). A respeito do método de pesquisa em psicanálise, Jéferson Pinto defende que “se a psicanálise é, ao mesmo tempo, teoria, técnica e método de investigação, sua descrição já traria intrinsecamente uma maneira de produzir saber, seja na clínica, na Academia ou mesmo na polis” (Pinto, 2001, p. 78). Para o autor, o que está em jogo na vocação científica da psicanálise é a formalização: esta já é, em si, a descrição do método e segue a lógica do discurso do analista, que faz produzir um significante mestre a partir da causa do desejo. Assim, o método se regula junto à formalização clínica, ambos fundamentados na premissa de que a divisão do sujeito é o que define a especificidade do campo psicanalítico. O autor lembra que na clínica a produção de saber passa pelo confronto com o objeto que é, a princípio, obstáculo, e que pelo processo de análise torna-se causa do desejo (objeto a). Cabe ao ato analítico vincular a causa ao desejo, o que se dá por meio de uma diminuição do excesso pulsional pelo significante. A transferência é, portanto, o que difere o método da psicanálise das outras ciências, “pois faz incidir o sujeito da enunciação dentro do saber que, inevitavelmente, o exclui como singularidade” (Pinto, 2001, p. 80). Pinto (2001) diz que, através do ato, o gozo é fixado pela ação significante e dessa operação extrai-se o objeto, o que impede o sujeito de ser representado pela linguagem. Ou seja, “caberia à análise confrontar o sujeito com essa mobilidade pulsional, fazendo com que um significante diminua sua intensidade repetitiva” (Pinto, 2001, p. 82). A técnica psicanalítica consiste, pois, em fazer circular aquilo que se apresenta como “inércia simbólica” (p. 82) visando o contingente, o que abre a via para “outras possibilidades de significação, de outros trilhamentos para escoamento de energia” (p. 82). Essa marca do contingente, da impossibilidade de antecipar o efeito do ato analítico, é o obstáculo para explicitar o método da psicanalise, mas é também o que demarca a inclusão do singular no seu campo de pesquisa. Isso significa que a pesquisa em psicanálise deve preservar a dimensão da contingência para que o sujeito emerja. Lacan (1966/1998) deixa claro que a psicanálise está dentro da ciência – já que seu sujeito é correlato ao sujeito da ciência – porém instaura um novo campo fora dela onde a relação com o objeto estabelece uma mudança radical. Ao inserir em seus pressupostos epistemológicos a noção de objeto a, a partir do seminário sobre a angústia, Lacan inclui a dimensão de real que a ciência ignora. Assim, é a distinção entre saber e verdade que marca a especificidade do campo psicanalítico. 17 Para Lacan (1966/1998), é a lógica que define o sujeito da ciência, e se a lógica moderna tenta suturar esse sujeito, aí está o fracasso da ciência, na impossibilidade de fazer essa sutura. A psicanálise, por sua vez, na relação que estabelece com o objeto a, evidencia a divisão estrutural do sujeito, separando o saber da verdade. “O sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto” (p. 875). É pelo reconhecimento da impossibilidade de instituir um saber totalizante sobre o objeto que a psicanálise rompe com a ciência ao colocar a verdade não mais do lado do saber, mas do lado da causa. Em suma, enquanto a ciência forclui a dimensão da verdade como causa, a psicanálise nela se sustenta para erigir seu saber – saber não-todo porque incide sobre o real. A psicanalise é, pois, “uma ciência possível do real. Uma ciência que não forclui a presença do sujeito, mas, ao contrário, a considera como condição de possibilidade da própria ciência” (Guerra, 2001, p. 131). A teorização de Lacan sobre a angústia permitiu não apenas avançar no trato clínico com esse afeto, mas também pensar a especificidade da psicanálise como ciência, dada a delimitação do objeto da psicanálise, objeto a. Isso implica que a falta é incluída na pesquisa em psicanálise, bem como o afeto da angústia tem lugar na vida do pesquisador. Enquanto a ciência ignora a angústia do pesquisador, impondo como condição de seu funcionamento a neutralização da relação entre ele e seu objeto, a psicanálise convoca justamente a parcialidade que se dá por meio do que ela chamou de transferência. A direção do tratamento deve incluir a dimensão do afeto que o analista é responsável por provocar no paciente, por meio de seu desejo. Como afirma Lacan (1962-63/2005): “a angústia da qual temos que fornecer uma formulação aqui é uma angústia que responde a nós, uma angústia que provocamos, uma angústia com a qual, de vez em quando, temos uma relação determinante” (p. 68). A ciência, ao eliminar a singularidade, acaba por denegar também a angústia do pesquisador. Éric Laurent (2011) comenta que Lacan interroga essa suposta neutralidade ou indiferença do cientista e coloca em questão a manifestação subjetiva com a qual ele tem que se haver em sua atividade, que é exatamente a sua angústia. O autor traz o exemplo da angústia dos biólogos e físicos ao produzirem armas de destruição em massa, como Robert Oppenheimer, físico que participou da invenção da bomba atômica à época da Segunda Guerra Mundial. O excesso de angústia chega a beirar a loucura, como diz Lacan (1966/1998): “existe o drama, o drama subjetivo que cada uma dessas crises custa. Esse drama é o drama do cientista. Tem suas vítimas, das quais nada diz que seu destino se inscreva no mito de Édipo” (p. 884). 18 O domínio da arte, diferentemente da ciência, parece ter com a psicanálise a afinidade de se estruturar sobre a opacidade do saber. Daí a proposta de promover o diálogo entre esses dois campos a partir da definição do estatuto do objeto a, que deve ser vislumbrado não do lado saber, mas da verdade. Lacan (1959-60/2008) diz que a ciência é um discurso que nega a Coisa. Enquanto a arte opera com a Verdrängung (recalque) da Coisa e a religião com a Verschiebung (deslocamento), na ciência o que predomina é a Verwerfung ou negação. “O discurso da ciência rejeita a presença da Coisa, uma vez que em sua perspectiva se delineia o ideal do saber absoluto” (p. 160). Se a arte se organiza em torno do vazio, a ciência, investida no ideal do saber absoluto, nega o vazio. Assim, ainda que a ciência também possa ser considerada um campo de criação 4 , o cientista pode ser imaginado como um personagem vendado diante da angústia e afoito a desvendar todo o saber sobre o objeto. Ao contrário, o artista preserva, no material estético, a comunicação com o vazio. A opacidade do objeto é encontrada tanto na arte quanto na psicanálise. Pergunta-se, a partir disso: a angústia serve para a produção artística, assim como para a clínica psicanalítica, como vetor do desejo? Será esse corpo disforme da arte da performance o sinal de uma falta a qual estamos por demais acostumados a tamponar? O objeto estético exibe, de alguma maneira, o retorno do real? E será que isso pode dizer algo sobre o desejo de quem o produz e de quem o assiste? Tais questões lançam à investigação teórica aqui apresentada em três capítulos. O primeiro consiste na retomada do conceito de angústia em Freud, a fim de verificar em quais pontos ele se relaciona com a dinâmica pulsional em jogo no processo de sublimação. Ao localizar a origem da angústia no trauma do desamparo, abre-se uma via de investigação para pensar a articulação desse sentimento primário com a força criativa dos artistas, bem como a identificação do espectador a obras que substancializam de alguma forma esse fator traumático. Num segundo momento, a abordagem da angústia será orientada pela teoria lacaniana e o flerte com a arte se dará pela via dos irrepresentáveis: das Ding e objeto a. A formulação de Lacan sobre das Ding abre possibilidades interessantes de pensar a opacidade da criação artística e a formalização posterior do objeto a no seminário sobre a angústia. Se a palavra é 4 Deleuze (1987/ 2013) defende: “Não vejo uma oposição entre as ciências e as artes. (...) Um cientista, não é complicado, é alguém que inventa ou que cria funções” (p. 390) 19 insuficiente para representar tanto o afeto da angústia quanto a operação de sublimação, a obra de arte se oferece como recurso privilegiado ao apresentá-los. Com base na afirmação de Tânia Rivera de que “a performance deve explicitar uma reflexão poética que se engate na fugidia condição do sujeito na contemporaneidade” (Rivera, 2013, p. 24), o terceiro capítulo se tece em torno dessa forma artística, especificamente. O aspecto de enigma que a performance causa ao deslocar o sentido, o interpretável, para uma vertente mais sensível da apresentação, com seu apelo à dimensão do corpo, tem aqui todo o interesse. A angústia, ao mesmo tempo um possível motivo da sublimação, aparece também como efeito de uma arte cuja notável característica é não apaziguar. Não apaziguar, embora possibilite alguma escritura sobre o real. É o que a arte faz de melhor. Como sugere Vladimir Safatle, ela permite a passagem da impotência ao impossível, pois “o impossível é o lugar para onde não cansamos de andar, mais de uma vez, quando queremos mudar de situação. Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível” (Safatle, 2015, p. 44). 20 2 A ANGÚSTIA EM FREUD: SUA INCIDÊNCIA NA CLÍNICA E NA SUBLIMAÇÃO “Há bem mais continuidade entre vida intrauterina e primeira infância do que nos faz crer a notável ruptura do ato do nascimento” (Sigmund Freud, Inibição, sintoma e angústia) 2.1 As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica: a atualidade da miragem freudiana Na conferência de abertura do Segundo Congresso de Psicanálise, realizada em Nurembergue em março de 1910 e cujo texto foi posteriormente publicado com o título As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, Freud declara: Embora sejam poderosos os próprios interesses e emoções dos homens, não obstante o intelecto também é um poder – um poder que se faz sentir não imediatamente, é verdade, mas sobretudo, seguramente, no fim. As mais ásperas verdades, finalmente, são ouvidas e reconhecidas, depois que os interesses que se feriram e as emoções que se instigaram tiveram exaurido a própria fúria. Tem sido sempre assim, e as verdades indesejáveis que nós, psicanalistas, temos a dizer ao mundo, contarão com o mesmo destino. Apenas não acontecerá muito depressa; devemos ser capazes de esperar (Freud, 1910/ 1996, p. 153). Dez anos após a publicação da Interpretação dos Sonhos (1900), Freud estava claramente otimista quanto ao futuro da psicanálise. Diante de um público formado em sua maioria por médicos que se dividiam entre aqueles que apoiavam a psicanálise e outros que a atacavam com veemência, Freud não vacilava em sustentar o sucesso da técnica psicanalítica e os avanços no conhecimento desta nova ciência. Superadas as resistências emocionais provenientes das feridas que as “verdades indesejáveis” proclamadas pela psicanálise deixariam no ego de seus ouvintes e leitores, Freud acreditava que a disciplina por ele inaugurada seria devidamente reconhecida. Isso significaria a vitória do intelecto sobre a emoção. Ou seja, para Freud (1910/ 1996) todo o rechaço contra a psicanálise era proveniente de uma única fonte: a “fúria” oriunda da resistência em admitir a origem sexual infantil e a determinação do inconsciente na vida psíquica. Tais “verdades indesejáveis”, porém, dizem respeito não apenas ao recalcado inconsciente de cada sujeito, mas às mazelas que a sociedade impõe sobre os homens. O impasse que Freud coloca nos termos intelecto versus emoção talvez possa ser compreendido como uma inversão: o intelecto – e seu valor de verdade – que a psicanálise revela é a própria emoção uma vez recalcada e que se inscreve na vida do sujeito através de sintomas diversos. Impedida de ser descoberta, essa emoção passa por uma série de defesas egóicas que não 21 deixam de ser, à maneira do sintoma obsessivo, racionalizações. Ou seja, a fúria com a qual a sociedade enfrenta a psicanálise é exatamente a defesa, sob a forma de um discurso racional (logo, de origem intelectual), que ofusca no homem seus maiores desejos. Se a sociedade trava um embate tão compacto contra o “intelecto” das descobertas psicanalíticas é porque ela se defende obsessivamente não do conhecimento intelectual, mas do reconhecimento do vasto campo de emoções que subjaz nas relações entre os homens. O “poder do intelecto”, defendido por Freud, não significa outra coisa que a aceitação de todo o não-intelecto que a psicanálise é capaz de revelar, após uma longa batalha contra as resistências inconscientes. Até hoje vemos que a receptividade da psicanálise, seja na cidade, na ciência, na política ou na academia, não se dá sem fúria ou resistência. Borbulham argumentos para combater sua validade teórica ou eficácia clínica, que vão desde a crítica histórica à referência exclusivamente sexual da abordagem freudiana e à postura estritamente silenciosa do analista, até as acusações mais recentes do hermetismo de Lacan e outra centena de argumentos de uma fertilidade imaginária digna de nota. Não cabe aqui entrar no mérito dessa discussão; as querelas contra a psicanálise estão mais que difundidas no cenário cotidiano. Vale apenas lembrar que, ainda que a questão do estatuto científico da psicanálise seja irresoluta e envolva uma série de pressupostos epistemológicos controversos, temos na prática clínica o alicerce para pensar a psicanálise como uma disciplina com método e teoria próprios, como vimos na introdução deste trabalho. No entanto, para além da discussão da legitimidade da psicanálise como ciência, Freud (1910/1996) parece denunciar algo mais arcaico: as “verdades indesejáveis” que ela tem a revelar são aquilo que a sociedade prefere manter escondido, qual seja, os “efeitos danosos e deficientes” (p. 153) que a civilização sabe (porém sem querer saber) serem por ela mesma provocados. O mal-estar na civilização – tema sobre o qual Freud se debruçou especialmente em 1930, porém já anunciado pontualmente em toda sua obra – é a faceta patologizante causadora de neuroses que a própria sociedade prefere ignorar. Em outros termos, denunciar o mal-estar social tem como efeito, paradoxalmente, a desestabilização do status quo que engaja os indivídios na crença coletiva do bem-estar. Como Freud (1910/1996) o diz: “Porque destruímos ilusões, somos acusados de comprometer os ideais” (p. 153). Embora seja curta, esta conferência pronunciada em 1910 ainda nos fornece alguns elementos importantes para introduzir este primeiro capítulo cujo tema é angústia e sublimação em Freud. Nela encontramos o alerta de que a técnica psicanalítica deve se adaptar à especificidade tanto da “natureza da doença” quanto das “tendências instintivas 22 predominantes no paciente” (Freud, 1910/1996, p. 151). Em se tratando de pacientes fóbicos, por exemplo, deve-se ter um cuidado para não destituir de vez os sintomas que são prejudiciais, assim como em toda neurose, mas que cumprem, por outro lado, uma certa função de proteção. Por isso, Freud (1910/ 1996) recomenda cautela: Não se pode ser bem-sucedido, por certo, em persuadi-los a abandonar suas medidas protetoras e a trabalhar, sob a influência da ansiedade, desde o início do tratamento. Deve-se, portanto, auxiliá-los ao interpretar-lhes o inconsciente, até que possam tomar uma decisão, sem a proteção de sua fobia e sem que se exponham a sua ansiedade já grandemente mitigada. Somente depois de assim procederem, o material torna-se acessível, e, uma vez dominado, conduz à solução da fobia (p. 151). Percebe-se a destreza de Freud em orientar os analistas no sentido de um uso adequado da técnica. Ele volta a insistir nesse cuidado em Sobre Psicanálise “Selvagem” (1910b/2013), ao advertir seus colegas quanto a uma possível precipitação na técnica da interpretação, sem que se tenha bem estabelecida a transferência e “antes que o paciente mesmo se avizinhe, mediante preparação, daquilo que foi por ele reprimido” (p. 331). Pois é prejudicial à análise que o paciente seja totalmente tomado pela angústia, ao ponto de paralisar sua fala. É preciso um certo tempo para que ele possa se desfazer da necessidade do sintoma e assim, com um grau menor de angústia, o material inconsciente do conflito se torna acessível. Isso significa que sem o sintoma, especialmente o fóbico, o sujeito fica inerte ou estático com o excesso de angústia outrora canalizada para tal sintoma. Por isso este lhe serve de proteção, da qual deriva o ganho secundário em contrapartida aos prejuízos da doença. Logo, a direção freudiana do tratamento é que se vá aos poucos desconstruindo as defesas à medida que o laço transferencial se solidifica. Com isso, perguntamos: há uma dosagem adequada de angústia que condiciona o tratamento, acima da qual se torna impossível a associação livre do paciente – uma certa estática do movimento da fala – mas também abaixo da qual nenhuma análise funciona? O que a clínica mostra é que um sujeito angustiado pode produzir importante material, a depender de como o analista conduz esse afeto. Isso nos coloca diante da exigência de refletir a angústia para além do teor quantitativo, tomando-a numa perspectiva qualitativa, o que Freud fará em 1926. Antes de chegar lá, retomando a conferência de 1910 – sobre a qual nos debruçamos aqui talvez até mais que o necessário, mas justificados pelo no interesse de esmiuçar as indicações preciosas que ela contém – encontra-se um ponto de objeção frente a todo o anterior entusiasmo freudiano quanto à solução da neurose através da psicanálise. Freud pergunta se é mesmo preciso curar a neurose. Em suas palavras: 23 Existe alguém entre os senhores que, alguma vez, não examinou a causalidade da neurose, e não teve de admitir que esse era o mais suave resultado possível da situação? E dever-se-iam fazer tais pesados sacrifícios, a fim de erradicar as neuroses, em especial, quando o mundo está cheio de outras misérias inevitáveis? (Freud, 1910/1996, pp. 155-156). É fascinante a disposição incansável de Freud para interrogar a própria teoria e colocar em xeque a validade de suas conclusões tanto teóricas quanto práticas. Aqui, ele traz na pergunta uma preocupação ética: enquanto há tantas misérias no mundo (caberia perguntar: de que ordem seriam essas misérias às quais ele se refere?) será mesmo correto prosseguir com esse investimento tão árduo contra a neurose? Dos males, talvez ela seja o menor... Porém, ele mesmo vai responder depois que se a neurose tem a vantagem de ofuscar os desejos mais primitivos do homem e livrá-lo do conflito entre tais desejos e a moral social, legando ao sujeito aqueles famosos ganhos secundários da doença, ela é, não obstante, “prejudicial aos indivíduos e, igualmente, à sociedade” (Freud, 1910/ 1996, p. 156). Portanto, se por um lado o analista deve se desincumbir do papel que Freud ironicamente chama de “fanático por higiene” (p. 155), por outro é necessário reconhecer que a psicanálise tem uma tarefa importante no espectro da vida individual e também social. Disso decorre que a psicanálise deve vislumbrar um destino melhor que as neuroses. O foco de Freud não era exatamente eliminar os sintomas – o que foi, aliás, o pilar sobre o qual se ergueu a psicanálise em sua diferença da psiquiatria, donde no analisar das histéricas alguma coisa foi escutada para além de sua simples correção biológica; e mesmo depois, na mudança do método da chaminé para a associação livre, o que fez bascular o efeito de uma eliminação momentânea do sintoma histérico à elaboração dos conteúdos inconscientes então descobertos 5 . No entanto, se não se tratava de sumir com o sintoma, não é por isso que Freud se desobrigava de pensar um melhor uso das forças investidas (e desperdiçadas) no mesmo. Prova disso é o modo como ele termina sua conferência: Acima de tudo, porém, todas as energias que se consomem, hoje em dia, na produção de sintomas neuróticos, que servem aos propósitos do mundo da fantasia, isolado da realidade, ajudarão, mesmo que não possam ser postos de imediato em uso na vida, a fortalecer o clamor pelas modificações, em nossa civilização, através das quais, unicamente, podemos procurar o bem-estar das gerações futuras (Freud, 1910/ 1996, p. 156). Ora, seria plausível ler nesse trecho uma certa alusão à sublimação? O que seriam essas mt odificações em prol do bem-estar social senão uma transformação da pulsão, outrora 5 A descrição minuciosa desses movimentos, tanto de inauguração da psicanálise quanto da mudança da técnica psicanalítica, pode ser lida em A História do Movimento Psicanalítico (Freud, 1915). 24 investida no sintoma, pela via sublimatória? Freud não deixa isso claro no texto, mas toda a teoria freudiana da sublimação permite afirmar que há algo melhor a se fazer com a pulsão do que um sintoma neurótico. De um lado, há o adoecimento, a neurose, o recalque, o sintoma, enfim, todas as saídas patologizantes para o conflito psíquico. De outro, a sublimação como possibilidade de investir a energia do conflito em ciência, cultura e arte, solução que resulta no deslocamento da pulsão do circuito individual e patológico para o campo social onde há a possibilidade do laço. Temos, enfim, com este pequeno texto um exemplo da complexidade das formulações freudianas: ao mesmo tempo em que o sintoma protege, ele deve ser desmembrado para o uso da energia em fins melhores; não obstante o adoecimento ao qual a civilização sumbete o indivíduo, este deve, em contrapartida, abdicar de seu fechamento narcísico na fantasia para produzir algo em prol do coletivo na sublimação; a neurose, se por um lado é prejudicial aos indivíduos e à sociedade, por outro é a forma individual de se proteger da angústia e da sexualidade, bem como a forma social de não enxergar que a própria civilização causa mais mal do que bem; a mesma sociedade que pune os prazeres individuais se beneficia dos ganhos do tratamento psicanalítico pela via sublimatória. Enfim, a série infinda de paradoxos freudianos repercute na dificuldade de se adotar uma posição unívoca para as relações entre os conceitos, neste caso, entre angústia e sublimação. Melhor trabalhar com aproximações teóricas, com a ressalva de que na clínica elas ainda merecem ser verificadas no um a um. Conquanto se depare com este impasse nas generalizações, a sublimação, como expressa Oswaldo França Neto (2007), é um conceito de fronteira entre o individual e o coletivo. Ela abre um caminho mediano que não é nem a negligência do social a favor da satisfação individual, tampouco a sucumbência à moral social ao preço do adoecimento neurótico. Basta ver que ela não ecoa a sentença do rigor da moralidade – um dos aspectos que inclusive a difere da idealização – e nela há lugar para o desejo do sujeito, ainda que isso possa ser problematizado. Obviamente ele não está livre do conflito com a sociedade quando sublima, nem livre do conflito neurótico. Mas o trânsito entre as esferas individual e coletiva se flexibiliza e as mazelas tributárias à neurose ganham novas variáveis. O que interessa nesta pesquisa é destacar que a sublimação é o conceito pelo qual Freud aposta em saídas mais saudáveis para o conflito individual. Com isso, pergunta-se: como estabelecer uma relação entre a incidência da angústia na clínica e a experiência contingencial da sublimação? 25 2.2 Metapsicologia freudiana da angústia – parte 1 Antes de localizar na obra freudiana onde as experiências de angústia e sublimação se encontram, faz-se mister uma breve retomada da teoria da angústia em Freud. Sabe-se que esta sofreu modificações ao longo de sua construção, desde os primeiros rascunhos escritos a Fliess até o último grande ensaio sobre o tema, nomeado Inibição, sintoma e angústia (1926). Como ressalta Pierre Kaufmann (1996), há acordo em reconhecer a existência de duas teorias da angústia, sendo a primeira voltada ao entendimento da economia psíquica e com origem na libido e a segunda, contextualizada na segunda tópica e após a descoberta da pulsão de morte, atribuída de um valor representativo cuja referência é a ideia de perigo. Veremos adiante as nuances entre essas duas teorias. Porém, é importante alertar que o próprio Freud não abandonou uma em detrimento da outra, mantendo alguns pontos essenciais da primeira até o final de sua obra. À maneira de uma banda de Moebius, ele fez uma formulação sobre a angústia desdobrar-se na outra, tecendo as relações desse afeto com o dualismo pulsional, a tópica psíquica e as vertentes tanto econômicas quanto representativas de sua metapsicologia. Por ora, vejamos os primeiros escritos freudianos sobre a angústia, que datam de 1892 e estão nas cartas destinadas a Fliess. O termo surge atrelado às descobertas recentes sobre as neuroses, que até então se dividiam entre as neuropsicoses de defesa (neurose obsessiva e histeria) e as neuroses atuais que agrupavam a neurastenia e a neurose de angústia. A esta época, Freud ainda estava bastante influenciado pelas ideias de Charcot, o “grande homem” (Freud, 1956 [1886]/ 1996, p. 43) com quem estudara no Hospital da Salpêtrière, em Paris. De suas investigações sobre a etiologia das neuroses ele extrai problemas e teses que primeiramente só se tornam conhecidos por seu amigo Fliess, com quem manteve uma volumosa correspondência entre 1887 e 1902. Já no primeiro rascunho destinado a Fliess (Rascunho A), ele introduz os sete problemas a respeito da origem da neurose com uma pergunta sobre a angústia: “(1) Será a angústia das neuroses de angústia derivada da inibição da função sexual ou da angústia ligada à etiologia dessas neuroses?” (Freud, 1950 [1892-1899]/ 1996, p. 221). O que indica, desde já, a hipótese da centralidade deste afeto na constituição da neurose e sua relação com alguma inibição sexual. Logo depois ele enumera uma série de oito teses, dentre as quais destacamos: “(1) Não existe nenhuma neurastenia ou neurose análoga sem distúrbio da função sexual” e “(6) A neurose de angústia é, em parte, uma consequência da inibição da função sexual” (Freud, 1950 [1892-1899]/ 1996, p. 222). 26 É sob o prisma da neurose de angústia, portanto, que primeiro se compreende a angústia freudiana. Dessas primeiras teses que partilha com Fliess ele extrairá a principal hipótese sobre a angústia, hipótese esta que prevalecerá durante um bom tempo: sua origem deve ser atribuída a uma inibição da função sexual e consequente acúmulo de libido, especialmente no caso do “coitus interuptus” (Freud, 1950 [1892-1899]/ 1996, p. 227) dentre os homens e “refreamento da excitação do ato” (p. 226) nas mulheres. Isso significa que a angústia decorre da abstinência sexual. Ela pode aparecer ou sob a forma de um ataque ou como estado crônico cujos sintomas são, dentre outros, angústia ligada ao corpo (hipocondria), agorafobia, claustrofobia e vertigem em lugares altos. No Rascunho E, intitulado Como se origina a angústia, Freud a descreve como proveniente de uma excitação sexual física acumulada em consequência de não ter ocorrido descarga. Tal como a histeria, a neurose de angústia “é uma neurose de represamento” (Freud, 1950 [1892-1899]/ 1996, p. 237). Porém, enquanto na primeira ocorre uma excitação psíquica que passa à inervação somática, na segunda há “uma tensão física, que não consegue penetrar no âmbito psíquico e, portanto, permanece no trajeto físico” (pp. 240-241). Freud diz que “falta algo” (p. 238) nos fatores psíquicos para se formar um afeto sexual na libido psíquica. Daí a tensão física, impedida de ser psiquicamente ligada, se transformar diretamente em angústia. Ou seja, a origem da angústia não se encontra na esfera psíquica, mas nas transformações restritas à dimensão somática sexual. Essa tese é ratificada um ano depois nos primeiros artigos publicados sobre a neurose de angústia. Neles encontramos uma descrição completa de seus sintomas, etiologia e mecanismos, bem como sua comparação com as demais neuroses. Sem descartar a participação da hereditariedade na etiologia da neurose de angústia, Freud (1895[1894]/1996) diz que ela é apenas uma predisposição, enquanto o fator primordial é que se trata de uma neurose adquirida, decorrente de “um conjunto de perturbações e influências da vida sexual” (p. 101). Tais perturbações referem-se à vida sexual contemporânea, tal como na neurastenia, contrapondo-se às psiconeuroses (histeria e neurose obsessiva) cuja causa se encontra na vida sexual infantil. Neurastenia e neurose de angústia compõem, portanto, as neuroses atuais (Freud, 1898/1996). A diferença entre elas reside em que a neurastenia é causada pela masturbação excessiva ou emissões espontâneas, enquanto os fatores etiológicos específicos da neurose de angústia estão ligados a uma completa insatisfação: abstinência sexual, coito interrompido, falta de interesse pela sexualidade e demais fatores que desviam a tensão sexual do campo psíquico, impedindo-a de ser sentida como libido (Freud, 1895/ 1996). 27 Freud aproxima a neurose de angústia à histeria por serem ambas compostas de um fator econômico acentuado: um acúmulo de tensão que se descarrega por vias anormais, sejam os ataques de angústia ou a conversão histérica. Em ambas há um represamento da energia sexual ocasionado pela não satisfação direta através do ato sexual. Porém, na neurose de angústia, como já foi dito, constata-se a inexistência de uma origem psíquica. O que ocorre é um acúmulo de excitação que permanece no trajeto físico. Isso se passa de forma diferente na histeria: “a excitação, em cujo deslocamento a neurose de angústia se expressa, é puramente somática (excitação sexual somática), ao passo que, na histeria, ela é psíquica (provocada por um conflito)” (Freud, 1895 [1894]/ 1996, p. 115). O que leva Freud a dizer que a neurose de angústia é o “equivalente somático” (p. 115) da histeria. A causa do represamento de excitação no nível somático é o “decréscimo extremamente acentuado da libido sexual, ou desejo psíquico”6 (Freud, 1895 [1894]/ 1996, p. 108), o que resulta na tese de que “o mecanismo da neurose de angústia deva ser buscado numa deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica e no consequente emprego anormal dessa excitação” (p. 109). Assim, impedida de alcançar a esfera psíquica e se ligar à libido – o que levaria à elaboração psíquica dessa tensão somática e consequentemente à ação específica do ato sexual normal – a energia sexual é descarregada sob a forma de angústia. Os sintomas da neurose de angústia, tais como respiração acelerada, palpitações, taquicardia, fobias, vertigem, transpiração, tremores e calafrios, nada mais são do que substitutos da descarga normal da excitação sexual. Freud chega a equivalê-los aos movimentos articulados no ato sexual que trazem, da mesma forma, alterações respiratórias, cardíacas, sudorese, etc. Entretanto, o que os caracteriza como neurose, apesar de serem manifestações puramente fisiológicas, é o afeto de angústia neles presente. É importante destacar que toda essa descrição da angústia da década de 1890 nos permite perceber seu fator econômico: ela nada mais é que um quantum de energia que não tem ligação psíquica. A neurose de angústia é originada da transformação automática de uma excitação visceral – da vida sexual contemporânea do sujeito – que não pôde ser psiquicamente elaborada. Trata-se de uma “mistura etiológica” (Freud, 1895/1996, p. 130) ou “equação etiológica” (p. 134), o que dá a ideia de soma: “(...) a ocorrência ou não da doença neurótica depende da carga total sobre o sistema nervoso (proporcionalmente a sua capacidade de suportar tal carga)” (p. 130). Tal aspecto econômico representa desafios à 6 Como explica o editor inglês, a libido neste momento é equivalente ao desejo psíquico, em oposição à excitação sexual somática. Ainda não havia uma distinção entre psíquico e consciente, sendo que apenas dois anos depois, em 1897, Freud trata a libido como algo inconsciente. 28 clínica, como nota Freud (1895[1894]/1996): “o afeto não se origina numa representação recalcada, revelando-se não adicionalmente redutível pela análise psicológica, nem equacionável pela psicoterapia” (p. 99). Portanto, a única sugestão que ele se autorizava dar a seus pacientes era a regularização de sua atividade sexual, já que a psicanálise só era considerada útil para a cura das psiconeuroses cuja causa reside na história sexual infantil. É possível que esse impasse clínico colocado pela neurose de angústia decorresse menos de uma insuficiência da própria neurose, devido aos fatores puramente quantitativos, do que da teoria e técnica psicanalíticas. Ou seja, a prematuridade das descobertas freudianas, ainda sem contar com a ideia de inconsciente – ideia esta que era apenas latente na teoria –, era talvez o motivo principal da impossibilidade de avançar no tratamento da neurose de angústia. Prova disso é que o advento do inconsciente como conceito firme trouxe a resolução dos impasses clínicos das neuroses atuais, inclusive colocando em extinção a nomeclatura neuroses atuais. Após o advento da ideia do inconsciente, portanto, tornou-se impossível conduzir uma neurose apenas em termos econômicos (ou melhor: deixar de conduzir uma neurose por ser ela estritamente oriunda de uma equação etiológica), pois a ideia de energia, bem como a de libido, foram incluídas na noção de pulsão e seu representante inconsciente. Qualquer transformação quantitativa ganhou um correspondente psíquico inconsciente que viabilizava o tratamento psicanalítico. Com isso, a técnica da associação livre pôde alcançar o afeto da angústia no tocante a sua faceta recalcada. Especialmente a partir do texto O Recalque (1915), não se vê mais uma angústia que limita os recursos da clínica por ser meramente econômica e se basear em evidências da realidade atual. A angústia passa a correspoder ao que dela se representa no inconsciente, ou seja, a realidade psíquica. Assim, após 1900, a neurose de angústia vai ganhando cada vez menos espaço na teoria freudiana à medida em que vão entrando as discussões sobre o sintoma e o inconsciente. Vale destacar, no entanto, que essa teorização inicial deixa uma importante chave de leitura para a angústia: a insuficiência do aparelho simbólico para elaborar o trauma. Ao se tratar da neurose de angústia, Freud denuncia a força de uma excitação sexual traumática irreditível, em sua totalidade, à elaboração. Essa é a semente da ideia universal que ele vai trabalhar posteriormente no último ensaio sobre a angústia, qual seja, a de que a angústia é para todos sinal de um trauma que, desde o nascimento, tende a naufragar nossas defesas psíquicas. Sobre isso, Lacan (1962-63/ 2005) depois dirá que a angústia “é o aquilo que não engana, o que está fora de dúvida” (p. 88), enfim, que não se reduz à ficção significante. 29 Percebe-se que a relação da angústia com o corpo é desde cedo indicada por Freud, o que é de extrema importância dentro da tese que se desenvolve nesta pesquisa. Como lemos nas linhas freudianas, a angústia afeta diretamente o corpo. É nele principalmente que os sintomas se manifestam, modificando determinadas funções biológicas tais como respiração, batimento cardíaco, sudorese, etc. Essa relação fica evidente nesses primeiros escritos freudianos sobre a neurose de angústia, dominados por uma investigação majoritariamente quantitativa do aparelho psíquico que tem no Projeto para uma Psicologia Científica (1895) o exemplo mais completo. Como não cabe aqui entrar nos pormenores deste longo ensaio, será preciso destacar o que dele nos interessa, precisamente a descrição da angústia como afeto ligado ao acúmulo de energia sexual não descarregada. O afeto, de maneira geral, é compreendido como manifestação particular da quantidade de excitação sentida pela consciência como qualidade de prazer ou desprazer. Logo, ele possui algo de orgânico, corpóreo, que anima a memória das primeiras experiências traumáticas. No artigo sobre as Neuropsicoses de Defesa, Freud (1984/1996) diz que o afeto é uma soma de excitação que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações assim como “uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo” (p. 66). Essa analogia pode nos levar mais longe quando traçarmos a relação entre a angústia e o corpo nas performances artísticas. Retomando a sequência teórica sobre a angústia em Freud, em 1909, na análise do caso do pequeno Hans, começa-se a tecer as relações entre seus elementos quantitativos e representativos. A fobia de Hans é dirigida não para um objeto aleatório, mas para um que apresenta características que o remetem a seu pai: os cavalos. A angústia finalmente ganha sua correspondência simbólica nos elementos do complexo de Édipo. Freud constata o mecanismo de transformação da libido em Hans: a afeição edipiana antes dirigida à mãe teve de ser suprimida por meio da ameaça de castração e transformou-se em angústia. O aparelho psíquico faz de tudo para ligar essa angústia e só o consegue através do sintoma, que passa a impedir o acesso ao motivo de seu despertar (a libido dirigida à mãe). Assim, os vários modos de defesa, tais como precauções, inibições ou proibições, são a essência da fobia. Freud (1909/ 1996) diz: “No final, o paciente pode ter-se livrado de toda a sua ansiedade, mas somente ao preço de sujeitar-se a todos os tipos de inibições e restrições” (p. 107). Por isso Freud vê com um certo pessimismo a análise das fobias, já que elas são uma defesa erigida contra a angústia e não se pode tirar violentamente do paciente tais medidas protetoras (como vimos na introdução deste capítulo), correndo-se o risco de irromper a crise de angústia. Tanto no caso do Pequeno Hans (1909) quanto no Homem dos Lobos (1918) ele trata pormenorizadamente o tema das fobias a partir de uma nova classificação, a histeria de 30 angústia, devido à semelhança entre as estruturas psicológicas da fobia e da histeria. Assim: “Na histeria de angústia, a libido, que tinha sido libertada do material patogênico pela repressão, não é convertida (isto é, desviada da esfera mental para uma inervação somática), mas é posta em liberdade na forma de ansiedade” (Freud, 1909/1996, p. 106). A histeria de angústia torna-se a mais precoce das doenças neuróticas, sendo a neurose de infância “par excellence” (p. 106). Observa-se que Freud mantém a ideia de uma energia sexual somática que se transforma em angústia. Porém, com a entrada da noção de recalque 7 , que nos casos de Hans e do Homem dos Lobos já está em vias de formulação, o afeto ganha um novo valor. A angústia passa a ser proveniente de uma representação recalcada. Isso significa que ela é liberada pelo processo do recalque, ou seja, é resultado da separação entre representação e afeto operada pelo recalque, e não mais fruto de uma transformação direta da libido. Essa mudança, que ganhará sua formalização teórica em O Recalque (1915), consiste no que comumente se denomina a primeira teoria da angústia em Freud. Talvez uma investigação minuciosa, tal como intencionamos fazer aqui, argumentaria a favor de três teorias: na primeira a angústia é puramente excitação sexual somática, na segunda é originada após o recalque e na terceira, como veremos na parte 2 da metapsicologia, ela é motivo do recalque, e não produto. No entanto, entre essas duas hipotéticas ‘primeira’ e ‘segunda’ há uma semelhança fundamental: ambas têm sua fonte na libido. Por mais que na ‘segunda’ já seja introduzida a noção de recalque e a importância do inconsciente (algo ainda inexistente na ‘primeira’), em ambas predomina a origem econômica da angústia. Por isso fala-se em apenas duas teorias, tendo como parâmetro o recalque: na primeira a angústia é fruto do recalque e na segunda é anterior a ele, lhe servindo inclusive de causa. Essa divisão enfatiza a centralidade do recalque no programa freudiano das neuroses, relegando a um segundo plano as concepções sobre a economia psíquica. O próprio Freud é responsável por reduzir, ao longo do tempo, a importância da equação somática da angústia em prol de uma vertente representacional – embora ele também vacile em denegar por completo sua teoria quantitativa, como fica claro no texto de 1926: “Vemos, então, que não é necessário desvalorizar nossas pesquisas anteriores, mas apenas estabelecer uma relação entre elas e as perspectivas mais recentes” (Freud, 1926/ 2014, p. 84). Se até então a metapsicologia da angústia se relaciona essencialmente ao aumento de excitação sexual, o conceito de 7 O termo Verdrängung é traduzido ora por repressão, ora por recalque. Apesar de se ter escolhido, nesta dissertação, a tradução de Paulo César de Souza, que prioriza o termo repressão, usaremos recalque (exceto em citações diretas das traduções de Paulo César) por achá-lo mais adequado, uma vez que o termo repressão pode dar margem a outras interpretações que desviam o sentido original deste mecanismo de defesa. 31 inconsciente, junto ao de recalque, fornecem a base para um tratamento desse afeto ao infleti- lo na dinâmica das instâncias psíquicas. No caso do pequeno Hans, fica claro que o recalque atuou sobre o desejo hostil contra o pai que o impedia de desposar a mãe tal como ele desejava nas suas fantasias edípicas. Esse impulso hostil recalcado deu lugar ao medo de ser mordido por um cavalo – objeto cuja escolha não foi aleatória, mas ligava-se à lembrança traumática de ver um cavalo caindo. Era seu pai que, no fundo, ele desejava ver caindo, o que Freud pôde perceber a partir do desenho do cavalo feito por Hans em que os óculos nos olhos do animal eram equivalentes aos óculos reais de seu pai. A angústia despertada pela cena traumática do cavalo caindo, assomada ao desejo de morte do pai, só pôde ser aplacada sob a forma da fobia de cavalos. Esta protegia o menino, já que ele podia evitar de ir à rua e ver o animal, ao passo que não podia limitar o contato com o pai, verdadeiro objeto de ódio e temor. Assim, o conteúdo recalcado “voltou de tal maneira que o material patogênico foi remodelado e transposto para o complexo do cavalo, enquanto os afetos acompanhantes foram uniformemente transformados em ansiedade” (Freud, 1909/ 1996, p. 122). Vê-se, portanto, que o desligamento do afeto à representação, na operação de recalque, origina a angústia. No texto sobre o recalque, Freud (1915b/ 2010) explica que, após separado do conteúdo ideativo por meio do recalcamento, o fator quantitativo resultante sofre três destinos: pode ser completamente suprimido, aparece como um afeto qualitativamente modificado ou é transformado em angústia. Este último destino sinaliza um fracasso do recalcamento, uma vez que o objetivo de tal procedimento é evitar o desprazer. Assim, enquanto a primeira saída, a da supressão do afeto, é encontrada nas pessoas sadias, é a falha do recalque e consequente geração de angústia que tornam um sujeito neurótico; daí apenas este segundo grupo ser objeto do estudo psicanalítico. Isso indica inclusive a relação essencial entre a angústia e a clínica, sendo que, sem a primeira, a segunda não pode funcionar. Nas fobias, o que impede a angústia de ser sentida como desprazer é sua concatenação a um objeto fóbico específico. Ou seja, a fobia já é uma segunda etapa na histeria de angústia, um tratamento desta, que consiste no investimento da angústia em uma ideia substituta àquela que foi recalcada. Isso apazigua o sistema psíquico, uma vez que a representação agora investida de medo se torna uma formação substitutiva, projetada para fora, e mantem afastada da consciência a fonte original da libido. Ao preço, como já foi dito, da restrição da liberdade locomotiva e afetiva do paciente, já que ele evita a todo custo a exposição ao objeto (no caso Hans, o cavalo) ou à ideia que gerou o afeto desagradável (no caso do Homem dos Lobos, o amor pelo pai). 32 O Eu se comporta como se o perigo do desenvolvimento da angústia não partisse de um impulso instintual, mas de uma percepção, o que lhe permite reagir a esse perigo externo com as tentativas de fuga das evitações fóbicas. Uma coisa a repressão obtém nesse processo: o desencadeamento de angústia pode ser represado em alguma medida, mas apenas com pesados sacrifícios da liberdade pessoal. Tentativas de fuga ante exigências instintuais são geralmente inúteis, porém, e o resultado da fuga fóbica é sempre insatisfatório (Freud, 1915c/ 2010, p. 124) Apesar do pessimismo de Freud quanto à solução da angústia pela fobia, há de se fazer uma observação importante, já começando a relacionar a angústia à sublimação. Na discussão do caso Hans, Freud comenta, em nota de rodapé, que o pai do garoto observou que simultaneamente ao recalque das moções pulsionais sexuais e o surgimento da angústia teve início uma sublimação que se manifestou no interesse do menino pela música e desenvolvimento de seu dom musical. Adiante, Freud diz que o conteúdo da fobia impunha uma “grande medida de restrição sobre sua liberdade de movimento” (Freud, 1909/ 1996, p. 124), o que, por sua vez, se origina da reação contra os impulsos de movimento (copulatório) dirigidos à mãe. Em última instância, o prazer do movimento do cavalo, que Hans imitava quando pulava, transformou-se em terror a este animal devido à restrição do prazer do movimento de copular com a mãe. Tratava-se de uma inibição cuja intenção era paralisar o movimento da pulsão. Freud ressalta que a tendência ao movimento é uma característica própria à pulsão: “(...) um atributo universal e indispensável de todos os instintos – o seu caráter instintual [triebhaft] e ‘premente’, o que se poderia ser descrito como a sua capacidade para iniciar movimento” (p. 125). É instigante pensar na equação angústia/ estática – sublimação/ movimento a partir da pulsão. O que Freud enfatiza é que a pulsão quer satisfazer-se; com isso, ela tende ao movimento para realizar seu objetivo. Especialmente nesta época, antes da inclusão da pulsão de morte em sua teoria, a satisfação única e possível é a da libido sexual, sendo a hostilidade para com o pai e o sadismo com a mãe apenas respostas ao impedimento de se alcançar tal satisfação. A angústia provém, portanto, dessa pulsão sexual não consumada, e o que resulta da fobia é uma estática em consequência à paralisação do movimento da pulsão. Essa estática é provocada, a rigor, pela inibição que impede a exteriorização dos afetos. Se o afeto, como ele ressalta em O Inconsciente, é puro movimento, à consciência cabe governar “tanto a afetividade como o acesso à motilidade” (Freud, 1915c/ 2010, p. 117). Pergunta-se: a sublimação observada pelo pai de Hans pode ser entendida como uma espécie de vazão desse movimento da pulsão em contraponto à paralisação estática da fobia? 33 Uma vez que a pulsão não se satisfaz por vias diretas, tampouco pela motilidade que faz lembrar o ato sexual, o movimento recai sobre outro lugar: a sublimação. Disso podemos depreender uma primeira tese para este trabalho: onde há inibição, há estática, e onde há sublimação aparece o movimento. A angústia, uma vez contida pela inibição do sintoma fóbico, seria também um movimento – porém movimento de explosão, diferente do movimento estético característico da sublimação. É o que Freud (1916-17/ 1996) sustenta na Conferência XXV: o estado de angústia ocorre “quando a libido, impedida de encontrar uma descarga satisfatória, é correspondentemente forte e não foi utilizada, em sua maior parte, pela sublimação” (p. 403). Isso torna compreensível sua assertiva ao final da discussão do caso Hans: “a precocidade sexual é um correlato, raramente ausente, da precocidade intelectual, e que, assim, deve ser encontrada em crianças dotadas mais frequentemente do que se poderia esperar” (Freud, 1909/ 1996, p. 127). A ideia de uma proporção direta entre a pulsão sexual infantil e a pulsão epistemofílica (pulsão de saber) é fundamental para a teoria da sublimação. Dela Freud extrai a possibilidade de analisar a vida de artistas, como Leonardo da Vinci e Michelângelo, considerando a maleabilidade da libido que, ao invés de se satisfazer diretamente pelo ato sexual, pode ser defletida para alvos não sexuais, escapando assim do recalque. A sublimação consiste justamente nessa deflexão da pulsão, como Freud (1905/ 1996) explicita na sua primeira tentativa de definir o conceito, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: Com que meios se erigem essas construções tão importantes para a cultura e normalidade posteriores da pessoa? Provavelmente, às expensas das próprias moções sexuais infantis, cujo afluxo não cessa nem mesmo durante esse período de latência, mas cuja energia – na totalidade ou em sua maior parte – é desviada do alvo sexual e voltada para outros fins. Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor que, mediante esses desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por sua orientação para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação, adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais (p. 167). O caso de Da Vinci parece paradigmático para a compreensão da versatilidade da pulsão sexual, pois através dele se constata uma capacidade intelectual extraordinária em alguém que tem sua sexualidade totalmente inibida. O que impressiona Freud (1910a/ 2013) é a diversidade de atividades artísticas e intelectuais que dominavam a vida do artista/cientista, a despeito de uma extrema falta de apetite sexual: “... Leonardo era um exemplo de fria rejeição da sexualidade...” (p. 123). A sublimação aqui implica no abandono da meta sexual imediata em prol de atividades “mais valorizadas e não sexuais” (p. 137), como o intelecto e as artes. A história infantil de Da Vinci leva Freud à comprovação de que houve “um notável 34 definhamento da vida sexual nos anos da maturidade, como se uma porção da atividade sexual fosse substituída pela atividade do instinto muito poderoso” (p. 137) – ou seja, o intelectual. O artista/pesquisador exercia um controle racional sobre suas paixões, associando os afetos de amor e ódio ao conhecimento. Para Freud, isso representa algo singular, pois na contramão do caminho natural da humanidade, que ama impulsivamente e não tende a vincular os motivos sentimentais à necessidade de conhecer o objeto de tais afetos, Da Vinci doma as paixões, sujeitando-as ao impulso do pesquisador. Dirige à perquisa a mesma “devoção apaixonada” (Freud, 1910a/ 2013, p. 136) que outra pessoa dispensaria ao amor. Não que ele fosse isento de paixões, mas que elas eram submetidas ao campo da intelectualidade. Assim: Ele simplesmente converteu a paixão em ímpeto de saber; dedicou-se então à pesquisa, com a tenacidade, constância e profundidade que vêm da paixão, e no apogeu do trabalho intelectual, tendo adquirido o conhecimento, deixou o afeto longamente contido irromper, fluir livremente, como faz, depois de impulsionar o moinho, o braço d’água que foi desviado do rio (Freud, 1910a/ 2013, p. 132). O trabalho intelectual, no caso de Da Vinci, não é eximido de emoção, mas há dentro dele mesmo uma passagem que inscreve o afeto em outra perspectiva, a da sublimação. Há uma espécie de elevação da natureza do afeto, daí o termo sublimação. Nota-se que a origem desse termo remonta à alquimia (passagem do metal ao ouro puro), à química (passagem do estado sólido ao gasoso) e também à moral (elevação da alma, purificação), como descreve França Neto (2007). Sua etimologia se refere ao termo latim, sublimare, cuja tradução é elevar ao alto. Em Freud, o que é passível de sublimação não é senão a pulsão. Disso se depreende que as primeiras abordagens freudianas da sublimação estão intrinsecamente relacionadas à atividade sexual e o desvio que dela pode se obter a fim de um uso intelectual ou artístico da libido. Ainda antes do segundo dualismo pulsional, a partir do qual passa a ser observado o critério sublimatório da pulsão não apenas sexual, mas também de morte, a teoria da sublimação incorre numa manobra estritamente referente à libido, ficando o afeto restrito aos contornos do saber – seja ele intelectual, artístico ou de outra ordem8. A tese prevalecente da sublimação é a dessexualização da libido em decorrência do desvio de seu alvo. Voltaremos a este ponto mais tarde; por ora vale enfatizar o caráter versátil da libido que o conceito de pulsão herdará, tornando-se elementar para pensar o movimento no processo de sublimação. Ao contrário de uma estática que aqui atribuímos ao sintoma, especialmente a 8 Freud privilegia os domínios da arte e ciência ao expor sobre a subimação. Ele não deixa de considerar a religião e a filosofia, porém, com certo desprezo, ele as insere muito mais no parâmetro da patologia do que propriamente de uma atividade que mereça a qualidade sublimatória. 35 fobia, a sublimação atesta o movimento inerente à natureza plástica da pulsão – movimento que na obra freudiana tem explicitamente o caminho de uma elevação. A prerrogativa freudiana da sublimação pode então ser compreendida inicialmente por essa vertente da transformação da libido sexual, o que será complexificado com o advento da pulsão de morte, ainda que isso não modifique o essencial dessa tese. A análise de Da Vinci leva Freud a perceber claramente o desvio sexual que a pulsão sofre desde a infância. A questão do método freudiano pode ser aqui observada: a história da vida sexual de um sujeito (no caso, Leonardo da Vinci) é passível de se desdobrar em hipóteses que podem ou não ser apreendidas em conceitos fundamentais da teoria. Neste caso, a história do artista/cientista acendeu em Freud a descoberta de que, sendo a libido inutilizada para fins sexuais, ela se descarrega em outras atividades. Como ressalta Rocha (2010), “a sublimação é o operador que orquestra todos os processos de deslocamento das satisfações propriamente eróticas na direção do fazer artístico e, no caso de Leonardo, também no labor científico” (p. 52). Rocha (2010) observa que, por mais que a análise da sublimação de Da Vinci, como também a de Michelângelo, seja compreendida em interface com o discurso religioso, o que resulta de sua obra não são as ilusões do dogma ou da certeza ontológica, mas “certa realização de protocolos de subjetivação do desejo, de tratamento da realidade dos sintomas e, no limite, de afirmação da cultura sobre as forças que se lhe opõem” (p. 29). De fato, o interesse de Freud se volta para esse espectro que vai da vida particular do artista, incluindo aí seus sintomas e desejos, até as consequências da obra sobre a cultura, como também o retorno da cultura sobre a dimensão particular do desejo. Isso inaugura uma leitura psicanalítica que promove o intercâmbio entre os espaços público e privado, o universal e o singular, de onde se destaca, como já foi falado, a sublimação como conceito fronteiriço fundamental. Estando a pulsão de pesquisa, no caso de Da Vinci, estritamente ligada aos interesses sexuais mais primários, donde a pergunta sobre a origem dos bebês vem amalgamar a curiosidade sexual à vontade de conhecimento, Freud (1910a/ 2013) expõe três destinos possíveis para o interesse investigativo após a “onda energética de repressão sexual” (p. 139) que ele acusa ser o encerramento da pesquisa sexual infantil. Primeiramente, há a possibilidade de inibição total do pensamento e limitação da inteligência, o que significa que a pesquisa ganha o mesmo destino da sexualidade. Em segundo lugar, Freud considera que após o fim da pesquisa sexual infantil a inteligência vence a barreira do recalque e volta a se ligar aos interesses sexuais, porém de forma velada. Assim, a pesquisa sexual suprimida retorna do inconsciente como ruminação compulsiva, certamente em forma distorcida e constrita, mas forte o suficiente para 36 sexualizar o pensamento mesmo e tingir as operações intelectuais com o prazer a a angústia dos processos sexuais propriamente ditos (Freud, 1910a/2013, p. 139). Por fim, o terceiro destino, que Freud (1910a/ 2013) considera “mais raro e mais perfeito” (p. 140) e em cuja categoria se encontra Da Vinci, escapa tanto à inibição quanto à compulsão neurótica do pensamento. Também nele há recalque, mas este não atinge a totalidade da pulsão sexual, restanto a libido livre para se sublimar em pulsão de saber e reforçar a pulsão de pesquisa que já havia inicialmente. Freud reconhece que nesta terceira saída, apesar de também haver o aspecto da compulsão, o verdadeiro caráter da neurose está ausente. Devido à sublimação – ao invés de irrupção desde o inconsciente, como na segunda – “não há mais vínculo com os originais complexos da pesquisa sexual infantil e o instinto pode operar livremente a serviço do interesse intelectual” (p. 140). Nota-se que há uma graduação de movimentos, desde o primeiro tipo até o terceiro, que vai da inibição, passando pela compulsão até a sublimação. Será que podemos localizar aqui a trajetória que é tema desta pesquisa, a saber, o movimento energético que vai desde uma estática a uma estética? Fazer o recorte desse caminho na obra de Freud parece menos uma extrapolação do que uma leitura atenta ao diagrama que implicitamente se esboça em sua obra. O próprio título do ensaio de 1926, Inibição, sintoma e angústia, não é passível de ser lido nos termos desse movimento? Quer dizer, há uma espécie de escala de valores – que pode ser problematizada, como tentaremos fazer – que vai desde a inibição intelectual (associada à inibição sexual) até a atividade mais elevada que consiste na sublimação, na qual a força da pulsão sexual interfere prontamente, sem passar pelo recalque, embora desviada de seu alvo. Se quisermos ir um pouco mais fundo, vale notar que a segunda opção descrita por Freud (1910a/2013) para o destino da pulsão epistemofílica – a compulsão neurótica – resguarda o caráter doentio das ruminações obsessivas. Isso acarreta em quê? Freud o diz: na tintura das operações do intelecto “com o prazer e a angústia dos processos sexuais propriamente ditos” (p. 139). Novamente chegamos ao ponto da intersecção dos conceitos: onde não há sublimação, há angústia. A mesma fonte pulsional sexual que em um sujeito é deslocada para a ruminação obsessiva e gera angústia, em outro é passível de se transformar em sublimação. Mas isso significa que quem sublima está isento de se angustiar? Jamais se pode dar uma resposta afirmativa a essa pergunta e, mesmo que acompanhar a teoria freudiana resulte na tentação de respondê-la, é com prudência que se deve parar por aqui. Apenas no caso a caso se pode tirar conclusões dessa ordem. A análise de Da Vinci é um caso – bem extremo, diga-se de passagem – de onde Freud extrai uma tese privilegiada do destino da sexualidade infantil. Vale notar, porém, que o próprio Freud adverte seu leitor 37 quanto ao possível fracasso derivado do uso de material insuficiente para a pesquisa psicanalítica. É preciso conhecer a história infantil do indivíduo, especialmente no que concerne à sexualidade, para empreender tal análise. Pois, caso contrário, “a culpa não está no método inadequado ou defeituoso da psicanálise, mas no caráter incerto e fragmentário do material que a tradição nos fornece a respeito da pessoa” (Freud, 1910a/ 2013, p. 216). Logo, qualquer aproximação que aqui se pretenda fazer entre a capacidade de sublimar e o sentimento de angústia deve vir acompanhada da objeção de que ela deve ser verificada no particular. O máximo que nos cabe nesta pesquisa é articular esses elementos no contexto da literatura psicanalítica e ver o que disso resulta para um possível aprendizado clínico. Antes de deixar o tema da análise de Da Vinci, vale lembrar a relação acima mencionada entre o caráter exacerbadamente intelectual de Leonardo, chegando a não ter espaço em sua vida para o domínio sexual, e a dimensão do afeto. Ao dizer que “Leonardo não era isento de paixão” (Freud, 1910a/ 2013, p. 132), mas que ele dedicava à pesquisa todo seu amor e seu ódio, Freud aponta para a inclusão, na atividade sublimatória – se não da natureza sexual da libido – do afeto que dela resta. Ou seja, o afeto, diferentemente do que ocorre com a libido, se encontra dentro do interesse científico, e não apenas transformado em prol desse interesse. Talvez caiba pensar no afeto como resto da operação de transformação pulsional que retorna sobre o artista/pesquisador apesar dos (ou devido aos) esforços de concatenar a libido numa finalidade dessexualizada. A pulsão pode ser transformada – porém, não-toda. Ou seja, se há transformação da libido na sublimação, disso não resulta a exclusão do afeto na vida do artista ou pesquisador. A hipótese de que o afeto está incluído nas criações artísticas será verificada especialmente entre as performances, como veremos adiante. Enfim, o que salta aos olhos na investigação dessa primeira teoria da angústia é sua relação com a sublimação calcada no elemento da sexualidade, antes da pulsão de morte entrar em cena. Libido, angústia e criação parecem parte ora do mesmo movimento, ora de uma oposição fundamental em que a inibição fica do lado da estática e a sublimação, da estética. 2.3 Metapsicologia freudiana da angústia – parte 2 Antes de avançar na conceituação da angústia tal como formulada em 1926, retomemos a teorização presente no texto O Recalque (1915) e que é comumente chamada primeira teoria da angústia – embora, como já deixamos claro anteriormente, poderíamos defender uma 38 primeira manifestação deste afeto correspondente à neurose de angústia conforme os estudos freudianos da década de 1890. A tese principal do recalque é que ele intervém quando a satisfação de uma pulsão causaria prazer em si mesma, porém seria inconciliável com outras exigências, ou seja, “geraria prazer em um lugar e desprazer em outro” (Freud, 1915b/ 2010, p. 85). A balança econômica, no final, pesaria mais do lado do desprazer (aumento de tensão) do que do prazer propiciado pela satisfação de tal pulsão. Essa tese já é encontrada desde o princípio da investigação freudiana nos termos do conflito consciente/pré-consciente versus inconsciente e ganha relevância na segunda tópica, onde as instâncias do eu, id e supereu assumem suas funções na dinâmica topológica do aparelho psíquico. Assim, o recalque passa a funcionar a serviço do eu e contra as exigências provenientes da pulsão cujo reduto é o id. Em 1915, a primeira tópica ainda predomina e a angústia participa da dinâmica como resto oriundo da operação do recalque sobre a pulsão. O fator quantitativo dissociado da representação que foi recalcada resulta solto, como energia livre impedida de se ligar novamente a seu representante que agora está retido no inconsciente. Essa energia desligada se transforma em angústia caso não assuma dois outros possíveis destinos: ser inteiramente suprimda ou aparecer como afeto de qualidade diferente. A angústia é, portanto, um dos destinos possíveis da energia pulsional resultante do recalque – destino que representa, contudo, o fracasso do recalque, já que, se seu objetivo era evitar o desprazer, a conversão da energia psíquica em angústia gera novamemente desprazer, ainda que de outra ordem. “Se uma repressão não consegue impedir o surgimento de sensações de desprazer ou de angústia, então podemos dizer que ela fracassou, ainda que tenha alcançado sua meta na parte ideativa” (Freud, 1915b/ 2010, p. 93). Percebe-se que mesmo incluindo a angústia na esteira da articulação teórica sobre a representação da pulsão, ela ainda aparece como puro fator quantitativo, como resto da separação entre a ideia representante e a energia a ela inicialmente ligada. Somente em 1926 ela passa a adquirir uma certa função significante ao ser ligada a um sinal, como veremos adiante. Por ora, é importante ressaltar que a teorização de 1915 coloca em relevo a ideia do afeto: “Segue-se que o destino do montante afetivo da representante é bem mais importante que o da ideia, e que isso é decisivo para o julgamento do processo de repressão” (Freud, 1915b/ 2010, p. 93). Enquanto a ideia pode ser transposta ao inconsciente, o afeto é estritamente uma descarga cuja expressão consciente é a sensação. Em O inconsciente, Freud (1915c/ 2010) deixa claro que o sistema consciente pretende ter total controle do domínio da afetividade, porém nem sempre consegue. Tal controle se 39 exerce da seguinte forma: após o recalque, o montante quantitativo liberado de sua representação original tende a ser ligado, pelo consciente, a uma outra representação que dê determinado sentido de afeto à energia antes flutuante. Disso resulta que “o desenvolvimento do afeto é possibilitado a partir desse substituto consciente, e o caráter qualitativo do afeto é determinado pela natureza dele” (Freud, 1915c/ 2010, p. 118). Entretanto, quando a primazia do consciente sobre esse fator quantitativo fracassa, o afeto que resulta disso é a angústia. Por isso Freud (1915c/ 2010) diz que a angústia é oriunda diretamente do inconsciente: “É possível que o desenvolvimento do afeto proceda diretamente do sistema Ics; nesse caso tem sempre o caráter da angústia, pela qual são trocados todos os afetos ‘reprimidos’” (p. 118). Isso significa que a angústia é um afeto sem representação, uma espécie de estado puro de energia do qual procedem os demais afetos, estes sim ligados a representantes psíquicos. Tal característica é de extrema importância, pois aponta para uma certa radicalidade da angústia que faz Freud elegê-la como o afeto por excelência. Na primeira conferência sobre a angústia, considerada por ele próprio a mais completa abordagem sobre o tema, encontramos os seguintes dizeres: “Portanto, a ansiedade constitui a moeda corrente universal pela qual é ou pode ser trocado qualquer impulso, se o conteúdo ideativo vinculado a ele estiver sujeito a repressão” (Freud, 1916-17/1996, p. 404, grifo nosso). Na conclusão, volta a afirmar: Assim, achamo-nos convencidos de que o problema da ansiedade ocupa, na questão da psicologia das neuroses, um lugar que pode justificadamente ser classificado como central. Impressionou-nos intensamente a forma como a geração de ansiedade se vincula às vicissitudes da libido e ao sistema inconsciente (Freud, 1916- 1917/1996, p. 411). Por isso na clínica a angústia tem o papel primordial de indicar os rastros por onde afetos mais originais passaram. Esse aspecto será desdobrado na nova relação que começa a ser elaborada, já nesta conferência, entre angústia e trauma. Freud se depara com um impasse: a angústia é entendida como afeto e os afetos são descargas que, como tais, são sentidas como prazer. Basta pensar, por exemplo, no papel da fantasia de aliviar a tensão psíquica por vincular um afeto a qualquer ideia – ainda que seja desagradável – e com isso dar vazão a um certo escoamento de energia. Entretanto, como o afeto de angústia pode ser uma descarga se toda a concepção econômica anterior atribui a ela o valor de um acúmulo de excitação sexual não descarregada? Em outras palavras, como a angústia pode ser afeto se ela causa desprazer? A concepção da angústia como sinal de perigo – a chamada segunda teoria da angústia – aponta para uma nova funcionalidade desse afeto que resolve, em parte, esse impasse. Freud 40 percebe que a equação linear fundamentada no quantitativo não se sustenta. Há de se perceber a função significante que ela ocupa na tópica psíquica: a representação do perigo permite que Freud fale de um desprazer, embora haja descarga. Assim, na conferência introdutória sobre a angústia, ao mesmo tempo em que se vê permanecer a ideia da libido não descarregada de forma satisfatória, numa “estreita vinculação com a limitação sexual” (Freud, 1916-17/1996, p. 403), já se esboça a concepção da angústia como um sinal de reação do eu a um perigo. A natureza de tal perigo classifica a angústia em realística ou neurótica: enquanto na primeira se trata da reação à percepção de algum perigo externo e preparação para a fuga, logo, está ligada à pulsão de autopreservação, a segunda se refere a uma geração inadequada de angústia ou uma “ansiedade livremente flutuante” (p. 399). Ou seja, a angústia neurótica é uma versão patológica da angústia realística, pois ela antecipa um perigo que de fato não existe. A separação entre angústia realística e neurótica, no entanto, cai por terra quando Freud diz que sim, que existe um perigo na neurótica. Porém, ele não ameaça o sujeito de fora, e sim de dentro. É um risco que se refere estritamente à pulsão cuja satisfação apresenta perigo ao sistema psíquico em sua homeostase. Assim, a angústia passa a ser entendida como sinal protetor, funcional, que antecipa o perigo da pulsão e com isso exime o sujeito do susto (Furcht) que ele sentiria caso não fosse antes avisado. Tal como na angústia realística, quando sentir o perigo de um animal selvagem, por exemplo, é a reação mais adequada para que seja tomada a devida ação (a fuga), a angústia neurótica passa a ser protetora: Conforme sabemos, a geração de ansiedade é a reação do ego ao perigo e o sinal para empreender a fuga. Assim sendo, parece plausível supor que, na ansiedade neurótica, o ego faz uma tentativa semelhante de fuga da exigência feita por sua libido, que o ego trata este perigo interno como se fora um perigo externo. Portanto, isto corresponderia à nossa expectativa de que, onde se manifesta a ansiedade, aí existe algo que se teme (Freud, 1916-17/1996, p. 405). Mas, o que se teme exatamente? Qual é o fundamento do perigo da pulsão? Freud vai buscar a resposta na ontogênese do indivíduo. Ele explica que o estado afetivo surge da repetição de uma experiência significativa do período da infância, ou seja, ele é o “precipitado de uma reminiscência” (Freud, 1916-17/1996, p. 397). No caso da angústia, essa vivência original é o ato do nascimento no qual se concretiza a separação da mãe. A criança é lançada à frustração e sua libido, impossível de se escoar através do objeto-mãe, se transforma em angústia. A ideia da separação da mãe como protótipo da situação geradora de angústia foi mantida por Freud até o final de sua obra. Porém, em 1926 ele recusa veementemente a tese de 41 Rank de que a situação originária de tal separação é o nascimento. Como dizer de angústia no ato do nascimento onde ainda não há um eu? A principal novidade encontrada em Inibição, sintoma e angústia (1926) é a concepção da angústia não mais como produto do recalque (Freud, 1915b/1996), mas como sinal para que o recalque ocorra. Aqui, a segunda tópica psíquica que já fora formulada em O Eu e o Id (1923) é a base para uma nova leitura da angústia. Freud sugere que a participação da libido na economia deste afeto não é mais de um restante não empregado na tarefa sexual propriamente dita, tampouco um montante quantitativo decantado da representação que foi recalcada. Trata- se de uma ameaça constante proveniente do id cujas pulsões insistem em satisfazer-se a todo custo, ainda que isso traga desprazer ao eu. É dessa libido que o eu precisa agora se proteger, convocando o princípio do prazer para ativar o recalque e trazer de volta a homeostase; caso contrário, ele será lançado ao desamparo do trauma cujo protótipo é a perda da mãe. O problema de como surge a angústia na repressão pode não ser simples; mas temos o direito de nos apegar à ideia de que o Eu é a genuína sede da angústia, e de rejeitar a concepção anterior de que a energia de investimento do impulso reprimido é transformada automaticamente em angústia. Se antes me expressei desse modo, forneci uma descrição fenomenológica, não uma exposição metapsicológica (Freud, 1926/2014, p. 22). A metapsicologia da angústia se sustenta, a partir deste momento, sobre a nova tópica na qual o eu ganha papel ativo na constituição desse afeto, dada sua necessidade de proteger o aparelho psíquico contra o trauma. Aqui finalmente a noção de perigo é relacionada pormenorizadamente ao trauma, pois o perigo por excelência é o desamparo. Nele o sujeito fica imerso às pulsões do id que, tal como na prototípica situação da perda da mãe, não encontram um objeto para se ligarem e acabam gerando no aparelho psíquico o excesso de energia que dá qualidade ao trauma. As pulsões são as verdadeiras ameaças diante das quais o eu se protege gerando um “sinal de desprazer” (Freud, 1926/ 2014, p. 21), a angústia, convocando a “quase todo-poderosa instância do princípio do prazer” (p. 21) a ativar o recalque. Freud (1926/ 2014) parece não satisfeito com a explicação de que a pulsão por si só seria uma ameaça, pois se ela causa desprazer ao eu é porque tem algum dado da realidade que imprime nela um risco maior do que o mero desprazer. Assim, ele recorre novamente à noção de angústia realística para dizer que sim, há um perigo real, palpável, que incorre na perda do próprio órgão físico, o pênis. Isso gera a causalidade que Freud precisava para comprovar o risco da satisfação da pulsão: a consequência de tal satisfação não é senão a ameaça de castração. Ele chega a isso a partir dos casos de fobia analisados (Hans e Homem dos Lobos) 42 nos quais a verdadeira fonte da angústia é o temor da castração em decorrência da possível realização dos desejos edipianos: “nos dois casos, o móvel da repressão é o medo da castração” (Freud, 1926/ 2014, p. 42)9. Nisso o eu tem papel primordial, pois é o medo que ele sente de ser castrado que se transforma em motor para a geração de angústia e consequente recalque. Freud chega a falar de uma “postura angustiada” (Freud, 1926/2014, p. 44) do eu como sendo o elemento primário e instigador do recalque. Ele diz: “A exigência instintual não é um perigo em si, mas apenas por acarretar um real perigo externo, a castração” (p. 65). Isso o leva à conclusão de que “é a angústia que gera repressão, e não, como julguei anteriormente, a repressão que gera angústia” (p. 43). A castração é, portanto, o motivo pelo qual se torna necessário o recalque. A inversão da lógica do recalque se dá em torno deste ponto: angústia não é mais a energia que resta do material recalcado, e sim aquilo que impulsiona o recalque para que a memória do trauma não seja novamente ativada. Isso significa que a formação do afeto não pode ser explicada mais economicamente: “a angústia não é gerada novamente na repressão, e sim reproduzida como um estado afetivo, segundo uma imagem mnêmica já existente” (Freud, 1926/2014, p. 23). Tal imagem mnêmica tem a ver com a ameaça de castração inconsciente e com os demais desejos edipianos insatisfeitos que, em última instância, levam o sujeito ao trauma do desamparo. Ainda que a centralidade da noção de castração pareça ter apaziguado a ânsia de Freud em encontrar uma explicação louvável e fundada na realidade para a angústia, ele demonstra, tanto no texto de 1926 quanto na conferência de 1933 sobre a angústia, que a importância da ideia de desamparo se liga não exatamente a uma perda físíca, mas a algo mais arcaico. “Nos dois aspectos, como fenômeno automático e como sinal salvador, a angústia revela-se produto do desamparo psíquico do bebê, que é a contrapartida evidente de seu desamparo biológico” (Freud, 1926/ 2014, p. 80). A diferença entre o fenômeno automático e a angústia como sinal é crucial: na primeira “se produz no id a situação análoga ao trauma do nascimento” (p. 94), daí a angústia ser automaticamente ativada como irrupção de energia; já a segunda é ativada propositadamente pelo eu como sinal de proteção contra o perigo. Freud faz uma comparação interessante: “neste segundo caso, o Eu se submeteria à angústia como se esta fosse uma vacina, aceitando a 9 Nota-se que a importância da angústia realística é menos uma distinção essencial quanto à angústia neurótica do que o apoio que Freud procura, neste texto e ao longo de toda a sua obra, na biologia. Ela legitima a noção de angústia a partir de um correspondente na realidade, no caso, a perda do pênis. Lacan (1962-63/ 2005), por sua vez, vai transpor essa realidade para a cena do mundo e considerar que é o real, e não a realidade, que está em causa na angústia. 43 forma atenuada de uma doença para escapar ao seu ataque pleno” (p. 110). Ou seja, a angústia- sinal protege o aparelho psíquico justamente contra a angústia automática que levaria à original situação de perigo, o desamparo. Há a considerar também que nas vivências que levam à neurose traumática é rompida a proteção contra estímulos externos e quantidades muito grandes de excitação se aproximam do aparelho psíquico, de maneira que uma segunda possibilidade se apresenta: a angústia não apenas é sinalizada como afeto, mas também é produzida como algo novo nas condições econômicas da situação (Freud, 1926/ 2014, p. 70). O que significa dizer que, quando a força da vivência externa rompe a camada de proteção do eu, a angústia fracassa como sinal e ocorre uma superexcitação que concede à experiência seu valor de trauma. É esta a angústia automática que surge inapropriadamente e é vivida como nova situação de perigo. Já a angústia-sinal serve para ativar a memória da experiência traumática antiga, reconhecendo a situação de perigo iminente e sinalizando ao princípio de prazer para erigirem-se as defesas necessárias contra a inundação energética. Por isso Freud diz que, para que haja uma proteção contra o trauma, esse sinal da angústia precisa ser vivido antes como desprazer; porém, um desprazer necessário para o retorno do equilíbrio psíquico e predomínio do princípio do prazer. Trata-se da “transição do automático e involuntário ressurgimento da angústia para sua deliberada reprodução como sinal de perigo” (Freud, 1926/ 2014, p. 80, grifo nosso). A angústia-sinal é, pois, um verdadeiro afeto protetor que impede o sujeito de passar novamente pela experiência traumática cujo protótipo é, na teoria freudiana, a perda do objeto. A metapsicologia da angústia, então, toma o fator dinâmico no lugar do problema quantitativo do afeto. Freud enfatiza que a angústia não deve ser tratada mais como uma questão econômica, mas como um estado afetivo que reproduz uma imagem mnêmica. A ideia do trauma se refere à origem desse estado afetivo e remonta aos “precipitados de antiquíssimas vivências traumáticas” (Freud, 1926/ 2014, p. 23) que se incorporam ao psiquismo e que são “despertados como símbolos mnêmicos quando situações análogas ocorrem” (p. 23). As experiências originárias do desmame, da defecação (separar-se das fezes), enfim, as situações de separação do objeto deixam traços mnêmicos de onde se precipita a sensação do perigo. Freud apresenta a série de fatores psicológicos geradores de angústia correspondes a cada fase do desenvolvimento: desamparo psíquico inicial (nascimento), perda do objeto (mãe), castração (perda do órgão) e, por fim, perda do amor do supereu, que leva à angústia da consciência ou angústia social e está ligada à dimensão paterna do desamparo. Apenas para indicar o que será visto nos próximos capítulos, vale lembrar que essa série de objetos cuja perda lança o sujeito ao desamparo é o que autoriza Lacan (1962-63/ 44 2005) a ler na obra freudiana uma correlação estreita entre a angústia e o objeto a. O a é justamente o objeto que se isola, que se determina no ponto em que o sujeito se reconhece em suspensão diante do desejo do Outro. Por isso Lacan o chama de objeto causa de desejo, por ser o que “por trás do desejo, impele o sujeito a se voltar para uma realidade de eleição” (Kaufmann, 1996, p. 38). Ao dizer que a angústia não é sem objeto, Lacan se refere à natureza inacessível desse objeto que falta, ou seja, a “presciência da irredutibilidade do real, que não podemos em nenhum caso nomear, senão para exprimir em termos lacanianos as vigas freudianas da castração e da morte – na evanescência do falo e na atualização mortífera do gozo” (Kaufmann, 1996, p. 38). Para Lacan, a angústia é sinal daquilo que é estranho à função significante, ou seja, o real: “já podemos dizer que esse etwas diante do qual a angústia funciona como sinal é da ordem da irredutibilidade do real” (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 178). Assim, o ‘pulo do gato’ lacaniano empresta a essa série de objetos colocados por Freud (mãe, pênis, supereu) uma barra. É por serem furados que esses objetos não correspondem à imagem perfeita de um desejo satisfeito, o que significa que o amparo propriamente dito é ilusório. O Outro, tal como podemos chamar em Lacan a dimensão desses objetos aos quais Freud atribui uma consistência física, remete o sujeito à sua insuficiência por ser ele mesmo barrado. A garantia que o sujeito espera do Outro não lhe é dada justamente porque o máximo que esse Outro, também atormentado pela castração, pode fazer é refletir a negatividade da falta. Por isso Lacan coloca a castração no registro imaginário como móbil da dependência do sujeito em relação à imagem do outro (semelhante) e enredo dos acidentes de cena traumáticos. Kaufmann (1996) diz: A angústia de castração renova portanto a dependência fundamental do sujeito para com o Outro, com a originalidade, em Lacan, de se alimentar da decepção do sujeito com relação à expectativa de uma garantia do Outro; exatamente como o sujeito, o Outro está barrado, em outras palavras, ‘não há Outro do Outro’ (p. 41). Retomando a redefinição da teoria da angústia em Freud, destaca-se a primazia da noção de trauma. Como explica Kaufmann (1996), “Freud vai considerá-la cada vez mais como a marca histórica das tendências através das quais se manifestam o impacto do traumatismo, os avatares da relação de objeto e o mal-estar de um eu atormentado pelas vacilações de sua integridade” (p. 36). Isso faz inclusive com que a ordem causal das neuroses seja invertida. Se nos primeiros tempos a neurose de angústia tinha como causa um fator atual da vida sexual, enquanto a histeria e a neurose obsessiva eram originadas de um conflito sexual infantil, agora a histeria de angústia é a mais precoce das doenças neuróticas, por ter sua origem remetida à situação primitiva do abandono. Essa regressão da causa do afeto é 45 muito interessante, pois vai de um extremo a outro. Se na neurose de angústia só se considerava a vida sexual atual do sujeito, agora a origem da angústia recua a um passado primevo inacessível pela consciência e até mesmo pelo inconsciente, dada sua característica de ruptura dos aparatos simbólicos. A angústia-sinal ganha, com isso a noção de desamparo, a função essencial de proteção contra uma angústia patológica anterior. Esta última remete ao trauma cujo significado é a ultrapassagem de um certo limiar além do qual as representações são insuficientes para ligar a excitação. Há em sua raiz a dimensão de um excesso que extrapola os níveis psíquicos – ou seja, que não pode ser reduzido à operação significante – e que aparece como algo fora do sentido. É essa imagem mnêmica traumática que precisa ser avisada pela própria angústia (porém, desta vez em dose pequena) para que o princípio do prazer ative suas defesas, em especial o recalque. Dada a relação essencial entre a angústia, o trauma, o recalque e formação de sintoma, Freud (1926/2014) diz que este afeto está na base da constituição da neurose. Como observa Viola (2009), faz-se ver “a singularidade da angústia no campo dos afetos como consequência de seu parentesco evidente com a dimensão do trauma” (p. 25). Devemos lembrar, contudo, que a própria noção de trauma jamais é desvinculada da concepção econômica. Embora sua ligação com o traço mnemômico deixado por experiências primárias traga uma revolução na metapsicologia da angústia, até a última conferência sobre o tema, em 1933, Freud ainda insiste no dado quantitativo: “na verdade, sempre depende de fatores quantitativos decidir se o resultado haverá de ser ou não a doença” (Freud, 1933/1996, p. 403). Tanto é que ao buscar uma explicação para a origem da memória traumática – explicação que pretenda ir além da perda do objeto – ele retorna ao elemento econômico: Outra reflexão nos conduz além da ênfase na perda do objeto. Se o bebê exige ter a percepção da mãe, isso ocorre porque sabe, por experiência, que ela satisfaz rapidamente todas as suas necessidades. A situação que ele avalia como perigosa, contra qual deseja estar garantido, é a da insatisfação, do aumento da tensão gerada pela necessidade, diante da qual é impotente. Acho que considerado dessa maneira tudo se ordena. A situação de insatisfação, em que magnitudes de estímulo alcançam nível desprazeroso, não sendo controladas mediante a utilização psíquica e descarga, deve ser análoga à vivência do nascimento para o bebê, uma repetição da situação de perigo. Comum a ambas é a perturbação econômica gerada pelo aumento das magnitudes de estímulo a pedir solução, sendo esse fator, portanto, o autêntico núcleo do ‘perigo’ (Freud, 1926/ 2014, p.79). Observa-se então que o próprio conceito de desamparo na obra freudiana ganha uma explicação econômica, apesar das várias correlações que ele tece com a ideia de representação. Seu locus privilegiado é de fato o eu, pois o id não é capaz de julgamento e o supereu participa apenas da angústia social, mas no papel de objeto cujo amor o eu teme perder e também no 46 qual o eu projeta seus medos quanto ao poder do destino e da morte. “Pareceu-me que a variante final dessa angústia ante o Super-eu é a angústia diante da morte (pela vida), o medo da projeção do Super-eu nos poderes do destino” (Freud, 1926/2014, p. 82). Enfim, o desamparo é sentido sempre pelo eu e ocorre quando há um aumento de excitação além do limite que o psiquismo dá conta de suportar. O eu se encontra desamparado “ante uma enorme tensão gerada pela necessidade, o qual, como no nascimento, resulta na geração de angústia” (p. 84). Trata-se, pois, de não perder de vista que a metapsicologia da angústia reserva um caráter duplamente econômico e representacional, com suas devidas extensões e inflexões. 2.4 A angústia no processo criativo Pode-se agora fazer uma relação dessa nova concepção da angústia com a questão do movimento estético, tal como foi feito na parte 1 da metapsicologia. Há uma passagem em Inibição, sintoma e angústia onde Freud explica que a imagem mnêmica da pessoa amada é intensamente investida e, quando ela se afasta da criança, cria-se nesta um anseio que se transmuta em angústia. “Tem-se mesmo a impressão de que essa angústia seria uma expressão de perplexidade, como se aquele ser ainda pouco desenvolvido não soubesse fazer nada melhor com esse investimento de anseio” (Freud, 1926/2014, p. 78). Isso parece bastante interessante para pensar a imagem do desamparo: tal perplexidade diz de uma impossibilidade de reação – uma impotência – que não é como a da inibição, mas sim do momento de encontro com o trauma. Neste, o sujeito fica perplexo, paralisado, estático diante de algo que inunda o psiquismo de anseio. Nas palavras de Freud (1916-17/1996): “E os senhores podem verificar, realmente, que, se a ansiedade for excessivamente grande, ela se revela inadequada no mais alto grau; paralisa toda ação, inclusive, até mesmo, a fuga” (p. 395). Assim, a primeira resposta ao desamparo é essa angústia automática que cria um vazio na representação, um hiato por onde veremos entrar a dimensão do real a partir da leitura lacaniana. A experiência clínica atesta estados insuportáveis que não cabem ser lidos pelo viés da angústia sinal protetora, tampouco da libido não descarregada, mas sim de uma angústia paralisante que, como observa Kaufmann (1996), naufraga o sujeito na inibição e no pânico. Parece tratar-se de um traumatismo que atualiza a carga afetiva e tem todo o impacto do pavor. Logo, essa estática é muito próxima à angústia do desamparo, esta que joga o sujeito num abismo onde lhe faltam recusos simbólicos. 47 As considerações entre este afeto, tal como ele aparece na segunda formulação freudiana, e a sublimação devem agora levar em conta a primazia do eu como sede da angústia, além da participação da pulsão de morte nas operações sublimatórias. Por mais que Freud (1926/2014) aponte, quanto ao eu, “sua impotência e suscetibilidade à angústia perante os dois (id e supereu), sua arrogância penosamente mantida” (p. 26), é ele quem exerce o domínio sobre a economia psíquica, protegendo o psiquismo contra o trauma e determinando quais satisfações podem ser levadas a cabo (em destaque para a sublimação) e quais devem ser barradas. Então, se por um lado o eu proibe a realização sexual da maneira como o id gostaria de fazer, sendo uma espécie de mediador entre o id e as exigências do supereu, por outro ele aceita que a sublimação seja livremente exercida em prol não apenas de um coletivo, mas especialmente do equilíbrio psíquico. A afinidade do eu com a sublimação tem origem na própria “energia dessexualizada” (Freud, 1926/2014, p. 28) que lhe é própria e da qual parte sua necessidade de ligação e união, sua “compulsão à síntese” (p. 29). Da mesma forma que ele tende a integrar o sintoma em sua organização – daí a dificuldade de desfazer um sintoma em análise, já que ele acaba por se transformar numa espécie de ‘cara do eu’ – há também uma propensão à síntese que decorre da ideia de sublimação. A dessexualização na sublimação se explica justamente pela interferência do eu no processo de metabolismo das pulsões, donde a energia sexual necessita ser transfigurada para outras finalidades. Logo, o eu é aquele que media tanto os processos relativos à angústia quanto aqueles relacionados à sublimação. Foi inclusive essa ideia da dessexualização que fez Freud passar da teoria da angústia como originada da libido para a angústia-sinal que tem sede no eu. “Como o Eu trabalha com energia dessexualizada, também o íntimo nexo entre angústia e libido foi afrouxado na inovação” (Freud, 1926/ 2014, p. 109). A introdução da pulsão de morte também participa dessa nova teoria da angústia, ainda que Freud não deixe isso muito explícito. A própria noção do trauma já nos permite deduzir que, se a função da angústia é proteger contra uma nova emergência traumática, ela também interfere de certa forma no movimento de repetição da pulsão de morte. Isso só faz sentido se novamente sairmos da concepção puramente econômica para uma abordagem que leve em consideração a memória do trauma. Foi essa passagem que levou Freud a dizer, em Além do Princípio de Prazer (1920), que não bastava considerar a compulsão à repetição como causadora de desprazer ao eu e prazer ao id, uma vez que ela seria fruto do material recalcado inconsciente. Sua descoberta extrapola o pensamento meramente baseado na homeostase do princípio de prazer: 48 Contudo, chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos. (Freud, 1920/ 1996, p. 31) Freud é obrigado a considerar o fator mnemônico, de “rememoração do passado”, na compulsão à repetição, pois trata-se de um impulso que não gera prazer nem mesmo ao id. Essa inflexão na teoria do princípio do prazer, em que se verifica a existência de uma descarga que leva, contraditoriamente, ao desprazer, orienta Freud (1920/ 1996) a buscar “algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais instintual do que o princípio de prazer que ela domina” (p. 34). Esse “algo” é a pulsão de morte que ele contrapõe às pulsões de vida (incluindo agora as pulsões sexuais, além das de conservação). Como se sabe, é ela que tende a retornar à inércia (ou estática) inerente à vida orgânica, a fim de “restaurar um estado anterior de coisas” (p. 47), o estado inanimado. Interessante notar que a pulsão de morte nasce apoiada no eu: “em nossa hipótese, os instintos do ego se originam da animação da matéria inanimada e procuram restaurar o estado inanimado” (p. 55), em oposição às pulsões de vida que visam à imortalidade. Disso se depreende que o eu é ao mesmpo tempo o lugar da dessexualização da libido (própria à sublimação), da angústia e da pulsão de morte. Pode-se supor, então, que a dessexualização é a própria morte do eu? Como se averiguaria a sublimação nessa perspectiva? Freud cai num impasse, pois em 1914, no texto sobre o Narcisismo, o eu passa a ser lugar não apenas das pulsões de autoconservação (que se opunham, no primeiro dualismo pulsional, à libido), mas também alvo de Eros, uma vez que no narcisismo a libido toma o eu como objeto de amor. Logo, a oposição entre pulsões do eu e pulsões sexuais se torna insustentável e ele passa a falar em pulsões de vida e de morte. O eu não mais domina a pulsão de autoconservação, e sim é objeto tanto de Eros quanto dos ataques da pulsão de morte, especialmente provenientes do supereu. Como pode então o eu só trabalhar com a energia dessexualizada? Enfim, Freud percebe a dificuldade em fazer uma diferenciação das pulsões a partir do eu: “Infelizmente, porém, a análise do ego fez tão poucos avanços, que nos é muito difícil proceder assim” (Freud, 1920/ 1996, pp. 63-64). O ponto importante aqui é deixar clara a diferença entre angústia e pulsão de morte. O texto Além do Princípio de Prazer permite fazer essa distinção, que pode ser facilmente ignorada quando se manuseia esses conceitos sem se atentar para a metapsicologia. Trata-se de que a angústia não é sentida como desprazer, mas sim sinal de desprazer. Enquanto a pulsão 49 de morte tende a desequilibrar o princípio de prazer, gerando uma repetição que o excede, a angústia age em busca do retorno ao equilíbrio, já que ela é usada em prol do princípio de prazer. Obviamente, aqui caberia uma objeção: Freud não diz apenas da angústia sinal, mas também daquela que aumenta os níveis de excitação, a angústia automática, que tal qual a pulsão de morte gera desprazer. Ora, a oposição não se desfaz quando pensamos que ambas, angústia automática e pulsão de morte, se traduzem no excesso próprio do trauma? Parece que podemos responder afirmativamente a essa questão, ainda que isso não esteja explícito na obra freudiana. E mesmo fazendo essa aproximação, ainda correríamos o risco de cair em outro paradoxo. A pulsão de morte é, no final das contas, um retorno à inércia. É ela que tende a baixar os níveis de tensão – além ou aquém do limiar desejável pelo princípio de prazer, é claro, mas sempre a favor da descarga de energia. Assim, pela teoria econômica, não se pode dizer que ela invariavelmente causa desprazer. Freud chega a afirmar no final do texto: “O princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte” (Freud, 1920/ 1996, p. 74). Nesse sentido, a angústia-sinal também está a favor da pulsão de morte. Ao passo que, também caberia supor, é a pulsão de morte que trabalha a favor do princípio de prazer na redução da energia que a angústia automática tratou de elevar. A complexidade da teoria freudiana comporta tantos paradoxos instigantes que a eleição de dois conceitos como angústia e sublimação levaria a uma articulação infindável – ou, ao menos, muito maior do que o espaço desta dissertação permite. Não obstante, pode-se destacar o essencial da sublimação nesta segunda teoria da angústia: a energia dessexualizada do eu leva a crer que a atividade criativa acaba sofrendo a interferência tanto da pulsão de morte quanto da angústia. Ana Cecília Carvalho (2003) localiza dois momentos da teoria freudiana da sublimação: o primeiro estaria relacionado à primeira teoria da angústia, onde a função de apaziguamento pulsional pela via sublimatória está em evidência, com a vantagem de ser uma escapatória ao recalque. Ponderando o destino nobre de tal função, em oposição à saída pela neurose, fica claro que “essa formulação permitia pensar que a sublimação se opunha à formação de um sintoma a partir do recalque” (Carvalho, 2003, p. 242). Porém, a percepção de que nem todo artista e escritor estava isento de sofrimento mental levou a um segundo momento da teoria, após a introdução da pulsão de morte e junto à segunda formulação da teoria da angústia, onde aparece a interrogação sobre o drama emocional da vida dos artistas. Nessa vertente, “a angústia de desamparo, surgida na relação do sujeito com o vazio e o inominável, é vista como o elemento incessante e mobilizador do processo criativo” (Carvalho, 2003, p. 243). Assim, através da criação o artista não se vê livre 50 do sofrimento, mas está em relação permanente com ele; ou seja, ele não elimina o conflito psíquico por meio da sublimação. A angústia, nessa leitura, pode ser tanto uma fonte de inspiração para a criação como pode ocorrer um certo “retorno do sofrimento” (Carvalho, 2003, p. 243) através do ato mesmo de criar. Segundo a autora: Embora sempre se possa pensar nas compensações jubilatórias envolvidas na produção artística, estas não eliminam o conflito que se encontra na base das motivações das quais resulta a obra de arte. (...) Assim, a especificidade da sublimação teria muito mais a ver com esse efeito, que resulta na transformação compartilhável das forças motivadoras mentais do artista, do que com o fato de que, por meio dela, alguém poderia se ver livre do sofrimento psíquico (Carvalho, 2003, p. 244). De fato, parece que quanto mais Freud aproxima a psicanálise de uma leitura social, como em O futuro de uma ilusão (1927) e O mal-estar na civilização (1930), paradoxalmente o conceito de sublimação, que melhor responde à interface entre o campo subjetivo e a sociedade, se mostra insuficiente ou menos poderoso no sentido de fazer frente à angústia, tanto social quanto individual. Ao mesmo tempo em que considera a satisfação que advém da criação – “... a alegria do artista no criar, ao dar corpo a suas fantasias, a alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade...” (Freud, 1930/ 2010, p. 35) – bem como do encontro do espectador com a obra de arte, ele reconhece que esse encontro produz no máximo uma “suave narcose” ou um “passageiro alheamento às durezas da vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real” (p. 37). Assim, além de considerar que poucos têm talentos e disposições pessoais para tais atividades, Freud está certo de que a sublimação não assegura uma proteção completa ao sofrimento ou um “escudo impenetrável aos dardos do destino” (Freud, 1930/ 2010, p. 36). Isso significa que a economia gasta nas tarefas “mais finas e elevadas” (p. 35) não é similar à satifação de “impulsos instintuais grosseiros e primários” (p. 35). Rivera (2006) explica que o sublime se conecta com a psicanálise a partir dos elementos do sexual, do gozo, do estranho. Segundo ela, em Freud a sublimação comporta a ideia da transformação de algo baixo em algo socialmente valioso, e é apenas na década de 1920, quando surge a pulsão de morte, que a vertente da desmedida, do conflito, da contradição inerente à estética do sublime aparece com a noção de Unheimlich. No ‘estranho’ freudiano – do qual Lacan retira o sentimento fundamental da estranheza que constitui a angústia – olhar e castração compõem a fórmula daquilo que é familiar e estranho ao mesmo tempo. A imagem é ao mesmo tempo narcísica e mortífera, pois alude à castração ao remeter àquilo que não é visível, ao que nela não aparece. 51 Com o Estranho, o campo da arte é irremediavelmente afastado das altas realizações nas quais a pulsão é amortecida e reformulada socialmente, para se localizar no terreno angustiante do olhar em suas relações com a castração (mesmo no domínio da literatura), através de um arranjo significante que refaz o conflito irresolúvel entre Eros e pulsão de morte. A partir dessa configuração, o movimento pulsional não será mais ressaltado em sua possibilidade de elevar-se além do sexual, mas se tornará prioritariamente o da repetição do mesmo, ainda que minimamente transfigurado, em busca da retomada da própria origem e causa última do desejo, a Coisa (das Ding) (Rivera, 2006, p. 321). Se a análise de Leonardo da Vinci, como vimos, traz uma imagem quase perfeita da transposição das pulsões sexuais à atividade sublimatória, após o advento da pulsão de morte as coisas já ganham uma complexidade maior. Freud percebe o caráter de insuficiência do processo sublimatório, desmistificando a ideia de um apaziguamento das inquietações, o que eximiria a vida de um artista ou cientista do sofrimento uma vez que eles estivessem dispostos a trabalhar em suas elucubrações teóricas e artísticas. Nesse sentido, se a angústia pode ser pensada como motor da criação, ela é também o afeto que divide o sujeito, lembrando-o sempre de sua dimensão traumática e da irredutibilidade da pulsão aos destinos do simbólico. Como ressalta Carvalho (2003), é possível ver na sublimação não uma saída fechada que escapa ao recalque, à angústia e à dor, mas uma reabertura permanente às excitações provenientes da pulsão. O que não invalida, obviamente, a tese de que ela serve de canalização para tal excitação, sendo “por meio dessas ligações que o psiquismo dá forma e domina o traumatismo da irrupção pulsional” (p. 244). Nesse sentido, é uma operação que dá um certo tratamento para a angústia automática – aquela que Freud (1926/2014) qualifica como um excesso de energia que frustra as defesas psíquicas – enquanto, em relação à angústia-sinal, a sublimação é mais uma aliada na perspectiva do enfrentamento do trauma. Ainda assim, como nos lembra Freud, nunca estamos totalmente protegidos da irrupção traumática – seja pela angústia sinal ou pela sublimação. A clínica testemunha o tempo todo a insuficiência das defesas psíquicas frente à contingência da pulsão. Por fim, também o fato de ser adulto não oferece proteção suficiente contra o retorno da traumática situação angustiosa original. Deve haver, para cada indivíduo, um limite além do qual seu aparelho psíquico fracassa em lidar com as quantidades de excitação que requerem aviamento (Freud, 1926/ 2014, p. 93). 52 3 DAS DING E OBJETO A: PERSPECTIVAS DA SUBLIMAÇÃO E ANGÚSTIA EM JACQUES LACAN “A psicologia clássica ensina que o material da experiência compõe-se do real e do irreal, e que os homens são atormentados pelo irreal no real. Se assim fosse, seria inteiramente inútil termos esperança de nos livrar disso, em razão de que a conquista freudiana nos ensina, por sua vez, que o inquietante é que, no irreal, é o real que os atormenta” (Lacan, Seminário, livro 10: A angústia) No Seminário, livro 7: A Ética da Psicanálise, ministrado por Lacan entre os anos de 1959 e 1960, é apresentado o problema da sublimação. Não foi por um acaso que Lacan o situou no mesmo lugar que a questão moral. Sabe-se que em Freud a sublimação se presta como destino mais nobre da experiência pulsional, sendo a atividade por excelência onde as pulsões mais baixas (sexuais e de morte) são capazes de se transformar em elementos mais elevados, ou seja, elementos da cultura. É um exercício ético que está, em última instância, embutido na operação sublimatória. Uma vez que o indivíduo concorda em renunciar à realização da satisfação direta das pulsões em prol de sua participação na vida civilizada, trocando uma parcela de egoísmo pela equação social, isso o insere em uma nova ordem. Ele passa a comungar dos aparatos da cultura que fazem dele um cidadão, um sujeito social, enfim, um sujeito ético. Sublimar significa também passar de uma governança restrita ao princípio do prazer para uma realidade no horizonte da qual se vislumbra algo de uma ética. A ética freudiana, entretanto, contém um significado que vai além da dita “moral sexual civilizada” (Freud, 1908) e é desse além que Lacan vem nos falar neste seminário. A novidade que encontramos na dissertação lacaniana – porém esclarecendo que o próprio Lacan não deixa de atribuir a Freud todo o mérito da invenção, considerando-se não mais que um leitor de Freud – é perceber que a ética de que se trata na psicanálise está em relação ao sujeito desejante. Os patamares sobre os quais Lacan argumenta são freudianos. Se há uma subversão na questão moral em Lacan, essa subversão está inscrita nas linhas freudianas, porém só pode ser lida com ajuda de uma lupa – seja ela a filosofia de Hegel e Kant, a literatura de Sade ou o estruturalismo. É por isso que a famosa frase que ele profere no seminário em Caracas, “vocês podem ser lacanianos, se quiserem; eu sou freudiano” (Lacan, 1980) não é mera retórica. Há uma verdade nisto, e é objetivo deste capítulo mostrar que a leitura de Lacan sobre Freud permite que avancemos sobre o campo da sublimação a partir do estudo daquilo que é o seio da ética, a saber, das Ding. Não abordaremos a questão da ética propriamente, mas localizar 53 das Ding na experiência clínica é fundamental para conhecer o sujeito que a psicanálise se propõe a escutar. Ao longo desse desdobramento, será possível entrever a relação de das Ding com o objeto a – objeto da angústia. A pesquisa se interessa pela intersecção entre os conceitos de angústia e sublimação, e para isso conta não apenas com o arcabouço teórico que sustenta a prática psicanalítica, mas também com o recurso de algumas formas artísticas em que o afeto de angústia parece estar em evidência. Privilegiamos aqui a performance por sua relação essencial com a dimensão do corpo e do estranhamento que esse corpo, destacado como objeto ao olhar do público, é capaz de causar. Ela pode ser lida sob a ótica de uma estética do sublime 10 , em que o elemento do trágico, do informe e do estranho se superpõem à beleza da forma. Inovando uma linguagem singular, libertando a arte do lugar comum, a reação da plateia é muitas vezes o choque. Renato Cohen (2013) afirma que se trata de uma “arte de intervenção, modificadora, que visa causar uma transformação no receptor” (p. 46). O público é convocado a ser autor da obra, como se seu próprio corpo – ou sua própria finitude – estivessem em questão. Dada a inversão de lugar entre artista e público, é como se já não se soubesse quem é sujeito e quem é objeto, ou quem é causado por quem. Antes de entrar no tema da performance, contudo, é importante destacar que o estranho é o fenômeno através do qual Lacan localiza o surgimento da angústia. O conto do Homem de Areira, de E.T.A. Hoffmann, comentado por Freud em seu famoso ensaio O estranho (1919), exibe o aspecto de estranheza de uma situação em que o olho daquele que olha aparece na cena. Ou seja, o objeto é duplicado no lugar da falta, como duplo, resultando em nada mais que a reafirmação dessa própria falta. O que, consequentemente, destaca o elemento de origem inconsciente que deveria permanecer escondido, porém veio à luz: a castração. Freud (1919/ 1996) cita alguns exemplos do estranho: animismo, magia, onipotência de pensamentos, atitude do homem frente à morte, compulsão à repetição e complexo de castração. O duplo, nessa perspectiva, é quando algo faz vacilar a imagem narcísica, inserindo esses elementos passíveis de sofrer recalque na realidade. Ao invés de serem escondidos pelo recalcamento, eles são exibidos em sua materialidade. Freud conta do dia em que viu, no reflexo da cabine do trem, uma imagem que ele julgou ser de um senhor de idade e depois surpreendeu-se, com um certo estranhamento, ao perceber que era sua própria imagem 10 O termo sublime é cunhado dentro de uma extensa tradição filosófica que, como observa Guilherme Massara Rocha (2010), coloca em evidência a polaridade do par significante belo/sublime. Assim, o sublime aparece “através de uma certa captura negativa do discurso sobre o belo” (p. 55). Sem pretender retomar os pormenores dessa discussão, por meio de outros conceitos apenas tangenciaremos a correlação entre sublimidade e performance, tendo em mente que na doutrina kantiana a angústia é o sentimento correlato do sublime. 54 espelhada. Esse deslocamento, que Lacan (1962-63/ 2005) chama de afânise do sujeito, é o que testemunha a ocorrência do sentimento de angústia. Procuramos encontrar a angústia na perspectiva da arte com base na performance. A obra produz um efeito de espelho para os que a assistem, configurando-se numa constante dissociação e recriação de imagens. O duplo, diz Freud (1919/ 1996) é a forte identificação com outra pessoa “de tal forma que (o sujeito) fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho” (p. 252). Também na performance o espectador se confunde diante da obra – esta o despe de sua fantasia narcísica e o convoca a se reposicionar diante do Outro e de si mesmo. Isso faz o sujeito aparecer em sua posição de objeto – não aquele da realidade, objeto empírico cuja versatilidade pode ser atestada no campo da troca, da utilidade, mas aquele que não é intercambiável, nem visível. Objeto a causa do desejo. É este que corresponde à angústia como sinal do estranho, conforme Lacan nos indica no Seminário, livro 10: A angústia. Veremos a centralidade da noção de objeto a para pensar o deslocamento do eu diante de seu próprio self (Freud, 1919) a partir do fenômeno do estranho, tanto na arte quanto na clínica. Vimos no final do capítulo 1 que a sublimação não é um processo fechado que encerra o movimento pulsional, mas ela se abre permanentemente à excitação. Sua função é essencial ao psiquismo, qual seja, de ligar e canalizar o excesso de energia para que não seja reativada a memória do traumatismo. Nesse sentido, ela dá um certo tratamento para a angústia – aquela angústia que Freud chama de automática por fazer lembrar ao sujeito sua origem no desamparo. Isso significa que a sublimação favorece o princípio de prazer ao facilitar o retorno à homeostase. Este princípio é, segundo Freud (1926/2014), acionado pelo outro tipo de angústia que funciona como sinal e que já não rompe as fronteiras psíquicas com o excesso de excitação (tal como a angústia automática), mas sim as protege ao avisar a iminência de um perigo. Logo, a economia psíquica conta com o recurso da sublimação para, junto à angústia sinal, lidar com a angústia paralisante que transborda a abrangência significante e é, portanto, traumática. Entretanto, por não ser um círculo fechado, nenhum sujeito está isento de sentir angústia se passa sua vida sublimando. Freud atentava para essa insistência da pulsão em se realizar – nem que seja em parte – pela via diretamente sexual. É como se os anseios mais primitivos, tanto os sexuais quanto os de morte, apelassem para serem descarregados como tais, sem passar pela dessexualização própria à operação sublimatória ou sem serem substituídos em sua natureza agressiva por uma outra desviada em prol do coletivo. Disso entendemos que a angústia, de maneira semelhante, não pode ser totalmente contida nos 55 desvios sublimatórios, mas há de retornar de fora ou de dentro deles. De fora porque o artista não está livre de sentir a angústia do peso da vida que, como diz Freud (1930/ 2010), “é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis” (p. 28). A arte não protege o artista ou o público do sofrimento, não sendo senão uma “suave narcose” (p. 37) que não é forte o bastante “para fazer esquecer a miséria real” (p. 37). E, se esse retorno da angústia pode acontecer de fora da obra, ou seja, se vem de um sofrer que está além das medidas de contenção e de prazer que a obra proporciona tanto ao artista quanto ao público, observamos que de dentro da própria arte também surge um ponto opaco que qualquer abstração pela beleza é incapaz de tamponar. Especialmete após a pulsão de morte e a segunda formulação da angústia em Freud, a sublimação passa a inserir, dentro mesmo do processo criativo, as esferas da destrutividade e do traumatismo. Como nota Ana Cecília Carvalho (2003), “nessa vertente, a própria criação torna-se o lugar em que, através de hesitações, interrupções e outras dificuldades, produz-se o retorno do sofrimento” (p. 243). A leitura lacaniana nos permitirá ver que todo processo sublimatório se dá em torno de uma negatividade e que a obra pode suscitar isso que é da ordem do retorno no real: tiquê (Lacan, 1964/ 2008). A arte também pode, enfim, causar sofrimento e angústia. 3.1 A sublimação entre a economia pulsional e o ideal social Freud elegeu o conceito de sublimação para tratar do mecanismo em operação na dinâmica das pulsões que resulta nas criações artísticas. Trata-se de um conceito caro ao pai da psicanálise, com o qual ele empreende a análise de grandes artistas e obras, tais como Leonardo da Vinci, Dostoievsky e o Moisés de Michelangelo, com base na hipótese de que a habilidade artística tem como lastro a vida sexual infantil. A fertilidade dessa sexualidade, porém, só gera tamanha capacidade criativa se for desviada de sua meta final que é a relação sexual genital. Ou seja, a sublimação consiste no “desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por sua orientação para novas metas” (Freud, 1905/1996, p. 167). Ela é, por excelência, o processo que engendra as mais altas realizações culturais e em geral tem início no período da latência sexual infantil, quando surgem “forças anímicas contrárias (moções reativas)” (p. 168) ao ato sexual cujos correspondentes conscientes são a vergonha, o asco e a moral. A pulsão sofre, nesse processo, um verdadeiro “abandono dos objetivos sexuais, uma dessexualização” (Freud, 1923/ 2011, p. 57). 56 Para Freud, a sublimação é uma espécie de destino nobre, elevado, das pulsões, porquanto está em prol da coesão da sociedade, e não dos objetivos egoístas da pulsão. Na abertura das conferências pronunciada em 1915, ele diz: “nesse processo eles (os impulsos sexuais) são sublimados – isto é, são desviados de suas finalidades sexuais e dirigidos a outras, socialmente mais elevadas e não mais sexuais” (Freud, 1915d/1996, p. 32). Em O mal-estar na civilização, é enfático quanto à importância dessa operação: “A sublimação do instinto é um traço bastante saliente da evolução cultural, ela torna possível que atividades psíquicas mais elevadas, científicas, artísticas, ideológicas, tenham papel tão significativo na vida civilizada” (Freud, 1930/ 2010, p. 60). Assim, ela aparece como a saída “mais fina e elevada” (p. 35) para essa impossibilidade da pulsão se satisfazer sempre de forma erótica. Lacan (1959-60/ 2008) parte da relação essencial, já indicada por Freud, entre a pulsão e os signos. Enquanto o instinto tem uma destinação natural, satisfazendo-se de uma só maneira, a pulsão, por estar no campo do significante, não tem um destino fixo. Ela percorre um caminho sinuoso para alcançar seu objetivo, qual seja, satisfazer-se com o objeto. Este objeto não é fixo tal como o objeto do instinto, mas pode ser substituído por outros – o que significa que a pulsão faz parte do jogo significante regido pela metonímia. Como comenta Orlando Cruxên (2004), “a pulsão é uma montagem humana histórica e singular” (p. 8). Dada sua mediação pela linguagem, a pulsão ainda difere do instinto por não ser totalmente satisfeita no encontro com este objeto, mas por ter sempre algo que escapa nessa realização. Por isso Lacan diz que o lugar do objeto na satisfação pulsional é “que a pulsão o contorna” (Lacan, 1964/ 2008, p. 166). É a plasticidade da natureza das pulsões que torna possível a sublimação como atividade que produz satisfação. Isso não significa, contudo, que a pulsão possa ser totalmente sublimada, como já alertava Freud. Este é o primeiro ponto de tensionamento que Lacan coloca em evidência a respeito do problema da sublimação. Há um limite na satisfação atingida por essa operação. Se as realizações intelectuais, científicas e artísticas dominam grande parte da vida das pessoas, nem por isso elas podem substituir totalmente a satisfação sexual direta. Como dizia Freud (1930/ 2010), é preciso “achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais exigências individuais e aquelas do grupo, culturais” (p. 58). Na sublimação, o próprio desvio do alvo já reduz a satisfação da libido, redução esta que Freud atribui à origem do mal-estar na civilização. Assim: Em terceiro lugar, enfim, e isto parece ser o mais importante, é impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre a renúncia instintual, o quanto ela pressupõe justamente a não satisfação (supressão, repressão, ou o quê mais?) de instintos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o largo âmbito dos vínculos 57 sociais entre os homens; já sabemos que é a causa da hostilidade que todas as culturas têm de combater (...). Não é fácil compreender como se torna possível privar um instinto de satisfação. É algo que tem seus perigos; se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios (Freud, 1930/ 2010, p. 60) Lacan (1959-60/ 2008) reafirma a tese freudiana: “Alguma coisa não pode ser sublimada, há uma exigência libidinal, a exigência de uma certa dose, de uma certa taxa de satisfação direta, sem o que resultam danos e perturbações graves” (p. 114). Essa exigência provém da fonte da pulsão, isto é, das zonas erógenas que são os pontos de fixação libidinal no corpo, sejam elas biologicamente dotadas de função sexual ou não. Essas zonas colocam um limite na sublimação justamente por serem circunscritas e determinadas pelo investimento libidinal que as torna fonte de pulsão. Lacan (1959-60/2008) fala do “caráter irredutível (...) desses resíduos das formas arcaicas da libido” (p. 116). Tratam-se de redutos de onde provém a exigência incessante de satisfação, isto é, a “força constante” (Freud, 1915a/ 2010, p. 54) da pulsão que lhe confere o caráter inesgotável. Se o limite é colocado pela fonte da pulsão, o alvo, por sua vez, é quase sem limite: é a abertura pulsional às eternas substituições. Freud (1915a/ 2010) enfatiza esse caráter móbil ao dizer que, devido à facilidade de trocarem seus objetos (ou alvos), “são capazes de realizações que se acham bem afastadas de suas originais ações dotadas de objetivo”(p. 64). A mudança no alvo é o que permite a satisfação se dar por uma via que não a do ato sexual, tampouco a do sintoma neurótico cuja satisfação é atravessada pelo recalque. A sublimação, por escapar ao recalque, proporciona uma satisfação direta – o que é um dos pontos que marca sua diferença da idealização (ou formação do ideal). Freud (1914/ 2010) explica: “como vimos, a formação de ideal aumenta as exigências do Eu e é o que mais favorece a repressão; a sublimação representa a saída para cumprir a exigência sem ocasionar a repressão” (p. 41). O que está em jogo na sublimação é a possibilidade de gozar de um outro modo, com elementos da cultura – ainda que isso não deixe de ser, de uma maneira ou de outra, gozo. Freud insiste neste ponto: há satisfação. Direta porque não é neurótica; desviada porque não é relação sexual. Lacan (1959-60/ 2008), porém, mostra o perigo de se cair na armadilha de uma conciliação fácil entre o indivíduo e a sociedade pela via da atividade sublimatória, como se bastasse a partilha de objetos na cultura para que o sujeito pudesse se satisfazer tranquilamente. A pulsão não se deixa apaziguar com tamanha facilidade. Por mais que se ateste sua plasticidade, vimos que ela exige uma certa realização pela via erótica. E isso, como diz Freud (1930) em Mal-estar na civilização, está longe da aprovação social. Por isso Lacan interroga se essa satisfação pela via sublimatória é tão direta assim: 58 O que se propõe desse modo como construção oposta à tendência instintual não pode absolutamente ser reduzido a uma satisfação direta, em que a própria pulsão se saturaria de uma maneira que só teria por característica a de poder receber a estampilha da aprovação coletiva (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 118) Este é, pois, um dos paradoxos embutidos na noção de sublimação. Paradoxo este que não apresenta uma contradição, ou seja, uma alternativa não cancela a chance de existência da outra, mas sim ambas são justificáveis dentro da complexidade dos argumentos psicanalíticos. Por um lado, a satisfação direta da pulsão significa sua realização num lado oposto ao do recalque, logo, escapando às limitações do sintoma neurótico. Por outro, o necessário desvio do alvo – já que não há consumação de uma relação erótica genital ou seja lá qual satisfação proveniente das exigências das zonas erógenas – modifica algo na economia da pulsão. Isso porque não se pode mais gozar individualmente quando se trata de sublimação, mas com objetos determinados pela cultura. A viabilidade da satisfação direta é assim atravessada pela condição de que haja uma partilha com o coletivo, o que já traz uma redução, um limite na meta da pulsão. Lacan articula esse paradoxo freudiano transpondo a questão da economia pulsonal em termos de operação significante. Como pensar a sublimação em sua função significante? Se ela não passa pelo recalque – ou seja, se não é uma substituição significante, tal como o sintoma neurótico – é porque a relação com o objeto é de certa forma imediata. Isso significaria excluí-la da dialética que introduz a metáfora. No entanto, a mudança de alvo corresponde a um desvio que não deixa a sublimação ser puro gozo, mas a insere necessariamente na rede simbólica. Será pela via da metonímia que devemos entender a sublimação? Lacan (1959-60/2008) explicita esse tensionamento da seguinte maneira: A sublimação nos é representada como distinta dessa economia de substituição, onde se satisfaz habitualmente a pulsão na medida em que é recalcada. O sintoma é o retorno, por via de substituição significante, do que se encontra na ponta da pulsão como seu alvo. É aqui que a função do significante adquire toda a sua importância, pois é impossível, sem colocá-la em jogo, distinguir o retorno do recalcado da sublimação como modo de satisfação possível da pulsão. É um paradoxo – a pulsão pode encontrar seu alvo em outro lugar que não seja naquilo que é seu alvo, sem que se trate aí da substituição significante que constitui a estrutura sobredeterminada, a ambiguidade, a dupla causalidade, do que se chama de compromisso sintomático (p. 135). Se não se trata de substituição significante – onde a possibilidade de satisfação com o objeto é recalcada – tampouco do gozo do ato sexual, nem por isso a sublimação se confunde com a identificação imediata ao objeto tal como ocorre na idealização. Lacan (1959-60/ 2008) esclarece que a relação com o objeto se coloca num nível diferenciado: “A satisfação da Trieb 59 é, portanto, paradoxal, posto que ela parece produzir-se fora do lugar em que está seu alvo” (p. 136). Assim, ela se conjuga entre a economia pulsional e o ideal social. Como o próprio Freud (1914/ 2010) alega, sublimação e idealização se confundem, posto que ambas flertam com a dimensão do ideal. Em ambas a relação com o objeto é perpassada pela renúncia da satisfação erótica em nome do social. Porém, enquanto na idealização a satisfação se produz no lugar mesmo do alvo, sendo que o objeto de amor é preservado e apenas passado à esfera do ideal, na sublimação o alvo é desviado e a satisfação se produz em outro lugar. Assim: A sublimação é um processo atinente à libido objetal e consiste em que o instinto se lança a outra meta, distante da satisfação sexual; a ênfase recai no afastamento ante o que é sexual. A idealização é um processo envolvendo o objeto, mediante o qual este é aumentado e psiquicamente elevado sem que haja transformação de sua natureza. A idealização é possível no âmbito da libido do Eu e no da libido objetal. De modo que a superestimação sexual do objeto, por exemplo, é uma idealização dele. Na medida, portanto, em que a sublimação descreve algo que sucede ao instinto, e a idealização, algo que diz respeito ao objeto, devemos separá-los conceitualmente (Freud, 1914/ 2010, pp. 40-41). Nota-se, pois, que se na sublimação a libido sofre uma “dessexualização” (Freud, 1923/ 2011, p. 57) que torna possível a relação objetal sem ser pela via erótica, na idealização há uma “superestimação sexual do objeto” (Freud, 1914/ 2010, p. 41). Ainda no texto Introdução ao Narcisismo (1914), Freud contrapõe a libido objetal, direcionada a objetos do mundo externo, à libido narcísica, que emerge na suspensão do investimento no mundo externo e retorno ao eu. Na passagem da libido objetal à narcísica, esta fica retida no ideal (eu ideal) participando da construção de uma imagem narcísica que se tornará o ideal do eu. “O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal” (Freud, 1914/ 2010, p. 40). Mais tarde, o ideal do eu ganhará um lugar especial na segunda tópica freudiana, lugar que conservará ao mesmo tempo a lei e o desejo: o supereu. A relação da sublimação com a libido objetal se justifica pela passagem do objeto sexual ao objeto cultural. A idealização pode contribuir para a sublimação pela ênfase que ela coloca naquilo que é ideal, porém são processos independentes. Isso fica mais claro quando o conceito de supereu é elaborado, pois ele é a instância que vai influenciar as escolhas de objeto do eu e fazer oposição aos desejos de satisfação do id (Freud, 1923/ 2011). Assim, ele guardará o lugar dos ideais e a sublimação poderá sofrer influência dele, mas sem se submeter totalmente. Isso já é anunciado em 1914: Haver trocado seu narcisismo pela veneração de um elevado ideal do Eu não implica ter alcançado a sublimação de seus instintos libidinais. É certo que o ideal do 60 Eu requer tal sublimação, mas não pode força-la; a sublimação continua sendo um processo particular, cuja iniciação pode ser instigada pelo ideal, mas cuja execução permanece independente da instigação (Freud, 1914/ 2010, p. 41). França Neto (2007) comenta que, por concernir ao objeto, a idealização está no campo narcísico, imaginário, logo, sucumbe às variáveis da identificação do sujeito com o objeto. Já a sublimação, por ser uma mudança da libido, apesar de também haver um deslocamento no objeto ela não se atém à identificação a esse objeto. Segundo o autor, a hiância na idealização é o que torna possível o movimento da sublimação. Apropriando-se da leitura lacaniana da sublimação, ele propõe pensar que na idealização a identificação do objeto com a Coisa, das Ding, pressupõe uma ausência de movimento devido à superposição dos dois. Já na sublimação há um movimento, um circuito, um processo que se dá justamente pela hiância na identificação do sujeito com o objeto. A idealização, neste sentido, aproxima-se mais da estagnação ou estática, enquanto na sublimação se trata de movimento, caminho, circuito, enfim, estética. Lacan (1959-60/ 2008) observa que Freud fala de alvo (Ziel) e não objeto (Objekt). Essa distinção é importante porque reforça a particularidade da pulsão de não se ligar a objetos específicos. Por isso Lacan coloca, no centro do movimento pulsional, das Ding – a Coisa que movimenta o princípio de prazer em busca do elemento perdido da realidade, como veremos adiante 11 . A pulsão tem uma tendência que busca a satisfação, que avança em direção ao alvo (das Ding), mas que não se realiza totalmente com os objetos. Estes, por sua vez, servem essencialmente de suporte imaginário para ocupar o lugar vazio da Coisa. “Das Ding, uma vez que o homem, para seguir o caminho de seu prazer, deve literalmente contorná-lo” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 119). A plasticidade do alvo – marca da diferença entre a pulsão humana e o instinto animal – é uma prova da orientação desviante de das Ding e da função eminentemente imaginária dos objetos. A idealização tem aqui sua função por conferir ao objeto passível de provocar satisfação um valor social. Isso significa que entre a tendência e o objeto da pulsão há uma diferença fundamental: enquanto este tem função primordialmente imaginária, aquela se inscreve a partir de das Ding. O problema lacaniano da sublimação ganha esta diferença essencial: o sujeito é, de certa forma, enganado respeito de das Ding, pois os elementos imaginários da fantasia, 11 A distinção presente no Seminário, livro 7: a Ética da Psicanálise entre objeto e das Ding ainda não inclui aquilo que Lacan vai desenvolver a respeito do objeto a, como veremos adiante a partir da leitura do Seminário, livro 10: a Angústia. O objeto a se aproxima em sua natureza de das Ding, por ser da ordem do real, enquanto o objeto tal como Lacan o descreve no seminário 7 preserva um certo contorno imaginário. 61 contextualizados no coletivo social, são tomados no lugar de recobrimento da tendência. Lacan (1959-60/ 2008) diz: No nível da sublimação o objeto é inseparável de elaborações imaginárias e, muito especialmente, culturais. Não é que a coletividade as reconheça simplesmente como objetos úteis – ela encontra aí o campo de descanso pelo qual ela pode, de algum modo, engodar-se a respeito de das Ding, colonizar com suas formações imaginárias o campo de das Ding. É nesse sentido que as sublimações coletivas, socialmente recebidas, se exercem (p. 123). Essa diferenciação permite situar o ponto de tangente entre o desejo do sujeito e sua dialetização no social, pois os objetos compartilhados na vida coletiva satisfazem e, ao mesmo tempo, não satisfazem a pulsão. Satisfazem na medida em que são alvos da pulsão da mesma forma que o objeto particular de desejo e é isso que dá permissão a Freud para dizer que a sublimação é uma forma de realização. Por outro lado, não satisfazem totalmente, já que a atividade sublimatória atesta exatamente essa inadequação entre a tendência e o objeto da pulsão. A sublimação, que confere ao Trieb uma satisfação diferente do seu alvo – sempre definido como seu alvo natural –, é precisamente o que revela a natureza própria ao Trieb uma vez que ele não é puramente o instinto, mas que tem relação com das Ding como tal, com a Coisa dado que ela é distinta do objeto (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 137). Disso se extrai que das Ding, enquanto núcleo opaco sobre o qual se erige o circuito da pulsão, neste momento da teorização lacaniana marca uma diferença essencial entre a tendência e o objeto da pulsão. É sobre essa opacidade que se desdobra a enigmática fórmula que Lacan (1959-60/ 2008) elege para a sublimação: “ela eleva um objeto (...) à dignidade da Coisa” (p. 137). Operação que se dá em torno de uma negatividade onde o real tem sua existência. Por isso pretendemos pensar a experiência da angústia na arte a partir desse lugar de furo, de rasgo na ordem simbólica, sendo a angústia o afeto que anuncia a existência desse furo – o mesmo sobre o qual a sublimação se tece. Especialmente a arte contemporânea (que inclui a performance), como sugere Iannini (2004), ela aparece como “figura de um certo excesso de real – que desnuda a precariedade do simbólico – espécie de ruína, espécie de catástrofe das imagens de reconciliação” (p. 84). Ora, a sublimação aqui parece se opor ainda mais à idealização, pois os artistas estão menos interessados no âmbito do ideal do que naquilo que dá um certo tratamento – e ao mesmo tempo convoca – ao real, o sem sentido, o estranho. Como veremos adiante, a estética lacaniana evidencia a resistência de determinados objetos à ordem simbólica, o que dá ênfase 62 ao próprio movimento da pulsão e à inadequação estrutural entre os objetos empíricos e aquele da fantasia, comforme explica Iannini (2004). Enfim, a problemática da sublimação compreende dois fatores essenciais: como destino da pulsão, é preciso levar em conta a economia libidinal que ela movimenta; quanto à operação que faz laço, não se pode ignorar a escolha de objeto no âmbito do ideal social. Daí das Ding merecer uma distinção com relação ao objeto, uma vez que esse objeto ideal não é exatamente a Coisa que agita a pulsão, seja na sublimação ou em qualquer outra operação pulsional. O amor cortês, exemplo que Lacan elege como paradigmático para pensar a sublimação, compreende justamente aquilo que é sexual na pulsão, mas não pode ser manifestado como tal. Trata-se de um amor que só se realiza no nível do ideal, a Dama enquanto mulher ideal, disfarçada de sua feminilidade. Por outro lado, a libido está aí colocada: a Dama é também objeto do amor erótico, objeto que vetoriza a pulsão em direção a uma realização. Desse modo: A sublimação não é, com efeito, o que um zé povinho acha e nem sempre se exerce obrigatoriamente no sentido do sublime. A mudança de objeto não faz desaparecer forçosamente, bem longe disso, o objeto sexual – o objeto sexual, ressaltado como tal, pode vir à luz na sublimação. O jogo sexual mais cru pode ser objeto de uma poesia sem que esta perca, no entanto, uma visada sublimadora (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 194). 3.2 O problema da dessexualização da pulsão A ideia freudiana de que a pulsão passa por uma dessexualização no processo sublimatório tem como correlato a inclusão do eu como instância que também é passível de ser investida de libido. No texto sobre o narcisismo, vimos que Freud (1914/ 2010) fala da sublimação como concernente à libido objetal, apenas. Porém, à medida que a teoria do eu vai se desenvolvendo – embora até o final de sua obra Freud fique de certa forma embaralhado com a importância do eu na tópica psíquica – a sublimação se aproxima do eu por implicar o abandono das metas sexuais. A novidade do texto sobre o narcisismo se localiza na passagem da libido, antes direcionada apenas a objetos externos, para o eu num movimento de retorno que promove, em última instância, a aparição do eu como objeto de amor. No momento que ele chama de narcisismo secundário, a libido que regride ao eu se desinveste de sua característica de libido objetal para ser agora uma libido narcísica. Ocorre que o advento do eu como instância psíquica coloca certos impasses ao problema do princípio de prazer. Funcionando como mediador dos três senhores (realidade, id 63 e supereu) o eu precisa dosar o movimento da libido para que sua descarga, geradora de prazer para o id, não cause desprazer aos outros. Logo, a libidinização do eu só é possível se em contrapartida a libido sofrer uma dessexualização: “A transformação da libido objetal em libido narcísica, que então ocorre, evidentemente acarreta um abandono das metas sexuais, uma dessexualização, ou seja, uma espécie de sublimação” (Freud, 1923/ 2011, p. 37). Curiosamente, essa dessexualização acaba indo de encontro com o propósito de Eros e a favor da pulsão contrária, de morte. Assim o eu “com seu trabalho de identificação e sublimação presta ajuda aos instintos de morte na subjugação da libido, mas arrisca tornar-se objeto desses instintos e mesmo perecer” (p. 71). O narcisismo secundário, ao mesmo tempo em que eleva o eu a um objeto de amor, também o coloca num lugar onde ele será alvo de pulsões agressivas vindas especialmente do supereu. Herdeiro do complexo de Édipo, o supereu ocupará um lugar bastante ambivalente no aparelho psíquico. Ao mesmo tempo em que conserva a parcela de amor com os objetos do mundo externo, especialmente as figuras de autoridade, trazendo para o interior do psiquismo esses laços objetais, ele contém a herança da lei, da proibição, da moral e da ordem. Este segundo aspecto, se por um lado possibilita a entrada do sujeito na cultura – participando, portanto, da sublimação – por outro vem acrescido de uma severa hostilidade em relação ao eu. Tal hostilidade é sentida pelo eu como sentimento de culpa, o que, tal como ocorre na neurose obsessiva, pode ser bastante elevado (Freud, 1923/ 2011). Assim, no narcisismo secundário o eu não é apenas amado, mas também odiado. A libido reforça a economia interna, porém algo de uma destruição também compõe paradoxalmente esse narcisismo. Isso explica, inclusive, a origem da angústia de consciência moral que é, na escala dos perigos (ver cap. 1), o mais tardio de todos, uma vez posterior à instalação dos ideais no psiquismo a partir do supereu 12 . Freud chega a indicar um problema ainda mais elementar na relação dessa instância com a angústia: que ela desempenha a mesma função protetora que antes tinha o pai, em seguida a Providência ou o Destino. Assim, se o eu se sente desamparado frente ao supereu, isso significa ver-se desamparado de todos os poderes protetores até chegar à morte. Como a morte não tem representação no psiquismo, a angústia diante do desamparo do supereu é a representação mais próxima. Assim: 12 Poderíamos fazer uma relação entre a angústia social e a sublimação, visto que ambos decorrem de uma certa exigência ideal que submete o eu. A sublimação se apresentaria, nesse sentido, como saída desejável para essa angústia cuja origem Freud atribui ao temor frente ao supereu. Porém vale lembrar, como já dito anteriormente, que são duas as vertentes que compõe o processo sublimatório, a do ideal e a economia pulsional, e que esta última não se deixa apaziguar facilmente. Ou seja, qualquer trato sublimatório pode se mostrar insuficiente para conter a pulsão e, igualmente, a angústia. 64 O mecanismo do medo da morte só poderia ser este: o Eu dispensa em larga medida o seu investimento libidinal narcísico, isto é, abandona a si mesmo, como a um outro objeto em caso de angústia. Penso que o medo da morte se dá entre o Eu e o Super-eu (Freud, 1923/ 2011, p. 72). Percebe-se o quanto Freud vai aproximando, a partir da segunda tópica, a ideia de dessexualização da libido aos elementos da pulsão de morte e angústia. Não se trata mais de pensar a sublimação associada à ideia de autoconservação, como no primeiro dualismo pulsional (onde a oposição se dava entre pulsões de autoconservação e sexual), mas à pulsão de morte que incide sobre o eu especialmente a partir do supereu. A transformação da energia sexual para fins mais nobres é incentivada por essa instância crítica que é a guardiã dos ideais dentro do psiquismo. Daí a dessexualização participar tanto da idealização quanto da sublimação, na medida em que desloca o investimento sexual nos objetos para algo ideal. Cruxên (2004) observa que o eu freudiano se forma a partir das identificações aos objetos externos, portanto, ele responde às exigências ideais que o avaliam. “A pulsão é, assim, dessexualizada, defletida a partir das exigências do ideal do eu e do ganho obtido por manter algum amor no eu, narcisismo secundário” (p. 19). A relação da sublimação com a latência se inscreve justamente a partir desse ideal de eu, uma vez que neste período a sexualidade sofre uma espécie de hibernação em prol do direcionamento da libido para finalidades não sexuais, tais como a ciência, a educação e a religião 13 . Na medida em que o ideal de eu vai se erigindo, o eu direciona a libido para atividades dessexualizadas, priorizando aqueles objetos passíveis de compartilhamento na cultura. Logo, a ideia subjacente à dessexualização da pulsão é investir em objetos que sejam correlatos ao ideal de eu e que participem da troca coletiva – já que o ideal é a herança filogenética do homem (Freud, 1923/2011). Tal ideia da dessexualização não é sustentada por Lacan, pois para ele o desvio do alvo sexual não é uma característica da sublimação, mas da pulsão. O próprio destino da pulsão é não atingir seu alvo, mas apenas contorná-lo (Lacan, 1964/ 2008). Isso recoloca a sublimação num estágio muito anterior à dicotomia freudiana da libido. Ela concerne, antes, a das Ding. Trata-se da Coisa como fundante da estrutura psíquica e ao mesmo tempo ausente dela, algo que inaugurou a cadeia significante, a realidade do sujeito, mas que é, nesta realidade, 13 Apesar de Freud não considerar a religião propriamente uma sublimação, aproximando-a mais de um delírio coletivo da humanidade (Freud, 1930/2010) observamos que o período de latência, que segundo Freud vai mais ou menos dos 7 aos 12 anos, é o mais propício para a educação em diversas religiões. Por exemplo, no catolicismo a catequese é ensinada neste período, culminando com a primeira comunhão de Cristo. No budismo, as crianças do sexo masculino têm suas cabeças raspadas quando completam 8 anos como sinal de devoção a Deus, por se julgar que nesta idade eles ganham responsabilidade e adquirem uma espécie de consciência de mundo. 65 inexistente. É em torno dessa sexualidade primordial que se inaugura o processo de criação, antes mesmo de se poder falar em metas da libido. Assim: “(...) a Coisa, é um lugar decisivo em torno do qual se deve articular a definição da sublimação, antes de [eu] ter nascido e, por uma razão mais forte, antes de os Ichziele, as metas do [eu], aparecerem” (Lacan, 1959- 60/2008, p. 191). Se Lacan não aceita a ideia da dessexualização da libido é por ver no problema da sublimação justamente aquilo que denuncia o hiato na relação entre sujeito e objeto, entre pulsão e satisfação. É a sublimação que “revela a natureza própria ao Trieb uma vez que ele não é puramente o instinto, mas que tem relação com das Ding como tal, com a Coisa dado que ela é distinta do objeto” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 137). A hiância que se introduz no seio da economia libidinal – das Ding – permite pensar a sublimação como um circuito que está dentro e fora ao mesmo tempo da cadeia significante. 3.2.1 A origem em das Ding Para compreender das Ding é preciso seguir a trilha do que Lacan nos indica a respeito dos processos primário e secundário que fundam a realidade em Freud – realidade que não pode ser outra senão a realidade psíquica. Freud (1915c/2010) argumenta que a representação do objeto, proveniente da percepção do mesmo, decompõe-se em representação da palavra (Wortvorstellung) e representação da coisa (Sachvorstellung). Enquanto esta última se localiza no inconsciente, a primeira resta no sistema pré-consciente e é sobre ela que o recalque atua, impedindo que a representação da coisa seja ligada à palavra e se torne, portanto, consciente. Freud o explica da seguinte maneira: “O sistema Ics contém os investimentos de coisas dos objetos, os primeiros investimentos objetais propriamente ditos; o sistema Pcs surge quando essa representação da coisa é sobreinvestida mediante a ligação com as representações verbais que lhe correspondem” (Freud,1915c/2010, p. 147). Lacan (1959-60/2008) observa que, apesar da palavra alemã Sache significar igualmente “coisa”, não é da Coisa (Ding) que se trata, uma vez que Sache está ligada à ideia de representação. Das Ding, por sua vez, está fora do registro da representação. Ela é, antes, o que possibilita a existência da representação, ou a existência da realidade. Trata-se de algo que permite que o princípio de realidade seja instaurado desde uma subjetivação do mundo exterior. A realidade é erigida em torno desse elemento que vetoriza a percepção de maneira singular para cada sujeito. Logo, ela tem relação com aquele índice de percepção que Freud (1950 [1892-1899]/ 1996) descreve na Carta 52, o primeiro registro das percepções (Wz). 66 Lacan (1959-60/2008) diz a respeito de das Ding: “alguma coisa tria, criva de tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma forma profundamente escolhida” (p. 62). O que significa essa forma profundamente escolhida? Tal escolha está ligada à realidade psíquica tal como Freud elabora e Lacan o retoma neste seminário. Para localizar das Ding, Lacan percorre a teoria do aparelho psíquico desde o Projeto para uma psicologia científica (1895) até o Mal-estar na civilização (1930), ponto de chegada do seminário e com base no qual ele discute o masoquismo. Todo o problema dessa “escolha” parece se inscrever entre princípio de prazer e de realidade. Lacan lê a teoria econômica de Freud reinscrevendo- a, inicialmente, com base no estruturalismo, o que lhe permitiu deslocar o pensamento freudiano das esteiras da biologia e aproximá-lo daquilo que ocorre no nível do sujeito, a partir da teoria do significante. Assim: Quanto a nós, parece-nos que as dificuldades mesmas em que todos esbarram nesse ponto nos confirmam na impossibilidade em que estamos de prescindir da função do significante. Quer se tome o significante, muito simplesmente, por seu aspecto de materialidade irredutível que a estrutura comporta, por ser a dele, quer se o evoque sob a forma de uma loteria, evidencia-se que no mundo somente o significante tem o poder de suportar uma coexistência – constituída pela desordem (na sincronia) – de elementos em que subsiste a ordem mais indestrutível que se manifesta (na diacronia), fundamentando-se esse rigor associativo de que ele é capaz na segunda dimensão, na própria comutatividade que ele exibe, por ser intercambiável na primeira (Lacan, 1961 / 1998, pp. 664, 665). Isso significa que a fala ou, em termos freudianos, a ligação entre o processo primário e a representação de palavra no pré-consciente, é condicionada por uma relação de causalidade. A diacronia constituinte é a estrutura que fundamenta a rede de significantes, orientada pelas funções de contraste e semelhança constituintes da metáfora. Ou seja, a estrutura ordena a diacronia dos elementos significantes – o entrecruzamento de traços mnêmicos – sobre a desordem sincrônica do real. O real é a sincronia, pois não pressupõe ordem alguma de seus elementos. A ordem discursiva cuja repetição é guiada pela rede significante é a estrutura que “suporta uma coexistência”: a do real que surge como acaso, como tiquê (Lacan, 1964/ 2008). Quando essa ordem é rompida – ou seja, na elisão significante – aparece o real sincrônico que reduz o sujeito a seu aspecto negativo, a sua origem no nada: das Ding. Lacan nos convoca a percorrer o caminho de Freud na constituição da realidade do sujeito. Trata-se de localizar das Ding na origem fundante de uma realidade que, exatamente por não se justapor à realidade empírica, aparece primeiramente sob a forma da alucinação e vem depois originar toda a sorte de fenômenos que conduziram Freud ao desvelamento do 67 inconsciente 14 . No texto A Negação (1925), evidencia-se a constituição dessa realidade entre as funções do juízo de atribuição e juízo de realidade. A primeira delas, de atribuição, diz respeito a um movimento de introjeção (do que é bom) e expulsão (do que é mau) pelo “Eu- de-prazer original” (Freud, 1925/ 2011, p. 278), marcando definitivamente a separação entre o dentro e o fora. “Para o Eu, o que é mau e o que é forasteiro, que se acha de fora, são idênticos inicialmente” (p. 278). Em seguida, vem a função do juízo de realidade que busca verificar, na realidade empírica, a existência dos objetos cuja representação já se encontra no pisquismo: “Julgar é uma continuação coerente da inclusão no Eu ou expulsão do Eu, que originalmente se dava conforme o princípio do prazer” (p. 281). Assim, se primeiramente o juízo de atribuição vem separar o que é bom como interno e o que é mau como externo, em seguida o juízo de realidade, sob a forma de “Eu-realidade” (Freud, 1925/ 2011, p. 279), passa a testar a existência dos objetos representados, verificando se “algo que se acha no Eu como representação pode ser reencontrado também na percepção (realidade)” (p. 279). Isso significa que o princípio de realidade se funda sobre o princípio de prazer e só ganha independência dele a partir da função do pensamento. Ademais, o exame da realidade permanece ligado a esse eu-de-prazer, já que seu objetivo é buscar o objeto de satisfação perdido cuja percepção originou a representação. Por isso “a meta inicial e imediata do exame de realidade não é, portanto, encontrar na percepção real um objeto correspondente ao imaginado, mas sim reencontrá-lo, convencer-se de que ainda existe” (p. 280). O esforço do juízo de realidade é reconhecer na realidade o objeto que já existe como representação no psiquismo. Para isso, Freud esclarece, é preciso que esse objeto que um dia proporcionou real satisfação tenha sido perdido. A primeira tentativa de recuperação desse objeto se dá pela via da alucinação, o que ocorre quando o bebê alucina o seio da mãe. O princípio de prazer é acionado na tentativa de obter novamente a satisfação com o seio; porém, como a realidade não corresponde imediatamente a esse chamado do prazer, ocorre a alucinação. Nela, a percepção do objeto é ativada, mas ainda não há um pensamento que diferencie aquela percepção do juízo de realidade. A intermitência da presença-ausência proporcionada pela perda do objeto provoca a emergência desse novo juízo que vem se sobrepor à governança do princípio de prazer por meio do teste de realidade. É daí que se solidifica a função do pensamento, que possui, nas palavras de Freud, “a capacidade de mais 14 Não faremos aqui todo o percurso da investigação lacaniana de das Ding na obra freudiana, que tem início no Projeto para uma Psicologia Científica (1895). Optamos por abordar o texto da Negação (1925) pois ele concatena os principais aspectos para um esclarecimento breve acerca de das Ding. Para um exame detalhado dessa investigação, ver Ariana Lucero, 2010 (dissertação de mestrado). 68 uma vez tornar presente algo percebido, reproduzindo-o na imaginação, sem que o objeto necessite mais existir no exterior” (Freud, 1925/ 2011, pp. 279-280). A especificidade do pensamento, que marca sua autonomia com relação à percepção, é poder satisfazer-se sozinho, sem depender dos objetos. Basta ver como a fantasia funciona: ela é um pensamento de desejo que traz prazer por si só, sem a necessidade de realizar-se com elementos do mundo externo. Esse mecanismo do pensamento é semelhante à alucinação na psicose, com a diferença de que nesta última o objeto é percebido como se fosse real, ou seja, não há mediação da função de pensamento. A percepção do objeto é ativada sem que a ligação de tal percepção com o traço mnemônico indique ao sujeito que aquilo é um pensamento. Como Freud (1923/2011) explica em O Eu e o Id: Aqui pensamos logo na alucinação e no fato de que a lembrança mais viva é sempre diferenciada tanto da alucinação como da percepção externa, mas também de imediato se apresenta a informação de que, ao se reavivar uma lembrança, o investimento é conservado no sistema mnemônico, ao passo que a alucinação não distinguível da percepção pode surgir quando o investimento não só se propaga para o elemento Pcpt, a partir do traço mnemônico, mas passa inteiramente para ele (p. 25). Assim, enquanto na alucinação o investimento é totalmente voltado para o sistema perceptivo, na lembrança a ocorrência simultânea da catexia no sistema mnemônico e na percepção garantem a independência do pensamento, permitindo que tal objeto ou situação apareça como memória. Voltando ao texto da Negação, Freud (1925/ 2011) reconhece que a percepção é um processo ativo no pensamento, sendo que o eu envia o investimento ao sistema perceptivo para provar a existência de estímulos externos e depois recolhe. O símbolo da negação vem justamente afirmar o juízo de realidade em sobreposição ao princípio do prazer. Daí “a criação do símbolo da negação permitir ao pensamento um primeiro grau de independência dos resultados da repressão e, assim, da coação ao princípio de prazer” (p. 281). Ou seja, o símbolo de negação como sinal de maturação da função intelectual interrompe a hegemonia do princípio de prazer – apesar de, como comenta Ariana Lucero (2010), o próprio Freud ter reconhecido o fracasso do princípio de realidade em se sobrepor totalmente ao princípio de prazer. A função principal da negação em Freud é, portanto, possibilitar a diferenciação entre uma percepção real e uma alucinação. Safatle (2014), em comentário sobre esse pequeno e igualmente importante texto freudiano, explica que tal diferença não é epistêmica: “ela é meramente pragmática e ligada às exigências de satisação do desejo” (p. 48). O objeto alucinado e o objeto percebido não estão tão distantes assim, pois não há contraposição entre a realidade e o princípio de prazer, já que a primeira foi moldada de acordo com o segundo. A 69 “prova de realidade” tal como Freud (1925/ 2011) a descreve não é dada pela via empírica, ou seja, não é uma “descrição positiva de estados de coisas dotados de acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica” (Safatle, 2014, p. 48). Trata-se de uma realidade que só se constrói após a recusa do que não causa prazer ao eu e que está, portanto, fora de seu sistema de saber. “A ‘realidade’ só aparece depois que expulso algo sobre o qual nada quero saber” (p. 47). Segundo Safatle (2014), esse não querer saber, que é uma primeira forma de negação, tem relação com o real traumático que foi expulso pelo eu-de-prazer. Tal expulsão, contudo, não se dá por completo, pois isso que está fora, esse real traumático, sempre retorna. Seja sob a forma de delírios ou alucinações, seja através de acting out, ou pela via da negação no discurso do neurótico. Esta última, quando aparece na clínica, reenvia o sujeito a uma “modalidade renovada de reconhecimento” (p. 47). Veremos adiante que o reconhecimento na não-identidade é um dos pilares da teoria de Safatle e nos permitirá pensar a inclusão da angústia na cena da arte. Mas, antes disso, vale deixar clara a posição essencial da negação na experiência clínica, como ressalta o autor: “O reconhecimento d’Isso que o Eu inicialmente negou para poder se afirmar como instância autoidêntica, ou seja, o reconhecimento dessa exterioridade radicalmente heterogênea, é um problema central” (Safatle, 2014, p. 46). É através da negação – lembrando que essa negação se dá na transferência onde há um Outro para o qual a mensagem invertida é dirigida – “que sujeitos procuram dar conta da natureza conflitual de seus desejos” (p. 42). A nova dimensão da realidade introduzida por Freud que Lacan esclarece, para sair da querela dos filósofos, não ter nada de idealismo, tem seu fundamento na fissura, na divisão do sujeito, no sou onde não penso. Comentando a auto-análise de Freud, Lacan (1959-60/ 2008) diz: “A experiência de Freud instaura-se a partir da busca da realidade que há em alguma parte dentro dele mesmo, e é isso que constitui a originalidade de seu ponto de partida” (p. 37). Esse reconhecimento de uma exterioridade interna, um real desconhecido pelo sistema de pensamento, porém reconhecido como algo que o ultrapassa, indica a riqueza do texto freudiano. A negação não diz respeito a uma relação de simples inversão em opostos, mas testemunha “aquilo que não passa completamente em seu oposto e que, por isso, torna instáveis as inversões próprias à Verneinung” (Safatle, 2014, p. 44). Na clínica, a angústia aponta esse real traumático que foi expulso pelo eu-de-prazer e que retorna muitas vezes sob a forma de negação, (re)velando a verdade do desejo. Isso nos envia à dimensão de das Ding por sua relação com o traço de percepção deixado pela experiência primária de satisfação e índice da realidade psíquica. Apesar de se ligar à percepção e ao prazer, das Ding é o ponto vazio e enigmático que não se reduz nem à 70 percepção, nem ao desejo, nem à realidade. Como ressalta Lucero (2010), “ela é uma estrutura constante, presente no estado de desejo e na percepção, mas sem pertencer propriamente a nenhum dos dois” (p. 24). É por ser fundante que Lacan (1959-60/ 2008) não atribui a das Ding qualquer qualidade, e sim uma marca que vetoriza a realidade em cada sujeito. Isso significa há uma seleção, um crivo que dá ao movimento de abstração do mundo exterior um certo guia, individualizando sua atenção para tal ou tal objeto específico. Retomando a pergunta a respeito da forma profundamente escolhida da realidade, em Freud entendemos que o princípio da realidade é o ordenador da busca pelo reencontro com o objeto. Ele age a favor do princípio de prazer fazendo a verificação daquilo que no mundo externo pode garantir alguma satisfação; enquanto o princípio do prazer, incapaz desse discernimento, busca satisfação com qualquer coisa, ou, como se diz na língua popular, atira para todos os lados. Em Lacan, vemos que essa escolha tem relação com das Ding, o que determinará o funcionamento da realidade para cada sujeito. Ele interpreta a perspectiva freudiana da seguinte maneira: Das Ding é o que – no ponto inicial, logicamente e, da mesma feita, cronologicamente, da organização do mundo no psiquismo – se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung, que Freud nos mostra governado por um princípio regulador, o dito princípio do prazer vinculado ao funcionamento do aparelho neurônico. É em torno desse das Ding que roda todo esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o processo simbólico mostra-se aí inextrincavelmente tramado (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 74). Das Ding tem a ver, portanto, com o primeiro contato com a alteridade: esse Outro cujo traço essencial é ser submetido à ordem simbólica. Por ser um ponto opaco, das Ding é inapreensível pela rede de significantes, mas é em torno dela que se erige o processo simbólico. “O Ding é o elemento que é, originalmente, isolado pelo sujeito em sua experiência do Nebenmensch como sendo, por sua natureza, estranho, Fremde” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 67). O estranho a que Lacan atribui o elemento Ding é exatamente esse exterior primeiro que não se integra à imagem do eu, mas que lhe fornece a experiência da realidade através da qual ele percebe o mundo externo. Já o que vem posteriormente como qualidade do objeto, como atributo do eu, constitui as Vorstellungen: as representações que movem o princípio de prazer. Como explica Lucero (2010), o termo representante da representação (Vorstellungsrepräsentanz) “demarca o vazio no lugar de das Ding, impossível de ser preenchido ou traduzido, ao mesmo tempo em que é capaz de reunir as representações (Vorstellungen) que representam os atributos da Coisa” (Lucero, 2010, p. 40). 71 Embora esteja fora do registro da representação, das Ding está no centro da economia psíquica. Ela vem instaurar o campo do Outro enquanto visada, mira, para onde se aponta a ação, como rastro deixado pela experiência primária de satisfação. Enquanto “furo na subjetividade, funciona como índice de exterioridade” (Lucero, 2010, p. 25). Trata-se de um “interior excluído” ou daquilo que é “excluído no interior” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 125). Por estar ausente da estrutura, a Coisa funciona no campo do real, que é, nas palavras de Lacan, “o que se reencontra sempre no mesmo lugar” (Lacan, 1964/ 2008, p. 87). É o “fora-do significado” (Lacan, 1959-60/2008, p. 70), anterior a todo recalque e em torno do qual o sujeito constitui-se no mundo de relação e afeto 15 . Se Freud (1925/ 2011) fala de tentar reencontrar, na realidade, o objeto correspondente ao registro da percepção, Lacan (1959-60/ 2008) já adverte, a partir de das Ding, a impossibilidade desse reencontro, uma vez que esse objeto primário de satisfação é para sempre perdido: O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência, comporta que é esse objeto, das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas coordenadas de prazer, e nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada, em nome do princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais nem percepção nem esforço (p. 68). Ora, reencontrar das Ding é simplesmente a morte: tensão ótima abaixo da qual não há mais nem percepção nem esforço, enfim, não há nada; ou melhor, há o nada. Quando Freud, em 1920, introduz a pulsão de morte e diz que é ela, e não a pulsão sexual, que ameaça a vida, ele ao mesmo tempo aproxima a realidade do princípio de prazer. Sua tese é de que a realidade age a favor do princípio de prazer para não deixar o indivíduo sucumbir à morte. Realidade e prazer se articulam ambos pelos trilhamentos por onde tentam reencontrar o objeto. Com a ressalva, porém, de não esgotarem a satisfação. Se esse objeto for de fato reencontrado (em termos econômicos, se a tensão chegar ao nível mínimo em decorrência de uma descarga total de energia) o sujeito se depara com a morte. A pulsão de morte é exatamente a tendência à ultrapassagem do limite decorrente de uma descarga completa. O princípio de prazer, junto ao de realidade, encarrega-se de conservar sempre uma certa distância daquilo que ele perseguem: “o extremo do prazer, na medida em que consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo” (Lacan,1959-60/ 2008, p. 100). 15 Agradeço a observação de Raul Macêdo Ribeiro a respeito de uma imagem que serve de metáfora para das Ding. Trata-se da lava de um vulcão cuja matéria só nos é dada a conhecer a partir da estrutura que se forma ao redor do vulcão e que constitui a própria camada solidificada sobre o terreno anterior. A lava não é, em si, o solo. Porém, é ela que compõe a camada rochosa ao redor do vulcão. Nunca teremos acesso à lava como matéria pura, mas somente através daquilo que ela se tornou. 72 Por isso Lacan (1959-60/ 2008) observa que a experiência moral em Freud se localiza justamente nesse espaço entre vida e morte, realidade e prazer, princípios primário e secundário. Há sempre um anseio que não pode se esgotar, uma satisfação não-toda. “Em relação a tudo que o sujeito persegue, o que pode produzir-se no âmbito da descarga motora tem sempre um caráter reduzido” (p. 56). A impossibilidade desse reencontro com o objeto perdido é, nos termos de Lacan, o campo do real que não se deixa apreender pelo simbólico. É a inexistência da relação sexual (Lacan, 1972-73/ 2008), mantendo vivo o anseio, o desejo e a própria vida psíquica. Das Ding como hiato, como fenda, anima a busca eterna do desejo, porém sem se consumar. 3.2.2 O campo de das Ding é o menos elevado Retornemos ao tema da sublimação. A pulsão de morte freudiana introduz um paradoxo que merece atenção: ao mesmo tempo em que atesta a preferência pela morte, a insistência na repetição, a compulsão, ela é a tendência à diminuição da energia. Logo, ela age, de certa forma, a favor do princípio de prazer que tende a regular o nível energético do organismo e baixar a tensão para chegar à homeostase. Por isso Freud (1920/ 1996) chega à conclusão, ao final de Além do Princípio de Prazer, de que “o princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte” (p. 74). Em outros termos, trata-se de buscar a satisfação para além de um limite onde se depara com a morte. Ou seja, o próprio princípio de prazer está para além do prazer. A sublimação parece comportar semelhante paradoxo uma vez que sua operação, ainda que esteja direcionada ao nível do ideal, obedecendo a uma certa exigência de dessexualiazação, responde no fim das contas aos mesmos enigmas da economia pulsional. Pois a lógica do inconsciente é esta que favorece não apenas as pulsões sexuais, mas também as de morte. Assim, as tendências que animam a sublimação são as mesmas tendências paradoxais que regem os movimentos de busca de prazer, de reencontro com o objeto, de esgotamento até a morte, enfim, de toda essa realidade que é a realidade psíquica. A antítese entre vida e morte está no centro da operação de sublimação cuja teorização é tecida por Lacan em torno de das Ding. Este tensionamento constante parece fundamental: o que é na sublimação mais elevado, mais ideal, contém em sua essência o que há de mais baixo, mais fundante no homem. Uma passagem do texto O Recalque indica isso claramente: “Nisto se compreende que os objetivos favoritos dos homens, seus ideais, provenham das mesmas 73 percepções e vivências que os mais execrados por eles, e que originalmente eles se diferenciem uns dos outros apenas por mudanças mínimas” (Freud, 1915b/ 2010, p. 89). Tal como o recalque deforma os elementos da pulsão impedida de se realizar e cujos derivados aparecem sob a forma de sonhos, associação livre e sintomas, a sublimação também é resultado de uma espécie de deformação. Nesse sentido, ela mantém uma ligação primordial com nossas origens pulsionais, o que acaba aproximando o ideal elevado daquilo que está nas origens – fontes pulsionais, zonas erógenas, fixações da libido, enfim, toda a sorte de elementos fundantes da sexualidade humana que compõem o plano do real ou o “campo de das Ding” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 127). A performance, como veremos adiante (cap. 3), mostra a proximidade da sublimação com a dimensão originária da sexualidade e do trauma, daí a escolha dessa forma artística para pensar a experiência da angústia. A perspectiva freudiana indica que a angústia é sinalizadora dos afetos mais primitivos, os quais não chegam a ser percebidos pela consciência, mas que estão sempre atuantes, determinando caminhos e orientando escolhas, como foi visto no capítulo 1. A ‘descoberta’ desses afetos – descoberta esta que talvez não ganhe o caráter de uma representação consciente, mas que pode ser percebida como sensação – é uma via possível de interpretação para a irrefutável potência transformadora da arte desde tempos imemoriais. Assim, as mais altas aquisições em termos de evolução cultural do homem podem estar imbricadas aos desejos e afetos infantis inconscientes aos quais a angústia se relaciona. Retomando uma importante passagem de Freud (1915c/ 2010): “É possível que o desenvolvimento do afeto proceda diretamente do sistema Ics; nesse caso tem sempre o caráter da angústia, pela qual são trocados todos os afetos ‘reprimidos’” (p. 118). Nota-se a importância do resgate que Lacan fez de das Ding na obra freudiana para investigar a criação artística e a experiência moral. Em determinado momento, ele diz: “Freud repara a certa altura que, se a psicanálise pôde levantar a inquietação de certas pessoas promovendo excessivamente o reino dos instintos, nem por isso ela deixou de promover a importância da instância moral” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 73). A questão é que Freud não ignora a experiência moral dentro da psicanálise. O que ele faz – e isso sem se basear em preceitos filosóficos, mas no interesse, ou melhor, no desejo de escutar o corpo para além do biológico, a sexualidade para além do ato sexual – é subverter a ordem da moral inserindo-a na desordem das pulsões, ou, como diz Lacan (1961/1998), na desordem sincrônica do real. Onde estão as pulsões, ali também está a moral. A psicanálise pode escutar o sujeito em suas 74 antíteses fundamentais. O que se efetua enquanto experiência de elevação é, via de regra, derivado de todo o resto, o lixo, a vulgaridade das pulsões. Talvez por isso seja plausível desconfiar da hipótese de Freud a respeito da dessexualização da pulsão na operação de sublimação. De fato, o que ele propõe é uma mudança na qualidade da libido. Porém, se a libido sexual se conjuga com a pulsão de vida no segundo dualismo pulsional, fica difícil separar o que é de Eros e o que é do eu. Eros passa a compor a pulsão de vida, logo, também é de Eros aquilo que tende ao princípio de elevação da sublimação. Em O Eu e o Id, por exemplo, ele diz: Se esta energia deslocável é libido dessexualizada, pode ser também descrita como energia sublimada, pois ainda manteria a principal intenção de Eros, a de unir e ligar, na medida em que contribui para a unidade – ou esforço por unidade – que caracteriza o Eu. Se incluímos entre tais deslocamentos os processos de pensamento no mais amplo sentido, também o trabalho do pensamento é provido pela sublimação de força instintual erótica (Freud, 1923/ 2011, p. 57). Percebe-se que a postulação de algo como uma virtude etérea da arte e da ciência estão muito mais perto do profano do que se pode imaginar. O que Freud faz é recolocar a dimensão da sexualidade dentro da atividade do intelecto ou da criação. Assim, seja para atingir um ideal da cultura, seja em se tratando de ética, há de se lembrar que a pulsão é aquilo que não cessa, que insiste no retorno, uma “força constante” (Freud, 1915b/ 2010, p. 54). Logo, como visto, ela pode ser sublimada – porém não-toda. Se a sublimação visa o campo do ideal, o meio de se chegar a ele necessariamente preserva o caráter arcaico da força erógena da pulsão. A nós, analistas, não cabe ignorar que tanto a cultura e quanto as escolhas morais do indivíduo nascem no interior do movimento pulsional e continuam sendo atravessadas por esse movimento incessante. Cruxên (2004) comenta que o termo utilizado por Freud, Sublimierung, é de origem latina e “indica um movimento de ascensão ou elevação daquilo que se sustenta no ar” (p. 7). As tradições literária e filosófica da palavra provavelmente não passavam despercebidas por ele, especialmente a primeira na qual Goethe, um dos autores preferidos de Freud, participava usando o termo para mostrar a necessidade de trabalho do espírito, devendo os sentimentos serem sublimados. A teorização hegeliana, por exemplo, aposta no sublime como meio de elevar o espírito em busca do fim, qual seja, o ganho moral. Platão desconhecia o termo sublimação, mas sua ideia é que a ascese intelectual causa uma modificação subjetiva naquele que substitui a ordem do sensível pela ordem do inteligível – o que, em última instância, significa um ganho moral para o sujeito e um ganho civilizatório para a humanidade. Diferentemente da obra de Platão, Banquete, onde o discurso sobre o amor começa no corpo e depois separa-se dele para ganhar uma dimensão transcendente cujo valor é dado pela 75 inteligibilidade, sendo a alma o grande expoente da virtude em contraposição à concepção física, Cruxên (2004) observa que o modelo da economia pulsional freudiana não prescinde em momento algum do corpo. A pulsão é justamente aquilo que liga o psíquico ao somático e, ainda que ela seja desviada para fins mais nobres, ela retorna inevitavelmente ao corpo. “O que a psicanálise nos ensina é que encontramos resquícios de zonas corporais também no final do processo” (Cruxên, 2004, p. 15). Ou seja, o movimento da pulsão é mais cíclico do que ascendente, sai do corpo e volta. A sublimação, ainda que seja resultante de um desvio nesse circuito, não deixa de encontrar (ou reencontrar!) o corpo no final. O autor argumenta: Haveria uma espécie de paridade entre o êxtase na ideia e o prazer próprio ao ato sexual. A energia é única e sexual. A sublimação troca um fim sexual por outro ideal e social. Ela sofre uma incidência moral que legisla sobre o desejo (Cruxên, 2004, p. 15). Não se pode ignorar que a criação, uma vez que parte desse núcleo da economia pulsional que é das Ding, inclui a dimensão do corpo. A pulsão retorna ao corpo – corpo do auto-erotismo, objeto primário de investimento libidinal, fonte e ao mesmo tempo destino das pulsões. A arte da performance evidencia isso de maneira singular. Nela, vemos quase uma inversão: esse ideal de uma ‘elevação’ inerente ao processo de sublimação é transformado em seu oposto. Trata-se de exibir, com o corpo, a crua e nua castração a que todos somos submetidos, esse além do princípio de prazer que, no fim das contas, se estampa na própria finitude do corpo. Na medida em que é elevado à dignidade da Coisa, o corpo é, paradoxalmente, rebaixado às pulsões, tocado em sua carne, erotizado. Como observa Lacan (1959-1960/ 2008): “É um ponto do qual não se parece notar a importância, que a investigação freudiana fez entrar o mundo inteiro em nós, recolocou-o definitivamente em seu lugar, ou seja, em nosso corpo, e não alhures” (p. 115). Comentando a obra de Ovídio, Arte de amar, Cruxên (2004) diz que a sublimação aparece no lugar do vazio centrífugo e voraz que se instaura pela inacessibilidade do objeto e pela não complementaridade sexual. “A necessidade de criação surge, precisamente, como uma tentativa de dar conta desses impossíveis” (p. 10). De fato, a experiência clínica atesta a impossibilidade de recobrir o real com a significação ou sentido. Como observa Jefferson Pinto (2008), a psicanálise está aí para mostrar o “fracasso do significante em recobrir a verdade com o saber e possibilitar a harmonia da relação sexual” (p. 86). 76 Interessante notar como o amor e a sublimação se aproximam. Lacan diz que enquanto a linguagem só faz manifestar sua insuficiência “o que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor” (Lacan, 1972-1973/ 2008, p. 62). Com base nisso, Pinto (2008) aposta na chance maior que os artistas têm de se inspirarem na sua castração. Enquanto o neurótico deprecia o amor por sua incapacidade de recobrir a castração, o artista utiliza a falta como fonte de criatividade, aceitando as demandas de amor sem tentar resolvê-las. Eles contam “com o que é da ordem do real, em vez de ficarem aprisionados aos limites do falo e da queixa de sua impotência. São os que têm condições de criar e modificar a cultura, questionando-a pelo avesso” (Pinto, 2008, p. 96, 97). Da mesma forma, Safatle (2004) defende que “a sublimação é um movimento que transforma o impossível a escrever (o real) em uma espécie de escritura do impossível” (p. 122). A sublimação, nesse sentido, equivale ao amor enquanto criação a partir do nada, do vazio, ex nihilo (Lacan, 1959-1960/ 2008). Este é, pois, o ponto essencial da sublimação em Lacan: ela se desenrola sobre o nada (das Ding) e conserva esse elemento de opacidade em seu centro. A imagem do vaso criado pelo oleiro, já utilizada por Heidegger para tratar da coisificação da obra de arte, é resgatada no seminário sobre a Ética da psicanálise na perspectiva de sua função significante. O vaso como significante cria um vazio que pode ser preenchido; logo, ele consagra em sua forma simultaneamente o pleno e o vazio. O que o homem cria é, pois, um significante em torno do vazio da Coisa, donde se extrai que a sublimação situa o sujeito entre o real e o simbólico. Por isso Lacan (1959-1960/ 2008) afirma que “em toda forma de sublimação o vazio será determinante” (p. 158). Ele diz: Ora, se vocês considerarem o vaso, na perspectiva que inicialmente promovi, como um objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se, efetivamente, como um nihil, como nada. E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo (p. 148). Bem, se o que Lacan (1959-1960/ 2008) chama de Coisa é “o que do real padece do significante” (p. 152), permanecendo essencialmente velada, pela operação de sublimação ela é representada pelo reencontro do objeto. Trata-se, é importante observar, de uma representação, e não do reencontro empírico com o objeto. Lembremos que este objeto não tem autonomia metafísica (Safatle, 2014). Ele ganha, no trato sublimatório, o estatuto de significante, tal como o vaso. Toda a questão do motivo da sublimação reside na possibilidade de modelar o significante em torno da Coisa: “Estabeleço isto – um objeto pode preencher essa 77 função que lhe permite não evitar a Coisa como significante, mas representá-la na medida em que esse objeto é criado” (Lacan,1959-1960/ 2008, p. 146). Por fim, há de se notar que se a meta da pulsão é satisfazer-se com o objeto (Freud, 1905), o conceito de das Ding vem mostrar que há sempre algo que escapa nessa realização. O furo que antecede a criação – e é também por ela forjado – coloca um limite na simbolização que busca apreender o objeto. Ou seja, é uma realização, via de regra, irrealizável. Em se tratando da sublimação pela arte, França Neto (2007) observa que a obra é refratária à totalização que o campo do sentido tenta lhe dar. Por inúmeras que sejam as tentativas, algo de inexplicável sempre vai persistir: “é exatamente essa opacidade que a define enquanto arte” (p. 22). Se ocasionalmente algum crítico conseguir esgotar o saber acerca de determinada obra, ela deixará de ser arte e passará a um objeto de bem ou objeto utilitário. 3.3 A sublimação como operação de opacidade François Regnault (2001) esclarece que a função significante da sublimação dá um certo contorno ao real. O vazio não tem somente função espacial, mas está inserido no simbólico: “Ele é da ordem do real, e a arte utiliza o imaginário para organizar simbolicamente esse real. Ele está entre o real e o significante” (p. 30). Desse modo, o objeto produzido na sublimação circunda o vazio (à maneira do oleiro quando cria o vaso) e ao mesmo tempo explicita a falta real que concerne ao campo de das Ding. É um ponto paradoxal, pois a criação eleva um objeto no lugar da Coisa sem que a Coisa seja velada. Será por isso que Lacan escolheu este termo de repercussão filosófica, ‘dignidade’, para qualificar das Ding? Independente do motivo lacaniano, o que se torna evidente é a opacidade inerente à atividade sublimatória, relacionada a das Ding, a partir da qual se pode levantar o problema da angústia na arte. Como ressalta Lucero (2010), “em seu modo de apreender o objeto, a arte traz à tona o furo de das Ding, o estranho familiar, mais íntimo” (p. 88). Isso coloca a criação artística num universo para além do princípio de prazer, ao contrário de outras formas sublimatórias que tendem a ficar no prazer, como a religião e até a ciência. Safatle (2004) observa: “sempre haverá, em Lacan, uma relação fundamental entre estética, ética e erótica” (p. 123). Segundo o filósofo, o que Lacan destaca é o fato de o objeto da pulsão jamais poder ser vinculado à adequação do objeto genital empírico que serve à reprodução. Se o objeto da pulsão é o que há de mais variável, “a estratégia lacaniana consiste em ver, nessa variabilidade estrutural do objeto (...), a afirmação de que o alvo da pulsão é, de 78 uma certa maneira, o próprio movimento de inadequação em relação aos objetos empíricos” (p. 123). A sublimação, por sua vez, mostra justamente tal inadequação, por ser uma atividade que contemple certa satisfação pulsional, porém deslocada da exigência de um objeto específico. A operação de sublimação, como enfatiza Lacan (1964/ 2008), jamais atinge seu alvo, dado que o lugar do objeto na economia pulsional é “que a pulsão o contorna” (p. 166). Assim, a sublimação é paradigmática para atestar esse desvio da pulsão quanto a seu alvo, dado que nenhum objeto empírico pode jamais satisfazer a ânsia disso que mantém sua força constante, dessa exigência pulsional que não cessa. Esse hiato instransponível entre o alvo tal como ele aparece no imaginário – objetos reais, concretos, seja o objeto de amor erótico cujo protótipo é figura da mãe, seja o objeto elevado ao nível do ideal e por isso adequado à finalidade da sublimação – e o alvo real, que Lacan chamará de objeto a, atesta a impossibilidade de que a pulsão seja satisfeita em sua totalidade. A diferença entre autômaton e tiquê – termos que Lacan pegou emprestado de Aristóteles para falar do que acontece nas repetições em análise – mostra essa irredutibilidade da pulsão ao campo do significante. A repetição que corresponde a autômaton diz respeito à rememoração, conforme Freud explicita nos escritos técnicos, uma vez que ela procede da necessidade do significante em se repetir, tal como vemos nas manifestações do sintoma e do sonho. Trata-se do retorno dos signos que é comandado pelo princípio do prazer. Porém, a rememoração esbarra num limite que é o do real. Tiquê representa propriamente o “encontro do real” (Lacan, 1964/ 2008, p. 57), ou seja, aquilo que se produz por acaso. Por isso o real retorna em forma de ato, já que “um verdadeiro ato, tem sempre uma parte de estrutura, por dizer respeito a um real que não é evidente” (Lacan, 1964/2008, p. 56). Assim, enquanto o objeto tem relação com o registro imaginário 16 , fundante da relação narcísica do homem com sua imagem, a Coisa é outra coisa: “está no amago da economia libidinal” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 137), é “essa exterioridade íntima, essa extimidade” (p. 137) que anima as pulsões, que movimenta os significantes em direção ao princípio do prazer, mas que não possui, ela mesma, registro. Ela não está, por assim dizer, representada em lugar algum, e é isso que torna impossível qualquer relação totalizante da pulsão com o objeto. Das Ding marca justamente a diferença entre a necessidade e o desejo, fundando o sulco entre sujeito e objeto, um intervalo cuja impenetrabilidade garante a continuidade do desejo uma vez que ele não se esgota tal como a necessidade. 16 C.f. nota de rodapé 11. 79 Assim, a plasticidade da pulsão permite o redimensionamento constante da escolha do objeto – mas sem que este seja reecontrado, ainda que possa ser almejado de várias maneiras (sintoma, idealização, sublimação, etc.). Podemos até imaginar que o aforismo lacaniano da sublimação, “eleva um objeto (...) à dignidade da Coisa” (Lacan, 1959-60/ 2008, p. 137), flerta com o paradoxo freudiano: o que está mais acima, mais digno e elevado, é também aquilo que se encontra na opacidade, no vão, na fissura que marca profundamente a relação do homem com o traumatismo. A Coisa como nada, ex nihilo, núcleo da economia psíquica, movimenta a criação e conserva, de alguma maneira e diferentemente do sintoma, o caréter erógeno da pulsão. O despertar dessa origem opaca convoca a perceber que em todo movimento de vida há um pouco de morte, em todo prazer há uma certa tentativa de redução ao nada e a realidade só pode ser constituída com esses desvios. Para Jacques Derrida (2011): A diferência, pré-abertura da diferença ôntico-ontológica e de todas as diferenças que sulcam a conceitualidade freudiana, tal como podem, isto não passa de um exemplo, organizar-se em torno da diferença entre o “prazer” e a “realidade” ou derivar dela. A diferença entre o princípio do prazer e o princípio da realidade , por exemplo, não é apenas nem em primeiro lugar uma distinção, uma exterioridade, mas a possibilidade originária, na vida, do desvio, da diferência (Aufschuh) e da economia da morte” (pp. 291- 292). Safatle (2004) entende que, enquanto o programa estético freudiano busca fundamentar uma interpretação das obras pelo desvelamento da estrutura pulsional do artista (por exemplo, na interpretação de artistas como Leonardo da Vinci, Dostoievski e Michelângelo), em Lacan “a arte pode aparecer como modo de formalização da irredutibilidade do não-conceitual, como pensamento da opacidade” (p. 117). Tal maneira de compreender a abordagem lacaniana das artes permite pensar o objeto estético como objeto da pulsão e, com isso, “os modos de subjetivação disponíveis à clínica a partir de uma certa configuração da reflexão estética sobre a arte” (p. 117). O caráter de negatividade é a base do argumento de Safatle, que vê na sublimação lacaniana um programa de formalização de objetos que ressalta a “destruição dos protocolos de identidade e representação” (Safatle, 2004, p. 124). Se o objeto alvo da pulsão na sublimação é aquele que não se adequa a uma auto-identificação do sujeito, ou seja, é um objeto de “não-identidade” (p. 124), por mostrar a dimensão do que está para sempre perdido, trata-se de aproximar essa operação da pulsão de morte. “A sublimação está necessariamente vinculada à negação do objeto própria à pulsão de morte” (p. 125). 80 Isso não significa ignorar o objeto ou depreciar sua importância na esfera da sublimação, tampouco conduzir a uma via da pulsão de morte como destruição da relação do sujeito com o objeto. Trata-se, pelo contrário, de ver que há um reconhecimento do objeto em que o sujeito não fica aderido à alienação imaginária, tal qual aquela do estádio do espelho. Se Freud ressaltou o caráter ideal dos objetos buscados na sublimação, a leitura lacaniana aproxima tais objetos da pulsão de morte provocando uma “torsão de seus protocolos de identidade ou, ainda, uma imagem que é a destruição da imagem” (Safatle, 2004, p. 125). Os objetos aparecem como singularidade para além da submissão ao imaginário, o que traz em evidência o caráter contingencial das obras de arte. Safatle (2004) enfatiza: “É só diante desse objeto não-idêntico produzido pela sublimação que o sujeito pode se reconhecer” (p. 125). Isso traz para a cena da sublimação a dimensão do traumatismo; logo, da angústia. Vimos que Lacan ressalta o caráter negativo da sublimação. Da mesma forma, a angústia é entendida sob a ótica do real, por ser “aquilo que não engana” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 88). Ela é o afeto que denuncia o surgimento da pulsão como aquilo que interrompe a tentativa de totalização imaginária do eu. Logo, não é possível existir uma pulsão de vida, tal como Freud propunha, dado seu caráter inassimilável e sua origem no traumatismo. A tiquê como aparecimento ao acaso da pulsão é nada mais que “a insistência do trauma a se fazer lembrar a nós” (Lacan, 1964/ 2008, p. 60). Assim, angústia e trauma estão profundamente ligados à dinâmica da sublimação (o que aparece em Freud a partir da segunda tópica psíquica), já que esta inaugura uma linguagem mais próxima do real do que do ideal. Lembrando que “o real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra” (Lacan, 1964/ 2008, p. 55). É desse real que depreende o caráter de pulsação do inconsciente, seu estatuto ético, e não ôntico. Lacan (1964/2008) diz que o inconsciente não é ser, tampouco não-ser, mas “algo de não-realizado” (p. 37). Esse aspecto de não-realização, visto que a pulsão jamais atinge seu alvo, convoca a pensar na sublimação como ato de escritura. Se a criação se inscreve na dimensão do contingente é porque tece alguma escrita sobre o real – “esse não pára de não se escrever” (Lacan, 1972-73/ 2008, p. 65). Ou melhor, ela permite passar da impotência ao impossível, como diz Safatle (2015): “talvez a única função real da arte seja exatamente esta, nos fazer passar da impotência ao impossível” (p. 44). Assim, o movimento de pulsação é orientado não por uma ordem semântica, mas pela desordem sincrônica do real que é contingencialmente interrompida pelo ato. Isso não significa o apagamento do real, mas algo que “em cada um marca o traço do seu exílio, não 81 como sujeito, mas como falante, do seu exílio da relação sexual” (Lacan, 1972-73/ 2008, p. 156). Santiago (2004) diz: “se o inconsciente é da ordem do não-realizado, do que não é, restam-lhe em contrapartida a decisão, o ato, a invenção do saber, a criação, concebida como ex nihilo” (p. 43). Safatle (2004) observa que em Lacan o conceito de morte não é mais pensado pelo modelo objetivo e material de um retorno ao inanimado, mas sim como morte simbólica. Ou seja, “ele quer salvar a força do negativo como função ontológica do que há de real no sujeito sem, com isso, ser obrigado a entrar no cortejo próprio ao desejo bruto de morte” (p. 119). O que morre é, de fato, a organização do simbólico, bem como a formação imaginária do eu. O negativo da morte não incide sobre a matéria da vida a fim de destruí-la, mas aparece como desestabilização imaginária das identidades, como furo no discurso ou “como figura do não- idêntico” (p. 119). Portanto, ela se relaciona a uma ruptura que, justamente por provocar a desintegração das ordens imaginárias que formam a identidade do eu, promete um efeito de cura analítica – ou melhor, um efeito de sujeito. Este é o ponto onde nos interessa introduzir a angústia na dinâmica da operação sublimatória, especialmente a sublimação pela arte. Nossa hipótese é de que tal afeto tem relação com a opacidade que Safatle (2004, 2006) nos convida a ler na teoria lacaniana – e que, resguardadas as diferenças, também admitimos encontrar na metapsicologia freudiana da angústia. Se em Freud (1926) a angústia evidencia o caráter arcaico do trauma e a insuficiência de nossas defesas psíquicas para se proteger contra ele, ao mesmo tempo sinalizando a ameaça de alguns afetos perturbadores os quais o sujeito ignora, isso significa que ela marca justamente essa cisão, esse fosso por onde o eu se torna desconhecido de si mesmo. A irredutibilidade do afeto ao campo semântico do inconsciente – e não apenas da consciência – marca essa profunda clivagem que nos constitui como sujeitos. E, enquanto Freud atribui à angústia a função privilegiada de conduzir a série de afetos até o trauma mais original, o desamparo, Lacan (1962-63) também privilegia uma certa funcionalidade desse afeto na clínica, na medida em que ele conduz ao lugar do desejo. Trata-se, na clínica, de desobstruir esse lugar para que a dimensão da castração se faça ouvir e o sujeito possa sair da impotência onde a pergunta “Che vuoi?, Que queres?” ou “ Que quer ele de mim? [Que me veut-Il]?” (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 14) tem uma resposta saturadora. Como comenta Maria Rita Kehl 17 , a angústia é o ponto de chegada na análise, mas 17 No programa Café Filosófico, 25 de dezembro 2015, em que Maria Rita Kehl entrevista Vladimir Safatle. 82 também ponto de saída, daí seu caráter paradoxal. O fim de análise, que para Lacan é o atravessamento do fantasma, consiste justamente em encontrar a angústia do vazio no lugar do analista – ou seja, o desamparo frente ao Outro. “Essa travessia da angústia, uma travessia difícil, é a condição de liberdade daquele sujeito” (Kehl, 2015). Safatle 18 (2015) também adverte para a ambivalência da posição da angústia dentro da situação analítica: “ela não é só aquilo contra o qual você se bate no inteirior da clínica; é também a condição para que a análise ocorra. Há algo da experiência da verdade na angústia”. A travessia consiste nisto: “A angústia marca o desabamento das imagens de mundo que me permitem orientar nas ações, no julgamento, nos desejos. Para redimensionar esse campo da experiência, é necessário que o mundo desabe”. A hipótese que aqui se conjectura é de que esse caminho que leva ao desejo – e que passa necessariamente pela angústia – talvez seja a via por onde se dá a relação fundamental entre o retorno do real, tiquê, e o que se escreve a partir dele, a criação em torno de das Ding. A angústia é, nesse sentido, um afeto que participa da criação do artista. Por outro lado, se a inscrição significante sublimatória dá um certo tratamento ao campo do real, nem por isso ela consiste no apagamento do furo. Pelo contrário, a obra de arte evidencia o vazio, é uma abertura ao real. Isso demonstra a ligação intrínseca da arte com o estranho. Algumas performances mostram isso claramente com a exibição de um corpo disforme, sem os atrativos do belo – corpo que denuncia a castração. Assim, a angústia pode ser o afeto imbuído na apreciação de uma arte que se aproxima mais do traumático do que dos avatares do belo. Podemos arriscar a comparação de que o corpo do performer entregue na cena ao olhar do público é equivalente ao abandono do eu ao supereu (que Freud qualifica como substituto do Destino, da Providência, dos poderes maiores, do pai protetor, enfim) que, em última instância, se traduz no medo da morte. Retomando a passagem freudiana: O mecanismo do medo da morte só poderia ser este: o Eu dispensa em larga medida o seu investimento libidinal narcísico, isto é, abandona a si mesmo, como a um outro objeto em caso de angústia. Penso que o medo da morte se dá entre o Eu e o Supereu (Freud, 1923/ 2011, p 72). O eu como objeto do supereu: é isso que resulta na angústia do desamparo em Freud. Em Lacan, a angústia surge quando o sujeito se depara com o desejo do Outro: “Ele me questiona, interroga-me na raiz mesma de meu próprio desejo como a, como causa desse desejo, e não como objeto” (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 169). 18 Trata-se igualmente do programa Café Filosófico (c.f. nota de rodapé acima). 83 Com base nisso, propõe-se fazer dialogar o campo das artes com a experiência do trauma, do medo da morte, enfim, da angústia. Para tal, faz-se mister uma breve passagem pela leitura lacaniana da angústia. 3.2 A angústia lacaniana Com Lacan, a angústia ganha a novidade de ser relacionada a um objeto específico, o objeto a. A teorização que ele desenvolve entre os anos de 1962 e 1963 no seu Seminário, livro 10: A angústia permite elucidar o estatuto desse objeto em oposição ao objeto empírico que, conforme vimos acima, tem caráter imaginário e por isso engana o sujeito a respeito do verdadeiro alvo da pulsão. A concepção econômica da angústia que em Freud se relaciona a uma certa função mediadora das forças em jogo no aparelho psíquico dá lugar na teoria lacaniana a uma formulação que permite pensá-la pela via estruturalista. Em Lacan (1962-1963/2005), ela é definida como um afeto que “tem uma estreita relação estrutural com o que é um sujeito, mesmo tradicionalmente” (p. 23). Se Lacan preserva a tese freudiana da angústia como sinal é para mostrar não a sinalização de um perigo, mas que esse sinal “é da ordem da irredutibilidade do real” (p. 178). Ela sinaliza, pois, a estreita relação com o desejo do Outro: Se isso se acende no nível do eu, é para que o sujeito seja avisado de alguma coisa, a saber, de um desejo, isto é, de uma demanda que não concerne a necessidade alguma, que não concerne a outra coisa senão meu próprio ser, isto é, que me questiona. Digamos que ele me anula. Em princípio, não se dirige a mim como presente, dirige-se a mim, se vocês quiserem, como esperado, e, muito mais ainda, como perdido. Ele solicita minha perda, para que o Outro se encontre aí. Isso é que é a angústia (Lacan, 1962-1963/2005, p. 169). A angústia em Lacan é o sinal de uma presença ocupando o lugar primordial da falta: lugar do menos phi (- ) fruto da divisão do sujeito ($). Por isso Lacan elege o fenômeno do duplo como paradigma deste afeto, já que na angústia “a falta vem a faltar” (Lacan, 1962- 1963/2005, p. 52). Lacan retoma o esquema do estádio do espelho, tempo fundamental da constituição da fantasia e da entrada do sujeito na linguagem, para localizar esse afeto na dialética do narcisismo. Esta instaura a relação da imagem especular com a incidência do significante sobre o sujeito, donde ver-se-á surgir o objeto a como resto dessa operação. O encontro entre imagem e significante decorre de que, no momento jubilatório em que a criança se reconhece no espelho, ela se vira para o adulto, o grande Outro, para que ele ratifique o 84 valor dessa imagem. Porém, nem todo investimento libidinal é devolvido à figura imagética do corpo. Há um resto que se inscreve como falta e que dá ao desejo sua condição de existência: o falo. Isso significa que, em tudo o que é demarcação imaginária, o falo virá, a partir daí, sob a forma de uma falta. Em toda medida em que se realiza aqui, em i(a), o que chamei de imagem real, imagem do corpo funcionando na materialidade do sujeito como propriamente imaginário, isto é, libidinizado, o falo aparece a menos, como uma lacuna. Apesar de o falo ser, sem dúvida, uma reserva operatória, não só ele não é representado no nível do imaginário, como é também cercado e, para dizer a palavra exata, cortado da imagem especular (Lacan, 1962-63/2005, p. 49). Tal corte é operado pelo objeto a. Enquanto o falo permanece como reserva libidinal que não se fixa na imagem especular e que se extrai como significante da falta (- ), o objeto a é o resto, é o corte, no nível do próprio corpo, antes mesmo que se possa falar em sujeito. Objetos oral, anal, escópico e voz são essas partes destacadas do corpo, forjados na relação primordial com a pulsão parcial e que precedem os demais encontros (ou reencontros) do sujeito com os objetos do mundo sensível. O a é a “apetência” (Soler, 2012, p. 22) que confere valor erótico objeto empírico. É o que da necessidade não entra na demanda, por isso se trata de uma falta real. Como explica Quinet (In Soler, 2012), Lacan distingue dois tipos de falta no esquema óptico: o objeto a que falta à imagem e o falo que falta ao Outro do significante. O objeto a é um “pedaço de vida a menos” (Soler, 2012, p. 13). Embora se reconheça a confusão na articulação dessas duas faltas (a e - ) – por ambas designarem uma subtração de gozo, algo que falta ao sujeito – Soler (2012) sugere que “o (- ) escreve uma falta; a escreve o objeto que falta” (p. 23). O esquema óptico, reproduzido abaixo, pode ser explicado nos seguintes termos: se o espelho é a autenticação do Outro (A), do lado esquerdo está a imagem real do vaso, i(a), em cuja borda se encontra o a. É exatamente o termo “borda” que Lacan usará ao longo de seu seminário para identificar na topologia o objeto a, uma vez que a figura que lhe serve para melhor entendimento é o cross-cap. Este se trata de uma borda circular cuja redução, diferentemente do círculo que pode se reduzir até virar um ponto e depois sumir, é impossível. Impossível porque nela há furos e o que resta é o oito interior sob a forma de uma banda de Moebius. No esquema óptico temos, então, do lado do sujeito (lado esquerdo) a imagem real e o objeto a na borda do vaso, enquanto, do lado do Outro (lado direito), está a imagem virtual autenticada pelo Outro, i’(a), e o falo (- ) no topo do vaso – lugar correspondente ao objeto a do desejo. É no lugar do falo que aparece a angústia: 85 A angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei, para me fazer entender, de natural, ou seja, o lugar (- ), que corresponde, do lado direito, ao lugar ocupado, do lado esquerdo, pelo a do objeto do desejo. Eu disse alguma coisa – entendam uma coisa qualquer” (Lacan, 1962-63/2005, p. 51). Reproduzindo o esquema óptico simplificado: O objeto a é o que sobra da divisão do sujeito (S) quando este é introduzido no campo do Outro (A), resultanto no sujeito barrado ($). Como resto dessa operação de entrada no universo simbólico, o objeto a passa a se articular ao sujeito barrado na fantasia ($ <> a). A fantasia é o suporte do desejo, pois ela instaura a relação com esse objeto causa do desejo (a), ainda que seja por um desvio. Pois, como se vê, é apenas pela imagem virtual que se chega à causa do desejo. O objeto a jamais é acessível senão pelos significantes que metonimicamente se sucedem na fantasia para dar forma a esse desejo. “O a, suporte do desejo na fantasia, não é visível naquilo que constitui para o homem a imagem de seu desejo” (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 51). Temos sempre desejo de alguma coisa, pois o desejo em sua forma pura é o vazio que aponta para a verdade da falta. A angústia sinaliza justamente essa verdade, pois ela surge quando alguma coisa tampona a falta. A duplicação de qualquer objeto no lugar da falta só faz aparecer a própria falta. Por isso a função da fantasia é de proteger o sujeito da angústia, ao encobrir a falta que provém desse destacamento do objeto a do corpo funcional (ou imagem real). Se Freud falava da angústia de castração como a angústia primordial, para Lacan a castração é apenas imaginária; sua função corresponde à ameaça que dá lugar à fala da mãe, como em Hans: “vou cortar seu pipi fora”. A fratura da imagem especular, que produz o falo imaginário, é a castração que Lacan atribui à ordem imaginária. A angústia de castração se dá, portanto, “no nível da fratura que se produz à aproximação da imagem libidinal do semelhante, em algum momento de um certo dramatismo imaginário” (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 56). Disso se depreende que o que faz o neurótico recuar não é propriamente a castração, mas fazer dela o que falta ao Outro, ou seja, entregar ao Outro sua castração. Em outras 86 palavras, ele não quer se colocar, na relação com o Outro, num lugar de falta, tampouco ver que ao Outro falta o significante que responde a seu desejo. Dedicar sua castração à garantia do Outro, é diante disso que o neurótico se detém. Ele se detém aí por uma razão como que interna à análise, e que decorre de que é a análise que o leva a esse encontro. A castração, no fim das contas, nada mais é que o momento da interpretação da castração (Lacan, 1962-63/2005, p. 56). Se o complexo de castração é, pois, um momento de interpretação no interior da análise, onde se localiza a origem da angústia? Para Lacan, trata-se da privação real. É a falta originária antes mesmo da existência do sujeito, o corte que produz o objeto a como ausência radical por onde o desejo tentará reencontrar suas vias. Isso significa que a falta é uma ausência, mas é também a condição de possibilidade de uma presença: a do objeto a. Pois somente a presença do a é capaz de orientar e polarizar o desejo: “Nela, o desejo está não apenas velado, mas essencialmente relacionado com uma ausência” (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 55). A mobilidade do desejo depende desse a que resta do advento do sujeito no lugar do Outro e que garante a alteridade desse Outro. A angústia, desse modo, atecede o desejo: “Lidamos com isso, na angústia, num momento logicamente anterior ao momento em que lidamos com isso no desejo” (p. 179). Enquanto Freud interpreta a angústia como perda do objeto, para Lacan é a presença duplicada do objeto que angustia. Ou seja, não é a falta, mas a falta da falta: quando alguma coisa vem ocupar o lugar que deveria ficar vazio. Por isso Lacan se apropria do fenômeno do duplo, Unheimlich, como paradigma para o estranhamento inerente ao afeto da angústia. A partir do texto freudiano de 1919, ele sugere que no lugar do falo coloquemos o Heim, ou seja, a casa do homem: ponto de ausência que se situa no campo do Outro e que está para além da imagem especular. Quando o homem ocupa essa ausência com uma presença duplicada, a imagem especular vacila e isso provoca o fenômeno do estranho. No conto do Homem de Areia, comentado por Freud (1919/ 1996), o que angustia o personagem é que de tanto olhar a boneca (sem olho) que está sendo fabricada ele a completa com seu próprio olho. É seu olho destacado que aparece na cena no lugar da falta. O duplo faz o sujeito aparecer como objeto, revelando sua condição de castração, por isso a angústia. Nesse ponto Heim, não se manifesta simplesmente aquilo que vocês sempre souberam: que o desejo se revela como desejo do Outro – aqui, o desejo no Outro –, mas também que meu desejo, diria eu, entra na toca em que é esperado desde a eternidade, sob a forma de objeto que sou, na medida em que ele me exila de minha subjetividade, resolvendo por si todos os significantes a que ela está ligada (Lacan, 1962-63/2005, pp. 58- 59). 87 Diante disso, Lacan (1962-63/2005) inverte a lógica freudiana de que a angústia é a reação à perda do objeto propondo, ao contrário, que ela aparece quando há um duplo – quando a possibilidade da falta, esta que instaura o desejo, é perturbada a tal ponto que não há mais falta. Assim, a sequência estabelecida por Freud das perdas de objeto causadoras de angústia, desde a barriga da mãe até a perda do amor do supereu, é tomada na perspectiva contrária por Lacan. Não é a nostalgia do seio materno que provoca angústia, mas a iminência dele. “O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever que voltaremos ao colo” (p. 64). Tampouco no jogo do fort-da se trata da angústia de separação, mas da afirmação da possibilidade de que a presença da mãe se alterne com sua ausência. “A possibilidade da ausência, eis a segurança da presença” (p. 64). Enfim, quando a demanda de amor é prontamente respondida com a presença saturadora de objetos (inicialmente a mãe) surge a angústia como “isso não falta” (p. 64). A exemplo da criança cuja mãe “está o tempo todo nas costas dela, especialmente a lhe limpar a bunda, modelo da demanda, da demanda que não pode falhar” (p. 64). O que angustia é a presença ininterrupta dessa mãe que “nunca soube fazer da criança outra coisa senão um prolongamento dela mesma” (p. 161). Jacques-Alain Miller (2008) explica que a angústia segue a mesma lógica do amor cujo traço essencial é ser amor mesmo, e não amor vinculado a um objeto. É isso que, segundo o autor, Lacan expressa na fórmula o amor é dar o que não se tem, ou seja, ele preserva o lugar da falta. Por isso a inversão da lógica de Freud, sendo que o que está em questão na angústia não é a perda do objeto, e sim seu excesso. O recobrimento da falta representa a afânisis do sujeito e isso produz a certeza da angústia. Miller enfatiza que o cerne da angústia na clínica não é curá-la, mas atravessá-la. Ela é a via de acesso ao objeto a, ou seja, ao que não é significante. “Distinguir esse resto é a condição para que o Outro não seja simplesmente o Um” (Miller, 2008, p. 20)19. Lacan (1962-1963/2005) fala de um certo engano, inerente a toda demanda, em relação ao lugar do desejo. Essa falsa demanda surge no lugar do objeto a e por isso não deve ser respondida com uma resposta saturadora. “Há sempre um certo vazio a preservar, que nada tem a ver com o conteúdo, nem positivo nem negativo, da demanda. É de sua saturação total que surge a perturbação em que se manifesta a angústia” (p. 76). Esse engano da demanda é o que marca sua diferença da necessidade. O que significa que, no ser falante, a verdade do 19 No original: “Distinguir este resto es la condición para que el Outro no sea simplemente el Uno”. 88 desejo está ligada à mentira. A linguagem é uma ficção, já que o significante não diz o real, mas ficciona o real. Por isso a importância de preservar uma distância entre aquilo que é da demanda significante (demanda que insiste em se satisfazer a todo instante na realção com os objetos) e o que é do desejo cujo lugar na estrutura é vazio. A existência da angústia está ligada a que toda demanda, mesmo a mais arcaica, tem sempre algo de enganoso em relação àquilo que preserva o lugar do desejo. Também é isso que explica a faceta angustiante daquilo que dá a essa falsa demanda uma resposta saturadora (Lacan, 1962-1963/2005, p. 76). Se a demanda é o que engana, a angústia, por outro lado, é “aquilo que não engana” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 88). Ela evidencia o real, a estrutura sincrônica fundante do desejo – a fissura, o fosso, a hiância – sobre a qual se encadeiam os significantes na diacronia substitutiva. O seminário de Lacan sobre A carta roubada, conto de Edgar Allan Poe, serve de exemplo para pensar a diferença entre o que engana e o que não engana. A carta como objeto escondido, que não se vê, é precisamente “algo que falta em seu lugar” (Lacan, 1955/ 1998, p. 28), e sua consistência é “daquilo que pode mudar de lugar, isto é, do simbólico” (p. 28). Ao contrário, o duplo é aquilo que aparece no lugar onde deveria faltar. Esse lugar é do real e se caracteriza por isto: “não importa que perturbação se possa induzir nele, ele está sempre e de qualquer modo em seu lugar, o real o leva colado na sola, sem conhecer nada que possa exilá-lo disso” (p. 28). Donde a relação carta-simbólico e duplo-real. Ora, isso que aparece na cena no lugar do vazio não é senão um objeto que se destacou do próprio corpo e que não pôde, por outras vias, seja pela imagem especular ou pela operação significante, ganhar a consistência de objeto manipulável. Objeto não manipulável, forjado no sulco da estrutura e de caráter obscuro: este é o objeto da angústia. Por isso Lacan diz que “ela não é sem objeto” (p. 101). O a – objeto opaco, desfigurado – não se confunde com o objeto empírico porque sua presença se dá no nível real do corpo: “objeto seccionado que causa o desejo como desejo de corpo” (Quinet, In Soler, 2012). 3.5 A anatomia é o destino: o corpo no centro da experiência da angústia e da arte Colette Soler (2012) enfatiza o caráter libidinal do resto que sobra da imagem especular. Ela retoma o que Lacan (1962-63/ 2005) chama de “erotologia” (p. 24) e que faz referência àquilo que escapa ao simbólico; logo, esse objeto que diz respeito à causa do desejo e que é real. De fato, Lacan se refere ao falo como “reserva libidinal” (p. 55), o que, como 89 interpreta Soler, não se atém ao eixo da forma, mas se aproxima daquilo que Freud chamava de quantum de energia. O falo, por ser irredutível à imagem especular, permanece “profundamente investido no nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo a que chamamos auto-erotismo, de um gozo autista (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 55). Ambos (falo e objeto a) se relacionam à energia sexual: “o (- ) como reserva libidinal do lado do sujeito e o a como isso que vai se investir na imagem e lhe dar seu valor erótico” (Soler, 2012, p. 30). Como objeto causa do desejo, o a aponta para o campo de partilha, tornando possível, se não a relação sexual, algum encontro entre dois seres falantes. Ao se colocar como objeto de desejo para o Outro na fantasia, o sujeito incorpora esse a que ele supõe ser o que falta para o encontro acontecer. A imagem do corpo próprio torna-se, então, uma vestimenta do objeto a: “é a esse objeto inapreensível no espelho que a imagem especular dá sua vestimenta” (Lacan, 1960/ 1998, p. 832). Ou seja, é o a que anima as parcerias amorosas ao movimentar o núcleo afetivo do sujeito à procura de satisfação. Em suma, ele é um alimento que fica ali para animar, eventualmente, o que intervirá como instrumento na relação com o outro, o outro constituído a partir da imagem de meu semelhante, o outro que perfilará sua forma e suas normas, a imagem do corpo em sua função sedutora, sobre aquele que é o parceiro sexual (Lacan,1962-63/ 2005, p. 55). Lacan (1962-63/ 2005) explica que o sujeito se veste desse a em sua fantasia, porém, ele ironiza, é algo que “cai-lhe quase tão mal quanto polainas num coelho” (p 60), já que se trata de um a “postiço” (p. 61) e o único uso que dele se pode fazer na fantasia é um uso falacioso. A relação sexual não existe porque o único acesso ao objeto é um acesso virtual, ou seja, pela fantasia que persegue as primeiras experiências de satisfação. Porém, se ela é virtual, isso não reduz sua centralidade na experiência da realidade para cada sujeito. Safatle (2006) explica que a realidade subjetiva é fundamentalmente fantasmática, pois suas experiências são invariavelmente submetidas à repetição identitária do fantasma. O objeto a está em causa porque ele é “a perspectiva que define as coordenadas da superfície do visível. Ele é o olhar que organiza a visibilidade do mundo em espaço” (Safatle, 2006, p. 204). Logo, a destituição subjetiva do fim de análise consiste justamente na queda de objetos estreitamente identificados com o fantasma e consequente passagem a um reconhecimento – Safatle insiste em resgatar a dimensão do reconhecimento – na vertente opaca do objeto, em sua não-identidade. Tal opacidade decorre de “sua condição de resto, ou seja, na condição daquilo que é desprovido de valor do ponto de vista da sua conformação com o fantasma” (Safatle, 2006, p. 217). O sujeito, destituído dos protocolos fantasmáticos de identificação com os quais se deu sua entrada em análise, pode agora se reconhecer no pólo oposto, na 90 negatividade do objeto pulsional. Isso significa que, no interior da relação analítica, o sujeito suposto-saber cai e em seu lugar aparece o objeto a como causa da divisão do sujeito. Safatle (2006) esclarece que o desejo do analista está vinculado ao a, pois é em torno dele que se circunscreve a dimensão do ato. Logo, a transferência não é sustentada apenas pela promessa de um saber do analista sobre o gozo: Ao engajar-se na transferência, o sujeito era animado também pela promessa de encontrar um objeto capaz de resistir à destruição pelo pensamento identificante do fantasma – e é a realização de tal promessa que lhe permite encontrar uma via de travessia do fantasma. É a realização de tal promessa que sustenta a possibilidade de o sujeito reencontrar o núcleo de sua economia pulsional para além do fantasma (Safatle, 2006, p. 218). O filósofo ainda explica que o reencontro com esse núcleo pulsional não é da ordem de um retorno a um objeto arcaico, imanente, que está lá desde o início e cuja descoberta comportaria um aspecto de encontro com a verdade. Lembremos que Lacan (1959-60/ 2008) é enfático ao dizer que não há reencontro com o objeto, uma vez que ele nunca foi perdido. Isso porque não houve, na relação primordial do sujeito com o Outro, a substância de um objeto unificado, e sim a interação com objetos parciais (seio, voz, pele, boca, anus) que dão à pulsão seu caráter inesgotável. A importância da noção de objeto parcial, de onde se extrai o objeto a, faz deslocar a ênfase freudiana no reencontro com o objeto para o que Safatle (2006) chama de uma “forma relacional encarnada pelo tipo de ligação afetiva do sujeito ao seio, à voz, aos excrementos, etc.” (p. 202). É essa ligação que aliena o desejo do sujeito na crença de encontrar pela via do sensível um objeto correspondente ao fantasma. O a é justamente a presença de um vazio, “objeto eternamente faltante” (Lacan, 1964/ 2008, p. 177), ou seja, “a derivação de uma forma relacional produzida pelas primeiras experiências de satisfação” (Safatle, 2006, p. 202). Se Lacan diz que se só se pode gozar de uma parte do corpo do Outro, isso indica que a única materialidade possível é a da pulsão parcial. No texto em que Freud (1907 [1906]/ 1996) comenta o conto de Jensen da Gradiva, temos um ótimo exemplo da participação desse objeto na economia pulsional do personagem principal que reencontra, numa mulher a princípio desconhecida, um detalhe no calcanhar que o cativa profundamente quando a vê caminhar. Essa miragem, notemos: de uma parte do corpo feminino, o faz perseguir seu objeto de desejo até o ponto em que ele começa a desconfiar da realidade de sua visão. Ele não sabe mais se está alucinando ou se de fato essa mulher existe. 91 No final, chegamos junto ao personagem à surpresa de que aquele calcanhar já é seu conhecido há muito tempo: a mulher que ele perseguia era sua vizinha, objeto de amor quando era criança. Foi a fixação infantil nesse traço singular de satisfação, no entanto, que lançou essa mulher no desconhecimento (ou esquecimento), numa espécie de latência, para depois fazê-la retornar através de uma parte de seu corpo. Seria a imagem da mulher caminhando uma das formas de captura do objeto causa de desejo que é o a? A leitura lacaniana nos permite supor essa mulher como o fantasma, enquanto que a sedução que fisga o personagem está localizada na parte, na forma relacional que anima a pulsão parcial e a fixa naquele calcanhar. Talvez a desconfiança do personagem na veracidade de suas observações, o que o levou a pensar que estava alucinando, seja a verdade extraída do conto. Verdade que indica justamente que “A Mulher não ex-siste” (Lacan, 1974/ 2003, p. 536). Em sua figura de mulher, ela é subtraída pela parte que é o verdadeiro alvo da pulsão. A totalização desse objeto a numa representação global não significa, para Lacan (1962-63/ 2005), a primazia do genital, tal como Freud propunha, mas apenas o imaginário dominando uma relação que é fundamentalmente parcial. A fantasia dá a essa cena uma totalidade que localiza imaginariamente a satisfação do desejo em um objeto empírico. Por isso a função da fantasia para o neurótico é protegê-lo contra a angústia, uma vez que ela recobre a falta real que antecede a relação do sujeito com qualquer objeto da realidade. Trata- se de uma defesa contra o caráter inominável do desejo (Safatle, 2006). Através da fantasia, o desejo se torna objetivável (desejo de algo) e assim tampona a angústia oriunda da impossibilidade de se produzir uma representação adequada do sexual. Logo, se a análise causa angústia é por descentrar a fantasia, desestabilizando a estrutura narcísica do eu. Lacan (1964/ 2008) aposta que a verdade do inconsciente se localiza exatamente nessa escansão significante que remete ao real e que a fantasia tenta velar: “é em relação ao real que funciona o plano da fantasia”, ou seja, “o real suporta a fantasia, e a fantasia protege o real” (p. 47). Em seguida ele diz: “nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real” (p. 58). Sobre isso, Regnault (2001) comenta que Lacan prefere a interpretação à construção já que, enquanto a construção se atém ao discurso mentiroso do paciente, a interpretação fura a mentira pelo efeito de surpresa, de acaso que ela produz, o que possibilita abri-lo à verdade do inconsciente. O retorno contingente da pulsão, ou tiquê, lembra ao sujeito sua origem no desamparo. É a interpretação que toca nesse ponto, pois ela revela, para além da significação, a qual significante irredutível, traumático, o sujeito está assujeitado (Lacan, 1964/2008). 92 A angústia é o afeto que sinaliza esse real traumático. Ela faz surgir “algo de informe, de impessoal, de opaco às determinações de identidade” (Safatle, 2006, p. 219). Sua incidência produz mal-estar no corpo, por nos fazer sentir que estamos reduzidos a um corpo que não é, entretanto, imaginário, totalizante, mas aquele que está fora dessa imagem. A função do a se localiza exatamente na passagem da imagem especular ao duplo que não mais coincide com essa imagem e por isso causa estranheza. Ela aponta a cisão que denuncia a existência de um corpo irredutível à forma imaginária, corpo real que está no centro da economia libidinal a movimentar o desejo, os afetos, as escolhas objetais... e a arte! É esse corpo que interessa à performance, por não ser da ordem da elevação ao ideal (às formas do belo), e sim do que é informe: a queda, o acidente, o estranho. No seu livro mais recente, Safatle (2015) comenta, a respeito da performance de Yves Klein (Leap into the Void, 1960) em que o artista se lança do parapeito de uma casa em direção ao chão: “como quem diz: mas é para isto que a arte existe em sua força política, para deixar os corpos se quebrarem” (p. 44). Como se a arte se sustentasse nessa possibilidade de quebra dos corpos. Ou talvez na denúncia daquele corpo que não está na integridade da imagem, e sim na fragmentação causada pela pulsão. Há momentos em que os corpos precisam se quebrar, se decompor, ser despossuídos para que novos circuitos de afetos apareçam. Fixados na integridade de nosso corpo próprio, não deixamos o próprio se quebrar, se desamparar de sua forma atual para que seja às vezes recomposto de maneira inesperada (Safatle, 2015, p. 44). A angústia é um desses afetos que aparecem na ocasião da decomposição dos corpos e que remete ao desamparo. A centralidade da referência ao desamparo no argumento de Safatle justifica sua importância não apenas na clínica psicanalítica como também na política: “afirmar o desamparo como condição de se livrar de uma certa servidão, por um lado, e por outro, uma condição para saber como agir com acontecimentos que são contingentes, que quebram nossa estrutura de previsão”20. Na arte também a angústia pode ser sinal desse desamparo por produzir uma quebra em nossos ideais, em nosso modo usual de ver o mundo e os corpos, causando uma certa subversão do olhar que em geral se estabiliza sobre formas imaginárias. Os corpos estranhos nas performances mostram o quanto estamos acostumados a tamponar a falta com uma presença saturadora. Talvez por isso eles provoquem uma ruptura na alienação sobre a qual nos constituímos e a partir da qual tecemos nossa interpretação sobre os objetos. Convidam a olhá-los por outro viés. Como propõe Adorno (1970/2013): 20 Comunicação oral no programa Café Filosófico. 93 Toda obra de arte aspira por si mesma à identidade consigo, que, na realidade empírica, se impõe à força a todos os objetos, enquanto identidade com o sujeito e, deste modo, se perde. A identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime da realidade (p. 363). Percebe-se, então, que a arte da performance se aproxima do campo do real onde se inscreve o objeto a, objeto da angústia. Campo igualmente marcado pela pulsão que atravessa a odem simbólica: “furo que ela cava para si na linguagem” (Lacan, 1961/1998, p. 668). Com isso, vemos o quanto a experiência clínica se aproxima da proposta da arte: ambas comportam a passagem essencial da identificação imaginária às formas ideias – figura da alienação – ao aparecimento do sujeito em sua estrutura de fenda: sua não-identidade. Ao invés de permanecer aderido a um sistema de protocolos de identificações – oferta sedutora do discurso capitalista – o sujeito em análise tem a chance de reivindicar outro lugar. Conforme Safatle (2004), é justamente a passagem da compulsão à identidade à compulsão à repetição que orienta a ética da psicanálise: Trata-se de colocar a subjetivação da negação própria da pulsão de morte no centro da reflexão analítica sobre os protocolos de cura. Essa operação de subjetivação encontra, nos usos estéticos do informe e da despersonalização, um procedimento privilegiado de formalização (p. 121). Daí nossa aposta de utilizar a performance como recurso para a formalização do afeto de angústia. Veremos que ela evidencia o corpo da angústia irredutível ao espelho, como se fosse ele, esse estranho corpo, o objeto elevado à dignidade da Coisa. 4 A EXPERIÊNCIA DA ANGÚSTIA NA ARTE DA PERFORMANCE Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud propõe que os afetos mais intensos, inclusive aqueles assustadores, são acompanhados de excitação sexual. Por exemplo, a criança na idade escolar sente pavor diante de uma situação difícil, o que pode provocar a irrupção de manifestações sexuais. Isso explica, segundo ele, porque as pessoas chegam a buscar esses afetos desagradáveis, especialmente sob a forma sublimada da arte. Em seus termos: 94 O efeito sexualmente excitante de muitos afetos que em si são desprazerosos, tais como a angústia, o medo ou o horror, conserva-se num grande número de seres humanos por toda a vida e sem dúvida explica porque tantas pessoas correm atrás da oportunidade de vivenciar tais sensações, desde que haja apenas certas circunstâncias secundárias (a pertença a um mundo imaginário, à leitura ou ao teatro) para atenuar a gravidade da sensação desprazerosa (Freud, 1905/ 1996, p. 192). Obviamente ele ainda não tinha desenvolvido sua teoria da pulsão de morte, portanto o elemento da compulsão à repetição não era cogitado na interpretação dessa busca por sensações desprazerosas. Isso torna talvez mais interessante a observação de Freud sobre a proximidade do efeito sexual com o afeto angustiante, pois a pulsão sexual era de fato vista como algo que poderia levar o sujeito à morte, logo, ir contra a autoconservação da espécie. Sem entrar nos pormenores dessa primeira dualidade pulsional, basta notar que ela guarda algo fundamental na observação a respeito da arte: ver a angústia do artista na cena pode ser muito excitante. Pode ser até mesmo angustiante – o que não deixa de ser excitante. Especialmente se pensarmos nas primeiras formulações freudianas da angústia, conforme visto no capítulo 1, ela é uma espécie de descarga da excitação sexual acumulada. Ou seja, ela sinaliza a sexualidade no corpo, assim como demais afetos arcaicos que foram recalcados. Vale lembrar sua primordialidade na hierarquia dos afetos, conforme Freud (1915c/ 2010) ressalta: “é possível que o desenvolvimento do afeto proceda diretamente do sistema Ics; nesse caso tem sempre o caráter da angústia, pela qual são trocados todos os afetos ‘reprimidos’” (p. 118). Freud volta a essa ideia em Personagens Psicopáticos no Palco, texto escrito em 1905 mas só publicado em 1942, onde ele dialoga com a ideia aristotélica de catarse em que público se identifica com os atores da tragédia e sofre uma espécie de “purificação dos afetos” (Freud, 1942[1905-06]/ 2015, p. 45). Interessante notar que ele usa o termo gozo [Genuss] para denotar a característica de alívio de tensão – pela descarga ou “purgação” (p. 45) – simultânea à excitação sexual que aparece como subproduto do afeto e é uma espécie de lucro secundário que “concede ao homem o sentimento tão desejado da mais alta tensão de seu estado psíquico” (p. 45). Assim, no teatro o espectador, ao mesmo tempo em que preserva sua integridade física e emocional – já que é o herói do palco que passa pelas dores e sofrimentos inerentes a suas lutas – pode deleitar-se e “abandonar sem medo moções reprimidas” (p. 46). De todos os sofrimentos vivenciados pelo ator, inclusive o masoquista, o espectador extrai prazer. A angústia é por ele percebida apenas no nível anímico, enquanto o nível físico se mantém preservado, possibilitando-o gozar com tal satisfação. Curiosa associação entre sofrimento e prazer sexual – o que Lacan vai chamar exatamente de gozo – dentro do contexto das artes. Será que o afeto do espectador na 95 performance pode ser interpretado por essa mesma via? Em muitas delas o público se depara com o sofrimento direto no corpo do ator, por exemplo, em Thomas Lips (1975) em que Marina Abramovic, após beber 1 kg de mel e tomar uma taça de vinho, quebra a taça em sua mão e começa a se cortar na região do estômago com uma lâmina cortante. Depois se deita num bloco de gelo com um aquecedor exatamente sobre a região cortada, provocando seu sangramento, enquanto o corpo começa a congelar até a performance ser interrompida pelo público. O que se passa com quem assiste a essa cena? Sente angústia? Sente prazer? Vivencia o gozo? A artista desafia a própria morte, a ponto de ser interrompida pelo espectador. É como se a morte não aparecesse como um além do princípio de prazer, e sim o contrário: é o prazer que aparece além da pulsão de morte. Talvez seja isso que Freud percebe nos personagens psicopáticos no palco: há um gozo que atravessa os impulsos mais arcaicos e angustiantes e que pode ser sentido através da arte – um prazer além da morte. Um autor de referência da performance no Brasil, Renato Cohen, não se furta ao diálogo das artes com a psicanálise. Em sua tese chamada Performance como linguagem (2013), ele retoma Freud numa passagem em que o pai da psicanálise defende que o artista não pode se conformar com a renúncia à satisfação da pulsão, tal como a realidade exige, mas que deve dar livre vazão a seus desejos eróticos e fantasias através da arte. A obra de arte se caracteriza, pois, pela transgressão (Cohen, 2013). O autor concorda com Freud que o princípio da criação artística obedece ao princípio do prazer, transpondo os limites da realidade (ainda que não seja totalmente independente desta). “O artista lida com a transgressão, desobstruindo os impedimentos e as interdições que a realidade coloca (...)” (Cohen, 2013, p. 45). Nesse sentido, ela inaugura uma nova linguagem. No entanto, ainda que a arte possa ser o lugar de maior liberdade da dinâmica pulsional, vale lembrar que a tentativa freudiana de livrar o artista do peso decorrente das mazelas da realidade nem sempre logra êxito, especialmente após o conceito de pulsão de morte. Como foi falado nos capítulos anteriores, por mais que a sublimação se ofereça como saída para o adoecimento ao qual os modos de defesa neuróticos assujeitam os indivíduos, ela não fornece a fuga completa às angústias da realidade (Freud, 1930). Há sempre um preço a ser pago pela renúncia da satisfação direta da pulsão. Mas também é isso que, por outro lado, oferece a possiblidade da troca, do laço social, sem o qual a desconexão com a realidade leva, em última instância, ao exílio do sujeito. Antes de continuar a conversa entre a arte e os conceitos da psicanálise, uma breve apresentação da arte da performance se faz importante. 96 4.1 Performance: o resgate da liberdade de criação Cohen (2013) destaca que o movimento de origem da arte da performance – ou simplesmente performance 21 – passa pelo rompimento com a forma representacional da realidade, consagrada entre as artes vigentes, para se aproximar de uma arte viva, que dialoga com a sinestesia própria à vida cotidiana e por isso comporta uma liberdade maior de criação. Nesse sentido, ela convoca a pensar a dimensão do irrepresentável. Como comenta Artur Matuck (In Cohen, 2013), “a expansão das artes plásticas em direção ao território do invisível, do irrepresentável questionava a sedimentação do pensar artístico e reclamava novos conceitos” (p. 16). Assim, ao mesmo tempo em que a performance nasceu dentro do diálogo com as vanguardas da década de 70, ela inaugurou uma nova leitura da histórias das artes. É considerada “arte de fronteira” (Cohen, 2013, p. 38) justamente por romper com o paradigma da “arte-estabelecida” (p. 38) e tocar no limite tênue que separa vida e arte. Em oposição ao teatro da forma, ela “rompe convenções, formas e estéticas, num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação” (Cohen, 2013, p. 27). Nesse sentido, ela oferece um enfoque diferente do teatro, por exemplo, por questionar alguns conceitos pré-formatados como o de representação e valorizar o processo de criação, o corpo como obra, dentre outros aspectos que acabam por lhe dar a distinção de uma arte anárquica. Segundo RoseLee Goldberg (2006), a performance passa a ser aceita como expressão artística independente na década de 1970, quando a arte conceitual, que prioriza a ideia mais que o produto, está em seu apogeu. Ela surge não como meio para que os artistas atraíssem publicidade para si, mas como “arma contra os convencionalismos da arte estabelecida” (p. VII). Essa postura radical, segundo a autora, faz da performance “um catalisador na história da arte do século XX”, ou seja, “uma vanguarda da vanguarda” (p. VII). Assim: A história da performance no século XX é a história de um meio de expressão maleável e indeterminado, com infinitas variáveis, praticado por artistas impacientes com as limitações das formas mais estabelecidas e decididos a pôr sua arte em contato direto com o público. Por esse motivo, sua base tem sido sempre anárquica. Por sua própria natureza, a performance desafia uma definição fácil ou precisa, indo além da simples afirmação de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas (...). De fato, nenhuma outra forma de expressão artística tem um programa tão ilimitado, uma vez 21 O autor explica que a expressão de origem americana é performance art. A adaptção para a língua portuguesa aceita o termo ‘arte da performance’ ou simplesmente ‘performance’. Optamos por grafar aqui o termo sem o itálico, recurso adequado à reprodução de expressões de língua estrangeira, à maneira de alguns autores – por exemplo, Jefferson Luiz Camargo, tradutor de RoseLee Goldberg (2006) – que consideram a palavra ‘performance’ já incluída no vocabulário da língua portuguesa. 97 que cada performer cria sua própria definição ao longo de seu processo e modo de execução (Goldberg, 2006, p. IX). Cohen (2013) conta que Allan Kaprow estabelece um contraponto entre arte-arte e não- arte: enquanto a primeira se relaciona à arte estabelecida, intencional, que aspira a um plano superior, a segunda já engloba tudo que anteriormente não foi aceito como arte, mas que foi usado pelo artista que viu naquele objeto a possibilidade da arte. Como exemplo ele cita os ready-mades de Marcel Duchamp cujo valor artístico é reconhecido somente a posteriori. Nascida na esteira da contracultura, “a performance está ideologicamente ligada à não-arte” (Cohen, 2013, p. 46) por resgatar a liberdade de criação e a linguagem da experimentação, sendo “a prática da arte pela arte” (p. 45). Ontologicamente, ela se liga à live art que surge da tentativa de aproximar vida e arte, estimulando o espontâneo, o natural, em prol do elaborado e ensaiado. Daí sua “virulência transformadora” (Cohen, 2013, p. 14): A live art é um movimento de ruptura que visa dessacralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética, elitista. A ideia é de resgatar a característica ritual da arte, tirando-a de ‘espaços mortos’, como museus, galerias, teatros, e colocando-a numa posição ‘viva’, modificadora (Cohen, 2013, p. 38) Assim, a performance não se inscreve numa posição sacra, inatingível, mas se aproxima do profano, o dessacralizado, ao ritualizar ações do cotidiano como comer, dormir, beber água, etc. Em 2002, Marina Abramovic, apresenta a performance The House with the Ocean View (A Casa com Vista para o Oceano) em que ela vive durante doze dias inteiros numa estrutura suspensa de três compartimentos (banheiro, quarto e sala de estar) onde pode ser observada durante o horário de funcionamento do museu. Lá ela passa o dia a executar tarefas cotidianas como tomar banho, dormir, fazer suas necessidades, andar pelo espaço e sentar em contemplação, enfim, funções vitais colocadas num cenário artístico. Como aponta Cohen (2013): “A performance trabalha ritualmente as questões existenciais básicas” (p. 45). Interessante notar, já fazendo a relação disso com o que vimos anteriormente, que o elemento de idealização geralmente atribuído à arte e que em Freud é um dos pilares da sublimação é transformado em seu contrário na arte da performance. Ou seja, há aqui um esvaziamento desses ideais a favor de uma aproximação da arte com a vida em que o banal, o comum, o vazio, o grosseiro, o sujo, o sexual, enfim, todos esses elementos do informe se sobrepõem à beleza da forma. Cohen (2013) explica que, ao invés de uma representação do real (no sentido de realidade), a concepção de toda a live art é antes de uma “reelaboração do real” (p. 39). A obra 98 de arte tem vida própria, ao passo que a representação do objeto leva à morte deste. Nesse mesmo sentido, Marina Abramovic conta que antes havia um conceito para ser representado; porém, quando se descobriu o corpo como espaço possível de fazer arte, este tornou-se o próprio objeto de apresentação. Assim nasceu a performance 22 . Embora seja uma arte bastante livre e não intencional, isso não significa que a performance não trabalha com signos e com preparação. Pelo contrário, tanto a linguagem sígnica quanto a preparação do artista são elementos fundamentais. Especialmente a preparação física e mental do performer está entre os aspectos mais importantes, pois é preciso criar resistência corporal para apresentações que demandam um nível de energia elevado, principalmente aquelas que colocam o corpo em risco. Obviamente, cada obra varia em graus de liberdade e espontaneidade, sendo que enquanto algumas seguem um roteiro devidamente ensaiado, outras iniciam sem que se tenha um final predeterminado. Ao ser perguntada a respeito do fim de suas performances, Marina Abramovic responde que nem sempre ela sabe exatamente quando terminarão. Algumas já têm um planejamento prévio; em outras, no entanto, a artista deixa o espectador colocar o ponto final, o que mostra a importância da interação com o público. O próprio espaço onde geralmente se realiza a performance já aproxima artista e espectador, eliminando a separação instaurada pela forma clássica dos palcos. RoseLee Goldberg (2006) defende que “a performance tem sido um meio de dirigir-se diretamente a um grande público, bem como de chocar as plateias, levando-as a reavaliar suas concepções de arte e sua relação com a cultura” (p. VIII). Esse choque é fundamental, pois, diminuída a distância entre plateia e artista, é como se cada um envolvido na cena fosse responsável pela obra, ou responsável pelo impacto da obra na cultura. Parece que o elemento modificador na arte da performance é justamente esse estranhamento, o que aqui tentamos apreender sob a forma (mais informe do que propriamente uma forma) da experiência da angústia. A autora chama a atenção para o desejo do público em ter acesso ao mundo da arte, por meio da performance, tornando-se espectador de seus próprios rituais e deixando-se surpreender pelo inusitado que as apresentações, sempre transgressoras, provocam. Assim como o público é convidado a se implicar por meio dessa expressão artística, também o performer aparece na cena como sujeito-artista, e não como personagem representando a história de alguém. 22 Ciclo de palestras ministradas pela artista durante a exposição Terra Comunal, entre os dias11 de março e 30 de abril, no Sesc Pompéia, em São Paulo. Disponível em: http://terracomunal.sescsp.org.br/7-conversas. A título de curiosidade, o centro cultural Sesc Pompéia foi onde ocorreu o primeiro festival de performances realizado no Brasil, segundo Cohen (2013). 99 Nos anos 90, década marcada pelo fim de conflitos políticos e econômicos que impactaram o quadro cultural no mundo todo, muitos artistas utilizaram a performance como forma de expessão de suas origens étnicas e identidades sociais. Ana Mendieta, por exemplo, artista cubana, apresentou em 1972 uma performance chamada Death of a Chicken (Morte de uma Galinha) em que ela ficava em pé, nua, segurando pelos pés uma galinha que acabara de ser degolada de modo que o pescoço do animal ficava à frente da região pubiana da artista. O sangue da galinha espirrava em suas pernas – uma referência ao ritual cubano de purificação no qual a galinha sacrificada é usada como símbolo de iniciação na comunidade. Referência também ao problema da violência contra a mulher, com o qual a artista era bastante engajada. Outra obra chocante de Ana Mendieta é a Rape Scene (Cena de estupro), apresentada em 1973, onde ela aparece despida da cintura para baixo, toda ensanguentada, imóvel, debruçada sobre uma mesa num ambiente escuro. O contexto dessa performance foi um caso de estupro e assassínio na universidade de Iowa onde Mendieta estudava. A artista pretendia quebrar o código de silêncio que colocava o estupro como algo anônimo e generalizado, negando seu aspecto pessoal. A respeito dessa obra, Lucy Lippard (1985) comenta: “no momento em que as mulheres usam seu próprio corpo na arte, estão usando na verdade o seu próprio ser, fator psicológico da maior relevância, pois assim convertem o seu rosto e o seu corpo de obra a sujeito” (p. 190). Esse tipo de performance coloca em evidência tanto a posição do artista que coloca na cena elementos de sua história e identidade, como o convite para que o espectador também se sinta identificado, engajado num contexto de violência que ele pessoalmente não viveu, mas ao qual ele é introduzido através da arte. Cohen (2013) nos oferece uma definição de performance – não sem apontar a contradição que existe em se definir conceitualmente uma arte que procura escapar de rótulos e subverter paradigmas. Ele diz: “a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro ao vivo, já poderia caracterizá-la” (p. 28). Para algo ser considerado performance, precisa estar acontecendo naquele momento e local, ou seja, ela é uma função de espaço e tempo. A fórmula proposta pelo autor é P = f (s, t). Quanto ao espaço, a performance raramente acontece no teatro, sendo mais comum de ocorrer em espaços variados, seja em praças, escolas, ruas, praias, elevadores, etc. A relação com o tempo é também fundamental, como se vê nas performances de longa duração de Marina Abramovic 23 , não havendo regra para a durabilidade da performance. 23 As performances de longa duração partem de uma proposta fundamental no trabalho de Marina Abramovic. O método, cujo propósito de ensino a levou a fundar o The Marina Abramović Institute for the Preservation of 100 Além disso, a performance se institui por uma tríade básica: atuante, texto e público. O atuante é o ator, embora não precise ser necessariamente um ator humano, podendo ser um animal ou coisa. Texto é, no sentido semiológico, “um conjunto de signos que podem ser simbólicos (verbais), icônicos (imagéticos) ou mesmo indiciais” (Cohen, 2013, p. 29), como sombras, ruídos e fumaças. O terceiro elemento, o público, como ressalta Cohen, é objeto de grande polêmica, pois alguns artistas, como Adolphe Appia, defendem que é possível se chegar a uma cena onde só haja atuantes, sem espectadores. Por outro lado, a supressão do espectador implicaria outro tipo de coisa que não a arte, por exemplo o psicodrama em que todos são espectadores-atuantes. A solução do autor é propor a divisão entre “forma estética”, que contém o espectador, e “forma ritual” (p. 29), em que o público é também participante. Um terceiro e último aspecto conceitual tratado por Cohen (2013) diz respeito à linguagem da performance. Ele chama a atenção para a hibridez dessa linguagem, já que alguns a colocam na família das artes plásticas, enquanto outros a atribuem ao teatro. Ele considera que faz mais sentido incorporar sua origem às artes plásticas, visto que ela advém da body art cujo princípio é fazer do artista ao mesmo tempo sujeito e objeto de arte, transformando-o em escultura viva. Porém, ele reconhece sua aproximação com o teatro e por isso propõe “numa classificação topológica, que a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade” (Cohen, 2013, p. 30). A performance faz parte do que Cohen (2013) chama de “processo de entropização” (p. 39), que significa desorganização. O aumento de entropia corresponde ao aumento de desordem e, consequentemente, maiores graus de liberdade na criação. Ele explica que todos os movimentos da arte plástica moderna, tais como o cubismo, surrealismo, dadaísmo, etc., introduzem uma relação modificada com o objeto, diversa da forma tradicional de representação. Assim, na origem da performance encontramos a body art e, retrocedendo ainda mais, a action painting, que é exatamente a elevação do artista como sujeito e objeto de sua obra. Na action painting, que tem como expoente o artista americano Jackson Pollock, o processo de criação é mais valorizado do que o resultado final, o que significa que o corpo Performance Art, em Hudson, Nova York, E.U.A., joga com o elemento do tempo. Segundo a artista: “o público precisa de algum tipo de experiência para chegar ao próprio cerne e alterar a consciência, tudo isso requer tempo” (em: http://performatus.net/entrevista-marina-abramovic/). Uma das performances de longa duração mais consagradas é The Artist is Present (A Artista está Presente), ocorrida em 2010 no MoMA, que dorou aproximadamente 3 meses. Marina ficava durante sete horas por dia assentada de frente a uma cadeira na qual o público era convidado a se sentar alternadamente e olhar para a artista (simplesmente olhar). Para mais informações sobre essa performance, ver o documentário produzido pela HBO em 2012: “Marina Abramovic: The Artist is Present” (direção de Matthew Akers). 101 daquele que pinta se sobressai sobre a própria pintura. O objeto artístico passa da pintura para o ato de pintar. Cohen ressalta que mesmo que a arte da performance tenha ganhado sua forma plena no século XX, antropologicamente falando ela remonta à instalação da cultura, quando o homem começou a se representar. Dessa forma, há uma corrente ancestral da performance que passa pelos primeiros ritos tribais, pelas celebrações dionisíacas dos gregos e romanos, pelo histrionismo dos menestréis e por inúmeros outros gêneros, calcados na interpretação extrovertida, que vão desaguar no cabaret do século XIX e na modernidade (Cohen, 2013, p. 41). O autor faz uma interpretação sobre a dicotomia razão x emoção no processo de instalação da cultura. Trata-se de uma síntese dialética de duas tendências, usando os termos nietzschianos: o apolíneo, que rege a organização, a mensagem, a razão, e o dionisíaco, representando a pulsão e as paixões. Enquanto o apolíneo é a matriz do teatro clássico, com toda sua estrutura aristotélica, a performance tenderia para o dionisíaco ao resgatar a corrente do ritual. Ademais, quando o foco passa da obra final para o sujeito artista – descentramento este inaugurado pela action painting – a performance introduz o movimento nas artes plásticas. A obra passa a ser o artista fazendo a obra. Assim, se a arte plástica, como o próprio autor a define, tem o caráter de uma “estática” (Cohen, 2013, p. 29), a performance inaugura uma nova estética que se caracteriza por uma “evolução dinâmico-espacial” (p. 29). Não um movimento ordenado, pré-determinado, mas aquele que segue um fluxo inconstante (e por que não inconsciente?) e cuja mensagem serve menos a um conceito de ordem qualquer do que ao propósito de subverter conceitos. O elemento do irrepresentável e da não-intencionalidade, a assunção do corpo do artista como obra, a aproximação com a vida (tal como Antonin Artaud propunha, distanciando-se da representação característica do teatro aristotélico), o predomínio do símbolo sobre a palavra, a estrutura não narrativa, a realização em locais alternativos, com poucas apresentações e muito espaço para improvisação, enfim, tudo isso compõe a linguagem da performance. Esse aspecto de ir além das possibilidades de representação já indica a proximidade dessa forma estética com a surpresa e o estranho que procuramos apreender aqui através da experiência da angústia, por ser esta o afeto que denuncia o furo no campo simbólico. A sublimação pela arte, que oferece uma escapatória ao recalque (Freud, 1915/ 2010), pode ser um dos caminhos para lidar com o irrepresentável do trauma que anuncia nossa posição 102 fundamental de desamparo. Ocorre que, pela via da performance, somos levados a uma conclusão oposta: o choque e estranhamento que essa arte provoca pode ser entendido também como mostração da angústia. A exibição desse Unheimlich que deveria ter permanecido oculto, porém veio à luz (Freud, 1919/ 1996) é o que Lacan apreende na experiência da angústia por trazer à realidade o elemento que deveria ficar oculto, ou seja, o lugar da falta. A presença de um objeto (ou corpo) no lugar onde deveria ficar vazio – lugar do Heim (talvez a cena artística?) – revela o objeto que nós mesmos somos para o desejo do Outro. O elemento para além do belo – ou para além do princípio de prazer – talvez lance o espectador num universo em que ele se sinta apreendido justamente naquele ponto irredutível de sua angústia. Como explica Denise Pedron 24 : A experiência de um teatro imersivo, uma visita a uma exposição de arte contemporânea, ou a vivência de uma performance, coloca-nos frente ao desconhecido, e nos remete a nós mesmos como desconhecidos, outros, e também aos inúmeros outros não desvendáveis com os quais convivemos ao longo da vida. A exibição pública de sexo e morte, como explica Goldberg (2006), convoca a uma “solidariedade artística” (p. 202) contra a sociedade conservadora (da década 1990). Também, podemos acrescentar, contra o próprio recalque que incide sobre o representante das pulsões. “Pois que a presença do sexo está ligada à morte”, diz Lacan (1964/ 2008, p. 174). Goldberg (2006) conta que Strippers masculinos, drag queens e toxicômanos participaram de uma performance de Roy Athey, artista americano, chamada Mártires e santos, em 1993. Era uma “obra com uma hora de duração que incluía autoflagelações tão terríveis que várias pessoas do público desmaiaram” (p. 203). Em outra performance, de Elke Krystufek, 1996, o artista se masturbava com um vibrador numa banheira cheia de água cercada por um vidro, diante de um público de centenas de pessoas, em Viena (Goldberg, 2006). Essas práticas radicais, que a autora chama de “monólogo performático” (p. 204), iniciadas na década de 70 com as obras de Bogosian, Finley e Gray, cresceram nos Estados Unidos e se transformaram nas mais duradouras dentre as formas performáticas. “Sua estrutura simples explicava sua acessibilidade ao público e seu apelo a um amplo espectro de artistas que nele introduziram características pessoais” (p. 204). O corpo tornara-se a via privilegiada por onde o artista exibia as pulsões mais grotescas, mais viscerais. Uma marca da arte de Abramovic, como já foi dito, é explorar os limites do corpo. Em Expanding in space (Expansão no espaço), de 1977, a artista e seu parceiro, Ulay, se colocavam de costas um para o outro, nus, no centro de um estacionamento fechado. À frente 24 Comunicação oral em 06 de outubro de 2015 (Montevidéu, Uruguai). 103 de cada um se encontrava uma espécide de pilastra móvel de 15kg cada. Eles então andavam em direção às estruturas até se chocarem fortemente contra elas, com todo o corpo, e depois voltavam a se colocar um de costas para o outro no centro do espaço. Esse movimento se repetiu durante 46 minutos, enquanto eles caminhavam numa velocidade cada vez maior arrastando as pilastras com o choque do corpo até as extremidades opostas do galpão, expandindo assim o espaço entre elas. Em entrevista recente 25 , a artista contou que ela e Ulay ficaram com seus corpos tão doloridos que precisaram permanecer durante um mês ‘de cama’. Em outra performance, Art must be beautiful, artist must be beautiful (A arte tem que ser bela, a artista tem que ser bela), de 1975, Marina Abramovic está nua e começa a pentear seu cabelo com uma escova de metal na mão direita. Ela vai penteando com uma força cada vez maior e depois começa o mesmo movimento com a outra mão, que segura um pente de metal, repetindo a frase que dá nome à performance: “a arte tem que ser bela, a artista tem que ser bela”. Durante uma hora ela permanece nessa repetição até seu rosto se machucar e seu cabelo ficar todo embaraçado. Percebe-se que há uma repetição exaustiva de movimentos até chegar a um esgotamento, um verdadeiro estrago no corpo. Semelhante repetição até o ponto de exaustão pode ser vista em Freeing the Body (Libertando o Corpo). A artista fica nua, apenas com a cabeça embrulhada num cachecol preto, movendo seu corpo durante 8 horas no ritmo de uma bateria africana. Ela se move – numa espécie de catarse ou conversão – até cair. Em entrevista à Folha de São Paulo, Marina Abramovic comenta 26 : No começo, só masoquistas faziam merdas assim, e eram ridículos. Era gente que devia consultar um psiquiatra. É complicado explicar. Em cada cultura existem curandeiros, magos, que suportam dores físicas incríveis porque isso representa abrir uma porta para o inconsciente. É uma forma de controlar de fato a dor, de controlar tudo. Essa é a chave. Tal tentativa de controlar a dor (ao mesmo tempo entregando-se a ela, ou melhor, gozando com ela) se aproxima da ideia de compulsão à repetição que Freud trabalha em Além do princípio de prazer (1920). Tudo o que tira o psiquismo da homeostase, seja a tensão interna ou o mundo externo, é expulso de algum modo (defesa psíquica ou fuga externa) pela tendência do princípio de prazer. Tentar suportar a dor, conforme a fala de Marina Abramovic, é nesse sentido lidar com um limite psíquico onde se produz um aumento de excitação provocante de dor e desprazer. Isso retoma o que já dissemos a respeito do gozo: o desprazer é 25 C.f. nota de rodapé 22. 26 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/06/1463654-marina-abramovic-fala-sobre-sofrer- pela-arte-e-distribuir-armas-carregadas.shtml 104 misturado ao prazer do artista após um teste tão radical de seus limites, quando a descarga de energia alivia suas tensões. Da mesma forma, a angústia do público pode vir acompanhada do enorme prazer de suas fantasias que economicamente produzem uma certa descarga de tensão. Toda essa economia psíquica que supomos se colocar em jogo por meio da arte a torna extremamente instigante. Para Schechner (2012), o teatro essencializa a vida. Em seu Performance Theory, lê-se: Não só as narrativas, mas também as ações corporais dramáticas expressam crises, separações e conflitos. Como Eugenio Barba observou, atores especializam-se, colocando a si próprios em desequilíbrio e logo mostrando como recuperam seu equilíbrio psicofisicamente, narrativamente e socialmente – somente para perder seu equilíbrio e recuperá-lo frequentemente (Schechner, 2012, p. 19). Esse movimento estético necessário à preparação do ator e que dá vida à performance tem relação profunda com os jogos e rituais em todos os povos e culturas (Schechner, 2012). Freud (1912-3/ 2012) também não pôde construir sua teoria do psiquismo sem consultar a história da civilização, o que o levou a dizer que a ontogênese repete a filogênese. Mas o que interessa especialmente aqui é a profunda semelhança dos processos psíquicos dos personagens envolvidos na performance com o dinamismo inconsciente tal como o vemos na clínica psicanalítica. Mais, ainda: como essa arte pode servir de recurso para pensar o fora-de-sentido, o inabitual, o estranho que atormenta por fazer lembrar a castração que nos divide como sujeitos. E o que aparece na hiância entre um significante e outro é justamente o inconsciente com sua função “pulsativa”: “tudo que, por um instante, aparece em sua fenda, parecendo ser destinado, por uma espécie de preempção, a se cicatrizar, como o próprio Freud empregou a metáfora, a escapulir, a desaparecer” (Lacan, 1964/2008, p. 49). Tal como o movimento estético da performance, o inconsciente é também marcado pelo desequilíbrio e retorno ao equilíbrio, dor e alívio, prazer e tensão que conjugam a experiência de gozo; enfim, um verdadeiro circuito em que os níveis de energia são alternados. Afinal, como diz Lacan (1964/2008), o alvo da pulsão “não é outra coisa senão esse retorno em circuito” (p. 176). 4.2 O que não aconteceu (ou: o que retorna) Freud indica a existência, no sintoma obsessivo, de um movimento estranho de repetição cuja intenção é preservar o sujeito de algo desagradável, como uma proibição, porém 105 que acaba por afirmar essa mesma coisa que o desagrada. Em Totem e Tabu, ele diz: “O ato obsessivo é ostensivamente uma proteção contra o ato proibido, mas, na realidade, a nosso ver, trata-se de uma repetição dele” (Freud, 1913/ 1996, p. 65). Depois, em Inibição, sintoma e angústia, volta a apontar a mesma contradição do sintoma obsessivo: “O que não aconteceu de maneira conforme ao desejo é tornado não acontecido mediante a repetição de outra maneira” (Freud, 1926/ 2014, p. 58). Aquilo que não aconteceu conforme ao desejo é justamente uma vivência traumática geradora de desprazer cujas inscrições devem ser anuladas pelo ato. É ela que leva à formação do cerimonial obsessivo de “anulação do acontecido” (p. 57). Ora, Freud reconhece que o intuito de anular uma ação passada, tal como ocorre nos rituais mágicos e cerimônias religiosas, por ser impossível de se realizar, só pode proliferar ainda mais a repetição do ato. O sintoma obsessivo combina, portanto, esses dois impossíveis: o fato passado, que não aconteceu conforme o desejo, e a anulação desse fato mediante a repetição a fim de torná-lo não acontecido. Dessas duas anulações resulta a positividade da repetição que vem atualizar esse resto intraduzível do trauma, do não-realizado, do que jamais pode ocorrer conforme ao desejo. A compulsão à repetição em Freud admite, portanto, um paradoxo: ao mesmo tempo em que pretende anular a experiência traumática, na tentativa de ligar o excesso de energia flutuante a representações do pré-consciente e colocar o psiquismo em conformidade ao princípio de prazer, ela, ao atualizar a cena do trauma, causa desprazer. Trata-se de um conceito de fronteira entre aquilo que é do prazer e o que é de morte. A repetição no fort-da é paradigmática para pensar isso, pois nela a criança atualiza sua angústia da perda da mãe simulando a própria perda, na tentativa de obter prazer com a passagem de uma forma passiva a uma forma ativa (Freud, 1920/ 1996). Lacan (1964/ 2008) analisa o mesmo jogo de outro modo: o que está no centro da dinâmica do fort-da é mais exatamente a hiância que introduz, com a ausência da mãe, a separação em que a criança se destaca ela própria como objeto. O carretel é a colocação em ato do próprio sujeito, donde resulta sua função de objeto a. A separação da mãe deixa a fenda por onde o sujeito se introduz na ordem significante. É também o hiato entre o desejo e a possibilidade de realizá-lo. Causado por essa divisão, ele repete. “O que ele visa é aquilo que, essencialmente, não está lá enquanto representado – pois é o jogo mesmo que é o Repräsentanz da Vorstellung” (Lacan, 1964/ 2008, p. 67). 106 Tal como no jogo infantil, na performance também se observa o elemento da repetição 27 , especialmente nas obras de Marina Abramovic. Embora seja visível o elemento sígnico da repetição, podemos arriscar a dizer que o que se repete vai além desse autômaton reduzido ao campo do simbólico (Lacan, 1964/ 2008). Como foi falado brevemente no capítulo 2, percebe-se a emergência de algo por acaso, como tiquê, por exemplo quando o corpo extrapola um certo limite corporal e cai (em Freeing the Body). O corpo se desmancha, estraga, machuca, paralisa, traumatiza. Esse algo que retorna, por mais que se tente apreender pela via do signo, insiste em não se deixar apaziguar pelas tendências homeostáticas do princípio de prazer. Ele interrompe a proliferação do simbólico e reinstaura o novo. Como escreve Derrida (2011) a respeito do Teatro da Crueldade proposto por Antonin Artaud: “o teatro como repetição daquilo que não se repete, o teatro como repetição originária da diferença no conflito das forças...” (pp. 364, 365). Ou seja, a diferença surge dentro da repetição, ou vice-versa, pois “a origem é sempre iniciada” (p. 362) e “a própria afirmação tem de iniciar-se repetindo-se” (p. 363). Hal Foster, crítico de arte norte-americano que tece um diálogo interessante da arte com a psicanálise, evidencia, através da obra de Andy Warhol, esse elemento da repetição em relação ao trauma. Fazendo uso dos conceitos aristotélicos com os quais Lacan indica as formas da repetição, autômaton e tiquê, Foster (1996/ 2014) destaca o paradoxo que eles conjugam: a repetição dos signos de origem inconsciente, tal como ocorre no sintoma e por isso da ordem do autômaton, ao mesmo tempo em que serve de proteção ao aparecimento do trauma, acaba por produzi-lo (assim como o sintoma obsessivo, conforme a descrição de Freud). A produção desse traumatismo se inscreve na dimensão da tiquê, da causalidade acidental. É isso que o autor chama de “realismo traumático” (p. 126), categoria que não exclui a dimensão dos referencias e simulacros – ou, numa linguagem lacainana, dos significados e semblantes – porém flerta com ambos os elementos numa esfera em que aparece “um sujeito em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o choca como defesa mimética contra esse choque” (Foster, 1996/ 2014, p. 126). A obra Latas de Sopa Campbell, criação de Warhol em 1962 e cuja influência no movimento da art pop nos Estados Unidos foi de grande relevância, é interpretada por Foster como uma adesão à compulsão de repetir que expõe o jogo da sociedade de produção e consumo em série. Ela faz nada mais que “revelar o automatismo e até o autismo desse processo, por meio de seu próprio exemplo excessivo” (Foster, 1996/ 2014, p. 126). O próprio 27 Em Schechner (2012) temos que “performances são fazer-crer no jogo, por prazer” (p. 19). 107 Warhol descreveu essa repetição compulsiva: “Porque quanto mais você olha para a mesma coisa, mais o sentido escapa, e melhor e mais vazio você se sente” (Warhol e Hackett, 1980, p. 50, citados por Foster, 1996/ 2014, p. 127). Foster (1996/ 2014) alega que a repetição é “tanto um escoamento do significado como uma defesa contra o afeto” (p. 127), ou seja, é a atualização do trauma através do próprio ato da repetição – tal como a anulação do acontecimento pelo ato obsessivo. Relembrando a afirmação de Freud (1926/ 2014): “O que não aconteceu de maneira conforme ao desejo é tornado não acontecido mediante a repetição de outra maneira” (p. 58). A repetição nega duas vezes: nega o significado daquilo que, por não ter ocorrido conforme ao desejo, é traumático; nega também o afeto originado desse trauma. Trata-se de um paradoxo: ao tentar salvar o sujeito do afeto traumático e da representação a ele inerente, essa dupla negação acaba por produzir a positividade afetiva que remete ao desamparo. Assim como nos sonhos traumáticos de guerra em que, como percebeu Freud (1920), a repetição do horror é uma atualização necessária do desprazer, pois seu intuito é ligar a energia livre a representantes simbólicos e com isso diminuir a tensão do aparelho. Da mesma forma, a interpretação lacaniana permite que Foster pense a pop art (que ele inclusive relaciona ao surrealismo com base no conceito de realismo traumático) embasando- se no trauma como encontro faltoso com o real. Impossível de ser representado, o real só pode ser repetido. E o trauma, como foi visto, vem da confusão entre sujeito e mundo, da ruptura entre o dentro e o fora – operação de divisão cujo resto é o objeto a, objeto da angústia. A imagem que se repete, a exemplo das cenas do acidente na obra Carro branco em chamas III (Andy Warhol, 1963), aponta o sujeito como efeito do olhar, como sombra ou “mancha” (Lacan, 1964/ 2008, p. 77) e que anuncia, portanto, o encontro faltoso com o real. Foster (1996/ 2014) argumenta: A repetição, antes, serve para proteger do real, compreendido como traumático. Mas essa mesma necessidade também aponta para o real, e nesse caso o real rompe o anteparo da repetição. É uma ruptura não tanto no mundo quanto no sujeito – entre a percepção e a consciência de um sujeito tocado por uma imagem (pp. 128-129). Curiosamente, a imagem que serve de anteparo à constituição do eu é ela mesma deslocada na falta de uma representação que sirva de anteparo, causando o choque. A repetição que serve de ligação e proteção é também provocadora da emergência de um acaso que pega o sujeito de surpresa e o joga no fenômeno do estranho. Foster indica nas imagens da 108 pop art o furo, o buraco – troumatismo28 – que é justamente a fissura por onde se constitui o sujeito (fazendo menção ao território de das Ding) e que implica, repetidamente, que o real o atravessa e o remete à incompletude, à castração. Enfim, “repetições que se fixam no real traumático, que o encobrem, que o produzem” (Foster, 1996/ 2014, p. 131). Repetições – vale lembrar – que não são propriamente o retorno do mesmo, do idêntico. As séries de Wahrol são compostas por imagens diferentes entre si, diferença a partir da qual se verifica o tropeço do automatôn ou a denúncia de que em todo movimento estético pode haver alguma estática. Também na performance a repetição das imagens (embora sejam imagens em sua maioria móveis e configuradas no corpo do artista, ou seja, imagens de corpo) é provocante do mesmo efeito paradoxal, porquanto a repetição de movimentos corporais (e também de posturas estáticas) muitas vezes sem sentido capturam o sujeito em sua divisão. Foster (1996/ 2014) diz que o choque é aquilo que existe no mundo, enquanto o trauma se desenvolve em cada sujeito. Portanto, não se pode afirmar que uma criação artística é traumática, e sim que ela é chocante. Mas, se é chocante, disso se depreeende que ela pode evocar contingencialmente elementos traumáticos naqueles que a vivenciam. A angústia, conceito de fronteira que se inscreve na divisão do sujeito com a imagem dele mesmo e do mundo, compreende esse paradoxo que Foster (1996/ 2014) trabalha na análise das obras. Como foi visto, na teoria freudiana ela serve de proteção ao aparelho psíquico ao colocar em jogo as defesas contra a irrupção do trauma, sinalizando o perigo iminente. Ao mesmo tempo, reproduz o estado do trauma quando essas defesas fracassam (ou seja, quando a própria angústia mesma fracassa em sua função de sinal) ou quando o excesso de excitação transborda a capacidade de ligação aos representantes verbais. Para Freud, trata- se de economia psíquica. A repetição de um evento traumático, portanto, pode ter a função de proteger o psiquismo contra a angústia, mas também, de alguma forma, a angústia é ativada nesse mecanismo para que sejam erguidas novas defesas. É uma espécie de movimento dialético em que a angústia desativa o trauma, mas é reativada novamente pelo próprio trauma. Proteção e produção, possibilidade e impossibilidade simbólica, desativação e reativação da memória do trauma se alternam o tempo todo. Para Lacan, o paradoxo da angústia pode ser percebido na relação ambivalente que ela tece, por um lado, com o desejo e, por outro, com o trauma. A inscrição do lugar do desejo é também a impossibilidade de escrever todo o real. Por um lado é necessário atravessar a angústia, passando pelo traumatismo do desamparo, pois ela funciona como vetor do desejo. 28 Em francês, troumatisme – neologismo que Lacan (1974) cria para indicar o furo (trou) em associação com o trauma (traumatisme). 109 Por outro, ela implica que algo estará sempre aberto, sempre à espreita, podendo a qualquer momento retornar acidentalmente no ponto exato onde o simbólico tropeça, lá onde o campo da falta inscreve o lugar de onde o sujeito pode ver a si mesmo e ao Outro como castrados. Não é a angústia o afeto que não engana a respeito do retorno do real? Real que é nos termos de Lacan (1964/ 2008) “o maior cúmplice da pulsão” (p. 73). O realismo traumático, termo central no argumento de Hal Foster, faz referência justamente ao trauma do qual a angústia é sinal. A arte contemporânea evidencia o caráter fragmentário da pulsão, deixando transparecer através dos objetos que ela cria esses elementos do informe. O objeto a do olhar, por exemplo, se destaca na relação do espectador com a arte. Ao ver a obra, o sujeito é fisgado na posição de objeto, como se a própria obra o olhasse, indagando-o. Lacan diz (1964/2008): “O olhar só se nos apresenta na forma de uma estranha contingência, simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia de castração” (p. 76). Isso significa, para Foster (1996/ 2014), “a repetição de uma imagem para encobrir um real traumático, que, não obstante, retorna, acidentalmente e/ou obliquamente, nesse próprio encobrimento” (p. 132). Por isso o autor defende que o essencial da arte pós-modernista, incluindo a arte da performance, é que, ao invés de pacificar o olhar, estabilizando-se sobre o imaginário e o simbólico, provoca, ao contrário, um retorno do real – expressão que dá título ao livro. Em seus termos: “É como se essa arte quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto se sustentasse, que o real existisse, em toda a glória (ou horror) de seu desejo pulsátil, ou ao menos evocar essa condição sublime” (p. 136). 4.3 O que não aconteceu (ou: o corpo real) Retomando a tese desenvolvida no capítulo 2 a respeito da sublimação na performance – de que se trata mais de um rebaixamento do que propriamente uma elevação do objeto ou dessexualização da pulsão – encontramos também em Hal Foster algo que serve de apoio a essa ideia. Baseando-se em Georges Bataille, ele diz que o surrealismo combina mais com o sub do que com o sur, por deixar escoar o real que está embaixo, que emerge por acaso e que faz irromper nossa dimensão traumática. O modo de aparecimento da repetição nas obras artísticas pós-modernas não é senão esse sub que reposiciona o sujeito diante de seu próprio traumatismo. Em algumas obras de Cindy Sherman, por exemplo, onde o corpo é retratado cheio de cicatrizes no lugar dos peitos e furúnculos no lugar de narizes, o que ocorre é de fato 110 uma “dessublimação”: “esses corpos põem abaixo as linhas verticais da própria representação e da própria condição de ser sujeito [subjecthood]” (Foster, 1996/ 2014, p. 143). Esse estranhamento que vem do terror da imagem lança o espectador no irreconhecimento – ou talvez, seguindo a teorização lacaniana sobre a angústia, naquela imagem real que não se atém ao nível especular e onde o sujeito se vê reduzido ao objeto a. Daí seu caráter “sub”. A fragmentação do corpo causa uma espécie de ataque ao anteparo imaginário ao “trazer o trauma do sujeito à superfície, com o cálculo aparente de que, se seu objeto a perdido não pode ser recuperado, pelo menos a ferida que ele deixou pode ser investigada” (Foster, 2014, p. 146). Uma performance que Marina Abramovic apresentou em 1974 ressalta bem o caráter derradeiro dessa arte que, se por um lado se aproxima da vida, da live art, por outro se conjuga com a morte. Em Rhythm O (Ritmo 0), ela se mantinha inerte com 72 objetos sobre uma mesa à sua frente. Dentre estes, encontravam-se rosas, perfume, uvas, pedaços de pão, mas também faca, agulhas, machado e até uma arma carregada, para que o público os utilizasse da forma como desejasse. Ao longo de seis horas, os participantes interagiram com a artista primeiramente de modo ameno e carinhoso, depois foram ficando cada vez mais agressivos. A cena foi interrompida quando um espectador apontou-lhe a arma. Em entrevista após a performance, Marina comenta que esta foi uma das experiências mais extremas, onde ela colocou seu corpo no mais extremo limite – o da morte (Rivera, 2013). Seu interesse, ela deixou claro, não era morrer, mas saber qual o limite suportável do corpo humano. Ela conta que começou a chorar quando o público a amarrou em correntes, cortou sua pele, colocou-a deitada na mesa e cuspiu nela, etc, pois estava assustada. Disse que queria testar não apenas o limite do próprio corpo, mas até onde as pessoas são capazes de ir com sua agressividade 29 . Ou, pode-se dizer em liguagem psicanalítica, testar-se como corpo e também como objeto do Outro. Interessante notar o elemento de estática que se inscreve nessa obra. A começar pelo título, Ritmo 0, que faz menção à situação do corpo da artista: ela se mantém inerte o tempo todo. Entregue ao outro como objeto, ela busca testar o limite do corpo e da agressividade do público, num jogo onde a homeostase física é quebrada pela ação das pessoas que o tempo todo interagem com a artista. No entanto, como saber esse limite suportável que Abramovic diz querer alcançar? Os objetos sobre a mesa são movimento em potência, ou seja, tiram a obra do ritmo zero ao serem manipulados, dando vida à performance. Por outro lado, esse 29 C.f. nota de rodapé 17. 111 mesmo movimento pode levar ao extremo da morte, interrompendo a arte e também a vida. Ora, não é a pulsão de morte freudiana o ritmo zero por excelência? Ou a tentativa de alcançá- lo? Talvez possamos apreender com essa obra aquilo que Freud denunciava em sua investigação sobre o princípio de prazer: há sempre um perigo em qualquer tentativa de aliviar a tensão através do movimento – o perigo de uma ultrapassagem, um além que, no limite, aparece como o ritmo zero da morte. Foster (1996/ 2014) comenta que alguns artistas contemporâneos trabalham com o corpo violado na tentativa de evocar o real. Especialmente nas performances, o corpo é apresentado em cenários masoquistas em que aparecem amarrados, amordaçados, correndo perigo, etc. Ele diz: “é quase como se esses artistas não pudessem representar o corpo a não ser violado – como se o corpo só se registrasse representado nessa condição” (p. 146). Da mesma forma, para Tânia Rivera o que o corpo na performance denuncia, “para além de qualquer reafirmação de sua existência individual, é sua fugacidade, a condição mortal, passageira, do homem” (Rivera, 2013, pp. 19-20). Ou seja, trata-se mais de uma ausência do que uma presença “mais ou menos espetacular do corpo” (p. 20). Por isso a performance atualiza algo da cena traumática que diz respeito à finitude, ao desamparo humano, à morte. Real traumático que insiste em se repetir: “trata-se do real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma definitiva” (Rivera, 2013, p. 21). Rivera (2013) ainda dá um passo além em sua interpretação: “a arte contemporânea é marcada por um verdadeiro retorno do sujeito” (p. 20). Isso porque o sujeito, ao invés de servir de ponto de partida para a criação artística, advém de fora do espaço da representação. Ele é como que produzido pela própria obra. Uma vez que não se encontra na representação da realidade sob um olhar fixo, esse sujeito retorna como sujeito “descentrado”, como “corpo real” (p. 21), trazendo uma nova concepção de espaço e de limite na relação com o outro. “O sujeito recusa-se a se assimilar ao olho ideal e, nesse deslocamento, perde seu lugar de direito para retornar como questão, em uma convocação direta do espectador” (Rivera, 2013, p.21). Por ser efêmera, a performance não se deixar captar por uma imagem fixa 30 , fazendo a obra equivaler ao resto, resíduo. 30 Ainda que a performance possa ser ensaiada e repetida várias vezes, há sempre algo de um improviso ou de um acaso que impede que sua repetição seja uma mera reprodução de signos (como no autômaton). Como observa Renato Cohen (2013), a performance “caminha em cima de uma ‘não intencionalidade’ e do choque da ação direta” (p. 59). 112 O que, curiosamente, tece uma correspondência com a dimensão do objeto a enquanto resto que não cola à imagem, que escapa a qualquer forma rígida, em oposição ao objeto especular que tem sua figura refletida no espelho. Uma vez que não pode ser fixada, “a performance acentua um instante fugidio, na passagem do tempo” (Rivera, 2013, p. 30), sendo sobretudo um ato – “ato de perda” (p. 31). A implicação dessa forma artística com a dimensão do dejeto, do fragmento, em oposição à rigidez do par imagem/sentido, faz encontrar as duas vertentes do objeto que Lacan expõe no seminário sobre a angústia: aquela forjada no campo imaginário e a outra que, inscrita no circuito da pulsão, fica colada ao corpo do autoerotismo como resto de investimento libidinal que não se deixa capturar pela imagem e é, por isso, da ordem do real. À oscilação econômica dessa libido reversível de i(a) para i’(a) há algo que escapa, ou melhor, não é que escape, mas intervém com uma incidência cujo modo de perturbação é justamente o que estudamos este ano. A manifestação mais flagrante desse objeto a, o sinal de sua intervenção, é a angústia” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 98). Gérard Wajcman (2012) analisa o século XX como sendo um século de objetos múltiplos, plurais. No entanto, ele pergunta: “haveria um objeto singular que singularizaria esse século dos objetos?” (p. 55). Para ele, enquanto a criação industrial se faz por série, a obra de arte se caracteriza pela exigência de ser tratada no singular, no uma a uma, numa lógica do não-todo. O filósofo se baseia no pensamento de Walter Benjamin para pensar a obra como ato fundador que, ao invés de estar inserido num tempo, é ele mesmo que engendra o tempo. Tendo no centro de sua reflexão o filme Shoah, de Claude Lanzmann, ele diz que o objeto é aquilo da ordem do irrepresentável, inexprimível, sem imagens nem palavras, tal como foi o horror do holocausto. O filme, paradigmático para pensar a arte em articulação com esse objeto do século, se desenrola sobre a exigência de “mostrar e dizer o que não pode ser visto nem dito – visar o impossível enquanto impossível” (Wajcman, 2012, p. 62). Ele realiza um “olhar de frente” para um objeto fora da representação, o que Lacan exprime desta forma: “isso a que o artista nos dá acesso, é o lugar do que não poderia ser visto” (Lacan, 1961, p. 254, citado por Wajcman, 2012, p. 63). Ou seja, lugar do objeto a. Wajcman nos instiga a pensar que “o objeto a de Lacan é contemporâneo dessa arte do século XX, que se singulariza ao fixar o objeto como singularidade absoluta, sem duplo e sem imagem” (Wajcman , 2012, p. 73). O autor defende que com o objeto a Lacan inscreveu no discurso analítico aquilo que faz “o impensável entrar no pensamento, o irrepresentável entrar 113 na representação, a ausência entrar na presença, etc.” (p. 79). E conclui: “a é o objeto da arte do século XX” (p. 79). Como isso se articula à performance? Pode-se pensar que nesta há uma certa reconfiguração do lugar do corpo como arte – e ao mesmo tempo do sujeito como corpo – que singulariza, de certa forma, a dimensão do objeto na arte. Rivera (2013) propõe que, ao se entregar ao olhar do público, o artista sai de um certo domínio sobre o corpo e assume, por um instante, sua condição de quase-objeto. Assujeitando-se assim ao outro, paradoxalmente configura sua posição de sujeito desejante. Tal como o ato analítico, ocorre na performance um “efeito de sujeito” (Lacan, 1968, citado por Rivera, 2013, p. 28) – sujeito este que se caracteriza por sua inconstância, diferentemente do eu que é fixado numa imagem especular: O sujeito não é mais do que um rápido efeito que se perde em seguida, ele não goza de nenhuma constância, ao contrário do eu que é imagem enganosa surgida no espelho com a promessa, nunca inteiramente cumprida, de permanecer sempre a mesma. O sujeito é efeito de um ato que se dá numa trajetória, num circuito que necessita do outro, o convoca e só com ele se completa (Rivera, 2013, p. 28). O estranhamento do público frente à arte da performance parece estar ligado a uma certa nudez – nudez de palavras e de sentido, mostração de um real que ultrapassa o significante, denunciando a falta, a castração. Se ela é uma arte do retorno do real (Foster, 1996/ 2014), isso se deve à condição do corpo que, deslocado de seus aportes imaginários, donde se extrai a integridade egóica, ele é de fato apresentado em sua desintegração. Ou em sua... nudez. Nudez não apenas de sentido, mas também de corpo. Giorgio Agamben, num ensaio recente chamado Nudez, comenta uma performance de Vanessa Beecroft de 2005, realizada na Neue Nationalgalerie em Berlim, em que cem mulheres nuas estavam de pé sobre um salto alto, imóves, simplesmente expostas aos olhares dos visitantes que entravam em grupos na sala do museu. O filósofo comenta que a impressão que tinha dos visitantes embaraçados – talvez pelo próprio olhar que seria mais invasivo para eles mesmos do que para as mulheres – era de um não-lugar. “Algo que poderia e, talvez, deveria ter acontecido não tinha tido lugar” (Agamben, 2014, p. 89). Ele chega à conclusão de que o que não tinha tido lugar ali não era uma cena sadomasoquista, nem uma orgia, tampouco a tortura, mas a simples nudez. O que a performance colocava em questão era a nudez do corpo humano como acontecimento que não se deu (ou não-acontecimento). Isso porque a veste, segundo a tradição teológica, simboliza a graça, enquanto a nudez está ligada à natureza humana. A mudança metafísica provocada pelo desnudamento do homem, pela perda da veste da graça, leva à descoberta do corpo ou à 114 percepção de sua nudez. Nudez, no entanto, que só existe agora como não-veste, uma vez que o corpo nu já não tem representação singular a não ser relacionado a sua dimensão negativa. Isso significa, como Agamben retoma de Erik Peterson, a queda do homem que até então estivera coberto com a veste sagrada, como Adão e Eva no paraíso. Há uma conexão essencial na Sagrada Escritura entre queda, nudez e perda da veste. É o pecado que deixa aparecer a nudez como “nua corporeidade” (Agamben, 2014, p. 95) que preexistia à nudez paradisíaca e inocente. “O problema da nudez é, portanto, o problema da natureza humana na sua relação com a graça” (p. 95). Logo, “a natureza humana, segundo o seu próprio destino, é subordinada, de fato, à graça e se realiza somente através dela” (p. 99). A nudez do homem é a carne, a putrefação, sua corrupção que reaparece na ocasião do desnudamento com o advento do pecado: “a nua corporeidade da natureza humana é apenas o pressuposto opaco daquele originário e luminoso suplemento que é a veste da graça (...)” (p. 100). Por isso ela não é um estado, mas um acontecimento; ou seja, não é uma forma estável, e sim fugaz. Na performance de Vanessa Beecroft, portanto, nota-se que as mulheres não estão completamente nuas, mas com “um rastro de veste” (Agamben, 2014, p. 101), os sapatos. A impossibilidade da nudez – tal como o paradigma do striptease está aí para mostrar – é um acontecimento que não pode jamais alcançar sua forma completa: “forma que não se deixa capturar integralmente no seu acontecer, a nudez é, literalmente, infinita, nunca cessa de acontecer” (p. 102). Será a nudez do campo do real? Pois ela só pode ser percebida no lampejo, no acontecimento da ausência da graça, já que ela não tem presença autônoma e por isso não pode saciar o olhar de quem a vê. Agamben reconhece na nudez o elemento infinito, inacessível que dá à corporeidade da espécie humana seu caráter obsceno após a queda (ocasionada pelo pecado). A nudez é definida então pela não nudez (a veste da qual foi despida), ou seja, pela negatividade da veste. Nesse sentido, ela é a própria coisa: A nudez do corpo humano é a sua imagem, isto é, o tremor que o torna cognoscível, mas que permanece, em si, inapreensível. (...) E precisamente porque a imagem não é a coisa, mas sua cognoscibilidade (a sua nudez), não manifesta nem significa a coisa; e, todavia, visto que não é mais do que o doar-se da coisa ao acontecimento, o seu despir-se das vestes que a cobrem, a nudez não é diferente da coisa, ela é a própria coisa (Agamben, 2014, p. 121). Assim, como observa o filósofo, a nudez é menos uma presença do que uma ausência. Por ser a coisa em si, ela não pode ser representada, significantizada. Freud, na tentativa de procurar a angústia mais fundamental do homem, deparou-se com a correspondência entre este afeto e a morte. Porém, isso “oferece à psicanálise um difícil problema, pois a morte é um conceito abstrato de teor negativo, para o qual não se acha uma correspondência inconsciente” 115 (Freud, 1923/ 2011, p. 72). Por isso ele opta por usar a noção de perigo para falar das ameaças que apresentam risco ao eu, sendo o perigo de castração a referência mais próxima a uma perda real, física. É então a perda no nível do corpo que fornece ao sujeito a possibilidade de representação de sua situação de desamparo e tem, por isso, o potencial de desencadear o desprazer que dá à angústia seu caráter específico. A arte da performance parece ressaltar essa perda no nível do corpo. Mais do que à representação da morte ou finitude, ela alude àquilo que é estranho justamente por não ter representação. Enfim, é no corpo – como denuncia a experiência clínica – que esse objeto irrepresentável anuncia sua opacidade: A falta é radical, radical na própria constituição da subjetividade, tal como esta nos aparece por via da experiência analítica. Eu gostaria de enunciá-la com esta formulação: a partir do momento em que isso é sabido, em que algo chega ao saber, há alguma coisa perdida, e a maneira mais segura de abordar esse algo perdido é concebê- lo como um pedaço do corpo (Lacan, 1962-63/ 2005, p. 149). 4.4 A angústia que movimenta o desejo – e a criação O campo do irrepresentável é a abertura por onde encontramos os conceitos fundamentais na experiência tanto da sublimação quanto da angústia: respectivamente, das Ding e objeto a. Este último, que Lacan formalizou em seu seminário sobre a angústia, aproxima-se em sua natureza do núcleo da economia pulsional que caracteriza das Ding, e não do objeto sensível cujas coordenadas são dadas pela relação do sujeito com o outro semelhante. O que significa que o objeto causa do desejo é justamente o que não se escreve nessa relação, ou seja, o que atesta a alteridade do Outro (Lacan, 1962-63/ 2005) ou a inexistência da relação sexual (Lacan, 1972-73/ 2008). Assim, enquanto objeto que não se representa na rede significante, ele é tal como a coisa: uma negatividade, uma opacidade. Como afirma Safatle (2006), “A Coisa só pode ser caracterizada negativamente como o que não é objeto de uma predicação” (p. 285). A origem dessa negatividade é, como vimos em Freud (1925/ 2011), aquele primeiro juízo do eu que expele de si o que é ruim, o não idêntico, enfim, o que não se conforma ao princípio de prazer. O resto dessa negação Lacan o chamou de Coisa: “ela era o nome da singularidade que não podia se inscrever e que aparecia como resistência às predicações postas pelo pensamento fantasmático do eu” (Safatle, 2006, p. 285). 116 Da mesma forma, o objeto a, diferente do objeto empírico, foi forjado como o objeto irrepresentável na malha significante. Como visto no capítulo 2, ele constitui o sujeito e ao mesmo tempo lhe escapa. Sua origem está na entrada do sujeito na linguagem, o que interrompe a correspondência direta entre o corpo e sua imagem, e também entre sujeito e objeto. A operação significante descola esses dois corpos, do eu e do Outro, colocando entre eles um intervalo que, por sua vez, não se reduz ao significante. Ou seja, se a inscrição significante é o que separa esses corpos, o hiato forjado por tal separação é ele próprio irredutível a um significante. Entretanto, se por um lado essa dimensão angustiante do traumatismo aparece como real que retorna, por outro ela é a via que permite a entrada do desejo na cena do mundo (Lacan, 1962-63/ 2005), como abertura ao registro da contingência. Ou seja, sair da submissão ao gozo do Outro exige, em contrapartida, colocar a castração em causa no endereçamento ao Outro. Pois é do núcleo opaco da castração que provém a real estrutura do desejo, conforme nos diz Lacan (1960/ 1998): Com efeito, é muito simplesmente – e diremos em que sentido – como desejo do Outro que o desejo do homem ganha forma, porém, antes de mais nada, somente guardando uma opacidade subjetiva, para representar nele a necessidade. Opacidade que diremos de que maneira constitui como que a substância do desejo (p. 828). Com isso, temos que a angústia não é apenas um afeto desagradável, mas ela tem uma certa função clínica de vetorizar o desejo – um móbil do desejo – por indicar o lugar da falta. O objeto a é o que marca a diferença entre a demanda e a necessidade. Enquanto resto que não se escreve no campo do Outro, ele estará sempre entre dois sujeitos a ratificar a negatividade do encontro sexual. Como sugere Lacan (1960/ 1998): O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade: essa margem é a que a demanda, cujo apelo não pode ser incondicional senão em relação ao Outro, abre sob a forma da possível falha que a necessidade pode aí introduzir, por não haver satisfação universal (o que é chamado de angústia) (p. 828). Bernard Baas (1998) esclarece que, na fórumula lacaniana da fantasia, entre o sujeito barrado ($) e o (a) se interpõe o símbolo (<>) não apenas para marcar a reversibilidade da pulsão, mas também com duas outras funções. Por uma via, trata-se de uma tela que se dá como lugar intermediário onde se projeta, de um lado a outro, o sujeito alienado ao significante e sua relação com o objeto causa de desejo (a). Por outra via – e este é o aspecto que mais interessa ao autor – trata-se igualmente de uma tela, porém com a função de fazer uma tela, ou um véu, a fim de proteger ou sinalizar o que há para ser protegido. Assim, “entre $ e a, não pode haver presença imediata de um ao outro. O sujeito do desejo não se expõe ao 117 objeto faltoso; se ele se expusesse, ele se exporia ao além-do-mundo, ele se exporia ao nada da Coisa” (p. 81)31. O que significa dizer que o encontro com a Coisa é a própria abolição do sujeito. É aqui que aparece a angústia, como observa Baas, sinalizando o perigo desse encontro mortal. A angústia vem como essa “experiência-limite” (p. 81)32 que protege o sujeito contra seu desaparecimento no gozo. O desejo, da mesma forma, aparece como intervalo o sujeito e o objeto do desejo, ou seja, com a função de “proteger o sujeito de seu aniquilamento no gozo” (p. 81) 33 . A lei do desejo funciona para barrar o acesso do sujeito à Coisa; ela inscreve o sujeito no mundo e interdita o para-além, colocando o limite no gozo. O que a angústia sinaliza é justamente a ausência da lei ali onde ela deveria existir; ou melhor, ela convoca a lei para barrar a experiência traumática do real. Por isso ela aparece quando o a advém na experiência como objeto empírico, como duplo, inserindo uma presença ali onde deveria ficar vazio. Se a angústia evoca a lei, como diz Baas, é porque ela não engana a respeito dessa articulação necessária do objeto a com a impossibilidade do desejo de atingi-lo. Lê-se em Lacan (1960/ 1998): “que o desejo seja articulado é justamente por isso que ele não é articulável” (p. 819). O que significa que, enquanto articulador da série substitutiva de objetos de desejo, ele por sua vez não se reduz a uma articulação que o condiciona, diferentemente da demanda ou da necessidade. Se a demanda é articulável (se ela ‘sabe’ o que a satisfaz), o desejo, por outro lado, não sabe o que deseja. “Pois aí se vê que a insciência que o homem tem de seu desejo é menos insciência daquilo que ele demanda – que, afinal, pode ser cingido – do que a insciência a partir da qual ele deseja” (Lacan, 1960/ 1998, p. 829). Este é o ponto de opacidade que marca a inflexão do desejo a partir da demanda e da necessidade. Baas (2001) lembra que, enquanto sustentado pela Coisa, o desejo não pode ter como objeto a Coisa. “A Coisa – pode-se dizer – é o “focus imaginarius” do desejo, de maneira que não seria questão constituir a Coisa em epitúmeno 34” (p. 38). O a, por sua vez, é o elemento mediador entre o desejo, que procede da Coisa, e o objeto sensível. Ele não é equivalente ao sujeito do desejo, mas articulado a ele, tal como o apresenta a fórmula do fantasma ($ <> a). O movimento do desejo necessita desse lugar de falta que é articulado pelo 31 No original: “Car entre $ et a, il ne saurait y avoir présence immédiate de l’um à l’autre. Le sujet du désir ne s’expose pas à l’objet manquant; s’ils’yexposait, ils’exposerait à l’outro-monde, ils’exposerait eu rien de la Chose” (p. 81). 32 “Expérience-limite” (p. 81). 33 “(...) protéger le sujet de son anéantissement dans la jouissance” (p. 81). 34 Epitúmeno é o termo que Baas usa para designar o objeto de desejo em sua qualidade de objeto sensível dado na experiência. 118 a; caso contrário, chamamos de necessidade a relação estática que se dá com o objeto, relação imediata e sempre correspondida na realidade sensível. Assim como o desejo, a sublimação também preserva esse lugar da falta, como visto anteriormente. A criação ex nihilo, à maneira do oleiro que cria o vaso em torno do vazio, significa respeitar a distância entre o objeto sensível e das Ding. Como afirma Baas (2001), “a sublimação apresenta no sensível o índice disto que é absolutamente inapresentável, absolutamente fora de figuração, isto é a Coisa” (p. 52). A obra de arte tampouco corresponde ao objeto sensível, pois ao representar este objeto ela já cria outra coisa sobre ele. Parece, pois, que ela está entre a Coisa e o objeto empírico, numa operação que é muito mais de apresentação do que propriamente representação: É claro que as obras de arte imitam os objetos que elas representam, sua finalidade, porém, justamente não é representá-las. Fornecendo a imitação do objeto elas fazem outra coisa desse objeto. Destarte, nada fazem senão fingir imitar. O objeto é instaurado numa certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar (Lacan, 1959-60/ 2008, pp. 171-172). Disso poderíamos supor que a sublimação está numa relação de oposição com a angústia: se a angústia aparece quando um objeto é colocado no lugar da Coisa, o que significa transgredir a Lei por colocar no lugar da falta uma presença sensível, a sublimação, por outro lado, é um ato que comporta a falta em seu centro, criação ex nihilo. Tal hipótese, porém, parece superficial ao observarmos que, se no nível do fenômeno angústia se apresenta pelo duplo, no nível da causa ela mantém sua relação primordial com a Coisa. Daí sua importância na clínica. Somente o atravessamento do fantasma faz aparecer o afeto de angústia que, a despeito do incômodo que ele provoca, sinaliza algo da verdade, da causa do desejo. É a relação com a verdade, enfim, que faz da angústia um afeto tão essencial. Segundo Baas (2001): “É que, de fato, a angústia é, entre os afetos, o único a ser concebido como indício da verdade, isto é, como o indício verdadeiro do que há da verdade” (p. 66). A angústia em Freud é sinal enquanto sinaliza uma verdade metapsicológica: verdade do recalque e da pulsão (Baas, 2001). Nesse sentido, a angústia é desvelamento: sua incidência na clínica aponta o lugar da verdade. Isso fornece uma certa direção do tratamento, na medida em que se localiza, para tal sujeito, o ponto de gozo onde ele amarrou sua castração. Porque não querer saber da castração – esse não querer saber de que Lacan nos fala (1972-73/ 2008) – significa ao final ignorar a falta constitutiva, ou seja, ignorar que o Outro também é castrado. Se Freud atribui à angústia o sinal de perigo do desamparo, com Lacan avançamos na ideia de que o mais perigoso é 119 recuar frente ao desejo. E recuar frente ao desejo é se esconder na presença alienante de um objeto suposto tudo saber. A angústia como fenômeno pode ser estática por denotar o estado de susto ou paralização do medo. Entretanto, como vértice do desejo, ela é puro movimento (estético?) por denunciar que o lugar da falta deve permanecer vazio. Se a necessidade é congelamento do desejo, a angústia, por outro lado, é sinal de movimento, como atesta Baas (2001): Em outras palavras, a angústia nunca é concebida nem descrita como um simples estado afetivo entre outros. Ao contrário, no campo das afecções ou afetos, ela ocupa sempre, embora de maneiras evidentemente diferentes, um lugar singular, excepcional: o de elemento – chamemos assim, na falta de melhor – de elemento dinâmico, que anima um certo movimento em direção à verdade e que caracteriza, que assinala este movimento como movimento em direção à verdade (pp. 66, 67) Safatle (2006) pergunta: se a travessia do fantasma produz o descentramento dos aportes imaginários, disponibilizando ao sujeito a experiência de um real, “como atravessar o fantasma sem jogar o sujeito, de uma vez por todas, no silêncio absoluto da angústia?” (p. 205). Acrescentemos a essa pergunta uma outra: será a sublimação uma saída para esse atravessamento da fantasia, saída que permite ao sujeito não ficar paralisado no desamparo, mas que ao mesmo tempo o possibilita interromper a série de identificações alienantes que encobrem seu desejo? Safatle aposta numa saída pela via do reconhecimento ao objeto a. Tal reconhecimento fornece ao sujeito uma experiência de não-identidade. Porém, isso não significa liberá-lo da fantasia a fim de proporcionar uma dinâmica fluida de escolhas de objeto. Até porque a fantasia é a única forma de acessar o real. Trata-se, pois, de reconhecer que “o verdadeiro trabalho analítico consistirá em produzir um deslocamento no interior da significação do objeto, operação de desvelamento do descentramento no objeto” (p. 206). Ou ainda: “Uma experiência cujo espaço privilegiado de reconhecimento não parece mais ser a relação intersubjetiva da consciência de si, mas a confrontação traumática entre sujeito e objeto” (p. 220). Isso reinsere a dimensão do corpo dentro do dispositivo analítico. Tal descentramento no objeto implica o reposicionamento do próprio corpo, que passa do revestimento imagético para um desvelamento por onde o sujeito tem a experiência do real do corpo: “ou seja, do corpo como carne opaca que não se deixa submeter às formas fetichizadas do Imaginário, nem se corporificar por meio do significante com seu primado fálico” (Safatle, 2006, p. 210). Safatle comenta uma passagem em que Lacan atribui ao sonho da injeção de Irma, tal como descrito por Freud, o valor de uma revelação do real: 120 Há aí uma descoberta horrível, a descoberta da carne que nunca vemos, o fundo das coisas, o anverso da face, do rosto, os secretatas por excelência, a carne de onde tudo sai, o mais profundo do mistério, a carne enquanto é informe, que sua forma é algo que provoca angústia, última revelação do você é isto – Você é isto que o mais longe de ti, isto que é o mais informe (Lacan, 1954-55, p. 186, citado por Safatle, 2006, p. 210). Sobre esse trecho, Safatle (2006) diz que a semântica do informe mostra a experiência do fim de análise como “reconhecimento de si na opacidade do corpo” (p. 211), o que aponta para um destino possível do objeto após a travessia do fantasma. Destino que indica que o corpo que emerge no fim de análise é o corpo próprio não-narcísico. Logo, se a sublimação pode indicar uma saída para a angústia, ao lhe emprestar significantes com os quais se pode criar a partir do vazio da Coisa, a angústia também aparece como uma via privilegiada para a clínica, por indicar a verdade do desejo. Via de privilégio também para a arte que, ao sustentar a criação de objetos não idênticos à imagem do corpo, faz aparecer o corpo não-narcísico e desloca os sujeitos de seu lugar-comum. Os objetos criados pela arte, especialmente a contemporânea, têm voz própria. Eles rompem o paradigma da identificação ao belo, por isso suscitam o estranhamento, o irreconhecimento – algo semelhante à destituição subjetiva que, como alega Safatle (2006), faz surgir algo de “informe, impessoal, opaco às determinações de identidade” (p. 219). Esse é o corpo, enfim, das performances. Corpo de carne pura, informe, estranho, deslocado de seus contornos narcísicos. Não se pode ignorar a semelhança entre a passagem lacaniana sobre o sonho da injeção de Irma e a proposta do Teatro da Crueldade elaborada por Antonin Artaud na década de 20, na qual muitos artistas da arte da performance se baseiam até hoje. Artaud fala de um teatro que dá ao “exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está claro que a vida é sempre a morte de alguém” (Artaud, 1936/ 2006, p. 118). É através do corpo, da pele, que se resgata a crueldade (no sentido de responsabilidade com o que habita o interior do homem): “seu gosto pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras, seu sentido utópico da vida e das coisas, seu canibalismo ...” (p. 104). Artaud ressucita a dimensão carnal onde o homem se estranha mais do que se reconhece. “No ponto de desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente precisamos antes de mais nada de um teatro que nos desperte: nervos e coração” (Artaud, 1936/2006, p. 95). Para finalizar, vale reproduzir um trecho em que fica visível o flerte entre a proposta artaudiana de teatro e o fim de análise, especialmente no aspecto de reencontro com um corpo que ressalta sua materialidade carnal: 121 Proponho a renúncia ao empirismo das imagens que o inconsciente carrega ao acaso e que também lançamos ao acaso chamando-as de imagens poéticas, portanto herméticas, como se essa espécie de transe que a poesia suscita não repercutisse em toda a sensibilidade, em todos os nervos, e como se a poesia fosse uma força vaga e que não varia seus movimentos. (Artaud, 1936/ 2006, pp. 90-91). 5 CONCLUSÃO “Quem começa a ter a ideia da grandeza e complexidade do mundo facilmente perde de vista seu pequenino Eu” (Freud, 1910/ 2013, p. 134). Ao longo da pesquisa foram perseguidas duas hipóteses primordiais das quais outras perguntas surgiram como desdobramentos. Tais hipóteses concernem às seguintes questões: Existe sublimação da angústia? A arte da performance produz a apresentação deste afeto arcaico que se caracteriza pela ausência de representação? A primeira interrogação procede de uma curiosidade mais orientada à clínica, uma vez que o dispositivo da análise opera tanto com a angústia dos sujeitos que nela chegam quanto com as possibilidades de sublimação. Portanto, essa abordagem privilegia a experiência da angústia no processo sublimatório cuja opacidade pode se ligar de algum modo aos aspectos traumáticos e pulsionais do sujeito. Se não elegemos um artista que nos pudesse conduzir com sua história aos elementos vulcânicos de seu sofrimento mental para apreender, nesse enredo, as contingências que aproximam tais elementos de sua produção criativa, nem por isso deixamos de apontar algumas aproximações entre a sublimação e o afeto correspondente ao trauma. A investigação da determinação do inconsciente no fazer artístico, tal como Freud empreendia em sua análise de alguns artistas, coloca certos impasses. Corre-se o risco de aplicar erroneamente a psicanálise ao sujeito-artista. Se Freud analisou o inconsciente de Leonardo da Vinci, Schreber e até do pequeno Hans sem conhecê-los, essa autorização só pôde ser dada ao fundador do próprio inconsciente. Analisar o artista é algo inadequado no campo fora de uma análise. E mesmo Freud se posicionou quanto a isso, como esclarece Ernani Chaves, frente a muitos que o acusaram de reduzir a obra de arte à neurose do autor e com isso ignorar a autonomia da obra, fazendo uma patografia do artista. Numa sessão da “Sociedade das Quartas-Feiras”, em 1907, Freud esclareceu a seus colegas que a psicanálise investiga o processo de criação, portanto está acima da patografia. O ponto central, comenta Chaves (2015), não é descobrir a neurose do criador, mas “considerar que o processo de criação artística segue o modelo de constituição da neurose” (p. 11). 122 Resta, então, perceber em que medida a criação perpassa a subjetividade (e aqui se inclui a angústia), mas ao mesmo tempo está fora dos limites do saber inconsciente. A obra é irredutível aos aspectos pessoais do artista, existindo para além dele. No entanto, a psicanálise deve se autorizar a escutar os elementos que incidem no processo de criação, já que eles estão enlaçados aos elementos da própria neurose. E, como pudemos supor, o fim de análise conjuga algumas das mais interessantes possibilidades a propósito do movimento de criação. Assim, num primeiro momento a leitura de Freud nos levou a concluir que não apenas a sexualidade se mostra apta a um desvio de suas metas para fins de criação, mas também a pulsão de morte é passível de interferência nesse processo. Ou, como ressalta Chaves (2015), as experiências traumáticas e ligadas à sexualidade podem ser metamorfoseadas pelo artista na obra. Também com Ana Cecília Carvalho vimos que “a angústia de desamparo, surgida na relação do sujeito com o vazio e o inominável, é vista como o elemento incessante e mobilizador do processo criativo” (Carvalho, 2003, p. 243). Por outro lado, se a hipótese da dessexualização da pulsão é o operador fundamental da matriz sublimatória freudiana, algumas obras e processos criativos permitem pensar, ao contrário, que é a sexualização que se leva a cabo nesse processo. Pois a exibição de alguns elementos pulsionais ligados ao sexo e à morte podem afetar, numa espécie de retorno da obra sobre o sujeito, tanto o artista quanto o público. Como se reconhece no texto freudiano Personagens Psicopáticos no Palco (1942) há uma espécie de descarga de afetos – termo que dialoga com a ‘catarse’ aristotélica – que Alfred von Berger atesta estar muito mais perto das fantasias de autoflagelação do que, como Aristóteles pensava, da compaixão ou medo. “O que se descarrega é o sofrimento pessoal realmente padecido ou simulado por fantasias de autoflagelação” (Berger, 1897, p. 84, citado por Chaves, 2015, p. 26). Sobre isso, Ernani Chaves comenta que a verdade da catarse está no que Freud se apropriou como sendo uma ‘descarga de afetos’, uma Entladung, o que significa que não se trata de uma elevação moral ou qualquer efeito de ordem estética, mas sim de um tratamento, uma cura. Cura esta atribuída à “abertura das fontes de prazer [Lust] ou gozo [Genuss] que emanam de nossa vida afetiva” (Freud, 1942 [1905-06]/ 2015, p. 45). Pois a idealização, a inteligência e os demais aspectos racionais e morais são, ao contrário, inibidores de uma sexualidade que a psicanálise, tal como a arte, tende a ‘desafogar’ [Austoben]. Logo, a principal tese trabalhada no segundo capítulo foi de que em algumas figuras artísticas há mais uma espécie de rebaixamento às pulsões do que propriamente uma elevação moral. A articulação dos elementos fundantes da sublimação e angústia em Lacan, respectivamente das Ding e objeto a, contribuiu para a demonstração dessa hipótese calcada 123 nos irrepresentáveis tanto da arte quanto do afeto. O objeto a, que herda de das Ding a natureza opaca, divide o sujeito ao mesmo tempo em que o constitui, tonando-o irredutível ao campo do sentido. A arte, bem como a angústia, atesta a verdade da falta ou a negatividade do desejo. Disso decorre que a angústia é o afeto que move sem ser movido, que faz produzir sentido sem ser ele próprio redutível ao simbólico, tal como o desejo: “que o desejo seja articulado é justamente por isso que ele não é articulável. Entenda-se: no discurso que lhe convém, ético, e não psicológico” (Lacan, 1960/1998, p. 819). Assim, a angústia se relaciona à arte no elemento de opacidade que ambas preservam. Pois a criação se move em torno do vazio, ex nihilo (Lacan, 1959-60/ 2008). Percorrer a relação de das Ding ao objeto a foi o caminho por onde se pôde entrever as indicações ontológicas de Lacan sobre o sujeito que se angustia e aquele que cria. São eles o mesmo? Se é possível responder que ‘sim’, ou seja, se a generalização cabe no conceito, na prática a especificidade de algumas obras ilumina (ou melhor: torna visível o ponto mais obscuro) a relação da sublimação com a angústia por seu caráter marcadamente estranho. A arte contemporânea, de uma maneira geral, abala as formas imaginárias da arte (e por que não do eu?) às quais o olhar se habitua. A obra transmite uma mensagem que vai além da mensagem, um texto além do texto, por se tratar daquilo que Hal Foster (1996/ 2014) chama – parafraseando Lacan – de retorno do real. A performance, especificamente, se abre para o campo pulsional, na contramão dos ideais da cultura. Nascida no seio do movimento de contracultura, com a ideologia de ser simplesmente não-ideológica (Cohen, 2013), a arte da performance chega balançando as estruturas da sociedade, dos ideais, do belo, da forma, etc. É nesse sentido que se pode dizer que ela é uma arte anárquica – assim como a pulsão. Nela, o corpo é mostrado não em sua integridade, perfeição e beleza, mas na vertente carnal que exibe sua finitude ou, como prefere Freud (1926), sua fragilidade quanto aos poderes do destino. A referência ao trauma não pode passar despercebida, por se tratar de uma estética que evidencia a vazão da pulsão pelo corpo, algo que extrapola o trato pelo significante e se abre ao campo do real do qual a angústia é sinal (Lacan, 1962-63/ 2005). Vimos que Lacan (1962-63/ 2005) tece sua discussão sobre esse afeto em torno do texto freudiando do Unheimlich, sustentando que o estranho surge quando alguma coisa aparece no lugar da falta, do Heim (a casa vazia). O estranho de Freud é justamente algo que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz (Freud, 1919). Ora, não é disso que se trata na perfomance? Um corpo que apresenta o choque da castração e que por isso deveria ficar escondido, bem lá neste fundo que é o inconsciente, mas veio à luz como elemento 124 irrepresentável do trauma. Esse corpo-obra, corpo-objeto, evidencia talvez o lugar de onde viemos, o nada, o desamparo. Entregue ao olhar do outro como objeto informe, faz surgir um corpo não narcísico, irredutível à dimensão especular e duplicado no lugar da falta – o que confere à angústia em Lacan seu aspecto primordial. Portanto, o interesse psicanalítico pela recepção do espectador à obra foi a direção na qual se pôde articular o afeto da angústia na arte da performance. Malgrado o cuidado com a generalização, a fim de ressalvar os conceitos metapsicológicos de uma transposição direta para os fenômenos da experiência artística e vice-versa, foi possível insistir no recurso à arte para entender certos aspectos desse afeto. A sede eminentemente humana – uma vez que somos seres de linguagem – de dotar os fenômenos experenciados de um sentido é radicalmente desafiada por algumas performances. Obviamente não todas, já que algumas obras têm significados por demais explícitos, outras nem tão estranhas são. Porém, de uma maneira geral, essa arte nos desloca de um campo de reconhecimento para um de desconhecimento, o que de certa forma dialoga com a própria estrutura do sujeito enquanto barrado. Com efeito, a negatividade do objeto artístico impele a desanuviar o caráter determinante da causalidade inconsciente – o elemento ideológico (Adorno, 1970) – e abrir ao entendimento da arte pelo viés do que escapa ao discurso, ou seja, “um desconhecido experimentado como tal” (Lacan,1962-63/ 2005, p. 71). Nas palavras de Slavoj Zizek, a arte contemporânea, tal como a tiquê, chega ao espectador “para despertá-lo do doce sonho” (Zizek, 2010, p. 74). Nossa aposta é de que a psicanálise seja, tal como a performance, um despertar dos sonhos para o real. 125 REFERÊNCIAS 35 Adorno, T. (2013) Teoria estética. In R. Duarte (org.), O belo autônomo: Textos clássicos de estética. (pp. 355-374). Belo Horizonte: Autêntica Editora. (Trabalho original publicado em 1970). Agamben, G. (2014) Nudez. In G. 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