UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS
MODA E FANTASMAGORIA:
Truman Capote entre texto e tela
GEANNETI SILVA TAVARES SALOMON
Belo Horizonte
2019
Geanneti Silva Tavares Salomon
MODA E FANTASMAGORIA:
Truman Capote entre texto e tela
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários,
Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutora
em Estudos Literários.
Área de concentração: Teoria da
Literatura e Literatura Comparada
Linha de Pesquisa: Poéticas da
Modernidade (PM)
Orientador: Prof Dr. Georg Otte
Belo Horizonte
2019
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Salomon, Geanneti Silva Tavares.
C246s.Ys-m Moda e fantasmagoria [manuscrito] : Truman Capote entre texto
e tela / Geanneti Silva Tavares Salomon. – 2019.
244 f., enc. : il., (color) (p&b)
Orientador: Georg Otte.
Área de concentração: Teoria da Literatura e Literatura Comparada.
Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 235-239.
Apêndices: f. 240-244.
1. Capote, Truman, 1924-1984. – Summer Crossing – Crítica e
interpretação – Teses. 2. Capote, Truman, 1924-1984. – Breakfast at
Tiffany's – Crítica e interpretação – Teses. 3. Capote, Truman, 1924-
1984. – Adaptações – Teses. 4. Moda e literatura – Teses. 5. Ficção
amaericana – Adaptações para o cinema e vídeo – Teses. 6.
Literatura e sociedade – Teses. I. Otte, Georg. II. Universidade
Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título.
CDD: 813.52
Para Gilberto, Isabela e Henrique.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Georg Otte, meu orientador, agradeço pelas leituras críticas, por
compartilhar seu conhecimento, por seus comentários precisos e preciosos, pela
paciência e calma contagiosas.
Ao professor Dr. Marcus Vinicius de Freitas, por trazer um mundo teórico
desconhecido, pelas críticas certeiras na banca de qualificação, por sua simpatia e
força de pensador.
À professora Drª. Maria do Céu Diel, por me incentivar a usar o poder das imagens
no meu texto, trazendo o equilíbrio entre a minúcia da palavra e a argúcia da
imagem.
Ao professor Dr. Júlio Cesar Jeha, que atuou como parecerista do projeto definitivo
desta tese, apontando questões importantes, indicando pontualmente detalhes no
texto e dando contribuição efetiva naquele momento.
Aos meus professores Dr. Georg Otte, Dr. Luis Alberto Ferreira Brandão, Dr. Marcus
Vinicius de Freitas, Drª. Marli Fantini Scarpelli, Drª. Vera Casa Nova, Dr. Volker Karl
Lothar Jaeckel, pela diversidade de olhares (muitas vezes semelhantes) sobre a
literatura e as artes, e, em especial, por me permitirem trabalhar com a relação entre
a moda e a literatura nos meus artigos finais de disciplina.
Aos professores examinadores da banca Dr. Angelo Mazzuchelli (EBA), Dr. Eduardo
Veras (UFTM), Dr. Marcus Vinicius de Freitas (UFMG), Drª. Miriam Vieira (UFSJ),
pela leitura desta tese, pelas contribuições generosas e brilhantes.
Aos meus amigos do Pós-Lit, em especial Joelma Rezende Xavier, Michelle Campos,
Nathan Matos e Rafael Fava Belúzio, por compartilharem ideias e angústias de
quem está “no mesmo barco”.
Aos meus amigos do Centro Universitário Una, dos cursos de Moda e de Cinema,
que pelo apoio ou consultas teóricas se fazem lembrados ao final da trajetória.
À minha família, que de muitas formas sentiu minha falta nos períodos de maior
reclusão, em especial ao Gilberto, que soube compreender a necessidade de tantas
leituras e tempo despendido em (re)escritas sem fim.
Muito obrigada!
So, he said, “what do you think: is she or ain’t she?”
“Ain’t she what?”
“A phony.”
“I wouldn’t have thought so.”
“You’re wrong. She is a phony. But on the other hand
you’re right. She isn’t a phony because she’s a real
phony. She believes all this crap she believes. You can’t
talk her out of it,”
Truman Capote. Breakfast at Tiffany’s.
“E só escrevi a metade do que vi…”
Marco Polo
Citação rasgada de uma revista, encontrada entre os
papéis de Truman Capote.
Gerald Clark. Capote: Uma biografia.
RESUMO
Esta tese examina a fantasmagoria como um fenômeno da modernidade e sua
função estética articulada nas obras Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s, de
Truman Capote, e no filme homônimo Breakfast at Tiffany’s, de Blake Edwards. A
hipótese defendida nesta tese é a de que as duas obras capotianas e a obra fílmica
adaptada compartilham traços identificados como fantasmagoria, articulados como
elementos estéticos na criação literária e na criação fílmica, que refletem uma
situação social de mudança de paradigma. Ao observar a fantasmagoria como
elemento estético nas obras, e seu trânsito entre elas, é possível analisar e
compreender aspectos da vida social compartilhada nos grandes centros urbanos,
característicos de uma época, as décadas de 1950 e 1960, principalmente. A
pesquisa se divide em três capítulos: o primeiro traz aspectos conceituais sobre
fantasmagoria, modernidade e liberdade, o panorama de fundo das guerras
mundiais, a ideia de Walter Benjamin sobre a fantasmagoria; o segundo capítulo
evidencia, no âmbito da literatura comparada, a estrutura narrativa das duas obras
literárias de Truman Capote, Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s, destacando
afinidades (a primeira pode ser vista como estudo do escritor para elaboração da
segunda) e aspectos da fantasmagoria transpostos de uma para a outra; o terceiro
capítulo analisa a transposição da obra literária Breakfast at Tiffany’s para o cinema,
o roteiro adaptado, os aspectos fantasmagóricos presentes na obra audiovisual
remanescentes das obras escritas e as modificações perpetradas em função de
questões sociais marcadas na década de 1960. Neste capítulo final, as teorias de
Roland Barthes sobre a moda contribuem para fazer notar os aspectos
fantasmagóricos presentes na articulação entre pessoa, atriz e personagem em
Audrey Hepburn, destacando também a moda, o vestuário, o figurino e o cenário
como elementos estéticos geradores de fantasmagoria. A moda como figurino e
como arte no cinema foi capaz de modificar estruturas rígidas de controle,
justamente por sua capacidade de “ficcionalização do sujeito” ou “autoficção”,
demonstrando sua disposição em ser afetada pelas mudanças sociais e de também
de efetivar mudanças sociais.
Palavras-chave: Moda; Fantasmagoria; Truman Capote; Breakfast at Tiffany’s;
Summer Crossing.
ABSTRACT
This thesis examines phantasmagoria as a phenomenon of modernity and its
aesthetic function as articulated in Truman Capote's Summer Crossing and Breakfast
at Tiffany's, and Blake Edwards's homonymous film Breakfast at Tiffany's. The
hypothesis defended in this thesis is that the two Capotian works and adapted film
work share traits identified as phantasmagoria, articulated as aesthetic elements in
literary and film creation, which reflect a social paradigm shift. By observing
phantasmagoria as an aesthetic element in these works and its transit between them,
it is possible to analyze and understand aspects of shared social life in the great
urban centers that were characteristic of an era – mainly, the 1950s and 1960s. The
research is divided into three chapters: the first discusses conceptual aspects of
phantasmagoria, modernity and freedom, the background of world wars, and Walter
Benjamin's idea of phantasmagoria; the second chapter shows the narrative structure
of the two literary works by Truman Capote, Summer Crossing and Breakfast at
Tiffany's, emphasizing their affinities (the first can be seen as the writer's study for
the elaboration of the second) and aspects of phantasmagoria transposed from one
to the other; the third chapter analyzes the transposition of the literary work Breakfast
at Tiffany's to the cinema, the adapted script, the phantasmagoric aspects present in
the audiovisual work that is reminiscent of the written works and the modifications
perpetrated in function of social issues marked in the decade of 1960. In this final
chapter, Roland Barthes' theories of fashion contribute to highlighting the
phantasmagoric aspects present in the articulation between person, actress and
character in Audrey Hepburn, also highlighting fashion, clothing, costumes and
scenery as aesthetic elements that generate phantasmagoria. Fashion as a costume
and as art in cinema was able to modify rigid structures of control, precisely because
of its capacity to "fictionalize the subject" or "autofiction", demonstrating its
willingness to be affected by social changes and also to effect social changes..
Keywords: Fashion; Phantasmagoria; Truman Capote; Breakfast at Tiffany's;
Summer Crossing.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Pettibone Magic Lantern, Ohio c.1880 ..................................................... 21
Figura 2 – George Romney. Shakespeare, Tempest Act I Scene I, 1797 ................. 21
Figura 3 – Interpretation of Robertson's Fantasmagorie. 1867. Marion. L'Optique.
Ilustração de Alphonse de Neuville e A. Jahandier ................................................... 24
Figura 4 – Kaiserpanorama, 1880 ............................................................................. 27
Figura 5 – Vestido de baile e anágua, 1775-1780 ................................................... 131
Figura 6 – Retrato da socialite parisiense Madame Récamier feito por Jacques-Louis
David, 1800 ............................................................................................................. 132
Figura 7 – Retrato da socialite parisiense Madame Récamier feito por François
Gérard, 1805 ........................................................................................................... 133
Figura 8 – Sequência de imagens das cenas iniciais do filme Breakfast at Tiffany’s ...
................................................................................................................................ 143
Figura 9 – Sequência de imagens das cenas em que Holly vai ao apartamento de
Paul ......................................................................................................................... 150
Figura 10 – Holly cuida dos cabelos enquanto canta “Moon river” .......................... 155
Figura 11 – Mrs. Falenson cancela o encontro com Paul......... ............................... 156
Figura 12 – Hepburn tendo lições de violão no set de gravação ............................. 172
Figura 13 – Fotos de backstage. Os atores de Breakfast at Tiffany’s aguardam suas
cenas ....................................................................................................................... 175
Figura 14 – Blake Edwards, Audrey Hepburn e George Peppard durante a produção
de Breakfast at Tiffany's, 1961 ................................................................................ 176
Figura 15 – Hepburn como Sabrina, usando o vestido “pretinho básico”, ao seu lado
Humphrey Bogart e William Holden ........................................................................ 185
Figura 16 – Vestido de Givenchy usado por Audrey Hepburn no filme Breakfast at
Tiffany’s. Exposição de Hubert de Givenchy no Museo Thyssen Bornemisza de
Madrid, out. 2014 a jan. 2015 .................................................................................. 190
Figura 17 – Exposição de Hubert de Givenchy no Museo Thyssen Bornemisza de
Madrid, out.2014 a jan. 2015 ................................................................................... 191
Figura 18 – Audrey Hepburn vestindo outro pretinho básico em cena diurna. (Da
esquerda para a direita) George Peppard, Audrey Hepburn, e Patricia Neal em
Breakfast at Tiffany's (1961), direção de Blake Edwards ........................................ 192
Figura 19 – Holly se despede do ex-marido Doc, que veio do interior para vê-la ... 193
Figura 20 – Audrey Hepburn em foto de divulgação do filme Breakfast at
Tiffany’s,1961 .......................................................................................................... 196
Figura 21 – Holly se levantando para atender a porta, vestindo uma camisa
masculina de smoking e usando máscara e protetor auricular................................ 201
Figura 22 – Audrey Hepburn em Breakfast at Tiffany’s, 1961. Foto usada para
divulgação do filme .................................................................................................. 204
Figura 23 – Roteiro usado por Audrey Hepburn para estudar o filme Breakfast at
Tiffany’s ................................................................................................................... 206
Figura 24 – Excerto do roteiro do filme Breakfast at Tiffany’s, segundo rascunho .. 207
Figura 25 – Correspondência da PCA enviada à Paramount como resposta ao
roteiro apresentado para aprovação ....................................................................... 209
Figura 26 – Excerto do roteiro do filme Breakfast at Tiffany’s, segundo rascunho .. 211
Figura 27 – Correspondência da PCA enviada à Paramount como resposta ao
roteiro apresentado para aprovação. Página 2 ....................................................... 213
Figura 28 – Excerto do roteiro do filme Breakfast at Tiffany’s, segundo rascunho .. 215
Figura 29 – Cenas do striptease na boate .............................................................. 216
Figura 30 – Correspondência do PCA enviada à Paramount como resposta ao
roteiro apresentado para aprovação ....................................................................... 220
Figura 31 – Paul Varjak escrevendo seu romance .................................................. 221
Figura 32 – Documento da PCA que aprova a música tema do filme Breakfast at
Tiffany’s ................................................................................................................... 227
Figura 33 – A cena final do filme, na qual Paul se declara e Holly desiste da fuga. 230
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Tipologia de Marcel Martin sobre vestuário (figurino) para cinema ...... 141
Quadro 2 – Descritivos da personagem Holly Golightly no livro Breakfast at Tiffany’s,
de Truman Capote, e suas respectivas imagens no filme ....................................... 161
Quadro 3 – Letra da canção “Moon river”, de Henry Mancini ................................ 224
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 – FANTASMAGORIA, MODERNIDADE E LIBERDADE ............................... 20
1.1 Fantasmagoria e modernidade ................................................................................... 20
1.2 Liberdade como fantasmagoria da modernidade ........................................................ 38
CAPÍTULO 2 – FANTASMAGORIAS EM SUMMER CROSSING E BREAKFAST AT
TIFFANY’S, DE TRUMAN CAPOTE ................................................................................... 45
2.1 Ritos de passagem, Nova Iorque e a Segunda Guerra Mundial ................................. 45
2.1.1 Summer Crossing .................................................................................................... 45
2.1.2 Breakfast at Tiffany’s ............................................................................................... 57
2.2 Antropomorfismos e metáforas do aprisionamento ..................................................... 75
2.2.1 Summer Crossing .................................................................................................... 75
2.2.2 Breakfast at Tiffany’s ............................................................................................... 79
2.3 Fantasmagorias sociais: figurações sociais da realidade ........................................... 88
2.3.1 Summer Crossing .................................................................................................... 88
2.3.2 Breakfast at Tiffany’s ............................................................................................... 95
2.4 Universo queer ........................................................................................................ 100
2.4.1 Summer Crossing .................................................................................................. 101
2.4.2 Breakfast at Tiffany’s ............................................................................................. 106
2.5 Intertextos ................................................................................................................ 110
CAPÍTULO3 – UMA CONSTELAÇÃO DE IMAGENS ....................................................... 115
3.1 Figurações fantasmagóricas da Moda ...................................................................... 122
3.1.1 Vestuário, moda ou figurino? ................................................................................. 136
3.1.2 A moda como fantasmagoria na figuração da prostituta ........................................ 142
3.1.3 A mulher, a atriz e a personagem: figurações nos vestuários barthesianos imagem,
escrito e real................................................................................................................... 170
3.2 “Miss Holiday Golightly, Traveling” ........................................................................... 197
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 232
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 235
APÊNDICE 1 – TRADUÇÃO DOS EXCERTOS DO QUADRO 2, PÁGINA 156 ................ 240
12
APRESENTAÇÃO
Truman Capote, escritor estadunidense de grande importância para o século
XX e bastante reconhecido até os dias de hoje, nasceu em Nova Orleans, em 30 de
setembro de 1924, e morreu em Los Angeles, em 25 de agosto de 1984, aos 59
anos. A obra que lhe deu renome mundial foi Other voices, other rooms,1 publicada
em 1948, e suas obras mais conhecidas são Breakfast at Tiffany’s2, de 1958, e In
Cold Blood, 3 de 1966. Esta última obra foi considerada o marco do jornalismo
literário (romance reportagem ou new jornalism) por ser baseada em acontecimentos
reais. O escritor dedicou seis anos à pesquisa do assassinato de quatro integrantes
de uma família numa cidadezinha do Kansas, focando na história dos assassinos
Perry Smith e Richard Hickock, condenados à morte e executados.
Sua vida privada foi exposta ao público de diferentes formas. Ele próprio
adorava se sentir uma celebridade e fez muito para chegar a esse patamar,
tornando-se uma pessoa pública com um estilo de vida extravagante. Capote
também se tornou um dependente químico e alcoólatra. Além disso, tinha uma vida
amorosa bastante atribulada e, por ser homossexual, seus casos acabavam
escandalizando a sociedade tradicional da época em que viveu.
Todos os escritos biográficos a respeito do escritor partem de uma mesma
premissa: os percalços que viveu até a adolescência, tendo sido abandonado pelos
pais e sofrido muito com o descaso destes, e sua vida adulta agitada como escritor
de vida social intensa e celebridade, refletem incondicionalmente em seus escritos,
muitas vezes investigados em relação ao seu teor ficcional, sendo textos
1
Obra original publicada pela Handom House. Traduzida para o português como Outras vozes, outros
lugares, a obra foi publicada pela editora Livros do Brasil, de Portugal, em 1956, com tradução de
João Cabral do Nascimento, e, em 2004, foi reeditada pela editora Relogio D'Agua, também de
Portugal. Em 2009, foi editada, no Brasil, pela editora Sextante, com tradução de Maria João
Delgado, sendo reeditada em 2010 (Cf. VIEIRA. Breakfast at Tiffany’s de Truman Capote em
Português).
2
Obra original publicada pela Handom House e traduzida no Brasil como Bonequinha de luxo. Foi
publicada pela editora Livros do Brasil, de Portugal, em 1959, com tradução deJosé Blanc de
Portugal, com o título Ao começo do dia. Em 1998, surge uma nova tradução de Margarida Vale de
Gato para a Editorial Notícias, que foi reeditada pelo jornal Público, com o título Boneca de luxo. Há
uma nova tradução, de 2004, por Alice Santos, pela Europa América, também com o título Boneca de
luxo. No Brasil, a obra foi publicada pela editora Companhia das Letras, em 2005 (Cf. VIEIRA.
Breakfast at Tiffany’s de Truman Capote em Português).
3
Obra original publicada pela Handom House e traduzida no Brasil como A sangue frio. Publicada
pela editora Livros do Brasil, de Portugal, em 1967, com tradução de Maria Isabel Braga. No Brasil,
foi editada pela Companhia das Letras, em 2003, e, mais recentemente, em 2006, foi publicada pela
Dom Quixote, em Portugal (Cf. VIEIRA. Breakfast at Tiffany’s de Truman Capote em Português).
13
jornalísticos, e ao seu teor real, sendo textos assumidamente ficcionais. Capote não
tinha pudores ao remanejar elementos de sua vida real e dos que estavam à sua
volta para suas obras.
Truman Capote começou a escrever Summer Crossing aos 24 anos, após a
publicação de Other voices, other rooms, em 1948, mas a obra ficou perdida por
anos e somente foi publicada após a sua morte, em 2005. Aparentemente, o autor
não desejava publicá-la, já que os originais manuscritos foram descartados e
terminaram em uma calçada para que o lixeiro levasse. Um antigo zelador de seu
humilde apartamento no Brooklyn recolheu e guardou manuscritos, cartas e
fotografias antes que o lixeiro passasse. Capote recebeu muito dinheiro com a
publicação de In Cold Blood, em 1966, e, por isso, simplesmente abandonou seu
antigo apartamento com tudo dentro, inclusive o manuscrito de Summer Crossing.
Em 2004, 20 anos após sua morte, esses manuscritos foram encontrados.
Em primeiro de abril de 1949, Capote escreve a Robert Linscott, seu editor na
Random House, dizendo estar animado com a escrita de Summer Crossing, mas
demonstrando alguma ansiedade em relação ao tema escolhido: a vida social em
Nova Iorque. 5 Há rumores de que Capote nunca teria terminado o livro, como
escreve em carta a Mary Louise Aswell, editora da Harper's Bazaar, em junho de
1953: “Queria ter de fato uma novela para te mandar – por mais estranho que
pareça, eu tenho – é só você esperar até dezembro. Quanto a Summer Crossing, já
rasguei faz muito tempo – seja como for, nunca cheguei a terminá-la”.6 Capote
mentiu sobre isso, o que foi compreendido por seu editor como um desejo de manter
a obra como um estudo e descartá-la.
Contrariando o desejo do autor, seu grande amigo Alan Schwartz, 7
administrador de seus bens e negócios, escreveu no prefácio da edição brasileira de
Summer Crossing que ele e outros leitores do original tiveram uma boa surpresa:
“embora não seja uma obra refinada, o romance reflete claramente o surgimento de
uma voz original e de um prosista surpreendentemente talentoso” 8 . Os quatro
leitores, analistas do original, decidiram por publicá-lo, pois consideraram a obra
5
CLARKE, Gerard. As cartas de Truman Capote. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Leya,
2014. p. 86.
6
CLARKE. As cartas de Truman Capote, p. 257.
7
Alan Schwartz é beneficiário da obra de Capote na Truman Capote Literary Trust.
8
CAPOTE, Truman. Travessia de verão. Tradução de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Objetiva,
2006. p. 139.
14
“suficientemente madura para se sustentar por mérito próprio, e que suas indicações
do estilo e da maestria posteriores que conduziriam a Bonequinha de luxo eram
valiosos demais para serem ignorados”9. A recusa da obra traz a ideia de que o
autor a teve como um exercício e que ela não estava pronta para o público, mas o
próprio Schwartz revela a impossibilidade de saber se ele mudaria de ideia sabendo
da descoberta da obra: “Truman morreu em 1984. O que ele pensaria hoje?” 10
Decidiu que, mesmo imperfeito, o original deveria ser publicado: “seus
surpreendentes méritos literários pareciam clamar para serem libertados de sua
antiga prisão.”11
Capote publicou quatro livros12 pela Random House e também, em 1958, uma
novella, ou conto longo, intitulado Breakfast at Tiffany’s, obra que foi adaptada para
o cinema em 1961. O escritor já era considerado uma celebridade em Nova Iorque e
o filme também lhe trouxe maior visibilidade.
Esta tese tem como ponto focal a análise destas três obras mencionadas
(Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s, esta última, livro e filme), consideradas
em sua individualidade e singular compleição, mas constituídas de certa origem,
seja pela autoria de Truman Capote, nas duas primeiras, seja na transposição para
as telas, no caso da segunda para a terceira. O percurso de análise na estrutura da
tese é linear, mas permite um retorno à obra de origem, que em verdade se institui
em Summer Crossing. Há uma leitura e análise comparativa entre Summer Crossing
e Breakfast at Tiffany’s (livro), esta última por sua vez é comparada à obra Breakfast
at Tiffany’s (filme), que por sua vez nos permite perceber várias associações às
mulheres representativas da época, que surgem como aparições fantasmagóricas,
tanto nas duas obras capotianas quanto nas várias personagens representadas por
Audrey Hepburn para os filmes Gigi, Sabrina e Breakfast at Tiffany’s.
A perspectiva de gradação, portanto, já imagética, se estende para a
interseção também presente entre as duas artes na escrita capotiana: a literatura e o
cinema. Truman Capote, em seu estilo híbrido, se apropria de elementos narrativos
imagéticos e assumidamente influenciados pelo cinema, que no período em que
escreveu se consolidava como uma grande arte. Dentre os elementos de seu estilo
9
CAPOTE. Travessia de verão, p. 139.
10
CAPOTE. Travessia de verão, p. 140.
11
CAPOTE. Travessia de verão, p. 140.
12
Other Voices, other Rooms (1948), A Tree of Night and Other Stories (1949), Local Color (1950) e
The Grass Harp (1956).
15
estão a metáfora; o ritmo; a sonoridade; a intertextualidade; as comparações entre
os meios internos e externos das personagens; o uso elegante das palavras, ao
mesmo tempo livre e próximo do coloquialismo; o uso de gírias e expressões
culturalmente marcadas. Capote planejava cada ação antes de escrevê-la e torná-la
definitiva.
Os temas preferidos de Capote são a infância, a morte, o medo, a família,
Nova Iorque, as guerras, os negros, homossexuais e tipos estranhos (queer,
outsiders), o inconsciente sempre aflorado trazendo os medos das personagens,
muitas vezes por meio da manipulação sugestiva do foco narrativo, a atração pelo
real no espaço ficcional, o que lhe trouxe muito sucesso e também lhe causou
muitos problemas. Um dos aspectos destacados nesta pesquisa é o uso da
materialidade dos objetos em sua narrativa, explorando com isso o seu aspecto
abstrato e simbólico, principalmente no caso da moda.
Nas duas obras capotianas analisadas, é perceptível um esforço do autor na
junção de traços para a constituição de uma personagem coesa, com aspectos de
verossimilhança, e há uma intenção clara em descaracterizar o indivíduo unificado.
Essa descaracterização ocorre por meio de metáforas que indicam o interior
conturbado da personagem em contraste com o exterior exigente de máscaras
sociais.
As personagens – mais especificamente Grady McNeil, de Summer Crossing,
e Holly Golightly, de Breakfast at Tiffany’s – são concebidas por características que
trazem a ideia de desenraizamento, de fragmentação, de dúvida, fugindo do
protótipo da heroína que supera os obstáculos e alcança o amadurecimento em um
momento de redenção final. Nas duas obras escritas por Capote, as personagens
não têm um final feliz, ao contrário da obra adaptada para o cinema.
Numa perspectiva ampla, o tema central desta tese é a fantasmagoria que se
manifesta como aparição, sem se cristalizar. Aspectos da vida social compartilhada
nos grandes centros urbanos trazem estas aparições fantasmagóricas que podem
ser observadas nas obras artísticas e nos produtos culturais, permitindo-nos
compreender questões importantes de nossa sociedade.
A hipótese defendida nesta tese é a de que as duas obras capotianas e a
obra fílmica adaptada compartilham traços identificados como fantasmagoria
articulados como elementos estéticos na criação literária e na criação fílmica que
16
refletem uma situação social de mudança de paradigma.
A articulação da fantasmagoria como elemento estético provoca efeitos de
sentido que ora se dão de forma controlada, ora se dão de forma descontrolada. Nas
obras escritas por Capote, o controle desses efeitos de sentido ocorre nas
maquinações do escritor, na sua liberdade criativa. Tem a fluidez da escrita literária
e tem seu aspecto também de descontrole, na medida em que seus efeitos
alcançam sentidos amplificados no leitor. Na obra fílmica, o controle é externo e
ocorre por meio de aparelhos políticos e sociais, ordenados para moderar e
manipular o que podia ou não ser assistido pelo público espectador na década de
1960.
Para a análise das obras escolhidas, os conceitos basilares são trabalhados
no primeiro capítulo, “Fantasmagoria, modernidade e liberdade”, procurando reuni-
los ao cenário de fundo das narrativas: as primeiras décadas do século XX, com a
Primeira Guerra Mundial, até o início dos anos 1960. A fantasmagoria é explicada
por meio de um recorte histórico, que justifica sua trajetória e o interesse de
estudiosos das ciências humanas em suas articulações, também evidenciando sua
presença como elemento estético nas obras artísticas. Talvez porque sugere aquilo
que foge à definição humana: temas de contornos mais difíceis e de maior
evanescência.
Inicialmente, o termo fantasmagoria é tratado com o objetivo de torná-lo
menos evanescente por meio de uma demonstração histórica do termo, desde seu
surgimento, até chegar à modernidade em que Walter Benjamin escreveu e se viu
seduzido pela tensão de opostos presente na fantasmagoria. Benjamin não foi um
pensador sistemático, sendo que há uma evidente falta de definição de conceitos em
sua obra total, isso já apontado por muitos de seus analisadores. Em seus estudos
sobre a crítica da cultura, a metáfora da fantasmagoria sempre apareceu, mas ele
não formulou um conceito definido sobre o tema.
Walter Benjamin está presente nesta tese por alguns motivos importantes. Foi
durante o IV Colóquio do Núcleo Walter Benjamin, em setembro de 2014, evento
cuja temática era a fantasmagoria, que descobri o termo que poderia expressar
minha leitura da obra capotiana. Outro motivo importante está relacionado à sua
originalidade de pensamento na análise da reprodutibilidade da obra de arte, apesar
de não ter, na época em que viveu, instrumental para notar a presença da aura e
17
sua fantasmagórica trajetória mesmo naquilo que tem por base a fugacidade da
reprodutibilidade, como a moda, e de não ter visto a fantasmagoria no cinema.
O segundo capítulo, “Fantasmagorias em Summer Crossing e Breakfast at
Tiffany’s”, de Truman Capote, traz um estudo comparativo entre as duas obras,
ressaltando aspectos semelhantes entre elas por meio da exposição de traços de
construção literária, e algumas diferenças, que podem apontar para o
amadurecimento do autor na criação sequencial das obras. As temáticas
semelhantes entre as duas obras destacadas são: o cenário da grande cidade, Nova
Iorque, capital do século XX e ícone da modernidade; as grandes guerras como
influência significante na vida das pessoas e na forma como a sociedade se constitui;
as características físicas e de personalidade das protagonistas de cada obra, Grady
McNeil e Holly Golightly; o universo queer e a homossexualidade como tema
subliminar, mais sutil em Summer Crossing e mais direto em Breakfast at Tiffany’s; a
liberdade (o desejo de liberdade e sua falta) como substância que conecta as
personagens ao seu modo de vida e sua relação com o mundo das coisas; o
intertexto como um dispositivo para acionar sentidos.
O terceiro capítulo, “Uma constelação de imagens”, traz highlights – bem ao
estilo benjaminiano – de partes das obras homônimas Breakfast at Tiffany’s: o livro e
o filme. O objetivo principal é iluminar alguns pontos para a compreensão das duas
obras como pares, e ao mesmo tempo individualmente estimulantes, e como
produtoras de aparições fantasmagóricas do período histórico do qual fazem parte.
Neste capítulo, as teorias de Roland Barthes sobre a moda contribuem para fazer
notar os aspectos fantasmagóricos presentes na articulação entre pessoa, atriz e
personagem em Audrey Hepburn, atriz que encarnou as protagonistas dos filmes
Gigi, Sabrina e Breakfast at Tiffany’s.
A atriz, que expõs publicamente a própria vida pessoal, além das
personagens que protagonizou, ainda criou, para si – no papel de estilista e
figurinista associada ao então iniciante Hubert de Givenchy – e para o mundo, uma
estética capaz de contribuir para mudanças inovadoras. A moda como figurino e
como arte no cinema foi capaz de modificar estruturas rígidas de controle,
justamente por sua capacidade de “ficcionalização do sujeito” ou “autoficção”13. Isso
aplicado ao figurino, ao ator que veste o figurino, cria camadas ficcionais que
13
SALOMON, Geanneti Tavares. Moda e ironia em Dom Casmurro. São Paulo: Editora Alameda,
2010. p. 26.
18
surgem na obra cinematográfica como aparições fantasmagóricas poderosas. A
moda é afetada pelas mudanças sociais e é capaz de efetivar mudanças sociais.
Nas análises comparativas deste terceiro capítulo são citados trechos do livro,
do roteiro adaptado, imagens do filme e outras falas das personagens no filme,
cartas e documentos – muitas vezes apresentados como imagens – permitem
perceber que as duas obras homônimas Breakfast at Tiffany’s são reflexo de uma
situação social de mudança de paradigma da qual o cinema é parte fundamental por
meio de seus elementos estéticos geradores de fantasmagoria, observados na
presença da moda, no figurino, no cenário.
Os anos 1950 e 1960 representam um recorte importante para se
compreender a modernidade como produtora de fantasmagorias, podendo ser
referidos como aqueles nos quais as possibilidades para isso estiveram mais
afloradas, diante do desenvolvimento tecnológico ligado à produção artística e
cultural nascente e sua reprodução.
“Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou
que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a
imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num
lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras:
a imagem é a dialética da imobilidade. [N 2a. 3]”
Walter Benjamin, Passagens.
20
CAPÍTULO 1
FANTASMAGORIA, MODERNIDADE E LIBERDADE
1.1 Fantasmagoria e modernidade
A fantasmagoria é um fenômeno que atrai artistas, filósofos, escritores, e
pessoas de diversas áreas do conhecimento, desde o século XVII. Está associada
inicialmente à lanterna mágica, um dispositivo de projeção que lança sombras por
meio de luz em uma tela, sendo um instrumento óptico que “embodies the
intersection of mathematical, physical and technical ‘sciences’”.14 A lanterna mágica
foi mediadora entre a educação, a cultura popular e a aristocrática, fazendo parte de
coleções, de leituras e de textos, e pode ser considerada como um ancestral do
cinema. Foi um dispositivo com capacidade de causar ou provocar ilusões, liberando
a imaginação do observador: “From the moment of its invention in the 1660s,
probably by Christiaan Huygens, the magic lantern became part of a Baroque culture
which was fascinated by illusion”15 (Figura 1).
Nesse período, o teatro e a ilusão se tornaram muito populares. Koen Vermeir,
em seu artigo “The magic of the magic lantern (1660-1700): on analogical
demonstration and the visualization of the invisible”, cita Shakespeare, em A
MidSummer Night’s Dream16 e The Tempest17 (Figura 2), bem como Corneille, em
Illusion comique,18 e relaciona as adaptações fantasmagóricas dessas peças. O
autor ainda associa o conceito de performance à magia de diversas maneiras e
afirma que, durante o Barroco, a “magic became also a persistent theme in theatrical
performances”.19
14
“incorpora a interseção entre as ciências matemáticas, físicas e técnicas” (VERMEIR, Koen. The
magic of the magic lantern (1660-1700): on analogical demonstration and the visualization of the
invisible. The British Journal for the History of Science, v. 38, n. 2, p.128, 2005).Todas as traduções
realizadas neste trabalho são de minha autoria.
15
“A partir do momento de sua invenção na década de 1660, provavelmente por Christiaan Huygens,
a lanterna mágica tornou-se parte de uma cultura barroca que era fascinada pela ilusão” (VERMEIR.
The magic of the magic lantern (1660-1700), p. 128).
16
Traduzida para o português como Sonhos de uma noite de verão.
17
Traduzida para o português como A tempestade.
18
Traduzida para o português como Ilusão cômica.
19
“mágica tornou-se também um tema persistente em performances teatrais” (VERMEIR. The magic
of the magic lantern (1660-1700), p. 129).
21
Figura 1 – Pettibone Magic Lantern, Ohio c.1880
Fonte: Museo del PRECINEMA. Disponível
em:.Acesso em:
30 abr. 2018.
Figura 2 – George Romney. Shakespeare, Tempest Act I Scene I, 1797
Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2018.
22
Vermeir também faz uma associação que diz respeito a uma comparação
entre o mundo e o palco:
In one current metaphor, man was an actor in a play directed by
fortune and chance; in another, Nature directed the illusions which
tricked the spectators; and in its religious version, God showed his
skill and abundance in the theatrum mundi. But man always knew
that he was part of the play. Life itself, and especially courtly life, was
also a theatre. Court life resembled a masked ball where appearance
had to replace reality. To delude and to dazzle was the art of the
courtier, particularly in an absolutist society where courtly rituals
became ever more important.20
A realidade se confunde com a performance teatral, principalmente em um
meio social exigente, o que aproximava de seu cotidiano as histórias vistas em
peças teatrais. Os dramaturgos também levavam à cena as situações políticas e
sociais vividas, como no caso de Shakespeare. A performance fazia parte da vida do
cidadão.
O ator e pesquisador Tom Gunning explica que não conhece palavra mais
complexa, sendo a fantasmagoria um termo de “vívida e dramática” origem histórica
e que, por muitas razões, passou de uma espécie de entretenimento popular para
um importante termo em uma discussão intelectual e estética: “A term in tension,
phantasmagoria takes on the weight of modern dialectics of truth on dillusion,
subjectivity and objectivity, deception and liberation, and even life and death”.21
Gunning observa que a manipulação dos dispositivos visuais articulava
esteticamente a luz e a escuridão com efeitos fantasmagóricos:
In the 1790's the Phantasmagoria presented the most advanced form
of what the French historian of visual devices, Laurent Mannoni, has
called ‘The Great Art of Light and Shadows.’ 22 Light needs its
shadows to make an image; projected images need their darkness to
20
“Numa metáfora usual, o homem era um ator em uma peça dirigida pela fortuna e pela
possibilidade; em outra, a Natureza dirigia as ilusões que enganavam os espectadores; e em sua
versão religiosa, Deus mostrou sua habilidade e abundância no theatrum mundi. Mas o homem
sempre soube que ele fazia parte da peça. A própria vida, e especialmente a vida cortesã, era
também um teatro. A vida da corte se assemelhava a um baile de máscaras, em que a aparência
tinha que substituir a realidade. Enganar e deslumbrar eram a arte do cortesão, particularmente numa
sociedade absolutista, onde os rituais cortesãos se tornavam cada vez mais importantes” (VERMEIR.
The magic of the magic lantern (1660-1700), p. 130).
21
“um termo em tensão, fantasmagoria assume o peso da dialética moderna da verdade e da ilusão,
subjetividade e objetividade, engano e libertação, e até mesmo a vida e a morte” (GUNNING, Tom.
Illusions Past and Future: The Phantasmagoria and its Specters. 2004, p. 1).
22
The Great Art of Light and Shadow: Archaeology of the Cinema, de Laurent Mannoni.
23
be seen.23
Algo estava para além da necessidade técnica dessa escuridão, visto que o
iluminismo francês e a revolução “had reached its ironic and bloody clímax”.24 A
razão estava em sua instância máxima, mas havia uma estranha relação entre “the
scientific and enlightening and the superstitious and chilling”,25 o que parece ter
formado uma mistura, dando conformação à natureza histórica da fantasmagoria.
Dentre os admiradores da arte ilusionista, estava Etienne-Gaspard Robertson,
um ilusionista que promovia espetáculos, desde 1799, usando a fantasmagoria, no
antigo e abandonado Convento dos Capuchinhos, em Paris. Gunning descreve o
interior do convento, mostrando as alterações feitas por Robertson e a evidência de
um local preparado para que o espectador pudesse experienciar o que as novidades
científicas podiam mostrar, mas com um toque do supersticioso e do arrepiante:
After one had moved through the court of Capuchins in the evening
twilight and entered the former cloister, one walked down a long
corridor, which Robertson, trained as a painter as well as a scientist
(and originally ordained as a priest), decorated with dark and fantastic
paintings. At the end of the corridor one came to the first exhibition
space, the salon de phsyque given over to scientific experiments and
devices. Here Robertson demonstrated the newly discovered power
of electricity, or, as he called it, ‘Galvanism’, causing luminous sparks
to leap before the on-lookers. This room's attractions included optical
and aural devices – a variety of distorting mirrors, peep shows that
revealed miniature tableaux of famous landscape, a ventriloquist who
could throw his voice into every corner of the room and, in later years,
the mystery of the ‘invisible girl,’ an apparently disembodied voice
that answered the visitors' questions.26
Nesse cenário criado por Robertson havia uma mistura de sensações: uma
23
“Na década de 1790, a fantasmagoria apresentou a mais avançada forma daquilo que o historiador
francês de dispositivos visuais, Laurent Mannoni, chamou de "A grande arte da luz e das sombras". A
luz precisa de suas sombras para fazer uma imagem; as imagens projetadas precisam de sua
escuridão para serem vistas” (GUNNING. Illusions Past and Future, p. 2).
24
“tinha atingido seu clímax irônico e maldito” (GUNNING. Illusions Past and Future, p. 2).
25
“o científico e esclarecedor e o supersticioso e arrepiante” (GUNNING. Illusions Past and Future, p.
3).
26
“Depois de passar pela corte dos Capuchinhos ao entardecer e entrar no antigo claustro, alguém
caminhou por um longo corredor, que Robertson, treinado como pintor e cientista (e originalmente
ordenado sacerdote), decorou com escuridão e pinturas fantásticas. No final do corredor, chegou-se
ao primeiro espaço de exposição: o salão do físico dedicado a experiências e dispositivos científicos.
Aqui Robertson demonstrou o poder recém-descoberto da eletricidade, ou, como ele o chamou,
"galvanismo", fazendo com que faíscas luminosas saltassem diante dos espectadores. As atrações
desta sala incluíam dispositivos óticos e auditivos – uma variedade de espelhos que distorciam a
imagem das pessoas, peep shows [caixas com imagens] que revelavam miniaturas de paisagens
famosas, um ventríloquo que podia lançar sua voz em todos os cantos da sala e, em anos
posteriores, o mistério da ‘garota invisível’, uma voz aparentemente desencarnada que respondia às
perguntas dos visitantes” (GUNNING. Illusions Past and Future, p. 2-3).
24
antessala, que mostrava um mundo novo e avançado a caminho do progresso
científico, e, mais a frente, um ambiente cheio de dispositivos óticos e acústicos, que
tinha a intenção de confundir e transformar os sentidos humanos, provocando a
incerteza do que realmente foi visto ou ouvido. Esse ambiente trazia à tona o medo
de antigas superstições, o susto com o desconhecido, sensações agenciadas pela
manipulação da percepção do espectador.
Figura 3 – Interpretation of Robertson's Fantasmagorie. 1867. Marion. L'Optique.
Ilustração de Alphonse de Neuville e A. Jahandier
Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em:
. Acesso em: 30 abr. 2018.
As condições sociais e políticas da época influenciaram fortemente a
recepção desses espetáculos de Robertson. A Revolução Francesa (1789-1799), o
reinado do Terror de Robespierre (entre 1793 e 1794), o Diretório que assume o
poder em 1795 e o manteve até 1799 e, por fim, o Consulado comandado por
Napoleão Bonaparte:
In 1799 (when Robertson first opened his spectacle in the Capuchine
cloister) the Directory era audiences for this new form of
entertainment remained haunted by the events not only of the
Revolution begun a decade before, but of Robespierre's Terror,
ended only five years before. Figures of Danton, Marat and especially
25
Robespierre all appeared as specters in the Phantasmagoria
séances.27
Foi Philip Polidor que introduziu primeiro a fantasmagoria em Paris, no ano de
1793, exatamente no auge do Terror. Polidor disse que não iria mostrar fantasmas,
pois eles não existiam, mas que mostraria imagens “which are imagined to be ghosts,
in the dreams of the imagination or in the false hoods of charlatans. I am neither
priest nor magician. I do not wish to deceive you; but I will astonish you”. 28 A
promessa de surpresas atraia os espectadores.
A diferença entre a fantasmagoria e a lanterna mágica é que na
fantasmagoria o objeto de projeção ficava oculto do público; no caso da lanterna
mágica, o aparelho em si era o atrativo que encantava o espectador. Na
fantasmagoria era intencionalmente mantido um mistério por meio de um ambiente
completamente organizado para isso, por exemplo, com uma baixa iluminação, com
cortinas que cobriam as figuras quando a sala se iluminava, dando uma impressão
de que elas continuariam ali ocultas. O caráter ilusório se dava exatamente por
esconder os meios de sua produção, com imagens que surgiam da escuridão:
As an illusion, it worked directly on its spectators, limiting their
viewpoint, controlling their perception by either with holding some
sensual information or by over stimulating the senses (the
combination of limiting sight, with darkness, while the ears were
assaulted with eerie or unfamiliar sounds).29
Surgiu uma evolução da lanterna mágica, denominada Phantascope. A
traquitana podia ser movimentada para frente ou para trás por um sistema de
rodízios em trilhos e também por meio de ajustes no foco. Esse efeito fazia com que
as imagens se projetassem em movimento: “This novel effect truly shook up the
audience, reportedly causing women to faint and men to rise, striking out with their
27
“Em 1799 (quando Robertson abriu seu espetáculo no claustro dos Capuchinhos), o público do
Diretório para esta nova forma de entretenimento permaneceu assombrado pelos eventos, não
apenas da Revolução iniciada uma década antes, mas do Terror de Robespierre, que havia terminado
apenas cinco anos antes. Figuras de Danton, Marat e especialmente Robespierre apareciam como
fantasmas nas sessões de Phantasmagoria” (GUNNING. Illusions Past and Future, p. 3).
28
“que são imaginadas como fantasmas, nos sonhos da imaginação ou nas falsidades de charlatões.
Eu não sou nem sacerdote nem mágico. Eu não quero enganá-los; mas eu vou surpreendê-los”
(GUNNING. Illusions Past and Future, p. 5).
29
“Como uma ilusão, trabalhou diretamente em seus espectadores, limitando o ponto de vista,
controlando a percepção, quer por reter alguma informação sensorial, quer por estimular os sentidos
(a combinação de visão limitada, escuridão, enquanto os ouvidos eram sobressaltados por sons
estranhos ou desconhecidos)” (GUNNING. Illusions Past and Future, p. 3).
26
canes against the apparently threatening phantom”.30
Mesmo sendo um espetáculo de entretenimento, a fantasmagoria acaba por
desencadear algumas contradições na arte e na representação. Esse aspecto
permite observar a mudança da percepção humana, que vai trazer também uma
nova visão de mundo, o desejo de novas linguagens e novas formas de
comunicação.
The nature of perception, the material bases of artworks, the role of
illusion, the stimulation of the senses, the convergence of realism and
fantasy – these issues so clearly posed by the Phantasmagoria not
only represent essential questions of modern epistemology, but also
questions that artists and art works ask with increasing frequency as
we move into the twenty first century.31
No Exposé, de 1935, Walter Benjamin fala da difusão do panorama na Paris
do século XIX, o que antecipa a presença da fotografia, do cinema mudo e do
cinema sonoro. O panorama 32 “tenta reproduzir na natureza representada as
transformações de maneira enganosamente similar”, reproduzindo “as mudanças da
luz do dia, o nascer da lua, o murmurar das cascatas”.33 O relato da experiência
pessoal nostálgica de Benjamin com o Kaiserpanorama em sua infância, mesmo que
já não fosse em sua época um aparelho tão em moda, demonstra as sensações
mobilizadas pelo aparato:
Este era o fascínio das estampas de viagem encontradas no
Kaiserpanorama: não importava onde iniciasse a ronda. Pois como a
tela, com os assentos à frente, formava um círculo, cada uma
passava por todas as posições, das quais se via, através de cada par
de orifícios, a lonjura esmaecida do panorama. […] Música que,
tempos mais tarde, tornou fastidiosas as viagens com o filme, pois
com ela se dissolvia a imagem, da qual a fantasia era capaz de se
nutrir – música não havia no Kaiserpanorama. Para mim um pequeno
– e na verdade – incômodo efeito parece superar toda aquela magia
ilusória, que envolve oásis com pastorais ou muralhas com ruínas
30
“Este novo efeito realmente abalou o público, fazendo com que as mulheres desmaiassem e os
homens se levantassem, batendo com as bengalas contra o fantasma aparentemente ameaçador”
(GUNNING. Illusions Past and Future, p. 4).
31
“A natureza da percepção, as bases materiais das obras de arte, o papel da ilusão, o estímulo dos
sentidos, a convergência do realismo e da fantasia – questões tão claramente colocadas pela
fantasmagoria não apenas representam questões essenciais da epistemologia moderna, mas
também questões que artistas e obras de arte perguntam com crescente frequência à medida que
nos movemos para o século XXI” (GUNNING. Illusions Past and Future, p. 5).
32
Sobre o funcionamento do Kaiserpanorama, ver o vídeo Kaiserpanorama 3D “Geschichte der
Stereoskopieim Kaiserpanorama ab 1880”. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2018.
33
BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização e edição brasileira de Willi Bolle. Belo Horizonte:
Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. p. 42.
27
com marchas fúnebres. Era o toque da campainha que soava alguns
segundos antes de a imagem se retirar aos solavancos para dar vez,
primeiramente, a uma lacuna e, logo depois, à imagem seguinte. E
toda vez que tocava a campainha, impregnavam-se profundamente
com um toque melancólico de despedida as montanhas até o sopé,
as cidades em todas as suas janelas reluzentes, os nativos distantes
e pitorescos, as estações ferroviárias com sua fumaça amarelada, os
vinhedos nas colinas até as folhas mais diminutas.34
Figura 4 – Kaiserpanorama, 1880
Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2019.
Também há uma “literatura panorâmica”, antecipando forças para a criação
do folhetim, mostrando haver no próprio zeitgeist35 a aparição de forças de várias
frentes para que a obra cinematográfica se firmasse:
Compõem-se de esboços isolados cuja roupagem anedótica
corresponde às figuras situadas plasticamente no primeiro plano dos
panoramas e cujo fundo informativo corresponde ao segundo plano
pintado. Esta literatura é panoramática também do ponto de vista
social. Pela última vez, aparece o operário fora de sua classe como
figurante de um idílio.36
34
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos
Martins Barbosa. 6. ed. rev. São Paulo: Brasiliense, 2012.p. 75-76.
35
“Espírito do tempo”.
36
BENJAMIN.Passagens, p. 42.
28
Para explicar a literatura panorâmica, Walter Benjamin fala sobre a figura do
flâneur nas obras O livro dos cento e um, Os franceses pintados por si próprios, O
diabo em Paris, A grande cidade. Essas obras foram destinadas a serem
consumidas nas ruas. Entretanto, são aquelas chamadas “fisiologias”, em formato
de bolso, que tiveram maior destaque: “Ocupavam-se da descrição de tipos
humanos como aqueles que se encontravam quando se observava o mercado”.38 De
acordo com a avaliação de Benjamin, era um gênero “pequeno-burguês”, que
cresceu muito, até 1841, e depois começou a decair. Por essa escola do suplemento
literário passou Baudelaire e sua geração. Após as fisiologias dos tipos humanos,
surge a fisiologia das cidades, com publicações como “Paris à noite, Paris à mesa,
Paris na água, Paris a cavalo, Paris pitoresca, Paris casada”.39
A literatura evidenciava essas formas visuais que traziam uma relação distinta
com a vida social urbana. Benjamin, ao citar Simmel, reflete sobre a proximidade
entre as pessoas, utilizando como exemplo os encontros nos meios de transporte
públicos: “Antes do aparecimento do ônibus, do trem, do bonde no século XIX, as
pessoas não conheciam a situação de se encontrar durante muitos minutos, ou
mesmo horas, a olhar umas para as outras sem dizer uma palavra”, o que tornava
evidente “o predomínio da atividade do olhar sobre a do ouvido”.40
As fisiologias cumpriam o papel de retirar certo mistério e desconforto das
pessoas frente ao outro: o desconhecido que caminha ao lado, que vende os
alimentos, que dá informações, dentre outras tantas atividades cotidianas que
envolviam as relações humanas entre estranhos, buscando “dar às pessoas uma
imagem agradável umas das outras”.41 Ao criar estereótipos, as fisiologias retiravam
parte desse mistério e desse desconforto, mas ao mesmo tempo não eram capazes
de assegurar sobre a real identidade de um cidadão. A aparência pode suscitar
enganos e também pode ser manipulada pelas pessoas de forma a causar esses
enganos.
Após o declínio das fisiologias, ascende um tipo de literatura “que se tinha
fixado nos aspectos mais inquietantes e ameaçadores da vida urbana”,
38
BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Edição e tradução de João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015. p. 37.
39
BENJAMIN. Baudelaire e a modernidade, p. 38.
40
SIMMEL, Georg. Mélanges de philosophie rélativiste. Contribution à lá culture philosophique. Paris,
1912. p. 26-27 apud BENJAMIN. Baudelaire e a modernidade, p. 40.
41
BENJAMIN. Baudelaire e a modernidade, p. 41.
29
estabelecendo uma ligação íntima com as massas, pouco se interessando pela
“identificação de tipos”, preocupando-se mais com “as funções próprias das massas
nas grandes cidades”. Emerge o romance policial, e nessa origem está o fato de que
“a massa surge como o asilo que protege os associais dos seus perseguidores”.42
Os associais, os marginalizados, os outsiders aparecem nessa literatura
munidos do papel de “observador” – ou, nas palavras de Baudelaire, como o
“príncipe que em toda parte faz uso pleno do seu estatuto de incógnito” –,43 é a
transformação do flâneur em detetive, aquele que tem uma indolência apenas
aparente, pois está lá o “olhar desperto de um observador que não perde de vista o
malfeitor”, que busca aventuras, “seguindo o rastro de um pedaço de papel que
deitou ao vento”. Benjamin deixa claro que “também o romance policial […] contribui
para a fantasmagoria da vida parisiense”.44 Paul Valéry, na introdução da obra Les
Fleurs du mal, de Baudelaire, afirma que “ele foi o primeiro a fazer experiências com
a narrativa científica, com a moderna cosmogonia, com a representação dos
fenômenos patológicos”.45 Vale destacar ainda os contos de Edgar Allan Poe – “O
mistério de Marie Roget”, “Os crimes da Rua Morgue” e “A carta roubada” – que são
uma grande influência na literatura do período.
Tudo isso mostra a vida urbana e suas características fantasmagóricas como
portadoras de aspectos do que há de civilizado e de selvagem, lado a lado, tornando
perigosa a vida nas grandes cidades, tanto quanto na vida primitiva. A fantasmagoria
está presente na vida cotidiana na modernidade, na vida “real” do morador das
grandes cidades e também naquilo que pode ser chamado de “irreal”, pois é
espectro holográfico dos objetos a sua volta, como Benjamin demonstra na relação
do homem com a literatura do período.
Analisando a fantasmagoria na obra Passagens, de Walter Benjamin,
Schmider sugere que uma visão epistemológica sobre o conceito, em uma dimensão
histórico-material, permite compreender “as novas formas de vida e as novas
criações técnicas e econômicas do século XIX e revelar o potencial de
transfiguração da sociedade capitalista.” A autora enumera, como fenômenos
“fantasmagóricos concretos” na obra de Benjamin, “as passagens e os panoramas,
42
BENJAMIN. Baudelaire e a modernidade, p. 42-43.
43
BAUDELAIRE. Euvres, II, p. 333 apud BENJAMIN. Baudelaire e a modernidade, p. 43.
44
BENJAMIN. Baudelaire e a modernidade, p. 43.
45
BENJAMIN. Baudelaire e a modernidade, p. 45.
30
os interiores burgueses, a moda, a propaganda”, reivindicando uma análise até
então não empreendida que considere a fantasmagoria como um fenômeno tão
“material quanto imaginário”.47
Essa perspectiva, ao reunir aspectos concretos e filosóficos da modernidade,
traz a fantasmagoria ao cerne desta tese, pois é por esse viés que se pretende
compreendê-la como fenômeno refletido nas obras literárias e na obra fílmica
analisadas. A fantasmagoria na obra de arte possui uma função semelhante ao mito:
de compreensão da realidade por meio da experiência do sensível. A fantasmagoria
sugere uma organização social em meio à conturbada relação humana em
sociedade, que se manifesta no próprio meio cultural.
Em Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s o fenômeno da fantasmagoria
pode ser observado em alguns aspectos, produtores de imagens e representações
de fantasmagorias históricas e sociais: a) as descrições literárias marcadas pelo
traço estilístico de Truman Capote; b) os espaços descritos nas obras literárias, bem
como os espaços filmados na obra fílmica (as locações); c) a moda e suas
manifestações, de forma concreta ou abstrata (no vestuário, hábitos e estilos, tanto
individuais quanto coletivos); d) os efeitos de “iluminação” presentes tanto no texto
literário quanto na obra fílmica, relativos especificamente ao que está oculto e ao
que está visível, ao claro e ao escuro, às cores estilizadas.
Sabendo que o conceito de fantasmagoria impresso na modernidade possui
caráter polivalente, buscamos observar as teorias benjaminianas para tentar
empreender uma metodologia de trabalho nesta tese que suscite o equilíbrio entre o
material e o imaterial. Notadamente Benjamin não conseguiu esse equilíbrio entre a
“simplicidade poético-etnológica das Passagens”48 e a necessidade de definição do
conceito de fantasmagoria como uma “categoria histórico-filosófica objetiva”49, como
apontado por estudiosos de sua obra, e essa é a motivação para observar como
Benjamin lidou com a fantasmagoria em sua obra Passagens.
Sobre o conceito de modernidade, Georg Otte analisa em seu ensaio “A
47
SCHMIDER, Christine. A fantasmagoria: do simulacro ótico à figura epistemológica da modernidade
benjaminiana. Não publicado. p. 1.
48
CLARK, T. J. Será que Benjamin devia ter lido Marx?. In: CLARK, T. J. Modernismos: ensaios sobre
política, história e teoria da arte. Organização de Sônia Salzstein. Tradução de Vera Pereira. São
Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 282 apud BRETAS, Aléxia Cruz. Fantasmagorias da modernidade:
ensaios benjaminianos. São Paulo: Editora Unifesp, 2017. p. 169, nota de rodapé.
49
ADORNO, T. Correspondência 1928-1940: Adorno-Benjamin, p. 401 apud BRETAS,
Fantasmagorias da modernidade, p. 165.
31
preciosidade dos farrapos” e expõe a divisão de Thomas Anz caracterizada por “um
conflito entre uma ‘modernidade civilizatória’” e uma “modernidade estética”. A
modernidade civilizatória, fruto de um “modernismo de proveniência iluminista”,
estaria marcada por
[…] processos de racionalização, transformação tecnológica,
industrialização e urbanização, o aumento da mobilidade social, a
expansão dos processos de comunicação de massa e
burocratização, a diferenciação de um sistema social cada vez mais
complexo, o desencantamento de mitos herdados e a verificação
crítica de certezas metafísicas, a ampliação progressista do poder
racional sobre a natureza externa e, no âmbito sociopsicológico, a
obrigação do sujeito civilizado à disciplina em relação à própria
natureza, do corpo e dos afetos.50
A modernidade estética foi associada ao termo “degeneração”. Esse termo foi
usado inicialmente para expressar certo decadentismo, que subverte a consciência
(razão) em defesa do racionalismo iluminista e positivista do médico Max Nordau
(1849-1923), e, posteriormente, foi apropriado pelo vocabulário nazista “para
desqualificar todas as pessoas e suas obras que não correspondem aos modelos
‘arianos’ do ano de 1937, deixando claro que não havia mesmo espaço para a arte
contemporânea no Terceiro Reich”.51
As relações dessas terminologias – “degenerada” e “decadente” –,
associadas à modernidade, culminam no conceito de modernidade “às avessas”
assumido pelos poetas “malditos”, como Baudelaire, que assumiram
“deliberadamente esse adjetivo para si mesmos”:
Baudelaire não apenas vai na contramão da lírica romântica e sua
expressão de sentimentos íntimos, mas se volta diretamente contra a
“modernidade civilizatória”, para retomar a divisão de Thomas Anz.
Em seu texto “Exposição universal” (1855), Baudelaire questiona a
ideologia do progresso dessa modernidade e se antecipa a Nietzsche
quando troca a ideia de uma sociedade em ascensão pela
decadência.52
A modernidade pode ser vista como um movimento de decadência e não de
ascensão, o que levaria ao sacrifício do presente em função do futuro e a um desejo
e busca da “estética do belo artificial”. Otte recorre a Walter Benjamin, em “Sobre o
50
ANZ, Kämpfe um die Modern apud OTTE, Georg. A preciosidade dos farrapos: A transvaloração
dos valores em Walter Benjamin. In: DE SOUZA, Eneida Maria; MELO MIRANDA, Wander (Org.).
Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 299.
51
OTTE. A preciosidade dos farrapos, p. 299-300.
52
OTTE. A preciosidade dos farrapos, p. 303.
32
conceito de história”, para descrever o conceito de “catástrofe”: “Benjamin denuncia
a cegueira causada pelo progresso de uma maneira mais radical que Baudelaire:
nós não vemos o presente porque estamos olhando para o futuro”; a visão da
história como “cadeia de acontecimentos”,53 apresentada por Benjamin, traz a ideia
de que ficamos cegos para a catástrofe em que nos encontramos.
A alegoria da “modernidade como fantasmagoria”, que é o aspecto de
interesse desta tese, tem alguns pilares importantes na obra benjaminiana
esboçados no fragmento “G”, das Passagens: “1. os antropomorfismos do capital
como ‘segunda natureza’” (a secularização da história e sua integração em um
contexto natural); “2. O princípio do ‘eterno retorno’ como constante universal; e 3. a
centralidade do reclame e da moda nas operações de fetichização da mercadoria”.
Essas operações têm uma relação direta com o processo de “mercantilização do
homem” e da “humanização da mercadoria”.54
A relação humana com os objetos na modernidade adquire uma perspectiva
mística por meio do fetiche. A mercadoria “fetichizada”, ou possuidora de uma “aura”,
traz em si uma forma fantasmagórica e mítica, pois ela se projeta na relação com o
homem para além de sua forma material. Ela está também imbuída de outros
valores, que muitas vezes fazem mediação entre o passado e o presente, entre
significantes sociais, culturais, morais, dentre outros.
Retomando algumas ideias ditas até então, e correlacionando-as, a
fantasmagoria é um fenômeno que ganha força na modernidade justamente por sua
característica de unir a técnica (pensamento científico) e a magia (pensamento
mítico), e, por isso mesmo, é também um subsídio para mediar as relações humanas
com as questões socioculturais. Para Lévy Strauss em O pensamento selvagem, o
problema da arte está no meio do caminho entre o pensamento científico e o
pensamento mítico, pois o artista também se encontra entre “o cientista e o bricoleur:
com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto do
conhecimento”55.
Bretas, na leitura de O capitalismo como religião, o único texto de Benjamin
sobre Max Weber, indica em Benjamin a associação do capitalismo ao campo
53
OTTE. A preciosidade dos farrapos, p. 303.
54
BRETAS. Fantasmagorias da modernidade, p. 166-167.
55
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução Tânia Pellegrini. Campinas, SP:
Editora Papirus, 1989, p. 38.
33
religioso:
[…] o ponto de partida é dado pelo reconhecimento da estrutura
intrinsecamente religiosa do capitalismo – na qual a imagem, o
fetiche e o culto representam um papel, sem dúvida, determinante.
Segundo Benjamin, o capitalismo deve ser considerado não apenas
do ponto de vista econômico como simples modo de produção (Marx)
ou mesmo conduta de vida (Weber), mas como celebração de um
culto permanente, sem dogmas ou teologia.56
É a estrutura “religiosa” presente no capitalismo que aciona a fantasmagoria,
atribuindo-lhe uma função clara de tentativa de organizar e/ou explicar as relações
humanas com o seu meio.
O funcionamento do capitalismo, ou de qualquer outro sistema, pelo ponto de
vista econômico, não é o foco desta tese, e sim as relações socioculturais da
sociedade americana de meados do século XX, bem como a conformação da
sociedade do período, que se consolida com a economia capitalista. Portanto,
alguns efeitos do modelo econômico e político vigente desse período são
observados nas obras analisadas como constituídos por meio de uma estética que
se revela fantasmagórica e que também expõe as fantasmagorias próprias da
sociedade do período.
Um dos pontos de análise desta tese está na definição de sociedade na
modernidade. As “forças sociais, as configurações de vida, as originalidades e os
impasses da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista” se “revelam
mais abertamente”57 a partir de meados do século XIX:
Os personagens mais característicos estão ganhando seus perfis e
movimentos: grupos, classes, movimentos sociais e partidos
políticos; burgueses, operários, camponeses, intelectuais, artistas e
políticos; mercado, mercadoria, capital, tecnologia, força de trabalho,
lucro, acumulação de capital e mais-valia; sociedade, Estado e
nação; divisão internacional do trabalho e colonialismo; revolução e
contrarrevolução. Um dos seus principais símbolos, o capital, parece
estabelecer os limites e as sombras que demarcam as relações e as
distâncias entre o presente e o passado, a superstição e a ilustração,
o trabalho e a preguiça, a nação e a província, a tradição e a
modernidade.58
As conotações socioculturais do capital são variáveis e, por vezes,
contraditórias e dicotômicas, demonstrando haver muitos movimentos de adaptação
56
BRETAS. Fantasmagorias da modernidade, p. 171.
57
IANNI, Octávio. A sociologia e o mundo moderno. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2011, p. 11.
58
IANNI. A sociologia e o mundo moderno, p. 11.
34
por parte dos grupos sociais. O próprio termo sociedade pode adquirir sentido
conotativo diverso. Pode significar determinado povo e pode também, dentro de um
mesmo povo, delimitar agrupamentos.
Na Europa, o termo sociedade, de forma seletiva, inclui pessoas que se
destacam
em qualquer esfera de atividade. Políticos e líderes parlamentares,
chefes de várias repartições públicas, editores e donos dos principais
jornais e revistas, escritores proeminentes, cientistas, […] junto com
os empresários de destaque e os descendentes das famílias da
aristocracia.59
Já nos EUA, a definição de sociedade, de forma seletiva e excludente, está
associada, quase exclusivamente, a “famílias ricas” e “socialites”.60 A observação
dos dois sentidos deixa transparecer características marcantes de cada povo, sendo
que, nos EUA, a relação com o capital e o que ele pode prover parece ser mais
proeminente, mesmo que não esteja ausente no que se refere ao sentido do termo
na Europa.
Nas obras ficcionais analisadas nesta tese, o sentido conotativo de sociedade
vinculado ao capital é evidente. Nas duas obras literárias de Truman Capote,
Summer crossing e Breakfast at Tiffany’s, a sociedade à qual todos querem
pertencer está estritamente ligada ao poder do capital. Na perspectiva de análise da
personagem Holly Golightly, é inegável a sua condição de encantamento frente ao
mundo artificial proporcionado pelo consumo, às possibilidades de viver muito além
do que apenas para suprir as necessidades de sobrevivência básicas.
Na visão liberal de Ludwig von Mises, o capitalismo:
[…] visa a liberdade de cada um seguir o seu próprio destino –
desigual e, por isso mesmo, justo, onde são premiados os
investimentos que sejam desejáveis pelas próprias pessoas, que
sempre dão livremente o seu dinheiro por algo que desejam (o
Estado, como se sabe, toma o dinheiro de todos sem perguntar, e
“investe” em coisas que elas não desejam, são contrárias ou mesmo
nunca irão utilizar).61
Esse aspecto do capitalismo valoriza as diferenças individuais, tanto de
desejo quanto de habilidades particulares. Cada indivíduo vai alcançar (ou deveria)
59
MISES, Ludwig Von. A mente anticapitalista. Tradução de Adelice Godoy. São Paulo: Vide Editorial,
2015. p. 49.
60
MISES. A mente anticapitalista, p. 50.
61
MISES. A mente anticapitalista, p. 17.
35
seu espaço social mediante suas possibilidades e seus atributos. Há um
pensamento comum sobre a concepção de classes, no qual “os ‘ricos’ devem dar
(ou serem forçados a perder, usualmente por via estatal) o que produzem para haver
uma ‘distribuição’ adequada – e por terem riqueza apenas porque ‘roubaram’ os
frutos do trabalho de quem pouco tem”. 62 Entretanto, esse pensamento é
questionado por Mises a partir da explicação que “a desigualdade social não se dá
porque um rouba os frutos do trabalho de outro, mas graças aos resultados diversos
dos engenhos humanos”.63
Nessa perspectiva, apenas a economia capitalista permite ao indivíduo que
deu “azar” de não ter recursos herdados de sair dessa condição pelo fato de ser
uma “economia de criação”,64 não somente de “matéria, mas sobretudo de ideias”.65
Várias polêmicas vão surgir em torno do fato de que estas condições expostas não
estão para todos da mesma forma: “a oportunidade de competir pelas recompensas
que a sociedade tem para distribuir é uma instituição social”,66 que não tem poder
sobre as limitações individuais que diferenciam as pessoas. A ideia de liberdade
positiva e negativa, que será abordada logo a seguir, também está vinculada a esse
aspecto da vida na sociedade americana.
Longe de serem simples, essas reflexões não dão conta das consequências
de toda a complexa rede humana envolta em sua busca subjetiva pela felicidade e
pela expressão de sua identidade, pela superação de seus medos ancestrais, muitas
vezes direcionados aos ritos sociais. O sentido humano de sua própria existência
entra em colapso diante das grandes distrações presentes em seu cotidiano, seja
pela luta selvagem pela sobrevivência do mais forte, seja pelo desejo de consumo e
acesso às mercadorias, seja pela vontade de encontrar um “porto seguro”, o que,
como metáfora, será variável de acordo com cada indivíduo.
Pensando especificamente na relação das teorias benjaminianas com o
62
MISES. A mente anticapitalista, p. 14.
63
MISES. A mente anticapitalista, p. 14.
64
Flávio Morgenstern, no prefácio da obra de Mises, explica que “a riqueza é criada”, já que não está
“pronta na natureza”. Para explicar essa proposta, o autor apresentauma alegoria na qual o homem
primitivo teria sido “o mais rico do mundo”, já que havia poucos habitantes no planeta e nenhuma
propriedade privada delimitada. Não havia riqueza, no sentido de mercadorias produzidas pelo
homem, que lhe trazia conforto e sobrevivência (carros, livros, medicina, casas), apenas “matéria não
transformada”, que deveria ser trabalhada. Também expõe o fato de que o homem das cavernas era
obrigado a trabalhar muito mais para conseguir sobreviver do que o homem atual (MISES. A mente
anticapitalista, p. 9-13).
65
MISES. A mente anticapitalista, p. 16, grifos do autor.
66
MISES. A mente anticapitalista, p. 38.
36
capitalismo marxista – na medida em que o autor leu Marx e trouxe para sua obra
categorias marxistas –, há opiniões contraditórias a esse respeito, algumas a favor e
outras contrárias. Para o crítico americano T. J. Clark:
De modo geral, foi um empecilho na trajetória ascendente de
Benjamin como pensador. […] o marxismo foi um estorvo à
maravilhosa simplicidade poético-etnológica das Passagens,
conforme ele primeiro o concebeu em fins da década de 1920. O
marxismo turvou, multiplicou e automatizou as linhas originais do
projeto, de forma que, no fundo, acabou se tornando um câncer
nesse trabalho de Benjamin que poderia ter sido o último e maior
confronto Surrealista com o século XIX, uma espécie de acerto de
contas com todos os sonhos frenéticos de Grandville e Victor Hugo.67
Em seu artigo “Será que Benjamin devia ter lido Marx?”, Clark idealiza uma
obra diferente da escrita por Benjamin, caso não tivesse usado os conceitos
marxistas de produção de mercadorias, mas algumas ideias presentes em sua obra
não teriam a importância que têm, inclusive na atualidade, sem as leituras marxistas.
Para compreender a importância dos conceitos marxistas na obra de
Benjamin, Bretas ressalta o caráter fantasmagórico da mercadoria no pensamento
marxista por meio de uma retomada do autor ao sentido original do termo fetichismo,
destacando um trecho de O capital: “À primeira vista, a mercadoria parece uma
coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada,
cheia de sutilezas metafísicas e manhas teológicas”.68 Para Bretas, Marx traz para
sua crítica uma “forma de esclarecimento a um certo modo de pensar projetivo que
tende a exteriorizar construções e qualidades humanas em objetos, de tornar efetiva
a operação de naturalização dos objetos sociais”.69
Aplicar essa observação de Marx ao uso subjetivo da moda pelos indivíduos
em sociedade pode tornar compreensível os aspectos dessas sutilezas e manhas
sugeridas. A “mercadoria” de moda, estabelecida como vestuário e acessórios
usados diretamente sobre o corpo humano, produz efeitos que fogem ao controle e
a análises muito sistematizadas.70 São mercadorias vestíveis e por isso mesmo suas
67
CLARK, T. J. Será que Benjamin devia ter lido Marx?. In: CLARK, T. J. Modernismos: ensaios sobre
política, história e teoria da arte. Organização de Sônia Salzstein. Tradução de Vera Pereira. São
Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 282 apud BRETAS, Fantasmagorias da modernidade, p. 169, nota de
rodapé.
68
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, p. 70 apud BRETAS. Fantasmagorias da
modernidade, p. 169.
69
BRETAS. Fantasmagorias da modernidade, p. 170.
70
Roland Barthes produziu uma obra importante (Sistema da Moda) tentando justamente estruturar o
sistema da moda (ou a moda como sistema). A moda possui um sistema de difícil delimitação e
37
“sutilezas metafísicas e manhas teológicas” são ainda mais diferentes de outras
mercadorias menos “próximas” do corpo, por assim dizer.
O vestuário não surgiu somente como forma de proteção do corpo humano
contra as intempéries, nem como forma de pudor para cobrir partes do corpo, e nem
como forma de adorno, apenas.71 Todas essas prerrogativas são verdadeiras, mas a
que sustenta o sistema da moda é mais profunda:
Isso leva a revisar um ponto de vista tradicional, à primeira vista
dotado de bom senso, segundo o qual o homem inventou o vestuário
por três motivos: proteção contra as intempéries, pudor (para ocultar
a nudez), adorno (para se fazer notar). Isso é válido. Mas é preciso
acrescentar outra função que me parece mais importante: a função
de significação. O homem vestiu-se para exercer sua atividade
significante. O uso do vestuário é fundamentalmente um ato de
significação, além dos motivos do pudor, adorno e proteção. É um
ato de significação, logo um ato profundamente social, alojado no
próprio cerne da dialética das sociedades.72
O reconhecimento da significação como fundamental para justificar o uso do
vestuário reflete na característica humana de querer destacar-se individualmente,
principalmente em meio aos grupos sociais,73 e de fazer isso por meio de seus
objetos vestíveis. A força que move para a individualização não se opõe à força que
move para a socialização. São forças que atuam conjuntamente em mesmo
indivíduo. O vestuário como “ato de significação” e, para além, como forma de
expressão, vai abarcar estas duas forças.
A moda que se traduz nas mercadorias envolve muito mais do que apenas as
questões econômicas, não deixando também de estar submetida a elas, se
considerada como forma de expressão da subjetividade do indivíduo, o que pode ser
mais ou menos relevante para uns e outros, ou para determinadas faixas etárias e
situações de vida. Como exemplo há o adolescente que deseja pertencer ao seu
grupo e ao mesmo tempo deseja destacar-se nele, usando sua imagem para uma
força e para outra. Mesmo uniformizada, uma adolescente tenderá a usar objetos
diferenciadores (pulseiras, anéis, um modo especial de amarrar os cabelos) e outros
que a conectam ao seu grupo de amizades (cabelo longo, cabelo curto, colorido).
passível de mudanças muito rápidas, de forma que assim que algumas estruturas são identificadas
elas já podem não ser mais aplicáveis.
71
Cf. A Psicologia das roupas, de Flügel.
72
BARTHES, Roland. Inéditos: Imagem e moda. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. v. 3. p. 363-364.
73
Sobre esse aspecto, ler Georg Simmel, autor que também foi lido por Benjamin.
38
O princípio do “eterno retorno” como constante universal, uma ideia que
remonta a Nietzsche, é um dos pilares da alegoria da modernidade benjaminiana
como fantasmagoria, também se aplica a moda, que tem em seu cerne o movimento
circular de nascimento, morte e renascimento. Muitas vezes essa morte é apenas
camuflada de novas significações, mas permanece com os mesmos objetos
ligeiramente modificados, implantando um movimento circular que se firmou, não por
acaso, como um sistema a partir da segunda metade do século XIX. Todo o
ambiente social corroborou para que isso acontecesse e esse sistema foi se
adaptando às frequentes mudanças a partir daí, sempre movido pela novidade.
O princípio do “eterno retorno” aparece em Auguste Blanqui, apontado por
Benjamin, em Nietzsche e no próprio Benjamin: uma “angústia lancinante – a
repetição do sempre-igual”.74 Para a moda, ainda é uma engrenagem fundamental
em processo de aceleração, tanto que a grande questão nos dias atuais é “o que é
novo na moda?”
1.2 Liberdade como fantasmagoria da modernidade
A liberdade é um conceito genérico que pode ser mais bem compreendido
quando verificadas as circunstâncias que o envolvem. Dentre estas circunstâncias
estão o tempo e o espaço em que o conceito é aplicado, seu contexto.
A liberdade social e, no seu âmbito, as relações sociais, são produtoras de
angústia, de felicidade, de sonhos, de realizações, de decepções, são
fantasmagorias da modernidade. A cultura na modernidade é também produtora de
fantasmagorias. A “liberdade só é um ideal enquanto estiver ameaçada”, e “como a
guerra e a ciência econômica, ela deve ter como fim supremo abolir as condições
que a tornam necessária”. Esse pensamento condiz com o fato de que “a sociedade
ideal não seria consciente da necessidade de liberdade”. A “luta pela liberdade é a
luta para criar uma situação em que o próprio nome ‘liberdade’ é esquecido”:75
A liberdade, tanto social como política, é um dos mais antigos e,
prima facie, um dos mais inteligíveis ideais humanos. O desejo de
liberdade é, em primeiro lugar, o desejo de indivíduos ou grupos de
não sofrer interferência de outros indivíduos ou grupos. Esse é seu
significado mais evidente, e todas as outras interpretações tendem a
74
BRETAS. Fantasmagorias da modernidade, p. 175.
75
BERLIN, Isaiah. Ideias políticas na era romântica: ascensão e influência no pensamento moderno.
Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 225.
39
parecer artificiais e metafóricas. Os seres humanos têm desejos,
inclinações, impulsos, e qualquer coisa que os impeça de realizar
esses desejos é chamada de obstáculo. Esses obstáculos podem ser
animados ou inanimados, humanos ou não humanos.76
O desejo de liberdade como um dos ideais humanos mais antigos e
inteligíveis é uma temática comum e universal nos campos literário e artístico, como
vários escritores, poetas, artistas plásticos já deixaram claro. Essa é uma temática
bastante recorrente nas obras de Truman Capote, por isso é importante investigar
de que forma ela aparece e se materializa nas narrativas selecionadas nesta tese,
bem como sua conexão com a fantasmagoria social e cultural.
O embate entre grupos, o desejo de poder fazer/viver sem obstáculos e a
identificação desses obstáculos – que certamente vão existir – como “animados ou
inanimados, humanos ou não humanos” surgem na matéria da vida presente na
narrativa ficcional, na forma de questionamentos sobre a condição de ser livre do ser
humano e sua relação com a vida na modernidade das grandes cidades.
Há obstáculos psicológicos e físicos presentes no fato de que alguém
especificamente não consegue fazer determinada coisa, como “compreender as
obras de Hegel” ou “voar para a lua”, para um e outro tipo de obstáculo citado, nesse
aspecto, a relação é direta com aquilo que se “pode” ou “não pode” fazer. Mas esses
dois sentidos se distanciam daquele que alguém tem em mente quando fala sobre
“liberdade social ou política”, sugerindo “que alguém, e não alguma coisa, está nos
impedindo de fazer ou ser algo que desejamos fazer ou ser”.77
Quando a sua falta de liberdade é concebida como característica
social ou política, o que está implícito é que ele [o homem] é
impedido de conseguir, fazer ou ser algo específico por fatores
sociais ou políticos, isto é, pela relação dos outros seres humanos
com ele.78
Os obstáculos nesse caso, advindos das relações interpessoais entre os
humanos, podem ser intencionais ou não, conscientes ou não, mas vão funcionar
como uma cadeia de dominós, atingindo pessoas à frente, quaisquer que sejam as
intenções ou atos de outras pessoas. Isto é:
[…] reclamo da ausência de liberdade pessoal quando sou impedido
de agir como desejo por causa da realização dos objetivos
76
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 149, grifos do autor.
77
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 149-150.
78
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 150.
40
conscientes, semiconscientes ou até inconscientes dos outros seres
– e não apenas pelo comportamento mecânico de seus corpos. E
quando acredito que essas intenções visam especificamente a me
deter e tornar impossível que eu faça o que quero, sinto que minha
liberdade está sendo deliberadamente infringida; e quando acredito
que essas intenções são injustas ou irracionais, queixo-me de
opressão.79
Nesse sentido, a liberdade é “um conceito negativo”, pois requer “a ausência
de atividades humanas que interceptem” as de outrem. Viver em sociedade é
abdicar da liberdade já que, de fato, estamos todos sendo tolhidos pelas ações dos
que nos cercam. A felicidade e a infelicidade podem ser medidas por esse
termômetro, dependendo de como a pessoa vai se posicionar frente aos
acontecimentos. Assim, “a luta pela liberdade, como a luta pela justiça, não é uma
luta por uma meta positiva, mas por condições em que os objetivos positivos podem
ser realizados”, sendo que por objetivos positivos estão, por exemplo, “o prazer, o
conhecimento, a beatitude”.80
Há um tipo de liberdade negativa e um tipo de liberdade positiva. Ambas
estão, de certa forma, relacionadas à escravidão. A liberdade é negativa no sentido
de que alguém pode não ser escravo e, portanto, livre, mas pode não ser totalmente
livre para alcançar os seus desejos e sonhos – que fazem parte da liberdade positiva
–, por exemplo, por não ter condições financeiras e não ter acesso à escolarização,
mesmo desejando muito estudar. Há também formas de ser escravizado pelas
“paixões”:
O sentido em que Pai Tomás era escravo de Simon Legree é o
sentido literal, o que ninguém contestaria. Enquanto que o sentido
em que Céfalo no primeiro livro da República de Platão afirma ter se
libertado da escravidão à paixão do amor – “um senhor cruel” – é
nitidamente diferente do primeiro. A luta contra um homem que
deseja impor a sua vontade sobre outros seres humanos e, por outro
lado, aquilo que é chamado de luta interior dentro de mim mesmo –
quer entre minhas próprias paixões, quer entre minhas inclinações
menos dignas e a minha “melhor natureza” – não são lutas no
mesmo sentido da palavra, e à segunda é dado esse título pelo qual
é percebida como uma extensão quase metafórica do termo.81
Esse sentido metafórico de liberdade diz respeito a uma condição na qual o
ser humano precisa conseguir adaptar-se, resignar-se, não lutar contra, para que
79
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 151.
80
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 227-128.
81
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 151-152.
41
possa realmente alcançar a felicidade. Há na liberdade certa submissão ao “plano
do mundo”, à “razão”, à natureza, para que ela possa se realizar. Assim, surge a
ideia de conciliação, usando as teorias de Leibniz que falam de como “a ciência e
religião deviam ser ‘conciliadas’”.82
O American Dream83 é a representação máxima da fantasmagoria americana
do sonho de liberdade na modernidade. As ideias de Berlin sobre a liberdade
positiva e negativa contribuem para as análises das personagens capotianas,visto
que estas estão inseridas num modelo de sociedade capitalista e altamente
consumista. As possibilidades de ascensão social são possíveis mediante as ações
individuais, mas não são irrestritas. As personagens sofrem por não atingirem seus
sonhos, por não vê-los realizados em consequência de normas sociais, das leis e
dos acontecimentos que vão além de sua possibilidade de agir. Elas idealizam um
mundo e enfrentam as barreiras que a sociedade impõe, como será demonstrado
nas análises desta tese.
Nas duas obras capotiana analisadas, o cenário é Nova Iorque no período
das guerras, mais especificamente Summer Crossing entre as guerras e Breakfast at
Tiffany’s no final da Segunda Grande Guerra. A atmosfera tensa da cidade grande e
o clima dos conflitos são latentes na narrativa.
Nova Iorque foi a capital do século XX – como Paris foi a capital do século
XIX, lembrando o título do ensaio de Walter Benjamin –, local onde muitos se
refugiaram dos conflitos das grandes guerras que assolavam a Europa e era
também aposta de quem acreditava que o sucesso pessoal poderia ser alcançado: o
American Dream. Truman Capote também julgou assim e muito cedo investiu nesse
sonho:
82
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 159.
83
“‘In the beginning,’ wrote John Locke, ‘all the world was America.’ Locke was referring specifically to
the absence of a cash nexus in primitive society. But the sentence evokes the unsullied newness,
infinitive possibility, limitless resources that are commonly understood to be the essence of the
‘American dream’. The idea of the American dream has been attached to everything from religious
freedom to a home in the suburbs, and it has inspired emotions ranging from deep satisfaction to
disillusioned fury”.Tradução: “‘No começo’, escreveu John Locke, ‘todo o mundo era a América’.
Locke estava se referindo especificamente à ausência de um nexo monetário na sociedade primitiva.
Mas a frase evoca a novidade imaculada, a possibilidade infinita, recursos ilimitados que são
comumente entendidos como a essência do ‘sonho americano’. A ideia do sonho americano foi
anexada a tudo, desde a liberdade religiosa a um lar nos subúrbios, e inspirou emoções que vão
desde a satisfação profunda até a fúria desiludida” (HOCHSCHILD, Jennifer L. The Word American
Ends in "Can": The Ambiguous Promise of the American Dream. William & Mary Law Review, v. 34,
issue 1,article 9,p. 139-170, 1992).
42
De qualquer maneira, a menos que se esteja apaixonado, ou
satisfeito, ou compelido pela ambição, ou destituído de curiosidade,
ou reconciliado (termo que parece ser o sinônimo moderno de
felicidade), a cidade é como uma máquina monumental inquieta
projetada para ilusões devoradoras, consumidoras de tempo. Depois
de um tempo, a busca e a exploração podem se tornar sinistramente
apressadas, docemente ansiosas, uma corrida de obstáculos de
Benzedrine e Nembutal.84
Há crueza nas palavras que apontam estados de espírito necessários para
suportar as pressões da cidade: se apaixonar ou estar satisfeito, “compelido pela
ambição” ou inerte, sem a curiosidade, “reconciliado” como sinônimo de felicidade:
estar em harmonia com as demandas do tempo, numa composição de ações e
sentimentos que demonstrem não haver resistência, e sim uma entrega, visto que
aquele que se reconcilia um dia esteve afastado, um ato de restaurar algo. Depois
de um tempo, a cidade, “uma máquina monumental inquieta projetada para ilusões
devoradoras”, vence o citadino. Ela é o projetor de fantasmagorias sociais e culturais.
Um gigantesco projetor capaz de criar ilusões com seu turbilhão de novidades, com
seu movimento incessante e com a tensão das relações sociais, ao mesmo tempo
muito próximas e muito distantes. E o citadino ainda busca alento nas drogas, que
acalmam e que criam mais ilusões ainda.
A “luta” pela liberdade confrontada com a obra capotiana permite perceber
aspectos relevantes para compreender a modernidade como produtora de
fantasmagorias sociais e culturais. A reconciliação como “sinônimo moderno de
felicidade” implica na abdicação de sonhos, na aceitação forçada de frustrações, na
conciliação com aquilo que muitas vezes não se quer conciliar, resultando em um
acordo entre partes para, assim, estar em paz.
Nova Iorque era o principal cenário para as narrativas de Truman Capote. Seu
estilo tenso, mas leve, tratava de temas do cotidiano aparentemente corriqueiros e,
ao mesmo tempo, abordava profundos sintomas da modernidade. Capote planejava
suas histórias como um arquiteto planeja um edifício e também deixava-se embalar
pelas memórias vividas e pelos elementos autobiográficos. As camadas sociais, as
mulheres, as prostitutas, a guerra como pano de fundo, a solidão da metrópole e a
cidade como um monstro devorador eram fixações do autor que reverberam nas
duas obras escritas. Há muitas similaridades entre esses interesses do escritor com
os escritos filosóficos de Walter Benjamin, que também escreveu sobre esses temas.
84
BERLIN. Ideias políticas na era romântica, p. 24.
43
A sociedade norte-americana da primeira metade do século XX refletia toda
essa tensão e “em uma sociedade em mudança, grande ênfase é dada à
aparência”. 85 O dilema dramático que se manifesta em Summer Crossing e
Breakfast at Tiffany’s reflete um estado de costumes da sociedade desse período.
Entende-se por costumes “o murmúrio de uma cultura e o zumbido de suas
implicações. Isto é, todo o evanescente contexto no qual seus conceitos explícitos
foram feitos. Essa parte da cultura é feita de meio elaboradas e não elaboradas
expressões de valor”. Essas expressões de valor aparecem em “pequenas ações, às
vezes por artes do vestuário, às vezes por tons, gestos, ênfases e ritmos, às vezes
pelas palavras que são usadas com uma frequência especial ou por um significado
especial”. São essas “expressões de valor”, coisas “pequenas” e corriqueiras que
“para o bem ou para o mal, unem as pessoas de uma cultura, separando-as do povo
de outra cultura. Fazem parte de uma cultura que não é arte, ou religião, ou moral,
ou política e, contudo, se relacionam com todos esses altamente formulados
departamentos da cultura”. Há uma interrelação entre a cultura e esses elementos,
ela é “gerada por eles e [também] os gera”.86 O “mundo das coisas” de Benjamin
está inserido nesse contexto.
A observação e análise do estado de costumes de uma sociedade, de um
dado período, permitem perceber como se desenvolve, na superfície das sociedades
– nos seus objetos e imagens –, as relações interpessoais com o seu tempo e
espaço. No miúdo do cotidiano se encontra a possibilidade de perceber “o murmúrio
de uma cultura e o zumbido de suas implicações”, o que podemos associar ao olhar
de Walter Benjamin sobre sua crítica da cultura. No fragmento “[R 2a, 3]” da obra
Passagens, a mesma atmosfera pode ser notada:
Um sussurro de olhares enche as passagens. Não há coisa alguma
aqui, quanto menos se espera, que não lance um rápido olhar,
fechando os olhos com uma piscadela, mas a um olhar mais atento
ela já desapareceu. O espaço empresta seu oco ao sussurro destes
olhares.87
As reflexões apresentadas nesta seção são concernentes às análises
comparativas efetivadas na segunda seção, evidenciando as semelhanças entre as
85
TRILLING, Lionel. A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade.
Tradução de Cecília Prada. São Paulo: É Realizações, 2015. p. 254.
86
TRILLING. A imaginação liberal, p. 250.
87
BENJAMIN. Passagens, p. 583.
44
obras Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s, permitindo perceber as
preocupações de um autor, suas escolhas argumentativas e estruturais, e como elas
se materializam nas duas narrativas, ressaltando seu encadeamento: a primeira
como estudo para a realização da segunda.
No terceiro capítulo, as reflexões conceituais apresentadas acima são
validadas no procedimento da análise comparativa de trechos da obra literária
Breakfast at Tiffany’s, de Truman Capote, e na obra homônima cinematográfica
adaptada, de Blake Edwards.
45
CAPÍTULO 2
FANTASMAGORIAS EM SUMMER CROSSING E BREAKFAST AT TIFFANY’S,
DE TRUMAN CAPOTE
2.1 Ritos de passagem, Nova Iorque e a Segunda Guerra Mundial
2.1.1 Summer Crossing
Logo no início de Summer Crossing há uma referência aos anos após a
Primeira Guerra Mundial, quando o narrador expõe que Lucy, mãe de Grady (a
protagonista), precisava encontrar um casamento. Seu debut88 é contado como “a
famous and sentimental affair”89 em um baile oferecido por sua avó, casada com o
senador La Trotta da Carolina do Sul, junto com o das duas irmãs, no “Camellia ball
in Charleston in April of 1920”:90
[…] it was a presentation truly, for the three La Trotta sisters were no
more than school girls whose social adventures had been here to fore
conducted within the shackles of a church; so hungrily had Lucy
whirled that night her feet for day had worn the bruises of this
entrance into living, so hungrily had she kissed the Governor’s son
that her cheeks had flamed a month in remorseful shame, for her
sisters – spinsters then and spinsters still – claimed kissing made
babies: no, her grandmother said, hearing her teary confession,
kissing does not make babies – neither does it make ladies.91
Ela era “pleasant to look at, not unbearable to listen to: vast advantages when
you remember that this was the meager season”. 92 Havia poucos rapazes para
desposar, o que era o desejo de toda moça da época e uma exigência por parte de
suas famílias. Essa passagem também mostra como as mulheres eram
consideradas ainda por seus atributos físicos e por sua capacidade de não ser
insuportável de se ouvir, ainda mantendo resquícios da mulher oitocentista, que era
88
Primeira aparição pública, uma entrada na sociedade para jovens garotas.
89
“uma ocasião célebre e emocionante” (CAPOTE, Truman. Summer Crossing: a novel. Manhattan,
NY: Modern library, 2006. E-book. p. 8).
90
“Baile das Camélias de Charleston em abril de 1920”(CAPOTE. Summer Crossing, p. 8).
91
“era de fato uma apresentação, pois as três irmãs LaTrotta não eram mais do que colegiais, cujas
aventuras sociais haviam sido conduzidas dentro dos grilhões de uma igreja. Lucy dançou com tanta
sofreguidão naquela noite que seus pés passaram dias ostentando as marcas daquela estreia na
vida; tão avidamente, ela beijou o filho do governador que suas bochechas arderam durante um mês
de vergonha e de remorso, pois suas irmãs – solteironas então e solteironas ainda – alegaram que
beijar fazia bebês: não, a avó disse, ouvindo sua confissão tímida, o beijo não faz bebês – nem faz
damas”(CAPOTE. Summer Crossing, p. 8).
92
“agradável de se olhar, não insuportável de se ouvir: grandes vantagens quando se considera que
aquela era a época da entressafra” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 8-9).
46
uma espécie de vitrine do sucesso masculino.93
O debut era considerado um rito de passagem importante na vida de jovens
adolescentes e, não por acaso, Capote usa essa imagem fantasmagórica da
modernidade logo nas primeiras páginas de sua narrativa, fazendo referência ao
próprio título da obra, que também sugere um rito de passagem: “Summer Crossing”,
‘travessia de verão’. Toda a narrativa se passa em torno do fato de Grady se
apaixonar por Clyde, um judeu de uma classe social bem inferior à sua, na
passagem de sua adolescência para a fase de mulher adulta. Há também uma
referência ao fato de que Grady ficará sozinha em Nova Iorque, pois os pais vão
para a Europa em um navio: o Queen Mary.94 Logo nas primeiras páginas há um
confronto entre a imagem da mãe, que debutou no início do século, e da filha Grady,
que vai se recusar a debutar, para desgosto da mãe, já em meados dos anos 1940.
Na obra Passagens, Walter Benjamin traz uma citação que evidencia o
desgaste do rito de passagem como manifestação de transição na modernidade:
Ritos de passagem – assim se denominam no folclore as cerimônias
ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade etc. Na
vida moderna, estas transições tornaram-se cada vez mais
irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em
experiências limiares. O adormecer talvez seja a única delas que nos
restou. (E, com isso, também o despertar.) E, finalmente, tal qual as
variações das figuras do sonho, oscilam também em torno de
limiares altos e baixos de conversação e as mudanças sexuais do
amor. “Como agrada ao homem”, diz Aragon, “manter-se na soleira
da imaginação!” (Paysan de Paris, Paris, 1926, p. 74) Não é apenas
dos limiares destas portas fantásticas, mas dos limiares em geral que
os amantes, os amigos, adoram sugar as forças. As prostitutas,
porém, amam os limiares das portas do sonho. – O limiar [Schwelle]
deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é
uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra
schwellen (inchar, entumecer), e a etimologia não deve negligenciar
estes significados. Por outro lado, é necessário determinar o contexto
tectônico e cerimonial imediato que deu à palavra o seu significado.
Morada de sonho.95
Jeanne Marie Gagnebin destaca problemas relacionados à tradução da obra,
tanto para o português quanto para o francês, no que diz respeito ao trecho final da
citação, quando Benjamin distingue o conceito de “limiar” [Schwelle] e de “fronteira”
93
Uma obra que mostra com clareza essa relação é O espírito da roupas, de Gilda de Mello e Souza,
escrita em 1950 e publicada pela Companhia das letras em 1987.
94
Truman Capote viajou neste navio em 1949 com Jack Dunphy, poucos meses após terem se
conhecido. Coincide com a data estimada de escrita da obra Summer Crossing, logo após o
lançamento de Other Voices, other Rooms (Cf. CLARKE. As cartas de Truman Capote, p. 89).
95
BENJAMIN. Passagens, p. 535.
47
[Grenze]. Em sua análise, a autora elenca sentidos para o termo Grenze: “metáfora
essencial para tentar designar uma dupla operação de espírito e de linguagem:
desenhar um traço ao redor de algo para lhe dar forma bem definida”; definir limites:
contornos e “limitações” de seu domínio, “evitando seu transbordar”; “proibir
ultrapassagens perigosas ou falsas transcendências”; no campo jurídico:
“delimitação territorial”, que, quando ultrapassado sem “acordo prévio ou controle
regrado”, indica “transgressão”.96
Já o termo Schwelle: “limiar, soleira, umbral, seuil, pertence igualmente ao
domínio de metáforas espaciais que designam operações intelectuais e espirituais”,
mas sob o “registro do movimento”, “ultrapassagem”, “passagens”, “transições”; na
arquitetura: “função de transição”, distingue, “mas permite a transição” entre “dois
territórios”; “pertence à ordem do espaço, mas também, essencialmente, à do
tempo”; “é uma zona”, “às vezes não estritamente definida” como a fronteira, mas
“lembra fluxos e contrafluxos, viagens e desejos”.97
Na modernidade, a percepção do tempo se torna diferente para o ser humano.
A superexposição às novidades frequentes e ininterruptas do capitalismo alterou a
percepção humana e a sua noção do tempo, ficando “mais curto” “sob o véu da
novidade”: “o resultado dessa contração é um embotamento drástico da percepção
dos ritmos diferenciados de transição, tanto do ponto de vista sensorial como no que
diz respeito à experiência espiritual e intelectual. As transições devem ser
encurtadas ao máximo para não se “perder tempo”.98 A autora também aponta três
tipos de ritos de passagem, citando a distinção de Van Gennep:
[…] os de separação, aos quais pertencem a maior parte dos ritos
funerários; os de agregação, que constituem a passagem de uma
pessoa de um grupo a outro através, por exemplo, do casamento; e
os ritos de “margem”, ou, dirá um antropólogo posterior, Victor
Turner, de limiar. Esses ritos de limiar designam rituais ligados a
períodos de transformação. Ainda que sejam marginais com relação
aos estados mais longos, tais períodos são essenciais, porque
permitem atravessar um limiar, deixar um território estável e penetrar
num outro; são ligados à puberdade e também ao nascer e ao
morrer, como diz Benjamin.99
O rito de passagem é um tema basilar presente na estrutura narrativa de
96
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São
Paulo: Editora 34, 2014, p. 35.
97
GAGNEBIN. Limiar, aura e rememoração, p. 36.
98
GAGNEBIN. Limiar, aura e rememoração, p. 38.
99
GAGNEBIN. Limiar, aura e rememoração, p. 38-39.
48
Summer Crossing e de Breakfast at Tiffany’s. A linguagem cinematográfica, 100
imagética e acelerada das duas narrativas, expõe o desnorteamento das
personagens diante da impossibilidade de trânsito existencial natural e orgânico.
Esse trânsito, visto como passagem e lugar do limiar, vai ser confuso, doloroso e
levar a consequências drásticas: no caso de Grady, o suicídio; e no caso de Holly, o
desaparecimento. Nenhuma das personagens saberá lidar com o limiar, o lugar de
passagem. Não há trânsito entre a adolescência e a vida adulta. No caso de Holly,
não houve trânsito também entre a infância e a adolescência, como será
demonstrado mais à frente.
O século XX é marcado por uma juventude que vai aos poucos recusando as
tradições familiares a que sempre fora submetida. Em Summer Crossing, a
passagem de Lucy para a adolescência ocorre por meio das tradições. Ela vai ser
levada pela mãe a se casar com um homem “socially Unknown”,101 já nos seus 20 e
tantos anos, mas considerado promissor por ser um investidor de Wall Street. A
família de Lucy pertencia a uma classe social alta, por isso esse seria um requisito
necessário, mas, diante da ausência de homens devido à Primeira Guerra Mundial,
sua mãe e sua avó acabam se decidindo pelo melhor que havia disponível,
ressaltando que o pretendente “cast over Wall Street an ever enlarging shadow, and
so was considered a catch, if not in the circle of angels, then by those of a but slightly
lower stratum”. 102 A expressão “circle of angels”, para classificar os mais ricos
pertencentes a classes sociais altas, traz severo contraponto para evidenciar que
Lamont McNeil pertencia aos “novos ricos”, aqueles que viriam a enriquecer por
meios até então não usuais, ligados diretamente à modernização das cidades e
também aos anos da guerra.
Após o casamento, Lucy tem duas filhas, Apple e Grady, e tenta conduzir as
suas vidas em sociedade como sua avó e mãe fizeram consigo mesma. Ela as
100
Marcel Martin considera o cinema como uma “linguagem” dotada de “inúmeros processos de
expressão”, ressaltando também o aspecto controverso dessa afirmação. O autor cita Jean Cocteau:
“um filme é uma escrita em imagens”; e Alexandre Arnaux: “o cinema é uma linguagem de imagens
com o seu vocabulário próprio, a sua sintaxe, flexões, convenções, gramática”. Além da técnica que
envolve o conceito, Martin cita a estética que permeia a questão poética que envolve as obras
cinematográficas. A imagem é o elemento de base dessa linguagem, que é também considerada uma
arte (MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução de Paulo Neves. São Paulo:
Brasiliense, 2013. p. 2).
101
“socialmente desconhecido” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 9).
102
“exercia uma influência em Wall Street cada vez maior, e então era considerado um bom partido,
se não entre os mais ricos, pelo menos por aqueles de condição ligeiramente mais baixa” (CAPOTE.
Summer Crossing, p. 9).
49
mantém neste “circle of angels” por meio de muitas ações sociais, desde trabalhos
com a Cruz Vermelha, o bairro Harlem, a igreja eo Partido Republicano, além de
envolvê-las em disputas e tramas sociais. Apple, a mais velha, se deixa levar por
todas as tradições. Quando chega a idade do debut de Apple, Lucy não pôde
promover a grande festa do rito de passagem que desejava; já Grady se recusa a
tradição:
[…] she had waited for Apple: the mother of a top flight debutante has
at her hands a social version of atomic revenge; but then she was
cheated out of it, for there was the new war, and the poor taste of a
debut in wartime would have been excessive: they had instead given
an ambulance to England. And now Grady was trying to cheat her,
too. Her hands twitted on the table, flew to the lapel of her suit,
plucked at a brooch of cinnamon diamonds: it was too much, Grady
had tried always to cheat her, just simply by not having been born a
boy. She’d named her Grady anyway [Grady was the name of his
brother killed in the war], and poor Mrs. LaTrotta [her mother], then in
the last exasperated year of her life, had roused herself sufficiently to
declare Lucy morbid. But Grady had never been Grady, not the child
she wanted. And it was not that in this matter Grady wanted to be
ideal: Apple, with her pretty playful ways and aided by Lucy’s sense
of style, would have been an assured success, but Grady, who, for
one thing, seemed not popular with young people, was a gambling
chance. If she refused to cooperate, failure was certain. “There will be
a debut, Grady McNeil,” she said, stretching her gloves. “You will
wear white silk and carry a bouquet of green orchids: it will catch a
little the color of your eyes and your red hair. And we will have that
orchestra the Bells had for Harriet. I warn you now, Grady, if you
behave rottenly about this I shall never speak to you again”.103
A narrativa de Capote expõe as amarrações sociais que vão sendo
transmitidas pelas gerações. São laços invisíveis, cheios de conexões
interdependentes que se sustêm por meio de uma espécie de medo do não
103
“ela havia esperado pela Apple: a mãe de uma debutante de primeira linha tem em suas mãos
uma versão social da bomba atômica como vingança; mas então ela foi enganada, pois havia a nova
guerra, e o mau gosto de um debute em tempo de guerra teria sido excessivo: em vez disso, eles
deram uma ambulância para a Inglaterra. E agora Grady estava tentando enganá-la também. Com as
mãos entrelaçadas na mesa, voou até a lapela de seu terno, puxou um broche de diamantes cor de
canela: era demais, Grady tentara sempre enganá-la, simplesmente por não ter nascido menino. Ela
a chamou de Grady de qualquer maneira [Grady era o nome de seu irmão morto na guerra], e a
pobre Sra. LaTrotta [sua mãe], então no último ano exasperado de sua vida, despertou o suficiente
para declarar Lucy mórbida. Mas Grady nunca havia sido Grady, não a criança que ela queria. E não
era que, nessa questão, Grady quisesse ser o ideal: Apple, com seus juvenis modos encantadores e
auxiliada pelo senso de estilo de Lucy, teria sido um sucesso garantido, mas Grady, que, por um lado,
não parecia ser popular entre os jovens, tinha poucas chances de barganha. Se ela se recusasse a
cooperar, o fracasso era certo. ‘Haverá um debut, Grady McNeil’, disse ela, esticando as luvas. ‘Você
vai usar seda branca e levar um buquê de orquídeas verdes: vai pegar um pouco a cor dos seus
olhos e seu cabelo ruivo. E teremos a orquestra que os Bells tinham para Harriet. Eu te aviso agora,
Grady, se você se comportar mal sobre isso, nunca mais falarei com você’” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 11-12).
50
“pertencimento”. Em Lucy está o desespero de ver a filha mais jovem fugir
completamente ao que se esperava: além de ter nascido mulher, contrariando as
expectativas da mãe de ter um filho homem, Grady não queria cooperar com os
planejamentos sociais desenhados para o seu futuro. O seu posicionamento frente à
sociedade depende também de como seus descendentes se comportam. Lucy
deseja desesperadamente fazer o papel que lhe é atribuído como mãe e socialite. Já
Grady fica alheia a tudo isso, nem mesmo briga frente ao que a mãe diz. Sabe
apenas que não vai fazer o que ela pretende.
São fantasmagorias sociais que envolvem as pessoas fazendo com que
transformem suas vidas em passos que precisam ser seguidos. Isso está refletido
em todos os objetos à nossa volta. São objetos que carregam em si algo imaterial,
algo que foge à sua estrita função de uso prático, como, por exemplo, a obrigação
de que o vestido da debutante seja em seda branca, e, no caso de pessoas da alta
sociedade, que seja da alta-costura, e o buquê seja verde:
It is about the dress, dear. I think I may as well have it made in Paris:
Dior104 or Fath,105 someone like that. It might even be less expensive
in the long run. A soft leaf green would be heaven, especially with
your coloring and hair – though I must say I wish you wouldn’t cut it
so short: it seems unsuitable and not – not quite feminine. A pity
debutantes can’t wear green. Now I think something in white
watered106 silk.107
104
“Christian Dior (1905-0957). Estilista francês, estudou ciências políticas, música, dirigiu uma
galeria de arte. A partir de 1935, passou a vender croquis de moda para jornais, depois trabalhou nas
MaisonsPiguet, Lelong e Balmain, quando Marcel Boussac, um magnata da indústria têxtil de
algodão, ajudou-o a abrir sua própria maison de alta costura. A sua primeira coleção foi lançada em
1947, chamada Linha colora, e é conhecida até os dias de hoje como ‘New look’”. (O’HARA,
Georgina. Enciclopédia da moda: de 1840 à década de 80. Tradução de Glória Maria de Mello
Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 100). Dior trabalhava suas coleções sazonais
com alterações críticas que faziam com que o sistema da moda se acelerasse fortemente. As clientes
passavam a desejar as mudanças propostas para demonstrar modernidade. A ditadura da moda se
firmava. O estilista estabeleceu uma estética altamente feminina, justo no momento pós-guerra,
quando as mulheres adquiriam autonomia e liberdade, tanto no vestir quanto socialmente. Nos dias
atuais, alguns nichos feministas percebem essa intervenção estética de forma pessimista, pois, de
certa maneira, Dior trouxe à superfície do desejo feminino um retorno ao ideal de mulher do século
XIX, inclusive trazendo de volta a silhueta ampulheta.
105
“Jacques Fath (1912-1954). Estilista francês, trabalhou como guarda-livros e corretor da bolsa de
valores em Paris, prestou serviço militar e estudou por vários anos desenho de moda. ‘De certo modo
um herói não louvado da moda, antecipou em 1939 o estilo de vestir que, em 1947, ficou conhecido
como New look’” (O’HARA. Enciclopédia da moda, p. 100). É perceptível que Capote associa os dois
estilistas num mesmo contexto, os dois que têm semelhanças de estilo, sendo que Dior obteve maior
reconhecimento.
106
É um efeito ondulado produzido em tecidos, como seda e algodão, por meio de métodos de
acabamento e polimento na fabricação.
107
“É sobre o vestido, querida. Acho que posso muito bem mandar fazer em Paris: Dior ou Fath,
alguém assim. Pode até ser menos caro a longo prazo. Um verde-folha suave seria o paraíso,
51
Há um código do vestir e do agir que envolve as situações sociais, tanto para
o universo feminino quanto para o masculino, sendo que para o feminino há mais
regras restritivas e um maior rebuscamento.
A narrativa tem um ritmo conduzido por momentos de pura entrega às
observações da cidade edo ambiente, alémde um ritmo acelerado no que condiz
com os acontecimentos, contados na voz um narrador onisciente que não tem
representação em nenhuma das personagens. O narrador observa as ações, faz
julgamentos e conduz o leitor.
A viagem da família tem como motivo visitar a casa em Cannes, abandonada
desde o início da guerra, além de fazer compras e fugir do calor do verão de Nova
Iorque, como toda família rica fazia:
Toward midafternoon, as the heat closed in like a hand over a murder
victim’s mouth, the city thrashed and twisted but, with its outcry
muffled, its hurry hampered, its ambitions hindered, it was like a dry
fountain, some useless monument, and so sank into a coma. The
steaming willow-limp stretches of Central Park were like a battlefield
where many have fallen: rows of exhausted casualties lay crumpled
in the dead-still shade, while newspaper photographers, documenting
the disaster, moved sepulchrally among them. In the cat house at the
zoo, the suffering lions roared.108
Como foi dito anteriormente, na alegoria da “modernidade como
fantasmagoria”, descrita assim por Bretas sobre o pensamento de Benjamin, um dos
pilares importantes são “os antropomorfismos do capital como ‘segunda natureza’”.
No caso da escrita capotiana, tanto em Summer Crossing quanto em Breakfast at
Tiffany’s, a cidade de Nova Iorque, como um símbolo da modernidade no século XX,
é antropomorfizada.
O calor é o assassino e a cidade é a vítima, que “se debatia e se contorcia”,
sinalizando as sensações e sentimentos humanos da pressa e das frustrações, que,
incapaz de reagir, entra “em estado de coma”. O Central Park é um campo de
especialmente com sua coloração de pele e cabelo – embora eu deva dizer que gostaria que você
não o cortasse tão curto: parece inadequado e não – não muito feminino. Pena que debutantes não
podem usar verde. Agora, eu acho que algo em seda moiré branca” (CAPOTE. Summer Crossing, p.
7).
108
“No meio da tarde, enquanto o calor se fechava como uma mão sobre a boca de uma vítima de
assassinato, a cidade se debatia e torcia, mas com seu grito abafado, a pressa impedida, suas
ambições frustradas, era como uma fonte seca, algum monumento inútil, e assim afundou em coma.
Os trechos fumegantes de salgueiros do Central Park eram como um campo de batalha onde muitos
caíam: filas de vítimas exaustas deitavam-se amassadas na sombra morta, enquanto os fotógrafos de
jornal, documentando o desastre, moviam-se sepulcralmente entre eles. Na casa dos felinos no
zoológico, os leões sofredores rugiram” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 96).
52
batalha, filas de vítimas se amontoam sob as sombras. A cidade grita e o grito é
“abafado”, sua pressa é “impedida”, suas ambições são “frustradas”. A cidade é
personificada e corporifica as emoções e sensações dos cidadãos. A cidade é um
ser mitológico, é um monstro, é, nas descrições de Capote, metamorfoseada em mil
formas:
Hot weather opens the skull of a city, exposing its white brain, and its
heart of nerves, which sizzle like the wires inside a lightbulb. And
there exudes a sour extra-human smell that makes the very stone
seem flesh-alive, webbed and pulsing. It wasn’t that Grady was
unfamiliar with the kind of accelerated desperation a city can conjure,
for on Broadway she’d seen all the elements of it. Only there it was
something she’d known vicariously, and she had not, as it were,
taken part. But now for her there was nowhere an exit: she was a
member.109
A cidade tem cérebro, coração e nervos, e ainda um cheiro peculiar, extra-
humano. Grady se sente completamente tomada por essas sensações. A criação do
mito da cidade antropomórfica por Capote parece pretender intensificar o
desnorteamento de Grady. Ela se deixa levar pelo fluxo dos acontecimentos, pela
paixão por Clyde e também pela emoção de ir contra as regras do aparente jogo da
sociedade. Esse desespero se relaciona intimamente com a pressa de querer fazer
as coisas e com a impossibilidade de fazê-las acontecer.
A metáfora do corpo morto aparece aqui, como a também já citada metáfora
do corpo doente, que entra em coma frente ao calor. Os jornais, com suas notícias
cheias de desastres, trazem para a população um peso do destino e o desejo de ler
sobre a desgraça que acontece ao lado:
It was wilting out on Lexington Avenue, and especially so since they’d
just left an air-conditioned theater; with every step heat’s stale breath
yawned in their faces. Starless nightfall sky had closed down like a
coffin lid, and the avenue, with its newsstands of disaster and
flickering fly-buzz sounds of neon, seemed an elongated, stagnant
corpse. The pavement was wet with a rain of electric color;
passersby, stained by these humid glares, changed color with
chameleon alacrity: Grady’s lips turned green, then purple. Murder!
Their faces hidden behind tabloid masks, a group, steaming under a
109
“O clima quente abre o crânio de uma cidade, expondo seu cérebro branco e seu coração de
nervos, que chiam como os fios dentro de uma lâmpada. E exala um cheiro azedo extra-humano que
faz com que a própria pedra pareça carne viva, palmada e pulsante. Não que Grady estivesse
familiarizada com o tipo de desespero acelerado que uma cidade pode conjurar, pois, na Broadway
ela tinha visto todos os elementos disto. Só que lá era algo que ela conhecia indiretamente e, por
assim dizer, não participara. Mas agora para ela não havia saída: ela era um membro” (CAPOTE.
Summer Crossing, p. 78-79).
53
streetlamp and waiting for a bus, gazed into the printed eyes of a
youthful killer. Clyde bought a paper, too.110
As pessoas se deleitam em ver a desgraça alheia, o que parece aplacar um
pouco os próprios infortúnios. As frustrações se projetam em vícios e neuroses. O
narrador onisciente nos coloca em contato com as intimidades das personagens,
nos leva ao seu pensamento, expondo as angústias e suas formas de lidar com isso.
Restless ants of energy, scrambling in his muscles, stung him into a
need for action. He was fed up: with himself, and with Grady’s
pensive brooding, which depressed him in much the same way as did
the long-sorrow sessions at which his mother was so capable. As an
adolescent he’d had a compulsion to steal, for the dangers involved
had been his most effective way of retaliating against boredom; in the
army, and for rather similar reasons, he’d once stolen an electric
razor. He felt an impulse to do something of the sort now.111
Capote afirmou que sua escrita e a dos escritores de sua época eram
fortemente influenciadas pela linguagem cinematográfica, isso fica bastante visível
em vários trechos das obras. No trecho do roubo, o narrador descreve:
A curious tension thinned his face; because of it, she did not ask him
why he wanted her to wait there. Her view of him was confined to
glimpses grabbed between bursts of traffic; presently she caught
sight of him revolving around the fruit and flower store. [...] A roar
from underground echoed through her, for she was standing on top of
a subway grating: deep in the hollows below she could hear a
screeching of iron wheels, and then, nearer by, there came a fiercer
noise: car-horns clashed, fenders bumped, tires careened! and she
whirled around to see a driver cursing at Clyde, who was jayhopping
across the street as fast as his legs would go.112
110
“Estavam murchando na Lexington Avenue, e especialmente porque eles tinham acabado de sair
de um teatro com ar condicionado; a cada passo a respiração rançosa do calor bocejava em suas
faces. O céu noturno sem estrelas tinha fechado como uma tampa de caixão, e a avenida, com suas
bancas de jornal de desastres e sons de neon vibrantes, parecia um cadáver alongado e estagnado.
A calçada estava molhada com uma chuva de cores elétricas; os passantes, manchados por esses
brilhos úmidos, mudavam de cor com a alacridade de camaleões: os lábios de Grady ficaram verdes,
depois roxos. Assassinato! Com seus rostos escondidos atrás de máscaras dos tabloides, um grupo,
que fumegava sob um poste de luz à espera de um ônibus, contemplava os olhos impressos de um
jovem matador. Clyde também comprou um jornal” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 78).
111
“Um formigamento inquieto de energia, lutando em seus músculos, levou-o a uma necessidade de
ação. Ele estava cansado: consigo mesmo, e com a cisma pensativa de Grady, que o deprimia da
mesma forma que as longas sessões de tristeza em que sua mãe era capaz. Quando adolescente,
ele tinha a compulsão de roubar, pois os perigos envolvidos tinham sido sua maneira mais eficaz de
retaliar o tédio; no exército, e por razões bastante semelhantes, ele roubou uma navalha elétrica. Ele
sentiu um impulso para fazer algo do tipo agora” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 77).
112
“Uma curiosa tensão afinava seu rosto; por causa disso, ela não lhe perguntou por que ele queria
que ela esperasse lá. A visão que tinha dele limitava-se a lampejos divisados entre explosões de
tráfego; então ela o viu rondando em volta do quiosque de frutas e flores. [...] Um rugido vindo de
dentro da terra ecoou através dela, pois ela estava em pé em cima de um duto de ventilação do
54
Quando em seguida Clyde pega sua mão, eles correm pela rua lateral e
param ofegantes a uma boa distância da loja onde ocorreu o roubo, ele lhe entrega
um buquê de violetas: ela sabia que eram roubadas. Esse parece ter sido o pedido
de casamento, pois os namorados foram até Red Bank, em Nova Jersey, e “they
were married there around two o’clock in the morning”.113
Um rito de passagem tradicional é aceito pelos jovens, mas como forma
rebelde de união, sabendo que seus familiares se oporiam. Um casamento às
escondidas e proibido, pois, além de Clyde ser noivo de uma garota judia, Grady não
teria jamais permissão de seus familiares para se casar com alguém como Clyde.
Grady define o casamento como “a problem for a grown-up: marriages
happened far ahead when life grey and earnest began, and her own life she was
sure had not started”,114 “Does one always have to want to marry? I’m sure there are
kinds of love in which that is hardly an issue”.115
O comportamento transgressor é enfatizado na composição da personagem,
seja por meio de ações na narrativa, seja por meio da expressão de suas ideias.
Ainda muito jovem, Grady arriscou a sair do “circle of angels”, no qual sua família
estava instaurada, como foi mencionado anteriormente. Ela já se sentia uma
outsider, seja pelo desprezo controlado que sua mãe lhe impingia, seja pelas suas
características físicas, como será exposto mais adiante.
Dentre os extravios e transgressões está a fuga para ver filmes que
escapavam à censura da alta sociedade:
Broadway is a street; it is also a neighborhood, an atmosphere. From
the time she was thirteen, and during all those winters at Miss
Risdale’s classes, Grady had made, even if it meant skipping school,
as it often did, secret and weekly expeditions into this atmosphere,
the attraction at first being band-shows at the Paramount, the Strand,
curious movies that never played the theaters east of Fifth or in
metrô: no fundo das cavidades abaixo, ela podia ouvir um guincho de rodas de ferro, e então, vindo
de mais perto, houve um barulho mais violento: buzinas dos carros soaram, para-choques bateram,
pneus cantaram! E ela se virou para ver um motorista xingando Clyde, que atravessava a rua tão
depressa quanto suas pernas conseguiam levá-lo” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 79-80).
113
“eles se casaram por volta das duas da manhã” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 80-81).
114
“problema de gente adulta: casamentos aconteciam muito mais adiante quando a vida cinza e
sisuda começava, e ela estava certa de que a sua própria vida não tinha começado” (CAPOTE.
Summer Crossing, p. 68).
115
“Todo mundo tem que querer se casar? Tenho certeza de que existem tipos de amor onde isso
sequer tem importância” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 55).
55
Stamford and Greenwich.116
Grady se sentia atraída por filmes censurados para sua classe social. A
narrativa evidencia haver uma seleção de filmes na Broadway que nunca estariam
nos cinemas a leste da Quinta Avenida e outras regiões mais tradicionais. No
terceiro capítulo desta tese, a questão da censura será abordada com maior
profundidade, visto que é um aspecto importante para compreender a fantasmagoria
sociocultural presente na produção audiovisual da década de 1960.
Ainda como forma de transgressão, Grady perambula pela cidade nas partes
onde não será reconhecida, longe de sua residência. A flânerie é estimulada pela
atmosfera fantasmagórica da cidade, lembrando um tema muito caro a Walter
Benjamin:
O flâneur procura refúgio na multidão. A multidão é o véu através do
qual a cidade familiar se transforma, para o flâneur, em
fantasmagoria. Essa fantasmagoria, em que a cidade aparece ora
como paisagem, ora como aposento, parece ter inspirado a
decoração das lojas de departamentos que põem, assim, a própria
flânerie a serviço de seus negócios.119
A flânerie lhe trazia muitos prazeres, dentre eles sentir-se anônima em meio à
multidão, poder apenas observar os “tipos” sociais e também perceber que havia
intimamente outra figura em si, além da sua fantasmagórica figura social:
In the last year, however, she had liked only to walk around or stand
on street-corners with crowds moving about her. She would stay all
afternoon and sometimes until it was dark. But it was never dark
there: the lights that had been running all day grew yellow at dusk,
white at night, and the faces, those dream-trapped faces, revealed
their most to her then. Anonymity was part of the pleasure, but while
she was no longer Grady McNeil, she did not know who it was that
replaced her, and the tallest fires of her excitement burned with a fuel
she could not name.121
116
“Broadway é uma rua; é também um bairro, uma atmosfera. Desde os 13 anos, e durante todos os
invernos, nas aulas da Srta. Risdale, Grady tinha feito, mesmo que isso significasse faltar à escola,
como sempre fazia, expedições secretas e semanais nessa atmosfera, a atração em primeiro lugar
eram shows de bandas da Paramount, o Strand, filmes curiosos que nunca passaram nos cinemas ao
leste da Quinta Avenida ou em Stamford e Greenwich” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 24).
119
BENJAMIN. Passagens, p. 61.
121
“No último ano, porém, ela só gostava de andar por aí ou ficar parada nas esquinas com multidões
se movendo ao seu redor. Ela podia ficar a tarde toda e às vezes até escurecer. Mas ali nunca
escurecia: as luzes que haviam passado o dia inteiro acesas se tornavam amarelas ao anoitecer,
brancas à noite, e os rostos, aqueles rostos presos em sonhos, lhe revelavam o máximo sobre si. O
anonimato fazia parte do prazer, mas enquanto ela não era mais Grady McNeil, não sabia quem a
substituía, e as fogueiras mais altas de sua excitação ardiam com um combustível que ela não
conseguia identificar” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 24-25).
56
A passagem de luzes naturais diurnas para as luzes artificiais noturnas é
fantasmagórica em seu sentido físico, pela distorção que promove, e também em
seu sentido abstrato, por iluminar aquilo que não está aparente e também distorcer o
real: as pessoas ensimesmadas ao cair do dia e seus “rostos presos em sonhos”
são aparições fantasmagóricas. Grady também gostava de se sentir outra pessoa
além daquela formulada por meio de suas redes sociais, ou simplesmente de seu
anonimato, naquele ambiente no qual não importava quem estivesse parado ou
circulando. Ninguém tinha interesse pela vida alheia, e ela podia passar
despercebida; se alguém a notava, ela não era conhecida. As mudanças na
iluminação parecem ressaltar essas figuras fugidias e o prazer de se camuflar em
meio à multidão.
Na obra Passagens, Benjamin traz um fragmento sobre a iluminação e sua
relação com as épocas históricas:
[…] “cada época histórica está imersa em uma determinada
iluminação diurna ou noturna; este mundo, pela primeira vez,
recebeu uma iluminação artificial: ela consiste na iluminação a gás,
que já iluminava Londres nos dias em que a estrela de Napoleão
começou a declinar, entrou em Paris quase na mesma época que os
Bourbons e, finalmente, conquistou com um avanço lento e tenaz
todas as ruas e locais públicos. Por volta de 1840 havia iluminação
por toda parte, até mesmo em Viena. Nesta luz clara e triste, intensa
e vacilante, prosaica e fantasmagórica, movimentam-se grandes
insetos laboriosos, os vendedores.” Egon Friedell, Kulturgeschichte
der Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p. 86.122
No trecho recortado por Benjamin também há a antropomorfização dos
vendedores em insetos. A iluminação também permitiu que as pessoas saíssem à
noite com mais frequência e usassem o espaço público para convivência. A
iluminação é um aspecto fundante da fantasmagoria, pois é por meio das sombras
que ela surge, da manipulação daquilo que pode ser visto e também do que pode
estar oculto e que trabalha com o imaginário humano. A flâneur de Capote mantém
essa identidade escondida:
She never mentioned it to anyone, those pearl-eyed perfumed
Negroes, those men, silk- or sailor-shirted, toughs or pale-toothed
and lavender-suited, those men that watched, smiled, followed: which
way are you going? Some faces, like the lady who changed money at
Nick’s Amusements, are faces that belong nowhere, are green
shadows under green eyeshades, evening effigies embalmed and
122
BENJAMIN. Passagens, p. 607-608.
57
floating in the caramel-sweet air. Hurry. Doorway megaphones,
frenziedly hurling into the glare sad roars of rhythm, accelerate the
senses to collapse: run – out of the white into the real, the sexless,
the jazzless, the joyful dark: these infatuating terrors she had told to
no one.123
São várias as alegorias usadas por Capote para retratar as personagens reais
do cotidiano de uma grande metrópole: rostos sem lugar; sombras verdes; efígies
fantasmagóricas; estereótipos, como os negros de olhos perolados e camisas de
seda ou de marinheiro. Essas figuras surgem como aparições fantasmagóricas no
meio da multidão. Ao mesmo tempo em que Grady procura definir os “tipos” em seu
encantamento com a atmosfera fantasmagórica, ela também tem dificuldade em
discernir o que era real. A última frase do excerto parece mostrar o embaraço no
qual vivia a personagem: o desejo de ser livre das restrições sociais que a impediam
de fazer o que quisesse de sua vida. Num jogo de luz e sombra, “run – out of the
white into the real, the sexless, the jazzless, the joyful dark”, Capote expõe o limiar
entre as experiências vividas por Grady na flânerie pelo mundo paralelo da cultura
nova-iorquina e a vida contida do seu “circle of angels”. Para isso mobiliza todos os
sentidos do leitor por meio da linguagem ficcional: o faz sentir cheiros, ver imagens
conturbadas, ouvir sons.
Como não lembrar as fisiologias de Baudelaire na análise desse trecho de
Summer Crossing? Os “tipos” estereotipados, que também são anônimos e são
muitos, parecem retirados de fantasias narradas em romances, de filmes fabulosos,
que figuram no imaginário de Grady, e da vida real. A cidade e suas visões
fantasmagóricas a aterrorizavam e a encantavam, com imagens ritmadas que a
levam a uma espécie de observação alienada.
2.1.2 Breakfast at Tiffany’s
Breakfast at Tiffany’s começa já situando a narrativa nos anos da Segunda
Guerra Mundial:
123
“Ela nunca mencionou aquilo para ninguém, aqueles negros perfumados de olhos perolados,
aqueles homens, com camisas de seda ou de marinheiro, durões ou de dentes claros e ternos lilases,
aqueles homens que olhavam, sorriam, seguiam: em que direção está indo? Alguns rostos, como o
da senhora que troca dinheiro na Loja de Diversões de Nick, são rostos que não pertencem a lugar
nenhum, são sombras verdes sob óculos verdes, efígies noturnas embalsamadas e flutuando no ar
doce de caramelo. Depressa. Megafones nas portas, lançando freneticamente para o brilho da rua
tristes rugidos ritmados, acelerando os sentidos para o colapso: corra – fora da branquitude dentro da
real alegria sombria, assexuada, sem jazz: sobre esses terrores que a dominavam ela não havia
contado a ninguém” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 25).
58
I AM ALWAYS DRAWN BACK to places where I have lived, the
houses and their neighborhoods. For instance, there is a brownstone
in the East Seventies where, during the early years of the war, I had
my first New York apartment. It was one room crowded with attic
furniture, a sofa and fat chairs upholstered in that itchy, particular red
velvet that one associates with hot days on a train.124
O narrador-personagem, que não tem o nome citado, fala sobre um passado
não determinado e afirma que tudo isso ocorreu há muito tempo, mas na época não
parecera tema para a escrita de um livro. Assim, ficamos sabendo que estamos
lendo uma história da qual o narrador, um escritor que, até então, não havia
publicado nada, fez parte, e que é ele quem escreve sobre a vida de Holly Golightly,
uma vizinha e amiga.
Ela morava no apartamento logo abaixo do seu, e eles costumavam ir muito,
“six, seven times a day”,125 ao bar do Joe Bell para usar o telefone, pois “during the
war a private telephone was hard to come by”.126 Joe anotava recados e isso para
Holly era muito bom, pois ela recebia muitos telefonemas, provavelmente já
antecipando que muitos homens a procuravam para fazer programas.
A prostituta127 de Capote não tem o aspecto esperado de uma prostituta “de
verdade”, para usar uma expressão de seu apreço. Ela é identificada por indícios,
124
“Eu sempre volto aos lugares em que vivi, às casas e à vizinhança. Por exemplo, costumo voltar a
um prédio de tijolos na altura da East 70’s, no lado leste da cidade, onde, nos primeiros anos da
guerra, tive meu primeiro apartamento em Nova Iorque. Era um cômodo apinhado de móveis velhos,
um sofá e poltronas gorduchas estofadas com aquele pinicante específico veludo vermelho, que faz
lembrar dias quentes num vagão de trem” (CAPOTE, Truman. Breakfast at Tiffany’s: a short novel and
three stories (Vintage International). New York: Vintage books, Random House, 2012. E-book. p. 3).
125
“seis, sete vezes ao dia” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 3).
126
“durante a guerra era difícil conseguir um telefone particular” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p.
4).
127
Desde a década de 1970, com o avanço das micropolíticas, as prostitutas estão em busca de
reconhecimento político e social, por meio de associações, e de reconhecimento no âmbito do
feminismo. Suas pautas articulam para que elas sejam vistas “como capazes de autodeterminação e
de escolha pela inserção na prostituição”. (BARRETO, Letícia Cardoso. SOMOS SUJEITAS
POLÍTICAS DE NOSSA PRÓPRIA HISTÓRIA: Prostituição e feminismos em Belo Horizonte. 2015.
261 f. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em:
Acesso em: 30 Jun. 2019. p. 11) A prostituição pode ser definida basicamente como atividade
exercida por homens e mulheres com diferentes parceiros (clientes) em que são estabelecidas
relações sexuais em troca de dinheiro (presentes, sustento). A adesão das/dos profissionais do sexo
a essa definição não é tão simples. Por isso, há diversas nomenclaturas associadas à prostituição
que, muitas vezes, visam a atenuar a carga negativa presente no termo: garota ou garoto de
programa, meretriz, messalina, mulher da vida, michê, entre outras. No período da escrita de
Breakfast at Tiffany’s, década de 1940, algumas nomenclaturas usadas, além dessas, eram
associadas à profissão de modelo e de atriz: “playgirl”, “glamour girl”. A própria tradução da obra no
Brasil indica essa relação: Bonequinha de luxo. No conto Singular ocorrência, de Machado de Assis,
a personagem Marocas, que é uma prostituta, é chamada de “Maria de tal”, relacionando o nome
comum Maria à falta de sobrenome, isto é, de “berço”.
59
que vão ficando mais fortes à medida que a narrativa evolui e que conhecemos sua
rotina por meio do narrador. As “mulheres públicas”, como aparece descrito na obra
Passagens, de Walter Benjamin, são capazes de se disfarçar e parecem
multiplicadas ao infinito “por uma espécie de fantasmagoria”. Criada por suas “idas e
vindas”, elas se metamorfoseiam: “uma moça que, às oito horas está com uma
roupa elegante, rica, é a mesma que aparece às nove como costureirinha, e que se
mostra às dez como camponesa, e vice-versa”.128
Holly é amiga de Joe Bell e do narrador, mas, ao mesmo tempo, é uma
estranha que sumiu por aproximadamente 12 anos, desde a Segunda Guerra
Mundial, quando os fatos narrados no romance aconteceram, em 1943. No decorrer
da narrativa, ficam evidentes as fantasmagorias: Holly mente muito sobre sua vida,
inventa versões, projeta personas para si própria de acordo com a conveniência.
Além disso, ela também pode ser vista como uma projeção do narrador-personagem:
uma fantasmagoria que lhe é atribuída pelo autor e, de toda forma, uma
fantasmagoria também do próprio autor.
Holly Golightly é uma fantasmagoria de si mesma, garota do interior que quer
“ganhar a vida” na cidade grande, sendo que este nem é o nome verdadeiro da
personagem: uma fantasmagoria de si mesma inventada para poder se encaixar aos
moldes sociais convencionados. Ela é também uma fantasmagoria de muitas
mulheres que desejavam viver para além do casamento, que até a geração anterior
era o destino de todas as mulheres “de bem”. Essas jovens eram seduzidas pelas
possibilidades de sucesso nas carreiras de modelo e atriz, desejavam tornar-se
celebridades, socialites. A moda e toda sua carga fantasmagórica colaborou para a
sedução dessas mulheres que viam nas roupas, joias e todo o aparato de beleza
uma forma de expressão pessoal, a possibilidade de se manifestar num mundo
patriarcalista.
O American Dream, como uma fantasmagoria da modernidade e experiência
alienante, permitiu também a produção de muitas figuras sociais fantasmagóricas,
que não estavam apenas (mas também) à mercê das condições sociais. Essas
figuras sociais caminhavam intermitentes entre o que lhes era imposto e o que era
desejo, além disso, eram capazes até mesmo de se prostituírem em busca de
realização pessoal. Como a própria Holly, que não acreditava ser uma prostituta, nas
128
BÉRAUD. Les filles publiques de Paris, p. 51-52 apud BENJAMIN. Passagens, p. 542.
60
palavras de Capote: “a real phony”.
Como mencionado anteriormente, citando Walter Benjamin, as prostitutas
“amam os limiares das portas do sonho”129. O limiar [Schwelle] como passagem,
transição, pertence “ao domínio de metáforas espaciais que designam operações
intelectuais e espirituais” sob o “registro do movimento que também “lembra fluxos e
contrafluxos, viagens e desejos”.130 Para a Holly Golightly a prostituição é esse lugar
de sonho e de trânsito, no qual ela nem assume que está ou apenas finge não estar.
A dissimulação é a forma de lidar com a dor e a solidão desse lugar. O brilho falso
das roupas, das joias e dos perfumes, a alegria fingida da embriaguez. Aprende-se a
ser prostituta e também a negar a prostituição.
Em meio às lembranças do passado, o narrador-personagem começa a
contar a história de Holly e de como se conheceram, sob seu ponto de vista,
ressaltando suas impressões sobre ela e a amizade que desenvolveram.
Inicialmente, ele a descreve como uma garota jovem que mora sozinha e parece ser
uma pessoa livre. Depois, fica perceptível que ela se sentirá subjugada em muitos
aspectos, e que essa liberdade aparente não lhe garante a realização de sonhos,
mas, mesmo assim, Holly não é uma garota ingênua que se deixa enganar.
O narrador conta como a vê antes de conhecerem e se tornarem amigos. É
uma amizade apaixonada, como ele próprio vai definir no romance. Ele a admira
tanto que ela o absorve, ela o envolvia por completo com seu jeito de ser e de
pensar. Ele expõe os motivos que o levaram a escrever sobre ela, ressaltando o
quanto ela não se encaixava nos padrões de uma garota “normal”.
Holly é uma prostituta de luxo que vive das “gorjetas” (os US$50 dólares que
ganha para a toalete) presentes que recebe dos homens com quem sai, numa vida
noturna bem agitada. Passa as noites fora de casa e, quando chega pela manhã,
comumente esquece a chave da portaria e acaba incomodando os vizinhos ao
solicitar a abertura da portaria. Primeiramente incomoda o Sr. Yunioshi, o fotógrafo
da cobertura. Após seus protestos, Holly começa a incomodar o narrador-
personagem, tocando sua campainha, e quando ele abre a portaria ela diz:
“Desculpe, querido, esqueci a chave”. Esse acontecimento parece bem incoerente,
pois ela nunca perde a chave do seu apartamento, assim seria prático anexar uma à
129
BENJAMIN. Passagens, p. 535.
130
GAGNEBIN. Limiar, aura e rememoração, p. 36.
61
outra: a chave sempre perdida da portaria à chave sempre guardada do seu
apartamento. Se esse fato não é uma espécie de “erro de continuidade” de Capote,
pode demonstrar um aspecto que é ressaltado na obra de outras maneiras: Holly é
cheia de artimanhas e usa uma máscara de “bobinha e brejeira” quando quer e
precisa, como, por exemplo, quando responde ao Sr. Yunioshi diante de seus
protestos:
The voice that came back, welling up from the bottom of the stairs,
was silly-young and self-amused. “Oh, darling, I am sorry. I lost the
goddamn key.”
“You cannot go on ringing my bell. You must please, please have
yourself a key made.”
“But I lose them all.”
“I work, I have to sleep,” Mr. Yunioshi shouted. “But always you are
ringing my bell…”
“Oh, don’t be angry, you dear little man: I won’t do it again. And if you
promise not to be angry”– her voice was coming nearer, she was
climbing the stairs – “I might let you take those pictures we
mentioned.”
By now I’d left my bed and opened the door an inch. I could hear Mr.
Yunioshi’s silence: hear, because it was accompanied by an audible
change of breath.
“When?” he said.
The girl laughed. “Sometime,” she answered, slurring the word.
“Any time,” he said, and closed his door.131
Está clara a forma com que ela manipula o fotógrafo com promessas que não
pretende cumprir. Em outro excerto, Holly diz ao narrador, quando enfim se
conhecem pessoalmente, que ele a acha “descarada”, e quando ele nega, ela fica
desapontada: “‘I suppose you think I’m very brazen. Or très fou. Or something.’ ‘Not
at all.’ She seemed disappointed. ‘Yes, you do. Everybody does. I don’t mind. It’s
useful’”.132 A vantagem de ser admitida como descarada está em poder ter liberdade
para fazer o que desejar sem recriminações, além de não precisar justificar as faltas
131
“A voz que respondeu, subindo do fundo do poço da escada, fazia-se de bobinha e divertida. ‘Ah,
meu querido, me desculpe. Perdi a maldita chave’. /‘Você não pode tocar a minha campainha toda
noite. Você deve, por favor, por favor, mande fazer uma nova chave’. / ‘Mas eu perco todas’. / ‘Eu
trabalho, eu preciso dormir’, Sr.Yunioshi gritou. ‘Mas você está sempre tocando a minha campainha...’
/ ‘Ah, não fique com raiva de mim, queridinho: prometo não fazer mais isso. E se você prometer que
não vai ficar com raiva’ – a sua voz se aproximava, ela estava subindo os degraus – ‘eu posso deixar
você tirar aquelas fotos que mencionamos’./ Nessa hora eu deixei a cama e abri a porta uma
polegada. Eu pude ouvir o silêncio do Mr. Yunioshi: ouvir, porque foi acompanhado por uma mudança
audível de respiração. / ‘Quando?’, ele disse. / A garota riu. ‘Algum dia’, ela respondeu, murmurando
as palavras. / ‘Quando quiser’, ele disse, e fechou sua porta” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 11-
12).
132
“‘Eu suponho que você acha que eu sou muito descarada. Ou trèsfou [muito louca]. Ou algo
assim’. ‘Nem um pouco’. Ela pareceu desapontada. ‘Sim, você acha. Todo mundo acha. Eu não me
importo. É útil’" (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 18).
62
para com os sentimentos dos outros, já que tudo é esperado de tal pessoa.
Thomas LaBorie Burns aponta que Capote escreveu muito bem sobre
“aggressively independent girls or young women”,133 e cita Holly Golightly como “the
most well-developed example”,134 qualificando-a como “willful, spontaneous, goofy,
whimsical, and vulnerable, all at once”; 135 dessa forma, o autor ressalta certa
ambiguidade na constituição da personagem. Se compararmos Holly Golightly à
personagem Grady McNeil, de Summer Crossing, as características apontadas por
Burns estavam sendo gestadas na adolescência. De várias formas, Grady se
assemelha a Holly, como sugerimos nesta seção.
Ao ler críticos que escreveram sobre Capote, Burns traz algumas
características importantes para os argumentos desta tese, como o pensamento de
Mark Shorer, identificando uma dicotomia na obra capotiana: “the ‘psychic drama’ on
one hand, and the ‘objective social drama, often fanciful’ on the other”.136 As obras
produzidas nos anos de 1950, como no caso de Breakfast at Tiffany’s, publicada em
1958, tendem à última classificação: “The two 1950s novel, 137 while of slight
importance, show how well the author could handle contrasting moods, invent
unconventional appealing characters, and combine whimsy and fantasy with the
realities of social life”.138
As duas narrativas capotinas analisadas nesta tese exibem essa dicotomia, o
“drama psíquico” e o “drama social objetivo, muitas vezes fantástico”. As duas
personagens principais das narrativas são “personagens atraentes e não
convencionais”, as duas estão lidando com questões existenciais e refletem as
realidades da vida social de seu tempo.
A cidade de Nova Iorque na época da Segunda Guerra Mundial é o cenário
133
“garotas e jovens mulheres agressivamente independentes”.
134
“seu mais bem desenvolvido exemplo”.
135
“determinada, espontânea, ‘maluquete’, caprichosa, e, ao mesmo tempo, vulnerável” (BURNS,
Thomas LaBorie. Truman Capote: Life as fiction/fiction as life. Ilha do Desterro, Florianópolis, n. 30, p.
65-66, 1993, Disponível em: .
Acesso em: 9 nov. 2018, p. 69).
136
“o ‘drama psíquico’, por um lado, e o ‘drama social objetivo, muitas vezes fantástico’, por outro
lado” (SCHORER, Mark. "McCullers and Capote: Basic Patterns", The Critical Present, eds., Nona
Balakian and Charles Simmons (Doubleday, 1963), pp. 88-107 apud BURNS. Truman Capote: Life as
fiction/fiction as life, p. 69).
137
As obras citadas são The Grass harp e Breakfast at Tiffany’s.
138
“Os dois contos dos anos 1950 [A Harpa de ervas e Bonequinha de Luxo], enquanto menos
importantes, mostram o quão bem o autor podia lidar com estados de espírito contrastantes, inventar
personagens atraentes e não convencionais, e combinar capricho e fantasia com as realidades da
vida social” (BURNS. Truman Capote: Life as fiction/fiction as life, p. 70).
63
de Breakfast at Tiffany’s, e as experiências relacionadas à guerra fazem parte da
narrativa. Holly chama o narrador de Fred quando o conhece pessoalmente:
I’m going to help you because you look like my brother Fred. Only
smaller. I haven’t seen him since I was fourteen, that’s when I left
home, and he was already six-feet-two. My other brothers were more
your size, runts. It was the peanut butter that made Fred so tall.
Everybody thought it was dotty, the way he gorged himself on peanut
butter; he didn’t care about anything in this world except horses and
peanut butter. But he wasn’t dotty, just sweet and vague and terribly
slow; he’d been in the eighth grade three years when I ran away.
Poor Fred. I wonder if the Army’s generous with their peanut butter.139
O próprio narrador conta sobre sua experiência com os movimentos da guerra,
os exércitos que corriam pelo mundo: “the army of wrongness”,140 e afirma não
desejar participar dos conflitos. Era o ano de 1943; há menos de dois anos os EUA
estavam na guerra e os efeitos já eram sentidos com a escassez de produtos, o
desemprego e a angústia:
First off, I’d been fired from my job: deservedly, and for an amusing
misdemeanor too complicated to recount here. Also, my draft board
was displaying an uncomfortable interest; and, having so recently
escaped the regimentation of a small town, the idea of entering
another form of disciplined life made me desperate. Between the
uncertainty of my draft status and a lack of specific experience, I
couldn’t seem to find another job. That was what I was doing on a
subway in Brooklyn: returning from a discouraging interview with an
editor of the now defunct newspaper, PM. All this, combined with the
city heat of the summer, had reduced me to a state of nervous
inertia.141
O narrador também busca fugir de regulações em sua vida, como as
existentes em cidades pequenas, onde as pessoas tendem a manter controle sobre
139
“Eu vou ajudar você, porque você se parece com meu irmão Fred. Apenas é mais baixo. Não vejo
Fred desde os meus 14 anos, foi quando eu saí de casa. e ele já tinha 1,80 m. Meus outros irmãos
eram mais do seu tamanho, tampinhas. Foi a manteiga de amendoim que fez Fred tão alto. Todo
mundo achava maluquice o jeito como ele se empanturrava de manteiga de amendoim; ele não se
importava com nada neste mundo, exceto cavalos e manteiga de amendoim. Mas ele não era
maluco, era só bonzinho e distraído e terrivelmente lento; ele esteve na oitava série por três anos,
quando fugi. Pobre Fred. Eu queria saber se o Exército é generoso com sua manteiga de amendoim”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 20).
140
“exércitos da injustiça” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 75).
141
“Primeiramente, fui demitido do meu trabalho: merecidamente e por um delito divertido, muito
complicado para contar aqui. Além disso, meu comitê de alistamento estava demonstrando um
interesse desconfortável sobre mim; e, tendo recentemente escapado da regulamentação de uma
pequena cidade, a ideia de entrar em outra forma de vida disciplinada me deixou desesperado. Entre
a incerteza do meu alistamento e a falta de experiência específica, eu não conseguia encontrar outro
emprego. Era isso que eu estava fazendo em um metrô no Brooklyn: voltando de uma entrevista
desanimadora com um editor do extinto jornal PM. Tudo isso, combinado com o calor do verão, me
reduzira a um estado de inércia nervosa” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 74-75).
64
a vida dos outros, e do alistamento para lutar na guerra. Mas a cidade grande traz
outras espécies de regulações, algumas são rejeitadas, outras se tornam
necessárias.
A cidade de Nova Iorque, em Breakfast at Tiffany’s, também aparece como a
personagem monstruosa e flagelante mencionada anteriormente na análise de
Summer Crossing, mas há um diferencial interessante: ela é muito mais uma
conjuntura social fantasmagórica, menos palpável nos descritivos alegóricos da
narrativa, contexto imprescindível para que a narrativa aconteça. Não se imagina o
monstro em suas formas antropomórficas, como em Summer crossing, mas, em
Breakfast at Tiffany’s, esse “monstro” que é Nova Iorque tem a face da solidão, do
abandono, da luta pela sobrevivência, dos sonhos despedaçados.
É a cidade que traz o cenário perfeito para os acontecimentos, para perturbar
a vida das pessoas. Ela é a própria máquina de produzir fantasmagorias, ela é o
fantascópio que possibilita a Holly viver a noite como se fosse dia e o dia como se
fosse noite. A agitação ininterrupta e a inquietude da cidade permitem às pessoas
serem estranhas em meio à multidão, exigindo também máscaras que induzem as
pessoas a se esconderem, mesmo estando completamente visíveis em seus
afazeres cotidianos. A cidade também traz neuroses, vícios e traumas, mantendo as
pessoas em movimentos muitas vezes como autômatos, fazendo coisas que não as
deixam pensar.
A metrópole é também um esconderijo que permite uma liberdade que não se
tem numa cidade do interior. Holly dançava em frente ao bar de P. J. Clark,
observada por uma multidão de taxistas, enquanto um grupo de oficiais australianos
entoava Waltzing Matilda: “As they sang they took turns spin-dancing a girl over the
cobbles under the El; and the girl, Miss Golightly, to be sure, floated round in their
arms light as a scarf.”142 Na cidade grande, as pessoas muitas vezes agem como
anônimas, cientes de que não haverá julgamentos se estiverem misturadas à
multidão, ou mesmo não se importando com os julgamentos. Holly dança com os
oficiais. Eles com “whiskey-eyed”,143 e ela, provavelmente, também embriagada, se
diverte sem se preocupar com o julgamento dos observadores. O que lhe importa é
142
“Enquanto cantavam, revezavam-se para rodopiar com uma moça no calçamento logo abaixo dos
trilhos do elevador do metrô; e a moça, a Srta. Golightly, com certeza, flutuava rodando em seus
braços leve como um cachecol” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 15).
143
“olhos de whiskey”, “olhos avermelhados” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 15).
65
o momento dos acontecimentos, o fluxo que distrai a mente das dificuldades da vida
moderna.
Não se sabe muito sobre o vizinho de porta ou de outro andar numa grande
cidade como Nova Iorque, é possível morar perto de alguém e passar toda uma vida
sem falar com a pessoa. No início da narrativa, o narrador se volta para o passado,
contando sobre seu envolvimento com Holly, e acaba deixando vários traços desse
aspecto. Quando ainda não a conhecia, mas ela já o incomodava com a campainha
nas madrugadas, ele acabou achando uma forma de saber mais sobre ela,
vasculhando seu lixo:
But if Miss Golightly remained unconscious of my existence, except
as a doorbell convenience, I became, through the summer, rather an
authority on hers. I discovered, from observing the trash-basket
outside her door, that her regular reading consisted of tabloids and
travel folders and astrological charts; that she smoked an esoteric
cigarette called Picayunes; survive don cottage cheese and melba
toast; that her vari-colored hair was some what self-induced. The
same source made it evident that she received V-letters by the bale.
They were always torn into strips like bookmarks. I used occasionally
to pluck myself a bookmark in passing. Remember and miss you and
rain and please write and damn and goddamn were the words that
recurred most often on these slips; those, and lonesome and love.144
Essas informações recolhidas no lixo não tornavam o narrador um verdadeiro
especialista na vida de Holly, mas o ajudavam a descobrir um pouco da sua rotina,
seus hábitos e seu estilo de vida. Ele estava em busca da identificação de um “tipo”
determinado, cumprindo à risca a tarefa do escritor que era: encontrar na multidão
individualidades específicas que o levassem a constituir a personalidade de Holly.
Ao se tornarem amigos, ele confirma boa parte dessas deduções e constata que ela
não tinha um emprego e conseguia se sustentar por meio das gorjetas que recebia
dos homens com quem saía, isto é, Holly se prostituia, apesar de não se considerar
uma prostituta.
A angústia do narrador está em ser reconhecido, publicado e lido. Seu
144
“Mas se a Srta. Golightly permanecia alheia à minha existência, exceto pela conveniência da
campainha, eu me tornei, ao longo do verão, uma verdadeira autoridade sobre ela. Descobri,
observando a lata de lixo à sua porta, que sua leitura habitual consistia em tabloides e prospectos de
viagem e mapas astrológicos; que fumava cigarros exóticos chamados Picayunes; sobrevivia de
ricota e torrada Melba; que seu cabelo multicolorido era um tanto produzido artificialmente. A mesma
fonte evidenciava que recebia dúzias de cartas. Eram sempre rasgadas em tiras parecidas com
marcadores de livros. Ocasionalmente, eu mesmo apanhava um marcador quando estava de
passagem. Lembre-se e senhorita e chuva e escreva e por favor e maldita e para o inferno eram as
palavras mais recorrentes nas tiras de papel; essas, e sozinho e amor” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 15-16, grifos do autor).
66
profundo anonimato está expresso na narrativa até mesmo no fato de que ele não
tem seu nome anunciado, ao contrário, Holly deu-lhe de empréstimo o nome de seu
irmão, por mais estranho que isso pareça: “Like my brother Fred. We used to sleep
four in a bed, and he was the only one that ever let me hug him on a cold night. By
the way, do you mind if I call you Fred?”.145 Ela só para de chamá-lo de Fred quando
recebe um telegrama informando que o irmão foi morto na guerra. Sua escrita
também é menosprezada por Holly, que reconhece apenas escritores famosos,
reconhecidos pelo mercado editorial:
“What do you do here all day?”
I motioned toward a table tall with books and paper. “Write things.”
“I thought writers were quite old. Of course Saroyan isn’t old. I met
him at a party, and really he isn’t old at all. In fact,” she mused, “if
he’d give himself a closer shave … by the way, is Hemingway old?”
“In his forties, I should think.”"
[…] “Tell me, are you a real writer?”
“It depends on what you mean by real.”
“Well, darling, does anyone buy what you write?”
“Not yet.”
“I’m going to help you,” she said. “I can, too. Think of all the people I
know who know people".146
Em outro trecho ela pergunta o que ele está escrevendo e a experiência é
desastrosa: “That’s one of the troubles. They’re not the kind of stories you can
tell”.147 Ele não resiste e lê um conto em voz alta. Ao final, Holly critica os temas que
são abordados em sua escrita. Quando ele finalmente tem aceite para publicar um
conto em uma revista acadêmica, ela diz: “I wouldn’t let them do it, not if they don’t
pay you”.148 Para Holly, o pagamento é o reconhecimento de que algo tem valor. Já
o narrador quer ser lido, quer ver suas palavras impressas: “Publish: that mean
145
“Como meu irmão Fred. Nós costumávamos dormir quatro em uma cama, e ele era o único que
me deixava abraçá-lo em uma noite fria. A propósito, você se importa se eu te chamar de Fred?”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 18).
146
“‘O que você faz aqui o dia todo?’ / Fiz sinal para uma mesa alta com livros e papel. ‘Escrevo
coisas’. / ‘Eu achava que escritores eram bem velhos. Claro que Saroyan não é velho. Eu o conheci
em uma festa, e ele realmente não é velho de jeito nenhum. Na verdade’, ela pensou, ‘se ele tivesse
uma barba mais rente... a propósito, Hemingway é velho?’ / ‘Uns quarenta anos, eu acho’. / […] ‘Diga-
me, você é um escritor de verdade?’ / ‘Depende do que você quer dizer com de verdade’. / ‘Bem,
querido, alguém compra o que você escreve?’ / ‘Ainda não’. / ‘Eu vou ajudá-lo’, disse ela. ‘Eu posso,
também. Pense em todas as pessoas que conheço que conhecem pessoas’” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 19, grifos do autor).
147
“Este é um dos problemas. O que eu escrevo não é o tipo de história que se possa contar”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 20, grifos do autor).
148
“Eu não deixaria eles fazerem isso, não se eles não te pagarem” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s,
p. 20).
67
print”.149 Holly envia o conto ao seu ex-agente, em Hollywood, e amigo que se
mostrou impressionado, mas sugeriu que ele estava no caminho errado:
“[…] But he says you’re on the wrong track. Negroes and children:
who cares?”
“Not Mr. Berman, I gather.”
“Well, I agree with him. I read that story twice. Brats and niggers.
Trembling leaves. Description. It doesn’t mean anything.”
[…] “Give me an example,” I said quietly. “Of something that means
something. In your opinion.”
“Wuthering Heights,” she said, without hesitation. […]
“But that’s unreasonable. You’re talking about a work of genius.”
“It was, wasn’t it? My wild sweet Cathy. God, I cried buckets. I saw it
ten times.”
I said, “Oh” with recognizable relief, “oh” with a shameful, rising
inflection, “the movie.”
[…] “Everybody has to feel superior to somebody,” she said. “But it’s
customary to present a little proof before you take the privilege.”
“I don’t compare myself to you. Or Berman. Therefore I can’t feel
superior. We want different things.”
“Don’t you want to make money?”
“I haven’t planned that far.”
“That’s how your stories sound. As though you’d written them without
knowing the end.”150
Holly critica o narrador por sua escrita, usando como exemplo O morro dos
ventos uivantes, mas ao comparar a qualidade das narrativas se atrapalha falando
do filme e não do livro. O narrador se sente terrivelmente aliviado ao perceber que
Holly não era sua leitora “ideal” ou sequer lia livros. O trecho deixa claro que Holly
busca no conto do narrador os aspectos que vão seduzir a grande massa, que de
acordo com O. J., não gosta de “Moleques e negros. Folhas trêmulas. Descrição.”
Fica claro que, na visão do empresário e de Holly, o que “vende” não é esse tipo de
história. Para os leitores de Breakfast at Tiffany’s é possível notar que a própria
história narrada é uma história criada pelo narrador. Ele é quem está ali contando os
fatos passados, rememorando sobre a sua amizade com essa moça, ela própria
149
“Publicar: isso significa ter algo impresso” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 51, grifos do autor).
150
“‘[…] Mas ele disse que você está no caminho errado. Negros e crianças: quem se importa?’/ ‘Não
o Sr. Berman, eu entendo’. / ‘Bem, eu concordo com ele. Eu li a história duas vezes. Moleques e
negros. Folhas trêmulas. Descrição. Isso não significa nada’. / […] ‘Me dê um exemplo’, eu disse
baixinho. ‘De algo que significa alguma coisa. Na sua opinião’. / ‘O morro dos ventos uivantes’, disse
ela, sem hesitar. […] / ‘Mas isso não é razoável. Você está falando de um trabalho de gênio’. / ‘Foi,
não foi? Minha doce e doce Cathy. Deus, eu chorei baldes. Eu vi dez vezes’. / Eu disse: ‘Oh’ com um
alívio reconhecível, ‘oh’ com uma inflexível e crescente inflexão, ‘o filme’. / […] ‘Todo mundo tem que
se sentir superior a alguém’, disse ela. ‘Mas é costume apresentar uma pequena prova antes de você
tomar o privilégio’. / ‘Eu não me comparo a você. Ou Berman. Portanto, não posso me sentir superior.
Nós queremos coisas diferentes’. / ‘Você não quer ganhar dinheiro?’ / ‘Eu não planejei tão longe’. /‘É
assim que suas histórias soam. Como se você as tivesse escrito sem saber o fim’ (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 61-62, grifos do autor).
68
uma aparição fantasmagórica que desapareceu no mundo.
O caminho errado para O. J. Berman,151 que era um agente de atores em
Hollywood, acostumado a roteiros de filmes, estava justamente na escolha de suas
personagens, apontando que falar sobre esses “tipos” não gerava interesse:
“Negroes and children” ou, como no conto que o narrador leu para Holly e ela
resumiu a história: “a couple of old bull-dykes”.152
O narrador-personagem veio do interior com a intenção de se tornar um
escritor e só se sentirá realizado quando isso acontecer. Ele também traz em sua
escrita a fantasmagoria angustiante do “fisiognomonista” e do “explorador da
multidão”:
A multidão desperta no homem que a ela se entrega uma espécie de
embriaguez acompanhada de ilusões muito particulares, de tal modo
que se gaba, vendo o passante levado pela multidão, de tê-lo
classificado a partir de seu interior, de tê-lo reconhecido em todas as
dobras de sua alma. […] Os caracteres típicos reconhecidos entre os
transeuntes impactam a tal ponto os sentidos que não surpreende
que suscitem a curiosidade de apreender-se, para além deles a
singularidade especial do sujeito. Mas o pesadelo que corresponde à
perspicácia ilusória do fisiognomonista, de que falamos, é ver esses
traços distintivos, particulares ao sujeito, revelarem-se, por sua vez,
apenas como elementos constituintes de um tipo novo, de tal modo
que, afinal de contas, a individualidade melhor definida acabaria
sendo a de um tipo.153
O escritor busca incessantemente caracterizar de forma singular cada
personagem, dando-lhes contornos únicos, de forma que elas se tornem
inesquecíveis na mente do leitor. Mas, por maiores especificidades que cada
personagem tenha, elas também estão cunhadas em um “tipo”, e, nesse sentido, o
escritor também é um “fisiognomonista”.
Nas duas obras literárias analisadas nesta tese, nota-se semelhanças entre
as duas personagens femininas, mesmo tendo características distintas, as
diferenças. Essas semelhanças podem ser indicativas da hipótese de que Summer
Crossing foi realmente um exercício de escrita para a criação posterior de Breakfast
151
Esta é uma personagem importante na narrativa, pois é uma ponte para a origem de Holly, já que
foi ele que a descobriu ainda antes de ela trocar de nome.
152
“sobre um casal de sapatas machonas” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 21). A expressão “bull-
dykes” foi traduzida por ‘sapatas machonas’ de forma a manter o caráter ofensivo usado por Capote.
O Urban Dictionary traz conotações que enfatizam o caráter masculino da gíria (Cf. URBAN
Dictionary. Disponível em: .Acesso
em: 15 mar. 2019).
153
BENJAMIN. Passagens, p. 62.
69
at Tiffany’s. Elas são tipos representativos da jovem mulher em momentos de
transição para a vida adulta, em luta por liberdade numa sociedade que não lhes
oferece opções. Cada uma representando a seu modo uma mesma mulher, de um
mesmo tempo, e que também serão retomadas como exemplos representativos de
outras épocas à frente da sua, como acontece atualmente ao serem citadas. Elas
possuem seus traços individuais característicos, mas elas são do mesmo tipo.
Benjamin comenta na obra Passagens sobre o “círculo mágico do tipo”, do
qual o cidadão não consegue mais romper apesar “da expressão de suas
singularidades mais excêntricas, classificada por Baudelaire como “infernal”, a
“fantasmagoria do ‘sempre igual’”.154 Truman Capote padece do mesmo mal que
Baudelaire e tantos outros escritores padeceram, por isso o autor tenta, talvez de
forma inconsciente, representar essa angústia por meio do narrador-personagem de
Breakfast at Tiffany’s.
O narrador afirma que se apaixonara por Holly do mesmo jeito que estivera
apaixonado por outras pessoas, que também são “tipos” humanos, como aqueles
das obras intituladas fisionomias, citadas anteriormente:
Or, and the question is apparent, was my outrage a little the result of
being in love with Holly myself? A little. For I was in love with her. Just
as I’d once been in love with my mother’s elderly colored cook and a
postman who let me follow him on his rounds and a whole family
named McKendrick. That category of Love generates jealousy, too.155
Em Summer Crossing, não há este narrador-personagem. O narrador é
onisciente, como já mencionado, além de observar, ele antecipa acontecimentos e
explica situações que estão no pensamento das personagens. Já em Breakfast at
Tiffany’s, o fato de o narrador ser ao mesmo tempo uma das personagens modifica a
perspectiva do leitor sobre a narrativa.
O conto publicado é para o narrador-personagem o início de uma conquista. A
felicidade momentânea que sentiu é comemorada junto a Holly. Eles comemoram no
bar do Joe Bell, tomando drinks, e em seguida vão às ruas, o espaço público e
coletivo da cidade: “we wandered toward Fifth Avenue, where there was a parade.
154
BENJAMIN. Passagens, p. 62.
155
“Ou, e a pergunta é óbvia, o meu ultraje foi um pouco por estar apaixonado por Holly? Um pouco.
Pois eu estava apaixonado por ela. Assim como uma vez eu me apaixonei pela velha cozinheira da
minha mãe e pelo carteiro que me deixou segui-lo em suas rondas e uma família inteira chamada
McKendrick. Essa categoria de amor gera ciúme também” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 76,
grifos do autor).
70
The flags in the wind, the thump of military bands and military feet, seemed to have
nothing to do with war, but to be, rather, a fanfare arranged in my personal honor”.156
A parada militar, sem dúvida, tem como motivo os acordos e as pequenas vitórias
que vão acontecendo ao longo do período de guerra, que visa trazer a população a
um nível favorável frente ao conflito. Afinal, a população também sofre muito, seja
pela tensão por ter seus parentes e amigos levados ao front, seja pela falta de
produtos, serviços, dentre outros.
A cidade grande é o local privilegiado da flânerie, e as personagens saem
com essa intenção, como o flâneur de Benjamin que “se abandona às
fantasmagorias do mercado”.157 Os amigos almoçam no restaurante do Central Park,
“avoiding the zoo (Holly said she couldn’t bear to see anything in a cage)”.158Há
nessa frase um espelhamento que pode ser notado quando outras menções ao tema
surgem na narrativa. A personagem não suporta ver nada preso na jaula, pois
também não suporta se sentir presa em lugar algum, nem a ninguém, como fica
explícito no fato de não dar um nome ao gato que mora com ela, não chamar o
narrador pelo seu nome mesmo quando se torna seu amigo, não querer mobília em
casa, dentre tantos outros rastros na narrativa que vão apontar para esse pavor de
se sentir presa.
Ao passar pela loja Woolworth’s, Holly sugere: “Let’s steal something”.159 O
narrador revela a tensão: “where at once there seemed a pressure of eyes, as
though we were already under suspicion”,160 e Holly o instiga a roubar:
“Come on. Don’t be chicken.” She scouted a counter piled with paper
pumpkins and Halloween masks. The saleslady was occupied with a
group of nuns who were trying on masks. Holly picked up a mask and
slipped it over her face; she chose another and put it on mine; then
she took my hand and we walked away. It was as simple as that.
Outside, we ran a few blocks, I think to make it more dramatic; but
also because, as I’d discovered, successful theft exhilarates. I
wondered if she’d often stolen. “I used to,” she said. “I mean I had to.
If I wanted anything. But I still do it every now and then, sort of to
156
“vagamos para os lados da Quinta Avenida, onde havia uma parada. As bandeiras ao vento, o
ribombar das bandas e dos pés militares pareciam não ter nada a ver com a guerra, como se fossem
uma fanfarra organizada exclusivamente em minha homenagem” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p.
53).
157
BENJAMIN. Passagens, p. 54.
158
“evitando o zoológico (Holly explicou que não aguentava ver nada numa jaula)” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 54).
159
“Vamos roubar alguma coisa” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 54).
160
“imediatamente senti a pressão de olhos alheios, como se já estivéssemos sob suspeita”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 54).
71
keep my hand in.” We wore the mask sall the way home.161
As cenas de roubo, tanto em Summer Crossing quanto em Breakfast at
Tiffany’s, podem ser associadas às neuroses produzidas pela vida na cidade que
levam ao desejo de roubar mesmo sem precisar. O roubo de objetos muito baratos,
como na cena descrita por Capote, tem a função exclusivamente de gerar emoção e
trazer excitação, podendo também ser percebido como uma forma de transgressão
que alivia a pressão das convenções. Quebrar as regras básicas de uma sociedade
sufocante pode trazer certo conforto, como para recuperar algo de direito, já que
muito mais é retirado na coibição da liberdade.
Holly era uma adolescente, órfã – os pais morreram de tuberculose deixando
vários filhos –, quando se casou, em dezembro de 1938, aos 14 anos, com um
fazendeiro do Texas, Doc Golightly, que aparentemente tinha idade para ser seu pai.
Quando Doc Golightly vai à Nova Iorque em busca do paradeiro de Holly, alegando
que quer levá-la de volta para casa, o leitor descobre que o verdadeiro nome de
Holly Golightly é Lulamae Barnes. O fazendeiro procura o narrador e pede ajuda,
pois, durante suas investigações, percebeu que os dois eram amigos. Ele afirma:
“she was an exceptional woman. She knew good-and-well what she was doing when
she promised to be my wife and the mother of my churren. She plain broke our
hearts when she ran off like she done”.162
A narrativa é ambígua nesse ponto. Não temos certeza se Holly seguiu
apenas seus interesses por moradia e conforto ou se foi seduzida por um homem
muito mais velho que ela. Só posteriormente ela explica que era muito inocente para
estar casada, mas que Doc era um bom sujeito. Na visão do fazendeiro Doc, o mal
foi que ele lhe comprava inúmeras revistas e estas a seduziram com sonhos:
“Looking at show-off pictures. Reading dreams. That’s what started her walking down
the road. Every day she’d walk a little further: a mile, and come home. Two miles,
161
“‘Vamos, não seja covarde’. Ela examinou um balcão amontoado de abóboras de papel e
máscaras de Halloween. A vendedora estava ocupada com um grupo de freiras que experimentavam
máscaras. Holly pegou uma e a ajustou sobre o rosto; escolheu outra e a pôs em mim; então ela me
puxou pela mão e fomos embora. Simples assim. Do lado de fora corremos por alguns quarteirões,
acho que para tornar tudo mais dramático; mas também porque, como descobri, um roubo bem-
sucedido é muito excitante. Perguntei se já roubara muitas vezes. ‘Eu costumava roubar’, ela
respondeu. ‘Quer dizer, eu precisava roubar. Quando queria alguma coisa. Mas ainda faço isso de
vez em quando, meio que para manter a mão treinada’. Continuamos com as máscaras até chegar
em casa” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 54-55).
162
“ela era uma mulher excepcional. Ela sabia muito bem o que estava fazendo quando prometeu ser
minha esposa e mãe dos meus filhos. Ela simplesmente quebrou nossos corações quando fugiu
como ela fez” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 67).
72
and come home. One day she just kept on”.163 As revistas que a personagem lia
mostravam o que era uma vida de luxo, moda e eventos sociais na cidade grande,
coisas que a vida monótona na fazenda com Doc nunca iam lhe proporcionar.
Em seguida, ela foge para a Califórnia, onde é encontrada por O. J. Berman,
morando com um homem. Ele a encaminha como atriz, aos 15 anos, mas ela recusa
todas as possibilidades oferecidas, inclusive se recusa a casar com um produtor de
filmes em Hollywood. Finalmente, ela foge novamente, dessa vez para Nova Iorque.
Após várias fugas, estabelecida em Nova Iorque, aos 18 anos, no pequeno
apartamento e com uma nova identidade, Holly fazia programas com homens,
geralmente mais velhos, que lhe davam dinheiro, pagavam suas contas e ela podia
sobreviver. Era chamada de “playgirl”, “actress” ou “glamour girl”,164 como noticiaram
os jornais quando foi presa, acusada de contrabando. Na narrativa, há palavras de
cunho sexista e pejorativo, em contexto social no qual a mulher é colocada em lugar
discriminado, subordinado, demonstrando a força do patriarcado no período.
Quando a mulher ocupa um lugar social na grande cidade, no trabalho, indo às ruas,
convivendo com outras pessoas, ela se expõe ao risco que a sociedade patriarcal
teme: que assuma sua liberdade intelectual e física.
Há vários trechos na narrativa sobre o casamento ou propostas malsucedidas
de casamento. Primeiramente, Holly se casa com Doc, como citado anteriormente,
mas ela mesma não levou a sério e fugiu: “DIVORCE HIM? OF COURSE I never
divorced him. I was only fourteen, for God’s sake. It couldn’t have been legal”.165
Depois, aos 15 anos, recebe uma proposta do produtor de Hollywood, Benny Polan,
a qual é rejeitada, e também foge. Aos 18 anos, Rusty Trawler, um milionário que
teve vários casamentos fracassados, parece ser um pretendente, mesmo com sua
vida noturna agitada. Ela o mantém por perto, assim como também mantém sua vida
noturna. Por fim, conhece José Ybarra-Jaegar por meio de uma modelo conhecida,
Mag, sua noiva. Ele, um diplomata brasileiro candidato à presidência do Brasil.
Nesse ponto da narrativa, Holly recebe a informação, por meio de um
telegrama, que o irmão foi morto na guerra. Isso provoca uma crise na personagem
163
“olhando pr’aquelas revistas de gente famosa. Lendo sonhos. Foi aí que ela começou a andar pela
estrada. Todo dia andava um pouco mais: uma milha, e voltava pra casa. Duas milhas, e voltava pra
casa. Um dia, ela simplesmente continuou andando” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 69).
164
“garota de programa”, “atriz”, “garota da sociedade” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 89).
165
“DIVORCIAR DELE? CLARO que nunca me divorciei dele. Eu tinha apenas 14, pelo amor de
Deus. Não poderia ter sido legal” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 72).
73
que destrói todo seu apartamento, e José aparece com um médico. O leitor é
informado que Holly roubou o noivo de Mag. A morte do irmão parece ser um
momento transformador na vida da personagem:
HOLLY NEVER MENTIONED HER BROTHER again: except once.
Moreover, she stopped calling me Fred. June, July, all through the
warm months she hibernated like a winter animal who did not know
spring had come and gone. Her hair darkened, she put on weight.
She became rather careless about her clothes: used to rush round to
the delicatessen wearing a rain-slicker and nothing underneath.166
A personagem chama a morte de “the fat woman”,167 aparição fantasmagórica
que surgiu em sua visão quando perdeu seu irmão. Exatamente quando pensava
onde o irmão havia ido, por que ele havia morrido, ela a viu: “she was there in the
room with me, and she had Fred cradled in her arms, a fat meanred bitch rocking in a
rocking chair with Fred on her lap and laughing like a brass band. The mockery of it!
But it’s all that’s ahead for us, my friend: this comedienne waiting to give you the old
razz”.168 Essa cena, que lhe pareceu real, foi o que a fez destruir seu apartamento,
quebrando tudo ao seu redor.
A transformação interna da personagem é demonstrada por meio das
transformações exteriores assinaladas pelo narrador. Ela começa a estudar a língua
portuguesa, passa a cuidar da casa, o que nunca havia feito antes, comprando
mobília, objetos de decoração e aprendendo a cozinhar:
A keen sudden un-Holly-like enthusiasm for homemaking resulted in
several un-Holly-like purchases: at a Parke-Bernet auction she
acquired a stag-at-bay hunting tapestry and, from the William
Randolph Hearst estate, a gloomy pair of Gothic “easy” chairs; she
bought the complete Modern Library, shelves of classical records,
innumerable Metropolitan Museum reproductions (including a statue
of a Chinese cat that her own cat hated and hissed at and ultimately
broke), a Waring mixer and a pressure cooker and a library of cook
166
“HOLLY NUNCA MAIS FALOU DO IRMÃO novamente: exceto uma vez. Além disso, ela parou de
me chamar de Fred. Junho, julho, durante os meses quentes, ela hibernou como um animal de
inverno que não sabia que a primavera havia chegado e ido embora. Seu cabelo escureceu, ela
engordou. Ela se tornou um pouco descuidada com suas roupas: costumava ir rapidamente à
delicatessen usando uma capa de chuva e nada por baixo” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 79).
167
“a gorda” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 97).
168
“ela estava lá no quarto comigo e embalava Fred em seus braços, a puta gorda e sanguinária
balançando em uma cadeira de balanço com Fred em seu colo e rindo como uma banda descarada.
Zombando! Mas isto é tudo o que temos pela frente, meu amigo: esta comediante esperando pra te
dar a última volta” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 97, grifo do autor).
74
books.169
A narrativa mostra que a personagem deseja se casar e que este será um
marco em sua vida: morar no Rio de Janeiro, ter filhos e deixar a prostituição. Causa
estranhamento ao leitor a conscientização de que Holly deseja se casar buscando
uma solução para a sua vida, pois não parece que ela está apaixonada por José. A
morte do irmão foi um momento de transição em sua vida, pois planejava estar com
ele quando a guerra acabasse. Até determinado ponto, a impressão do leitor é de
que Holly é uma garota solitária, individualista e autossuficiente o bastante para não
se casar.
Há duas longas páginas na narrativa nas quais a personagem explica seus
relacionamentos com os homens, enumera seus amantes e se coloca fora do status
de prostituta pelo fato de que busca se envolver com eles: “Of course I haven’t
anything against whores. Except this: some of them may have an honest tongue but
they all have dishonest hearts. I mean, you can’t bang the guy and cash his checks
and at least not try to believe you love him.” 170 Esse trecho parece justificar o
casamento com José.
Os ritos de passagem sinalizam transitoriedade e é um mote nas duas
narrativas de Capote. As duas personagens femininas protagonistas das duas
narrativas estão, de certa forma, no “limiar” entre a vida de menina e a vida de
adulta, mas não conseguem transpor o limiar. Tudo se torna obstáculo
intransponível, mais próximo do sentido de “fronteira”. Os fatos e as condições são
negativos, não permitem que elas consigam realizar seus propósitos, e estes não
são claros para as próprias personagens.
169
“Um súbito e agudo entusiasmo anti-Hollyano por serviços de casa resultou em várias compras
anti-Hollyanas: em um leilão Parke-Bernet ela adquiriu uma tapeçaria com cena de caça e, do espólio
de William Randolph Hearst, um par de tenebrosas ‘espreguiçadeiras’góticas; ela comprou a coleção
completa da Modern Library, prateleiras inteiras de discos clássicos, inúmeras reproduções do
Metropolitan Museum (incluindo uma estátua de um gato chinês, odiada por seu próprio gato, que a
ameaçou e finalmente a quebrou), uma batedeira Waring, uma panela de pressão e uma biblioteca de
livros de culinária” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 80-81).
170
“Claro que não tenho nada contra prostitutas. Exceto isto: algumas delas podem ser francas, mas
todas elas têm corações desonestos. Quer dizer, você não pode transar com o cara e descontar seus
cheques sem pelo menos tentar acreditar que você o ama” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 82).
75
2.2 Antropomorfismos e metáforas do aprisionamento
2.2.1 Summer Crossing
Em Summer Crossing, há cinco menções ao Zoológico do Central Park. No
capítulo 3 do livro, em especial, Capote cria uma cena longa e cheia de oposições: o
casal de amantes Grady e Clyde vai almoçar no restaurante do parque e depois
passeiam pelo local, entre as visitas aos recintos de animais e barracas de brindes,
eles descobrem suas diferenças. Ao fundo, os acontecimentos são corriqueiros e
descontraídos, já a cena íntima do casal é tensa e evidencia a distância existente
entre eles por meio de diálogos cortantes:
“It’s my brother. The kid’s having his bar mitzvah and it’s only right I
ought to be there.”
“A bar mitzvah? I thought that was something Jewish.”
Stillness like a blush came over his face. He did not even look when a
brazen pigeon sedately plucked a crumb off the table.
“Well, it is something Jewish, isn’t it?”
“I’m Jewish. My mother is,” he said.171
Grady não se importou com o fato de ele ser judeu, mas a forma como contou
sugeriu que ela deveria se importar. A descrição do cenário, os elementos rasos
trazidos à tona, a amplificação e contração como elementos estéticos da narrativa
parecem ampliar os contrastes e distâncias entre as duas personagens: “instead of
expanding, her Picture of him contracted, and she felt she would have to start all over
again. ‘Well,’ she began slowly. ‘And am I supposed to care? I really don’t, you
know’”.172 Mas ele reage de forma agressiva, repelindo-a: “What the hell do you
mean care? Who the hell do you think you are? Care about yourself. I’m nothing to
you”.173
Durante a briga do casal, Grady sai em fuga, Clyde a alcança e tudo é
apaziguado pelas distrações do ambiente. Ela diz que se importa com ele, e,
reconciliados, os amantes vão ver os leões. Ele lhe compra um balão para substituir
171
“‘É o meu irmão. O guri está fazendo bar mitzvah e eu preciso estar lá’./ ‘Bar mitzvah? Achei que
isso fosse coisa de Judeu’./ A imobilidade se espalhou pelo rosto dele como um rubor. Ele sequer
olhou quando um pombo atrevido começou a ciscar lentamente uma migalha de cima da mesa. /
‘Bom, é coisa de judeu, não é?’ ‘Eu sou judeu. Minha mãe é,’ – disse ele” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 41-42, grifos do autor).
172
“em vez de se expandir, sua imagem sobre ele se contraiu, e ela sentiu que teria que começar
tudo de novo. ‘Bem’, ela começou devagar. ‘E eu deveria ligar pra isso? Eu realmente não ligo, sabe’”
(CAPOTE. Summer Crossing, p. 42, grifos do autor).
173
“Que diabo você quer dizer ligo? Quem diabos você pensa que é? Ligue pra você mesma. Eu não
sou nada pra você” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 42, grifos do autor).
76
o anterior que havia murchado, o novo balão tinha a forma de um gato com olhos e
bigodes roxos: “Grady was delighted, ‘Let’s go show it to the lions!’”:174
The cat house of a zoo has an ornery smell, an air prowled by sleep,
mangy with old breath and dead desires. Comedy in a doleful key is
the blowsy she-lion reclining in her cell like a movie queen of silent
fame; and a hulking ludicrous sight her mate presents winking at the
audience as if he could use a pair of bifocals. Somehow the leopard
does not suffer; nor the panther: their swagger makes distinct claims
upon the pulse, for not even the indignities of confinement can belittle
the danger of their Asian eyes, those gold and ginger flowers
blooming with a bristling courage in the dusk of captivity. At feeding
time a cat house turns into a thunderous jungle, for the attendant,
passing with blood-dyed hands among the cages, is sometimes slow,
and his wards, jealous of one who has been fed first, scream down
the roof, rattle the steel with roars of longing.175
O leão e a leoa estão entregues ao confinamento e o que havia de selvagem
neles não existe mais. Só há o sono e os desejos mortos. Já o leopardo e a pantera,
e o perigo nos seus olhos, estão a salvo das “indignidades do confinamento”, pois
eles não se entregam ao ócio dos leões. Os dois contextos parecem servir de
comparação entre os animais e as personagens, trazendo um espelhamento como
estratégia narrativa. Grady é infantilizada pelo balão e pela falta de habilidade em
lidar com a situação, preferindo não pensar sobre os fatos, apenas se deixar levar.
As descrições dos transeuntes situam crianças correndo e envolvendo o casal,
provocando sensações de sufocamento quando se desvencilham um do outro e
tentam se reaproximar:
Grady, fevered by the lunging loin-deep animal sounds, wanted only
to reach Clyde and, as a leaf folds before the wind or a flower bends
beneath the leopard’s foot, submit herself to the power of him. There
was no need to speak, the tremble of her hand told everything: as, in
its answering touch, did his.176
174
“Vamos mostrar isto para os leões!” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 43).
175
“O viveiro dos felinos de um zoológico tem um cheiro desagradável, um ar carregado de sono,
sórdido com hálito velho e desejos mortos. Uma comédia com um ar de melancolia é a leoa
desgrenhada reclinada em sua jaula como uma rainha do cinema mudo; e uma visão absurda e
grosseira seu companheiro, que pisca para o público como se ele precisasse usar lentes bifocais. De
alguma forma, o leopardo não sofre; nem a pantera: sua arrogância imponente faz o pulso se acelerar
nitidamente, pois nem mesmo as indignidades do confinamento conseguem desvalorizar o perigo de
seus olhos asiáticos, suas flores de ouro e cobre que desabrocham com o arrepio corajoso de sua
caminhada na penumbra do cativeiro. No momento da alimentação, uma casa de gato se transforma
em uma selva tempestuosa, pois o atendente, passando com as mãos tingidas de sangue entre as
gaiolas, às vezes é lento, e seus cativos, com ciúmes de quem foi alimentado primeiro, gritam abaixo
do teto, sacodem o aço com rugidos de saudade” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 43-44).
176
“Grady, febril pelos sons profundos de animais que mergulhavam na profundidade, queria apenas
alcançar Clyde e, como uma folha se dobra diante do vento ou uma flor se inclina sob a pata do
77
A metáfora do animal enjaulado, do confinamento, explorada por Capote
nesse capítulo de Summer Crossing e também em outras partes, bem como em
trechos de Breakfast at Tiffany’s que são analisados à frente, faz lembrar a metáfora
de Max Weber da “jaula de aço”,177 na qual a comparação se faz para evidenciar a
condição humana na sociedade capitalista. Sem ter o foco no sistema capitalista, um
dos objetivos desta tese é expor as características fantasmagóricas presentes na
sociedade do século XX, tanto em suas relações material quanto abstrata, que
reúnem aspectos concretos e filosóficos da modernidade.
A cidade é uma selva com “important cockatoos”178 e, dentre elas, Grady se
destaca por sua beleza original: “Her everyway hair was like a rusty chrysanthemum,
petals of it loosely falling on her forehead, and her eyes, so startlingly set in her fine
unpolished face, caught with wit and green aliveness all atmosphere”.179 Em outro
trecho da narrativa o autor compara o silêncio entre duas pessoas constrangidas
pela metáfora do pássaro encurralado: “A silence followed that circulated like na
aggrieved bird”.180
Essa aparência selvagem de Grady permite ao leitor algumas inferências de
ordem abstrata da construção da personagem. Ela é considerada selvagem por não
se deixar levar pelas convenções. A associação ao fato de que “had little sense of
family” 181 se torna evidente quando visita a família de Clyde, pouco antes que
soubessem que estavam casados. O narrador diz:
For indeed the Manzers were a family: the used fragrance and worn
possessions of their house reeked of a life in common and a unity no
fracas could disrupt. It belonged to them, this life, these rooms; and
they belonged to each other, and Clyde was more theirs than he
knew.182
leopardo, submete-se ao seu poder. Não havia necessidade de falar, o tremor de sua mão dizia tudo:
assim como, em seu toque receptivo, a dele” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 44).
177
Tradução da metáfora stahlhartes Gehäuse (‘crosta de aço’), que está na edição inglesa do livro
organizada por Talcott Parsons, em 1930 (WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do
capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.p. 165).
178
“cacatuas exibidas” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 50).
179
“Seus cabelos despenteados pareciam um crisântemo cor de ferrugem, com pétalas caindo soltas
na testa, e seus olhos, tão surpreendentemente posicionados em seu rosto delicado e limpo,
capturavam com inteligência e vivacidade juvenil toda a atmosfera” (CAPOTE. Summer Crossing, p.
50).
180
“circulou como um pássaro encurralado” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 50).
181
“tinha pouca noção de família” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 86).
182
“Pois, de fato, os Manzers eram uma família: o odor de usado e as posses desgastadas de sua
casa cheiravam a uma vida em comum e a uma unidade que nenhuma desordem poderia atrapalhar.
78
Essa noção de pertencimento não é sentida por Grady em relação à sua
própria família. Para ela, essa “strange, a warm, an almost exotic atmosphere”183
não seria escolhida para si por vontade própria: “the airless inescapable pressures of
intimacy with others would have withered her soon enough – her system required the
cold, exclusive climate of the individual”.184 O próprio espaço onde vivia com sua
família, um apartamento imenso, com quartos espaçosos e distantes uns dos outros,
já trazia essa noção de distanciamento:
She was not afraid to say: I am rich, money is the island I stand on;
for she assessed properly the value of this island, was aware its soil
contained her roots; and because of money she could afford always
to substitute: houses, furniture, people. If the Manzers understood life
differently, it was because they were not educated to these benefits:
their compensation was in a greater attachment to what they did
have, and doubtlessly for them the rhythm of life and death beat on a
smaller but more concentrated drum. It was two ways of being, at
least that is how she saw it. Still, when all is said, somewhere one
must belong: even the soaring falcon returns to its master’s wrist.185
O excerto evidencia a distinção social entre os namorados, fato que está na base de
toda a narrativa. Na classe social de Grady tudo podia ser comprado e substituído, até
mesmo as pessoas. Como foi dito anteriormente, a sociedade americana do American
Dream é movida pelo capital e seus benefícios. Até mesmo o ritmo da vida era regido por
essas condições: os menos beneficiados adquiriam um apego maior ao pouco que
possuíam e tudo parecia mais concentrado. Novamente a metáfora do animal preso ao
evocar o falcão altaneiro que retorna ao braço de seu dono, nesse excerto remetendo à
ideia da necessidade de pertencimento a determinado grupo social, também presente em
Breakfast at Tiffany’s.
A mãe de Clyde, Sra. Manzer, conta a Grady durante essa visita narrada “a
story teller”186 referente ao seu passado. Quando era menina morava numa cidade
Isto pertencia a eles, aquela vida, aqueles quartos; e eles pertenciam uns aos outros, e Clyde era
mais deles do que ele sabia” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 86).
183
“atmosfera estranha, calorosa, quase exótica” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 86).
184
“as pressões abafadas e inevitáveis da intimidade com os outros a teriam definhado mais cedo ou
mais tarde – sua constituição exigia o clima frio e exclusivo do indivíduo” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 86).
185
“Ela não tinha medo de dizer: eu sou rica, o dinheiro é a ilha em que eu piso; porque ela avaliou
corretamente o valor desta ilha, sabia que seu solo continha suas raízes; e por causa do dinheiro que
ela sempre poderia pagar para substituir: casas, móveis, pessoas. Se os Manzers entendiam a vida
de forma diferente, era porque eles não foram educados com esses benefícios: sua compensação
estava no maior apego ao que possuíam, e, sem dúvida, para eles, o ritmo da vida e da morte batia
numa batida menor, mas mais concentrada. Eram duas maneiras de existir, pelo menos é assim que
ela via. Ainda assim, quando tudo já foi dito, é preciso pertencer a algum lugar: até mesmo o falcão
altaneiro retorna ao pulso de seu mestre” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 86-87).
186
“uma história” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 87).
79
na encosta de uma montanha, chamada pelos forasteiros de “city of birds”:187
Of an evening, when it was almost dark, they flew in clouds, and
sometimes it was not possible to see the moon rise: never have there
been so many birds. But in winter it was bad, mornings so cold we
could not break the ice to wash our faces. And on those mornings you
would see a sad thing: sheets of feathers where the birds had fallen
frozen: believe me. It was my father’s job to sweep them up, like old
leaves; then they were put into a fire. But a few he would bring home.
Mama, all of us, we nursed them until they were strong and could fly
away. They would fly away just when we loved them most. Oh, like
children! Do you see? Then when winter came again, and we saw the
frozen birds, we always knew in our hearts that here and there was
one we’d saved from some winter before.” The last bright ash in her
voice guttered and darkened; musing, with drawn, she took a low,
shuddering breath: “Just when we loved them most. How true.188
O conto faz alusão à “síndrome do ninho vazio”, que é o que a mãe sente
quando os filhos crescem e saem para ter sua própria vida. Dessa transição faz
parte alguns ritos de passagem, como o casamento, a maternidade e a entrada na
vida profissional.
2.2.2 Breakfast at Tiffany’s
Em Breakfast at Tiffany’s, Holly é descrita de forma a ressaltar seu aspecto
irreverente, sua semelhança a um garoto:
She was still on the stairs, now she reached the landing, and the
ragbag colors of her boy’s hair, tawny streaks, strands of albino-blond
and yellow, caught the hall light. It was a warm evening, nearly
summer, and she wore a slim cool black dress, black sandals, a pearl
choker. For all her chic thinness, she had an almost breakfast-cereal
air of health, a soap and lemon cleanness, a rough pink darkening in
the cheeks. Her mouth was large, her nose upturned. A pair of dark
glasses blotted out her eyes. It was a face beyond childhood, yet this
side of belonging to a woman. I thought her anywhere between
sixteen and thirty; as it turned out, she was shy two months of her
187
“cidade dos pássaros” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 87).
188
“‘Ao cair da noite, quando ficava quase escuro, eles voavam em nuvens, e às vezes não era
possível ver a lua nascer: nunca houve tantos pássaros. Mas no inverno era ruim, manhãs tão frias
que não conseguíamos quebrar o gelo para lavar nossos rostos. E naquelas manhãs podíamos ver
uma coisa triste: camadas de penas onde os pássaros haviam caído congelados: acredite. Era o
trabalho de meu pai varrê-los, como folhas velhas; depois eles eram colocados em uma fogueira. Mas
alguns ele levava para casa. Mamãe, todos nós, nós cuidamos deles até que eles ficassem fortes e
pudessem sair voando. Eles podiam sair voando justamente quando nós mais os amávamos. Oh!
Como crianças! Você entende? Então, quando o inverno chegava, e víamos os pássaros congelados,
nós sempre sabíamos em nossos corações que aqui e ali estava um que nós salvamos de um
inverno anterior’. A última brasa em sua voz diminuiu e apagou; pensativa, retraída, ela suspirou
fundo, estremecendo. ‘Justamente quando nós mais os amávamos. Como isso é verdade’” (CAPOTE.
Summer Crossing, p. 87).
80
nineteenth birthday.189
Na descrição dos aspectos físicos da personagem logo no início da narrativa,
Capote expõe traços definidos de sua imagem na voz do narrador-personagem,
dando início à afetividade que as duas personagens vão desenvolver. A escolha do
foco narrativo diz muito sobre a recepção da obra, sua interpretação por parte do
leitor. Nesse âmbito é importante ressaltar que a “voz” da personagem Holly surge
por meio do narrador. Nós, leitores, de fato não temos acesso ao pensamento de
Holly, apenas às impressões e descrições do narrador-personagem sobre ela.
Com a expressão um “rosto para lá da infância, mas para cá da mulher”, o
autor a coloca no “limiar” entre a vida de menina e a vida de adulta, um momento de
transição que, no caso de Holly, indica que algo não está em seu lugar, aos moldes
da sociedade americana. Já nas primeiras páginas da narrativa, a sua condição de
garota prostituída é anunciada, dando destaque à sua pouca idade.
Na cena descrita anteriormente, ela está sendo assediada por um homem que
a trouxe para casa e queria entrar em seu apartamento, mas ela o rejeita: “There
was a man following behind her. The way his plump hand clutched at her hip seemed
somehow improper; not morally, aesthetically”.190 Ele reclama, afirmando que pagou
e queria estar com ela: “Hey, baby, let me in, baby. You like me, baby. I’m a liked
guy. Didn’t I pick up the check, five people, your friends, I never seen them before?
Don’t that give me the right you should like me? You like me, baby.”191 Mas ela o
rejeita, pois quando ela pediu um “powder-room change”,192 ele lhe deu apenas 20
centavos de dollar.
Há algumas semelhanças entre Grady e Holly, principalmente no que diz
189
“Ela ainda estava na escada, agora chegou ao patamar, e a miscelânea de cores de seus cabelos
de garoto com listras castanho-claras, mechas loiro-albino e amareladas, capturaram a luz do
corredor. Era uma noite quente, quase de verão, e ela estava com um vestido preto, leve e elegante,
sandálias pretas e gargantilha de pérolas. Apesar da magreza sofisticada, tinha um ar de saúde
mantida à base de cereais no cafédamanhã, limpeza feita com sabonete e limão, um rosa rústico
esfumaçado nas bochechas. A boca era larga, o nariz arrebitado. Um par de óculos escuros escondia
seus olhos. Era um rosto para lá da infância, mas para cá da mulher. Calculei que tivesse entre 16e
30 anos; como soube depois, estava a dois meses de seu 19º aniversário” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 12-13).
190
“Havia um homem seguindo atrás dela. O jeito com que sua mão gorda se agarrava ao quadril
dela parecia de algum modo inadequado; não moral, mas esteticamente” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 12).
191
“Ei, docinho, me deixe entrar, docinho. Você gosta de mim, docinho. Eu sou um cara legal. Eu não
peguei o cheque, cinco pessoas, seus amigos, que eu nunca vi na vida? Isso não me dá o direito de
você gostar de mim? Você gosta de mim, docinho” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 13, grifos do
autor).
192
“troco para a toalete” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 14).
81
respeito a aparência física. As duas têm essa aparência “de garoto”, que foge às
convenções sociais e padrões estéticos de beleza, atribuindo-lhes também
caracteres masculinos de personalidade. As duas são personagens muito jovens,
Grady com 17, “almost two months of day sun cut”193 para os 18, e Holly, “two
months of her nineteenth birthday”.194 Holly usa preto, a mesma cor atribuída a
Grady, sendo que seu amigo Peter sugere: “she should not use makeup; it was also
his advice that she looked best in black and white, for her own coloring was too
distinct not to conflict with brighter patterns”.195 As duas personagens se vestem de
forma discreta e elegante, possuem um colorido próprio e são atraentes por sua
irreverência. O narrador descreve Holly:
She was never without dark glasses, she was always well groomed,
there was a consequential good taste in the plainness of her clothes,
the blues and grays and lack of luster that made her, herself, shine
so. One might have thought her a photographer’s model, perhaps a
young actress, except that it was obvious, judging from her hours,
she hadn’t time to be either.196
As duas são comparadas a garotos por serem agressivas, imponentes, fora
dos padrões femininos da época. Não estão, a princípio, em busca da continuidade
da vida familiar imposta pela sociedade. No caso de Holly, seus pais nem são
mencionados, a não ser pelo fato de terem morrido de tuberculose.
Em Summer Crossing há a metáfora da prisão, de se sentir e estar preso, nos
trechos que citam os animais e a visita ao zoológico. Isso também acontece em
Breakfast at Tiffany’s, mas há um adicional que é a prisão dos humanos: Sing
sing.197 Holly fez um acordo com um prisioneiro, Sally Tomato, de visitá-lo toda
quinta-feira e dar “the weather report”.198 Em sua suposta ingenuidade descuidada,
ela acaba se deixando levar pelos 100 dólares semanais que recebe como gorjeta
193
“quase dois meses de dias perfeitos” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 88).
194
“a dois meses dos dezenove” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 12).
195
“ela não deveria usar maquiagem; também era conselho dele que ela ficava melhor de preto e
branco, pois seu colorido era marcante demais para não conflitar com estampas mais chamativas”
(CAPOTE. Summer Crossing, p. 51).
196
“Ela nunca estava sem óculos, estava sempre bem arrumada, havia um coerente bom gosto na
simplicidade de suas roupas, os azuis e cinzas e a falta de brilho que faziam com que ela própria
brilhasse. Alguém poderia pensar que ela fosse modelo fotográfico, talvez uma jovem atriz, exceto
pelo óbvio, julgando pelos seus horários, ela não tinha tempo para nada disso” (CAPOTE. Breakfast
at Tiffany’s, p. 14).
197
Sing sing é uma prisão de segurança máxima localizada na vila de Ossining, à 48 km de Nova
Iorque.
198
“a previsão do tempo” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 26).
82
pelo serviço e pelo “darling old man”199 que ele era: “He’d look like a monk if it
weren’t for the gold teeth; he says he prays for me everynight”.200 Na narrativa, há
uma descrição do dia de visitas de Holly a Sally Tomato:
All the visitors do make an effort to look their best, and it’s very
tender, it’s sweet as hell, the way the women wear their prettiest
everything, I mean the old ones and the really poor ones too, they
make the dearest effort to look nice and smell nice too, and I love
them for it. I love the kids too, especially the colored ones. I mean the
kids the wives bring. It should be sad, seeing the kids there, but it
isn’t, they have ribbons in their hair and lots of shine on their shoes,
you’d think there was going to be ice cream; and sometimes that’s
what it’s like in the visitors’ room, a party. Anyway it’s not like the
movies: you know, grim whisperings through a grille. There isn’t any
grille, just a counter between you and them, and the kids can stand
on it to be hugged; all you have to do to kiss somebody is lean
across. What I like most, they’re so happy to see each other, they’ve
saved up so much to talk about, it isn’t possible to be dull, they keep
laughing and holding hands.201
Essa descrição é fantasiosa e enganosa. A personagem se apega às imagens
que vê como se fossem sonhos, fantasias, e, como em outros trechos, ela projeta
ilusões e ressalta detalhes fúteis como se significassem uma alegria inexistente.
Holly não fala dos presos, mas das pessoas que vão visitá-los, da alegria que elas
demonstram quando estão lá, mas reconhece a tristeza quando estão no trem, a
caminho de casa, o vazio que sentem: “I see them on the train. They sit so quiet
watching the river go by”.202 Esse trecho sugere outra metáfora: a da vida que passa
como o rio que corre e, de certa forma, a de um filme no qual os espectadores e
atores assumem suas posições.
Holly não assume que visitar um mafioso pode comprometê-la. Pensa que
199
“amor de velhinho” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 25).
200
“Teria cara de monge se não fosse os dentes de ouro; diz ele que reza por mim toda noite”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 25).
201
“Todos os visitantes se esforçam para ficar com a melhor aparência possível, e isso é um amor,
uma doçura dos diabos, a maneira como as mulheres usam suas roupas mais bonitas, quer dizer, as
mais velhas e as mais pobres também, elas fazem o maior esforço para ficarem bonitas e cheirosas
também, e eu adoro isso. Também adoro as crianças, ainda mais as de cor. Quero dizer, as crianças
que as esposas trazem. Era para ser triste, ver todas aquelas crianças ali, mas não é, elas vão de
laçarote no cabelo e muito brilho no sapato, você pensaria que haveria sorvete lá; e às vezes é isso
que acontece na sala de visitantes, uma festa. De qualquer modo, não é como nos filmes: sabe,
sussurros tristes através da grade. Não tem grade nenhuma, só um balcão entre a gente e eles, e as
crianças podem subir para ganhar um abraço; tudo que você precisa fazer para beijar alguém é se
inclinar. E o que mais gosto, eles ficam muito felizes por ver um ao outro, juntaram tanta coisa para
conversar, não tem como ser chato, ficam o tempo todo rindo e de mãos dadas” (CAPOTE. Breakfast
at Tiffany’s, p. 23-24, grifos do autor).
202
“Eu os vejo no trem. Eles se sentam muito quietos observando o rio passar” (CAPOTE. Breakfast
at Tiffany’s, p. 24).
83
não há problemas, que as autoridades da prisão acham que é sobrinha dele. Não
sabe – ou não reconhece – que as mensagens que deixa são recados do advogado
do mafioso, o que acaba sendo descoberto quase no fim da narrativa,
desencadeando uma série de acontecimentos na sua vida, como a sua própria
prisão.
Novamente, a postura de ingênua é ressaltada. Capote cria uma personagem
deslocada, que superficialmente possui uma aparência de pessoa engajada, que
sabe lidar com a vida na cidade, mas também se deixa enganar por armadilhas
sociais de várias espécies. Holly é imatura para os acontecimentos à sua volta. Ela
se envolve com diversos tipos de pessoas, leva-as para sua casa e para sua cama,
é vista com vários homens ao mesmo tempo, em bares e restaurantes. A vida
desregrada a faz parecer forte, mas ela também demonstra inabilidade para lidar
com muitas coisas. A vida urbana é cheia de perigos. Ao mesmo tempo em que a
personagem demonstra querer se fixar a pessoas e lugares em alguns momentos,
conduz estratégias para afastar as oportunidades que aparecem, ou ainda, as perde
pelas maluquices e ingenuidades.
Em um trecho da narrativa, Holly se compara a um bicho selvagem quando
conversa com o narrador-personagem e outro amigo, o Sr. Bell, o dono do bar que
eles frequentavam, sobre a visita de seu ex-marido, o fazendeiro Doc, em trechos já
comentados nesta seção:
“Never love a wild thing, Mr. Bell,” Holly advised him. “That was Doc’s
mistake. He was always lugging home wild things. A hawk with a hurt
wing. One time it was a full-grown bobcat with a broken leg. But you
can’t give your heart to a wild thing: the more you do, the stronger
they get. Until they’re strong enough to run into the woods. Or fly into
a tree. Then a taller tree. Then the sky. That’s how you’ll end up, Mr.
Bell. If you let yourself love a wild thing. You’ll end up looking at the
sky”.203
Há um trecho da biografia de Truman Capote, escrita por Gerard Clark, que
pode trazer alguma luz a essas escolhas estratégicas na criação da personagem
Holly Golightly, a preferida do escritor. Os motivos são também advindos de um
203
“‘Não ame nunca uma coisa selvagem, Sr. Bell’, Holly o aconselhou. ‘Esse foi o erro de Doc.
Sempre voltava para casa com alguma coisinha selvagem. Um falcão de asa machucada. Até um
lince crescido com pata quebrada. Mas você não pode entregar seu coração para uma coisa
selvagem: quanto mais você faz, mais forte ele fica. Até que fica forte o bastante para correr pela
floresta. Ou para voar até uma árvore. Então uma árvore mais alta. Então para o céu. É assim que
você vai acabar, Sr. Bell. Se você se permitir amar uma coisa selvagem. Você vai acabar olhando
para o céu’”(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 74).
84
espelhamento entre o autor e a personagem:
Ela incorpora a filosofia de Capote, apenas mencionada por
Randolph e o juiz Cool em Other Voices e A Harpa de Erva,
respectivamente. Sua vida é a própria expressão da liberdade e
aceitação das irregularidades humanas, de si própria e de todo
mundo. A hipocrisia é o único pecado. Numa primeira versão,
Truman dera-lhe o nome curioso e inadequado de Connie Gustafson;
só mais tarde batizou-a de Holly Golightly, simbolizando
perfeitamente sua própria personalidade: a vida são férias eternas,
por onde se caminha despreocupadamente.204
Holly também possui traços universais relacionados à sociedade da época,
mulheres jovens que Capote conheceu, que nasceram no Sul rural e que sonhavam
com o glamour nova-iorquino das socialites, que mudaram o nome de nascimento
por algum mais sofisticado. Muitas mulheres se sentiram representadas por Holly
Golightly e várias reivindicaram o posto de “modelo da excêntrica heroína”.205 Todas
elas desejando projeção social, como o próprio nome usado para a personagem
sugere: Golightly = go + light +ly. Ir para um lugar de destaque, iluminado, um sonho
a ser alcançado.
Em Summer Crossing também há um comparativo na história da Sra. Manzer
sobre a cidade dos pássaros, o bicho selvagem que não consegue ficar preso,
citado anteriormente nesta seção. O animal machucado, após sua recuperação,
volta a ser livre sem se ater aos que cuidaram de sua recuperação. Capote parece
sugerir que é da natureza selvagem – tanto do animal quanto do homem – seguir
seus instintos, ser egoísta, cuidar de si sem se ater ao outro. Que forças movem as
pessoas para frente, mesmo que isso as faça machucar os outros. Há também
momentos nos quais essas forças são mais intensas, são os “limiares”, os
momentos de passagem, de transformação, como na morte, na passagem da
infância para a vida adulta, relacionando-os aos ritos de passagem.
A vida urbana parece modificar esse aspecto selvagem no homem e fazer
com que ele se subjugue, sonolento como os leões em sua jaula no zoológico.
Capote parece admirar que alguns seres humanos não são totalmente socializados,
pois esse “lado selvagem” frequentemente insurge em situações cotidianas.
O sentimento de Holly é o de que a cidade promove o vazio, estimulando o
leitor a pensar na ambivalência desse pensamento, pois a cidade grande é o lugar
204
CLARKE, Gerard. Capote: uma biografia. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Globo, 1993. p. 295.
205
CLARKE. Capote: uma biografia, p. 296.
85
do movimento, do excesso, do barulho. Ela diz, já um pouco embriagada,
terminando a conversa com o Sr. Bell e o narrador, sobre a vinda do ex-marido:
“‘Let’s wish the Doc luck, too,’ she said, touching her glass against mine. ‘Good luck:
and believe me, dearest Doc – lt’s better to look at the sky than live there. Such an
empty place; so vague. Just a country where the thunder goes and things
disappear’”.206 O céu é o lugar imaginário, representativo da morada dos mortos, dos
que não estão aqui na terra. Há certa ambiguidade na frase final da citação, quando
não sabemos ao certo se Holly remete o vazio e a vagueza ao céu (como esse lugar
imaginário onde tudo desaparece) ou se à terra (Nova Iorque, onde ela está).207
Nova Iorque também é esse lugar vazio e vago. Mas essa vaziez e essa
feiura não estão na cidade, mas naquilo que ela provoca pelo seu estado de
constante movimento de pessoas, de imagens e de objetos; é a sua condição de
fantasmascópio, de criadora e potencializadora de fantasmagorias que trabalha o
vazio e o preenchimento desse vazio com situações que fogem do controle.
Também está nas relações sociais, na frustração daquilo que as pessoas desejam e
não conseguem, está no inatingível, no que as pessoas desejam e não se
conformam em não ter.
A metáfora do aprisionamento também aparece no encantamento do
narrador-personagem por uma gaiola palaciana e no pavor de Holly pelo objeto, por
não suportar ver bichos dentro de uma gaiola:
I walked down Third Avenue to Fifty-first Street, where there was an
antique store with an object in its window I admired: a palace of a bird
cage, a mosque of minarets and bamboo rooms yearning to be filled
with talkative parrots. But the price was three hundred and fifty
dollars.208
Os dois passeiam pela cidade e o narrador elogia a beleza da gaiola
206
“‘Vamos desejar boa sorte a Doc também’, ela disse, tocando seu copo contra o meu. ‘Boa sorte: e
acredite em mim, querido Doc – é melhor olhar para o céu do que viver lá. Um lugar tão vazio; tão
feio. Apenas um país onde o trovão vai e as coisas desaparecem” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p.
74).
207
A tradução da edição brasileira modifica o sentido da frase ao usar “aqui” como tradução para
“there”: “[…] mais vale ficar olhando para o céu do que morar aqui. Lugar mais vazio, mais vago!
Nesta terra o trovão bate e tudo some”. Apostamos no sentido de there como ‘lá’, o céu, lugar
imaginário e fantasmagórico no contexto da narrativa, relacionado à morte (Cf. CAPOTE, Truman.
Bonequinha de luxo. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2005).
208
“Caminhei pela Terceira Avenida até a Rua 51, onde havia um antiquário com um objeto em sua
vitrine que eu admirava: uma gaiola palaciana, uma mesquita de minaretes e salões de bambu,
ansiando por papagaios faladores. Mas o preço era 350 dólares” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p.
14-15).
86
palaciana admirando-a em frente à vitrine do antiquário ao lado de Holly, que
responde: “But still, it’s a cage”209. Esta gaiola torna-se um símbolo de amizade entre
as personagens, pois o narrador a recebe de Holly como um presente, mas, após
uma briga, termina por devolvê-la, colocando-a na porta de sua casa. Ao vê-la, Holly
coloca-a na lixeira do prédio. O narrador a vê e recolhe-a sentindo-se humilhado, e
conta que carregou o objeto por todos os lugares para onde viveu depois de ter se
separado da amiga.
O fato de Holly não gostar de gaiolas ou de tudo que lembre aprisionamento e
exprima a falta de liberdade é sua justificativa para não dar um nome ao seu gato e
também ao fato de ser um gato, uma criatura autônoma e independente como ela: “a
redtiger-striped tom”:210
[…] poor slob without a name. It’s a little inconvenient, his not having
a name. But I haven’t any right to give him one: he’ll have to wait until
he belongs to somebody. We just sort of took up by the river one day,
we don’t belong to each other: he’s an independent, and so am I. I
don’t want to own anything until I know I’ve found the place where me
and things belong together. I’m not quite sure where that is just yet.
But I know what it’s like.213
A palavra belongs aparece grifada pelo autor e conduz o sentido de pertencer
a algum lugar, a alguém, já mencionado anteriormente como recorrente na narrativa.
Ao final da fala da personagem, o autor insere a ideia de que pessoas e coisas,
juntas, devem pertencer a algum lugar, que essa sensação de pertencimento, de
união harmônica entre pessoas e objetos, pode ser alcançada e está impressa na
memória da personagem, pois, de alguma forma, ela sabe como é.
Ao descrever o gato, o narrador-personagem afirma que ele tem um lado
selvagem e ardiloso:
She scooped up the cat and swung him on to her shoulder. He
perched there with the balance of a bird, his paws tangled in her hair
as if it were knitting yarn; and yet, despite these amiable antics, it was
a grim cat with a pirate’s cutthroat face; one eye was gluey-blind, the
209
“Mas continua sendo uma gaiola” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 55).
210
“um macho vermelho rajado” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 16).
213
“[…] pobre coitado sem nome. É um pouco inconveniente ele não ter um nome. Mas eu não tenho
direito de dar um a ele: terá que esperar até que pertença a alguém. Nós apenas pegamos o rio um
dia, nós não somos um do outro: ele é independente, e eu também. Eu não quero possuir nada até
saber que encontrei o lugar onde eu e as coisas fomos feitos um para o outro. Eu não tenho certeza
de onde isso é ainda. Mas eu sei como é” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 39, grifos do autor).
87
other sparkled with dark deeds.214
O gato é citado 37 vezes na narrativa. Ele retorna ao final, fazendo parte de
um momento de despedida, quando Holly está fugindo da cidade. Ela o deixa numa
esquina, mas depois volta para tentar reencontrá-lo. Capote constrói uma cena
melancólica de despedida, de fracasso, com muito vento e restos de chuva. Não é a
cena romântica do filme adaptado. A heroína de Capote não tem um final definido.
Cabe ao leitor fazer suas conjecturas com base na fala do narrador-personagem,
que dá algumas situações possíveis.
As duas personagens principais de Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s
possuem características rebeldes, buscam uma condição livre para viver: Grady, na
escolha do amor, independentemente da aprovação familiar, e Holly, na busca de
um lugar que seja seu, no qual possa viver livremente. Os sentimentos de Holly são
mais complicados na narrativa do que os de Grady, pois Holly está absorvida pela
angústia existencial de viver, demonstrando o amadurecimento do escritor frente à
criação da segunda personagem. Ambas fazem essas escolhas e lutam por elas.
Capote usa figuras de linguagem para ressaltar suas características
transgressoras, comparando-as a animais selvagens, seja pela aparência física, seja
pelo comportamento próprio do animal selvagem de fugir de jaulas e gaiolas. Porém,
isso é ambíguo, pois as duas manifestam, em determinado momento, o desejo de
fazer parte de uma família, de estar com alguém, o que não se realiza para
nenhuma delas. Grady McNeil, mesmo sendo privilegiada social e financeiramente,
como apresentado em Summer Crossing, também é uma outsider, como Holly
Golightly em Breakfast at Tiffany’s.
Os dois romances são ambientados em Nova Iorque, após a Segunda Guerra
Mundial. Nesse contexto, pensando nas mulheres jovens da década de 1950,
período histórico no qual estão situadas as duas narrativas, as personagens são
mulheres que, cada uma a seu modo, recusam-se a viver sob os valores
estabelecidos por uma sociedade que visa condicioná-las a papéis rígidos de
controle. Com o pós-guerra, os homens voltam para suas casas e querem recuperar
seu lugar na sociedade, seus empregos, ter suas mulheres de volta ao seu antigo
214
“Ela pegou o gato e suspendeu-o até seu ombro. Ele empoleirou-se ali com o equilíbrio de um
pássaro, com suas patas emaranhadas em seus cabelos como se fossem fios de tricô; e, no entanto,
apesar dessas amáveis travessuras, era um gato sombrio com a cara cruel de um pirata; um olho era
grudento, o outro brilhava traiçoeiro” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 34).
88
lugar, como mães e donas de casa. Mas elas não estão dispostas a abdicar da
liberdade adquirida.
Muitas dessas mulheres não estavam mais dispostas a aceitar imposições
sociais como suas mães, matéria-prima perfeita para a construção literária de
Capote e outros escritores, bem como, para filmes. O escritor pinça na sociedade
norte-americana, movida pela ideologia do “American Dream”, tipos que se
posicionam contra os costumes estabelecidos. Não em vão, a década de 1950 é
marcada pelo surgimento/aparecimento de tribos urbanas. Esse (in)surgimento
afirma a insatisfação da juventude como um todo frente à sociedade, bem como a
sua reunião como grupo forte de opinião, o que ocorreu sob forte influência do
cinema e da moda.
2.3 Fantasmagorias sociais: figurações sociais da realidade
2.3.1 Summer Crossing
Em Summer Crossing, Clyde vê Grady como uma “crazy kid”,216 daquelas que
ele conheceu no exército: “sometimes nothing happened except a lot of talk, and that
was all right”.217 Quando conheceu Grady, ele sentiu que podia se aproximar e nada
importava muito, como no exército: “it didn’t matter what you said to them, for in
those transient moments lies or truth were arbitrary and you were whatever you
wanted to be”.218 Ele a rotulou de “garota maluca”, mas o narrador indica que ele
sabia o quanto aquele rótulo era inadequado: “handicapped by the width of her
feeling and the narrowness of his”.219
Clyde lidava com a ampliação do amor por meio do distanciamento. À medida
que mais gostava de Grady, mais demonstrava afastamento: “the less he made her
seem so: because, for Christ’s sake, what was he supposed to do when she walked
out?” 220 Capote evidencia a improbabilidade do relacionamento do casal, mas
também a atração pelas diferenças sociais e individuais que os aproximava e a
216
“garota maluca” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 73).
217
“algumas vezes nada acontecia a não ser muito papo, e estava tudo bem” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 73).
218
“não importava o que dissesse a elas, pois naqueles instantes passageiros mentiras ou verdades
eram arbitrárias e você era qualquer pessoa que desejasse ser” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 73).
219
“prejudicado pela vastidão do sentimento dela e pela estreiteza do seu” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 73).
220
“quanto mais importante ela se tornava, menos ele a fazia parecer importante: porque, pelo amor
de Deus, o que ele faria quando ela fosse embora?” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 74).
89
dificuldade em lidar com essas diferenças.
O narrador descreve um sonho de Clyde no qual há uma fantasmagoria,
ambiguamente, uma projeção do medo do afastamento e do desejo da proximidade:
estavam em um piquenique e Clyde vê Grady morta no lugar de sua irmã Anne.
Quando a personagem desperta de seu sonho, percebe, como numa epifania, a
importância de Grady para sua vida: “when he’d wakened, and seen her face in a
halo of sunlight, there had been a breaking all through him: if he’d known how, it was
then that he would have exposed the fraud of his indifference”.221
Ela, em contrapartida, criou “a mental photograph”222 de Clyde e se agarrava
a esta quando a imagem real não condizia com seus sonhos: “an intense, physical
picture, emphatic as a cut-out on whitepaper”.223 Em alguns momentos impregnados
de realidade, ele viria a parecer “a distortion, another person”,224 como quando ele
se aproximou dela na casa de sua mãe, todo suado e sujo de graxa, consertando a
velha geladeira Frigidaire que a mãe pediu.
Com esses episódios Capote cria momentos de desmascaramento, choques
de realidade para as personagens. Ele as retira do lugar do desejo e expõe o papel
social que o outro ocupa, e por meio da comparação, evidencia a impossibilidade de
sua união. Grady se assusta quando vê a condição de vida de Clyde, a roupa suja
de graxa e pó, por estar consertando a geladeira da mãe, expõe de forma crua a
realidade de sua vida, sua pobreza e sua classe social tão distante da dela. É por
meio do choque dessa imagem que Grady percebe esse distanciamento e se sente
atordoada, não com a sensação de que algo está solucionado, mas sim de que a
situação foi compreendida.
Grady é uma “real person”,225 conforme sua mãe, inacabada, incompleta, uma
criança obstinada e dura como ela própria havia sido, mas não era uma mulher
ainda. Esse pensamento na voz do narrador aparece logo no começo do romance,
quando a mãe se despede da filha no momento em que o navio vai zarpar: “she still
was not a woman, but a girl, a child, and it was a terrible mistake, they could not
221
“quando ele acordou, viu o rosto dela em meio a um halo de luz do sol, sentiu algo se partir dentro
de si: se soubesse como, seria nesse momento que teria revelado a fraude de sua indiferença”
(CAPOTE. Summer Crossing, p. 74).
222
“uma fotografia mental” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 90).
223
“uma fotografia intensa, física, enfática como um recorte vazado em papel branco” (CAPOTE.
Summer Crossing, p. 90).
224
“uma distorção, outra pessoa” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 90).
225
“pessoa de verdade” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 12).
90
leave her here, she could not leave her child unfinished, incomplete, she would have
to hurry, she would have to tell Lamont they mustn’t go”. 227 Ela se arrepende
momentaneamente de deixar a filha sozinha em Nova Iorque e quase volta atrás,
mas o navio parte.
Ela retira o lenço e o agita, se despedindo e enxugando as lágrimas. Como
em outros trechos do romance, fica evidente que Capote está preparando o leitor
para a tragédia que acontece ao final da narrativa. Nesse trecho também acontece a
despedida entre mãe e filha, pois Lucy não verá a filha mais com vida. A relação das
personagens expressa o desejo do modelo ideal e convencional da família
americana: Grady com uma vida “perfeita” como a da própria mãe, casada com um
homem de sua classe social que lhe proporcione a participação nos eventos da
sociedade, ideal para uma moça rica de sucesso, que tenha sua família e filhos. Mas
Capote cria uma personagem selvagem, que transgride regras e faz seu próprio
caminho de forma dissimulada, manipulando a família, seguindo seus instintos.
A relação de Grady com Peter, o amigo de infância, expõe o que deveria ser
sua vida se seguisse as convenções sociais de sua classe social e os desejos de
sua família. Grady se casa com Clyde em segredo, o narrador também sugere que
ela esteja grávida. Peter vai visitá-la contando sobre o fim das férias de verão, o
retorno de todos a Nova Iorque, a entrevista de emprego, os planos para sua
carreira. Eles brindam com martinis e ela lhe deseja sorte. Para Peter, sorte ele já
tem: “It isn’t necessary, I’m lucky anyway, wait, by the time I’m thirty I will have had
the worst kind of success, be able, organized, someone who laughs at people that
want to lie under a tree”. 228 O narrador onisciente diz que essa não era uma
“frivolous prophecy”, mas que seria:
It probably was the happiest thing that could happen to him, for the
man described he secretly, irrevocably admired. And the lady with a
flower garden, this was Grady, the wife worthy of pearls for
Christmas, who entertains at an impeccable table, whose civilized
presence recommends the man, that is what she seemed in his
expectations, and, watching her pour him another cocktail, just as she
might some dusk five years hence, he thought of how the summer
had gone, not seeing her once, never calling, all days dragging
toward the day that, having exhausted herself with whoever he was,
227
“ela ainda não era mulher, mas menina, criança, e foi um erro terrível, eles não podiam deixar ela
aqui, ela não podia deixar o filho inacabado, incompleto, ela teria que se apressar, teria que dizer ao
Lamont que eles não devem ir” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 22).
228
“quando eu estiver com 30 anos vou ter o pior tipo de sucesso, serei capaz, organizado, alguém
que ri das pessoas que se deitam debaixo das árvores” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 102).
91
she would turn to him, saying Peter, is it you?229
Esse pensamento de Peter expressa o que era esperado dos jovens de
classes sociais privilegiadas: que eles se divertissem quando jovens, mas que,
assumindo a vida adulta, deveriam buscar essa esposa perfeita para cumprir o papel
social que muitas delas também buscavam, como a própria mãe de Grady desejou
para a filha. Uma “presença civilizada que dá status ao homem”, frase que se
estivesse em um romance do século XIX estaria também perfeita. Mas Grady é a
moça selvagem que foge a essa regra. Ela se envolve em um relacionamento
proibido e não pensava em casamento até se apaixonar por Clyde.
Grady vislumbra o fato de que seu amigo Peter parece estar apaixonado por
ela e vê com espanto esse fato. Ela pergunta a ele há quanto tempo se conhecem,
ele responde que desde pequenos, quando ela jogou sorvete na sua roupa de
marinheiro. A personagem pergunta se ele a acha diferente agora, se ele realmente
a vê como ela realmente é. Ele diz que não e que não gostaria de ver como ela
exatamente é. Ela pergunta se seria porque assim não iria gostar dela, e Peter
responde “If I claimed to see you as you really are, it simply would mean that I
dismiss you, that I think you shallow and a bore”.230Grady responde:
“You could think much worse of me.” Peter’s silhouette moved
against the deepening green doors, his smile flickered, like the lights
across the park, for, feeling her dishonesty, a sense of ghostly
struggle had seized him: it was as if they were two figures pummeling
around in wrapped sheets: she wants to excuse herself from blame
without confessing why it is I might have cause to blame her. “Much
worse than being a bore?” he said, jacking up his smile. “In that case,
you were right to wish me luck”231
As muitas máscaras que as pessoas carregam são também formas
229
“a coisa mais feliz que poderia lhe acontecer, pois aquele homem que descrevia ele admirava em
segredo, irrevogavelmente. E a dama com um jardim de flores, essa era Grady, a esposa que merece
pérolas de Natal, que sabe entreter em uma mesa impecável, cuja presença civilizada dá status ao
homem, era isso que ele esperava que ela fosse, e, vendo-a servir outro drinque, igualzinho a como
poderia fazer em algum cair da tarde dali a cinco anos, pensou em como o verão havia terminado,
sem vê-la uma só vez, sem nunca telefonar, todos os dias a se arrastar em direção ao dia em que,
tendo se cansado de quem quer que fosse ele, ela se voltaria para ele, dizendo Peter, é você?”
(CAPOTE. Summer Crossing, p. 102).
230
“eu não acho grande coisa de você, acho você fútil e chata” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 103).
231
“‘Você poderia pensar coisas muito piores de mim’. A silhueta de Peter se mexeu contra o fundo
verde cada vez mais escuro das portas, seu sorriso vacilou, como as luzes do outro lado do parque,
pois ao sentir a desonestidade dela, uma sensação de luta fantasmagórica havia se apoderado dele:
era como se fossem duas figuras se degladiando enroladas em lençóis: ela quer se eximir de culpa,
sem confessar que motivo eu poderia ter para culpá-la. ‘Muito pior do que ser chata?’ disse ele,
endireitando o sorriso. ‘Nesse caso você está certa em me desejar boa sorte’” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 103-104).
92
fantasmagóricas de lidar com as relações sociais e interpessoais nas quais estão
envolvidas. As próprias pessoas são produtoras dessas fantasmagorias, ao mesmo
tempo que também as questionam. Na citação de Capote fica evidente o espectro
da fantasmagoria social quando as personagens entram em luta interna, confusas
com o que veem e com o que não podem ver com os olhos, mas pressentem. As
próprias personagens são o maquinário para produzir a fantasmagoria.
A escrita capotiana é cinematográfica. O jogo de palavras usado pelo autor
possui um estilo imagético e rápido, intercalando momentos tensos de pensamentos
íntimos com momentos descritivos do ambiente, que contrastam ou afirmam os
sentimentosdas personagens. O autor demonstra pensar nas ações como se fossem
cenas filmadas, introduz efeitos de fotografia e de luz, efeitos de som, muitas vezes
indica a trilha sonora por meio das músicas que as personagens estão ouvindo
enquanto conversam.
Capote tornou-se uma celebridade muito cedo e transitava entre os campos
literário e cinematográfico, produzindo roteiros e tendo suas próprias obras
roteirizadas e filmadas. Esses recursos podem ser confirmados no trecho a seguir,
quando Clyde acorda na cama de um amigo com o qual estava morando, após ter
contado para sua família que estava casado com Grady. Ele acorda e sente o braço
do amigo e, ainda envolto no sonho, pensa ser Grady, mas percebe o engano e o
afasta. Ilustrando a cena literária, um senhor tocava órgão ao fundo, na rua crianças
soltavam gritos:
[…] he lay there, nursing an image of her, and with a gliding hand he
stroked his parts. Cut it out, said Bubble, leave a guy get his sleep,
and Clyde moved his hand away, ashamed, but Grady remained,
wavering, unfulfilled, and he remembered another girl, one he’d seen
in Germany: it was a spring day, clear, cloudless, he was walking in
the country and, crossing a bridge that spanned a narrow crystal
river, he looked down and saw, as though they were riding below the
surface, two white horses attached to a wagon, their reins twisted
around the arms of a young girl, whose drowned broken face
glimmered under the dancing water; he took off his clothes, thinking
he would cut her loose, but he was afraid, and there she remained,
wavering, unfulfilled, beyond him in death as Grady seemed in life.232
232
“[…] ficou deitado ali, acalentando uma imagem dela, e com a mão escorregadia acariciou suas
partes. Pare com isso, disse Bubble, deixe um homem dormir, e Clyde afastou a mão, envergonhado,
mas Grady ficou, tremeluzindo, inacabada, e ele se lembrou de outra garota, uma que vira na
Alemanha: era um dia de primavera, claro, sem nuvens, ele estava passeando pelo campo e, ao
atravessar uma ponte por cima de um rio estreito e cristalino, olhou para baixo e viu, como se
estivessem cavalgando abaixo da superfície, dois cavalos brancos presos a uma carroça, com as
93
Esse trecho parece apontar momentos em que Clyde esteve no exército e
vivenciou experiências que ficaram marcadas por meio de fortes imagens, como
essa da moça morta com o corpo enrijecido ainda na posição em que esteve
minutos antes de morrer, imersa na água. A descrição também traz uma estética
fantasmagórica, com espectros, ilusões de óptica ampliadas por meio de palavras
como “tremeluzindo, inacabada” e também o próprio encadeamento de ideias e
imagens convertidas no momento de acordar de Clyde. O acordar também traz
consigo a força da fantasmagoria, o momento em que ainda não houve o despertar
completo e a personagem está em um “entre-lugar”, o do sonho e o da realidade, no
qual as coisas se misturam.
Engendrado seu destino, Grady se pergunta “what have I done?” 233 num
momento em que se conscientiza de que sua vida jamais será a mesma. No mesmo
momento em que Clyde se refugia da família com o amigo no subúrbio, Grady vai
para a casa de praia da irmã, escondendo que está grávida de menos de seis
semanas. Na mesa do café da manhã, a irmã lê o telegrama da mãe que regressa
em breve: “her dress has turned out more marvelous than a dream simply
unbelievable”.234 Mesmo não querendo aquele vestido e nem a festa de debut que a
mãe tanto desejava, Grady percebeu que nunca iria usá-lo e a leitura do telegrama
funciona como uma epifania, que faz com que Grady compreenda o alcance dos
acontecimentos ocultos de sua vida:
The sea asked the same, keen gulls repeated the sea. Most of life is
so dull it is not worth discussing, and it is dull at all ages. When we
change our brand of cigarette, move to a new neighborhood,
subscribe to a different newspaper, fall in and out of love, we are
protesting in ways both frivolous and deep against the not to be
diluted dullness of day-to-day living. Unfortunately, one mirror is as
treacherous as another, reflecting at some point in every adventure
the same vain unsatisfied face, and so when she asks what have I
done? she means really what am I doing? as one usually does.235
rédeas enroladas nos braços de uma moça, cujo rosto machucado e afogado cintilava debaixo da
água ondulante; ele tirou as roupas, pensando que poderia soltá-la, mas teve medo, e ela ficou ali,
tremeluzindo, inacabada, além de seu alcance na morte do mesmo jeito que Grady parecia estar em
vida” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 106-107).
233
“o que foi que eu fiz?” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 113).
234
“o vestido dela ficou mais maravilhoso do que um sonho simplesmente inacreditável” (CAPOTE.
Summer Crossing, p. 113).
235
“O mar perguntava o mesmo, gaivotas estridentes repetiam o mar. A maior parte da vida é tão
tediosa que sequer vale a pena falar nela, e é tediosa em todas as idades. Quando trocamos nossa
marca de cigarro, quando nos mudamos para um bairro novo, quando assinamos um novo jornal,
quando nos apaixonamos e nos desapaixonamos, estamos protestando de maneiras que são ao
94
Capote falou muitas vezes em entrevistas e em cartas sobre a sua própria
relação com o tédio da vida cotidiana e da dificuldade em lidar com isso, dos truques
produzidos para driblar essa condição, de que a vida é uma repetição de fatos.
Grady é a porta-voz desse sentimento. Capote ressalta que essa relação de tédio
com o mundo cotidiano é mediada pelos objetos que nos cercam, pelas nossas
ações em busca de algo diferente, novo. Para ele, “estamos protestando de
maneiras que são ao mesmo tempo frívolas e profundas”. O espelho traz um rosto
rígido, aprisiona a feição.
Grady se percebia como uma garotinha brincando de viver. Há uma
comparação momentânea entre si e uma boneca, evidenciando essa visão,
justamente no momento em que ela percebe mais claramente que a relação com
Clyde não tem futuro. É um momento em que ela compreende a sua situação e se
enxerga como ela realmente está, e não como sua imaginação dizia que estava:
By her bed there was a cloth doll, a faded homely girl with tangled
strings of red raggedy hair; her name was Margaret, she was twelve
years old, and probably older, for she’d not been much to look at
when Grady had first found her forsaken by some other child and
lying on a bench in the park. At home everyone had remarked how
much alike they looked, both of them skinny and straggling and red-
headed. She fluffed the doll’s hair and straightened her skirt; it was
like old times when Margaret had always been such a help: oh
Margaret, she began, and stopped, struck still by the thought that
Margaret’s eyes were blue buttons and cold, that Margaret was not
the same anymore.236
Por meio do espelhamento causado na contemplação de Grady, Capote
expõe o amadurecimento da personagem e o autoconhecimento. Ela vê que cresceu,
mas ainda se sente uma irlandesa rica e deslocada, apaixonada por Clyde, um judeu
pobre e também deslocado. Os dois são outsiders, pessoas fora dos padrões
vigentes, pessoas diferentes do esperado pela sociedade. Mas eles não conseguem
mesmo tempo frívolas e profundas contra o tédio indissolúvel da vida cotidiana. Infelizmente,
qualquer espelho é traiçoeiro, e reflete em algum ponto de cada aventura o mesmo rosto frívolo e
insatisfeito, então quando ela pergunta o que foi que eu fiz?, na verdade quer dizer o que é que eu
estou fazendo?, como geralmente acontece” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 113).
236
“Na sua cama havia uma boneca de pano, uma menina rústica e desbotada, com cabelos de tiras
vermelhas emaranhadas e esfarrapadas; o nome dela era Margaret, ela tinha 12 anos, e
provavelmente era mais velha, pois não tinha tido muito o que olhar quando Grady a encontrou pela
primeira vez, abandonada por outra criança e deitada em um banco no parque. Em casa, todos
haviam comentado o quanto as duas eram semelhantes, ambas magras e desgarradas e ruivas. Ela
afofou o cabelo da boneca e endireitou a saia; era como nos velhos tempos em que Margaret sempre
a ajudava: oh Margaret, ela começou, e parou, ainda impressionada com o pensamento de que os
olhos de Margaret eram azuis e frios, que Margaret não era mais a mesma” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 67-68).
95
sair de suas posições sociais, por mais que tentem. São forças invisíveis que agem
refreando os desejos das pessoas.
A metáfora da pessoa aprisionada também aparece no presente que Clyde
pretendia dar a Grady, já nas últimas páginas do romance. Ele vai ao seu encontro
na casa da irmã e leva consigo uma borboleta que capturou num saco de balas de
hortelã. Grady, Clyde e seu amigo Gump se entorpecem com maconha no retorno
para Nova Iorque ao passo que Grady dirige. Eles param num bar e lá está Peter.
Grady é levada por uma mulher ao banheiro enquanto os três rapazes são retirados
do bar. Depois disso, ela caminha sozinha pela rua, procurando seu carro, que
aparece logo em seguida com os três rapazes dentro. Peter está muito machucado e
sangrando, com o braço preso por Clyde. Ela se descontrola e, quando estão sobre
a ponte Queensboro, segura o volante e joga o carro para a morte.
Capote tinha muita dificuldade em encontrar “um final satisfatório” 237 para
suas narrativas. Para Summer Crossing, ele escolheu um fim trágico, com o suicídio
de Grady e o assassinato dos três rapazes.
2.3.2 Breakfast at Tiffany’s
Em Breakfast at Tiffany’s, Holly é uma “real phony”. É possível compreender o
sentido da expressão usada por Capote no diálogo a seguir:
“So,” He Said, “what do you think: is she or ain’t she?”
“Ain’t she what?”
“A phony.”
“I wouldn’t have thought so.”
“You’re wrong. She is a phony. But on the other hand you’re right.
She isn’t a phony because she’s a real phony. She believes all this
crap she believes. You can’t talk her out of it. I’ve tried with tears
running down my cheeks. Benny Polan, respected everywhere,
Benny Polan tried. Benny had it on his mind to marry her, she don’tgo
for it, Benny spent maybe thousands sending her to head-shrinkers.
Even the famous one, the one can only speak German, boy, did he
throw in the towel. You can’t talk her out of these” – he made a fist, as
though to crush an intangible – ideas. Try it sometime. Get her to tell
you some of the stuff she believes”.238
237
CLARKE. Capote, p. 290.
238
“‘Então’, ele disse, ‘o que você acha: ela é ou não é?’ / ‘É o quê?’ / ‘Uma impostora’. / ‘Eu não teria
pensado assim’. / ‘Você está enganado. É uma impostora. Mas por outro lado também está certo.
Holly não é uma impostora porque é impostora de verdade. Ela acredita em toda essa porcaria que
ela acredita. Não há quem a convença do contrário. Eu tentei com lágrimas escorrendo pelas minhas
bochechas. Benny Polan, respeitado em todos os lugares, Benny Polan tentou. Benny tinha em
96
Esse diálogo se passa entre o narrador e O. J. Berman, seu ex-agente,
personagem já apresentada anteriormente. Como também já foi citado, Holly não
acredita que suas ações façam dela uma prostituta, pois ela acredita que está em
busca de algo e nesse caminho as coisas vão acontecendo, as pessoas vão
surgindo, mas nada disso a faz ser, de fato, uma prostituta. O narrador deixa
pressupor que ela é um tanto ingênua, mas que também não se preocupa muito com
a opinião pública. Ela nomeia os homens de “rats”,239 e, em contrapartida, eles a
chamam de “baby”.240
A expressão paradoxal “She believes all this crap she believes”241 incorpora a
ideia de fantasmagoria social. Holly projeta suas fantasias e mentiras, acreditando
nelas a ponto de fazer loucuras em função disso. São projeções representativas não
somente da personagem, mas de toda uma geração de garotas jovens numa
sociedade que se sustenta com base nessas projeções.
A personagem diz não ter nada contra as prostitutas, mas elas têm o coração
desonesto, pois fazem sexo por dinheiro, sem pelo menos tentar acreditar que
podem amar: “you can’t bang the Guy and cash his check sand at least not try to
believe you Love him”. 242 Ela admite o esforço em tentar amá-los: “I sort of
hypnotized myself into thinking their sheer rattiness had a certain allure”. 243 A
justificativa para não ser uma prostituta de verdade é que ela estava em busca de
alguém que pudesse amar de verdade.
A expressão “Tell me, are you a real writer?”,244 quando Holly questiona o
narrador sobre seu status de escritor não publicado, também demonstra uma
fantasmagoria social, pois quer expressar uma imagem do que deveria ser um
escritor de verdade. Para se assumir como um escritor “de verdade” o narrador
mente se casar com ela, ela não queria, Benny gastou talvez milhares de dólares a mandando para
psiquiatras. Até o famoso, o que fala somente alemão, cara, até ele jogou a toalha. Você não
consegue tirar ela dessas’ – ele apertou o punho, como se para esmagar algo intangível – ‘ideias.
Tente algum dia. Peça a ela pra te contar algumas das coisas que ela acredita’” (CAPOTE. Breakfast
at Tiffany’s, p. 29-30, grifos do autor).
239
“ratos”. São 10 menções à palavra, sempre relacionada aos homens.
240
“bebê”. O sentido atribuído pode ser o de “docinho” (como usado na tradução para a língua
portuguesa). Também pode ser atribuído à “namorada” (em um sentido romântico que não está na
narrativa de Capote), ou usado no momento do ato sexual, segundo o Urban Dictionary.
241
“Ela acredita em toda essa porcaria que ela acredita” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 29.
242
“você não pode transar com o cara e descontar seus cheques e sem pelo menos tentar acreditar
que você o ama” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 82).
243
“Eu meio que me hipnotizei em pensar que sua grosseria tinha um certo fascínio” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 82).
244
“Diga-me, você é um escritor de verdade?” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 19).
97
deveria ter publicado algo e alguém deveria tê-lo pago por isso.
A personagem é fascinada pela joalheria Tiffany’s, para ela é uma espécie de
porto seguro. São seis menções importantes ao local na narrativa e todas sempre
fazem referência a um local onde Holly se sente bem: “I want to still be me when I
wake up one fine morning and have Breakfast at Tiffany’s.”245 É lá que Holly termina
sua noite, essa refeição encerra o “serviço noturno” à medida que se deixa encantar
pela vitrine, sonhando com um mundo ao qual não pertence. Ela cria esse ritual para
poder se acalmar e suportar as pressões de sua vida. Não por acaso, essa é a
escolha de Capote para o título da narrativa, associar a angústia que a personagem
sente a um local que é capaz de mantê-la segura.
A personagem diz não pertencer a nenhum lugar e por isso não possui bens,
incluindo o que ela chama de “coisas”: “I don’t want to own anything until I know I’ve
found the place where me and things belong together. I’m not quite sure where that
is just yet. But I know what it’s like”.246
A Tiffany’s é o local onde ela consegue se estabilizar emocionalmente para
não perder seu ego. Não tem a ver com os diamantes, mas com a atmosfera do
local. Ela tem um sentimento profundo que explica não estar associado à tristeza:
You know those days when you’ve got the mean reds?” “Same as the
blues?” “No,” she said slowly. “No, the blues are because you’re
getting fat or maybe it’s been raining too long. You’re sad, that’s all.
But the mean reds are horrible. You’re afraid and you sweat like hell,
but you don’t know what you’re afraid of. Except something bad is
going to happen, only you don’t know what it is. You’ve had that
feeling?” “Quite often. Some people call it angst.”247 248
245
“Eu ainda quero ser eu mesma quando eu acordar numa bela manhã e tomar café da manhã na
Tiffany’s” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 39).
246
“Eu não quero possuir nada até saber que encontrei o lugar onde eu e as coisas pertencemos. Eu
não tenho certeza de onde isso é ainda. Mas eu sei como é” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 39).
247
“‘Você sabe aqueles dias em que você está numa pior? Igual à tristeza?’ ‘Não’, ela disse
lentamente. ‘Não, a tristeza é porque você está engordando ou talvez esteja chovendo há muito
tempo. Você está triste, isso é tudo. Mas quando você está numa pior é terrível. Você está com medo
e você sua como no inferno, mas você não sabe do que tem medo. Exceto que algo ruim vai
acontecer, só você não sabe o que é. Você teve essa sensação?’ ‘Muitas vezes. Algumas pessoas
chamam isso de angst’” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 39-40, grifos do autor).
248
As expressões “as the blues” e “mean reds” usadas por Capote perderam os sentidos relativos à
cor na minha tradução porque tentei manter o sentimento relacionado à personagem. Mantive a
palavra angst por abranger um significado maior do que apenas angústia ou estado depressivo. De
acordo com Wierzbicka, a palavra angst tem origem alemã e significa “aproximadamente um
cruzamento entre ‘ansiedade’ e ‘medo’, mas com um toque de mistério ou insegurança existencial”
(WIERZBICKA, Anna. Angst. Culture & Psychology, v. 4, n. 2, p. 161-188, 1998). No período da
Segunda Guerra Mundial, a palavra adquiriu um sentido ligado aos conflitos.
98
Holly diz que já tentou de tudo para apaziguar esse sentimento: bebida,
aspirina, maconha, mas nada resolve, a não ser ir até a Tiffany’s:
It calms me down right away, the quietness and the proud look of it;
nothing very bad could happen to you there, not with those kind men
in their nice suits, and that lovely smell of silver and alligator wallets.
If I could find a real-life place that made me feel like Tiffany’s, then I’d
buy some furniture and give the cat a name.249
Esse trecho pode sugerir a ideia de um lugar para se ter uma vida de verdade,
gerando um sentido ambíguo, pois Capote não diz “a real place”, mas sim: “a real-
life place”.
Capote expõe uma forma de fingimento que torna o ato verdadeiro. A amiga
de Holly, Mag Wildwood é uma modelo altíssima, extremamente magra e gaga. Ela
entra como penetra numa festa na casa de Holly, onde não havia outras mulheres,
depois de fazer fotos na cobertura do Sr. Yunioshi, o fotógrafo:
She was a triumph over ugliness, so often more beguiling than real
beauty, if only because it contains paradox. In this case, as opposed
to the scrupulous method of plain good taste and scientific grooming,
the trick had been worked by exaggerating defects; she’d made them
ornamental by admitting them boldly. Heels that emphasized her
height, so steep her ankles trembled; a flat tight bodice that indicated
she could go to a beach in bathing trunks; hair that was pulled
straight back, accentuating the spareness, the starvation of her
fashion-model face. Even the stutter, certainly genuine but still a bit
laid on, had been turned to advantage. It was the master stroke, that
stutter; for it contrived to make her banalities sound somehow
original, and secondly, despite her tallness, her assurance, it served
to inspire in male listeners a protective feeling. To illustrate: Berman
had to be pounded on the back because she said, “Who can tell me
w-w-where is the j-j-john?”; then, completing the cycle, he offered an
arm to guide her himself.250
249
“Isso me acalma imediatamente, a quietude e o orgulho ali; nada muito ruim poderia acontecer
com você lá, não com aqueles homens gentis em seus ternos agradáveis, e aquele cheiro adorável
de carteiras de prata e de jacaré. Se eu pudesse encontrar um lugar na vida real que me fizesse
sentir como na Tiffany's, então eu compraria alguns móveis e daria um nome ao gato” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 40).
250
“Ela era um triunfo sobre a feiura, o que muitas vezes é mais sedutor do que a beleza real, ao
menos por conter algum paradoxo. Ao contrário do método escrupuloso do bom gosto e do preparo
científico, o truque havia sido trabalhado exagerando os defeitos: ela os tornara ornamentais,
assumindo-os com ousadia. Saltos que realçavam sua altura, tão íngremes que os tornozelos
tremiam: um corpete reto e apertado, indicando que ela poderia ir à praia usando sunga; cabelos
repuxados para trás, acentuando a magreza, a inanição do rosto de modelo. Até mesmo o gaguejar,
certamente genuíno e ao mesmo tempo fingido, fora convertido em vantagem. Era o golpe de mestre,
aquela gagueira; pois fazia suas banalidades soarem como originais; e em segundo lugar, apesar da
altura, apesar da autoconfiança, inspirava nos ouvintes do sexo masculino o instinto protetor”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 44-45).
99
Mag seria considerada feia por não ser o biótipo idealizado pela beleza
masculina do período: era alta demais, magra demais, chegando a não ter seios
aparentes, e ainda, com gagueira. Novamente as convenções sociais criam padrões.
Ela não tem uma beleza ideal/real, mas uma beleza estranha e hipnótica, que foge
ao lugar comum, e que induz nos homens o sentimento de proteção por sua
aparente e contraditória fragilidade. Na festa, Capote explicita o quanto sua altura
afetava os homens à sua volta, fazendo com que se espichassem, procurando
alcançá-la um pouco: “She stooped toward O.J. Berman, who, like many short men
in the presence of tall women, had na aspiring mist in his eye”.251 As mulheres
tornam-se verdadeiras peritas em converter características pessoais inapropriadas
para o contexto social usando artifícios, como a moda e a dissimulação, para
transformá-las em vantagens.
Comparando agora Grady com Holly enfatizando as diferenças entre as
personagens, as duas têm raízes distintas. Grady é uma “moça de família”, com
costumes tradicionais e status social, filha de “novos ricos”; Holly é uma prostituta de
luxo que, ao contrário de Grady, não tem vínculos familiares, com exceção do irmão
que foi morto na guerra. Mas as duas personagens não se sentem mitigadas pelas
circunstâncias de suas vidas, pelo contrário, estão em constante busca por liberdade.
Para Capote, palavras como liberdade e felicidade se entrelaçam no campo das
ideias e dos sentimentos, sendo requisitadas e testadas a todo instante, associadas
aos sonhos realizados e aos aniquilados, às possibilidades de realização e também
aos obstáculos impostos às realizações.
As duas personagens são projeções fantasmagóricas de mulheres
características da sociedade americana e refletem circunstâncias bem específicas
da época: seus conflitos e medos, suas atitudes, os modelos e padrões que
deveriam seguir. A introdução do esporte na vida social, tanto para homens quanto
para mulheres, as duas grandes guerras como fatores de inclusão da mulher nas
frentes de trabalho e as lutas feministas são alguns dos fatores que trouxeram esse
cenário e culminaram na abordagem desses aspectos na arte e na cultura.
251
“Ela se inclinou em direção a O.J. Berman, que, como muitos homens baixos na presença de
mulheres altas, tinha uma névoa inebriante em seus olhos” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 44).
100
2.4 Universo queer
A distinção entre os papéis sociais de gênero ainda era bem demarcada na
sociedade americana nas primeiras décadas do século XX. Apesar disso, havia uma
instabilidade nesses papéis que submergia da arte e da cultura. A literatura e o
cinema das décadas de 1950 e 1960 são caracterizados por obras que traziam de
forma subliminar os questionamentos da juventude frente à legitimidade desses
papéis.
Vários escritores, entre eles Truman Capote, eram homossexuais e escreviam
sobre o universo queer, algumas vezes evidenciando personagens gays, outras
vezes trazendo para a narrativa os conflitos existentes na vida de pessoas
bissexuais ou homossexuais, questionamentos de identidade sexual, formas de ver
o estranho, o outsider. Breakfast at Tiffany’s e Summer Crossing trazem falas das
personagens principais explicitando a sua bissexualidade, bem como mostram
outras personagens, muitas vezes sutilmente, que supostamente são gays ou
demostram que essas definições não são tão importantes.
Capote insere esses questionamentos nas duas narrativas analisadas nesta
tese. Esse aspecto foi retirado da obra fílmica Breakfast at Tiffany’s, que será
abordado na seção seguinte, mas permanece como um traço importante nas duas
obras capotianas.
A distinção do “tipo” homossexual como categoria e “desvio da norma”
acontece a partir da segunda metade do século XIX: “antes as relações amorosas e
sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas como sodomia (uma
atividade indesejável ou pecaminosa à qual qualquer um poderia sucumbir)”.252
O termo queer utilizado nesta tese adquire ênfase justamente no período em
que Truman Capote escreve, por volta de 1950. A escolha do termo se justifica por
sua afinidade com ideias explicitadas nas falas das personagens e do autor, também
por sua principal característica: sua amplitude. O que é queer?
[…] é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da
sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais,
travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e
muito menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não
aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de
252
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013. p. 29.
101
ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o
desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível.
Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e
fascina.253
A teoria queer evidencia a “heteronormatividade” de gênero, isto é, há uma
“matriz heterossexual” que “delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo
tempo, paradoxalmente, fornece a pauta de transgressões.”254 A literatura de Capote
pensa e lida com a transgressão a partir do que é julgado pela sociedade como
“normal”. Suas personagens se opõem dessa forma: uma evidencia o normal, ao
passo que a outra evidencia o estranho. Esse efeito é “estético”, ocorrendo por meio
de metáforas, comparações e simulações, que evidenciam uma tensão, no sentido
mesmo de retesamento. As fronteiras entre o normal e o estranho são o lugar de
algumas das personagens.
2.4.1 Summer Crossing
Em Summer Crossing, Grady cita uma experiência entre garotas que expõe o
desejo feminino pelo mesmo sexo:
At school, where all the girls had crushes on one another and trailed
in sweetheart pairs, she had kept to herself: except once, and that
was when she’d allowed Naomi to adore her. Naomi, scholarly, and
bourgeois as a napkin ring, had written her passionate poems that
really rhymed, and once she’d let Naomi kiss her on the lips. But she
had not loved her: it is very seldom that a person loves anyone they
cannot in some way envy: she could not envy any girl, only men: and
so Naomi became mislaid in her thoughts, then lost, like an old letter,
one which had never been carefully read.255
Capote evidencia algumas características de Grady que são reforçadas no
decorrer da narrativa: que ela gostava de ficar sozinha, “à parte”, que ela invejava os
homens e sua autonomia. A experiência com Naomi não resultou em amor, porque
Grady não pode admirá-la. De certa forma, a personagem manifesta a estranheza
253
LOURO. Um corpo estranho, p. 7-8.
254
LOURO. Um corpo estranho, p. 17.
255
“Na escola, onde todas as garotas se sentem atraídas umas pelas outras e seguiam em
casaizinhos, ela se mantivera a parte: exceto uma vez, e foi quando permitiu que Naomi a adorasse.
Naomi, erudita e burguesa como um anel de guardanapo, escreveu poemas apaixonados que
realmente rimavam. E uma vez deixara Naomi beijá-la nos lábios. Mas ela não a amou: é muito raro
que uma pessoa ame alguém que não possa de alguma forma invejar: ela não poderia invejar
nenhuma garota, apenas homens: e então Naomi se dispersou em seus pensamentos, depois
perdeu, como uma velha carta, que nunca havia sido lida com atenção” (CAPOTE. Summer Crossing,
p. 98).
102
com que é vista por todos, incluindo sua mãe que lhe deu um nome masculino.
Grady admira os homens e a sua liberdade em fazer as coisas,
diferentemente das mulheres que conhece, todas dominadas pela relação do
casamento e da entrega aos filhos ou às futilidades da vida social. Até mesmo sua
aparência esuas escolhas estéticas trazem esse traço marcante: os cabelos curtos,
sem maquiagem ou enfeites. A expressão “de verdade”, muito cara a Capote,
aparece nesse excerto duas vezes.
O amigo Peter Bell é descrito em minúcias ressaltando a importância de sua
imagem em relação à construção interna da personagem, o que parece também
querer deixar em aberto as suas preferências sexuais:
A young man expensively but perversely dressed (he wore a white
evening tie with a severe flannel suit, the trousers of which were held
up by a wild-west belt of jeweled inappropriateness, and on his feet
there were a pair of tennis sneakers), he was pocketing change at the
cigar counter. As he went toward her, she going half-way to meet
him, he walked with the easy grace of one who expects always to
know the best things of life.256
Peter é um estudante de direito que foi expulso de Cambridge; ousado, um
fashionista capaz de fazer combinações extravagantes no seu vestuário,
demonstrando autoconfiança e poder, além de com isso evidenciar sua classe social.
Ele também é descrito como uma pessoa que não tem sucesso social, assim como
Grady, mas por motivos diferentes. Exatamente isso os aproximava:
[…] and yet it was this very condition which had so sworn them
together, for Grady, who cared not one way or the other, loved Peter,
and had joined him in his outside realm quite as though she belonged
there for the same reason he did: Peter, to be sure, had taught her
that she was no more liked than himself: they were too fine, it was not
their moment, this era of the adolescent, their appreciation he said
would come at a future time. Grady had never bothered about it; in
that sense, she saw, thinking back over what seemed now a
ridiculous problem, she’d never been unpopular: it was just that she’d
never made an effort, not felt deeply that to be liked was of
importance.257
256
“Um rapaz vestido com roupas caras, mas excêntricas (usava uma gravata branca à noite com um
sério terno de flanela, as calças presas por um inapropriado cinturão do velho oeste selvagem cheio
de joias e nos pés um par de tênis), ele estava embolsando o troco no balcão de charutos. Como ele
foi em direção a ela, ela foi ao meio do caminho para encontrá-lo, ele andou com a graciosidade de
quem espera sempre conhecer as melhores coisas da vida” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 14).
257
“[…] e, no entanto, foi justamente essa condição que os uniu, pois Grady, que não se importava de
um jeito ou de outro, amava Peter e se juntara a ele em seu reino exterior, como se ela pertencesse
àquele lugar pelo mesmo motivo: Peter, com certeza, havia lhe ensinado que ela era tão pouco
103
Esse período histórico da narrativa é considerado a era da juventude, o
momento em que os jovens passam a consumir produtos e ter voz de mercado. É o
período no qual a publicidade vai atuar mais enfaticamente nas faixas etárias mais
jovens, incentivando o consumo, acelerando o sistema da moda, modificando a arte
e a cultura por meio do consumo em massa.
A diferença entre Grady e Peter é que ele mantinha “a sand castle of
protection”,258 que os dois haviam construídos juntos na infância, e Grady acreditava
que “Such castles should deteriorate of natural and happy processes”.259
Há um trecho bastante ambíguo em relação Peter, narrado sob o ponto de
vista dessa personagem, no momento em que ele se dá conta de que está
apaixonado por Grady:
It was curious to him that he had not before come to this conclusion
from the evidence at hand. The cloud of sandcastles and friendship
signed in blood had been allowed to obscure too much: even so, the
evidence of something more intense had always been there, like
sediment at the bottom of a cup: it was she, after all, with whom he
compared every other girl, it was Grady who touched, amused,
understood: over and again she had helped him to pass as a man.
And more: part of her he felt was the result of his own tutoring, her
elegance and her judgments of taste; the strength of will she so
fervently possessed he took no credit for: that, he knew, was much
the superior of his own, and indeed, it was her will that frightened him:
there was a degree to which he could influence her, after that she
would do precisely as she wanted. God knows, he had nothing to
offer, not really. It was possible that he never could make love with
her, and if he did probably it would dissolve into the laughter, or the
tears, of children playing together: passion between them would be
remarkable, even ludicrous, yes, he could see that (though he did not
see it squarely): and for a moment he despised her.260
querida como ele: eles eram muito refinados, e este não era o momento deles, essa era dos
adolescentes, sua apreciação, ele disse, viria em um momento futuro. Grady nunca se importou com
isso; nesse sentido, ela viu, pensando sobre o que agora parecia um problema ridículo, ela nunca
tinha sido impopular: era só que ela nunca fez um esforço, não sentiu profundamente que ser popular
era importante” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 20).
258
“um castelo de areia protetor” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 20).
259
“Castelos assim deveriam se deteriorar por meio de processos naturais e felizes” (CAPOTE.
Summer Crossing, p. 20).
260
“Era curioso para ele que não tivesse chegado a essa conclusão a partir das evidências a mão. A
nuvem de castelos de areia e a amizade assinada com sangue obscureceram coisas demais: mesmo
assim, a evidência de algo mais intenso sempre esteve lá, como sedimentos no fundo de um copo:
era ela, afinal de contas, com quem ele comparou todas as outras garotas, foi Grady quem
emocionava, divertia, compreendia: uma e outra vez ela o ajudara a passar como homem. E mais: ele
sentia que parte dela era o resultado de suas próprias lições, sua elegância e seus julgamentos de
gosto; a força de vontade que ela tão fervorosamente possuía, ele não tinha nenhum crédito: isso, ele
sabia, era muito superior ao seu e, de fato, era sua vontade que o assustava: havia um grau em que
ele podia influenciá-la, depois de que ela faria exatamente o que ela queria. Deus sabe, ele não tinha
104
Essa reflexão de Peter sobre a presença de Grady em sua vida deixa dúvidas
sobre sua sexualidade, em alguns trechos isso é mais evidente, em outros, menos.
Há uma colaboração mútua na construção de suas personalidades, que parece
confundir a personagem. Sua reação ao pensar em fazer sexo com Grady expõe o
seu terror na descoberta de algo desconhecido, uma cena que poderia se tornar
ridícula. Por serem quase irmãos? Por Peter considerar que deveriam se casar após
toda a diversão da juventude, como um ato certo a se fazer, de resiliência frente aos
estatutos familiares sociais? São questões deixadas em aberto pelo autor.
A irmã de Clyde é uma dessas personagens estranhas. É uma garota
raquítica e atrofiada que aos três anos de idade sofreu um enfarte e que aos 19
anos não parecia ter mais do que 10 ou 11; entendia de motores de carros tanto
quanto qualquer homem, desenhava-os fantasiosamente, admirando-os como se
pudessem voar, transpostos em aviões interplanetários. A descrição de Anne, que
morre no meio da narrativa, é peculiar:
Until she was seventeen Anne had worn infantile clothes from
Ohrbach’s children’s department; then, justoneday, she bought her
self a pair of three-inch heels, a razzle-dazzle dress or two, a pair of
false breasts, a compact and a bottle of pearl-colored nail polish;
swishing along the streets in her new décor, she looked like a little girl
in masquerade: strangers laughed.261
Anne é vista pelos estranhos como um travesti, uma drag às avessas, que
fabrica para si um corpo inexistente, com uma sexualidade impossível no corpo de
menina. Uma mulher com corpo de menina, que usa roupas que delimitam um corpo
inventado, criando curvas que não possui, representando os trejeitos femininos
como numa encenação que deixa a todos confusos. O irmão a defendia do riso dos
outros, espancava homens que riam dela, criticava a outra irmã que se sentia
envergonhada e detestava seu jeito de vestir e de ser, passando o dia inteiro em
uma oficina de carros, rodeada de homens: “what do you suppose people think of
me when there is my own sister dressed like a trollop and loafing with every bum in
nada a oferecer, na verdade não. Era possível que ele nunca pudesse fazer amor com ela, e se o
fizesse provavelmente se dissolveria no riso, ou nas lágrimas, de crianças brincando juntas: a paixão
entre elas seria notável, até mesmo ridícula, sim, ele podia ver isso (embora ele não o tenha visto
honestamente): e por um momento ele a desprezou” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 50-51).
261
“Até os 17 anos, Anne havia usado roupas infantis da loja de departamentos Ohrbach; então, um
dia, ela comprou um par de saltos de oito centímetros, um ou dois vestidos escandalosos, um par de
seios falsos, um estojo compacto e um esmalte cor de pérola; rebolando pelas ruas em seu novo
visual, ela parecia uma menininha disfarçada: os desconhecidos riam” (CAPOTE. Summer Crossing,
p. 72).
105
the neighborhood?”262 Anne se “monta”263 como uma drag faz.
Anne não se vê como transgressora. Ela se veste e se porta como deseja,
transparecendo para os outros uma característica de dissimulação, mas que o
narrador não denota dessa forma. Pelo contrário, pois é por meio desse poder que
ela incorpora em sua imagem inventada que ela se impõe. Ela é inocente em suas
palavras, tornando-se livre de julgamentos na medida em que cria sua própria
identidade sem se deixar afetar pela sociedade. Ela manipula seu corpo de forma a
construí-lo e ampliá-lo por meio de um simulacro.
Estabelecendo um cenário, algumas frases ecoam na narrativa,
superficialmente ligadas às personagens que as formulam com o intuito de registrar
o pensamento comum feminino da geração antiga, o desejo do filho homem, a
condição de continuidade do patriarcado. A mãe de Clayde diz: “A woman without
sons has no consequence: she is not well thought of”;264 “The man is everything, a
delicate everything […] And the man inside the child: that is what a mama must
guard and trust”.265 A avó de Grady somente aprovou o casamento de sua mãe com
seu pai após constatar sua virilidade: “Manly”. 266 O ideal a ser seguido pelas
gerações seguintes era o do casamento perfeito, entre gêneros distintos e classes
sociais iguais. A manutenção da situação familiar para os ricos, como Grady McNeil.
A discussão subliminar de Truman Capote em suas narrativas expõe esse
construto social de identidades, não necessariamente apenas do sujeito
homossexual, mas do sujeito estranho, fora do lugar, do ridículo, do destacado. Não
são personagens politizadas que carregam bandeiras, mas que transitam nas
narrativas contando suas histórias e expondo as normas vigentes e as suas
transgressões.
262
“O que você acha que as pessoas pensam de mim quando a minha própria irmã está vestida como
uma puta e vadiando com todos os vagabundos da vizinhança?” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 71).
263
“A ‘montaria’ consiste na minuciosa e longa tarefa de transformação de seu corpo [da drag], um
processo que supõe técnicas e truques […] É nesse momento em que a drag efetivamente incorpora,
que ela toma corpo, que ela se materializa e passa a existir como personagem” (LOURO. Um corpo
estranho, p. 87).
264
“Uma mulher sem filhos homens não tem finalidade: não pensam bem dela” (CAPOTE. Summer
Crossing, p. 83).
265
“Um homem é tudo, um delicado tudo […] e o homem dentro do menino: é isso que uma mãe deve
proteger e confiar” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 84).
266
“Viril” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 10, grifo do autor).
106
2.4.2 Breakfast at Tiffany’s
Em Breakfast at Tiffany’s, há uma exposição muito mais ampla do tema queer,
demonstrando o interesse direto do autor em discuti-lo. O narrador é um amigo, que
podemos supor ser gay, com o qual Holly Golightly se diverte e com quem acaba
mantendo uma relação de apoio, tentando ajudá-lo e procurando ajuda quando
precisa. Entretanto, Capote não cria uma personagem “assumida”. Elas se tornam
verdadeiras amigas, mas é uma amizade de cidade grande, na qual as pessoas
podem não estar o tempo todo juntas em função dos compromissos pessoais de
cada uma. Principalmente Holly, que trocava o dia pela noite.
Holly traz em seus diálogos várias reflexões a respeito do universo queer.
Falando sobre José, seu noivo, ela comenta seu pensamento em relação às opções
sexuais das pessoas, ao amor:
If I were free to choose from everybody alive, just snap my fingers
and say come here you, I wouldn’t pick José. Nehru,267 he’s nearer
the mark. Wendell Willkie.268 I’d settle for Garbo any day. Why not? A
person ought to be able to marry men or women or – listen, if you
came to me and said you wanted to hit chup with Man O’ War,269 I’d
respect your feeling. No, I’m serious. Love should be allowed.270
Os dois homens citados, como José, são figuras públicas do meio político,
tanto Nehru e Wendell Wilkie. O Man o’War, colocado nesse meio, pode ser uma
referência a um navio de guerra ou a um homem de guerra, como também era um
cavalo de corridas que alcançou muita notoriedade por sua alegria e velocidade
aparentemente ilimitada, levando muitas pessoas para as pistas de corrida no
período entre as guerras e durante a Segunda Guerra Mundial. Grandes campeões
267
“A primeira pessoa a se tornar primeiro-ministro da Índia foi Jawaharlal Nehru, que assumiu o
cargo em 1947. Por mais de 20 anos, ele trabalhou comMahatma Gandhipara libertar a Índia do
domínio britânico. O povo indiano o chamou de Pandit, que significa ‘homem sábio’” (Cf.
JAWAHARLAL Nehru).
268
Wendell Willkie foi advogado e candidato republicano à presidência dos EUA, em 1940, concorreu
tentando destituir o presidente Franklin D. Roosevelt. Cf.:
. Acesso em: 10 abr. 2019.
269
“A expressão man-of-war (plural: men-of-war; literalmente ‘homem de guerra’), man of war ou
mano'war, por vezes abreviada ‘man’ era usada pela Marinha Real Britânica para designar um navio
de guerra de grande poder militar entre os séculos XVII e XIX” (Cf. MAN-of-War). Outra possibilidade
de interpretação está no fato de naquele período haver um cavalo de corrida famoso com este nome
(Cf. MAN o’War: racingicon).
270
“Se eu fosse livre para escolher entre todos os que estão vivos, apenas estalar meus dedos e
dizer você vem aqui, eu não escolheria José. Nehru, ele está mais perto da marca. Wendell Willkie.
Eu me decidiria por Garbo a qualquer dia. Por que não? Uma pessoa deveria ser capaz de se casar
com homens ou mulheres ou – veja bem, se você viesse até mim e dissesse que queria se atracar
com um garanhão, eu respeitaria seus sentimentos. Não, é sério. O amor deveria ser permitido”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 82-83).
107
eram heróis nacionais: Babe Ruth, no baseball, Jack Dempsey, no boxe, e Jack
Kelly, no remo. Todos são símbolos de masculinidade. O garanhão Man o’War
possui essa representatividade.
Ao dizer que o narrador poderia “to hit chup with Man o’ War”, há uma
sugestão de que Holly está lhe dizendo que aceitaria se ele fosse gay. Ela mostra
que não tem preconceitos, demonstrando um posicionamento frente à opção sexual
e à liberdade de escolha. Capote também cita Greta Garbo, uma figura pública que o
impressionava bastante. O autor a descreve como um mito, “um símbolo”, e conta
que a viu duas vezes, uma vez no teatro, outra, em uma loja de antiguidades:
Fiquei surpreso por ela ser tão pequena e tão vivamente colorida:
como Loren MacIver comentou, ninguém espera encontrar cor
também, além daquela silhueta.
Alguém perguntou:
– Acha que ela é inteligente?
A pergunta me pareceu ultrajante; francamente, quem se importa
com ela ser ou não inteligente? Certamente, é o bastante que tal
rosto possa existir, embora a própria Garbo deva ter lamentado a
responsabilidade trágica de possuí-lo. Nem é piada a história de que
ela quer ficar sozinha; é claro que quer. Imagino que essa é a única
hora em que ela não se sente sozinha: se você percorre um caminho
singular, carrega sempre uma certa quantidade de sofrimento e
pesar, e não se chora em público.271
Essa mesma qualidade, a de ser colorida, Capote associa às suas duas
personagens, Grady e Holly, dizendo que elas precisam trazer para si cores sóbrias,
já que elas próprias já são coloridas e marcantes. A imagem de Garbo é tão
marcante que ela nem precisa ser inteligente, sendo essa característica a causa do
desejo de estar só, talvez de não ter ninguém a observando, admirando e julgando.
Escandalosamente, para a sociedade da época, Capote a coloca como amante ideal
no imaginário da personagem, pois Holly exprime sem pudores a sua atração por
Garbo. Talvez estivesse sugerindo ao narrador que “saísse do armário”.
Há outros trechos nos quais Holly se diz lésbica. Logo no início da narrativa, o
narrador lê para Holly um conto seu, e ela aparentemente não gosta da história:
“Is that the end?” she asked, waking up. She floundered for
something more to say. “Of course I like dykes themselves. They
don’t scare me a bit. But stories about dykes bore the bejesus out of
271
CAPOTE, Truman.Truman Capote [Ensaios]. Tradução de Débora Isidoro. São Paulo: Leya, 2010.
p. 19-20.
108
me272. I just can’t put myself in their shoes. Well really, darling,” she
said, because I was clearly puzzled, “if it’s not about a couple of old
bull-dykes, what the hell is it about?”273
Depois que o narrador lê a história, o que ele considera um grande erro, pois
viu que Holly não era o tipo de leitora que apreciaria o que ele escreve, ela pergunta
se ele não conhece “any nice lesbians”274 para ser companheira de quarto, afinal, ela
não tinha como pagar uma empregada e as lésbicas são “wonderful homemakers,
they love to do all the work, you never have to bother about broom sand defrosting
and sending out the laundry”.275 Dito isso, ela continua:
I had a roommate in Hollywood, she played in Westerns, they called
her the Lone Ranger; but I’ll say this for her, she was better than a
man around the house. Of course people couldn’t help but think I
must be a bit of a dyke myself. And of course I am. Everyone is: a bit.
So what? That never discouraged a man yet, in fact it seems to goad
them on. Look at the Lone Ranger, married twice. Usually dykes only
get married once, just for the name. It seems to carry such cachet
later on to be called Mrs. Something Another. That’s not true!276
Se pensarmos que essa história foi publicada em 1958 e que a narrativa se
passa nos anos da Segunda Guerra Mundial, as divagações de Holly são
consideradas chocantes para a época, o que de certa forma justifica a recusa da
Harper’s Bazaar277 em publicar a narrativa na revista antes desta ser publicada em
livro. Essas conversas entre ela e o narrador são constantes e a amizade entre eles
272
De acordo com o Oxford Dictionaries, a expressão “bejesus out of me” é de origem irlandesa e
pode ser entendida como algo que aterroriza, literalmente, deixando alguém fora de si.
273
“‘Mas esse é o fim?’ ela perguntou, despertando. Ela tropeçou um pouco até achar o que dizer. ‘É
claro que eu gosto das sapatas. Não me assustam nem um pouco. Mas histórias de sapatas são
terrivelmente chatas. Não consigo me imaginar na pele delas. Ora, realmente, querido’, ela continuou,
porque eu estava claramente confuso, ‘se não é sobre um casal de sapatas machonas, então sobre o
quê é a história?’” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 21-22, grifos do autor).
274
“quaisquer lésbicas legais” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 21).
275
“excelentes arrumadeiras de casa, adoram fazer todo o trabalho, você nunca tem que se
preocupar com vassouras e descongelar e enviar a roupa para lavar” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 21).
276
“Eu tive uma companheira de quarto quando morei em Hollywood, ela trabalhava em faroestes,
era conhecida como Soldado Solitário; mas eu tenho que reconhecer que ela era melhor que um
homem em casa. É claro que todo mundo pensava que eu deveria ser um pouco sapatona também.
E é claro que sou. Todo mundo é: um pouco. E daí? Isso nunca desencorajou um homem ainda, na
verdade, parece excitá-los. Olhe o Soldado Solitário, casou-se duas vezes. Normalmente as sapatas
costumam casar uma vez só, por causa do nome. Parece que faz uma bela diferença ser chamada
de Sra. Fulano de Tal. Mas não é verdade!” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 22).
277
“A Harper’s Bazaar prometera publicar Breakfast at Tiffany’s [Bonequinha de Luxo] no verão de
1958, alguns meses antes de seu lançamento em forma de livro. Não muito antes, entretanto, Carmel
Snow, velha amiga de Capote e editora da Harper’s Bazaar, foi demitida, e uma nova equipe decidiu
que o texto era picante demais, descumprindo a promessa de Snow. O romance foi então publicado
pela Esquire, mas Capote nunca perdoou a Harper’s Bazaar. ‘Publicar de novo com eles?’, disse. ‘Por
quê? Eu não passo mais nem perto da rua deles’” (CAPOTE, Truman (Org.). Um prazer fugaz: as
cartas de Truman. São Paulo: Leya, 2013. E-book, posição 7832).
109
se torna mais profunda ao longo da narrativa:
Those final weeks, spanning end of summer and the beginning of
another autumn, are blurred in memory, perhaps because our
understanding of each other had reached that sweet depth where two
people communicate more often in silence than in words: an
affectionate quietness replaces the tensions, the unrelaxed chatter
and chasing about that produce a friendship’s more showy, more, in
the surface sense, dramatic moments.278
Outros trechos mostram que o amor que ele sente por ela é fraternal, que é
capaz de desejar vê-la feliz incondicionalmente. Há um episódio em que os amigos
vão cavalgar no parque e o cavalo dele dispara com Holly cavalgando atrás,
tentando salvá-lo.
Há estudos que abordam a questão da sexualidade em Breakfast at
Tiffany’s,279 tendo como argumento a falta de jeito do narrador com os cavalos como
uma prova de que ele é afeminado, contrastando coma uma fala de Holly a respeito
dos gostos masculinos, que incluem cavalos: “If a man doesn’t like baseball, then he
must like horses, and if he doesn’t like either of them, well, I’m in trouble any way: he
don’t like girls”.280
De certa forma, um par romântico não faz muito sentido nessa história
contada por Capote, pois não se trata de uma história de amor romântico, mas sim
da vida de uma jovem sem família que deseja realizar seus sonhos em uma grande
cidade, Nova Iorque, mesmo não sabendo ao certo que sonhos são esses. Ela luta
por sua sobrevivência mesmo tendo muito medo, inclusive da morte, que ela chama
de “the fat woman”,281 aparição fantasmagórica que viu quando recebeu a notícia da
morte do irmão.
Todas as suas tentativas são para buscar um lugar que seja seu e que ela
seja capaz de reconhecê-lo quando estiver lá. Mas não é isso que se realiza. Ao
contrário, no fim da narrativa, Holly desaparece, efetivando-se como fantasmagoria
278
“Essas últimas semanas, entre o fim do verão e o começo do outono, se embaçam na memória,
talvez porque a nossa compreensão mútua tenha atingido aquela doce profundidade em que duas
pessoas se comunicam mais em silêncio do que com palavras: uma quietude afetuosa substitui as
tensões, a tagarelice tensa e a perseguição de assuntos produzem os momentos mais vistosos da
amizade, mais, em um sentido superficial, os momentos dramáticos” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s,
p. 83-84).
279
Cf. Truman Capote: A Literary Life at the Movies, de Tison Pugh.
280
“Se um homem não gosta de beisebol, então ele deve gostar de cavalos, e se não gosta de
nenhum dos dois, bem, aí estou em apuros: ele não gosta de garotas” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 38).
281
“a mulher gorda” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 97).
110
no imaginário do leitor. O narrador cita dois ou três destinos para onde ela poderia
ter ido, mas sem nenhuma afirmativa sobre seu paradeiro.
2.5 Intertextos
“I celebrate myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.
I loafe and invite my soul,
I lean and loafe at my ease... observing a spear of
summer grass.”
Walt Whitman
282
Muitos escritores usam do recurso do intertexto como forma de conexão sutil
com seus leitores. É como se, por meio da inserção de intertextos, o escritor
desejasse trazer para perto de si – sua linguagem ficcional – aqueles que
compartilham de seu conhecimento de mundo, ou pelo menos, tentar fazer com que
seu leitor busque o entendimento daquilo que está subentendido, estimulando sua
curiosidade.
São vários os intertextos na obra de Truman Capote. Eles funcionam como
um dispositivo para acionar os sentidos que já estão ali, mas que o autor deseja
amplificar. Há intertextos inclusive entre suas próprias obras, como o fato de
Summer Crossing ser um enorme intertexto acionado em Breakfast at Tiffany’s. Essa
é exatamente a justificativa para a análise feita nesta tese, que se dispõe a
comparar as duas obras sob alguns aspectos pertinentes às temáticas escolhidas.
Intertextos são imagens retiradas de seus sítios, solicitadas a criar amarras
em outros, por meio de seus saltos. Algumas dessas imagens intertextuais na
narrativa nos fazem questionar e perceber que para continuar a ler a obra com
profundidade – por isso foi dito acima que os intertextos requerem um leitor afinado
com o escritor –será preciso parar um pouco e compreender aquilo que surgiu.
Podem ser consideradas como imagens fantasmagóricas, que surgem para
interromper momentaneamente o fluxo da leitura e atiçar a curiosidade do leitor para
a interação com o pensamento da mente criadora do texto, tentando compreender o
motivo daquela imagem ser acionada.
282
“Eu celebro a mim mesmo, /E o que eu assumo você vai assumir, / Pois cada átomo que pertence
a mim pertencea você. Vadio e convido minha alma, / Me deito e vadio à vontade... observando uma
lâmina degrama do verão” (WHITMAN, Walt. The Complete Poems of Walt Whitman. Digireads.com.
Edição do Kindle, 2015, posição 12783-12787).
111
É o caso do poeta norte-americano Walt Whitman (1819-1892) como imagem
intertextual que surge associado à personagem Peter, de Summer Crossing.
Considerado um dos maiores poetas do cânone americano, juntamente com Emily
Dickinson, Whitman escrevia em verso livre sobre temas transcendentais,
envolvendo política, sexualidade, consciência e o mundo espiritual. Por que Capote
cita Whitman?
Whitman é um “gigante da tradição literária americana”283 e um dos criadores
do “Sublime Americano”: “Em termos simplistas, o sublime na literatura costuma
estar associado a experiências extremas que proporcionam uma versão profana de
uma teofania: a sensação de algo que entra em fusão e transforma em momento,
uma paisagem, uma ação ou uma fisionomia natural”.284
Harold Bloom destaca em Whitman a “receptividade ao influxo demoníaco”287
– tendo como “demo obscuro” o “Eu real”288 – e classifica o poeta como alguém que
“cria a partir da vigorosa pressão de si mesmo”.289 Algo sintomático que Bloom
expõe em Whitman é a presença da “figura do vazio [blank] intransigente” como
“imagem máxima de nossa identidade americana”, o que rescende de Shakespeare
e de Milton, no primeiro como “centro de um alvo”, e no segundo como um vazio
universal: “O blank de Milton gera uma cadeia ou sequência de imagens
dramáticas”,290 que atinge vários escritores e poetas até Walt Whitman.
Whitman escreveu Leaves of Grass,291 em 1855, com antecedentes difíceis
de serem rastreados por causa de sua “originalidade radical. 292 Reescreveu-a
acrescentando poemas a outras versões, em1856 e 1860, com temáticas do sublime
que foram aparecer posteriormente em outros autores, inclusive em Baudelaire.
283
BLOOM, Harold. O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura. Tradução de Denise
Bottmann. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017, p. 30.
284
BLOOM. O cânone americano. p. 14.
287
O título original da obra O cânone americano consultada é The Daemon Knows, remetendo de
forma explícita e irônica à expressão idiomática do inglês “Godknows”, como dizemos em português:
“só Deus sabe”, quando algo é misterioso. A justificativa da tradução de daemon para ‘demônio’ou
‘demo’ por parte da tradutora é que assim manteria a gama de significações da palavra daemon, que
tem origem do “daimon grego” acrescidos a uma “carga cósmica de fundo judaico-cristão, retomada
na vertente romântica abraçada por Bloom: o indivíduo que, ‘possuído pelo demônio’, dá vazão a algo
que escapa à redução racional e se expressa com autêntica criação estética”. O próprio título da obra
de Bloom é uma justificativa para a escolha da tradutora. (BLOOM. O cânone americano, p. 12, nota
da tradutora).
288
BLOOM. O cânone americano, p. 24.
289
BLOOM. O cânone americano, p. 17.
290
BLOOM. O cânone americano, p. 23.
291
Folhas de relva.
292
BLOOM. O cânone americano, p. 31.
112
Bloom define o “Sublime Americano” em Whitman como uma “hipérbole
extravagante – não um exagero, mas um indômito arremesso, em que as imagens
da voz se quebram e espalham cinzas e fagulhas”.293
Talvez esteja na representatividade de Walt Whitman sua aparição em
Summer Crossing, poeta representante do “clima”294 americano, terra “habitada por
Adões americanos e Evas orgulhosamente americanas”, o “maior elegíaco do eu, do
demo errante entre as devastações do tempo”.295
Há um trecho da narrativa capotiana no qual a personagem Peter se identifica como
sendo o poeta ao não ser reconhecido em público. A personagem Peter tem a função de
contrapor a personagem Grady em sua rebeldia obstinada contra seu meio social.
Peter seria o pretendente perfeito para a manutenção do status social de sua família,
mas Grady se apaixona por um sujeito inaceitável para esse meio social.
Peter e Grady estão no Bamboo Club, tendo uma conversa tensa na qual ela
mantém em segredo o seu relacionamento proibido com Clyde, mesmo que Peter já
tenha intuído que ela estava saindo com alguém. Ele parece ainda ter esperança de
convencê-la a desistir desse relacionamento, sem saber que ela estava grávida.
Eles dançam e, quando retornam à mesa, encontram o assessor de imprensa
do clube querendo registrar a presença de Grady, afinal ela é filha de um homem
importante e de uma socialite: “a sassy 296 pouting man whose jeweled hands
fluttered about the table arranging festive props”.297 O assessor, figura queer descrita
por sua excentricidade, coloca objetos decorativos na mesa do casal para fazer a
foto: um balde de champanhe, um vaso de flores e um cinzeiro ostentando o nome
da boate em letras gigantes, e buscava informações sobre Grady para divulgar a
casa em um jornal.
Capote constrói a cena apenas com a fala dessa personagem de forma
ininterrupta: “That’s right, Miss McNeil, just a little picture, you don’t mind? Now, now,
mustn’t stare at the camera, that’s right, look at each other: sweet, absolutely darling,
293
BLOOM. O cânone americano, p. 34, grifos do autor.
294
BLOOM. O cânone americano, p. 42.
295
BLOOM. O cânone americano, p. 38.
296
Na gíria urbana, sassy é uma pessoa que usa de sarcasmo em suas falas e é reconhecida por sua
habilidade em desenvolver conversas e falar muito: “Someone that is just the coolest person ever, and
uses sarcasm in the coolest and funniest of ways. Most sassy people are very lovable” (Cf. URBAN
Dictionary. Disponível em:. Acesso em: 28
maio 2018).
297
“um homem ousado fazendo beicinho e cujas mãos cobertas de joias flutuavam sobre a mesa,
arrumando objetos festivos” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 55).
113
couldn’t be cuter! Artie, you’re taking a great picture, capturing young love, that’s
what you’re doing”.298
Na sequência, podemos perceber pela fala do assessor o que está sendo
perguntado por meio de suas respostas, que funcionam como um monólogo:
Ah, Miss McNeil, know better – listen there, even your young man
says I’m right! Don’t you, young man? And who are you, anyway?
Wait now, I want to write it all down. But isn’t that someone awfully
old or dead or famous or something, Walt Whitman? Oh, I see, you’re
Walt Whitman the second; a grandson, are you? Well, isn’t that
lovely. Thank you, Miss McNeil, and you, too, Mr. Whitman: you’ve
both been sweet, absolutely darling.299
É possível notar que Peter se sente ofendido por não ser reconhecido
socialmente. Grady, ao contrário de Peter, atrai a atenção dos outros clientes da
boate e estes procuram saber que tipo de celebridade seria, já que ela e Peter foram
fotografados: “you people are British royalty?”300 Peter, ironicamente, responde: “‘No,’
said Peter, with a patient smile. ‘American royalty’”301 e escolhe de forma irônica o
poeta Walt Whitman como pseudônimo, provavelmente esperando que o assessor
não o conheça, mas quando ele demonstra se lembrar remotamente do nome:
alguém muito velho, morto, famoso, Peter diz ser seu neto, o que é aceito e depois
publicado na legenda da foto no jornal.
O crítico Harold Bloom destaca em suas análises cheias de admiração e culto
pelo poeta Walt Whitman que este foi precursor na invenção do “eu” em uma
“América recém-descoberta”. Ele e alguns outros “escritores mais vigorosos” foram
capazes de operar em favor de nossa “necessidade de curar a violência, externa ou
interna”, e por isso “podem atender a essa carência imaginativa e ajudar a proteger
a sociedade e a mente individual contra elas mesmas”302:
298
“Isso mesmo, Miss McNeil, apenas uma pequena foto, você não se importa? Agora, agora, não
deve olhar para a câmera, é isso mesmo, olhem um para o outro: adorável, absolutamente
encantador, não poderia estar mais fofo! Artie, você está tirando uma ótima foto, imortalizando esse
amor jovem, é isso que você está fazendo” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 55-56).
299
“Ah, srta. McNeil, eu sei das coisas – ouça lá, até o seu jovem diz que estou certo! Não é, meu
rapaz? E quem é você, afinal? Espere agora, eu quero escrever tudo. Mas esse não é alguém muito
velho ou morto ou famoso ou algo assim, Walt Whitman? Ah, entendi, você é Walt Whitman Segundo;
seu neto, você é mesmo? Bem, não é adorável. Obrigado, srta. McNeil, e você também, sr. Whitman:
vocês dois foram encantadores, absolutamente adoráveis” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 56, grifos
do autor).
300
“vocês são da família real britânica?” (CAPOTE. Summer Crossing, p. 56).
301
“‘Não’, disse Peter, com um sorriso paciente. ‘Realeza americana’” (CAPOTE. Summer Crossing, p.
56-57).
302
BLOOM. O cânone americano, p. 40-41.
114
Talvez a única coisa que Whitman partilhava com Shakespeare,
Goethe e Henrik Ibsen fosse a percepção implícita de que o eu era
uma invenção necessária, uma ardente ilusão de que da pedra árida
do ser brotariam folhas de relva. Um sabor esfumaçado flui, mas
depois reflui ao tomarmos as aflições como uma das trocas de
indumentária de Walt. O ranço se acumula, mas não cede, e nossa
vivacidade pessoal perde o brilho. Viramo-nos vaziamente e
descobrimos que não há em nós nenhum caminho de volta pra
casa.303
Neste trecho, Bloom fala de Whitman estando envolvido em pensamentos
melancólicos sobre sua própria vida, um octagenário que se mantém ainda em sala
de aula com alunos muito jovens, o que “converte a sala de aula numa espécie de
fantasmagoria”, ele “como o Fazedor de Botões de Peer Gynt ou uma figura
grotesca saída de Fausto: Parte Dois.”304
Não somente Peter, mas também uma sequência de personagens capotianas
traz os momentos de luminosa consciência de sua representação fantasmagórica
como figuras sociais, como construtos, e a angústia que transborda dessa
descoberta. As duas narrativas, Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s, têm essa
caraterística predominante, enfatizada aqui nesta tese como fantasmagorias sociais,
projeções do sujeito definidas por modelos sociais, mas que extravasam as
fronteiras, podendo ser individuais ou coletivas.
Na verdade, essas projeções, seja as que a sociedade estabelece como
norma, seja as criadas pelos indivíduos como transgressão ou como salvação, não
são estáticas. O que está dito aqui como fronteira não indica um lugar de chegada,
mas zona de trânsito, que é o que os sujeitos sociais anseiam transpor na busca
pelo sentido da existência.
303
BLOOM. O cânone americano, p. 37.
304
BLOOM. O cânone americano, p. 37.
115
CAPÍTULO 3
UMA CONSTELAÇÃO DE IMAGENS
A obra fílmica homônima, adaptada da narrativa capotiana Breakfast at
Tiffany’s, pode ser analisada como resultado de um processo de transmidiação, em
que elementos foram modificados em função da transposição midiática, isto é, do
livro ao filme, do texto ficcional à imagem. O processo de transmidiação compreende
a transposição de um conteúdo de uma mídia para outra. Midiar é “o processo
através do qual um meio técnico torna percebível algum tipo de conteúdo de mídia;
por exemplo, uma página de livro pode midiar um poema, um diagrama ou uma
partitura musical”. A transmidiação ocorre quando “o conteúdo de uma mídia é
midiado uma segunda vez (ou terceira ou quarta) por outro meio técnico”,
envolvendo “algum grau de transformação”.305
Linda Hutcheon propõe em sua obra Uma teoria da adaptação 306que as
adaptações devem ser trabalhadas “como adaptações”, o que significa “pensá-las
como obras inerentemente ‘palimpsestuosas’”,307 pois são obras “assombradas a
todo instante pelos textos adaptados” e, quando conhecidos, “sentimos
constantemente sua presença pairando sobre aquele que estamos experimentando
diretamente”. 308 Note-se que as terminologias às vezes se imbricam:
intertextualidade (examinada no capítulo anterior), transposição midiática, adaptação.
Cada análise pode evocar um termo, às vezes em uma mesma obra, outras vezes
na transição entre várias.
Mesmo obras adaptadas são “trabalhos autônomos” e “podem ser
interpretados como tais”. 309 Hutcheon cita Benjamin recuperando suas análises
sobre a “aura” para argumentar que, como obra autônoma, “uma adaptação tem sua
própria aura, sua própria ‘presença no tempo e no espaço, uma existência única no
local onde ocorre’”.310
Benjamin não se refere em seu ensaio A obra de arte na era de sua
305
ELLESTRÖM, Lars. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade.
Organização de Ana Cláudia Munari Domingos, Ana Paula Klauck, Glória Maria Guiné de Melo. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2017. p. 182.
306
Título original: A theory of adaptation.
307
Hutcheon usa o termo do poeta e crítico escocês Michael Alexander (Cf. HUTCHEON, Linda. Uma
teoria da adaptação. 2. ed. Tradução de André Cechinel. Florianópolis: Editora UFSC, 2013. p. 27).
308
HUTCHEON. Uma teoria da adaptação, p. 27.
309
Hutcheon indica que há vários teóricos trabalhando nessa corrente.
310
Hutcheon cita Walter Benjamin (Cf. HUTCHEON. Uma teoria da adaptação, p. 27).
116
reprodutibilidade técnica,311 o qual Hutcheon lê para pensar a adaptação, à perda da
aura na obra cinematográfica, pois, para o autor, não há aura na obra de arte
cinematográfica. Torna-se, hoje, necessário ampliar esse campo de visão, a
princípio inapreensível para Benjamin no período de sua escrita do ensaio (década
de 1930). Suas contribuições para o nascer do pensamento sobre a
reprodutibilidade da obra de arte na era do cinema são fundantes, mas, uma análise
efetivada hoje já possui elementos que permitem compreender que é possível a
manutenção da aura na imagem.
A leitura de O pintor da vida moderna, de Charles Baudelaire, evidencia que a
aura persiste nas imagens. Por meio de suas análises sobre o passado observado
nas obras artísticas, passado que um dia foi o presente dos artistas, Baudelaire
extrai impressões sobre esse passado que se presentifica na obra, e o seu valor
histórico:
Tenho diante dos olhos uma série de gravuras de modas que
começa com a Revolução e termina, aproximadamente, no
Consulado. Esses trajes, que fazem rir muitas pessoas pouco
reflexivas, essas pessoas graves sem verdadeira gravidade,
apresentam um encanto de dupla natureza: artística e histórica.
Muito frequentemente, são bonitos e espirituosamente desenhados;
mas o que importa, ao menos tanto quanto isso, e o que me alegra
encontrar em quase todos, é a moral e a estética da época. A ideia
que o homem tem do belo imprime-se em todo o seu arranjo,
amarrota ou alinha o seu traje, suavisa ou enrijece o seu gesto, e
chega a impregnar, sutilmente, ao final, os traços de seu rosto. O
homem acaba por ficar parecido com aquilo que gostaria de ser.
Essas gravuras podem ter uma tradução feia ou uma tradução bonita:
na bonita, elas se tornam caricaturas; na feia, estátuas antigas.312
Baudelaire observa que há pessoas que não conseguem refletir sobre o
concreto dos trajes de moda nas gravuras e o que dele pode ser subtraído, de forma
que o estranho que algo lhes parece apenas tem o tom do ridículo e provoca-lhes o
riso. Para si mesmo, a observação é reflexiva e provoca o encantamento e a
curiosidade sobre o passado histórico, passado que um dia foi o presente de alguém
(o artista) e por isso mesmo a obra é capaz de fazer o transporte desse passado
para o presente e do presente para o passado. O fio social que salta do vestuário de
311
Benjamin trabalhou nesse ensaio quatro versões, que foram escritas entre 1935 e 1939, sendo
que a única que Benjamin viu publicada foi a versão francesa, em 1936.
312
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Concepção e organização Jérôme Dulfilho e
Tomaz Tadeu. Tradução e notas Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010. p. 14.
(Coleção MIMO; 7)
117
uma época, que Baudelaire chama de moral e estética, está impregnado nos
detalhes que compõem as gravuras.
Ampliando a perspectiva benjaminiana mencionada por Hutcheon, em relação
ao cinema, a imagem artística possível por meio da obra de arte dinâmica, como a
cinematográfica, se converte em aura por sua capacidade/possibilidade de fazer o
transporte do autêntico que está no “mundo das coisas” (concreto) representado
como imagem, e que por sua vez está também impregnado de sentidos
fantasmagóricos, portanto, não completamente apreensíveis.
Para Benjamin, o filme proporciona um “equilíbrio entre o ser humano e a
aparelhagem”, sendo esta uma de suas “funções sociais”, na medida em que
promove uma relação do homem com a aparelhagem, mas também do mundo
apresentado para si por meio da aparelhagem. O filme surge como algo que retira o
homem de seu “calabouço”, este feito de “botequins e avenidas, nossos escritórios e
quartos mobiliados, nossas estações de trem e fábricas” que se fecham “em torno
de nós de maneira desesperadora”.313
O cinema mandou esse “calabouço pelos ares com a dinamite do décimo de
segundo” ao apresentar ao homem, envolto em sua vida moderna, aquilo que o olho
da câmera vê e que lhe é negado naturalmente; há um movimento de libertação,
algo que ultrapassa a alienação e que permite ao homem fazer viagens jamais
imaginadas sentado numa sala de cinema. Se “sob o close-up dilata-se o espaço,
sob a câmera lenta, o movimento”,314 a vida não será mais como antes. Espaço e
tempo são alterados pela técnica e pela arte cinematográfica.
A forma com que Benjamin apresenta essa ideia torna visível que as medidas
de tempo e de espaço estão modificadas para sempre, pelo menos aquelas que o
homem julgava inalcançáveis. As distâncias entre o homem e algo se transformam.
O zoom não é o que torna nítido aquilo que “se vê sem nitidez ‘apesar dele’”, e sim
aquilo que permite o “aparecimento de formas estruturais da matéria completamente
novas”. A câmera lenta não é aquilo que permite perceber padrões de movimentos
já conhecidos, e sim aquilo que permite perceber nesses movimentos já conhecidos
a presença de outros completamente desconhecidos: “que não dão de modo algum
313
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução de Gabriel
Valladão Silva. Organização, ensaio biobibliográfico, prefácio, revisão técnica e seleção dos
fragmentos de Márcio Seligmann-Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 83.
314
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 83.
118
a impressão de serem a desaceleração de movimentos mais rápidos, mas de
estarem deslizando, singularmente flutuantes, de modo sobrenatural”.315
O “aqui e agora da obra de arte – sua existência única no local em que se
encontra” –,316 não vale completamente para o filme clássico, pois esse “aqui e
agora” se encontra nas imagens do filme, além do momento original no qual se deu
seu lançamento para os espectadores. Estas imagens vão carregar a autenticidade
e parte de uma aura preexistente, advinda da época do lançamento do filme:
A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que nela é
originalmente transmissível, desde sua duração material até seu
testemunho histórico. Como esse testemunho está fundado sobre a
duração material, no caso da reprodução, na qual esta última tornou-
se inacessível ao homem, também o primeiro – o testemunho
histórico da coisa – torna-se instável. E somente isso. Mas aquilo que
desse modo se desestabiliza é a autoridade da coisa, seu peso
tradicional.317
Ao analisar o fato apontado por Benjamin de que o testemunho histórico está
fundado sobre a duração material, mas colocando em perspectiva a reprodução
fílmica, a “coisa” é a imagem, assim a “autenticidade” não ficará corrompida, nem
seu “peso tradicional”. Em alguns casos, esse “peso tradicional” será até mesmo
amplificado. Como exemplo, que corrobora essa ideia, há o espectador do século
XXI, que assiste ao filme Breakfast at Tiffany’s. Esse espectador atualizado vai
perceber as mudanças apresentadas no filme e suas permanências, que certamente
também existem. Essa espécie de “citação”, que o próprio filme faz do passado ao
se apresentar como tal, também vai influenciar fortemente o presente e o futuro,
podendo criar novas “convenções”.
Se “a autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que nela é
originalmente transmissível”, ela está garantida na imagem fílmica, tendo como base
algo transmitido da origem, que venha reverberando “desde sua duração material
até seu testemunho histórico”. O que está em jogo não é a autenticidade da “coisa”
reproduzida como imagem, mas sim as variadas formas de percepção da “coisa”
pelos sujeitos espectadores ao longo dos anos e de suas exposições como obra
fílmica clássica.
315
Rudolf Arnheim: 1. c., p. 138 apud BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, p. 83.
316
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 53.
317 BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 55.
119
Não havendo algo para assumir o lugar de “duração material”, no caso do
filme, a imagem toma esse lugar. Ela é que dura, persiste, se mantém, podendo
ainda ser intacta ou alterada, até mesmo passando por processos de restauração,
como é o caso de vários filmes antigos.
No caso específico das adaptações cinematográficas que se tornaram obras
de arte clássicas, há um estado de coisas que cria uma nova origem, um novo “aqui
e agora”, por meio da atualização da reprodução, sem perder o vínculo com o texto
de origem. Há casos em que a adaptação toma um vulto tão grande que a obra
original não aparece, ou até mesmo é desconhecida do grande público. Breakfast at
Tiffany’s possui essa característica, pois há pessoas que não conhecem a obra
original escrita por Truman Capote, tendo como “origem”, no sentido de primeiro
contato e início, a obra fílmica. Em relação ao termo adaptação como um processo
de transformação de algo que ainda mantém um vínculo com uma origem, Linda
Hutcheon explica que “ser o primeiro” não significa “ser originário ou autorizado” e,
também, “ser um segundo não significa ser secundário ou inferior”.318
A obra cinematográfica clássica, como Breakfast at Tiffany’s, tornou-se objeto
de culto na pós-modernidade. Uma obra cinematográfica (parece óbvio dizer, mas é
necessário) vai se tornar cultuada por sua potência imagética, capaz de gerar esse
culto e também capaz de transportar uma potência aurática que se sobrepõe ao
tempo e espaço dos quais se originou; no caso, sua autenticidade está naquilo que é
imagético, visto que a imagem constituída na obra cinematográfica persiste para
além das percepções espaço-temporais. Na terceira versão do ensaio de Benjamin
há uma nota que diz:
A definição da aura como “aparição única de uma distância, por mais
perto que esteja” não significa nada além da formulação do valor de
culto da obra de arte em categorias da percepção espaço-temporal.
Distância é o oposto de proximidade. O essencialmente distante é o
inaproximável. O inaproximável é de fato uma qualidade central da
figura de culto. Ela permanece segundo sua própria natureza
“distante, por mais perto que esteja”. A proximidade que se lhe pode
alcançar em relação a sua matéria não interrompe a distância que
ela conserva em sua aparição.319
O “inaproximável” para ser cultuado precisa ser experimentado como
“aparição” e a tensão entre o que é apreensível e o que é inapreensível. Assim, a
318 HUTCHEON. Uma teoria da adaptação, p. 13.
319 BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 99, grifo do autor.
120
obra cinematográfica clássica conduz sua potência aurática, mantendo a distância
temporal entre o expectador e a produção da obra, mas trazendo essa potência
aurática como aparição. Seu modo de reprodução é imagético e a obra fílmica
clássica terá o inaproximável exatamente como seu mérito, ampliando sua potência
aurática a cada vez que for ativada por meio de sua reprodução. As diferenças
espaço-temporais estão expressas e impressas na imagem estética da obra.
Indiscutivelmente, as obras trabalhadas no processo comparativo desta tese
são duas obras autônomas, cada qual com suas particularidades inerentes ao seu
suporte ou mídia – livro e filme. Portanto, não é apropriado e nem desejado
comparar as obras em função de qualquer classificação em termos de superioridade
ou inferioridade que vise definir qual delas é melhor ou pior. As duas obras têm seu
lugar até os dias atuais, são admiradas e continuam sua trajetória como obras
artísticas autônomas, mas interrelacionadas.
Essa interrelação entre as duas obras incita as análises comparativas por sua
condição de assinalar indícios que motivaram as alterações de uma para a outra.
Esses indícios estão conectados às condições sociais do período e apontam para as
fantasmagorias sociais.
Quais foram os motivos das supressões no texto literário durante o processo
de adaptação da obra escrita, na criação do roteiro da obra fílmica, resultando em
novas figurações manifestas na adaptação fílmica? São de ordem estética, política,
social, comercial?
Por meio da comparação das duas obras, as supressões e os adendos são
percebidos como escolhas representativas não somente de uma estética pretendida,
mas de uma condição social cerceadora, que manifestava mudanças na sociedade,
em seu modo de pensar os papéis sociais e as figurações femininas e masculinas.
Portanto, as figurações são de ordem estética, política, social e comercial. Essas
são as fantasmagorias presentes nas duas obras, sendo que o filme, por sua
potência imagética visível, tem a capacidade de amplificá-las e sustentá-las através
dos anos.
A análise comparativa estabelecida entre as duas obras busca examinar
quais são as questões ideológicas alteradas de uma mídia para a outra e em que
sentido isso traz, para a compreensão das obras como produto cultural do período, a
visualização da fantasmagoria social. A análise empreendida se pauta pela busca
121
por semelhanças e diferenças, mas também tem o objetivo de destacar como as
fantasmagorias sociais estão presentes nas duas obras e como são manipuladas na
última, a fílmica, em função de um contexto sociocultural da sociedade americana do
período.
A metodologia utilizada para exposição das ideias nesta seção se assemelha
àquela formadora do pensamento benjaminiano, analisado por Georg Otte como “um
paradigma epistemológico conforme o qual as ideias se relacionam com as coisas
‘como as constelações com as estrelas’”. 320 A constelação como “imagem de
estrelas” é “excêntrica” ou “descentrada”, sendo seu centro vazio, é “constituída
pelos seus extremos”, as estrelas:
As ideias são eternas constelações, e, quando se concebe os
elementos como pontos nessas constelações, os fenômenos passam
a ser divididos e salvos ao mesmo tempo. E é nos extremos que
esses elementos, cuja extração dos fenômenos é tarefa do conceito,
aparecem da maneira mais nítida. A ideia pode ser circunscrita como
uma formação que relaciona o singular-extremo aos similares.321
A “visão linear” é transformada numa “imagem constelar”, que, no caso da
história, resulta na percepção da “história excêntrica e constelar”, oposta à visão
hegemônica de história. A moda, como sistema de desvio e descontínuo, permite
que se abstraia do continuum histórico e se possa partir diretamente à sua “leitura”:
A ideia da excentricidade da moda, portanto, não corresponde
apenas ao senso comum, mas a moda se transforma num ícone da
filosofia da história de Benjamin exatamente pelo fato de sua
Sprunghaftigkeit, sua volubilidade, a transformar num fenômeno
descentrado, fora do eixo “hegemônico da história”.322
Nesta seção, há uma espécie de montagem de ideias, de trânsito entre elas,
que se configura numa “constelação” de imagens, ou de estrelas. Alguns excertos e
frames têm destaque e são selecionados de forma semelhante aos meios
benjaminianos: são acionados e agrupados de forma relacional, por afinidades mais
ou menos identificáveis, possibilitando uma leitura singular da comparação entre as
duas obras, a escrita e a fílmica.
320
BENJAMIN. Passagens apud OTTE, Georg. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das
Passagens” de Walter Benjamin. Ipotesi, Juiz de Fora, v. 8, n. 1/2, p. 29, jul./dez. 2004.
321
BENJAMIN. Passagens apud OTTE. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das
Passagens” de Walter Benjamin, p. 29.
322
OTTE. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin, p. 29.
122
3.1 Figurações fantasmagóricas da Moda
Roland Barthes, em sua obra Système de La Mode, 323 analisa de forma
estrutural como o vestuário feminino estava descrito em algumas revistas de
moda,324 relacionando essa descrição à imagem fotografada, pensando também que
aquela fotografia se realizou em um espaço e tempo real, por meio de uma situação
real. Essas três situações resultam em três tipos de vestuário: o vestuário-imagem, o
vestuário escrito e o vestuário real. De certa forma, a análise barthesiana pode ser
observada também como um processo de transmidiação, já que há uma mudança
de “mídia”, considerando que a fotografia e o descritivo do vestuário partem da
imagem real da modelo vestida.
Em suas análises, o vestuário-imagem surge primeiro aos olhos do leitor da
revista, evidenciando que as imagens podem atrair o olhar mais do que a escrita:
“Abro uma revista de Moda: vejo que tratam aqui de dois vestuários diferentes. O
primeiro é o que me apresentam fotografado ou desenhado, é um vestuário-imagem.
O segundo é esse mesmo vestuário, mas descrito, transformado em linguagem”.325
Os dois vestuários remetem à “mesma realidade”, mas possuem duas estruturas
diferentes, mesmo que tenham funções semelhantes: basicamente, comunicar ou
expressar algo.
No vestuário-imagem, os “materiais são formas, linhas, superfícies, cores, e a
relação é espacial”. Já no vestuário escrito, feito de palavras, “a relação, se não é
lógica, é pelo menos sintática”. Uma estrutura é “plástica” e a outra é “verbal”. Mas a
fotografia de moda possui seu aspecto particular, que não se confunde com outro
tipo de comunicação, seja ela jornalística ou amadorística, “constitui uma linguagem
particular, que decerto tem seu léxico e sua sintaxe, suas ‘locuções’, proibidas ou
recomendadas”; e também o vestuário escrito “não pode confundir-se com a
estrutura da frase”.326 A última ideia é exemplificada por meio da mudança de um
termo de lugar, que não acarreta prejuízo à transmissão da informação de moda
descrita na revista em relação ao sentido da frase: “no verão, use tussor, ou tussor
323
A obra de Roland Barthes, traduzida em português como Sistema da moda, foi publicada em 1967.
324
Barthes analisa as revistas Elle e Le Jardin dês Modes, publicadas no período de 1958-1959
(junho a junho), e em menor escala as revistas Vogue e L’Ècho de La Mode, e ainda, algumas
publicações semanais de moda, provavelmente jornais (Cf. BARTHES, Roland. Sistema da moda.
Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 30-31).
325
BARTHES. Sistema da moda, p. 19.
326
BARTHES. Sistema da moda, p. 20.
123
vai bem com verão”.327
Os três tipos de vestuários – o vestuário-imagem, o vestuário escrito e o
vestuário real – possuem equivalência, mas não são idênticos, ocorrendo uma
diferença de materiais e de relações entre o vestuário-imagem e o vestuário escrito:
uma diferença estrutural, de configuração midiática. O vestuário real também tem
uma estrutura própria, diferente das demais, mas se mantém como “modelo”
certamente por ser a origem (a partir dele os outros tipos são apresentados no
estudo de Barthes):
[…] as unidades do vestuário-imagem se situam no nível das formas;
as do vestuário escrito, no nível vocabular; as unidades do vestuário
real, por sua vez, não podem estar no nível da língua porque, como
sabemos, a língua não é um decalque do real e, embora a tentação
seja grande, também não é possível situá-los no nível das formas,
pois “ver” uma peça do vestuário real, mesmo em condições
privilegiadas de apresentação, não pode esgotar sua realidade, muito
menos sua estrutura: sempre se vê apenas uma parte dela, um uso
pessoal e circunstancial, um modo particular de vestir.328
O vestuário real não esgota sua realidade e nem sua estrutura. Ver o
vestuário real não é o bastante para apreender o seu todo, pois ele sempre será
“visto” por partes, por recortes que a percepção trará. De certa forma, podemos
inferir que nem é possível apreender um “todo” desse vestuário real. Para uma
formalização dessa visão, os critérios como o corpo em uso e o contexto de uso são
fundamentais, tornando as variantes extensas demais para uma conclusão. A
expressão “cada caso é um caso” seria bem apropriada nesse aspecto.
Barthes afirma que para a análise sistemática e formal do vestuário real seria
preciso “remontar aos atos que orientam a sua fabricação”329. Se a estrutura do
vestuário-imagem é plástica e a do vestuário escrito é verbal, a “estrutura do
vestuário real só pode ser tecnológica”330 e suas unidades são os:
[…] vestígios diversos dos atos de fabricação, seus fins realizados,
materializados: uma costura é aquilo que foi costurado; um corte é
aquilo que foi cortado; portanto, tem-se uma estrutura que se
constitui no nível da matéria e de suas transformações, e não de
suas representações ou de suas significações; para isso a etnologia
327
BARTHES. Sistema da moda, p. 21, grifos do autor.
328
BARTHES. Sistema da moda, p. 21-22.
329
BARTHES. Sistema da moda, p. 22.
330
BARTHES. Sistema da moda, p. 22.
124
poderia fornecer modelos estruturais relativamente simples.331
Barthes não avança no sentido de que o vestuário real está vestido em um
corpo antes de ser fotografado para depois ser descrito, também não destaca o fato
de que esse corpo fará parte inseparável do vestuário real a ser observado. Ele
considera “um uso pessoal e circunstancial, um modo particular de vestir”,332 como
algo que fará diferença, mas não inclui esse aspecto nas análises, na estruturação e
na classificação do vestuário real, já que seu objeto é a fotografia de moda em
revistas, que é realizada por meio do corpo de uma modelo e não de uma “pessoa
real”, com uma personalidade. A modelo é o produto de um processo de produção
editorial, de intenções e elaborações a serem executadas para cumprir o papel de
uma narrativa visual. É bastante diferente analisar uma roupa num corpo de modelo
e a mesma roupa no corpo de uma celebridade, ou uma socialite, com uma
identidade social estabelecida e reconhecida, demarcando o ambiente íntimo e não
o comercial, ou numa pessoa comum.
Para sua análise específica – revistas de moda –, o autor apenas precisa
pensar no vestuário real como algo que pode ser visto e tocado, mas não é
imperativo que esse vestuário só se realizará no corpo de alguém real. Ele possui
uma função que é vestir, tanto que é justamente esse fato que afasta, para muitos, a
possibilidade de que um vestuário possa ser arte.
A moda abrange tanto a esfera econômica quanto a artística, dependendo
exclusivamente de sua conjuntura, seu contexto e arranjo: “Além de ser uma
importante atividade econômica, a moda representa um objeto social singular no
cruzamento entre as artes e a indústria.”333 Isso diferencia a moda, vista como um
sistema, do vestuário real que pode conter traços da moda. Ao ser apropriado por
uma pessoa real em situações de contexto reais, cotidianas, o vestuário real, mesmo
advindo do contexto da moda, quase sempre perderá seu encantamento, a aura que
é perceptível no vislumbre de uma modelo vestida para um editorial ou de uma atriz
para um filme. Nesses dois últimos casos, há uma elaboração simbólica que irá
promover o encantamento. É certo que o encantamento tem relação com momento e
à circusntância, semelhante ao que Benjamin definiu como aura: “aparição única de
uma distância, por mais perto que esteja”, mas não somente, podendo se extender
331
BARTHES. Sistema da moda, p. 22.
332
BARTHES. Sistema da moda, p. 22.
333
GODART, Frédéric. Sociologia da moda. São Paulo: Editora Senac, 2010. p. 12.
125
por meio de sua reprodução.
De alguma forma, alguns usuário de moda conseguem, em determinadas
situações, manter um quê dessa aura: quando caminhamos pela rua e nos
deparamos com uma pessoa fashionista, alguém que tem o “gosto” pela moda e
consegue trazer elementos estéticos diferenciados para o seu vestuário cotidiano.
Alguém que reporta para a vida real, do nosso dia a dia, uma imagem que traz
referências de moda capazes de manifestar sentidos que de certa forma “descrevem”
a pessoa (mesmo que de forma plana).
O vestuário real de uso cotidiano, por mais encantador que possa parecer,
tem uma função prática, como cobrir o corpo, proteger e enfeitar, ficcionalizar a
pessoa, mas não pode ser arte. O pijama que usamos para dormir não é um objeto
artístico, da mesma forma que a caneca que tomamos café ou os objetos com
desenhos de artistas em sacolas ou capas de agenda. A moda pode ser associada à
arte em determinadas situações e algumas dessas situações podem não ser
apreensíveis em objetos, mas podem fluir deles.
À moda também pode ser atribuído o poder de “ficcionalização do sujeito” ou
“autoficção” como mencionado em outra publicação ao analisar a moda em Dom
Casmurro:
(...) o quanto esse uso é intencional [aspectos psicológicos,
consciente e inconsciente] e ao mesmo tempo inconsciente; o quanto
intencionamos “dizer” algo através do uso de nossas roupas, ao
mesmo tempo que o dizemos sem “querer”; o quanto queremos nos
mostrar de determinada forma, culminando às vezes por nos mostrar
de outra. Podemos pensar então que a roupa em uso tem o poder de
criar uma imagem, ao mesmo tempo consciente e inconsciente, que
leva à ficcionalização do sujeito, ou à autoficção. Isso na medida em
que percebemos a palavra ficção como relacionada ao ato de fingir,
ao imaginário, à fantasia, à criação.334
Esse poder pode ser aferido no figurino de cinema e no texto ficcional,
destacando-se o aspecto circular que promove: o vestuário real é extremamente
cambiável e dificilmente pode ser apreendido em uma definição simplista. Há que se
considerar o contexto.
O apoio da etnologia, sugerido por Barthes, apenas reforça que ele não
considera efetivamente o vestuário real dentro de um corpo, apenas sua matéria
(tipos de tecidos) e forma (silhuetas, linhas), seu corte (moldes) e nomenclaturas
334
SALOMON. Moda e ironia em Dom Casmurro, p. 26.
126
(blusa, calça, saia, vestidos, etc.) que puderem servir de apoio à compreensão do
que ele representa como objetos feitos de matéria-prima.335 Para uma observação
formal, o ato de vestir deve ser agregado à estrutura do vestuário real, que também
é tecnológica, como sugere Barthes. É tecnológica por estar ligada aos atos de
fabricação: um molde, um corte, uma costura.
O ato de vestir e o vestuário real em ação geram novas estruturas, que, como
não foram classificadas pelo autor, podemos chamar de fantasmagóricas. Ao criar
estruturas fantasmagóricas no vestuário real – que também estão presentes nos
outros tipos de vestuário (ou mídias) – o ato de vestir vai englobar todos os efeitos
possíveis nas escolhas das composições, no modo de se portar e na própria pessoa
como representação social (seu lugar social, sua personalidade, sua
representatividade). Todos esses aspectos vão pairar fantasmagoricamente nesse
vestuário real.
É interessante a perspectiva dos suportes do vestuário como mídias, pois
assim é possível trazer a noção de que o vestuário também possui o caráter de
comunicação e/ou de expressão. Alguns teóricos da moda vão tratá-la como
linguagem e/ou como forma de expressão. 336 A distinção sutil demonstra a
ambiguidade da moda por meio das seguintes situações: quando há a intenção de
comunicar algo por meio da manipulação da imagem pessoal; de forma natural a
maioria das pessoas se veste intuitivamente sem se dar conta de que podem
transmitir uma imagem distorcida de como se veem ou desejam ser vistas; o
vestuário, como expressão pessoal, sempre foi usado como estratégia por aqueles
que dominam suas regras; o vestuário pode ser usado como forma de expressão e
protesto (como as tribos urbanas, os punks, as marchas feministas, dentre outros).
Sua estrutura, feita de flutuação de sentidos, vai variar de “sentido” de acordo
com a variação de corpos, com diferentes intensidades. A própria palavra sentido
possui duplicidade: como sentido de ser e como sensação física, ou seja, os
próprios sentidos do corpo acionados para sentir algo. Por meio desses sentidos do
corpo compreendemos o sentido de algo e lhe atribuímos sentidos. A moda trabalha
com esse apelo. Como seres sociais nós nos aproximamos daqueles com quem
335
“A Leroi-Gourhan distingue, por exemplo, os trajes retos de lados paralelos e os trajes cortados-
abertos, cortados-fechados, cortados-trespassados etc. (Milieu e Techniques, Paris, Albin Michel,
1945, p. 208)” (BARTHES. Sistema da moda, p. 22, nota de rodapé).
336
Como Allison Lurie, Káthia Castilho, Michael Maffesoli, Renata Pitombo Cidreira, entre outros.
127
percebemos afinidades; a moda é um sintoma, na superfície da sociedade, dessas
afinidades sociais. As tribos urbanas são uma excelente forma para observar essas
afinidades.
Um bom exemplo para compreender esse aspecto do vestuário real e sua
relação com o corpo está na possibilidade de mudança da atriz que atuou em
Breakfast at Tiffany’s. Truman Capote gostaria que Marilyn Monroe tivesse feito o
papel principal no lugar de Audrey Hepburn.337 Se no lugar de Hepburn, com seu
corpo magro e sua aparência de menina frágil, tivéssemos conhecido o filme com a
protagonista sendo Marilyn, não teríamos o modelo de mulher que reverbera até os
dias de hoje. O tubinho preto, que se tornou um ícone fashion, objeto humanizado e
dotado de personalidade própria, teria outra conotação diante da sexualidade visível
que Marilyn Monroe iria, sem dúvida, atribuir-lhe. A escolha de Audrey Hepburn tem
significados muito além do estético, revelando questões sociais arraigadas na
sociedade do período.
Há uma estrutura no vestuário que é fantasmagórica. A classificação
barthesiana insufla outras análises e reposicionamentos mediante a um novo
“corpus”,338 o que está sendo analisado nesta tese. Esta seção faz incursões nas
relações entre a escrita e a imagem nas duas obras homônimas de Breakfast at
Tiffany’s, a obra escrita e a obra cinematográfica, e também na realidade da época,
sua configuração social. Além disso, também a corporeidade da atriz-mito Audrey
Hepburn entra nesse jogo.
Pelo olhar atual, as duas obras têm visibilidades diferentes, públicos
diferentes, mas não passam despercebidas. São cultuadas por diversos motivos,
dentre eles, por seu trânsito nos espaços transgressores, tanto no que tange à
abordagem da sexualidade, quanto na instituição da figura feminina de Holly
Golightly como prostituta, personificada em Audrey Hepburn, ícone de beleza
fashion e de modernidade, que sobreveio com a passagem do tempo e sobrevive a
337
“Hepburn, Audrey 1929- [faleceu em 1993]. Atriz. Nascida Edda Hepburn van Heemstra [Audrey
Kathleen Ruston ou Audrey Hepburn-Ruston], em Bruxelas, Bélgica. Em 1951, foi bailarina em
Londres, mas adquiriu fama na década de 50 como atriz. Seu aspecto gamine (figura pequena,
magra, rosto e corte de cabelo sílfide) era acentuado por suas roupas: pulôver preto de gola rolê;
calças de ciclista ou calças capri; e sapatilhas capezio. Também popularizou a moda de usar uma
camisa (em geral sobre uma malha) com extremidades desabotoadas e amarradas na frente na altura
da cintura. Seus filmes mais famosos são Cinderela em Paris (Funny face, 1957), Bonequinha de luxo
(Breakfast at Tiffany’s, 1961) e Minha bela dama (My fair lady, 1964)” (O’HARA. Enciclopédia da
moda, p. 140).
338
“Corpus: ‘coletânea sincrônica intangível de enunciados com os quais se trabalha’ (A. Martinet,
Éléments, p. 37)” (BARTHES. Sistema da moda, p. 30, nota de rodapé).
128
esta.
No caso da narrativa de Truman Capote, o vestuário escrito veio primeiro,339
pois o filme foi fruto de uma adaptação da obra, dirigida por Blake Edwards. A
narrativa é uma obra ficcional que tem uma linguagem e estilo bastante diferentes de
um descritivo de revistas de moda. Entretanto, Breakfast at Tiffany’s foi publicada
inicialmente em 1958 na revista Esquire, uma revista de moda, o que demonstra sua
receptividade frente a esse público. Além disso, Capote se tornou uma celebridade
na mídia, seus amigos eram socialites, atrizes, modelos, pessoas influentes e
participantes da cultura nova-iorquina de meados do século XX, o que fez com que o
autor escrevesse sobre essas pessoas e para essas pessoas.
O texto ficcional possui uma liberdade que o descritivo de moda de uma
revista não possui. A linguagem traz matizes diferentes para esses dois suportes:
Tecnicamente, linguagem é algo muito preciso: no sistema de signos
que constitui nossa linguagem articulada, os signos são – se assim
se pode dizer – divididos duas vezes: uma primeira vez em palavras,
uma segunda vez em sons (e letras). No nível da palavra, a relação
que une significado e significante é uma relação imotivada; por
exemplo, quando se diz boi, o próprio som não tem nenhuma relação
analógica com o que se pode chamar de imagem psíquica do boi.340
No trecho estão as ideias básicas de Ferdinand de Saussure, que evidenciam
a relação de Barthes com o estruturalismo, do qual posteriormente se afastou.
Barthes indica a relação “imotivada” entre a palavra e a “imagem psíquica” que
surge dela. O autor a classifica como uma relação analógica em oposição à relação
“digital”, que acontece na segunda articulação, a dos fonemas (o som). Estes
funcionam em “oposições binárias cujo número é finito”. O nosso sistema de
linguagem é de “dupla articulação” por esse motivo: analógico e digital. Essa relação
de oposição característica do pensamento estruturalista quando aplicada ao
fenômeno da moda talvez seja o aspecto mais desafiador da pesquisa de Barthes,
pois é demasiadamente rígida para essa função. Há na moda um extravio de sentido
da mesma forma que há na literatura ficcional, desejado e permitido.
Talvez o descritivo de moda na literatura ficcional alcance o extravio que a
339
Há uma discussão acalorada sobre a questão da originalidade de uma obra adaptada, o que é
bastante plausível. Muitas vezes a origem de uma obra para o leitor pode não ter sido o livro, mas sim
o filme, pois há pessoas que já viram o filme, mas nunca leram o livro. Assim, o filme se torna a
origem para essa pessoa em especial.
340
BARTHES. Inéditos, p. 89.
129
imagem possui: certa intangibilidade que ao mesmo tempo em que delimita uma
persona, o seu lifestyle, também deixa inapreensível todas as formas e texturas
possíveis, deixando partes para o leitor imaginar. Quando o descritivo de moda na
literatura ficcional se vincula a uma obra audiovisual, imagética, outros materiais e
outras relações vão surgir.
Barthes observou que uma forma “em si”341 nada significa pelo fato de que
elas são “finitas em número”, a medida que os “sentidos são infinitos: em toda ordem
formal primeira, só as funções, não as substâncias, podem ser significativas”.342
Assim, ficam estabelecidas relações intrínsecas entre o que o autor chama de
“substâncias” (materialidade da coisa) e “funções” (funcionamento da coisa em nível
semiológico).
O sistema da moda vigente no século XX trabalhou com a mudança sazonal
acelerada por meio de “micromodas”, 343 afetando as funções semiológicas do
vestuário com uma frequência anual.344 Em 1966, foi publicado um ensaio curto de
Barthes, na revista Èchanges, intitulado “Moda e as ciências humanas”, em que o
autor faz reflexões sobre algumas características do sistema da moda e do vestuário.
Bastante válidas até os dias atuais, quando adaptadas, Barthes explica sobre as
variações do vestuário que, de certa forma, refletem a mobilidade da sociedade. Se
uma sociedade está em constante mudança, tudo ao seu redor reproduzirá esse
aspecto. O caráter de imitação, bastante estudado por Simmel, Gabriel de Tarde e
outros filósofos, se mantém como uma característica das “sociedades modernas,
tecnológicas, industriais, e a moda é um fenômeno historicamente peculiar a essas
sociedades”.345
Barthes observa que a moda parece não estar ligada “a esta ou àquela forma
particular de vestuário”, mas a uma questão de ritmo: “um problema de cadência no
tempo”.346 Se as formas são finitas e os sentidos infinitos (pela conjugação das
formas em contextos variados), o ingrediente perfeito para a criação do sistema da
341
BARTHES. Inéditos, p. 289.
342
BARTHES. Inéditos, p. 290.
343
BARTHES. Inéditos, p. 359.
344
Atualmente, com o fastfashion, o nível de variação não segue mais a frequência anual. O
fastfashion cria modismos instantâneos que são substituídos rapidamente, além de produzir roupa
básica também, tudo com baixo custo.
345
O autor exemplifica a ausência de moda citando a sociedade chinesa antiga, na qual o vestuário
se tornou um código “quase imutável”, indicando o imobilismo social geral (BARTHES. Inéditos, p.
353).
346
BARTHES. Inéditos, p. 354.
130
moda é a “cadência no tempo”, que não precisa ser necessariamente um problema,
mas sim uma particularidade. É como um ingrediente fundamental para que um
experimento químico aconteça.
No ensaio, Barthes desenvolve um raciocínio em torno da visão do historiador
baseado na leitura da obra Três séculos de moda feminina,347 de Jane Richardson e
Alfred Kroeber. Nesta obra, os autores fazem um apanhado de mais de 300 anos
das formas do vestuário e observam certa regularidade no retorno das formas:
Mostrou de modo seguro que a moda é um fenômeno profundamente
regular, que não se situa no nível das variações anuais, mas em
escala histórica. Na prática, há 300 anos, o traje feminino vem sendo
submetido de maneira precisa a uma oscilação periódica: as formas
atingem os termos extremos de suas variações a cada 50 anos.348
O estudo foi baseado em variações das formas como o cumprimento das
saias, largura e profundidade de decotes e posição da cintura em detrimento de
outras influências estéticas importantes na definição de moda. Barthes é levado a
crer que com isso o problema do historiador está em “um sistema cultural particular
que parece escapar ao determinismo da história” e, por isso, as mudanças sociais
como novos regimes, “transformações ideológicas, afetivas, religiosas” não tiveram
“efeitos sobre os conteúdos ou mesmo sobre os ritmos da moda”.349
Essa ideia pode ser contestada observando o mesmo exemplo que o autor
usa para explicar sua ideia: “não é possível estabelecer razoavelmente a mínima
relação entre a cintura alta e o consulado”.350 Mas há conexões. A nomenclatura
usada pela História da moda para distinguir a moda de um determinado período é
razoavelmente relacionada às mudanças políticas, como, por exemplo, moda
Império, moda Diretório, estilo Regência. Os nomes são relacionados aos períodos
políticos, e as mudanças no vestuário são associadas às conformações sociais da
época. A Era Rococó, que antecede o Diretório, era cheia de excessos: babados
com amarrações, fitas, detalhes de flores (Figura 5).
347
A obra de Jane Richardson e Alfred Kroeber foi publicada originalmente em inglês,Three Centuries
of Women's Dress Fashions: A Quantitative Analysis, em1940. Texto completo disponível em:
. Acesso em: 15 ago.
2018.
348
BARTHES. Inéditos, p. 355.
349
BARTHES. Inéditos, p. 356.
350
BARTHES. Inéditos, p. 356.
131
Figura 5 – Vestido de baile e anágua, 1775-1780
Fonte: Museu V & A. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2018.
132
Mesmo já havendo traços da influência do estilo neoclássico, como as cores
sutis e o design delicado,351 que demonstram a decadência do estilo Rococó, a
imagem acima mostra uma oposição de estilos muito forte em relação ao Diretório.
O vestido leve e com a modelagem “corte Império” é extremamente revolucionário
para a época, como pode ser observado no quadro de Madame Récamier (1777-
1849), justamente por sua comparação com o vestuário anterior (Figuras 6 e 7).352
Figura 6 – Retrato da socialite parisiense Madame Récamier feito por Jacques-Louis
David, 1800
Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em:
. Acesso em: 21 ago. 2018.
351
Informação disponível na descrição do vestuário na página do V&A. Disponível em:
. Acesso em: 21 ago. 2018.
352
São apresentadas aqui as duas pinturas da socialite Madame Récamier para contrapor o dilema
apresentado em relação à representação de sua beleza real. A obra de Gérard reflete maior beleza e
charme do que a obra de David, em termos de imagem sedutora e atraente. As duas obras são
marcos importantes para demonstrar o “gosto pela antiguidade” que vai prevalecer no império. Cf.
CARNAVALET. Portrait de Juliette Récamier (1977-1849). Disponível em:
. Acesso em: 21
ago. 2018.
133
O vestido chegava a pesar poucas gramas, marcando um retorno à natureza,
à praticidade e ao conforto, completamente diferente do vestuário usado no período
anterior. A personagem histórica, uma das socialites mais admiradas de seu tempo,
foi imortalizada com um vestuário extremamente “fashion” para o período. Seu
marido foi um banqueiro de bem mais idade que ela – com apenas 23 anos –, um
dos principais financiadores do Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte.353
Figura 7 – Retrato da socialite parisiense Madame Récamier
feito por François Gérard, 1805
Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fran%C3%A7ois_G%
C3%A9rard_-_Madame_R%C3%A9camier_-_WGA08597.jpg
353
Informação disponível na descrição do quadro na página do Museu do Louvre. Disponível em:
. Acesso em: 21 ago. 2018.
134
A relação entre a cintura alta e o Consulado é de ordem ideológica.
Modificando-se os aspectos políticos marcantes do Antigo Regime, os paniers,354 os
bordados, os volumes exagerados característicos do período saíram também do
vestuário. Toda a opulência e extravagância do Antigo Regime, que também estava
na moda, foram substituídas pela simplicidade do vestido “camisola” em
musselina355 ou cambraia, de corte Império: cintura logo abaixo do busto. De certa
forma, os excessos “caíram de moda” em todas as instâncias. A admiração pelos
valores greco-romanos, por parte de Napoleão Bonaparte, levou a estética do
período a influenciar a moda, o que justifica o estilo do vestido usado por Madame
Récamier e as mulheres influentes da época.
A moda é afetada pelas conformações políticas e sociais e, por isso, é vista
como um fenômeno social. No fragmento “B [Moda]”, da obra Passagens, de Walter
Benjamin, o autor traz excertos que demonstram essa relação entre a moda e as
transformações sociais advindas dos movimentos políticos:
Quando o autor destes pensamentos racionais viu embarcar no trem
o primeiro rapaz vestindo uma camisa com o mais moderno
colarinho, acreditou piamente estar vendo um padre; pois esta tira
branca situa-se na parte inferior do pescoço à mesma altura do
conhecido colarinho do clero católico e, além disso, o longo paletó
era preto. Quando reconheceu o exemplo mundano da última moda,
compreendeu o que este colarinho também significa: Oh, para nós,
tudo, tudo é igual, até as concordatas! Por que não? Devemos nos
entusiasmar com as Luzes como rapazes nobres? Não é a hierarquia
mais distinta do que a planura de uma insípida libertação dos
espíritos, que ao fim nada mais faz do que azedar o prazer do
homem elegante? – Ademais, este colarinho, ao traçar o pescoço
numa linha reta e firme, lembra o belo aspecto de um recém-
guilhotinado, o que combina bem com o caráter do esnobe.356
Na visão do homem burguês, a moda masculina revela as conformações das
mudanças políticas e as posições de seus usuários. A moda é capaz de demonstrar
as “opiniões” políticas de seus usuários por meio da aderência aos modismos e ao
que eles representam. Benjamin percebe em Poète Assassiné, de Apollinaire, “um
354
Cesto, do francês, é uma armação lateral exagerada usada na cintura, sob as saias, para dar
volume.
355
“Musselina 1. Tecido feito originalmente na cidade de Mosul (atualmente no Iraque) e importada
pela Europa no século XVII. No século XVIII já se fabricava musselina na Inglaterra e na França. De
tecelagem lisa, que pode ser fabricada em ampla variedade de cores, era muito usada no século XIX
para roupas íntimas, blusas e tecidos de verão. […] 2. Tecido fino, leve e liso, geralmente de algodão,
seda ou lã, ligeiramente firme. Mousseline de soie é a versão mais conhecida, usada principalmente
durante o século XIX para vestidos, blusas e saias” (O’HARA. Enciclopédia da moda, p. 193-194).
356
VISCHER apud BENJAMIN. Passagens, p. 105-106.
135
dos textos mais importantes para o esclarecimento das possibilidades excêntricas,
revolucionárias e surrealistas da moda”.357
Sobre o problema levantado por Barthes em relação à moda possuir “um
sistema cultural particular que parece escapar ao determinismo da história”, Walter
Benjamin traz um excerto que também sugere, por meio de Friedell, certo
“determinismo” na moda feminina, justamente em suas variações maiores em
relação à moda masculina. As mudanças que retornam indicam algum determinismo,
como viu Barthes, mas nos escritos de Benjamin parece notória a característica
ambígua dessa determinação na moda: ao mesmo tempo em que há o retorno
(imagem dialética), 358 também há uma variação sujeita às conjunções sociais.
Poder-se-ia pensar, de forma mais ampla, que a moda apenas reflete esse sistema
de variação e retorno advindo de outros aspectos políticos e sociais (e que também
podem sofrer a variação e repetição). Sobre o vestuário feminino, Friedell, em 1931,
observa que
a história de seu vestuário demonstra surpreendentemente poucas
variações, nada mais sendo que uma sequência de algumas
nuances que mudam muito rapidamente, mas que também retornam
com maior frequência: o comprimento das caudas, a altura dos
penteados, o comprimento das mangas, o volume da saia, o
tamanho do decote, a altura da cintura. Mesmo revoluções radicais
como o atual corte de cabelos à lagarçonne são apenas “o eterno
retorno do mesmo”.359
Essa (leve) divergência entre os autores pode aludir a aspectos próprios do
modo de pensar de cada um e às suas leituras individuais: Barthes, por seu vínculo
ao estruturalismo formal (mesmo que posteriormente tenha se tornado mais sutil), e
Benjamin, por sua visão mais fragmentada e menos sistemática dos fenômenos,
ligada ao seu modo peculiar de observar o materialismo histórico.
357
BENJAMIN. Passagens, p. 106.
358
A imagem dialética é uma síntese entre o “dinâmico” e o “estático”, desempenhando livremente
sua função representativa, relacionando-se com outras imagens. “O pensamento estético assume,
por assim dizer, o fato de suas reflexões se basearem em representações. Através da substituição
permanente das representações usadas, este pensamento evita o risco de elas ganharem um caráter
coercitivo, como no caso da cadeia causal. O fato de o pensamento estético se basear em imagens
que se definem pela idiossincrasia dos seus componentes e não por uma instância alheia não impede
que elas se relacionem com outras imagens. Pelo contrário: é pelo fato de se tratar de mônadas
autônomas que estas imagens podem, além de desempenhar livremente sua função representativa,
se relacionar com outras imagens” (OTTE. Linha, choque e mônada, p. 99).
359
FRIEDELL, Egon. Kulturgeschichte der Neuzeit., v. III, Munique, 1931, p. 88 apud BENJAMIN.
Passagens, p. 108.
136
3.1.1 Vestuário, moda ou figurino?
Antes das análises que se seguem, é necessário apresentar algumas
definições quanto aos termos vestuário, figurino e moda. A intenção é definir e
distinguir as colocações dos termos apropriadamente diante do processo de análise
comparativa da obra escrita e da obra fílmica, já que a moda está presente de forma
evidente nas duas obras, sendo que a obra cinematográficatraz também o apelo da
imagem.
Já observamos anteriormente, nas análises feitas na comparação das obras
literárias Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s, que Truman Capote se apropria
de conceitos da moda para delinear suas personagens. A seção anterior também
trouxe destaque ao aspecto da moda como um fenômeno social e circunscrito no
âmbito das sociabilidades e das figurações das sociedades, capaz de produzir
fantasmagorias. Os três vestuários de Barthes – o vestuário-imagem, o vestuário
escrito e o vestuário real – são reflexo da moda como fenômeno sociocultural.
A questão mais específica em Breakfast at Tiffany’s é que se trata de uma
obra escrita – que tem um vestuário escrito/descrito (usando a nomenclatura de
Barthes) na forma ficcional –, adaptada para o cinema – que tem um vestuário-
imagem (mesmo que não seja fotográfico, como Barthes utilizou) em movimento –,
que tem um vestuário real – feito a partir das escolhas pessoais de Audrey Hepburn
e Hubert de Givenchy360 (seu estilista-figurinista), vestuário esse influenciado pelo
estilo da própria atriz (seu corpo e personalidade) e de Givenchy. Tudo isso forma
uma conjuntura especial que deve ser analisada de forma também especial.
Não se trata de um figurino qualquer, ou de moda apenas, ou de um guarda-
roupa pessoal (da atriz) que entra em cena. É a junção desses caracteres que
constitui uma estética que foi amalgamada e reverbera pelo tempo, mantida por
360
Givenchy, Hubert (-James Marcel-Taffin) De 1927- [faleceu em março de 2018]. Estilista. Nasceu
em Beauvais, França. Frequentou a École dês Beaux-Arts, em Paris, e estudou advocacia por pouco
tempo. Trabalhou com [Jacques] Fath de 1945 a 1946, com [Robert] Piguet de 1946 a 1948 e com
[Lucien] Lelong de 1948 a 1949. Foi, então, contratado por [Elsa] Schiaparelli, abrindo seu próprio
negócio em 1952. A coleção de Givenchy tinha muitas roupas feitas de tecidos de camisaria e incluía
a Blusa Bettina. Muitos o consideravam seguidor de [Cristóbal] Balenciaga, ao fazer roupas elegantes
e, constantemente, formais e luxuosos vestidos de baile e toalete. Durante a década de 50, exagerou
a forma chemisier (saco), dando-lhe o contorno de um papagaio de papel, larga na parte superior e
afunilando-se em direção à bainha. Givenchy é [foi] o estilista preferido de muitas atrizes de cinema e
de mulheres internacionalmente famosas. Seu nome é ligado a Jacqueline Onassis e também a
Audrey Hepburn, cujo figurino desenhou para o filme Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany’s,
1961)” (O’HARA. Enciclopédia da moda, p. 129).
137
meio da aura da moda e da aura da obra cinematográfica clássica.
A aura proveniente da moda está vinculada à sua fugacidade:
A moda também deve ser vista como uma variante da aura – o que
pode ser visto quase como um lugar comum: pois existe algo mais
‘aurático’ do que a moda na sociedade de consumo que se espalhou
desde as grandes mudanças do século XIX, no qual se concentram
os trabalhos de Benjamin. A moda representa a única referência – a
única convenção – que ainda existe (basta pensar em sua função
como portadora de status), mas contribui ao mesmo tempo para a
perda da experiência: não há nada mais fugaz que a moda e
autoridade alguma pode se fundar nela.361
Sua potência está justamente na substituição. Na medida em que algo se
torna substituível, para muitos por motivos irracionais (como o fato de que algo não é
mais moderno362), está instaurada uma convenção, que muitas vezes não é possível
de ser identificada a fonte dessa convenção. Aqui também se funda sua capacidade
“extraordinária de citar o passado”.364
O sistema da moda, como estrutura social baseada na produção industrial
criada pelo capitalismo, funciona por meio dessa substituição. O “novo” que a moda
traz como produto material e imaterial é um elemento que, visto pelo olhar
sociológico, pode ser tanto indicador de mudança social quanto provocador de
mudança social, na medida em que se propaga dentro e fora das sociedades, pelos
meios de comunicação de massa. Esse “novo” pode surgir de qualquer lugar, de
uma subcultura, da periferia, de um acontecimento, da influência de celebridades,
das artes.
Vestuário é a nomenclatura usada por Barthes no Sistema da moda. O autor
também cita a moda e, em nota de rodapé, distingue dois aspectos: Moda,365 com
361
RAULET, Gérard. Aura e auctoritas. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime.(Org.) Walter
Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 47.
362
O termo moderno é usado na moda para expressar algo atual, contemporâneo, novo, mesmo que
seja a releitura de uma década passada. De certa forma, o fato de um objeto da moda conter a
mistura entre o passado e o presente é o que o faz moderno. O objeto lembra o passado, mas possui
traços, muitas vezes tecnológicos, que o fazem ser extremamente atual.
364
OTTE. A questão da legibilidade do mundo na “Obra das Passagens” de Walter Benjamin, p. 2.
365
Moda: “o fenômeno social da mudança cíclica dos costumes e dos hábitos, das escolhas, dos
gostos, coletivamente validado e tornado quase obrigatório. […] desde que se tornou possível
reconhecer a ordem típica da moda como sistema, com as suas metamorfoses e inflexões, a moda
conquistou todas as esferas da vida social, influenciando comportamentos, gostos, ideias, artes,
móveis, roupas, objetos e linguagem. Em outras palavras, desde que ela surgiu no Ocidente, no final
da Idade Média, não tem um conteúdo específico. É um dispositivo social definido por uma
temporalidade muito breve e por mudanças rápidas, que envolvem diferentes setores da vida coletiva.
[…] ‘moda’ não é uma palavra antiga: apesar de sua etimologia ser latina – vem de modus (modo,
maneira) –, entra no italiano em meados do século XVII como empréstimo do termo francês ‘mode’. O
138
letra maiúscula, “no sentido de fashion”, que está para um fenômeno social, um
sistema articulado e codificado, dotado de um número finito de objetos que podem
ser articulados, mas essas articulações vão postular uma infinidade de sentidos
variantes, de acordo com contextos também variados. Há também uma constância
nas variações, que, numa visão sistêmica da história da moda, poderá ser notável
certa variação e repetição, mas, sem sombra de dúvida, alguns aspectos de
mudança não têm volta.
Podemos supor que ao falar de “vestuários”, Barthes pretende aproximar
esses conceitos, interligando-os com o cotidiano, pois o autor parte de um vestuário
real, que deve ser pensado num contexto social muito antes de falar de moda,
abarcando os grupos sociais, os anseios individuais, as questões temporais e
regionais, os usos e costumes, as funções solicitadas nessa sociedade e um dress
code.366
Barthes faz uma oposição do termo Moda, no sentido de fashion, ao sentido
de “uma moda (fad)”, com letra minúscula, que está mais no plano material, nos
modismos passageiros, que são sintomas palpáveis de mudanças.
São duas modas que sobrevivem juntas, em simbiose; uma moda é material e
a outra, imaterial, abstrata, fantasmagórica, na qual várias forças vão agir. Os
aspectos ideológicos de uma sociedade, bem como os políticos e culturais, estão
entre estas forças, entrelaçados e difíceis de separar.
Quanto ao termo figurino, Barthes proferiu conferências em 1955 para o Les
Amis du Thèâtre Populaire”, 367 que culminaram em um ensaio intitulado “Les
maladies du costume de théâtre”,368 que traz uma análise sobre o que o figurino
primeiro exemplo literário do uso desse novo vocábulo é produzido, provavelmente, por Agostino
Lampugnani, que, sob o pseudônimo de Gio Sonta Pagnalmino, na obra satírica La carrozza da nolo,
de 1649, utiliza fartamente a palavra moda e o termo ‘modanti’, para indicar os seguidores da moda,
refinados cultores de elegância, frequentemente, francesas” (CALANCA, Daniela. História social da
moda. Tradução de Renato Ambrosio. São Paulo: Editora Senac, 2008. p. 11-13).
366
Dress code: É um código vestimentar no qual regras são estabelecidas pela sociedade, às vezes
de forma arbitrária e outras de forma natural, visando facilitar a convivência em sociedade, o acesso a
locais públicos e privados. Comumente está escrito em convites para eventos ou manuais, mas
também assume a forma oral, e, muitas vezes, está subentendido e exige bom senso para ser
identificado. Pode também ser uma forma de restringir a participação de determinadas pessoas a
determinados espaços. Como antecedente, as Leis suntuárias tinham esse sentido de restrição aos
hábitos de consumo. Os manuais de etiqueta e civilidade do século XIX e as fisiologias tiveram
função semelhante no que tange a promover ensinamentos que ajudavam na convivência em
sociedade.
367
“Os amigos do teatro popular”.
368
“As doenças do figurino no teatro”. O texto foi parte de uma conferência realizada para o Les Amis
du Théâtre Populaire, em 8 de maio de 1954, em Paris, e no dia 11 de fevereiro de 1955, em Amiens.
139
deve ser, sem ultrapassar suas funções, de forma a não se tornar uma doença. Para
Barthes, “toute œuvre dramatique peut et doit se réduire à ce que Brecht appel son
gestus social, l'expression intérieure, matérielle, des conflits de société dont elle
témoigne”.369 Dentre as técnicas teatrais utilizadas para manifestar na materialidade
o que poderia ser absolutamente abstrato, estão à disposição “le jeu de l'acteur, la
mise en place, le mouvement, le décor, l'éclairage, et précisément aussi: le
costume”. 370 Em análise que envolve fundamentalmente esse gestus social
brechtiano:
C'est donc sur la nécessité de manifester en chaque occasion le
gestus social de la pièce, que nous fonderons notre morale du
costume. Ceci veut dire que nous assignerons au costume un rôle
purement fonctionnel, et que cette fonction sera d'ordre intellectuel,
plus que plastique ou émotionnel. Le costume n'est rien de plus que
le second terme d'un rapport qui doit à tout instant joindre le sens de
l'œuvre à son extériorité. Donc, tout ce qui, dans le costume, brouille
la clarté de ce rapport, contredit, obscurcit ou falsifie le gestus social
du spectacle, est mauvais; tout ce qui, au contraire, dans les formes,
les couleurs, les substances et leur agencement, aide à la lecture de
ce gestus, tout cela est bon.371
Barthes indica três doenças que o traje de cena pode vir a ter se ultrapassar
certos limites, tanto para cima quanto para baixo. Primeiro, na elaboração do figurino
histórico, deve-se buscar certa “échelle de vérité”,372 dosada e trabalhada para que
não sobre de “la maladie de base, c'est l'hypertrophie de la fonction historique”.373
Segundo, “le silence ou l'indigence de l'œuvre”,374 “la maladie esthétique”,375 caso o
Posteriormente foi traduzido e publicado no Brasil na Revista O Tablado Cadernos de Teatro nº 31,
1965, Disponível em:
. Acesso em: 9 nov. 2018.
369
“toda obra dramática pode e deve se reduzir ao que Brecht chama de ‘gestus’ social, ou seja, a
expressão exterior, material dos conflitos da sociedade que a peça testemunha” (BARTHES, Roland.
Les maladies du costume de théâtre. Article paru dans la revue "Théâtre populaire", 1955).
370
“o trabalho do ator, a marcação, a movimentação, o cenário, a iluminação e, especificamente, os
figurinos” (BARTHES. Les maladies du costume de théâtre).
371
“É, portanto, sobre a necessidade de demonstrar em todas as ocasiões o gestus social da peça
que basearemos nossa moral do figurino. Isso significa que atribuiremos ao figurino um papel
puramente funcional e que essa função será intelectual, mais que plástica ou emocional. O figurino
nada mais é do que o segundo termo de um relatório que deve sempre acrescentar o significado do
trabalho à sua exterioridade. Portanto, tudo no traje que obscurece a clareza dessa relação,
contradiz, obscurece ou falsifica o gestus social do espetáculo, é ruim; tudo isso, pelo contrário, nas
formas, nas cores, nas substâncias e no seu arranjo, ajudam a ler este gestus, tudo isso é bom”
(BARTHES. Les maladies du costume de théâtre, grifos do autor)
372
“escala de verdade” (BARTHES. Les maladies du costume de théâtre).
373
“a doença de base é a hipertrofia da função histórica” (BARTHES. Les maladies du costume de
théâtre).
374
“o silêncio ou a indigência da obra” (BARTHES. Les maladies du costume de théâtre).
375
“a doença estética” (BARTHES. Les maladies du costume de théâtre).
140
figurino se constitua em “un lieu visuel brillant et dense”,376 que se sobressaia ao
gestus social da peça, uma beleza formal que não se relaciona com esta, afastando-
se da “réalité essentielle du spectacle, ce que l'on pourrait appeler as
responsabilité”. 377 Terceiro, o excesso de sutuosidade: “la troisième maladie du
costume de théâtre, c'est l'argent, l'hypertrophie de la somptuosité, ou tout au moins
de son apparence”.378
Barthes traz esses postulados pensando no teatro, mas podemos adaptá-los
para o cinema. As doenças do figurino de cena, apontadas por Barthes, não estão
presentes na obra fílmica Breakfast at Tiffany’s. O que Barthes chama de função
intelectual – que deve ser maior do que a plástica e emocional – não exclui o valor
simbólico, e intelectual, que a moda pode atribuir à obra: “le costume doit être um
argument”,379 de forma que o figurino cultive “la cellule intellective, ou cognitive […]
son élément de base, c'est le signe”,380 promovendo o realce do valor semântico do
traje, que pode ser lido por meio de sua linguagem visual e colaborar na construção
da personagem pelo ator.
Nas análises desta seção pretende-se demonstrar que o figurino do filme
Breakfast at Tiffany’s desempenha uma função intelectual que pode ser percebido
por meio de análises comparativas entre o livro, o roteiro adaptado e a obra fílmica.
A função do figurino no filme é maior do que “plástica e emocional” e possui uma
relação fundamental com o gestus social da obra. Na materialização desse gestus
social, a exterioridade da obra fílmica ocorrerá por meio da imagem manifesta dos
elementos fílmicos já citados, de sua junção e da montagem.
Ainda em busca de classificações que possam colaborar nas análises
comparativas entre a obra escrita e a fílmica, o figurino pode ser classificado pela
tipologia de Marcel Martin381 como realista, pendendo sutilmente ao pararrealista. A
376
“um lugar visual brilhante” (BARTHES. Les maladies du costume de théâtre).
377
“realidade essencial do espetáculo, aquilo a que podemos chamar de responsabilidade”
(BARTHES. Les maladies du costume de theatre).
378
“a terceira doença do figurino de teatro é o dinheiro, a hipertrofia da sumptuosidade, ou pelo
menos da sua aparência” (BARTHES. Les maladies du costume de theatre).
379
“o trajo deve ser um argumento” (BARTHES. Les maladies du costume de théâtre,grifos do autor).
380
“célula intelectiva, ou cognitiva […] seu elemento básico é o signo” (BARTHES. Les maladies du
costume de theatre, grifo do autor).
381
O figurino é considerado por Marcel Martin como um “elemento fílmico não específico” e, na
verdade, como Barthes, o autor não usa a palavra figurino, mas sim vestuário. São “elementos
materiais que participam da criação da imagem e do universo fílmicos tais como aparecem na tela”. É
um elemento não específico por pertencer a outras artes, como o teatro, a pintura. Esses elementos
englobam a iluminação, o vestuário, o cenário, a cor. O vestuário é apontado por Martin como um
elemento que pode ser classificado em três tipos: orealista – trabalhado em acordo com a “realidade
141
tipologia de Martin não deve ser levada “a ferro e fogo”, podendo variar como numa
escala entre um e outro tipo (Quadro 1), até mesmo entre as personagens
apresentadas na obra. Uma obra pode ser realista, mas pode conter uma
personagem que traga características simbólicas marcantes, que venham a
colaborar na construção de suas singularidades. No filme Breakfast at Tiffany’s, os
figurinos são do período histórico retratado no tempo da narrativa, sendo um
vestuário típico realista, mas trazendo um cuidado sutil na escolha do vestuário em
relação ao seu caráter significativo, incluindo o aspecto da cor (que será analisado
mais à frente).
Quadro 1 – Tipologia de Marcel Martin sobre vestuário (figurino) para cinema
Fonte: Elaborado pela autora, adaptado de Marcel Martin.
As duas significações do termo moda empregadas por Barthes: a “Moda” e a
“moda” estão presentes nas análises deste capítulo e se constituem em um sistema
imbricado de sentidos que permitem ao espectador e ao leitor fazer inferências que
delineiam as personagens e, ao mesmo tempo, tornam-se um argumento dentro das
narrativas. É por meio dessas inclusões que o leitor e o espectador podem imaginar
detalhes significativos das personagens, tornando-as únicas e ao mesmo tempo
semelhantes aos seus reflexos sociais reais. Há uma questão de verossimilhança
envolvendo obras ficcionais que optam por trazer aspectos reais da moda para suas
narrativas.
O figurino engloba a roupa, a maquiagem, os adereços do corpo e, também,
os próximos dele, como bolsas, malas e objetos pessoais, podendo ser
histórica”, “o figurinista se reporta a documentos de época e demonstra a preocupação de exatidão
ante as exigências indumentárias dos artistas” (como exemplo, La Kermesse Héroique, direção de
Jacques Feyder); o pararrealista – “o figurinista inspira-se na moda da época, mas procedendo a uma
estilização. […] A preocupação com o estilo e a beleza prevalece sobre a exatidão pura e simples: as
indumentárias possuem então uma elegância atemporal” (como exemplo, Romeo and Juliet, direção
de George Cukor); e o simbólico – “a exatidão histórica não importa, e o vestuário tem antes de tudo
a missão de traduzir simbolicamente caracteres, tipos sociais ou estados de alma” (como exemplo, a
personagem Carlitos, de Charles Chaplin) (MARTIN. A linguagem cinematográfica. p. 66).
REALISTA PARARREALISTA SIMBÓLICO
142
considerados a segunda pele do ator. Até mesmo quando atua nu o ator terá
determinado seu figurino: certo tipo de cabelo, uso ou não maquiagem, marcas no
corpo, tudo que poderá contribuir para que sinta a personagem incorporada. Esse
termo é bastante oportuno por incluir a ideia do corpo que veste, fazendo deste
corpo parte significativa para o figurino. Cada ator que veste um figurino forma um
único enredamento de sentidos, pois, ali estará o seu gestual, sua postura, seu tipo
físico e tudo que o compõe, até mesmo os sentidos ativados na imaginação dos
espectadores por sua presença pública, em se tratando de atores famosos, figuras
públicas, celebridades. O imaginário do espectador age sobre a imagem vista na tela.
3.1.2 A moda como fantasmagoria na figuração da prostituta
A prostituta é identificada por meio de seu vestuário e de seu comportamento
juntos. Essa é uma premissa perceptível em vários tipos de obras ficcionais: livros,
filmes, peças teatrais. Há também vários “tipos” de prostitutas, variações que
ocorrem de acordo com a sua “área de atuação”. Mas, grosso modo, é uma mulher
que vende seu corpo sem envolvimento emocional e por isso ela é marginalizada.
Seus atos são julgados e condenados a partir dessa ideia. O que ela faz está fora do
que as sociedades permitem, ela é transgressora. A prostituta é associada à ideia de
liberdade, ela diz e faz o que quer. Por esse subjugo da sociedade, a prostituta
aparece camuflada no filme Breakfast at Tiffany’s e a personagem Holly é bastante
romantizada.
Na narrativa escrita por Truman Capote não parece haver nenhuma intenção
em ocultar que Holly Golightly seja uma prostituta, ao contrário, esse parece ser o
mote evidenciado por vários detalhes descritos pelo narrador-personagem. De forma
oposta, as escolhas feitas para o filme no que se refere à atriz protagonista e ao
figurino não deixam explícito para os espectadores que esta é a situação de Holly. A
atmosfera criada por esses elementos fílmicos encobre ou dissimula a situação. O
espectador custa a crer que ela seja mesmo uma prostituta por causa de sua
aparência, mas terá uma impressão de estranhamento manifesta por meio de seu
comportamento e hábitos.
Logo nas primeiras páginas, surgem várias situações que direcionam o leitor
a inferir o fato. Na primeira aparição da personagem há um homem perseguindo-a
da entrada do edifício até a porta de seu apartamento. Aparentemente, é alguém
143
que ela conheceu na noite, Mr. Arbuck (ela erra seu nome o tempo todo), e ele tem
intenções de entrar, mas ela o inibe, deixando claro no final que ele não está sendo
convidado por ter lhe dado pouca “gorjeta”: “The next time a girl wants a little
powder-room change,” she called, not teasing at all, “take my advice, darling: don’t
give her twenty cents!”382
A primeira cena do filme mostra a chegada de um taxi com uma visão ampla
da Quinta Avenida. O carro estaciona ainda no lusco-fusco do amanhecer; a câmera
mostra o olhar de Holly para o relógio da joalheria Tiffany, que marca cinco horas da
manhã. Ela traz um saco de papel com seu café da manhã e come enquanto olha as
vitrines da joalheria ao som da música “Moon river”, composta por Henry Mancini.
Logo após o café da manhã, a personagem volta para casa já com o dia claro. Mr.
Arbuck dormia em seu carro, esperando-a chegar. Assim que Holly atravessa a rua,
ele vai atrás dela. Ele diz ser um “cara legal” e afirma, esmurrando sua porta, ter
gasto com as despesas de cinco amigos dela, por isso tinha “alguns direitos” (ver a
sequência de imagens na Figura 8).
Figura 8 – Sequência de imagens das cenas iniciais do filme Breakfast at Tiffany’s
382
“‘Da próxima vez que uma garota pedir um troco para a toalete’, ela chamou, sem provocar muito,
‘aceite o meu conselho, querido: não lhe dê 20 centavos!’” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 14,
grifo do autor).
144
145
146
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
A cena inicial de Holly caminhando ocorre com a música melancólica de fundo
que faz a passagem entre a imagem e o sentimento que envolve a personagem. No
filme, Mr. Arbuck diz ter lhe dado US$50 dólares em vez de US$0,20, e a fala de
Holly provocando-o por não ter dado uma “gorjeta” digna para a toalete é suprimida.
Essa supressão da fala de Holly modifica, para o espectador do filme, o motivo pelo
qual ela não deixa Mr. Arbuck entrar.
No livro, Holly explica que ele deveria ter dado o valor do troco para toalete:
US$50 dólares. Em outro trecho do livro, Holly diz: “any gent with the slightest chic
will give you fifty for the girl’s john, and I always ask for cab fare too, that’s another
fifty”.383 Os acordos financeiros estabelecidos pelo “mercado” não foram cumpridos
por Mr. Arbuck, por isso ele não pode entrar.
A “bonequinha de luxo”, Holly Golightly, é aquela que circula pelos lugares
socialmente aceitos e recebe nomes mais suaves. Ela tem privilégios por não
precisar procurar seu trabalho nas esquinas, “rodando bolsinha”, uma expressão
pejorativa que identifica prostitutas que ficam nas ruas procurando por clientes384.
383
“qualquer sujeito levemente chique vai te dar 50 para ficar com você, e eu sempre peço tarifa de
táxi também, isso é outro 50” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 26).
384
O cinema e a literatura trazem personagens diversas nessas condições, como por exemplo Pretty
Woman (Uma linda mulher), de Garry Marshall, lançado em 1990, no qual a prostituta Vivian,
protagonizada por Julia Roberts, é romantizada como uma princesa que encontra seu príncipe
encantado que a “salva” das ruas, onde buscava seus clientes.
147
Ela está no limiar entre a “mulher pública”, citada por Walter Benjamin, e a mulher
que escolhe com quem não vai fazer sexo, não vai levar para sua casa. Isso não
significa que ela possa escolher com quem vai, mas se permite alguma seleção.
Talvez, esse seja um dos motivos pelos quais Holly não se considere uma prostituta.
O início da narrativa no livro tem outra forma, evidenciando que a
personagem é uma prostituta. Há uma discussão em torno do paradeiro de Holly por
meio da descoberta na Áfricade uma estátua esculpida em madeira muito parecida
com ela. Nessa discussão, a liberdade sexual de Holly é colocada como algo já
conhecido pelos amigos (o narrador-personagem, Joe Bell e o fotógrafo Mr.
Yunioshi), pois os rumores foram de que ela viajava pelo continente africano com
outros homens, que dividiu a tenda com um nativo africano. Há também outros
trechos da narrativa já analisados no capítulo anterior que permitem perceber que
Holly se prostitui, ora justificando sua vida por meio de acontecimentos anteriores
que a levaram a essa condição, ora dizendo que são também escolhas dela, que
teve oportunidades de se casar, levar uma vida estável, aos moldes que a sociedade
julgava ser correto.
O livro de Capote foi recebido com muitas ressalvas pela crítica, e mais ainda
a possibilidade de sua adaptação para o cinema. Na Paramount, havia muita
preocupação com a realização do filme:
Jurow and Shepherd hadn’t the faintest idea how the hell they were
going to take a novel with no second act, a nameless gay protagonist,
a motiveless drama, and an unhappy ending, and turn it into a
Hollywood movie. (Even when it was just a book, Breakfast at
Tiffany’s was causing a stir. Despite Capote’s enormous celebrity,
Harper’s Bazaar refused to publish the novel on account of certain
distasteful four-letter words.)385
É notável que várias – pequenas e grandes – alterações foram feitas em
função da censura, como no exemplo apresentado acima. A supressão do trecho no
qual Holly indica claramente de onde vem sua renda esconde do grande público
espectador do filme uma informação determinante para a afirmação de que ela era
385
“Jurow e Shepherd [os produtores] não faziam a menor ideia de como pegar um romance sem
segundo ato, com um protagonista gay sem nome, um drama sem motivação, um final infeliz e
transformá-lo num filme de Hollywood. (Mesmo quando era apenas um livro, Bonequinha de luxo já
causava comoção. Apesar da enorme celebridade de Capote, a revista Harper’s Bazaar se recusou a
publicar o romance por causa do mau gosto de certas palavras)” (WASSON, Sam. Fifth Avenue, 5
A.M.: Audrey Hepburn, Breakfast at Tiffany's, and The Dawn of the Modern Woman. HarperCollins e-
books. E-book, posição 137).
148
uma prostituta, ou pelo menos, deixa ambíguo. Outras partes permanecem e
afirmam essa condição, inseridas por meio do humor da comédia-romântica, como
foi classificado o filme. O espectador não tem certeza, como tem o leitor do livro. É
certo que na época do lançamento do livro ele foi amplamente lido, mas o alcance
de um filme de Hollywood é indiscutivelmente maior para o período do qual estamos
falando.
Ainda no início da narrativa, há outro excerto que expõe a situação de Holly
como prostituta. O narrador-personagem está em seu quarto numa noite de outono,
já deitado em sua cama, tomando um Bourbon, quando tem a sensação de ser
observado, o que ele diz já ter escrito sobre isso, mas nunca experimentado.
Quando ele percebe uma batida na janela:
The feeling of being watched. Of someone in the room. Then: an
abrupt rapping at the window, a glimpse of ghostly gray: I spilled the
bourbon. It was some little while before I could bring myself to open
the window, and ask Miss Golightly what she wanted. “I’ve got the
most terrifying man downstairs,” she said, stepping off the fire escape
into the room. “I mean he’s sweet when he isn’t drunk, but let him
start lapping up the vino, and oh God quel beast! If there’s one thing I
loathe, it’s men who bite.” She loosened a gray flannel robe off her
shoulder to show me evidence of what happens if a man bites. The
robe was all she was wearing. “I’m sorry if I frightened you. But when
the beast got so tiresome I just went out the window. I think he thinks
I’m in the bathroom, not that I give a damn what he thinks, the hell
with him, he’ll get tired, he’ll go to sleep, my God he should, eight
martinis before dinner and enough wine to wash an elephant. Listen,
you can throw me out if you want to. I’ve got a gall barging in on you
like this. But that fire escape was damned icy. And you looked so
cozy”.386
Holly é uma garota de 18 anos que vive sozinha em Nova Iorque. As
situações pelas quais ela passa mostram o quanto precisa ter autonomia e coragem
para sobreviver. Leva homens bêbados para seu apartamento que se tornam
386
“A sensação de estar sendo observado. De alguém estar no meu quarto. Então: uma batida
abrupta na janela, um vislumbre cinza fantasmagórico: eu derramei o bourbon. Demorou um pouco
para que eu pudesse abrir a janela e perguntar à senhorita Golightly o que ela queria. ‘Eu tenho o
homem mais aterrorizante no andar de baixo’, disse ela, saindo da escada de incêndio para o quarto.
‘Quero dizer, ele é doce quando não está bêbado, mas deixe-o começar a enxugar o ‘vino’ e, oh,
Deus ‘quel’ animal! Se há uma coisa que eu odeio são os homens que mordem’. Ela soltou um
roupão de flanela cinza do ombro para mostrar a evidência do que acontece se um homem morde. O
roupão era tudo o que ela estava vestindo. ‘Desculpe se assustei você. Mas quando aquele animal
ficou inconveniente, eu saí pela janela. Acho que ele acha que estou no banheiro, não que eu dê a
mínima para o que ele pensa, o inferno com ele, ele vai se cansar, ele vai dormir, meu Deus ele
deveria, oito martinis antes do jantar e vinho suficiente para lavar um elefante. Ouça, você pode me
expulsar se quiser. Eu tenho uma galera que faria isso como você. Mas aquela escada de incêndio
estava um maldito gelo. E você parecia tão aconchegante’” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 17-
18).
149
agressivos às vezes, está sempre em público com vários homens ao mesmo tempo,
em restaurantes famosos e nas ruas. Sua vida é exposta.
O trecho citado anteriormente, na adaptação fílmica ganha outros sentidos. O
narrador-personagem, que não tem nome no romance, e no filme se chama Paul,
também é um escritor não publicado, mas não é gay. Ele também se prostitui, sendo
sustentado por sua amante, Mrs. Falenson, uma decoradora socialite casada. O
diálogo transcrito não acontece no clima de curiosidade mútua, evidenciado no
romance de Capote. No filme, a construção de Holly Golightly e Paul Varjak (“Fred”)
como um casal é o fio condutor da narrativa, que vai culminar em um final feliz
hollywoodiano. O roteiro do filme manteve o mesmo diálogo do livro, mas alterou
alguns detalhes cênicos, incluiu a amante e definiu a heterossexualidade do
narrador.
Holly pergunta a Paul, no filme, tocando nas notas sobre a mesa: “US$300!
She is very generous! Is it about the week, the hour or what?”387 Ele se ofende, ela
pede desculpas. Paul também se prostitui, como Holly. A cena é permeada de ironia,
pois ambos sabem das nuances da profissão. Ela vê sua máquina de escrever e
comenta que não há uma fita, dando a entender que ele não tem escrito ultimamente
como disse. Com uma música melancólica de fundo, a cena íntima se segue quando
ela fala sobre o irmão que está na guerra, o relógio bate 4 horas e 30 minutos, ela
sugere que tirem um cochilo e se deita ao seu lado na cama. Holly adormece, mas
acorda com pesadelos (ver a sequência de imagens da Figura 9).
387
“US$300! Ela é muito generosa! É por semana, hora ou o quê?” (BREAKFAST at Tiffany's.
Direção: Blake Edwards. Produção: Martin Jurow e Richard Shepherd. Intérpretes: Darryl Alan Reed,
Audrey Hepburn, Beverly Powers, Dorothy Whitney, Martin Balsam, George Peppard. Fotografia:
Franz Planer e Philip H. Lathrop. Roteiro: George Axelrod. Música: Henry Mancini. [S.l.]: Jurow-
Shepherd Productions, 1961. 1 DVD (114 min), son., color).
150
Figura 9 – Sequência de imagens das cenas em que Holly vai ao apartamento de
Paul
151
152
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
A cena mostra duas faces de Holly: uma pública, externa, que é segura,
engajada, irônica, e uma íntima, insegura, angustiada, fugidia. A busca de equilíbrio
entre essas duas polaridades é constante, variando entre cenas que mostram a
maturidade da personagem e outras que reforçam a sua fragilidade.
Um aspecto percorre as duas narrativas: os sonhos da personagem estão
subordinados ao enredamento social e o percurso causa sofrimento. No caso de
Holly, ela está em busca do American Dream, mas não é livre para alcançar sua
realização pessoal. Holly se “treinou” para conseguir sair com homens maduros e
poder se sustentar:
That’s not bad. I can’t get excited by a man until he’s forty-two. I know
this idiot girl who keeps telling me I ought to go to a head-shrinker;
she says I have a father complex. Which is so much merde. I simply
trained myself to like older men, and it was the smartest thing I ever
did. How old is W. Somerset Maugham?388
Truman Capote cita músicas em suas obras com muita frequência. Em
Breakfast at Tiffany’s, Holly Golightly canta e toca violão. O excerto no qual o
narrador-personagem conta que a ouve cantar evoca o passado desconhecido de
388
“Isso não é ruim. Eu não posso ficar excitada por um homem até ele ter 42 anos. Eu conheço uma
garota idiota que vive me dizendo que eu deveria falar com um psicólogo; ela diz que eu tenho um
complexo de Electra. Isso é uma merde. Eu simplesmente me treinei para gostar de homens mais
velhos, e foi a coisa mais inteligente que já fiz. Quantos anos tem W. Somerset Maugham?”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 19, grifos do autor).
153
Holly, por meio de suas escolhas e seu tom de voz, tudo é descrito de forma a
instalar essa atmosfera dupla, de uma garota de origem simples que veio do interior,
mas que conhece as músicas da moda, que estão “em alta” no momento,
associando ao fato de que ela vive a noite, é uma prostituta.
Capote descreve uma festa organizada por Holly, expondo sua vida noturna,
suas relações com diversos homens mais velhos que ela, militares. Não há mulheres,
aparece apenas uma modelo, que tem um papel na narrativa, Mag Wildwood.389
Todos os outros convidados são homens:
A multitude did. Within the next quarter-hour a stag party had taken
over the apartment, several of them in uniform. I counted two Naval
officers and an Air Force colonel; but they were outnumbered by
graying arrivals beyond draft status. Except for a lack of youth, the
guests had no common theme, they seemed strangers among
strangers; indeed, each face, on entering, had struggled to conceal
dismay at seeing others there. It was as if the hostess had distributed
her invitations while zigzagging through various bars; which was
probably the case. After the initial frowns, however, they mixed
without grumbling, especially O.J. Berman, who avidly exploited the
new company to avoid discussing my Hollywood future. I was left
abandoned by the bookshelves; of the books there, more than half
were about horses, the rest baseball. Pretending an interest in
Horseflesh and How to Tell It gave me sufficiently private opportunity
for sizing Holly’s friends.390
No filme, a cena foi elaborada para ser engraçada (o filme é classificado como
uma comédia romântica). Há várias mulheres e a polícia chega para terminar com a
confusão e o barulho. Há uma comparação entre o dia e a noite, pois durante a noite
Holly tem uma personalidade ligada à prostituição e durante o dia ela faz coisas
costumeiras, cotidianas, como pintar os cabelos e deixá-los secar ao sol enquanto
canta e toca seu violão:
389
A cena que dá ênfase à personagem Mag Wildwood na narrativa de Capote foi analisada na
página 98, do segundo capítulo.
390
“Dentro dos 15 minutos seguintes uma festa de despedida de solteiro tomou conta do
apartamento, vários deles de uniforme. Eu contei dois oficiais da Marinha e um coronel da Força
Aérea; mas os de uniforme estavam em desvantagem em relação ou número de chegada de
grisalhos, estes além do status de recrutamento. Exceto pela falta de juventude, os convidados não
tinham nada em comum, pareciam estranhos entre estranhos; na verdade, cada um, ao entrar, tentou
para ocultar o desalento de ver os outros ali. Era como se a anfitriã tivesse distribuído seus convites
enquanto ziguezagueava por vários bares; o que provavelmente foi o caso. Após as carrancas
iniciais, porém, eles se misturaram sem resmungar, especialmente O.J. Berman, que explorou
avidamente as novas companhias para evitar discutir sobre meu futuro em Hollywood. Fui
abandonado ao lado da estante de livros; dos livros de lá, mais da metade eram sobre cavalos, o
resto de beisebol. Fingindo interesse em Cavalos e como falar deles me deu oportunidade de
observar discretamente os amigos de Holly” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 34-35).
154
Also, she had a cat and she played the guitar. On days when the sun
was strong, she would wash her hair, and together with the cat, a red
tiger-striped tom, sit out on the fire escape thumbing a guitar while
her hair dried. Whenever I heard the music, I would go stand quietly
by my window. She played very well, and sometimes sang too. Sang
in the hoarse, breaking tones of a boy’s adolescent voice. She knew
all the show hits, Cole Porter and Kurt Weill; especially she liked the
songs from Oklahoma!, which were new that summer and
everywhere. But there were moments when she played songs that
made you wonder where she learned them, where indeed she came
from. Harsh-tender wandering tunes with words that smacked of
pineywoodso prairie. One went: Don’t wanna sleep, Don’t wanna die,
Just wanna go a-travelin’ through the pastures of the sky; and this
one seemed to gratify her the most, for often she continued it long
after her hair had dried, after the sun had gone and there were lighted
windows in the dusk.391
O figurino e a música são incumbidos de trazer, por meio da materialidade
dos sentidos, a menina simples do interior, que usa a calça cigarrete,392 a sapatilha e
o moletom, além do cabelo amarrado de forma despretensiosa (Figura 10). Holly
canta “músicas andarilhas, ásperas e sentimentais, com palavras que sugeriam
pinheiros ou pradarias”, mostrando a saudade de seu lugar de origem. Esse trecho
apresentado na narrativa de Capote servirá de inspiração para a criação da canção
tema do filme, trazendo algumas adaptações.393
O estilo íntimo e casual da cena mostra também a condição financeira de
Holly, os poucos recursos que possui para se vestir e que também estão
representados no mobiliário de seu apartamento, e faz oposição ao figurino da noite,
da mulher pública. Mostra, principalmente, que ela era muito jovem, característica
percebida pelo seu vestuário, que já trazia os traços de rebeldia da juventude dos
anos 1950.
391
“Além disso, ela tinha um gato e tocava violão. Nos dias em que o sol ficava forte, ela lavava os
cabelos e, junto com o gato, um macho vermelho rajado, sentava-se na saída de incêndio dedilhando
o violão enquanto o cabelo secava. Sempre que ouvia a música, ficava quieto na minha janela. Ela
tocava muito bem e às vezes cantava também. Cantou nos tons roucos, quebrados tons da voz
adolescente de um rapaz. Ela conhecia todos os sucessos dos musicais, Cole Porter e Kurt Weill; ela
gostava especialmente das músicas de Oklahoma!, que eram novas naquele verão e em todos os
lugares. Mas houve momentos em que ela tocou músicas que instigavam a perguntar onde ela as
aprendeu, de onde ela realmente veio. Músicas andarilhas, ásperas e sentimentais, com palavras que
sugeriam pinheiros ou pradarias. Uma delas: não quero dormir, não quero morrer, só quero ir viajar
pelas pastagens do céu; e esta parecia a que ela mais gostava, pois muitas vezes ela continuava por
muito tempo depois que o cabelo secava, depois que o sol se fora e havia janelas iluminadas no
crepúsculo” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 16-17, grifos do autor).
392
“Cigarrete: Calças justas e estreitas, a princípio populares entre os homens ingleses durante a
década de 50. Calças semelhantes foram usadas pelas mulheres na década de 60” (O’HARA.
Enciclopédia da moda, p. 81).
393
A análise da cena do filme está nas páginas 223 a 226 desta tese.
155
Figura 10 – Holly cuida dos cabelos enquanto canta “Moon river”
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
Como exemplo do figurino e do apartamento de uma socialite rica de Nova
Iorque, no filme é possível observar Mrs. Falenson, a amante de Paul, que é casada
com um senhor muito rico que vive em viagens. Os detalhes de seu vestuário casual
fazem contraste com o figurino de Holly. Mrs. Falenson veste um robe de seda
verde-esmeralda e sapatos de salto, além de acariciar um poodle, também símbolo
de status e riqueza (Figura 11).
156
Figura 11 – Mrs. Falenson cancela o encontro com Paul
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
Conforme comentado anteriormente, a relação entre o ser humano e as
coisas é o centro dos pilares da alegoria da “modernidade como fantasmagoria”, que
tem como base o fetiche. Esse aspecto pode ser exemplificado com um excerto de
Breakfast at Tiffany’s, no qual há uma referência ao vestido “Mainbocher”, utilizado
157
por Truman Capote para a caracterização de Holly Golightly como “a real phony”.394
Essa expressão caracteriza a personagem em sua ambiguidade: uma menina
prostituta, a inocência e a malícia, alguém que acredita que a falsidade em que vive
é real.
A expressão paradoxal “She believes all this crap she believes” incorpora a
ideia de fantasmagoria social ao mostrar que a personagem projeta suas fantasias e
mentiras acreditando nelas. Ela não se vê como prostituta, não se nomeia assim. É
como se fingisse ser prostituta, sendo. Esse paradoxo é a base da fantasmagoria
social criada na obra, que vai ser refletida no filme de forma um pouco diferente, pois
a censura e sua idealização de modelo americano de mulher não permitirão que seja
encenada essa prostituta “pura”, como descreveu Capote.
Vestidos do couturier americano Main Rousseau Bocher395 encontram-se hoje
no The Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque. Seus vestidos contribuíram
para a criação da “era das socialites”:
The term ‘socialite’ is a mainstay in popular culture and has its roots
in the eighteenth and nineteenth century, when it referred o a woman
– either a wife or mistress of nobility – who in their ceremonial title,
was required to spend much of their time socialising. Additionally
socializing was often necessary to their livelihood and the
maintenance of their cultural footing. More recently, in the twentieth-
century the notion of a socialite has become intrinsically linked with
New York’s high society. Increasing wealth and culture in the city
created the phenomenon of the ‘ladies who lunch’. According to John
Fairchild, publisher of Women’s Wear Daily, the term was solidified in
his magazine in the early 1960s (long before Stephen Sondheim’s
Broadway hit), and regularly used in the social pages of WWD along
side images of upper class women. The era, which lasted from the
mid-1950s until (arguably) the late-1980s, saw the elegant set of New
Yorkers – millionaire wives, former models, editors and designers –
frequenting Madison Avenue restaurants like The Colony, Le Pavillon,
La Côte Basque and La Caravelle. The women in these
establishments outnumbered the men six to one, making them prime
spots for the financial and social elite to mingle frothily in designer
394
Seu amigo O. J. a chama de “impostora de verdade”, evidenciando a característica ambígua da
personagem: ardilosa e ao mesmo tempo ingênua (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 30).
395
“Mainbocher: 1890-1976. Estilista. Nascido Main Rousseau Bocher, em Chicago, Estados Unidos.
Estudou na Universidade de Chicago, na Chicago Academy of Fine Arts e, em Nova York, na Art
Students League. […] Em 1930, Mainbocher tornou-se o primeiro americano a abrir com sucesso um
salão de costura em Paris. […] O vestido de noiva que criou para o casamento de Mrs. Wallis
Simpson com o duque de Windsor anunciou a voga do ‘azul Wallis’ [1937]. Os vestidos de
Mainbocher costumavam ser descritos como ‘de boa linhagem’, elegantes e refinados. Por diversas
vezes, renovou o vestido pretinho. Uma coleção memorável, em 1939, previu o New Look [de Dior] de
1947” (O’HARA. Enciclopédia da moda, p. 180).
158
clothes and jewellery.396
O vestido por si, na qualidade de mercadoria, era um símbolo de fetiche. Main
Rousseau Bocher foi o couturier das socialites na década de 1950 e Truman Capote
fazia parte dessa sociedade:
The mid to late-1950s was an opulent time, adjacent industries and
cultural characters rubbed shoulders over lunch, facilitated by
characters like the Duchess of Windsor, Truman Capote, Slim Keith,
Babe Paley, Jackie O, Nan Kempner, Adele Astaire, Gloria
Vanderbilt, Lila Wallace and Bunny Mellon, among many others.
Fashion designers were also important in marking this social elite.
One of the most prominent was the haute couturier Main Rousseau
Bocher, with his label Mainbocher, who dressed many of these ladies
who lunched, resulting in the designer’s business success
corresponding closely with that of the socialite era.397
O fato de Capote registrar em Breakfast at Tiffany’s que Holly possuía um
vestido da Maison Mainbocher permite inferir características atribuídas à
personagem por meio dessa “transmissão” de informações: Holly desejava ser
socialite – sua fantasmagoria – e também desejava parecer rica, por isso usava um
dos códigos de vestuário da sociedade, mas era uma prostituta, pois não possuía
um emprego e conseguia gastar com um vestido da Haute-couture.398
396
“O termo ‘socialite’ é um dos pilares da cultura popular e tem suas raízes nos séculos XVIII e XIX,
quando se referia a uma mulher – ou esposa ou amante da nobreza – que, em seu título cerimonial,
era obrigada a gastar grande parte de sua vida socializando. Além disso, a socialização muitas vezes
era necessária para seu sustento e para a manutenção de sua base cultural. Mais recentemente, no
século XX, a noção de socialite tornou-se intrinsecamente ligada à alta sociedade de Nova Iorque. O
aumento da riqueza e da cultura na cidade criou o fenômeno das ‘senhoras que almoçam’. De acordo
com John Fairchild, editor do Women’s Wear Daily, o termo foi solidificado em sua revista no início
dos anos 1960 (muito antes do sucesso de Stephen Sondheim na Broadway) e usado regularmente
nas páginas sociais do WWD, junto com imagens de mulheres de classe alta. A era, que durou de
meados dos anos 1950 até (indiscutivelmente) o final dos anos 1980, viu o elegante conjunto de
nova-iorquinos – esposas milionárias, ex-modelos, editores e designers – frequentando restaurantes
da Madison Avenue como The Colony, Le Pavillon, La Côte Basque e La Caravelle. As mulheres
nesses estabelecimentos superavam os homens em seis para um, tornando-os pontos privilegiados
para a elite financeira e social misturar-se futilmente em roupas de grife e joias” (GARDNER, Laura.
Mainbocher & the decline of the socialite: Reflecting on the Bygone Era of High Society. Vestoj: the
platform for critical thin king on fashion).
397
“O meio até o final da década de 1950 foi um período opulento, indústrias adjacentes e
personagens culturais se irritaram durante o almoço, facilitado por personagens como a Duquesa de
Windsor, Truman Capote, Slim Keith, Babe Paley, Jackie O, Nan Kempner, Adele Astaire, Gloria
Vanderbilt, Lila Wallace e Bunny Mellon, dentre muitas outras. Os designers de moda também foram
importantes para marcar essa elite social. Um dos mais proeminentes foi o estilista de alta-costura
Main Rousseau Bocher, com sua marca Mainbocher, que vestiu muitas dessas damas que
almoçaram, resultando no sucesso comercial do designer correspondendo intimamente ao da era da
socialite” (GARDNER. Mainbocher & the decline of the socialite).
398
“Haute-Couture: A palavra francesa couture significa costura ou trabalho de agulha. Haute-couture
é estilismo e execução de alta qualidade. O estilista ou couturier (couturière) cria modelos com base
numa toile feita de linho fino ou musselina, a qual leva o nome da cliente. As peças decalcadas da
toile são então executadas. Em 1868, fundou-se em Paris o Syndicat de La CoutureParisienne
159
A própria citação de Capote “humaniza” o vestido e, ao mesmo tempo,
“mercantiliza” a pessoa que o usa: "So I suppose I’ll sleep until Saturday, really get a
goods chluffen. Saturday morning I’ll skip out to the bank. Then I’ll stop by the
apartment and pick up a nightgown or two and my Mainbocher."399 Após sofrer um
aborto e quase morrer, as providências a tomar antes de pegar um voo em fuga para
o Brasil são: pegar uma ou duas camisolas e o seu “Mainbocher”, que subentende-
se como sendo um vestido de alta-costura, mas com tratamento de pessoa
importante e essencial. O próprio vestido de alta costura personifica o grande criador.
O vestido não é um vestido qualquer: é um Mainbocher.
Quanto à escolha de Capote por incluir a Maison Mainbocher em sua
caracterização da personagem, há um fato marcante em relação à carreira do
costureiro que pode ter sido importante: a criação do vestido de noiva do casamento
da socialite americana, Mrs. Wallis Simpson, com o duque de Windsor. Na época, foi
especialmente escandaloso o fato de que Wallis foi amante de Edward, o Príncipe
de Gales, ainda sendo casada. Após seu divórcio, Edward abdicou do trono em
favor de seu irmão George VI para poder se casar com ela:
The designer, originally from New York, opened his couture house in
Paris in 1929 under the moniker Mainbocher, after leaving his job as
the editor-in-chief of Vogue Paris. In 1936 Wallis Simpson, a key figure
of her generation, famously wore Mainbocher to her wedding to King
Edward VIII. The dress, and the wedding – including, as it did, the
King’s abdication and the elevation of a commoner to nobility –
became a point of public fascination and launched Mainbocher’s
American career. Following this success, the designer moved back to
New York in 1940 and established his fashion house there, making
Mainbocher Christian Dior’s American couture counterpart in catering
for the upper class set.400
Um “Mainbocher” é a referência estética geratriz na obra literária de Capote
(atualmente chambre Syndicale de La Haute-couture), para evitar que modelos fossem plagiados. A
Haute-couture conta com um grupo numeroso de especialistas, que fazem botões, luvas, bijuterias,
chapéus e adornos com altíssimo nível de qualidade. A Haute-couture, ou alta-costura, é trabalhosa e
cara. […]” (O’HARA. Enciclopédia da moda, p. 139).
399
“Então acho que vou dormir até sábado, realmente ter um bom descanso. Sábado de manhã eu
vou dar um pulo no banco. Depois vou passar pelo apartamento e pegar uma ou duas camisolas e
meu Mainbocher” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 101).
400
“O estilista, originalmente de Nova Iorque, abriu sua casa de alta-costura em Paris em 1929, sob o
nome de Mainbocher, depois de deixar o cargo de redator-chefe da Vogue Paris. Em 1936, Wallis
Simpson, uma figura chave de sua geração, famosamente usou Mainbocher para seu casamento
com o rei Edward VIII. O vestido e o casamento – incluindo, como aconteceu, a abdicação do rei e a
elevação de um plebeu à nobreza – tornaram-se um ponto de fascínio público e lançaram a carreira
americana de Mainbocher. Após esse sucesso, o estilista voltou para Nova Iorqueem 1940 e
estabeleceu sua casa de moda lá, fazendo com que a American Couture de Mainbocher, da Christian
Dior, atendesse ao grupo de alta classe” (GARDNER. Mainbocher & the decline of the socialite).
160
para traçar os contornos da personagem Holly Golightly. Por meio dessa referência
explícita, o escritor deseja dizer mais do que apenas indicar peças de roupa. Deseja
qualificar o estilo da personagem, atribuindo-lhe características essenciais ao seu
tipo. Obviamente, o leitor contemporâneo à obra fez essas inferências, ao passo que
o leitor atual, que porventura desconheça a origem da referência, precisará
pesquisar para compreendê-la ou, em muitos casos, não perceberá a
intertextualidade presente na citação direta a este grande costureiro da época.
Abaixo são apresentados os trechos descritivos da personagem Holly
Golightly com o objetivo de mensurar a interferência de Truman Capote por meio
desse recurso criativo literário, isto é, atribuir características externas à personagem
de forma a dar-lhe contornos internos, criados na mente do leitor com auxílio de sua
imaginação.401
Essas características criadas por Capote foram mantidas na configuração
estética da personagem na obra cinematográfica. Algumas vezes, cenas literárias
foram recolocadas em cenas fílmicas de formas diferentes, mediante a roteirização
da obra, mas os diálogos e descrições mantiveram laços com a obra original. O
Quadro 2 registra os 17 excertos nos quais Truman Capote descreve em sua
narrativa o vestuário da personagem Holly Golightly e, para contrapor às escolhas
estéticas do filme, na coluna da direita, estão imagens dos figurinos usados:
401
Para um aprofundamento sobre a relação moda e literatura destaco as seguintes obras de minha
autoria: o livro Moda e ironia em Dom Casmurro (Editora Alameda, 2010); o artigo “Moda e literatura:
convergências possíveis” (Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2019); o artigo
“Modernidade e moda em Esaú e Jacó, de Machado de Assis” (Disponível em:
. Acesso em: 15 mar. 2019); o artigo
“Moda e espionagem em El tiempo entre costuras, de María Dueñas” (Disponível em:
. Acesso em: 15 mar. 2019); o capítulo de
livro “O que veste Capitu?”, publicado no livro A história na moda, a moda na história. Organização
Camila Borges, Joana Monteleone, Paulo Debon. São Paulo: Alameda, 2019.
161
Quadro 2 – Descritivos da personagem Holly Golightly no livro Breakfast at Tiffany’s, de Truman Capote, e suas respectivas
imagens no filme
Excerto, descritivo de Holly Golightly
destacados na ordem dos
acontecimentos no livro
Resumo do excerto do livro
Imagem do filme relacionada ao descritivo do
livro
1
“‘I see pieces of her all the time, a flat
little bottom, any skinny girl that walks
fast and straight’” (p. 9).
Comentário de Joe Bell, amigo de Holly,
dizendo que a procurou pelas ruas
durante os anos em que ela esteve
ausente. Expõe um biótipo definidor da
personagem: magra, sem curvas, corpo
de garota.
Não há referência a este excerto no filme. A ideia
de que Holly desapareceu não está no roteiro.
2
“She was still on the stairs, now she
reached the landing, and the ragbag
colors of her boy’s hair, tawny streaks,
strands of albino-blond and yellow,
caught the hall light. It was a warm
evening, nearly summer, and she wore a
slim cool black dress, black sandals, a
pearl choker. For all her chic thinness,
she had an almost breakfast-cereal air of
health, a soap and lemon cleanness, a
rough pink darkening in the cheeks. Her
mouth was large, her nose upturned. A
pair of dark glasses blotted out her eyes.
It was a face beyond childhood, yet this
side of belonging to a woman. I thought
her anywhere between sixteen and
thirty; as it turned out, she was shy two
months of her nineteenth birthday” (p.
12-13).
Holly chegando a seu apartamento,
sendo perseguida por Mr. Arbuck.
Primeira cena na qual a personagem
aparece na narrativa.
162
3
“She was never without dark glasses,
she was always well groomed, there was
a consequential good taste in the
plainness of her clothes, the blues and
grays and lack of luster that made her,
herself, shine so. One might have
thought her a photographer’s model,
perhaps a young actress, except that it
was obvious, judging from her hours,
she hadn’t time to be either” (p. 14).
Parte inicial do livro na qual o narrador-
personagem ainda não é amigo de
Holly. Ele é ainda um observador.
Não há referência explícita a este excerto no filme.
A descrição das características físicas certamente
foi usada para delinear a personagem para o filme.
4
“On the way home I noticed a cab-driver
crowd gathered in front of P. J. Clarke’s
saloon, apparently attracted there by a
happy group of whiskey-eyed Australian
army officers baritoning, ‘Waltzing
Matilda.’ As they sang they took turns
spin-dancing a girl over the cobbles
under the El; and the girl, Miss Golightly,
to be sure, floated round in their arms
light as a scarf” (p. 15).
Holly é a metáfora do lenço ou echarpe
que flutua nas mãos dos homens.
Não há referência a este excerto no filme.
163
5
“She loosened a gray flannel robe off her
shoulder to show me evidence of what
happens if a man bites” (p. 17).
Holly veste um roupão de flanela cinza,
sem nada por baixo, quando foge do
bêbado que estava em seu quarto para
o apartamento do narrador-personagem.
(No filme, o roupão ficou um pouco mais
sofisticado: branco e felpudo, usando
uma combinação por baixo).
6
“[…] ‘the kid’s fifteen. But stylish: she’s
okay, she comes across. Even when
she’s wearing glasses this thick; even
when she opens her mouth and you
don’t know if she’s a hillbilly or an Okie
or what. I still don’t. My guess, nobody’ll
ever know where she came from. She’s
such a goddamn liar, maybe she don’t
know herself any more. But it took us a
year to smooth out that accent. How we
did it finally, we gave her French
lessons: after she could imitate French,
it wasn’t so long she could imitate
English. We modeled her along the
Margaret Sullavan type, but she could
pitch some curves of her own’” (p. 31).
O.J., seu antigo agente em Hollywood,
conta como a viu pela primeira vez.
Margaret Sullavan foi uma atriz norte
americana famosa. Esse excerto mostra
como as garotas eram moldadas ao
sistema estético hollywoodiano de
criação de estrelas. Holly era uma
caipira que tinha talento. Seu nome era
Lulamae Barnes. No filme, Doc mostra
uma foto dela ao seu lado e do irmão,
Fred. Abaixo, as filhas do fazendeiro
Doc.
164
7
“‘What scandals are you spreading,
O.J.?’ Holly splashed into the room, a
towel more or less wrapped round her
and her wet feet dripping footmarks on
the floor” (p. 33-34).
Durante a festa que promove em seu
apartamento, Holly aparece para os
seus convidados inicialmente enrolada
na toalha, saindo do banho. Ela também
está de óculos escuros nesse momento.
(No filme, Holly entra na sala com um
lençol enrolado ao corpo).
8
“She was on her knees poking under the
bed. After she’d found what she was
looking for, a pair of lizard shoes, she
had to search for a blouse, a belt, and it
was a subject to ponder, how, from such
wreckage, she evolved the eventual
effect: pampered, calmly immaculate, as
though she’d been attended by
Cleopatra’s maid” (p. 53).
Com este excerto, Capote demonstra a
habilidade de Holly em ser espontânea,
naturalmente chique e moderna. Esse é
o estereótipo de beleza feminina jovem
que se tornará marcante a partir de
então.
165
9
“It was after seven, she was freshening
her lipstick and perking up her
appearance from what she deemed
correct for a library to what, by adding a
bit of scarf, some earrings, she
considered suitable for the Colony” (p.
58).
Holly está na biblioteca e se arruma
para ir ao restaurante Colony, um ponto
de encontro famoso das socialites.
10
“She answered the door at once; in fact,
she was on her way out — white satin
dancing pumps and quantities of
perfume announced gala intentions.
‘Well, idiot,’ she said, and playfully
slapped me with her purse. ‘I’m in too
much of a hurry to make up now. We’ll
smoke the pipe tomorrow, okay?’” (p.
71).
O narrador-personagem vai ao encontro
de Holly para lhe contar sobre o
aparecimento de seu ex-marido, Doc.
Ela está se arrumando para a noite.
166
11
“June, July, all through the warm months
she hibernated like a winter animal who
did not know spring had come and gone.
Her hair darkened, she put on weight.
She became rather careless about her
clothes: used to rush round to the
delicatessen wearing a rain-slicker and
nothing underneath. José moved into the
apartment, his name replacing Mag
Wildwood’s on the mailbox” (p. 79-80).
O irmão de Holly, Fred, foi morto na
guerra. Ela recebeu a notícia e teve uma
crise, quebrando todo seu apartamento.
Após esse episódio, ela muda
completamente. Passou a descuidar de
sua aparência e cuidar da casa. José, o
diplomata brasileiro, foi morar com ela e
faziam planos de casamento e mudança
para o Brasil.
12
“‘Come on,’ she said, when she found
me awaiting the postman. ‘Let’s walk a
couple of horses around the park.’ She
was wearing a windbreaker and a pair of
blue jeans and tennis shoes; she
slapped her stomach, drawing attention
to its flatness: ‘Don’t think I’m out to lose
the heir. But there’s a horse, my darling
old Mabel Minerva – I can’t go without
saying good-bye to Mabel Minerva’” (p.
85).
Holly está com passagens compradas
para o Brasil, com planos de efetivar o
casamento com José. Ela sai para
cavalgar, mas os cavalos disparam.
Não há referência a este excerto no filme.
167
13
“Holly, entering police headquarters,
wedged between two muscular
detectives, one male, one female. In this
squalid context even her clothes (she
was still wearing her riding costume,
windbreaker and blue jeans) suggested
a gang-moll hooligan: an impression
dark glasses, disarrayed coiffure and a
Picayune cigarette dangling from sullen
lips did not diminish” (p. 89-90).
Holly veste o mesmo figurino do excerto
anterior, mudando o contexto, o que é
ressaltado pelo narrador-personagem
por alterar completamente sua imagem
nas fotos sensacionalistas dos tabloides.
No filme, a cena da prisão é
simplificada, sem agressões.
14
“‘Well, darling,’ she’d greeted me, as I
tiptoed toward her carrying a carton of
Picayune cigarettes and a wheel of new-
autumn violets, ‘I lost the heir.’ She
looked not quite twelve years: her pale
vanilla hair brushed back, her eyes, for
once minus their dark glasses, clear as
rain water– one couldn’t believe how ill
she’d been” (p. 97).
Holly está no hospital após ser presa e
sofrer o aborto. Ela recebe a visita do
narrador-personagem.
Não há referência a este excerto no filme. Holly não
esteve grávida e nem sofreu o aborto.
168
15
“Guided by a compact mirror, she
powdered, painted every vestige of
twelve-year-old out of her face. She
shaped her lips with one tube, colored
her cheeks from another. She penciled
the rims of her eyes, blued the lids,
sprinkled her neck with 4711; attached
pearls to her ears and donned her dark
glasses; thus armored, and after a
displeased appraisal of her manicure’s
shabby condition, she ripped open the
letter and let her eyes race through it
while her stony small smile grew smaller
and harder” (p. 98-99).
Holly se arruma para ler a carta que
José deixou para ela, antes de
abandoná-la. Ele desistiu do casamento
por causa da sua prisão. Não poderia se
casar com uma mulher que não fosse
honesta por ter cargo político.
No filme, a cena é modificada. Holly sai da prisão e
pretende ir ao aeroporto usando a passagem
deixada por José. Ela troca de roupa no carro,
vestindo um vestido preto. O diálogo é o mesmo do
hospital.
16
“Then I’ll stop by the apartment and pick
up a nightgown or two and my
Mainbocher.” (p. 101).
Holly planeja o que fará quando sair do
hospital. Pegar o vestido Mainbocher
está na lista de prioridades, antes de
usar a passagem deixada por José para
fugir de Nova Iorque para não
testemunhar contra Sally Tomato.
Não há referência a este excerto no filme.
17
“The Carey chauffeur was a worldly
specimen who accepted our slapdash
luggage most civilly and remained rock-
faced when, as the limousine swished
uptown through a lessening rain, Holly
stripped off her clothes, the riding
costume she’d never had a chance to
substitute, and struggled into a slim
black dress. We didn’t talk: talk could
Holly está organizando sua fuga logo
após sair do hospital, ainda com a roupa
de montaria. Ela espera no bar de Joe
Bell, enquanto o narrador-personagem
vai buscar suas coisas em seu
apartamento que está sendo vigiado
pela polícia. Dentro do carro que vai
levá-la ao aeroporto, ela troca de roupa
e veste um vestido preto sequinho.
Esta cena é diferente no filme. Holly sai da
delegacia de polícia e pretende ir ao aeroporto.
Paul está com ela. No caminho acontece a cena
final do filme, com o “final feliz” que não existe no
livro.
169
have only led to argument” (p. 106).
Fonte: Elaborado pela autora. (O quadro, traduzido para a língua portuguesa, encontra-se disponível no Apêndice 1 desta tese)
170
Uma análise do quadro apresentado acima sugere que, por meio da descrição
da personagem, tanto a obra escrita quanto a fílmica têm suporte nesse recurso
estratégico narrativo para caracterização da personagem como: menina e mulher;
moça do interior e mulher moderna da grande cidade; jovem angustiada e também a
prostituta articulada; figura diurna e figura noturna. São evidenciados os contrastes
que permitem ao leitor perceber que Holly Golightly é a garota do interior que se
aventurou na cidade grande, trazendo consigo as angústias existenciais, mas que
está disfarçada na figura fantasmagórica da real phony, a prostituta que acredita não
ser uma prostituta. São projeções fantasmagóricas de uma geração de mulheres
que têm na personagem a representação de sua condição real ou na forma do
desejo de ser.
3.1.3 A mulher, a atriz e a personagem: figurações nos vestuários barthesianos
imagem, escrito e real
Em Breakfast at Tiffany’s, o funcionamento do Star system hollywoodiano é
exposto na obra escrita, na obra fílmica e na vida real. O Star system402 é um
sistema de criação de estrelas que possui mecanismos padronizados usados pela
indústria cinematográfica para construir e promover as imagens de seus principais
artistas. As estrelas são apresentadas ao público espectador como pessoas distintas,
e o sistema exige que os espectadores possam diferenciar um artista de outro. Todo
um aparato midiático foi criado para divulgar e estabelecer suas identidades pública
e privada, expondo o perfil das estrelas dentro e fora da tela. Portanto, as estrelas
não são criações uniformes, mas sim moldadas de acordo com determinados tipos
que também valorizam suas características pessoais.
No caso das obras analisadas, a ficção mostra a realidade, como é revelado
na fala de O.J., amigo de Holly Golightly, seu descobridor, como já indicado
anteriormente:
Working at full speed, the Hollywood studios cast their stars from an
amalgamated mold of cultural, political, and financial factors, which,
when mixed in the right proportions, could hit the zeitgeist’s bull’s-eye
with profitable regularity. […] Movie stars were built, not born, and
their parents were not their mothers and fathers, but the legions of
writers, directors, costumers, and most of all, studio heads, who saw
to it that their personae – their screen personalities – fit the particular
402
MCDONALD, Paul. The Star System: Hollywood's Production of Popular Identities (Short Cuts).
Columbia University Press. E-book.
171
needs of their place and time. Thatwas a goodwaytosell tickets.403
Audrey Hepburn e outras atrizes também foram forjadas e moldadas pelo Star
system. O objetivo dos grandes estúdios era repetir fórmulas que davam certo, que
atraiam o público aos cinemas. Atores eram produtos que requeriam publicidade
assertiva e massiva. Eram tipos figurativos fantasmagóricos representativos do
espírito da época. Tudo era construído para ser assim, para criar uma atmosfera
fugidia e atrativa que alimentava os sonhos dos espectadores. O Star system refletia
e espelhava as expectativas fantasmagóricas do público da época. Hollywood
oferecia o que os espectadores procuravam, sem questionamentos críticos da
sociedade americana.
O ator produz uma ação performática que não ocorre diante de um “público
aleatório”, como no caso do teatro, mas diante de um “comitê de especialistas, os
quais, na qualidade de diretor de produção, diretor, operador de câmera, engenheiro
acústico, iluminador etc., podem tomar a todo tempo a atitude de interferir em sua
performance artística”.404 Essa interferência se dará de forma mais direta por meio
do diretor de cena e de forma indireta nas instâncias dos elementos fílmicos não
específicos405 da cena, suas escolhas, e dos profissionais responsáveis por estas.
O ator se esforça para se preparar antes de estar à frente das câmeras. Ele
se prepara para a gravação da cena, que poderá ser repetida incansavelmente até o
momento em que o diretor finaliza as tomadas, considerando então a cena pronta
para a montagem. Nessa preparação, vários profissionais acabam sendo acionados
para ajudar os atores na aquisição de habilidades que não possuem.
No filme Breakfast at Tiffany’s, Audrey Hepburn precisou aprender a tocar
violão, mais especificamente a música “Moon River”. Para isso teve aulas
especializadas, inclusive no set, usando um dos figurinos do filme, tornando claro
403
“Trabalhando a toda pressa, os estúdios de Hollywood moldavam suas estrelas na forma
amalgamada de fatores culturais, políticos e financeiros, os quais, quando misturados nas devidas
proporções, atingiam bem na mosca o espírito da época, com lucrativa regularidade. […] Estrelas de
cinema são construídas, não nascem prontas, e seus pais não são suas mães e seus pais, mas a
legião de autores, diretores, figurinistas e, acima de tudo, os chefes de estúdio que cuidaram para
que sua persona – sua personalidade fílmica – atendesse às suas necessidades particulares de
tempo e lugar. Esse era um bom jeito de vender ingressos” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 19).
404
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução de Gabriel
Valladão Silva. Organização, ensaio biobibliográfico, prefácio, revisão técnica e seleção dos
fragmentos de Márcio Seligmann-Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 68.
405
Marcel Martin aponta como elementos fílmicos não específicos aqueles que são utilizados em
outras artes, como o teatro, a pintura. São eles: as iluminações, os figurinos, os cenários, a cor, a tela
larga (amplitude de visão, largura e profundidade), o desempenho dos atores (MARTIN, A linguagem
cinematográfica).
172
que estuda entre as gravações das cenas (Figura12).
Figura 12 – Hepburn tendo lições de violão no set de gravação
Fonte: Lady Eve’s Reel Life. Disponível em: . Acesso em: 15 mar.
2019.
Até mesmo na divulgação publicitária do backstage durante as gravações há
uma demonstração de natureza manipuladora do Star system, que divulga os
momentos íntimos feitos no estúdio. A atriz atua para o público mesmo quando não
está atuando em cena no filme. O público também deseja saber sobre sua carreira,
suas habilidades e talentos, seu esforço e aprendizado na preparação da cena e até
mesmo seus conflitos pessoais.
Walter Benjamin nomeia a atuação do ator numa cena como uma espécie de
“procedimento de teste”, fazendo uma comparação com o esportista, alguém que
também atua numa performance esportiva com um comitê especializado. No caso
do filme, o comitê especializado é a equipe que trabalha nas filmagens. A
interferência desse comitê especializado é como “uma marca distintiva de grande
relevância social”. Benjamin faz uma comparação das ações do esportista e do ator
como caráter de performance, sendo a performance uma imitação – ou teste geral –
173
de ações reais ou idealizadas como reais:
Um acontecimento apresentado em um estúdio cinematográfico
diferencia-se, portanto, do acontecimento real correspondente do
mesmo modo que o arremesso de um disco em uma competição
num estádio se diferencia do arremesso do mesmo disco no mesmo
local, sobre a mesma pista, se ele ocorresse para matar um homem.
O primeiro seria um procedimento de teste, o segundo, não. […]
consiste na superação de certa barreira que encerra o valor social
dos procedimentos de teste em limites estritos.406
Esse “procedimento de teste” do ator é único e, no caso do filme e da
competição, vale a melhor atuação, do ator e do esportista. Esta escolha da melhor
cena será pontual para a construção do filme. Fica destacado nesse “procedimento
de teste” do ator o caráter fabuloso do filme, a noção de sua construção fictícia,
mesmo se a cena representada tiver acontecido, como, por exemplo, em filmes
baseados em acontecimentos reais.
O esportista tem seu “procedimento de teste” relacionado à primeira técnica
quando Benjamin diz que “ele se mede por tarefas que lhe são dadas pela natureza,
e não por um aparato”. Há testes mecanizados que ocorrem nas agências de testes
de proficiência, mas estes se diferem das provas esportivas na medida em que “não
são passíveis de exposição num grau desejável”.407
A característica de “exponibilidade” está dentro do processo criativo do filme,
na ação do ator em performance. Essa mesma característica, que também permeia
a obra de arte moderna como um todo, faz diferença nos mecanismos de criação do
filme:
O filme torna o procedimento de teste passível de exposição, na
medida em que torna a própria exponibilidade desse procedimento
em um teste. Isso porque o ator de cinema não atua diante de um
público, mas diante de uma aparelhagem. O produtor coloca-se
exatamente na posição do condutor do teste de proficiência. Atuar
sob a luz do holofote atendendo ao mesmo tempo às condições
impostas pelo microfone é uma performance de teste de primeira
linha. Realizá-la significa conservar a sua humanidade diante da
aparelhagem.408
O autor reflete sobre a manutenção da humanidade frente à aparelhagem
durante sua performance, indicando que há uma relação cotidiana da população
406
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 69.
407
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 69.
408
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 70.
174
urbana com seus aparatos, algo que a força a renunciar à sua humanidade, como
nas fábricas, nos escritórios. A sala de cinema é o refúgio que, ao final do dia,
as mesmas massas preenchem os cinemas para vivenciar como o
ator de cinema tem a sua revanche por eles, não apenas ao afirmar a
sua humanidade (ou o que aparece a eles como tal) diante do
aparato, mas colocando o aparato mesmo a serviço de seu próprio
triunfo.
É a prevalência desse “um outro diante do público”,409 alcançada pelo ator de
cinema, que não representa a si mesmo, que reflete a transformação do ator por
meio da performance de teste.
Benjamin cita Pirandello por considerá-lo um dos primeiros a notar essa
transformação, ressaltando que o ator atua para dois aparatos, no caso do filme
falado:
“O ator de cinema”, escreve Pirandello, “sente-se como no exílio.
Exilado não somente do palco, mas de sua própria pessoa. Com um
mal-estar obscuro ele sente o vazio inexplicável que surge da
transformação de seu corpo em uma aparição fugidia; ele se
volatiliza a si próprio, e a sua realidade, sua vida, sua voz e os sons
que ele provoca ao se mover lhe são roubados, para transformá-lo
em uma imagem muda que oscila por um momento sobre a tela e em
seguida desaparece no silêncio […] A pequena aparelhagem atuará
com sua sombra diante do público; e ele mesmo precisa contentar-se
em atuar diante dela”.410
Essa descrição do ator por Pirandello evidencia a característica
fantasmagórica da própria atuação do ator, do ato de entrega. Essa “imagem muda
que oscila por um momento sobre a tela e em seguida desaparece no silêncio” é a
própria figura fantasmagórica do ator. Essa oscilação dá o tom de aparição
fantasmagórica.
O ator também atua frente ao público que observa a cena sendo filmada.
Muitas pessoas, motivadas por curiosidade, aglomeram-se para observar as
filmagens, postando-se por horas no entorno do set de filmagem externa,
observando o movimento, os atores atuando ou apenas esperando, e geralmente,
durante as filmagens, são mais horas de espera do que de atuação propriamente. O
público cria uma imagem para o ator, que durante esses momentos está como ele
409
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 70.
410
Luigi Pirandello: On tourne, cit. Léon Pierre-Quint: “Signification Du cinéma”, in: L’Art
cinématographique II, 1. c., p. 14-15 apud BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, p. 70-71.
175
mesmo, sendo visto como celebridade, estrela, e ainda não como a personagem que
será quando atuando na tela. Mesmo na tela, quando o filme já estiver lançado e
sendo exibido, há uma mesclagem no imaginário do público em relação ao ator, na
qualidade de figura pública, e a personagem ficcional que ele representa (Figuras 13
e 14).
Figura 13 – Fotos de backstage. Os atores de Breakfast at Tiffany’s aguardam suas
cenas
Fonte: A. G. Nauta Couture. Disponível em:
. Acesso em: 15 mar. 2019.
Os atores quase relaxam nesses momentos, mas sabem que estão sendo
observados, fotografados. Em alguns momentos podem ser flagrados mais
descontraídos do que deveriam estar, menos formais do que deveriam se mostrar.
Diante da presença da câmera ou do público observador, os atores sustentam uma
postura, como se estivessem atuando também. As suas ações são controladas,
mesmo que inconscientemente.
176
Figura 14 – Blake Edwards, Audrey Hepburn e George Peppard durante a produção de
Breakfast at Tiffany's, 1961
Fonte: Paramount Pictures Photographs. Disponível em:
. Acesso em: 15 mar. 2019.
Na performance do ator há algo que evoca uma ação de culto, e que o público
sente. Para o público, está lá uma celebridade, podendo ser uma estrela ou alguém
ainda começando, mas alguém que tem uma vida real e que encena uma
personagem, um ser imaginário, provocando na figura do ator toda essa
transformação trazida à luz por Pirandello. O cinema permite e expande a
possibilidade da mesclagem dessas duas figuras, a real e a ficcional, causando
várias sensações ao público. No caso de Audrey Hepburn, a sua imagem como
Holly Golightly tornou-se tão impactante para a geração que até os dias de hoje ela
é vista como um “ícone de estilo”, uma “lenda do cinema”.
177
Diante do maquinário usado na produção cinematográfica e do processo de
montagem, a performance do ator do filme será restrita a uma performance sem uma
unidade, sendo montada a partir de performances individuais, diferentemente do ator
de teatro, que “age sobre o palco” e “transpõe-se para um papel”, o que
frequentemente é negado ao ator do filme. São as necessidades elementares do
maquinário que subjugam o próprio fazer do cinema, como as “preocupações
casuais com a locação do estúdio, disponibilidade dos colegas […] a decomposição
da atuação do ator em uma série de episódios montáveis”.411
O ator de teatro tem maior liberdade para construir sua personagem, pois ele
a representa para o público de forma linear, no tempo exato da encenação da peça,
que pode, por exemplo, ter uma duração média de duas horas sem interrupções que
o levem a se desvencilhar temporariamente do papel encenado, a não ser entre uma
entrada e outra no decorrer da peça. O ator de cinema faz essa representação de
forma desconexa, subjugado às necessidades de execução de um roteiro; são
fragmentos que depois serão reunidos numa ilha de edição.
Podem acontecer interrupções drásticas temporais e espaciais que causem
essa fragmentação, como uma cena a ser feita em outro país ou um acidente que
faz com que o ator interrompa as gravações e só volte depois de recuperado ou em
recuperação. As filmagens são feitas de interrupções diárias, pelo menos, o que já
causa a necessidade de artifícios para recompor a cena anterior.
Não por acaso, no cinema há uma função que não está em outra área: a do
continuísta. Esse profissional deve ter o controle de tudo que foi feito nas filmagens
anteriores para poder dar continuidade àquelas subsequentes. Mesmo com todo
cuidado de uma equipe de filmagem podem acontecer os “erros de gravação”,412 nos
dias atuais bastante divulgados pelas facilidades da internet, que evidenciam a
dificuldade de se estabelecer a continuidade verossímil de uma narrativa.
O ator de cinema se molda e é moldado a todo esse aparato, às
necessidades da equipe interna do filme e, também, a fatores culturais, políticos e
financeiros que refletem o espírito da época.
And so it has always been. Since the era of Hollywood’s first stars,
411
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 72.
412
Várias obras cinematográficas acabam trazendo esses erros de continuidade, provando que a
montagem é realmente um desafio não somente em termos criativos, mas também em termos
técnicos.
178
American moviegoers have been devouring a steady dosage of self-
image. Whether it’s man or woman, boy or girl, the screen holds up
mirrors to its audience, reflecting the shoulds and should-nots of
family, love, war, and gender – sometimes knowingly, sometimes not,
but always with an eye on sex. And in the fifties, if you were a
woman, too much of it was wrong, and too little of it was honorable.
You were either a slut or a saint.413
O público espectador americano esperava sua “dose de autoimagem” por
meio das estrelas dos filmes e Hollywood garante que isso aconteça por meio do
Star system, uma fórmula fantasmagórica de projeção na qual o público se vê
refletido na imagem das estrelas, ou vê o que a sociedade deseja que seja visto, ou
ainda, vê o que os produtores e diretores camuflam por entre as imagens, sua
imaginação e seu inconsciente trabalham a parte, recriando sentidos.
Esses aspectos estão presentes na obra Breakfast at Tiffany’s. A personagem
representada por Audrey Hepburn trazia questionamentos sobre o modelo de mulher
perfeita, que não poderia se divertir com vários homens, e a própria atriz era vista
como a moça de família que queria casar e ter filhos. A atriz representa essa figura
feminina contraditória, característica do espírito da época, quando a mulher, como já
mencionado anteriormente, havia saído de casa para os trabalhos de guerra
(Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945), era chamada a voltar ao lar e
assumir suas funções de dona de casa, dando novamente espaço aos homens, que
voltavam à sua rotina profissional nas fábricas e escritórios. Audrey Hepburn foi um
paradoxo para a época:
Back at Paramount, the early footage of Roman Holiday [A princesa e
o plebeu, com Audrey Hepburn e Gregory Peck, 1953] was a
sensation. Every one agreed there was something enchanted about
the Hepburn girl, something new and wonderful, though it was difficult
to say exactly what. Audrey was beautiful, but not the most beautiful.
She was talented, but she wasn’t brilliant. The paradox was
consuming.414
413
“E sempre foi assim. Desde a era das primeiras estrelas de Hollywood, espectadores de cinema
vêm devorando uma dose constante de autoimagem. Seja homem ou mulher, menino ou menina, a
tela mostra um espelho ao público, refletindo o que é adequado ou inadequado em termos de família,
amor, guerra e gênero – às vezes conscientemente, outras vezes não, mas sempre com um olho no
sexo. E nos anos 1950, se você fosse mulher, muita coisa estava errada e muito pouco era honroso.
Ou você era vagabunda ou era santa” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 21).
414
“De volta à Paramount, as primeiras imagens de A princesa e o plebeu foram uma sensação.
Todos concordavam que havia algo encantador sobre a garota Hepburn, algo novo e maravilhoso,
embora fosse difícil dizer exatamente o quê. Audrey era linda, mas não a mais bonita. Ela era
talentosa, mas não era brilhante. O paradoxo estava consumado” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p.
15-16).
179
A atriz possuía a combinação “of naïveté and worldliness”,415 que poderia
misturar a “vagabunda” e a “santa” em uma só mulher, retirando esse estereótipo
único, trazendo características do anti-herói literário, principalmente na narrativa
capotiana, na qual a protagonista não tem um final feliz e há tantas figuras estranhas,
como a própria Holly Golightly.
Em sua vida real e privada, Audrey Hepburn possuía conflitos semelhantes
aos das mulheres de seu tempo. Ela era noiva, desejava realizar seu casamento e
ter filhos, mas vivia dividida entre a sua carreira de estrela hollywoodiana e a vida
pessoal, que era adiada a cada novo projeto. Enquanto não se casavam, James
Hanson, seu noivo, visitava-a nos sets de filmagem:
He played cards with Gregory Peck and strolled from café to café and
chatted with those who recognized him as Audrey’s fiancé. Later,
he’d wait for her at their apartment on the Via Boncompagni. She’d be
delayed and he’d wait. Making films, he saw, was so much about
waiting. Waiting for the light. Waiting for the location. Waiting for the
stars. It seems they did more waiting than anything else. How could
they stand it?416
Até mesmo esse dilema da estrela hollywoodiana era motivo de curiosidade
dos espectadores, que rondavam as filmagens, e dos tabloides, que noticiavam cada
passo no backstage. Hepburn e suas personagens, como Gigi (de Gigi, peça teatral,
1952), Princesa Ann (de A princesa e o plebeu, 1953), Sabrina (de Sabrina, 1954),
conectavam-se diretamente com as mulheres jovens, as adolescentes, que apenas
recentemente vinham sendo notadas pelas mídias e tornaram-se foco do marketing
de consumo.
Na análise do figurino do filme Breakfast at Tiffany’s como fantasmagoria
social, torna-se oportuno observar a classificação barthesiana de vestuário, pois há
uma confluência visível entre os três tipos de vestuário e a análise comparativa entre
o livro, o filme e a vida real, sob a perspectiva da atriz Audrey Hepburn, que
personifica a personagem capotiana Holly Golightly.
Por se tratar de um figurino realista, conforme já especificado anteriormente,
415
“de ingenuidade e mundanismo” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 12).
416
“Ele jogava cartas com Gregory Peck e passeava de café em café e conversava com aqueles que
o reconheciam como o noivo de Audrey. Mais tarde, ele a esperaria em seu apartamento na Via
Boncompagni. Ela estaria atrasada, ele esperaria. Fazer filmes, ele viu, era muito sobre esperar.
Esperando pela luz. Esperando pela locação. Esperando pelas estrelas. Parece que eles fizeram
mais espera do que qualquer outra coisa. Como eles poderiam suportar isso?” (WASSON. Fifth
Avenue, 5 A.M., p. 14-15.)
180
Audrey Hepburn era reconhecida como a atriz que representava Holly Golightly e já
havia estrelado outras importantes obras. Portanto, as pessoas que viram o filme
tiveram o trio comparativo: obra escrita, obra fílmica e vida real. Os três vestuários
de Barthes podem funcionar como análise na medida em que o espectador formula
esse jogo de imagens, que permite uma relação entre figurino, atriz e pessoa e a
criação de um mito.
Como foi discutido na primeira seção desta tese, a fantasmagoria faz parte da
vida cotidiana na modernidade, da vida “real” do cidadão e daquilo que pode ser
chamado de “irreal”, como o espectro holográfico dos objetos, dos tipos, dos lugares.
A fantasmagoria revela-se como um fenômeno tanto material quanto imaginário,
tanto figurativo quanto abstrato, reunindo aspectos concretos e filosóficos da
modernidade.
A escolha da atriz para o papel traz consequências oportunas, como foi
mostrado acima. O corpo do ator faz parte do figurino, pois, antes de se pensar em
um figurino propriamente para determinada obra, a busca do ator ideal torna-se a
primeira providência a ser tomada. Além disso, o ator nu também veste um figurino,
representado por certo tipo de cabelo, certo tipo de conformação corporal – há casos
em que o ator precisa ganhar peso para representar um personagem.
A escritora francesa Colette, autora de Gigi, obra adaptada para o teatro em
1952, vivenciou essa busca até se deparar com uma gravação de cena em um
restaurante do hotel onde estava hospedada e no qual pretendia jantar:
To her annoyance, Colette discovered that the main dining room had
been closed for the shooting of Monte Carlo Baby. Would she, the
maître ‘d asked her, take her dinner in the breakfast room instead?
Absoluement non! Insulted, Colette pushed her way right into the
dining room and right into the middle of a take. The scene stopped
dead in its tracks. The crew looked up. No one breathed, except
Colette. Catching sight of a strangely compelling young woman,
Colette squinted through the beaming lights and raised her
eyeglasses for a closer look. Audrey, of course, had no inkling of
being watched. Nor had Colette any inkling of who she was. What
she did know, however, was that she seemed to have stepped into
her own novel: in face, body, and poise, she was staring at Gigi come
to life.417
417
“Para seu aborrecimento, Colette descobriu que a sala de jantar principal estava fechada para as
filmagens de Monte Carlo Baby. O maître perguntou-lhe se poderia levar seu jantar para a sala de
café da manhã? Absolutamente, não! Insultada, Colette abriu caminho até a sala de jantar e entrou
no meio de uma tomada. A cena congelou. A equipe olhou para ela. Ninguém respirou, exceto
181
Gigi, a personagem que Audrey Hepburn interpretou para o teatro, era uma
adolescente que passou a receber aulas de formação para ser cortesã. Colette viu
na atriz a sua Gigi, talvez pela estranheza que sua figura causava, que, de certa
forma, poderia ter afinidades com Holly Golightly, a ser interpretada por Hepburn 10
anos mais tarde:
Although Audrey’s innate sensuality, her Gigi-ness, was written all
over her, no one until Colette had seen it. Perhaps it was because of
Audrey’s strangeness. Her legs were too long, her waist was too
small, her feet were too big, and so were her eyes, nose, and the two
gaping nostrils in it. When she smiled (and she did often), she
revealed a mouth that swallowed up her face and a row of jagged
teeth that wouldn’t look too good in close-ups. She was undoubtedly
not what you would call attractive. Cute maybe, charming, for sure,
but with only the slightest hint of makeup and a bust no bigger than
two fists, she was hardly desirable. The poor girl was even a bit
round-faced.418
O corpo do ator afeta profundamente a recepção da obra pelo espectador. No
caso de Breakfast at Tiffany’s, o fato de ter sido Audrey Hepburn, e não Marilyn
Monroe como Capote queria por sua amizade pessoal com a atriz, afetou-a de forma
definitiva. Usando a imaginação, é possível notar que o tubinho preto, como é visto e
julgado hoje, como uma peça sofisticada e cheia de mistérios, não teria o mesmo
significado se fosse vestido por Marilyn.
A atriz Audrey Hepburn marcou a história da moda com sua passagem pelo
cinema, primeiro por meio da demarcação de um estilo próprio, assegurado pelo seu
tipo físico, estranho e também inovador para a época, e, segundo, por sua parceria
com Givenchy:
O glamour de Hollywood do pós-guerra girava em torno da silhueta
Colette. Ao ver uma jovem estranhamente atraente, Colette olhou para as luzes radiantes e ergueu os
óculos para ver mais de perto. Audrey, claro, não tinha a menor ideia de estar sendo observada.
Tampouco Colette tinha ideia de quem ela era. O que ela sabia, no entanto, era que ela parecia ter
entrado em seu próprio romance: no rosto, corpo e porte, ela estava olhando para Gigi em carne e
osso” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 7).
418
“Embora a sensualidade inata de Audrey, sua Gigidade, estivesse escrita em toda parte, ninguém
até Colette havia visto isso. Talvez tenha sido por causa da estranheza de Audrey. Suas pernas eram
compridas demais, sua cintura era pequena demais, seus pés eram grandes demais, assim como os
olhos, o nariz e as duas narinas abertas. Quando ela sorria (e ela fazia isso frequentemente),
revelava uma boca que engolia seu rosto e uma fileira de dentes irregulares que não pareciam muito
bons em close-ups. Ela não era, sem dúvida, o que você chamaria de atraente. Bonitinha, talvez,
encantadora, com certeza, mas com um mínimo de maquiagem e um busto não maior que dois
punhos, dificilmente era desejável. A pobre menina tinha até o rosto meio redondo” (WASSON. Fifth
Avenue, 5 A.M., p. 8).
182
de ampulheta,419 até Audrey Hepburn aparecer em seu primeiro filme
americano, A princesa e o plebeu, em 1953. Mas foi seu
desempenho no filme Sabrina, de Billy Wilder, em 1954 – que
marcou sua transformação da filha do chofer desajeitada para a
mulher sofisticada mediante uma série de trajes sensacionais –, que
sua posição como ícone duradouro de estilo foi assegurada. Em
seguida veio Cinderela em Paris em 1957.420
O excerto indica forças que levariam a uma modificação do tipo feminino, a
atriz Audrey Hepburn foi uma das influenciadoras dessa mudança. A alteração de
silhueta, em relação à moda, é uma das mais marcantes em termos históricos. Por
meio de silhuetas, as décadas, os períodos, são reconhecidos com o passar do
tempo.
Para o filme Sabrina, Billy Wilder, o diretor, pensou em uma estratégia para
enganar os censores, usando as transformações no vestuário da personagem como
“a way to show without telling, to imply”.421 Se a Production Code Administration –
PCA422 proferia, em nome da moral e dos bons costumes cristãos, que nada sobre
sexo fosse mencionado formalmente nas obras cinematográficas, as transformações
419
“Ampulheta: Forma associada às mulheres do final [mais apropriado dizer: de meados] do século
XIX [faz referência ao uso da armação de crinolina, por baixo da saia, e do espartilho, que definia as
formas] e início do século XX, as quais usavam espartilhos apertados que constringiam a cintura e
acentuavam o volume dos quadris e do busto. Essa silhueta foi relançada em 1947, no New Look de
Dior” (O’HARA. Enciclopédia da moda, p. 18-19.)
420
FOGG, Marnie. Tudo sobre moda. Tradução de Débora Chaves, Fernanda Abreu e Ivo Korytowski.
Rio de Janeiro: Sextante, 2013.p. 344.
421
“um jeito de mostrar sem dizer, de insinuar” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 31).
422
“The Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA) was formed in 1922 to defend
the film industry against censorship, create ties with the public and community groups, and protect the
interests of the motion picture industry. In 1930, the organization's president Will Hays introduced the
Production Code, a document designed to help the industry regulate itself by following certain moral
principles and guidelines. Hays chose Joseph Breen to oversee the administration of the Code in
1934. Under Breen, the studios were required to submit all screenplays for approval and all films
released by MPPDA member companies were required to display a Code seal. In 1946, the
organization changed its name to the Motion Picture Association of America (MPAA) and Hays was
succeeded by Eric Johnston. The Production Code remained in force until 1968, when it was
superseded by the MPAA ratings system, which is still in use today”. Tradução: “A Motion Picture
Producers and Distributors of America (MPPDA) [Produtores e Distribuidores de Filmes da América]
foi formada em 1922 para defender a indústria cinematográfica contra a censura, criar laços com o
público e grupos comunitários e proteger os interesses da indústria cinematográfica. Em 1930, o
presidente da organização, Will Hays, introduziu o Production Code [Código de Produção], um
documento projetado para ajudar a indústria a se regular, seguindo certos princípios e diretrizes
morais. Hays escolheu Joseph Breen para supervisionar a administração do Código em 1934. Sob
Breen, os estúdios foram obrigados a submeter todos os roteiros para aprovação, e todos os filmes
lançados pelas empresas membros do MPPDA foram obrigados a exibir um selo Code. Em 1946, a
organização mudou seu nome para Motion Picture Association of America (MPAA) e Hays foi
sucedido por Eric Johnston. O Código de Produção permaneceu em vigor até 1968, quando foi
substituído pelo sistema de classificação da MPAA, que ainda está em uso hoje” (Motion Picture
Association of America. Production Code Administration records, Margaret Herrick Library, Academy of
Motion Picture Arts and Sciences. Disponível em:
. Acesso em: 10 nov. 2018.)
183
interiores de uma garota que experienciou o sexo poderiam ser evidenciadas em
suas transformações exteriores, por meio de sua imagem, seu vestuário e do
figurino do filme:
If Sabrina Fairchild was going to make a truly credible transformation
from regular Long Island girl to Parisian sophisticate – in other words,
from purity to sexuality – she was going to have the clothing to show
for it. She would need an evocative costume change. The censors
couldn’t get them for that, could they? Not if it was all done in the
name of European good taste and elegance.423
Exatamente em 1954, graças a mudanças internas da organização e a
pessoas que viriam a pensar um código menos radical, reflexo da ameaça da
televisão, o Production Code começava a receber sua primeira grande revisão: “The
new Code was less a symptom of a new loosening in America’s values than it was –
like all changes in Hollywood practice – about the bottom line: selling tickets”.424 As
mudanças nesse “process of moral realignment in Hollywood” 425 percorreram a
década de 1950, permitindo que filmes como Breakfast at Tiffany’s pudessem surgir
na década seguinte, abordando uma visão menos reducionista do papel da mulher
na sociedade e, consequentemente, do homem.
Visando utilizar o figurino como uma estratégia para enganar a PCA, Audrey
Hepburn foi convocada pela Paramount a ir a Paris escolher e comprar figurinos
para o filme, com algumas diretrizes da figurinista Edith Head,426 como se fossem
parte do vestuário pessoal da atriz, para não haver necessidade de dar créditos no
filme, efetuar pagamento de impostos ou correr riscos de que houvesse retenção na
entrada da compra no país. Curiosamente, a figurinista Edith Head, que não se
sentiu confortável com essa transação, sugeriu que Hepburn “has been requested
423
“Se Sabrina Fairchild ia passar por uma transformação verdadeiramente crível da garota comum
de Long Island para a parisiense sofisticada – em outras palavras, da pureza para a sexualidade –,
ela ia precisar do vestuário para mostrar isso. Ela precisaria de uma mudança de vestuário evocativa.
Os censores não conseguiram pegá-los para isso, poderiam? Não se tudo foi feito em nome do bom
gosto e elegância europeus” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 31).
424
“O novo Código era menos um sintoma de um novo afrouxamento nos valores da América do que
era – como todas as mudanças na prática de Hollywood – sobre os resultados: vender ingressos”
(WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 90).
425
“processo de realinhamento moral em Hollywood” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 90).
426
“Head, Edith 1899-1981. Figurinista. Nascida em Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos. […] Em
1923, trabalhou com Howard Greer na Paramount Pictures, em Hollywood. Após breve período como
assistente de Travis Banton em 1927, foi promovida a estilista-chefe do estúdio em 1938, cargo que
manteve até 1967. […] Seu nome encontra-se em mais de mil créditos de filmes” (O’HARA.
Enciclopédia da moda, p. 139).
184
not to select dead black or dead white (this Head’s suggestion)”,427 mas a atriz acaba
escolhendo um vestido preto, peça que se torna marca registrada também em suas
aparições subsequentes.
427
“não escolha nada preto total ou branco total (essa sugestão de Head)” (WASSON. Fifth Avenue, 5
A.M., p. 35).
185
Figura 15 – Hepburn como Sabrina, usando o vestido “pretinho básico”, ao seu lado
Humphrey Bogart e William Holden
Fonte:A. G. Nauta Couture.Disponível em:
. Acesso em: 28 out. 2018.
186
O vestido usado em Sabrina é assim denominado até os dias atuais. Há uma
personificação do objeto quando dizemos “o vestido Audrey de Sabrina”, o “decote
Sabrina de Audrey”. São materializações de abstrações. Hepburn, que personificou
a personagem Sabrina no filme, mantem-se como um mito por meio da permanência
do vestido durante essas décadas. Seu nome e imagem serão sempre lembrados
por essa associação, mesmo com sua ausência física no mundo o vestido torna-se
um objeto “aurático”, que permaneceu mesmo na ausência do espaço e do tempo. O
“decote Sabrina” percorreu todo o final do século XX e ainda é usado para classificar
um decote canoa, que mostra os ossos dos ombros (Figura 15).
A figurinista Edith Head era mesmo uma figurinista e não alguém “da moda”,
são áreas diferentes. Suas preocupações passavam mais pelo disfarce de
imperfeições que as estrelas pudessem ter e pela ampliação do que havia de belo,
visando harmonia e os efeitos necessários à tela: “She had worked especially hard
on Roman Holiday, and ingeniously, camouflaging Audrey’s many physical
irregularities”.428 Head considerava que a atriz possuía várias irregularidades que
precisavam ser disfarçadas, como o rosto muito grande para o corpo, ombros muito
pontudos, braços muito frágeis, pescoço fino demais, cintura fina demais, pernas
finas e longas demais. A beleza perfeita da década de 1950, para a figurinista, era
Grace Kelly, que possuía uma harmonia de formas.
A intervenção pessoal da atriz Audrey Hepburn em seu figurino permitiu que
algo pudesse emergir, além da harmonia perfeita e das necessidades técnicas de
iluminação e enquadramento do cinema: o estranho que a moda pode evidenciar e
valorizar, as incertezas e verossimilhanças de mulheres reais, com defeitos reais,
que podem ser aspectos representativos de um espírito de época e de mudanças de
paradigma.
Ao inserir a moda em seu figurino e em sua vida, Hepburn trouxe figurações
mais próximas do real, também fantasmagóricas, mas que possuíam o poder de
transformação de estilos vigentes. A atriz possibilitou mudanças sociais enraizadas
por meio da emanação de fantasmagorias advindas dos objetos da cultura:
The designer gave her a style, and the director made her an icon. […]
After Sabrina, Audrey was forever branded, on screen and off, a
young woman who asserts her individuality through her taste – and
428
“Ela havia trabalhado arduamente em Roman Holiday [A princesa e o plebeu] e, engenhosamente,
camuflando as muitas irregularidades físicas de Audrey” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 32).
187
that, in an age of big breasts in big brassieres, was an altogether
novel spin on her sex.429
A intervenção da atriz em seu figurino é incomum no âmbito do cinema, mas
bastante usual no teatro, e passou a ser uma prática de Audrey Hepburn a partir de
Sabrina. A atriz torna-se uma musa inspiradora para Givenchy, formando uma
pareceria que duraria muitos anos, o que a tornou um ícone de moda e estilo,
interligando o seu vestuário real, do dia a dia, e seu vestuário-imagem, dos filmes
nos quais protagonizou personagens marcantes e influenciadoras.
Hubert de Givenchy não demonstrou interesse, inicialmente, ao receber
Audrey Hepburn. Na verdade, ele havia recebido informações de agendamento que
receberia Mademoiselle Hepburn, e pensou ser Katharine Hepburn. Audrey ainda
não era uma estrela quando o procurou pela primeira vez para o figurino de Sabrina,
no ano de 1953. Ele disse a ela que estaria muito ocupado com sua coleção nova,
que não possuía muitos assistentes e não poderia fazer nenhum ajuste ou peças
especiais. Se ela desejasse, poderia ver as peças da coleção anterior. Ela explicou
que queria comprar roupas para sua coleção particular, com seu próprio dinheiro,
como foi recomendado pela Paramount, e que as usaria em algumas cenas. Então,
de seu próprio gosto e estilo, o vestuário de Sabrina foi escolhido dentre as peças da
coleção passada de Givenchy, seguindo uma lista bem genérica extraída da
decupagem do roteiro de cenas feita pela figurinista Edith Head:
As the imposing Hubert de Givenchy looked on, she selected a slim
suit of gray wool, which she wore with a lighter chiffon turban; a long
white gown of embroidered organdy; and finally, a black cocktail
dress held up by two tiny bows at both ends of a wide and narrow
neckline (once called a décolleté bateau, soon to be renamed
décolleté Sabrina). [Ver Figura 15] With a long V-shaped back
culminating in a strip of buttons, the dress featured a snug bodice
offset by a ballerina-shaped skirt, and unusually spacious armholes
that didn’t conceal Audrey’s tiny shoulders. Neither, for that matter,
did its narrow neckline conceal the collarbones Edith Head had so
painstakingly camouflaged in Roman Holiday, or the Civil War–sized
waistline she attempted to overcome with a long skirt. So artfully did
the dress embrace – and even celebrate – Audrey’s so-called faults,
that when be held by audiences of 1954, it communicated not just
Sabrina’s transformation and Audrey’s burgeoning influence as a
style icon, but the new schismatic potential of what being a woman
429
“O estilista lhe deu um estilo, e o diretor fez dela um ícone. […] Depois de Sabrina, Audrey estava
marcada para sempre, na tela e fora, a mulher jovem que afirma a sua individualidade através do seu
gosto – e isso, em uma época de seios grandes em grandes sutiãs, foi algo completamente novo para
o seu sexo” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 45-46).
188
could mean.430
Note-se que o conceito de coleção sazonal, criação por estações do ano,
principalmente outono/inverno e primevera/verão, era bastante rígido nesse período.
Portanto, Audrey Hepburn foi relegada a escolher peças de uma coleção passada,
peças que não tinham o status de moda atual e mesmo assim conseguiu criar um
estilo único para si e para suas personagens.
O figurino de Sabrina vai despertar para Audrey Hepburn, nesse primeiro
momento, a confluência entre a pessoa real e a personagem ficcional, que terá
reflexos nas outras mulheres da sociedade da época. È uma evidência da moda
como agente modificador e não apenas como reflexo de mudança, pois está
alterando as contingências sociais. Mesmo sendo elaborado pela própria atriz, por
meio de seu gosto pessoal e intuição, o figurino da personagem Sabrina cumpre a
função primordial do figurino de cena, que é comunicar ao público o cerne da
personagem a qual o ator representa/encarna, além de ser o fio social que envolve a
narrativa encenada. Além disso, o figurino de Sabrina cunha Hepburn como um mito
de moda e de mulher moderna.
O clássico “pretinho básico”, ou “LBD”, o “Little Black Dress”, foi criado por
Chanel,431 em 1926. A Vogue americana o descreveu como “o ‘Ford’ de Chanel, o
430
“Enquanto o imponente Hubert de Givenchy observava, ela escolheu um terninho justo de lã cinza,
que usou com um turbante de chiffon mais leve; um vestido longo branco de organdi bordado; e,
finalmente, um vestido de cocktail preto, sustentado por dois minúsculos laços nas duas
extremidades de um decote ombro a ombro e estreito (antes chamado décolletébateau [decote
canoa], que em breve seria rebatizado de décolleté Sabrina [decote Sabrina]). Com um decote nas
costas em forma de V longo culminando em uma faixa de botões, o vestido apresentava um corpete
confortável contrabalançado por uma saia em forma de bailarina, e cavas excepcionalmente largas
que não escondiam os minúsculos ombros de Audrey. Tampouco, se isso importa, o seu decote
estreito escondia as clavículas que Edith Head havia tão cuidadosamente camuflado em Roman
Holiday, ou a cintura tamanho Guerra Civil, que tentou compensar com uma saia longa. Tão
artisticamente o vestido abraçava – e até celebrava – as chamadas faltas de Audrey, que quando
contempladas pelo público de 1954, comunicava não apenas a transformação de Sabrina e a
florescente influência de Audrey como um ícone de estilo, mas o novo potencial cismático de o que
ser mulher poderia significar” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 41, grifos do autor).
431
“Chanel, Coco. 1883-1971. Estilista. Nascida Gabrielle Bonheur Chanel em Saumur, França.
Apesar de muitas dúvidas envolverem o início da vida de Chanel, acredita-se que ela tenha adquirido
alguma experiência em chapelaria antes de se mudar para Deauville, em 1910, pra trabalhar em uma
loja de chapéus. Entre 1912 e 1914 abriu duas lojas, uma em Paris e outra em Deauville, onde
confeccionava e vendia chapéus, blusas simples e soltas e camisas íntimas. As roupas de Chanel
eram criadas para serem usadas sem espartilhos, sendo feitas com menos forros para ficarem mais
leves e menos rígidas. […] Em 1918 Chanel estava produzindo cardigãs e twinsets. Adaptou suéteres
masculinos e lançou-os sobre saias lisas e retas. Em 1920 lançou calças largas para mulheres,
baseadas na boca-de-sino dos marinheiros, chamadas ‘calças para iatismo’. […] Tornou-se uma
personagem famosa, o arquétipo da garçonne – seios pequenos, magra, usava roupas folgadas e
confortáveis e um corte de cabelo curto, lembrando um menino. Durante toda a década de 20, Chanel
lançou uma ideia de moda após a outra. Combinou saias de tweed com suéteres e colares compridos
189
vestido que o mundo inteiro vai usar”, referindo-se ao “Modelo T”, da Ford, por “seu
apelo de massa”: “o pretinho básico entrou para o vocabulário da moda como um
artigo de necessidade básica, infalível, que podia ser usado por qualquer mulher,
independente da classe econômica”.432 Obviamente, o que passaria a diferenciar a
mulher que o vestia seria o corte e os materiais de que seria produzido.
Por meio desta “citação” da inovação revolucionária de Chanel e de toda a
sua carga semântica, Audrey Hepburn resgata o “pretinho básico” em várias versões
que são fixadas à sua imagem até os dias atuais. Truman Capote reforça essa
imagem em Holly Golightly ao citá-lo em sua obra; e Audrey Hepburn, ao elegê-lo
como peça marcante em sua vida real e também por torná-lo peça ícone no filme
Breakfast at Tiffany’s.
Para o filme adaptado Breakfast at Tiffany’s, o figurino é atribuído à
supervisão de Edith Head e guarda-roupa principal de Miss Hepburn433 à Hubert de
Givenchy, demonstrando a anuência da Paramount em estabelecer a parceria entre
Hepburn e Givenchy. Edith Head fez poucas interferências nas escolhas de
Givenchy e de Hepburn, atuando na criação dos esboços ilustrativos, nas
modificações necessárias e na manutenção do figurino.
de pérolas, transformou a japona e as capas de chuva em trajes de moda e popularizou o pretinho”
(O’HARA. Enciclopédia da moda, p. 74).
432
FOGG.Tudo sobre moda, p. 225.
433
Pode haver mais de um profissional trabalhando no figurino de um filme. No caso de Breakfast at
Tiffany’s, Givenchy cuidou apenas do figurino de Hepburn, e Head cuidou dos outros figurinos, além
dos detalhes de manutenção e ajustes sempre necessários durante as gravações.
190
Figura 16 – Vestido de Givenchy usado por Audrey Hepburn no
filme Breakfast at Tiffany’s. Exposição de Hubert de
Givenchy no Museo Thyssen Bornemisza de Madrid,
out. 2014 a jan. 2015
Fonte: Miradas desde el bus. Disponível em: . Acesso em 15 mar. 2019.
191
Figura 17 – Exposição de Hubert de Givenchy no Museo Thyssen Bornemisza de
Madrid, out. 2014 a jan. 2015
Fonte: Exhibition Hubert de Givenchy. Making of. Disponível em:
. Acesso em: 13 out. 2018
Holly Golightly comunica ao espectador por meio de sua persona e imagem
uma espécie de neutralidade em relação aos preceitos sociais. A liberdade
manifesta em suas ações e em seus desejos foi materializada na figura da atriz
Audrey Hepburn e de todo o arsenal elaborado para a composição da imagem
fílmica: encenação, roteiro, figurino, cenários. Há duas mulheres na mesma
personagem: uma que permanece ainda a garota interiorana, a outra, camuflada
pela moda, pública, com seu corpo magro e “chique”, no qual tudo “cai bem”,
tornando-se um símbolo da mulher moderna.
192
Figura 18 – Audrey Hepburn vestindo outro pretinho básico em cena diurna. (Da
esquerda para a direita) George Peppard, Audrey Hepburn, e Patricia
Neal em Breakfast at Tiffany's (1961), direção de Blake Edwards
Fonte: Breakfast at Tiffany's. Photo. Encyclopædia Britannica Online. Disponível em:
. Acesso em: 27 out. 2018
No filme Breakfast at Tiffany’s, essa duplicidade fica muito visível e surge no
nível da palavra quando Holly está se despedindo de Doc, seu ex-marido que vem a
Nova Iorque para levá-la de volta para casa, no interior do Texas. Na rodoviária, ela
diz: “Não me chame de Lulamae, eu não sou mais Lulamae”. Ela quer afastar o
passado e sabe que percorreu um caminho sem volta. Na fala da sequência, já
sozinha com Paul, ela assume que continua sendo a mesma garota que roubava
comida no interior do Texas. Essas duas mulheres são mais visíveis no filme,
justamente pela composição do figurino, mas há também no livro de Capote
referências a essa oposição.
193
Figura 19 – Holly se despede do ex-marido Doc, que veio do interior para vê-la
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
A narrativa de Truman Capote é bem mais áspera do que o filme
hollywoodiano. Em função de vários cortes dos censores, Holly Golightly se
desvirtuou da personagem de origem (do livro Breakfast at Tiffany’s). Capote, em
entrevista concedida à revista Playboy, em março de 1968, definiu:
Holly Golightly was not precisely a call girl. She had no job, but
accompanied expense-account men to the best restaurants and night
clubs, with the understanding that her escort was obligated to give
her some sort of gift, perhaps jewelry or a check. Holly was always
running to the girl’s room and asking her date, “May I have a little
powder room change?” And the man would give her $50. Usually, her
escort was a married man from out of town who was lonely, and she
would flatter him and make a good impression on his associates, but
there was no emotional involvement on either side; the girl expected
nothing but a present and the man nothing but some good company
and ego bolstering –although if she felt like it, she might take her
escort home for the night.434
434
“Holly Golightly não era precisamente uma acompanhante. Ela não tinha emprego, mas
acompanhava homens de contas recheadas para os melhores restaurantes e boates, com o
entendimento de que seu acompanhante era obrigado a dar-lhe algum tipo de presente, talvez joias
ou um cheque. Holly estava sempre correndo para o toalete e perguntando ao seu parceiro: ‘Posso
ter uma gorjeta para o toalete?’ E o homem lhe daria 50 dólares. Normalmente, seu acompanhante
era um homem casado de fora da cidade que estava solitário, e ela o lisonjeava e causava uma boa
impressão em seus associados, mas não havia envolvimento emocional de nenhum dos lados; a
garota não esperava nada a não ser um presente e o homem nada além de uma boa companhia e
apoio do ego – embora, se ela quisesse, poderia levá-la em casa para a noite” (NORDEN, Eric.
Truman Capote – Playboy Interview. Scraps from the loft. 2016).
194
Capote traça com naturalidade o ritual que acontece nos encontros de Holly.
Há até mesmo uma sensação de que ela está no controle, que se diverte com isso
aproveitando presentes de joias e cheques, restaurantes caros. Ainda nessa
entrevista o escritor explica o contexto social do período e torna compreensível que
ele desejou criar uma personagem representativa de um “tipo” desse período, como
foi analisado anteriormente, tipos sociais criados pela própria conformação da
sociedade:
So these girls are the authentic American geishas, and they’re much
more prevalent now than in 1943 or 1944, which was Holly’s era.
Every year, New York is flooded with these girls; and two or three,
usually models, always become prominent and get their names in the
gossip columns and are seen in all the prominent places with all the
Beautiful People. And then they fade away and marry some
accountant or dentist, and a new crop of girls arrives from Michigan or
South Carolina and the process starts all over again. The main
reason I wrote about Holly, outside of the fact that I liked her so
much, was that she was such a symbol of all these girls who come to
New York and spin in the sun for a moment like May flies and then
disappear. I wanted to rescue one girl from that anonymity and
preserve her for posterity.435
Ao escrever uma obra ficcional e publicá-la, o escritor perde o controle sobre
a forma com que o público leitor irá absorver a narrativa. Principalmente no caso de
Breakfast at Tiffany’s, que posteriormente foi adaptada ao cinema e ganhou uma
nova versão. Ao criar seu texto, Capote descreve uma realidade crua, de pessoas
pobres que transitam em ambientes sociais de pessoas ricas vendendo seus corpos,
seus afetos. Coloca-as em uma cidade que abriga a todos que buscam realizar
sonhos. O sonho das mulheres da ápoca, que em sua maioria dificilmente
conseguiam se realizar profissionalmente, era buscar diversão na juventude e um
casamento que proporcionasse conforto. Com alguma ingenuidade, o autor pensa
que não está criando uma prostituta, como eram chamadas as mulheres que se
comportavam como sua personagem naquele período histórico.
435
“Então essas meninas são as autênticas gueixas americanas, e elas são muito mais prevalentes
agora do que em 1943 ou 1944, que era a época de Holly. Todos os anos, Nova York é inundada com
essas garotas; e duas ou três, geralmente modelos, sempre se tornam proeminentes e recebem seus
nomes nas colunas de fofoca e são vistas em todos os lugares de destaque com todas as pessoas
bonitas. E então elas desaparecem e se casam com algum contador ou dentista, e uma nova safra de
garotas chega de Michigan ou da Carolina do Sul e o processo começa de novo. A principal razão
que escrevi sobre Holly, além do fato de que eu gostava tanto dela, era que ela era um símbolo de
todas essas garotas que vinham para Nova York e giravam ao sol por um momento como May voa e
depois desaparece. Eu queria resgatar uma garota desse anonimato e preservá-la para a
posteridade.” (NORDEN. Truman Capote – Playboy Interview).
195
Ao defini-la como “the authentic American geishas”, o escritor pretende
realçar o aspecto quimérico, fantasmagórico e mítico de várias mulheres que se
arriscavam saindo do interior para Nova Iorque, comparando seu comportamento ao
das gueixas japonesas. A cena inicial do filme traz um pouco dessa aura das
gueixas, quando Holly caminha pela Quinta Avenida, o vestido longo ajustado na
barra, reduzindo seu passo, como são os passos das japonesas caminhando com
seu vestuário peculiar.
O escritor procura apreender a evanescência dessas mulheres, dar-lhes
contornos com a intenção de retirá-las do anonimato, preservando-as, como imagem
dialética, para o futuro vindouro. A figura de linguagem que se utiliza para descrevê-
la é a metáfora da borboleta, que voa em meio à luz do pôr do sol, o lusco fusco
fantasmagórico do entardecer, curto, e que depois desaparece. O poder da imagem
dialética (por si, aurática), que prevalece e sobrevive à passagem do tempo,
manteve vívida e envolvente, até os dias de hoje, a figura fantasmagórica da
personagem Holly Golightly criada por Truman Capote.
Retomando os aspectos teóricos tratados anteriormente, o figurino de Holly
Golightly possui uma função maior do que plástica e emocional e tem uma conexão
intrínseca com o gestus social da obra, o termo brechtiano analisado por Barthes.
Sua materialização terá ainda nuanças mais sutis quando envolve as análises que
reportam os aspectos sociais do período concernentes à censura. Esses aspectos
envolvem uma análise de detalhes estruturais da transposição midiática – livro /
filme – que esta análise não visa demonstrar como o que é certo ou errado, melhor
ou o pior, mas sim trazer à tona, à superfície dos fatos, os movimentos sociais do
período que levaram às escolhas feitas nessa transposição. Essas escolhas não
podem ser atribuídas a um ou outro sujeito apenas, mas sim a vários e a toda uma
conjunção social, que levou alguns a julgar o que poderia ou não ser visto pelos
espectadores, e ainda, como poderia ser visto. Isso se manifesta na materialização
do filme, por meio da imagem, da montagem.
196
Figura 20 – Audrey Hepburn em foto de divulgação do filme Breakfast at
Tiffany’s,1961
Fonte: IMDb.com. Disponível em: . Acesso em: 30 Out. 2018
197
3.2 “Miss Holiday Golightly, Traveling”
A narrativa de Truman Capote tem início com uma questão que vai motivar o
narrador-personagem a contar a história narrada: qual foi o destino de Holly
Golightly? Ela desapareceu por 10 ou 12 anos e nunca mais foi vista em Nova
Iorque, até que o fotógrafo japonês, Sr. Yunioshi, que morava na cobertura de seu
prédio, trouxe uma notícia.436 Ele descobriu, em visita à África, uma estátua de uma
mulher esculpida em madeira por um nativo, que era muito semelhante à Holly. O
fotógrafo levou a notícia a Joe Bell, um senhor de 66 anos, uma das poucas
amizades que se importavam realmente com ela, e este, por sua vez, a levou ao
narrador.
In the envelope were three photographs, more or less the same,
though taken from different angles: a tall delicate Negro man wearing
a calico skirt and with a shy, yet vain smile, displaying in his hands an
odd wood sculpture, an elongated carving of a head, a girl’s, her hair
sleek and short as a young man’s, her smooth wood eyes too large
and tilted in the tapering face, her mouth wide, overdrawn, not unlike
clown-lips. On a glance it resembled most primitive carving; and then
it didn’t, for here was the spit-image of Holly Golightly, at least as
much of a likeness as a dark still thing could be.437
É por meio dessa imagem mítica de uma escultura africana que o leitor toma
ciência da personagem. Ela surge com uma existência nebulosa e alguns aspectos
vão manter essa impressão inicial, como, por exemplo, a inexistência do ponto de
vista da personagem, já que o foco narrativo é do narrador-personagem, que realça
não ter estado com ela muitas vezes, mas ao mesmo tempo considera-a uma amiga.
436
Em entrevista à revista Playboy, Capote comenta que esse episódio foi escrito baseado em
acontecimentos reais. Ele realmente conheceu uma garota alemã que veio refugiar-se da Guerra em
Nova Iorque quando tinha 17 anos: “Everything I wrote about her is literally true – not about her
friendship with a gangster called Sally Tomato and all that, but everything about her personality and
her approach to life, even the most apparently preposterous parts of the book”. Capote chama a
garota alemã de “my real-life Holly”. Tradução: “Tudo o que eu escrevi sobre ela é literalmente
verdade – não sobre sua amizade com o gângster chamado Sally Tomato e tudo mais, mas tudo
sobre sua personalidade e sua abordagem da vida, mesmo as partes aparentemente mais absurdas
do livro”. […] “minha Holly da vida real” (NORDEN. Truman Capote – Playboy Interview).
437
“No envelope havia três fotografias, mais ou menos iguais, tiradas de ângulos diferentes: um negro
alto e delicado usando uma saia de chita e com um sorriso tímido, mas vaidoso, exibindo em suas
mãos uma estranha escultura de madeira, um entalhe alongado de um busto, uma garota, seus
cabelos lisos e curtos como de um rapaz, os olhos lisos de madeira muito grandes e inclinados no
rosto afilado, a boca larga, exagerada, não muito diferente dos lábios de um palhaço. De relance,
parecia uma escultura bem primitiva; e então não, porque aqui estava cuspida e escarrada a imagem
de Holly Golightly, pelo menos o tanto que uma coisa escura poderia parecer” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 6).
198
Há esse grande spoiler438 logo no início da narrativa, quando o leitor já sabe que vai
ler a história de uma desaparecida, da qual ninguém sabe o destino: “’You know so
much, where is she?’ ‘Dead. Or in a crazy house. Or married. I think she’s married
and quieted down and maybe right in this very city’”.439 Ela faz parte de um recorte
temporal na história do narrador-personagem, que vai colocar esse episódio como
algo que o motivou a escrever a história.
Holly é um espectro na vida desses homens. Sua presença na narrativa é
fantasmagórica porque ela não existe como personagem que fala por si, mas é
contada pelo narrador; ele mesmo deixa nebulosa sua existência, traz contradições,
deixa-a com ar de mistério. Holly vive a noite e dorme durante o dia, e os trechos em
que o narrador explicita essa presença na noite e a sua ausência no dia deixam-na
mais inapreensível ainda; ela é uma prostituta, mas isso é camuflado por sua
aparência fashionista e sofisticada.
Joe Bell menciona que se ela estivesse em Nova Iorque ele saberia e relata
que vem caminhando por toda a cidade nos últimos 10 ou 12 anos procurando por
ela: “‘I see pieces of her all the time, a flat little bottom, any skinny girl that walks fast
and straight’ – He paused, as though too aware of how intently I was looking at him.
‘You think I’m round the bend?’”441 A impressão do leitor é que, para Joe, Holly
tornou-se um fantasma, alguém que pode se materializar em partes de outras
pessoas, ele se manteve alerta e em busca de seu paradeiro.
A figura talhada na madeira imortaliza Holly para os dois homens. A fotografia
da escultura ainda não consegue elucidar verdadeiramente se era ela ou não. A
dúvida fica mantida, ampliada pela ênfase ao encadeamento da representação em
dois suportes: um trabalho artístico em madeira feito por um artesão africano
apaixonado e uma foto do trabalho executado. A personagem entra na narrativa
como uma figura que se mitifica: pela presença de uma fotografia e pela ausência da
estatueta e de Holly Golightly. O rastro que fica é a fotografia e a semelhança da
estatueta com a personagem.
438
É uma gíria muito usada atualmente para indicar que algo importante de uma história é contada
(livro, filme, série, jogo).
439
“‘Você sabe onde ela está?’ ‘Morta, ou em uma casa maluca. Ou casada. Eu acho que ela está
casada e se acalmou e talvez nessa mesma cidade” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 8).
441
“‘Eu vejo pedaços dela o tempo todo, um traseirinho pequeno e chato, alguma garota magrela que
anda rápido e reta – ‘Ele fez uma pausa, como se estivesse muito consciente de quão intensamente
eu estava olhando para ele. ‘Você acha que eu estou ficando maluco?’” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 9).
199
Essa estética etérea é fomentada pela descrição do narrador, os fatos
anuviados, as imagens que ficaram na memória e são enaltecidas. A nostalgia e
melancolia pela perda da amiga estão na descrição do ambiente, a mudança
climática e a chuva que deixa tudo escorregadio quando se mistura ao calçamento:
At that moment I couldn’t seem to remember the story, only the image
of her riding away on a horse. “Anyway, she’s gone.” “Yeah,” he said,
opening the door. “Just gone.” Outside, the rain had stopped, there
was only a mist of it in the air, so I turned the corner and walked
along the street where the brownstone stands. It is a street with trees
that in the summer make cool patterns on the pavement; but now the
leaves were yellowed and mostly down, and the rain had made them
slippery, they skidded underfoot.442
É em meio a esses pensamentos enevoados que o narrador começa a contar
sobre o passado, quando foi vizinho de Holly. A primeira coisa que chamou sua
atenção foi o seu nome na caixa de correio:
I’D BEEN LIVING IN THE house about a week when I noticed that the
mailbox belonging to Apt. 2 had a name-slot fitted with a curious card.
Printed, rather Cartier-formal, it read: Miss Holiday Golightly; and,
underneath, in the corner, Traveling. It nagged me like a tune: Miss
Holiday Golightly, Traveling.443
É bastante provocativa essa descrição que está no lugar do que seria
apropriado ao seu ofício. Viajar então é o ofício de Holly. Ou levar as pessoas a
viagens. Também os aspectos fantasmagóricos apontados na segunda seção,
referentes ao livro Breakfast at Tiffany’s, podem ser relembrados agora. São muitos
dispositivos espaciais e temporais ativadores de fantasmagorias.
O nome Holly Golightly já recebeu várias análises simbólicas e, dentre elas,
uma implica no sentido de alguém que não se prende: “a thin, outspoken eighteen-
year-old called Holly Golightly. And she does indeed go – from man to man and
place to place – lightly”.444 O sobrenome também lembra a expressão (moralista)
442
“Naquele momento eu não conseguia lembrar da história, apenas da imagem dela partindo em um
cavalo. ‘De qualquer forma, ela se foi’. ‘Sim’, ele disse, abrindo a porta. ‘Simplesmente foi embora’.
Do lado de fora, a chuva tinha parado, havia apenas uma névoa no ar, então virei a esquina e
caminhei ao longo da rua onde ficava o prédio de tijolos. É uma rua com árvores que no verão fazem
padrões legais na calçada; mas agora as folhas estavam amareladas e na maior parte caídas, e a
chuva as tornara escorregadias, derrapavam sob os pés” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 10).
443
“EU ESTAVA MORANDO NA casa há cerca de uma semana quando notei que a caixa de correio
pertencente ao Apt. 2 tinha um cartão curioso, fixado no identificador de nomes. Impresso, em estilo
formal Cartier, dizia: Miss Holiday Golightly; e, embaixo, no canto, Viajando. Isso me perseguiu como
uma música: Miss Holiday Golightly, Viajando” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 11, grifos do autor).
444
“uma jovem magra e franca de 18 anos chamada Holly Golightly. E ela de fato vai – de homem
para homem e de lugar para lugar – levemente.” (WASSON. Fifth Avenue, 5 A.M., p. 62).
200
“mulher fácil”.
Em especial, na transposição midiática que ocorre do livro ao filme, com
intenção de evidenciar os aspectos de mudança que ocultam ou amplificam as
fantasmagorias sociais, além do figurino, há também a criação dos cenários, tanto
abstratos quanto materiais. O filme mantém muito desses aspectos indicados na
obra escrita. É válido notar que há um encadeamento de mudanças provocadas por
diversos agentes, dentre eles: o roteirista, os produtores do filme, o diretor, a PCA –
atuará tanto no roteiro quanto no filme pronto –, a atriz Audrey Hepburn – ao estudar
seu roteiro faz cortes sutis que acabam colaborando no delineamento da
personagem.
Nas cenas iniciais do filme, Holly Golightly é acordada pela personagem Paul.
Esta cena não está presente na narrativa de Capote. Ela está dormindo nua em uma
cama pequena, usando uma máscara e um tampão auricular, ambos bem peculiares.
É possível observar embaixo de sua cama de solteiro uma aparente bagunça. Ao
ouvir a campainha, ela se levanta vestindo uma camisa masculina de smoking, o
que por si já pode chocar o espectador atento. De quem seria aquela camisa? Seu
dono aparentemente não está mais lá.
É possível notar também o ambiente de seu apartamento, que, como indicado
no livro de Capote, dava a impressão de estar em meio a uma mudança, “you
expected to smell at wet paint. Suitcases and unpacked crates were the only
furniture. The crates served as tables”.445 Em um trecho o narrador diz: “One could
see that Holly had a laundry problem; the room was strewn, like a girl’s
gymnasium”446 (Figura 21).
445
“você espera encontrar cheiro de tinta fresco. Malas e caixas fechadas eram a única mobília. As
caixas serviam como mesas” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 29).
446
CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 52.
201
Figura 21 – Holly se levantando para atender a porta, vestindo uma camisa
masculina de smoking e usando máscara e protetor auricular
202
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
O quarto de Holly descrito no livro tem uma cama mais sofisticada do que a
escolhida no filme, o que funciona como um elemento que atenua a exposição da
personagem como prostituta, como veremos mais à frente, imagem bastante
controlada pelos produtores para a aprovação do filme na PCA. O cenário descrito
por Capote é ampliado no filme por meio da visualidade dos objetos, que trazem
sentidos implícitos, como o sofá com formato de (meia) banheira, que é o único
móvel colorido, com estofamento roxo e almofadas pink, destacando frente aos
203
outros objetos, ao mesmo tempo que também os destaca. Ressalta o aspecto de um
local que não é um lar doméstico, mas sim um local de trânsito, de passagem. Esse
aspecto traz associações ao longo da narrativa, agregando sentido ao modo de vida
da personagem.
Para um período de muita censura, é surpreendente que Holly esteja vestindo
uma camisa masculina – com abotoamento traseiro – e permaneça assim diante do
estranho que bate à sua porta. Mas há elementos que equilibram a carga simbólica
da cena, como o fato de que ela não mostra um corpo feminino sexy, com curvas e
decotes, de acordo com o estereótipo da época. A aparição vista por Paul no
entreabrir da porta é a de uma garota descabelada usando uma máscara que ela
não tira – podendo ser compreendida em seu sentido literal, de objeto que mascara,
que camufla – e ainda naquele lusco-fusco do acordar, ainda tentando voltar a
dormir. São tantos elementos simbólicos ambíguos presentes nessa cena que fica
relamente difícil para o espectador afirmar que Holly é uma prostituta. A aparência
pode suscitar enganos e também pode ser manipulada de forma a causar esses
enganos em favor de uma ideia.
Paul pergunta se ela acabou de se mudar, obviamente pelo aspecto da sala,
mas ela responde que já está lá há um ano. O diálogo que se segue é um tanto
estranho, pois há uma mistura de um trecho do livro em que Holly fala de sua
relação com a joalheria Tiffany’s, local aonde vai quando se sente “angst”,447 com
essa cena que não existia na obra original, na qual Paul a desperta em seu
apartamento já no meio da manhã, evidenciando que, no horário em que todos estão
acordados, ela dorme. A decisão da produção do filme (ou do roteirista) em deslocar
esse diálogo para essa cena torna a conversa mais vaporosa. O assunto é pesado,
pois Holly fala de uma tristeza que não é a melancolia apenas, como já foi
mencionado, mas na cena do filme a cena se torna quase engraçada deixando a
personagem levemente fútil. O roteiro do filme manteve da narrativa capotiana o
sentimento de solidão e as questões existencialistas de Holly, mas utiliza elementos
extras para ressignificar alguns aspectos por meio da ambiguidade.
A publicidade da Paramount procurou ressaltar nas imagens de divulgação os
aspectos que julgou mais definidores da personagem. Uma das imagens traz Holly
sentada sobre várias caixas de madeira, um violão ao fundo, tomando champanhe
447
A expressão é analisada na página 97, segundo capítulo desta tese, nota 248.
204
com seu gato por perto (Figura 22).
Figura 22 – Audrey Hepburn em Breakfast at Tiffany’s, 1961. Foto usada para divulgação do
filme
Fonte: Bison Archive photographs collected by Marc Wanamaker. Photographer Bud Fraker.
Disponível em:. Acesso em: 15 mar. 2019.
205
De certa forma, essa dinâmica da cena parece cumprir uma função
comunicativa importante para o filme, uma comédia romântica que tem como
estratégia cativar o público por meio de cenas tristes, românticas e engraçadas. O
aspecto cômico do filme permite a inserção de várias informações que poderiam não
passar pela censura. Até mesmo algumas falas de Holly Golightly, ditas por Audrey
Hepburn (e não por Marilyn Monroe, por exemplo), têm um sentido conotativo
favorável à ambiguidade e à fluidez necessárias para que o espectador consiga
delinear a personagem.
Na cena descrita acima, no filme, Holly vai se arrumar para a visita à Sally
Tomato na prisão Sing Sing. 449 Partes do roteiro do filme trabalhado pela atriz
Audrey Hepburn,450 disponível online, indicam modificações efetuadas pela atriz que
permitem perceber ajustes na fala da personagem, interferindo na criação de suas
características psicológicas, por meio de detalhes de sua descrição e vestuário e de
suas falas. Na cena do filme, Holly está dentro do banheiro se vestindo e a câmera
mostra apenas o detalhe da atriz fechando o zíper lateral do vestido, quando um
pequeno pedaço do sutiã aparece. Hepburn modifica detalhes do roteiro:
p.15-16: where Holly asks Paul to help find her shoes for her visit to
Sing Sing, Hepburn has amended Brown aligátor [shoes] to Black,
and deleted the lines And if you come across a black brassiere I can
use that too…and garter-belt, garter-belt, garter-belt, garter-belt… I
think maybe it’s hanging in the bathroom…would you mind…”451
449
Cena comentada sob outro aspecto no segundo capítulo, página 79.
450
“Audrey Hepburn’s working script for the 1961 Paramount production Breakfast at Tiffany’s, dated 3
August, 1960, the script bound with two brass brads and comprising 140 pages of mimeographed
typescript including deleted scenes, with 53 pages printed on yellow and 28 on blue paper
representing changes to the script with varying dates through to 21 September 1960, the majority of
pages with upper right corner either snipped, torn or folded down when completed, the parts for the
character of Holly Golightly marked in Hepburn's signature turquoise ink, with words underlined in blue
ballpoint pen and pencil for emphasis, passages or directions crossed out, and approximately 20
pages annotated in Hepburn's hand with copied out lines, minor amendments and notes”.Tradução: “O
roteiro de trabalho de Audrey Hepburn para a produção de 1961 da Paramount,Breakfast at Tiffany’s,
datado de 3 de agosto de 1960, o roteiro com dois grampos de latão e compreendendo 140 páginas
de texto datilografado, incluindo cenas deletadas, com 53 páginas impressas em amarelo e 28 em
papel azul, representando alterações para o roteiro com datas variadas até 21 de setembro de 1960,
a maioria das páginas com canto superior direito recortadas, rasgadas ou dobradas quando
concluídas, as partes para apersonagem de Holly Golightly marcadas na assinatura tinta turquesa de
Hepburn, com palavras sublinhadas em caneta esferográfica azul e lápis para ênfase, passagens ou
direções riscadas, e aproximadamente 20 páginas anotadas a mão por Hepburn com linhas copiadas,
emendas menores e notas” (CHRISTIES. Audrey Hepburn: The Personal Collection: Breakfast at
Tiffany’s, 1961. 2017).
451
“p.15-16: onde Holly pede a Paul que ajude a encontrar os sapatos dela para a visita a SingSing,
Hepburn corrigiu jacaré marrom [sapatos] para preto e apagou as falas E se você encontrar um sutiã
preto, eu posso usar isso também … E cinta-liga, cinta-liga, cinta-liga, cinta-liga… Acho que talvez
206
De certa forma, a atriz vai conferindo sutileza à cena, avaliando o que convém
ser mostrando, ocultando detalhes que poderiam deixar muito evidente uma relação
íntima entre as personagens que acabaram de se conhecer. Ela torna a personagem
mais sutil, mas mantém sua personalidade descontraída. Seus estudos demonstram
uma forte tendência a criar uma narrativa sensata e que possa ser partilhável com o
público do período, manipulando assim sua condição de ser lida (Figura 23).
Figura 23 – Roteiro usado por Audrey Hepburn para estudar o filme Breakfast at
Tiffany’s
Fonte: CHRISTIES. Audrey Hepburn: The Personal Collection.
A PCA aceitou o filme Breakfast at Tiffany’s com ressalvas, mesmo com todos
os cuidados que o roteirista e os produtores tiveram para a criação do roteiro, ainda
em fase de aprovação. Em correspondência de três páginas enviada ao Sr. Luigi
Luraschi, executivo vitalício da Paramount Pictures, chefe do Departamento de
Censura Doméstica e Estrangeira do estúdio, no dia 17 de agosto de 1960, há a
confirmação de aceitação do roteiro, que ocorrerá mediante mudanças necessárias
para atender ao Código de Produção.
Sr. Luraschi foi lembrado de acordos firmados na reunião, como a explicação
que Holly deveria dar sobre seu casamento com Doc, dizendo que nunca foi um
esteja pendurada no banheiro… você se importaria…” (CHRISTIES. Audrey Hepburn: The Personal
Collection, grifos do autor).
207
casamento de verdade e havia sido anulado quando ela o deixou. Na narrativa de
Capote fica claro que não houve o divórcio: “DIVORCE HIM? OF COURSE I never
divorced him. I was only fourteen, for God’s sake. It couldn’t have been legal”.452 Na
narrativa, Holly era menor de idade e não se considerava legalmente casada, apesar
de ser. No segundo rascunho do roteiro original de 22 de junho de 1960, escrito por
Georg Axelrod, o trecho é quase igual, apenas com duas pequenas alterações: no
lugar de “God”, no roteiro, aparece “Pete”; a palavra “possibly” foi incluída: “It
couldn’t possibly have been legal”.453 Mesmo com a indicação para fazer a correção,
os produtores conservam o trecho e o reenviam à PCA (Figura 24).
Figura 24 – Excerto do roteiro do filme Breakfast at Tiffany’s, segundo rascunho
Fonte: AXELROD. Breakfast at Tiffany’s: Second draft screenplay, p. 65.
Na correspondência do PCA foi ressaltado que, em reunião, foi discutido o
cuidado necessário para suprimir a quantidade de cenas nas quais Holly está sem
452
“DIVORCIAR DELE? CLARO que nunca me divorciei dele. Eu tinha apenas 14, pelo amor de
Deus. Não poderia ter sido legal” (CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 72).
453
“Não é possível que isso pudesse ter sido legal” (AXELROD, George. Breakfast at Tiffany’s:
Second draft screenplay. 22 jun. 1960).
208
roupas ou seminua. Também foi indicado o que Holly deveria usar na cena descrita
anteriormente, em que ela aparece com a camisa masculina: ela deveria usar uma
combinação inteira no lugar de uma anágua e sutiã. O uso da camisa de smoking,
como foi indicado, traz um componente ambíguo e mais simbólico do que uma
combinação inteira, por meio de seu sugestionamento implícito e não do óbvio
(Figura 25).
209
Figura 25 – Correspondência da PCA enviada à Paramount como resposta ao
roteiro apresentado para aprovação
Fonte: Margaret Herrick Library, Breakfast at Tiffany's, 1961, p. 1.
Em indicação de alteração na página 24 e subsequentes do roteiro, a PCA
analisa a descrição do relacionamento entre Paul e Mrs. Falenson como
“inaceitavelmente contundente” e indica os detalhes a serem alterados. Note-se que
no roteiro de Axelrod a personagem Mrs. Falenson, a decoradora rica que sustenta
Paul, é nomeada como personagem “2E” e na correspondência também (Figura 25).
210
No roteiro do filme, esta personagem foi inserida como uma estratégia do
roteirista. O narrador não poderia ser homossexual, então ele seria um garoto de
programa, como Holly. Seria ainda um escritor, como Truman Capote criou, mas
teria alguém que o sustentasse durante o tempo em que estivesse escrevendo um
romance. A página 24 e subsequentes do roteiro trazem um diálogo que define bem
a personagem Paul e a diferencia muito da personagem criada por Capote. São
indicados para corte os sorrisos que poderiam insinuar sexo, pelo fato de o casal
estar no quarto, próximo de uma cama, demonstrações de carinho por parte de Mrs.
Falenson para com Paul adormecido na cama. Todo o diálogo da página 24 foi
cortado (Figura 25).
Há toda uma estratégia de adaptação para que haja um par romântico e para
que a história se torne maior, com um ápice e um final feliz, e que tudo isso seja
aprovado pelos censores.
211
Figura 26 – Excerto do roteiro do filme Breakfast at Tiffany’s, segundo rascunho
Fonte: AXELROD. Breakfast at Tiffany’s: Second draft screenplay, p. 24.
Também foi indicado que na página 26 do roteiro a frase “Please, elimineted
Holly’s line: ‘Three hundred? She is very generous... Is that by the hour?’”454 fosse
454
“Por favor, eliminar a fala de Holly: "Trezentos? Ela é muito generosa... Isso é por hora?” (Margaret
Herrick Library. Breakfast at Tiffany’s, 1961, p. 2).
212
cortada, mas, posteriormente, foi mantida, pois a cena gravada está inserida no filme,
como pode ser observado nas análises desse trecho do filme nesta seção.
A PCA reforça o acordo em não haver indícios de uma relação sexual entre
Holly e Paul, bem como adverte que já haviam discutido sobre o uso de palavrões e
a eliminação da palavra inferno quando não fosse absolutamente indispensável. Até
mesmo a escolha do ambiente íntimo para determinadas cenas, como o
apartamento de Paul, foram motivo de censura. Certas situações e conversas só
deveriam acontecer em público para que não ficasse implícito que poderia terminar
em sexo (Figura 27).
213
Figura 27 – Correspondência da PCA enviada à Paramount como resposta ao
roteiro apresentado para aprovação. Página 2
Fonte: Margaret Herrick Library. Breakfast at Tiffany's, 1961, p. 2.
Algumas anotações na correspondência são surpreendentes, principalmente
numa avaliação feita nos dias atuais. Note-se que os produtores do filme, Jurow e
214
Shepherd, participavam ativamente dessas reuniões e arriscavam-se mantendo
cenas que haviam sido solicitadas para exclusão, reenviando-as à PCA. Há várias
cartas, com intervalos de poucos dias entre si, num tempo em que não havia e-mail
e a comunicação funcionava por mensageiro ou por correio, demonstrando a ativa
atuação em busca de aprovação do roteiro. Os acordos se baseavam em um jogo
de forças feito por detalhes, mas que quando reunidos por meio da montagem em
um filme vão criar sentidos diversos.
Entre os acordos feitos em reuniões, há sinalização de que a cena de
striptease não seria mostrada: “Page 72: As we agreed, the striptease dancer would
not be shown” 455 (Figura 27). Mesmo com esse acordo, a cena foi gravada e
aparece na versão final do filme. Não mostra os seios da stripper, mas pode ser
considerada sensual e provocativa para o período.
A cena acontece logo após Holly sair da rodoviária com Paul, ao deixar seu
marido Doc voltar para o Texas. Ela diz que é cedo para ir à Tiffany’s, seu lugar
preferido quando sente “angst”, e pede a Paul que lhe pague um drink. No segundo
rascunho do roteiro original de 22 de junho de 1960, escrito por Georg Axelrod (note-
se que a correspondência analisada da PCA data de 17 de agosto de 1960), há
especificações que indicam que eles foram a um “honk-tonk bar”.456 Após beber
alguns drinks, eles saem do bar e Holly entra em outro, um “strip joint”,457 apesar de
Paul insistir para que ela não entrasse.
No roteiro, há uma fala da personagem Holly que foi retirada do filme, na qual
Holly se compara à dançarina, dizendo que ela faria melhor. No processo
comparativo entre o roteiro e o filme, percebe-se que há semelhanças, mas a cena é
mais ousada do que a filmada. Um dos fatores que atenuam a cena é a atuação de
Audrey Hepburn, a maneira com que são realizadas as suas ações em cena e o seu
figurino muito discreto, além de que os dois estão embriagados (Figura 28).
455
“Página 72: Como nós concordamos, a dançarina de striptease não seria mostrada” (Margaret
Herrick Library. Breakfast at Tiffany’s, 1961,p.2).
456
Um bar típico americano, frequentado pela classe trabalhadora, onde aconteciam shows country
ou “picantes” com prostitutas (Cf. URBAN Dictionary. Disponível em:
. Acesso em: 8 nov. 2018).
457
Um bar onde ocorrem streaptease, shows nos quais mulheres dançavam enquanto tiravam suas
roupas (Cf. URBAN Dictionary. Disponível em:
. Acesso em: 8 nov. 2018).
215
Figura 28 – Excerto do roteiro do filme Breakfast at Tiffany’s, segundo rascunho
Fonte: AXELROD. Breakfast at Tiffany’s: Second draft screenplay, p. 67.
Esta sequência de cenas não existe na história narrada por Capote. O escritor
leva as duas personagens ao bar do Joe Bell, nas proximidades de onde moram,
após o episódio da despedida de Doc na rodoviária. No filme, a cena criada é breve,
com forte apelo sensual. A stripper veste uma capa dupla face, vermelho e branco.
Ela vai mostrando o corpo que aparece vindo das sombras do palco, até o holofote.
A câmera que mostra Holly e Fred, ambos com as mãos no queixo, demonstrando
certo tédio e embriaguez, acompanha também a stripper ao fundo, por meio da
imagem refletida em um espelho. A banda que toca a música sensual e ritmada está
semioculta ao fundo, por uma cortina transparente (Figura 29).
Vermelho é a cor que marca sua chegada e, logo em seguida, ela fica com o
vestido em modelagem “sereia” muito justo. Esse modelo de vestido, ajustado ao
corpo e aberto do joelho para baixo, representa a silhueta marcante das décadas de
1930 e1940 das estrelas de cinema sensuais e provocantes.
216
Figura 29 – Cenas do striptease na boate
217
218
219
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
Os contrastes são evidentes na criação da cena, lembrando os cenários
criados para a fantasmagoria mencionados no primeiro capítulo desta tese: a
stripper é uma aparição fantasmagórica que surge da escuridão entrando na luz
circular do holofote; antes de surgir como aparição, a stripper está metamorfoseada
em uma borboleta, com as asas formadas por sua capa aberta; sua entrada é
impactante pela influência do contraste entre o vermelho e o branco de seu figurino,
que vai sendo retirado aos poucos; o mostrar e esconder como jogo da cena, na
mulher que se despe, é mostrado também pelo espelho; a banda por detrás da
cortina transparente forma silhuetas sugestivas; alguns espectadores estão
paralisados observando seus movimentos. Há toda uma sonoridade influente na
cena, pois os movimentos da stripper são sincronizados com a música de fundo. No
ápice de seu show, a stripper olha para alguém da plateia com uma expressão de
sedução, aparentemente para Paul que está logo a sua frente, ou Holly, que está ao
seu lado.
Apesar das recomendações da PCA em relação à cena, ela foi gravada com a
intenção de que fosse mostrada para o público europeu:
In late-Dec 1960, striptease dancer “Miss Beverly Hills,” who played
the “Nightclub dancer,” was called back to set to perform additional
striptease moves in a nightclub sequence. The 27 Dec1960 DV
explained that Blake Edwards planned to include the extended
striptease sequence in an alternate version of the film for European
220
release.458
A questão da homossexualidade também é controlada pelo PCA. Há
indicação de não haver tentativa em dar maneirismos de homossexual à
personagem Mr. Smith, que foi eliminada do roteiro posteriormente.
A PCA sempre termina suas correspondências com a frase “You understand,
of course, that our final judgment will be based on the finished Picture”,459 deixando
claro que o filme também sofrerá cortes.
Figura 30 – Correspondência do PCA enviada à Paramount como resposta ao
roteiro apresentado para aprovação
Fonte: Margaret Herrick Library. Breakfast at Tiffany's, 1961, p. 3
Para o filme, o momento inicial no qual Holly é mostrada em sua intimidade,
em seu apartamento, vários indícios de sua personalidade criada por Truman
Capote são delineados por meio de objetos, falas, cenários, figurinos, trilha sonora.
Esses elementos são orquestrados para comunicar ao espectador a identidade da
personagem.
458
“No final de dezembro de 1960, a dançarina de striptease ‘Miss Beverly Hills’, que interpretou a
‘dançarina do clube noturno’, foi chamada de volta para o set para realizar movimentos adicionais de
striptease em uma sequência de boate. O DV de 27 de dezembro de 1960 explicou que Blake
Edwards planejava incluir a sequência estendida de striptease em uma versão alternativa do filme
para o lançamento europeu” (AMERICAN Film Institute. Catalog of feature films the first 100 years
1893-1993. Disponível em: . Acesso em: 9 nov.
2018.
459
“Você entende, é claro, que nosso julgamento final será baseado na imagem final” (Margaret
Herrick Library. Breakfast at Tiffany’s, 1961).
221
Na visita à Sing Sing, no filme, Holly vai acompanhada de Paul,
diferentemente do livro, quando ela vai sempre sozinha. Nessa visita, algumas falas
são criadas para o roteiro do filme quando Paul e Sally Tomato conversam sobre um
livro que poderá ser escrito com a ajuda de dados que Holly armazena, para que
Sally a ajude com a contabilidade. Ela anota o que ganha e o que gasta em um
caderno e leva para que ele a oriente. Ele pediu para que fechasse a conta bancária
e tentasse guardar algum dinheiro. Sally diz: “Um dia, Sr. Fred, você vai transformar
tudo isso em um livro. Tudo está aqui, só falta preencher os detalhes”. Holly
comenta que seria um livro engraçado, mas Sally discorda, dizendo que seria um
livro que poderia “quebrar o coração” e citando trechos das anotações: as gorjetas
dos homens com quem Holly saía, dinheiro para consertar o vestido preto de cetim,
dinheiro para comprar a comida do gato que não tem nome. Holly só conhece “rats”
e, provavelmente, “Fred”, que é Paul, é a exceção.
Na cena seguinte, Paul está em seu apartamento, a câmera começa a filmar
por baixo da mesa, enfatizando os papéis amassados ao escrever. A câmera faz um
movimento ascendente e depois corta para a máquina de escrever, ressaltando o
que ele datilografa, definindo Holly como uma garota adorável e muito assustada
(ver sequência de cenas na Figura 31).
Figura 31 – Paul Varjak escrevendo seu romance
222
223
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards 1961.
Para dar maior ênfase a essas características de Holly, ao fundo Paul ouve
sua voz cantando a canção tema criada especialmente para o filme, “Moon river”
(Quadro 3), enquanto ela toca o seu violão. Ele abre a janela e fica observando-a,
até que ela termina de cantar e o vê.
224
Quadro 3 – Letra da canção “Moon river”, de Henry Mancini
“Moon river” “Rio da Lua”
Moon river, Wider than a mile
I'm crossing’ you In style some day
Old dream-maker, You heart-breaker
Wherever you're goin', I'm goin' your way
Two drifters, Off to see the world
There's such A lot of world to see
We're after the same Rainbow's end
Waitin' round the bend
My huckleberry friend,
Moon river And me
Rio da Lua, Mais largo do que uma milha
Eu o atravessarei com elegância um dia
Velho fabricante de sonhos, Você destrói
corações
Aonde quer que você for, Eu seguirei o seu
caminho
Dois andarilhos, Indo por aí para ver o mundo
Há tanto No mundo pra se ver
Nós procuramos a mesma coisa O final do arco
íris
Esperando logo depois da curva
Meu doce e aventureiro amigo
Rio da Lua E eu
Fonte: Adaptado de Margaret Herrick Library. Breakfast at Tiffany's, 1961. Tradução da autora.
Essa cena do filme demonstra o envolvimento romântico entre as
personagens que é exaltado por meio da canção. De forma diferente e com objetivos
diferentes, no livro, as músicas cantadas por Holly têm uma melodia caipira, músicas
que denunciavam sua origem, o que é um grande mistério até certo momento da
narrativa. Ela vem do interior, então cantava músicas que traziam palavras
sentimentais e ásperas ao mesmo tempo, que lembravam pinheiros e pradarias. Não
há um par romântico no livro, então a ênfase é dada ao sentimento de angústia e
solidão de Holly: “não quero dormir, não quero morrer, só quero ir viajar pelas
pastagens do céu”.460
A canção “Moon river” passou pela PCA, tendo sua letra aprovada (Figura 32).
A música também fala de viajantes, como Holly Golightly se define para os visitantes
que chegam à sua porta: “Miss Holiday Golightly, Traveling”. A criação de “Moon
river”, no filme, mantém o traço sentimental e nostálgico da narrativa escrita, mas
amplia para a procura de algo na companhia de alguém, em busca de um arco-íris
no final do qual há um tesouro. “Rio de lua” seria um lugar de passagem, um
“fabricador de sonhos”. Tudo isso estabelece conexões com a narrativa e com a
personagem Holly para que a identifiquemos como uma figura sonhadora, mas
fugidia, que não se prende a lugares e nem a pessoas, que não as denomina para
não estabelecer laços pessoais, mas que procura por um local que seja seu.
As relações das notas da canção “Moon river” demonstram haver um “jogo de
460
CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 16-17, grifos do autor.
225
forças”, denominado “Ciclo de Quintas”461, que funciona com “um movimento circular
e infinito”, assimilado pelos ouvidos de forma “natural”462:
Tais intervalos formam relações harmoniosas entre as notas, que
não seriam fruto de um gosto adquirido, mas de uma resposta
espontânea do ouvido a propriedades físicas do som. O ouvido sente
de forma intuitiva que a relação entre dois sons (simultâneos ou
consecutivos) separados por um intervalo de quinta é harmoniosa.463
O movimento é “irresistível e deslizante”:
Explora-se, assim, o jogo de forças que se desdobra em efeito
cascata até retornar ao centro estável e conclusivo da tônica – a nota
que polariza e fornece a definição do posicionamento e hierarquia de
todas as outras. Mas uma vez que chegamos à tônica podemos
recomeçar novamente o circuito. Não é um caminho reto, mas
circular, se afastando e ao mesmo tempo nos levando eternamente
na direção da tônica (nosso pouso, nossa casa). A este campo de
forças que impulsionam um movimento circular e infinito damos o
nome de Ciclo de Quintas.464
O “Ciclo de Quintas” de “Moon river” começa em “someday’” e funciona como um
“carrossel” que leva o ouvinte a caminhos desconhecidos e instáveis, mas o traz de
volta:
Um único movimento harmônico e o que era para ser apenas uma
canção agradável se torna um clássico eterno. O acorde que aparece
(VIIm7b5), seguido por uma dominante secundária no terceiro grau
(III7), traz uma ambiguidade para a sequência, colocando a
progressão em relação com duas tônicas (o I e o relativo menor,
VIm), criando assim uma indefinição tonal, um enfraquecimento do
nosso senso de direção. Cria, por assim dizer, um momento de
relativa indecisão no seguro Ciclo de Quintas. Trata-se de um
“pacote” harmônico que sugere ao ouvinte um sentimento genuíno de
movimento que se distancia da tonalidade original, e que é, portanto,
receptivo a tratamentos líricos que reflitam esse mesmo sentido.465
A música possui uma relação de sentido poético em sua estrutura que pode
ser associada ao sentido tanto da narrativa de Capote quanto ao filme de Edwards.
461
Sugiro que ouça a música para que possa compreender a análise.
462
SOBRE “MOON RIVER” e “Yesterday”: Um único movimento harmônico e o que era para ser
apenas uma canção agradável se torna um clássico eterno. Questões musicais. Revista Piauí. 14 out.
2015. Disponível em: Acesso em: 30
jun. 2019.
463
SOBRE “MOON RIVER” e “Yesterday”.
464
SOBRE “MOON RIVER” e “Yesterday”.
465
SOBRE “MOON RIVER” e “Yesterday”.
226
Sua estrutura é circular: o livro começa pelo fim, pois Holly é apenas uma estátua
representativa de uma moça que desapareceu pelo mundo; o filme tem como
começo o livro, visto que as duas narrativas capotianas (tanto o livro Summer
crossing quanto o livro Breakfast at Tiffany’s) possuem personagens semelhantes e
são apontadas nesta tese como fontes originárias da criação do filme. Há uma
ambiguidade mantida em relação à Holly, sua trajetória como personagem na
narrativa é errática, ela não sabe para onde vai, desiste das coisas e diz estar em
busca de um lugar que seja seu. A ideia da estrutura da música, de movimento e de
pouso, um retorno à casa, de enfraquecimento do senso de direção, deixando
ambiguidades, está relacionada às fantasmagorias da personagem.
227
Figura 32 – Documento da PCA que aprova a música tema do filme Breakfast at
Tiffany’s
Fonte: Margaret Herrick Library. Breakfast at Tiffany's, 1961.
A análise da cena final do filme permite perceber as fantasmagorias sociais
observadas ao longo do processo comparativo estabelecido nesta tese. Após sua
prisão, acusada do envolvimento com Sally Tomato e a máfia, Holly pretende ir para
o Brasil, se casar com José, mas ele desiste do casamento, como no livro. Ela
228
insiste em pegar o avião e procurar homens ricos no Brasil. Paul pede que ela fique,
mas ela se recusa. Ele pede ao taxista para parar o carro, estendendo-lhe uma nota.
Descendo do carro sob a chuva, Paul diz:
– Sabe qual é o seu problema, Srta. Quem-quer-que-seja? Você é
medrosa. Não é corajosa. Tem medo de encarar a realidade e dizer
“a vida é assim”. As pessoas se apaixonam. As pessoas pertencem
umas às outras. É a única chance que têm de ser felizes. Você se
acha um espírito livre, uma criatura selvagem, e morre de medo de
que alguém a ponha em uma jaula. Bom, querida, você está em uma
jaula. Você mesma a construiu. E não faz fronteira ao oeste com
Tulip, Texas, nem a leste com a Somália. Está onde quer que vá.
Porque não importa para onde você corra, está sempre trombando
consigo mesma.466
Após sua fala, Paul retira o anel da Tiffany’s e joga em seu colo dizendo que
não o quer mais. Note-se que o diálogo não está no segundo roteiro de Axelrod,
portanto, foi introduzido depois. Holly sente as palavras de Paul e compreende que
sempre foge do amor, apesar de parecer procurá-lo, mas ao querer não se prender
a alguém também não se sente feliz.
A personagem foge do modelo de casamento da década de 1950, no qual a
mulher é forçada a se anular em função da relação. Nesse momento, uma das
“pautas do feminismo” era lutar por poder escolher seu destino. Aos homens tudo
era permitido; às mulheres, somente a casa e os filhos, as futilidades, os jantares e
chás beneficentes.
Poderia ser apenas mais um final feliz, mostrando a mulher que encontra seu
grande amor, mas há alguns significados extras que podem ser expostos. Para a
década de 1950, a grande maioria das mulheres deveria se casar, sem liberdades.
Seu destino já estava determinado pela sociedade por meio de regras sociais
estabelecidas. Não cumprir esse destino significava infringir regras e, como
conseqüência, a punição.
Em Como viver junto, Roland Barthes relaciona a palavra “regra” ao termo
“território” por meio de seu processo etimológico: “Rex: não o chefe, mas aquele que
determina os espaços consagrados (as cidades, os territórios), aquele que traça.
Rego < grego orégo = estender em linha reta (...). A partir do ponto que se ocupa,
466
Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards,1961.
229
traçar para a frente uma linha reta”.”467 Como exemplo, o autor cita a autoimposição
de Robinson Crusoé a uma organização que o permite viver a vida solitária por
tempo indeterminado, lembrando também a “noção etológica de território”. 468 A
associação de “regra” a “costume” é feita pela intermediação da palavra “território”:
“espaço apropriado, defendido contra intrusões” no qual o indivíduo é dono de sua
casa”, mas que também está “ligado a funções recorrentes – em termos humanos –
a hábitos.”469
Percorrendo vários outros sentidos, Barthes sistematiza: “Pode-se, com efeito,
considerar metonimicamente todo sistema de regras como um território: quer
temporal (timing), quer gestual (conduta).” 470 É feita uma oposição que permite
distinguir “regra” de “lei” quando distinguida a origem da regra como “sistema de
hábitos”.
Mas a regra também pode servir como um “instrumento de dominação”: “a
regra-costume vai orientar-se para a regra-lei (adjunção de um sistema repressivo)
por meio de uma noção de contrato. (...) Assim que a regra é incluída num contrato –
infração – desobediência – punição = o ciclo mau se estabelece.” 471 Dessa forma,
hábitos se tornam regras que têm peso de lei:
Sob a regra, a lei volta com força irresistível. Diríamos que existe, no
sujeito humano, algo como uma pulsão de lei: pulsão paradoxal,
porque seria uma pulsão ideológica, na medida em que a lei é o
avesso ideológico do poder, sua vestimenta:
- O Senhor das Moscas (Golding), p. 49: logo que as crianças
descobrem que serão seus próprios mestres na ilha, passagem
instantânea do estado de natureza ao estado de regulamento,
portanto de lei. Jack: “Teremos regulamentos, exclamou ele com
entusismo. Montes de regulamentos. E aqueles que
desobedecerem...”472
As regras criadas pelas sociedades têm peso de lei na medida em que podem
determinar espaços territoriais permitidos em oposição a outros proibidos. “Toda
regra contém um germe do regulamento”: uma “imposição social do poder”, e todo
467
BENVENISTE, Émile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes, t. I, Économie, parenté,
société, t. II, Pouvoir, droit, religion, Paris, Éd. de Minuit, 1969 apud BARTHES, Roland. Como viver
junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins fontes, 2013, p. 228.
468
BARTHES. Como viver junto, p. 229.
469
BARTHES. Como viver junto, p. 229.
470
BARTHES. Como viver junto, p. 231.
471
BARTHES. Como viver junto, p. 233.
472
BARTHES. Como viver junto, p. 233.
230
“costume é uma forma disfarçada de lei (por uma espécie de pirueta ideológica).”473
As pessoas são punidas por não cumprirem regras definidas pela sociedade.
Retornando ao “final feliz” do filme Breakfast at Tiffany’s, é possível inferir que essa
foi uma escolha ideológica por manter as espectadoras desejosas do encontro com
o par ideal, mantendo o ideal no imaginário feminino do príncipe encantado que vem
salvar a mocinha em apuros (mesmo que tenham “se divertido” antes do casamento).
Como foi mostrado nas análises desta tese, no cinema americano do American
Dream, a personagem que saísse dos padrões sofreria as consequências no final da
história: seria punida.
Figura 33 – A cena final do filme, na qual Paul se declara e Holly desiste da fuga
.
Fonte: Breakfast at Tiffany’s, Blake Edwards ,1961.
Uma personagem como Holly Golightly é um sintoma de mudança social.
Grandes mudanças sociais, ocasionadas principalmente no período das duas
grandes guerras, se manifestaram visivelmente na juventude de meados do século
XX. Viver a vida que os pais viveram não era mais o destino desejado pela
juventude. A liberdade de escolha deveria ser uma premissa, mesmo sob pena de
quebrar regras sociais. Holly Golightly foi uma das primeiras personagens a
demonstrar frente às telas do cinema – sem ser punida – o desejo de liberdade, de
não pertencer a lugar nenhum, e nem a ninguém.
473
BARTHES. Como viver junto, p. 234-235.
231
Na ideologia do filme a história de Holly é mais romântica do que no livro.
Capote procurou demonstrar a ambiguidade da personagem e sua fantasmagórica
semelhança com mulheres reais de sua época.
Mesmo com várias artimanhas de censura, há no filme, bem como no livro,
figuras femininas representativas de várias outras do período e que serviram de
modelo para outras que vieram depois.
232
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo de algumas reflexões fundamentais em torno dos conceitos de
fantasmagoria, modernidade e liberdade, esta tese analisou aspectos das obras
Summer Crossing e Breakfast at Tiffany’s, de Truman Capote, e do roteiro e da
produção do filme homônimo Breakfast at Tiffany’s, de Blake Edwards, como
portadores e produtores de fantasmagorias.
Desde o século XVII, a fantasmagoria tornou-se um fenômeno sedutor para
artistas, filósofos, escritores e pessoas de diversas áreas do conhecimento,
justamente por seu caráter enigmático e ambíguo, que permite unir a técnica
(pensamento científico) e a magia (pensamento mítico), servindo como um subsídio
para mediar as relações humanas com suas questões essenciais. A fantasmagoria
não é apreensível completamente e, por isso, está associada nesta tese à ideia de
“aparição”, citada em Walter Benjamin e exemplificada por Pirandello. Neste último,
não há menção à palavra fantasmagoria, mas seus exemplos são característicos do
fenômeno da fantasmagoria no que se refere à transformação do corpo do ator em
uma “aparição fugidia”.
Diferentemente dos aparelhos ópticos criados no passado, como a “lanterna
mágica”, o “fantascópio”, o “panorama”, nos quais a curiosidade estava justamente
na aparelhagem que encantava o público, a fantasmagoria mantinha o mistério por
meio de uma organização espacial (objetos, iluminação, cenografia) capaz de criar
ilusões através das imagens produzidas. Para o surgimento da fantasmagoria, é
necessário um ambiente controlado, onde o espectador seja condicionado a ver
apenas aquilo que a “iluminação baixa” permite, à medida que figuras cobertas por
cortinas continuavam ali.
Essa estrutura de funcionamento da fantasmagoria pode ser aplicada a obras
artísticas, tanto literárias quanto cinematográficas, como as que são analisadas
nesta tese, por possuir uma função semelhante à do mito: de compreensão da
realidade por meio da experiência do sensível. Como obras artísticas portadoras de
diversas estéticas de projeção, o livro e o filme são capazes de produzir e transmitir
fantasmagorias por meio das formas visuais que são capazes de criar.
A vida social compartilhada nos grandes centros urbanos durante os períodos
das duas grandes guerras até o lançamento do filme Breakfast at Tiffany’s, em 1961,
233
produziu uma grande fantasmagoria coletiva: o American Dream, o sonho americano
de realização pessoal gerado como efeito do capitalismo, das conotações
socioculturais do capital.
A produção das obras de Truman Capote aconteceu nesse período, e as
consequências dessa fantasmagoria podem ser observadas por meio da análise de
suas personagens. A liberdade e sua falta são um tema de base nas narrativas
capotianas, suas personagens desejam criar um espaço próprio em seu meio social
e lutam por isso até as últimas consequências. Não permanecem resignadas ao que
a sociedade lhes possibilita, às figuras sociais que lhes são impostas, ao ambiente
controlado, mas elas também não conseguem fugir totalmente desse controle.
A literatura e o cinema recriam ilusões que estão presentes na vida cotidiana.
Capote utilizou nas duas narrativas alguns aspectos comuns, como o cenário de
Nova Iorque e das grandes guerras como “pano de fundo” e os ritos de passagem
estabelecidos pela sociedade, que são encarados como “lugar de trânsito”, mas
também como “fronteira” que indica limitação. Esses aspectos, na perspectiva
capotiana, levam à transgressão das amarrações sociais transmitidas pelas
gerações, dos costumes da sociedade, evidenciando os conflitos entre a liberdade
individual de expressão e as pressões pela unificação de comportamentos de
controle sociais.
A obra Breakfast at Tiffany’s adaptada para o cinema trouxe novos sentidos,
mas sem perder completamente a ligação com sua origem literária, que no caso são
as duas obras capotianas: Summer crossing e Breakfast at Tiffany’s. A personagem
Holly Golightly já havia alcançado o público leitor das revistas de moda mesmo antes
da obra ser publicada em livro, além de já ser uma projeção fantasmagórica de uma
figura social: a prostituta. Breakfast at Tiffany’s recriou da vida cotidiana outras
figuras sociais, semelhante ao que a “literatura panoramática” fez com as “fisiologias”
ao expor “figuras sociais” presentes no cotidiano.
Quando Holly Golightly se materializou na figura da atriz Audrey Hepburn,
várias fantasmagorias foram acionadas, evidenciando a fantasmagoria como um
fenômeno tão “material quanto imaginário” por meio da exposição de toda uma
conjunção de regras para que o filme Breakfast at Tiffany’s pudesse ser produzido
na sociedade americana da década de 1960.
Holly Golightly é a representação da mercadoria “fetichizada” e está
234
impregnada de uma carga “aurática” criada pelo filme, pela moda, por sua
representatividade como figura social marginalizada. Na constituição da personagem
foi acionado o poder da moda em seus múltiplos sentidos, suas “sutilezas
metafísicas”, sua capacidade de colaborar na criação de tipos, mas também de
dissimular. A moda é um fenômeno social difundido no capitalismo e está
circunscrito no âmbito das sociabilidades e das figurações das sociedades e, por
isso, torna-se um elemento estético importante de observação sobre seu
funcionamento em uma obra fílmica.
O figurino do filme Breakfast at Tiffany’s desempenha uma função intelectual
evidenciada por meio de análises comparativas desta tese. Sua função é maior do
que “plástica e emocional” por sua relação fundamental com o gestus social da obra.
A moda funciona como fantasmagoria na figuração da personagem, por sua
capacidade de tipificar e ao mesmo tempo dissimular, usando dessa característica
ambígua para camuflar a projeção da prostituta numa obra cinematográfica nos anos
1960.
As teorias de Roland Barthes sobre a moda contribuem para fazer notar os
aspectos fantasmagóricos presentes na articulação entre pessoa, atriz e
personagem em Audrey Hepburn, destacando também a moda, o vestuário, o
figurino e o cenário como elementos estéticos geradores de fantasmagoria. A moda
como figurino e como arte no cinema foi capaz de modificar estruturas rígidas de
controle, justamente por sua capacidade de “ficcionalização do sujeito” ou
“autoficção”, demonstrando sua disposição em ser afetada pelas mudanças sociais e
de também de efetivar mudanças sociais.
Não houve intenção de definir a fantasmagoria (ou de engessá-la), mas de
mostrar seu funcionamento nas duas obras copotianas e na obra fílmica adaptada,
como compartilham traços identificados como fantasmagoria, mobilizados como
elementos estéticos que são reflexo de uma situação social de mudança de
paradigma.
235
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240
APÊNDICE 1 – TRADUÇÃO DOS EXCERTOS DO QUADRO 2, PÁGINA 156
1
“‘I see pieces of her all the time, a flat
little bottom, any skinny girl that walks
fast and straight’” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 9).
“’Eu vejo pedaços dela o tempo todo, um
traseirinho pequeno e chato, alguma
garota magrela que anda rápido e reta’”.
2
“She was still on the stairs, now she
reached the landing, and the ragbag
colors of her boy’s hair, tawny streaks,
strands of albino-blond and yellow,
caught the hall light. It was a warm
evening, nearly summer, and she wore a
slim cool black dress, black sandals, a
pearl choker. For all her chic thinness,
she had an almost breakfast-cereal air of
health, a soap and lemon cleanness, a
rough pink darkening in the cheeks. Her
mouth was large, her nose upturned. A
pair of dark glasses blotted out her eyes.
It was a face beyond childhood, yet this
side of belonging to a woman. I thought
her anywhere between sixteen and thirty;
as it turned out, she was shy two months
of her nineteenth birthday” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 12-13).
“Ela ainda estava na escada, agora
chegou ao patamar, e a miscelânea de
cores de seus cabelos de garoto com
listras castanho-claras, mechas loiro-
albino e amareladas, capturaram a luz
do corredor. Era uma noite quente,
quase de verão, e ela estava com um
vestido preto, leve e elegante, sandálias
pretas e gargantilha de pérolas. Apesar
da magreza sofisticada, tinha um ar de
saúde mantida à base de cereais no
café-da-manhã, limpeza feita com
sabonete e limão, um rosa rústico
esfumaçado nas bochechas. A boca era
larga, o nariz arrebitado. Um par de
óculos escuros escondia seus olhos. Era
um rosto para lá da infância, mas para
cá da mulher. Calculei que tivesse entre
dezesseis e trinta anos; como soube
depois, estava a dois meses de seu
décimo nono aniversário”.
3
“She was never without dark glasses,
she was always well groomed, there was
a consequential good taste in the
plainness of her clothes, the blues and
grays and lack of luster that made her,
herself, shine so. One might have
thought her a photographer’s model,
perhaps a young actress, except that it
was obvious, judging from her hours, she
hadn’t time to be either” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 14).
“Ela nunca estava sem óculos, estava
sempre bem-humorada, havia um bom
gosto coerente na simplicidade de suas
roupas, os azuis e cinzas e a falta de
brilho que faziam com que ela própria
brilhasse. Alguém poderia pensar que
ela fosse modelo fotográfico, talvez uma
jovem atriz, exceto pelo óbvio, julgando
pelos seus horários, ela não tinha tempo
para nada disso”.
4
“On the way home I noticed a cab-driver
crowd gathered in front of P. J. Clarke’s
saloon, apparently attracted there by a
happy group of whiskey-eyed Australian
army officers baritoning, “Waltzing
Matilda.” As they sang they took turns
“No caminho pra casa eu notei uma
multidão de taxistas diante do bar de P.
J. Clark, aparentemente atraídos por um
grupo de oficiais australianos de olhos
de uísque cantando ‘Waltzing Matilda’.
Enquanto cantavam, revezavam-se para
241
spin-dancing a girl over the cobbles
under the El; and the girl, Miss Golightly,
to be sure, floated round in their arms
light as a scarf” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 15).
rodopiar com uma moça no calçamento
logo abaixo dos trilhos do elevado do
metrô; e a moça, a Srta. Golightly, com
certeza, flutuava rodando em seus
braços leve como um lenço”.
5
“She loosened a gray flannel robe off her
shoulder to show me evidence of what
happens if a man bites” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 17).
“Ela soltou o roupão de flanela cinza
para baixo do ombro para me mostrar a
evidência do que acontece quando um
homem morde”.
6
“[…] ‘the kid’s fifteen. But stylish: she’s
okay, she comes across. Even when
she’s wearing glasses this thick; even
when she opens her mouth and you don’t
know if she’s a hillbilly or an Okie or
what. I still don’t. My guess, nobody’ll
ever know where she came from. She’s
such a goddamn liar, maybe she don’t
know herself any more. But it took us a
year to smooth out that accent. How we
did it finally, we gave her French lessons:
after she could imitate French, it wasn’t
so long she could imitate English. We
modeled her along the Margaret Sullavan
type, but she could pitch some curves of
her own’” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 31, grifos do autor).
"[…]" a garota tinha quinze. Mas era
estilosa: ela era ótima, vistosa. Mesmo
usando óculos dessa grossura; mesmo
quando ela abre a boca e você não sabe
se ela é uma caipira ou um Okie [nativa
de Oklahoma] ou o quê. Eu ainda não
sei. Meu palpite, ninguém saberá de
onde ela veio. Ela é tão, uma maldita
mentirosa, talvez nem ela se conheça
mais. Mas levamos um ano para
suavizar esse sotaque. Como fizemos
isso finalmente, nós lhe demos aulas de
francês: depois que ela imitava o
francês, não demorou muito para que ela
pudesse imitar o inglês. Nós a
modelamos pelo tipo de Margaret
Sullavan, mas ela poderia lançar
algumas curvas por si mesma'”.
7
“‘What scandals are you spreading,
O.J.?’ Holly splashed into the room, a
towel more or less wrapped round her
and her wet feet dripping footmarks on
the floor” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 33-34).
“’Que escândalos você está espalhando,
O.J.?’ Holly entrou no quarto, uma toalha
mais ou menos envolvida em torno dela
e seus pés molhados pingando pegadas
no chão”.
8
“She was on her knees poking under the
bed. After she’d found what she was
looking for, a pair of lizard shoes, she
had to search for a blouse, a belt, and it
was a subject to ponder, how, from such
wreckage, she evolved the eventual
effect: pampered, calmly immaculate, as
though she’d been attended by
Cleopatra’s maids” (CAPOTE. Breakfast
at Tiffany’s, p. 53).
“Ela estava de joelhos cutucando
debaixo da cama. Depois de encontrar o
que procurava, um par de sapatos de
lagarto, ela teve que procurar uma blusa,
um cinto, e isso é um assunto para
refletir, como, a partir de tais destroços,
ela produziu o efeito final: mimada,
calmamente imaculada, como se tivesse
sido assistida pelas criadas de
Cleópatra”.
242
9
“It was after seven, she was freshening
her lipstick and perking up her
appearance from what she deemed
correct for a library to what, by adding a
bit of scarf, some earrings, she
considered suitable for the Colony”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 58).
“Foi depois das sete, ela estava
retocando o batom e dando um toque na
aparência no que ela considerou correta
para uma biblioteca, adicionando um
lenço, alguns brincos, o que ela
considerou adequado para a Colony”.
10
“She answered the door at once; in fact,
she was on her way out—white satin
dancing pumps and quantities of perfume
announced gala intentions. ‘Well, idiot,’
she said, and playfully slapped me with
her purse. ‘I’m in too much of a hurry to
make up now. We’ll smoke the pipe
tomorrow, okay?’” (CAPOTE. Breakfast
at Tiffany’s, p. 71).
“Ela atendeu a porta imediatamente; na
verdade, ela estava saindo - bombas de
dança de cetim branco e quantidades de
perfume anunciavam intenções de gala.
‘Bem, idiota’, ela disse, e de brincadeira
me deu um tapa com a bolsa. ‘Estou
com muita pressa para fazer as pazes
agora. Nós vamos fumar o cachimbo da
paz amanhã, ok?’”
11
“June, July, all through the warm months
she hibernated like a winter animal who
did not know spring had come and gone.
Her hair darkened, she put on weight.
She became rather careless about her
clothes: used to rush round to the
delicatessen wearing a rain-slicker and
nothing underneath. José moved into the
apartment, his name replacing Mag
Wildwood’s on the mailbox” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 79-80).
“Junho, julho, durante os meses quentes
ela hibernou como um animal de inverno
que não sabia que a primavera havia
chegado e ido embora. Seu cabelo
escureceu, ela engordou. Ela se tornou
um pouco descuidada com suas roupas:
costumava correr para a delicatessen
usando uma capa de chuva e nada por
baixo. José mudou-se para o
apartamento, o nome dele substituiu o
de Mag Wildwood na caixa de correio”.
12
“‘Come on,’ she said, when she found
me awaiting the postman. ‘Let’s walk a
couple of horses around the park.’ She
was wearing a windbreaker and a pair of
blue jeans and tennis shoes; she slapped
her stomach, drawing attention to its
flatness: ‘Don’t think I’m out to lose the
heir. But there’s a horse, my darling old
Mabel Minerva – I can’t go without saying
good-bye to Mabel Minerva’” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 85).
"’Vamos,’ ela disse, quando me
encontrou esperando o carteiro. ‘Vamos
andar de cavalo ao redor do parque.’ Ela
estava vestindo um blusão e um par de
jeans e tênis; ela bateu no estômago,
chamando a atenção para a sua barriga
achatada: ‘Não pense que estou
perdendo o herdeiro. Mas há um cavalo,
minha querida e velha Mabel Minerva -
não posso ir sem me despedir de Mabel
Minerva’”.
13
“Holly, entering police headquarters,
wedged between two muscular
detectives, one male, one female. In this
squalid context even her clothes (she
was still wearing her riding costume,
“Holly, entrando no quartel da polícia,
entre dois detetives musculosos, um
homem e uma mulher. Nesse contexto
esquálido, até mesmo suas roupas (ela
ainda vestia seu traje de montaria,
243
windbreaker and blue jeans) suggested a
gang-moll hooligan: an impression dark
glasses, disarrayed coiffure and a
Picayune cigarette dangling from sullen
lips did not diminish” (CAPOTE.
Breakfast at Tiffany’s, p. 89-90).
blusão e calça jeans) sugeriam uma
gangster delinquente: uma impressão
que os óculos escuros, um penteado
desgrenhado e um cigarro Picayune
pendurado em lábios carrancudos não
diminuíam”.
14
“‘Well, darling,’ she’d greeted me, as I
tiptoed toward her carrying a carton of
Picayune cigarettes and a wheel of new-
autumn violets, ‘I lost the heir.’ She
looked not quite twelve years: her pale
vanilla hair brushed back, her eyes, for
once minus their dark glasses, clear as
rain water – one couldn’t believe how ill
she’d been” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 97).
“’Bem, querida,’ ela me cumprimentou,
enquanto eu andava na ponta dos pés
carregando uma caixa de cigarros
Picayune e um arranjo de violetas de
outono, ‘eu perdi o herdeiro.’ Ela não
parecia ter doze anos: seu cabelo cor de
baunilha escovado para trás, seus olhos,
uma vez na vida sem seus óculos
escuros, claros como a água da chuva -
não se podia acreditar em como ela
esteve doente”.
15
“Guided by a compact mirror, she
powdered, painted every vestige of
twelve-year-old out of her face. She
shaped her lips with one tube, colored
her cheeks from another. She penciled
the rims of her eyes, blued the lids,
sprinkled her neck with 4711; attached
pearls to her ears and donned her dark
glasses; thus armored, and after a
displeased appraisal of her manicure’s
shabby condition, she ripped open the
letter and let her eyes race through it
while her stony small smile grew smaller
and harder” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 98-99).
“Guiando-se por um espelho compacto,
ela empoou, pintou todos os vestígios da
menina de doze anos para fora de seu
rosto. Ela moldou seus lábios com um
tubo, coloriu suas bochechas com outro.
Ela passou lápis no contorno dos olhos,
pintou as pálpebras de azul, perfumou
seu pescoço com 4711; prendeu pérolas
nas orelhas e colocou seus óculos
escuros; assim blindada, e depois de
uma avaliação desagradável da
condição pobre de sua manicure, ela
rasgou a carta e deixou que seus olhos
corressem através dela enquanto seu
pequeno sorriso de pedra se tornava
menor e mais duro”.
16
“Then I’ll stop by the apartment and pick
up a nightgown or two and my
Mainbocher” (CAPOTE. Breakfast at
Tiffany’s, p. 101).
“Então, eu vou até o apartamento e pego
uma camisola ou duas e meu
Mainbocher”.
17
“The Carey [loja de aluguel de carros]
chauffeur was a worldly specimen who
accepted our slapdash luggage most
civilly and remained rock-faced when, as
the limousine swished uptown through a
lessening rain, Holly stripped off her
clothes, the riding costume she’d never
“O chofer da Carey era um espécime
mundano que aceitou nossa bagagem
descuidada da maneira mais civilizada e
permaneceu impassível quando,
enquanto a limusine balançava pela
cidade atravessando a chuva que
diminuía, Holly tirou as roupas, o traje de
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had a chance to substitute, and struggled
into a slim black dress. We didn’t talk:
talk could have only led to argument”
(CAPOTE. Breakfast at Tiffany’s, p. 106).
montaria que nunca tivera a chance de
substituir, e lutou para vestir um vestido
preto sequinho. Nós não falamos: falar
só poderia levar à discussão”.