UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES Edson Fernando Santos da Silva ARQUEOLOGITA – As idiossincrasias interculturais do GITA – Grupo de Investigação do treinamento Psicofísico do Atuante a partir dos rumos do treinamento psicofísico para atuantes de Phillip B. Zarrilli. Belo Horizonte 2019 Edson Fernando Santos da Silva ARQUEOLOGITA – As idiossincrasias interculturais do GITA – Grupo de Investigação do treinamento Psicofísico do Atuante a partir dos rumos do treinamento psicofísico para atuantes de Phillip B. Zarrilli. Texto apresentado para defesa final de tese e obtenção de grau de doutor junto ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Linha de Pesquisa: Artes da Cena. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Beatriz Braga Mendonça Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Giselle Guilhon Antunes Camargo Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2019 RESUMO: A notação desta pesquisa teve por objetivo apresentar a sistematização do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas para atuantes do diretor, professor e performer norte-americano, Phillip B. Zarrilli (1947) problematizando-a a partir das idiossincrasias interculturais desenvolvidas na prática criativa do Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante – GITA, grupo radicado na Escola de Teatro e Dança da UFPA-ETDFUPA, na cidade de Belém do Pará, Norte do Brasil. O neologismo “Arqueologita” é uma invenção desta pesquisa e ele se dá pela aglutinação dos termos “ARQUEOLOGIA” e “GITA” compondo assim uma licença poética fundada numa expressão popular utilizada no estado do Pará, usada para determinar pequenas coisas, pequenos objetos ditos “gitos”, “gititos” ou “gitinhos”, isto é, muito pequenos. Uma Arqueologita, portanto, indica que o estudo se desenvolveu como uma “pequena arqueologia”, uma investigação específica que escavou a prática criativa do GITA considerando sua relação com a ETDUFPA e o paradigma de atuação da cidade de Belém, fatores culturais que produziram deslocamentos, descontinuidades e fissuras entre o modus operandi do GITA e o pensamento/prática de atuação psicofísica de Zarrilli. Assim estabelecida, a pesquisa se desdobrou em dois principais sítios arqueológitos: no primeiro, intitulado “Zarrilli com açaí”, a ênfase se assenta na apresentação das obras seminais de Zarrilli e oferece uma vasta coletânea de passagens do estadunidense traduzidas, pela primeira vez, do original para a língua portuguesa, e que estabelecem uma ampla discussão sobre atuação teatral contemporânea, no ocidente e no oriente; no segundo, intitulado “Açaí com Zarrilli”, a ênfase se desloca para a estreita relação do GITA com o paradigma de atuação presente na cidade de Belém e seus espaços autopoéticos de resistência política, para então analisar e problematizar como isso ocasiona as descontinuidades e fissuras entre a prática criativa do grupo nos cinco processos criativos de montagens teatrais produzidos até 2017 e a obra/prática de Zarrilli. A pesquisa se desenvolveu adotando o paradigma da pesquisa em arte pós-positivista/qualitativo e, por isso, privilegiou a dimensão incorporada da experiência dos sujeitos envolvidos na investigação, isto é, os pesquisadores envolvidos nos processos criativos do GITA e os demais artistas locais que foram entrevistados. Por este paradigma a pesquisa recorreu a modos diferenciados de escrita intitulados aqui de “plano de escavação”, estratégias que procuraram estabelecer aproximações diretas com a imagem dos sujeitos envolvidos. Estratégias de escrita, portanto, que procuram evitar os tradicionais dualismos que cindem, irremediavelmente, o objeto estudado (passivo, controlável e observável) do pesquisador (ativo) que o analisa distanciadamente. Por esse viés a pesquisa adotou a “bricolagem metodológica”, isto é, múltiplos procedimentos para retratar os diversos sítios arqueológitos que serão retratados ao longo da notação da tese. Palavras-Chave: Treinamento Psicofísico; Atuação Psicofísica; Intercultural; Experiência. Arqueologita – The inte-rcultural idiosyncrasies of GITA – Investigation Group of Actor Phichophysical Training the towards of psychophysical training for Phillip B. Zarrilli's actors ABSTRACT: The notation of this research had as objective to present the systematization of the psychophysical training with asian meditative and martial arts for actors of the North American director, professor and performer, Phillip B. Zarrilli (1947), problematizing it from the intercultural idiosyncrasies developed in the creative practice of the Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante – GITA (Investigation Group of Actor Psichophysical Training), group based at the Escola de Teatro e Dança da UFPA - ETDFUPA, (School of Theater and Dance of Pará Federal University) in the city of Belém, state of Pará, northern Brazil. The neologism “Arqueologita” is an invention of this research and it is given by the agglutination of the terms “ARQUEOLOGIA” (Archeology) and “GITA” thus composing a poetic license based on a popular expression used in the state of Pará, used to determine small things, “gitos”, “gititos” or “gitinhos”, that is, very small. An “Arqueologita” therefore, indicates that the study was developed as a "small archeology", a specific investigation that excavated the creative practice of the GITA considering its relationship with ETDUFPA and the acting paradigm of the city of Belém, cultural factors that produced displacements, discontinuities and fissures between GITA modus operandi and the psychophysical acting thought/practice of Zarrilli. Thus established, the research unfolded in two “arqueológitos” sites: in the first, entitled "Zarrilli com açaí" the emphasis shifts to GITA's close relationship with the paradigm of acting present in the city of Belém and its autopoetic spaces of political resistance, to then analyze and problematize how this causes the discontinuities and fissures between the group's creative practice in the five creative processes of theatrical montages produced until 2017 and Zarrilli's work/practice. The research was developed adopting the post- positivist/qualitative art research paradigm and, therefore, privileged the embodied dimension of the experience of the subjects involved in the research, that is, the researchers involved in the creative processes of GITA and the other local artists who were interviewed. By this paradigm the research resorted to different modes of writing here called “excavation plan”, strategies that sought to establish direct approximations with the image of the subjects involved. Strategies of writing, therefore, that seek to avoid the traditional dualisms that irretrievably split the studied object (passive, controllable and observable) of the (active) researcher who analyzes it at a distance. Due to this bias, the research adopted the “methodological bricolage”, that is, multiple procedures to portray the various archaeological sites that will be portrayed throughout the notation of the thesis. Keywords: Psychophysical Training; Psychophysical Acting; Intercultural; Experience. Lista de Figuras Figura 1 – Mapa 1: ARQUEOLOGITA.........................................................................................10 Figura 2 – Mapa Arqueológito 2: Sítio Virtual..............................................................................22 Figura 3 – Mapa Arqueológito 3: Rumos do treinamento até o norte do Brasil ...........................24 Figura 4 – Mapa Arqueológito 4: Sítio Arqueológito “Zarrilli com Açaí”...................................44 Figura 5 – Comemoração de Formatura de Cesário Augusto em Exeter......................................72 Figura 6 – Phillip Zarrilli e Andy Crook em Samuel Beckett’s Ohio Impromptu.........................93 Figura 7 - Vista panorâmica do Jurunas......................................................................................121 Figura 8 – Postura do Leão/ Kalarippayattu................................................................................. 130 Figura 9 – Mapa Arqueológito 5: Sítio Arqueológito “Quadrante Intermediário”........................171 Figura 10 – Mapa Arqueológito 6: Sítio Arqueológito “Açaí com Zarrilli”.................................202 Figura 11 – Cesário Augusto, Coordenador e fundador do GITA...............................................223 Figura 12 – Mapa Arqueológito 7: Espaços autopoéticos na cidade de Belém...........................242 Figura 13– Mapa Arqueológito 8: Bares e Botecos.....................................................................285 Figura 14 – Diagrama para criação de uma encenação coletiva do GITA...................................302 Figura 15 – Exercício da etapa de laboratório de criação da montagem “Zé”..............................308 Figura 16 – Comemoração de casamento religioso dos meus pais...............................................331 Tabelas Tabela 1 – Paradigma Pós-Positivista/Qualitativo de Sylvie Fortin e Pierre Gosselin....................20 Tabela 2 – Dados das seis publicações impressas da Revista Tribuna do Cretino.........................215 Tabela 3 – Projetos matriciais elaborados e coordenados por Cesário Augusto...........................226 Tabela 4 – Projetos Transversais de minha autoria......................................................................227 Tabela 5 – Pesquisadores egressos do GITA................................................................................228 Tabela 6 – Relação dos bolsistas do GITA..................................................................................229 Tabela 7 – Disciplinas: Práticas Cênicas e Corporais para a Formação Docente........................230 SIGLAS COSANPA: Companhia de Saneamento do Pará. ETDUFPA: Escola de Teatro e Dança da UFPA. FESAT: Federação de autores, artistas e técnicos de teatro. FUNAI: Fundação Nacional do Índio. GITA: Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante. GTU: Grupo de Teatro Universitário. IAP: Instituto de Artes do Pará. ICA: Instituto de Ciências da Arte. ITERPA: Instituto de Terras do Pará PRC5: Pará Rádio Clube. SINDIFISCO: Sindicato dos Servidores do Fisco Estadual do Pará. SEBRAE: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. UNIPOP: Instituto Universidade Popular. UFPA: Universidade Federal do Pará. USO DE CONVENÇÃO DE ABREVIATURA: Em virtude do uso recorrente das expressões “Arte Marcial e Meditativa Asiática” e “Arte marcial Asiática”, ao longo de toda notação da tese, optamos por abreviá-las para [AMMA] e [AMA] grafadas entre colchetes, respectivamente. Sumário Coordenadas das Escavações.....................................................................................................11 Preâmbulo Arqueológito..............................................................................................................14 Sítio Arqueológito Virtual............................................................................................................22 PROLOGÍTO: Rumos do treinamento psicofísico com [AMMA] até um pedacinho do Norte do Brasil......23 Plano de Escavação........................................................................................................................24 Zarrilli, ancestralidade e o açaí......................................................................................................25 Procurando o Mestre entre os Mestres...........................................................................................27 Zarrilli: o caminho do mestre.........................................................................................................29 Zarrilli e o programa de treinamento de A. C. Scott........................................................................31 Cesário Augusto: o discípulo que herdou a tradição do mestre Zarrilli..........................................33 Conhecendo C. Sã...........................................................................................................................38 GITA: o treinamento psicofísico num pedacinho do Norte do Brasil..............................................40 Sítio Arqueológito “Zarrilli com Açaí”.......................................................................................42 Plano de Escavação.........................................................................................................................43 Diálogo Zero – Pontes para uma atuação psicofísica......................................................................45 Diálogo Primeiro – As tradições de origem do treinamento psicofísico com [AMMA] ................69 Diálogo Segundo – Atuação: da teoria à prática; do treinamento psicofísico à atuação psicofísica.............................................................................89 Diálogo Terceiro – A questão do “corpo ausente” e a Atuação Psicofísica como Quiasma..........119 Diálogo Quarto - Atuação Contemporânea: Idiossincrasias e Interculturalismo.........................150 Sítio Arqueológito “Quadrante Intermediário”.......................................................................170 Plano de escavação........................................................................................................................171 Escavação Preliminar....................................................................................................................172 O treinamento do atuante no contexto da encenação moderna.......................................................172 Interculturalismo no treinamento do atuante no século XX..........................................................176 Interculturalismo no Asian Theatre Program Experimental de Adolf Clarence Scott e Phillip Zarrilli...........................................................................................193 Interculturalismo no treinamento do atuante no século XXI........................................................198 Sítio Arqueológito “Açaí com Zarrilli”.....................................................................................201 Plano de Escavação.......................................................................................................................202 Alguns “Quartos Fantasmas” e o paradigma de atuação em Belém do Pará................................203 O GITA em Perspectiva................................................................................................................222 Plano de Escavação.......................................................................................................................223 Gênese do GITA...........................................................................................................................223 GITA – Sítio Institucional............................................................................................................225 GITA – Sítio dos Procedimentos Metodológicos..........................................................................232 Arqueologita da direção teatral em Belém do Pará: Da segunda metade do século XX aos dias atuais..........................................................................239 Plano de Escavação.......................................................................................................................240 Processos criativos do GITA em Diálogos de Boteco...................................................................283 Plano de Escavação.......................................................................................................................284 No Boteco do Bacú – Querela-Eu..................................................................................................286 No Bar do Rubão – Ze(s) – sem eira nem beira..............................................................................296 No Bar Meu Garoto – Zé...............................................................................................................305 No Bar Nosso Recanto – Atena em Solo Viril...............................................................................313 No Espaço Cultural Boiúna – Fenda..............................................................................................320 EPILOGITO: Rumos do treinamento psicofísico com [AMMA] num pedacinho do Norte do Brasil.................330 Sítio Arqueológito das Referências............................................................................................342 Anexos..........................................................................................................................................354 11 Coordenadas das Escavações. Tenho dedicado especial atenção, nos últimos quatro anos (2016-2019), a perceber e ajustar uma pequena lente com capacidade para processar diversas instâncias da minha vida: afetividade, sensibilidade, pensamento reflexivo, militância política, poética, ética, relações institucionais, didático-pedagógicas dentre outras. Essa pequena lente é o treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas sistematizado por Phillip B. Zarrilli (1947) e Adolphe Clarence Scott (1909-1985) que rumou até o GITA, um grupo de pesquisa e criação poética estabelecido nas entranhas da ETDUFPA que por sua vez é a principal instituição formadora de artistas de teatro de Belém e quiçá do estado do Pará. Fundado por Cesário Augusto nesse pedacinho do Norte do Brasil, assim recortado, o GITA cultiva e tem essa pequena lente (treinamento psicofísico) como eixo central de sua prática de pesquisa e a partir dela estabeleceu micro e macro relações com esses espaços (academia e cidade) ao longo de seus doze anos de existência, trajetória de pesquisa na qual histórias de vida, procedimentos metodológicos, pensamentos, paradigmas e práticas artísticas se cruzaram, se entrelaçaram e configuram o que denomino na notação desta tese como Sítios Arqueológitos. Por se tratar de terrenos delicados, lugares porosos e encobertos por algumas camadas de matérias complexas e solidificadas pelo tempo eu, neófito no ofício de escavar esses sítios, precisei descobrir e inventar meios adequados para proceder minha Arqueologita. No começo da notação desta tese, portanto, apresento e contextualizo a problemática que será desenvolvida nesses sítios arqueológitos, aponto alguns procedimentos metodológicos que serão adotados, indico os principais autores de referência que fundamentarão a linha de raciocínio que se desenvolve ao longo das escavações e, por fim, também aponto as possíveis contribuições inovadoras que o estudo desses sítios podem oferecer à academia e a cidade de Belém do Pará. Um dos primeiros parceiros a me oferecer, neste sentido, coordenadas para o início dos meus trabalhos, foi o filósofo austríaco, Paul Feyerabend (1924-1994), cujo teor do pensamento me encorajou a desenvolver minhas próprias ferramentas – pás, enxadas, picaretas, etc. – durante a investigação, respeitando o modo não linear e idiossincrático com que os sítios arqueológitos foram se configurando. Isso porque, segundo Feyerabend, os eventos, os procedimentos e os resultados que constituem as ciências não tem uma estrutura comum; não há elementos que ocorram em toda investigação cientifica e estejam ausentes em outros lugares. (...) A pesquisa bem-sucedida não obedece a padrões gerais; depende, em um momento, de certo truque e, em outro, de outro; os procedimentos que a fazem progredir e os padrões que definem o que conta como 12 progresso nem sempre são conhecidos por aqueles que aplicam tais procedimentos. (2011, p.19 ênfases originais). Desse modo, o pensador austríaco acredita e demonstra haver uma grande variedade de abordagens, procedimentos e atividades científicas diversas. A par dessa constatação ele questiona: “Devemos continuar usando termos antiquados para descrever insights novos, ou não seria melhor começar a usar uma nova linguagem? E não seriam poetas e jornalistas de grande auxílio para encontrar tal linguagem?” (Ibidem, p.15). Seguindo o princípio contido nesses questionamentos de Feyerabend – mas sem a pretensão de instituir uma nova linguagem acadêmica ou científica –, desejoso de manter lealdade à natureza de minha investigação, investi esforços para engendrar – sempre que necessário – termos, procedimentos, atividades, exercícios e novos recursos para compartilhar apropriadamente as descobertas das minhas escavações. Desse modo, julgo importante informar que os elementos que apresento a seguir não se limitam a apresentar a tese, mas, antes de tudo, são princípios operativos que colocam a tese em movimento, ou seja, encontram-se articulados direta e indiretamente com o corpo da notação da pesquisa. Trata-se de uma urdidura complexa que não se dá, necessariamente, pela linearidade progressiva de capítulos e/ou seções convencionais de um texto e, por isso, solicita do leitor, tempo para se deixar amadurecer e se revelar. Desse modo, acompanhe abaixo os princípios operativos da notação desta tese e depois siga pacientemente até o Preâmbulo Arqueológito para que eu lhes apresente os sítios da minha ARQUEOLOGITA. Inventar: Desejo de registrar e compartilhar idiossincrasias; inventar caminhos, meios, nomes, procedimentos para traduzir o indizível do meu lugar; ato de ficcionar e/ou autoficcionar as trajetórias, as pessoas, os lugares e as relações retratadas. Neologismo Maior: invenção que delimita o pequeno território das escavações; aglutinação do termo arqueologia (ciência que utiliza o processo da coleta e escavação para suas investigações) com o termo da expressão popular paraense “gita”, “gitita”, “gitinha”, isto é, pequena ou muito pequena; daí diz-se ARQUEOLOGITA ou pequena arqueologia que discorre sobre o GITA e suas relações com a ETDUFPA e com a cidade de Belém do Pará tendo como ponto de ignição o treinamento intercultural com artes marciais e meditativas asiáticas que o grupo pratica. 13 Neologismos derivados: invenções provenientes do neologismo maior (Arqueologita) subdividindo e localizando os sítios que serão escavados no decorrer da notação da tese: Prologito, Sítios Arqueológitos, Mapas Arqueológitos e Epilogito. O enclave: Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante – GITA. Articulação proposta: teatro e vida, poiésis e teoria, sensibilidade e pensamento. Abordagem: não dual, mas dialeticamente complementar. Planos de escavação: Coordenadas específicas que indicam como cada sítio arqueológito será escavado. Estratégias de escrita engendradas para escavar tais sítios. Escrever escrevendo-me na escrita; na invenção da escrita (re)invento-me, (re)organizo-me; vivo no ato de escrever, vida na escrita e pela escrita; parindo alguns centauros, tal como Nietzsche: “Ciência, arte e filosofia se vão fundindo tanto em mim que algum dia certamente vou parir um centauro”1. Autor de referência: Diretor, ator e performer norte-americano Phillip B. Zarrilli, sistematizador do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas praticado no GITA. Tradução: As obras de Zarrilli não possuem tradução para a língua portuguesa. Por isso, farei uso de uma tradução para fins acadêmicos, realizada por mim e Augusto Jones Aragão, graduando de Licenciatura em Teatro/UFPA e pesquisador do GITA. A tradução das obras de Zarrilli é uma das ações desta tese e considero que o seu diferencial se encontre no fato de conhecermos (nós, os tradutores) e sermos iniciados na prática do treinamento psicofísico sistematizado por Zarrilli. Assim, procuramos a partir de nossa prática diária no GITA – eu com uma experiência de aproximadamente dez anos de treinamento psicofísico, e Augusto há mais de dois anos praticando – o modo mais adequado de tradução e interpretação das obras de Zarrilli. Pretendemos assim, oferecer ao leitor brasileiro, não fluente na língua inglesa, número significativo de passagens com conceitos, ideias, exposições, demonstrações e argumentações presentes na vasta obra escrita do norte-americano. Esta é uma das relevantes contribuições que a tese apresenta ao campo das pesquisas em teatro. 1 NB: (Safranski, 2005, p. 56). 14 Preâmbulo Arqueológito. Arqueologitar é a ideia/procedimento que se delineia ao longo da toda notação da tese e busca estratégias de escrita que deem conta da natureza poliédrica dos sítios arqueológitos que serão escavados. Duas questões iniciais já se apresentam: 1 – a natureza poliédrica do lócus da pesquisa; 2 – uma abordagem não dual entre “objeto” e “sujeito” da pesquisa. Sobre a primeira questão, me refiro à trama de vozes que compõem os sítios arqueológitos: 1– Vozes nos processos criativos do GITA: atuantes, direção, autores de referencial teórico, obras indutoras dos processos criativos, pedagogias e procedimentos poéticos; 2 – Vozes na relação com a ETDUFPA: artistas-professores, artistas-alunos, gestores e documentos institucionais; 3 – Vozes na relação com a cidade de Belém: grupos de teatro, atuantes e diretores teatrais. Um dos primeiros desafios, portanto, me convoca para a invenção de uma escrita que considere a urdidora desses elementos poliédricos numa perspectiva de pesquisa em arte – e não sobre arte – voltada para “um ato investigatório que conjugue percepção e compreensão, experiência e análise” (ISAACSSON, 2006, p.84). Para tanto, a escrita desta tese filia-se a perspectiva anarcometodológica inaugurada pelo pesquisador Luizan Pinheiro2 que conclama aos seus pares a reflexão: “O que pode uma pesquisa em artes3”, ou seja, que outros caminhos podemos trilhar, quais procedimentos podemos subverter e sob quais outros rigores devemos nos submeter? Acredito que Bya Braga nos ofereça pistas valiosas que vão ao encontro da provocação anarcometodológica de Luizan quando ela afirma que (...) estudar a arte cênica, entendendo-se arte como junção do processo com o objeto, é algo, em si, processual, em contínuo movimento em vez de ser algo a posteriori como poderíamos dizer de uma pesquisa tradicional. Assim se estudo o processo de criação é porque quero fazer arte, ou estou fazendo. (2006, p.78) Esse pensamento de Braga é apresentado no ensaio, cujo título sugestivo é, “Raspas e restos me interessam”. Nele a autora me leva a pensar e desenvolver minha tese de modo análogo ao que ocorre num processo de criação, isto é, com movimentos sempre ativos, dinâmicos e imprevisívéis, pois 2 Luizan Pinheiro é Professor Adjunto da Faculdade de Artes Visuais – FAV, da Universidade Federal do Pará – UFPA. Doutor em Artes Visuais/ História e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (2008), com a Tese: “Pixação: Arte Contemporânea”. É poeta, música, escritor e compositor. Autor do livro Anarcometodologia: o que pode uma pesquisa em arte. Belém, Editora da UFPA, 2016. 3 Título de comunicação publicada originalmente nos Anais do V Fórum Bienal de Pesquisa em Artes, PPGArtes/UFPA, 2010 e parte integrante do livro Anarcometodologia: o que pode uma pesquisa em arte. 15 (...) não estudo para, necessariamente organizar dados do fenômeno criativo, verificar fundamentos do próprio processo criador, qualificar alguns argumentos e contestar outros, descrever, registrar ou avaliar o percusso das várias composições. Estes procedimentos surgirão, inevitavelmente, numa proposta de sistematização do trabalho criador, com parâmetros em certa pesquisa cientifica metódica, mas, o princípio, a motivação de meu estudo do processo de criação é a criação em si mesma. É o ato de formar para formar-se, lembrando de Fayga Ostrower (1987) A segunda questão, por sua vez, considera minha condição de artista-pesquisador absolutamente envolvido na prática criativa do GITA. Sob esta condição, isto é, como “objeto- sujeito” da pesquisa, a abordagem proposta pretende evitar os tradicionais dualismos que cindem, irremediavelmente, o objeto estudado (passivo, controlável e observável) do pesquisador (ativo) que o analisa distanciadamente. A escrita desta tese, portanto, recorre a táticas diferenciadas para garantir a natureza imiscuída e complementar do objeto-sujeito da pesquisa: o objeto fala, na medida em que também é sujeito; e o sujeito fala com propriedade do fenômeno, na medida em que é parte ativa e integrante do objeto. Nesse sentido, o ato de arqueologitar me convoca à experiência de escrever sobre o meu lugar, com a minha voz, com as minhas aspirações e inquietações em primeira pessoa. Mas também atento às vozes, aspirações e inquietações dos demais envolvidos nos sítios arqueológitos – e isso tudo, também, em primeira pessoa. E para chegar a estas vozes, o exercício da escuta se mostra fundamental. Sobre este aspecto é interessante observar os três tipos de escuta que o filósofo francês Roland Barthes (1915-1980) aponta: Segundo a primeira escuta, o ser vivo orienta a sua audição (o exercício da sua faculdade de ouvir) para indícios; nada, a este nível, distingue o animal do homem: o lobo escuta um ruído (possível) de caça, a lebre um ruído (possível) de agressor (...). Esta primeira escuta é, se assim se pode dizer, um alerta. (...) A segunda é uma descodificação; aquilo que se tenta captar pela orelha são signos; aqui, sem dúvida, o homem começa: escuto' como leio, isto é, segundo certos códigos. (...) Finalmente, a terceira escuta, cuja abordagem é completamente moderna (o que não quer dizer que suplante as duas outras) não visa – ou não espera – signos determinados, classificados: não o que é dito, ou emitido, mas quem fala, quem emite: supõe-se que ela se desenvolve num espaço intersubjetivo, onde «eu escuto» quer dizer também «escuta-mo»; aquilo de que ela se apodera para o transformar e o lançar infinitamente no jogo da transferência, é uma «significância» geral, que já não é concebível sem a determinação do inconsciente. (1990, p. 201 grifos do autor) Seguindo estas considerações valiosas de Barthes acerca da escuta, pretendo compartilhar o que é o enclave teatral denominado GITA: quem somos, de onde viemos, no que acreditamos, quais procedimentos poéticos adotamos e o que pretendemos com nossa arte; quais relações dialéticas estabelecemos com a ETDUFPA e com a cidade de Belém do Pará. Para arqueologitar 16 essas questões e chegar a essas vozes, é necessário penetrar em camadas de experiências sobrepostas de modo irregular: histórias de vida, memórias – afetivas e de trabalho – e mútuas trocas de conhecimento ocorrido nas experiências de palco, nas relações institucionais com a ETDUFPA e no devir poético com Belém. Acredito que arqueologitar esse lugar é proceder, antes de tudo, uma escavação como ato de amor voltado à descoberta das conexões éticas, poéticas e estéticas entre as histórias de vida e de palco de todos os envolvidos. Escavação na carne – solo por excelência de minha arqueologita – que precisa ser desenvolvida como ato extremamente afetivo, pois é preciso proteger as epidermes – a minha, a dos Giteiros e dos demais envolvidos –, guiar as escavações com cuidado para não fazer sangrar desnecessariamente a carne que deseja revelar seus segredos ocultos. Neste sentido, entendo que devo conduzir as escavações com a habilidade de um cirurgião plástico a conduzir o seu bisturi, ou seja, devo realizar incisões precisas preservando, assim, os órgãos vitais, mas também remover calos, verrugas e tumores. E assim considero que ao longo de mais de uma década de trabalho, vida e palco foram se mostrando cada vez mais atados, cada vez mais enredados numa dimensão artaudiana (ARTAUD, 1984) na qual a energia pulsante dos processos criativos do GITA encontrou sua vitalidade, exatamente, em tudo que se coloca para além do palco, isto é, na própria vida – na minha e na dos Giteiros –, em nossa própria carne. Como diretor de cinco montagens teatrais do grupo, intuitivamente ou não, sempre persegui o propósito explícito do pensador, ator, dramaturgo, diretor e poeta francês, Antonin Artaud (1896–1948), propósito de relançar o teatro na vida para, justamente, “reencontrar a vida do teatro, em toda a sua liberdade” (2006, p.26). A ética como norteamento de toda a poética e estética do grupo. E, para tanto, é preciso escavar, escavar e escavar. E desse exercício de escavar apresento minha tese como uma ARQUEOLOGITA, elegendo, portanto, o procedimento da escavação como princípio operacional por excelência da notação desta pesquisa. Esclareço, antes de tudo, que o neologismo maior nascido pela aglutinação dos termos “ARQUEOLOGIA” e “GITA” se estabelece, em primeiro lugar, como uma licença poética criada a partir do trocadilho entre as duas palavras. Desse modo, meu objetivo ao propor a tese como uma Arqueologita é desenvolver uma “pequena arqueologia”, uma investigação cujo epicentro se encontra no treinamento psicofísico, os usos, apropriações e idiossincrasias culturais que esse treinamento provocou nas pesquisas do GITA em estreita relação dialética com a ETDUFPA e com 17 Belém. O coração da tese, portanto, é o treinamento psicofísico, as reflexões que ele provoca internamento no grupo – no recorte das cinco montagens teatrais já produzidas até 2017 –, os caminhos de investigação que ele oferece como paradigma alternativo de atuação contemporânea, os embates com o paradigma de atuação presente na cidade, o que ele altera e como ele é alterado quando entra em prática num pedacinho do Norte do Brasil. Desse modo, minha “pequena arqueologia” tem como eixo de problematização de pesquisa as descontinuidades, os limites e as fissuras entre o modus operandi do GITA e o pensamento/prática de atuação psicofísica de Zarrilli. E, nesta medida, a tese como ARQUEOLOGITA faz uma alusão ao método arqueológico de análise do discurso do filósofo francês, Michel Foucault (1926-1984), que se encontra, fundamentalmente, demonstrado em sua obra Arqueologia do Saber (1969). O vínculo alusivo se estabelece, exatamente, pelo conceito de descontinuidade, conceito precioso para a argumentação de Foucault em defesa do seu método arqueológico, pois se para ele “a arqueologia descreve os diferentes espaços de dissensão” (2008, p.172, grifos do autor), isso se dá pelo fato dos objetos a serem descritos não repousarem em um princípio geral e uniforme, mas sim como contradições variadas, com medidas e formas diferentes. A alusão, portanto, repousa nas descontinuidades, contradições, apropriações, hibridismos e/ou idiossincrasias culturais do GITA com o pensamento/prática de Zarrilli, no recorte de pesquisa supracitado. Minha arqueologita, neste sentido, se desdobra em duas frentes principais de escavações: 1- apresentar o pensamento/prática de Zarrilli, isto é, apresentar o treinamento psicofísico por ele sistematizado no escopo do paradigma alternativo de atuação psicofísica e, consequentemente, o marco teórico que o fundamenta; 2- demarcar os traços distintivos e idiossincráticos do GITA em relação a Zarrilli considerando, evidentemente, as questões culturais, sociais, econômicas, existências e históricas. Considero esse último aspecto como um dos principais fatores de relevância da tese, pois se por um lado as reflexões sobre atuação psicofísica dialogam direta e fundamentalmente com Zarrilli e estendem-se ao que convenciono chamar de “tradição” do teatro ocidental radicada na prática do treinamento psicofísico, isto é, autores como Constantin Stanislavski (1863-1938), Vsevolod Meyerhold (1874-1940), Jerzy Grotowski (1933-1999), Eugênio Barba (1936), Peter Brook (1925), Étienne Decroux (1898-1991) e Luiz Otávio Burnier (1956-1995), por outro lado, tais reflexões são processadas a partir das escavações nativas realizadas num grupo radicado numa 18 cidade que tem seu próprio modo de ver e fazer teatro, de um grupo que processa sua própria alquimia teatral em meio às mazelas culturais da capital do segundo maior estado, em extensão territorial, da república federativa do Brasil. Tendo delineado, brevemente, a natureza, o coração e a forma de escrita que pretendo desenvolver no corpus da notação desta tese, julgo necessário apresentar uma pequena lista com o nome de outros importantes aliados das minhas escavações, autores que me provocam a pensar e realizar o “cálculo do lugar olhado das coisas” (BARTHES, 1990, p.85, grifo do autor) considerando a natureza de cada sítio arqueológito escavado durante a pesquisa: Sylvie Fortin [escrita criativa autoetnográfica], Serge Doubrovsky (1928-2017) [autoficção e escritas de si], Luizan Pinheiro (1965) [anarcometodologia para a pesquisa em arte], Paul K. Feyerabend (1924- 1994) [contra o método cartesiano], Jacques Rancière (1940) [o ensino universal de Joseph Jacotot], Merleau-Ponty (1908-1961) [abordagem fenomenológica], Daniele Ávila Small (1976) [ensaio como forma], Cássio Hissa (pesquisa acadêmica como work in process), Roland Barthes (sobre a escrita da crítica e verdade), Walter Benjamin (sobre alegorias e narrativas), Gilles Deleuze (1925-1995) e Felix Guattari (1930-1992) [apontamentos para uma literatura menor], Thereza Rocha (escrita de processo), dentre outros. Referências aprofundadas de cada aliado supracitado serão apresentadas ao longo da tese à medida que os planos de escavações forem revelados e as ideias de cada autor colocadas em prática. Destaco por fim, que a natureza da notação desta tese – pelo exposto até aqui – não se constitui e/ou se estrutura pelo formato capitular, pois não discorre suas questões de modo metódico, linear, progressivo e/ou retilíneo. Mas sim recorrendo a estratégias diferenciadas de escrita. O exercício do escavar pressupõe desvios, descobertas inesperadas, repetições, dobras, dúvidas, desistências, inacabamentos, invenções... logo, não obedece aos quatro preceitos da lógica cartesiana presentes no Discurso do Método (evidência, análise, síntese e enumeração), do filósofo francês René Descartes (1596–1650). É nesse sentido que a notação desta tese se assume, também, como um ato de invenção e postula outros preceitos para a estrutura e dinâmica de seu desenvolvimento: inventar, ficcionar, autoficcionar, imbricar teoria e ficção, poetizar, fragmentar, relatar, inacabar, imaginar, adivinhar, presentificar, borrar, devanear, tramar... E neste ato de invenção a tese se delineia sob outros formatos, atenta e fiel a dinâmica das escavações. Por isso, os sítios arqueológitos se apresentam como seções autônomas que não mantém, necessariamente, relações diacrônicas entre si; e também não se encontram enumerados na tradicional ordem 19 crescente, pois não há a relação de progresso e evolução entre os sítios, mas antes uma relação de retroalimentação entre eles. No entanto, para efeito de organização e orientação do leitor apresento a ordem em que os sítios se encontram ao longo da notação da tese, assim como um resumo de seu conteúdo: Prologito: sítio arqueológito que narra os rumos do treinamento psicofísico sistematizado por Phillip Zarrilli e Scott até aportar num pedacinho do norte do Brasil por iniciativa de Cesário Augusto; Zarrilli com Açaí: sítio arqueológito de apresentação das obras seminais de Zarrilli oferecendo uma vasta coletânea de passagens do estadunidense traduzidas, pela primeira vez, do original para a língua portuguesa, que abordam questões sobre atuação teatral contemporânea, no ocidente e no oriente; Quadrante intermediário: sítio arqueológito que contextualiza e problematiza as práticas de treinamento intercultural ocorridas desde o final do século XIX até o século XXI; Açaí com Zarrilli: sítio arqueológito que apresenta o modus operandi de fazer teatro num pedacinho do norte do Brasil ocasionando as descontinuidades e fissuras entre o GITA e o pensamento/pratica de Zarrilli e analisa, ainda, as idiossincrasias presentes nas montagens teatrais que eu dirigi até 2017; Epilogito: sítio arqueológito que indica ações e alguns rumos que o treinamento psicofísico do GITA pode e deve tomar na sua relação com a ETDUFPA e com a cidade. Para abarcar sítios arqueológitos diversos, minhas escavações dialogam com a concepção de “literatura menor” defendida por Deleuze e Guattari (2003) quando ambos – tomando como exemplo a obra de Franz Kafka (1883–1924) – refletem e desenvolvem argumentação sobre a possibilidade de uma “escrita (do) impossível”, isto é, uma escrita como um laboratório de ensaios com múltiplas entradas, intensa, inacabada por natureza e que provoque novos modos de pensar e sentir. Uma escrita tão intensa capaz de enlaçar irremediavelmente autor e obra, ficção e realidade: “(…) viver e escrever, arte e vida, só se opõem do ponto de vista de uma literatura maior” (2003, p.78). Também identifico um aspecto recorrente nas escavações de meus sítios arqueológitos: traços de uma abordagem fenomenológica, seguindo a perspectiva proposta por Merleau-Ponty. Por esta via, o procedimento metodológico da descrição fenomenológica se faz presente ao longo das escavações e isso indica que privilegio a dimensão da descrição dos acontecimentos, das vivências e dos fenômenos vividos pessoalmente e/ou em grupo no GITA, indo ao encontro do que 20 postula de Merleau-Ponty, isto é, “trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar” (2006, p.3). Não estou me furtando das análises, apenas indicando a ênfase que coloco nas escavações. Compondo o cenário dos sítios arqueológitos da tese, e não menos importante que os anteriores, um espaço virtual com acesso à internet abriga: farto acervo audiovisual do GITA com registros do treinamento psicofísico e das cinco montagens teatrais produzidas sob minha direção; todas as citações originais, em língua inglesa, de Zarrilli e demais autores utilizados; links para críticas teatrais, artigos acadêmicos e matérias jornalísticas sobre o GITA. Trata-se, portanto, de um espaço virtual que objetiva abrigar todo esse material de pesquisa que, de outro modo, ocasionaria aumento demasiado no número de laudas desta tese. Orientações de como acessar o Sítio Arqueológito Virtual assim como todas as abas contendo os conteúdos que o espaço abriga poderão ser conferidos em seção homônima na página 19. Julgo importante dizer ainda que buscando consonância com os autores que trago como referência para a notação desta tese, opto pelo paradigma de pesquisa em arte pós- positivista/qualitativo que pode ser conferido na tabela abaixo: Tabela 01 – Paradigma Pós-Positivista/Qualitativo elaborado por Sylvie Fortin e Pierre Gosselin. Paradigma Pós-Positivista / Qualitativo Ontologia A realidade é subjetiva e múltipla. A realidade não é algo à parte do pesquisador. Epistemologia O pesquisador produz o que está sendo produzido. Os resultados são criados/produzidos. Axiologia Pesquisa carregada de valor Método Flexível, pode mudar; Intencional, pequena amostra Instrumento Pesquisador como instrumento primário. Uso da pesquisa Contextualização Fonte: Art Research Journal / Revista de Pesquisa em Arte ABRACE, ANPAP e ANPPOM em parceria com a UFRN. Brasil, 2014, p.5. Ao optar por este paradigma – apresentado acima por Fortin e Gosselin – privilegio a dimensão incorporada da experiência retratada nos sítios arqueológitos e ressalto, mais uma vez, a importância de uma escrita que lhes proporcione voz em PRIMEIRA PESSOA, voz que conjugue “viver e escrever”, tal como pensam Deleuze e Guattari. Neste sentido, julgo pertinente adotar a “bricolagem metodológica” como procedimento condutor das ações da pesquisa. Sigo aqui o pensamento de Sylvie Fortin quando ela afirma: Por “bricolagem metodológica”, o que Monik Bruneau chama de cenários metodológicos, eu entendo a integração dos elementos vindos dos horizontes múltiplos, o que está longe de ser um sincretismo efetuado simplesmente por comodidade. Os empréstimos são aqui 21 pertinentemente integrados a uma finalidade particular que, muitas vezes, pelos pesquisadores em arte, toma a forma de uma análise reflexiva da prática de campo. (2009, p.78). Desse modo, por meio da “bricolagem metodológica” busco os meios adequados para efetuar minhas escavações, lançando mão, sempre que necessário, do procedimento que julgo mais adequado para cada sítio arqueológito. Dentre eles cito: Escrita Criativa, Autoetnografia, Performance Cênica e Autoficção – os três primeiros são considerados por Fortin como “práticas analíticas criativas”. Procuro nesta bricolagem metodológica os meios para me aproximar e me distanciar (quando necessário) do fenômeno vivo investigado, estabelecendo a pesquisa, portanto, na dimensão êmica do artista-pesquisador que me considero. Sem mais, pois é preciso escavar, poetizar, imaginar, inventar... escavar como poesia imaginativa, escavar como produção de invenções... 22 Sítio Arqueológito Virtual O espaço intitulado Sítio Arqueológito Virtual é parte integrante da notação desta tese. Nele organizo e apresento o conteúdo que pode ser conferido no mapa 2 (logo abaixo). O espaço virtual teve acesso restrito aos membros da banca de avaliação até o dia da defesa da tese. Após defesa e aprovação ocorridas no dia 13 de dezembro de 2019 o espaço virtual passou a ser de acesso público e pode ser encontrando no endereço eletrônico abaixo. As diversas seções disponíveis também podem ser conferidas no mapa abaixo. Endereço eletrônico www.arqueologita.com.br Figura 2 - Mapa Arqueológito 2: Sítio Arqueológito Virtual Fonte: reprodução da disposição das abas do espaço virtual Prologito – Rumos do treinamento psicofísico [com artes marciais e meditativas asiáticas] até um pedacinho do norte do Brasil4 4 Versão revista e ampliada do artigo publicado na Revista Cena, nº 21, ps. 75-88, periódico eletrônico – ISSN 2236- 3254. 24 PLANO DE ESCAVAÇÃO 1. Fontes Primárias: Relato de Phillip Zarrilli contido no capítulo 15 da segunda edição da obra Acting (re)considered: a theoretical and practical guide, publicação da editora Routledge, 2002; artigo de Siyuan Liu intitulado “A.C. Scott”, publicado no Asian Theatre Journal, Vol. 28, n. 2 (outono de 2011); minhas vivências pessoais na cidade de Belém do Pará; 2. Composição do texto: narrativa ficcional: tratamento das fontes primárias que conjuga atividade criativa e referencial teórico para gerar situações-experimentos que retratem os acontecimentos borrando as fronteiras entre representação e realidade, permitindo que elas operem de modo dual, não dicotômico; elementos autoficcionais: usando minhas vivências pessoais opero segundo a premissa de Serge Doubrovski (1928-2017), isto é, realizo uma “ficção, de acontecimentos e fatos estritamente reais”, uma espécie de aventura da linguagem feita com “fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura” (1977, p.10) com o fito de narrar os acontecimentos sem o compromisso da unidade, linearidade e coerência histórica, mas recontando as fatos preenchendo criativamente as lacunas próprias da memória; 3. Procedimento metodológico associado: “escrita criativa”, procedimento metodológico apregoado e defendido por Sylvie Fortin voltado ao desenvolvimento de narrativas que recorrem ao uso imbricado entre teoria e ficção para analisar dados coletados de uma pesquisa. Figura 3 - Mapa Arqueológito 3: Rumos do treinamento até o norte do Brasil Fonte: criação baseada os relatos dos autores citados. 25 Zarrilli, ancestralidade e o açaí. Se você já experimentou uma boa tigela de açaí com granola ou banana, certamente não irá estranhar a combinação gastronômica proposta nas receitas a seguir: adicione à tigela com açaí, três ou quatro colheres de zarrilli em flocos, misture bem até os flocos se dissolverem, coloque açúcar a gosto e finalize com chantilly. Caso tenha um paladar mais exigente e clássico, o recomendável é utilizar a receita tradicional de açaí com granola e/ou rodelas de banana adicionando, somente ao final, zarrilli em grãos torrados e moídos. E para quem possui um paladar mais ousado e se permite experimentações gastronômicas exóticas, recomendo flambar no vinho do Porto três fatias finas de zarrilli – ao estilo carpaccio – e servi-las no molho al pesto como guarnição de acompanhamento à tigela de açaí. Verifique o que se afina com seu paladar, escolha uma das opções e bom apetite. Identificou algo estranho nas receitas? Se o enigmático ingrediente “zarrilli” apresentado em três modos diferentes de servir – em flocos, grãos torrados e moídos e em carne – é a causa do estranhamento, então certamente seu paladar já naturalizou o modo como o açaí é servido na região Sudeste do Brasil, ou seja, uma espécie de suco de consistência cremosa, servido com granolas e/ou rodelas de banana. “– Peraíííí: açaí com banana?!!”. Certamente seria a reação de minha saudosa avó, incrédula e indignada diante de tamanha afronta com o fruto regional. Dona Maria Dudolina, vulga dona Dudu, natural da ilha de Mosqueiro – distrito municipal de Belém do Pará – ensinou aos seus oito filhos alguns preceitos sagrados sobre a degustação do açaí: “1 – Açaí bom é do grosso; 2 – Açaí se toma com bastante farinha d’água ‘inchada’ (adicione bastante farinha na tigela, mexa até se tornar uma mistura homogênea e deixe descansar na geladeira por cinco minutos, para a farinha tufar); 3 – Tomar água na mesma cuia que tomou o açaí para evitar azia; 4 – Aquele que misturar açaí com banana está fadado à morte; 5 – Jamais tomar suco de outra fruta no mesmo dia em que se toma o açaí, pois também é caso de morte; 6 – Quem mistura açaí com leite morre durinho”. Esses ensinamentos foram preservados por minha mãe – também natural da ilha de Mosqueiro – e chegaram ao meu conhecimento por transmissão oral. Quando crianças, eu e meus dois irmãos nunca nos atrevemos a contrariar nenhum deles e a única concessão permitida por minha mãe, era a adição de um pouco de açúcar para agradar nosso paladar infantil, propenso aos sabores adocicados. 26 Mas se na minha tenra infância o açaí era somente o alimento básico da população mais carente do estado do Pará e ainda pouco conhecido na região Sudeste do Brasil, hoje ele se tornou um produto de exportação nacional5 e internacional. Ao atravessar as fronteiras da região Norte e aportar principalmente no estado do Rio de Janeiro, outros hábitos gastronômicos foram introduzidos na sua degustação e, curiosamente, hábitos que vão de encontro a toda sabedoria popular presente nos ensinamentos de minha avó. Como eu seria capaz, então, de explicar a dona Dudu que o açaí, consumido em outras terras, se tornou mania entre os adeptos do mundo fitness que agora o reverenciam como ícone maior de fonte de energia, considerando-o como alimento fundamental antes de uma boa sessão de malhação nas academias, pois quando tomávamos nossa boa e velha cuia de açaí com farinha d’água “inchada” – durante ou após o prato principal do almoço – tudo que nos restava após o seu consumo era um generoso cochilo, deitados com a barriga pesada e tufada para cima, ao som do roncar dos atadores de rede de dormir que se espalhavam pelo pátio lateral da casa? Se servir de consolo para minha querida avó, alguns estudos recentes voltados à área da nutrição atestam que a fruta pode ser considerada cientificamente como um alimento funcional, isto é, fornece nutrientes básicos para nossa alimentação e proporciona benefícios metabólicos e fisiológicos prevenindo doenças crônicas e degenerativas (Martini Lobo; Lopes Velasque, 2016, p.98). Seu uso como repositor ou como suplementação de energia, de fato, também vem sendo atestado em estudos científicos, no entanto, nestes casos, trata-se de bebidas desenvolvidas à base de açaí (Peixoto, 2014) e não da tigela de açaí com farinha d’água degustada por milhares de paraenses todos os dias. Acho que isso deixaria vó Dudu aliviada e ainda serve de alerta para os frequentadores de academias esportivas: como repositor de energia o açaí in natura é recomendável APÓS a prática de atividades físicas. Mas e açaí com zarrilli? Será que vó Dudu degustaria a versão em flocos, grãos torrados e moídos ou as deliciosas fatias flambadas ao vinho do Porto? A questão, talvez, seja bem mais fácil de responder e menos complexa do que os desdobramentos interculturais envolvendo a 5 Segundo dados do SEBRAE, o açaí foi introduzido no mercado nacional gradativamente durante os anos oitenta do século passado. A pressão internacional pela preservação da floresta amazônica, ocorrida a partir da década de 1990, alavanca o consumo e a exportação do açaí, pois ele se torna excelente alternativa de produto florestal não madeireiro – a extração somente do fruto preserva a palmeira, diferentemente do processo de extração do palmito. O Pará é o maior produtor de açaí e estima-se que somente na capital, Belém, exista cerca de três mil pontos de vendas. Informações disponíveis em http://www.sebraemercados.com.br/a-importancia-do-acai-no-norte-do-brasil-e-o-vies- sustentavel-de-sua-producao/ Acessado em 18/08/2016. 27 degustação do açaí nos estados do Sudeste do Brasil. E a razão é simples: “zarrilli” grafado desse modo, iniciando com letra minúscula, não é um ingrediente e jamais será encontrando em nenhuma das três versões supracitadas. Por essa a vó Dudu não esperava e certamente ficaria aliviada com a notícia. “– O bom e velho açaí com farinha inchada de Mosqueiro estaria assegurado!”, exclamaria ela em suspiros efusivos de alegria. Recomposta do susto lhe restaria a dúvida: “– Ora bolas, mas que diacho é esse negócio de zarrilli?”. Calma vó. O certo seria perguntar não “o que”, mas sim “quem” é Zarrilli? “– Isso só posso ser atentação de menino!” retrucaria com um sorriso entreaberto na boca. E ela estaria correta nessa constatação, pois o “zarrilli” retratado até agora é apenas uma licença poética que me permite inaugurar o debate acerca das trocas, compartilhamentos e apropriações culturais entre pessoas de lugares bem distantes: Phillip B. Zarrilli e seu estúdio particular (Tyn-y-parc C.V.N. Kalari/Studio) localizado no País de Gales, e o meu próprio trabalho de pesquisa no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante, de Belém do Pará, Norte do Brasil. Terras distantes, culturas diferentes que se encontram atadas pelo legado da tradição do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas, sistematizado e transmitido pelo mestre Zarrilli para o pequeno círculo de atuantes – via Cesário Augusto Pimentel de Alencar – que se formou na distante cidade das mangueiras. Procurando o Mestre entre os Mestres. Movido pela curiosidade criativa e pelo espírito acadêmico, realizei uma consulta informal entre estudantes e professores de teatro, atores, atrizes e diretores que produzem teatro em Belém do Pará a pretexto de discutir o tema “Alimentação e condicionamento físico para artistas de teatro”. A metodologia aplicada consistia em entrevista semiestruturada com três perguntas simples e diretas: 1 – Seu condicionamento físico para a cena está diretamente ligado a sua alimentação? 2 – Em dia de apresentação, realiza alguma restrição alimentar para melhorar o condicionamento físico? 3 – Se arriscaria a tomar “açaí com zarrilli” no dia de uma apresentação? Obviamente introduzi a licença poética com o nome de Zarrilli intencional e capciosamente para verificar se o trabalho internacionalmente reconhecido deste autor seria evocado por este público seleto da consulta. O resultado foi o seguinte: 35% dos entrevistados foram diretos e disseram que sob hipótese nenhuma tomariam açaí no dia de uma apresentação independente do acompanhamento – 28 por se tratar de um alimento consumido in natura que pesa6, literalmente, na barriga do paraense; 60% não conheciam o ingrediente e ficaram curiosos para saber o que era “zarrilli”; 5% sabiam que “zarrilli” não era ingrediente e sim um autor estrangeiro, embora não soubessem maiores informações sobre ele. Do universo de 60% dos curiosos sobre o ingrediente, inventei a seguinte explicação: “zarrilli” é uma espécie de farinha de tapioca alterada em laboratório em pesquisas recentes, realizadas por estudantes dos cursos de Bioquímica e Farmácia da UFPA em parceria com a agroindústria japonesa. A vantagem desta sobre a tradicional farinha de tapioca seria a aceleração do processo digestivo do açaí, eliminando, portanto, boa parte da sensação de peso que o alimento deixa depois de consumido. Após apresentar esta versão o resultado foi o seguinte: 40% se mostraram interessados em experimentar a tal farinha e não questionaram a explicação; 35% se convenceram da explicação, mas se mostraram céticos com os efeitos do ingrediente; 25% se mostraram incrédulos com a explicação e questionaram sobre o que de fato seria “zarrilli”. No encerramento da consulta eu perguntava – para o universo dos 100% dos entrevistados – sobre a pesquisa de treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas desenvolvida por Phillip B. Zarrilli, ocasião em que deixava claro que a intenção da consulta era averiguar o nível de penetração do trabalho do autor na cidade. É curioso, mas não surpreendente, observar neste momento que os nomes de outros autores imediatamente são evocados pelos entrevistados, como reconhecimento de uma área temática específica voltada ao treinamento de atuantes: Constantin Stanislavski (1863-1938), Jerzy Grotowski (1933-1999), Eugênio Barba (1936) e Peter Brook (1925) invariavelmente são citados. Digo não me surpreender, pois estamos falando de autores considerados reformadores do teatro do século XX – os dois últimos em plena atividade até hoje – cujo pensamento e obra exercem grande influência no mundo inteiro. E não é muito difícil explicar o fato do diretor, performer e pedagogo Phillip B. Zarrilli não ser reconhecido pelos entrevistados entre estes mestres do teatro, pois sua extensa produção bibliográfica não se encontra publicada em língua portuguesa e são raros os trabalhos publicados 6 Segundo Jacqueline Carvalho, o açaí é uma fruta riquíssima em conteúdo nutricional e possui: “(...) ácidos graxos polinsaturados (13,3%), monoinsaturados (60,6%), saturados (26,1%), ácidos graxos linoleico (12,5%), oleico (56,2%), palmítico (24,0%), β-sitoesteróis (0,44 mg/g 42 matéria seca), aminoácidos (0,48 mg/g em matéria seca), vitaminas do complexo B (0,25mg/100g), minerais cálcio, potássio, magnésio e ferro, além de fibras como as lignanas presentes em menores quantidades (<0,01% de extrato) porém exibindo ação antioxidante (SCHAUSS et al., 2006a; 2006b; MENEZES; TORRES; SRUR, 2008; CHIN et al., 2008)”. Por todas essas propriedades nutricionais, consumi- lo com farinha d’água nos deixa com a sensação de “barriga pesada”. 29 no Brasil que mencionam o seu nome. Desde o final da década de sessenta do século passado, no entanto, ele se dedica aos estudos do treinamento e atuação psicofísica o que lhe rendeu a autoria das seguintes obras: The Kathakali Complex: Actor, Performance, Structure (1984); When the Body Becomes All Eyes: Paradigms, Pratices, and Discourses of Power in Kalarippayattu, a South Indian Martial Art (1998), Kathakali Dance-Drama: Where Gods and Demons Come to Play (2000), Psychophysical Acting: an intercultural approach after Stanislavski (2008) e (Toward) a phenomenology of acting (2019). Ele ainda participa como editor ou organizador das seguintes obras: Indian Theatre: Traditions of Performance (1990), Asian Martial Arts in Actor Training (1993), Theatre Histories: An Introduction (2006), Acting Reconsidered: Theories and Pratices guide (2002), Acting: Psychophysical Phenomenen and Process (2013) e Intercultural Acting and Performer Training (2019). Situação diversa dos autores mencionados acima que, se ainda não foram completamente traduzidos, possuem ao menos suas obras seminais traduzidas e publicadas em língua portuguesa. Em decorrência disso, é possível afirmar que a formação de atores e atrizes em Belém do Pará, no que toca especificamente ao treinamento para atuação, vincula-se diretamente ao legado destes autores supracitados e neles encontra a terminologia, noções e conceitos que orientam uma poética criativa presente na cidade. Zarrilli: o caminho do mestre. O ano é 1976 e eu apenas ensaiava movimentos singelos de espreguiçamento fetal no confortável útero de minha mãe. Mas o jovem Phillip Zarrilli já rumava pela primeira vez ao estado de Kerala, sul da Índia, para sua jornada ao encontro das artes marciais e meditativas asiáticas. Imagino a cena: um jovem americano, aparentando aproximadamente trinta anos de idade, fisicamente forte e saudável, de mochila nas costas e um sorriso meio amarelo no rosto entrando pela primeira vez no kalari do gurukkal Govindankutty Nayar. A cena talvez não fosse de surpreender aquele que viria a ser o mestre de kalarippayttu de Zarrilli, posto que a visita de ocidentais para conhecer aquela arte milenar havia se tornado um tanto rotineira naqueles anos da década de 70 do século passado. Mas certamente o gurukkal Govindankutty Nayar não suspeitava, naquele exato momento, que aquele jovem se tornaria o seu discípulo mais ilustre, vindo a ser o primeiro ocidental a obter autorização para ensinar kalarippayattu e abrir um kalari no ocidente – Tyn-y-parc C.V.N. Kalari/Studio, localizado no País de Gales. 30 A caminhada àquela altura, no entanto, só estava começando para o jovem cheio de inquietações, dúvidas e conflitos provenientes principalmente das práticas esportivas que até então havia se dedicado: beisebol, wrestling, basquete, futebol e futebol americano. Tendo uma vida universitária semelhante à de seus colegas, dedicou-se a todas estas práticas que, invariavelmente, estavam voltadas para o culto do corpo saudável, forte e competitivo. Esta experiência esportiva certamente lhe proporcionou fortalecimento, condicionamento físico, disciplina e autoconfiança, sendo estes dois últimos princípios importantes para se cultivar para além dos campos e quadras esportivas. O problema é que, paralelamente a isso, Zarrilli também cultivava os ideais e princípios éticos de uma filosofia pacifista que gradativamente se consolidava em seu íntimo. E o futebol americano, sobretudo, o confrontava com um estado de agressividade, explosão de energia e força bruta, próprias deste esporte de contato. Imagine um pacifista ouvindo, aos berros, as seguintes orientações do técnico: “– Vamos Zarrilli, que moleza! Empurra, esmaga, arrebenta com eles. Levanta, seu burro, e mete a porrada neles!” Crescia a sensação, então, de que aquelas práticas sequestravam seu corpo e o direcionavam contra suas crenças e valores éticos. A cisão entre corpo e mente, própria do dualismo cartesiano, se cristalizava a duras penas no jovem desportista Zarrilli. Quem aporta na Índia em 1976, portanto, é um jovem cheio de tensões e disposto a integrar sua mente e seu corpo por meio das artes marciais e meditativas. O exotismo que envolve uma viagem ao oriente em busca de se reencontrar, logo deu lugar à dura rotina de sete horas diárias de exercícios voltados ao aprendizado da “dança-teatro” Kathakali, sob a orientação de M. P. Sankaran Namboodiri e mais quatro horas de treinamentos diários na arte marcial Kalarippayattu sob orientação direta do gurukkal Govindankutty Nayar no Kalari Thiruvananthapuram. Assim foram os primeiros seis meses de intensa prática e observação direta junto aos mestres. Embora extremamente dedicado, a prática desportiva de outrora estava arraigada em seu corpo, o que dificultava a compreensão de como seus mestres – em particular o de kalarippayattu – conseguiam desempenhar todas aquelas combinações acrobáticas de passos, chutes, saltos e giros com força, destreza e fluidez. Aos seus olhos, pareciam ao mesmo tempo duros como um diamante, leves como algodão; seus movimentos fluíam com a mesma naturalidade com que a correnteza do rio é capaz de mover grandes rochas. Por um bom tempo, esforçou-se para imitar aquelas formas codificadas de dança e luta – Kathakali e Kalarippayattu, respectivamente – intentando atingir a mesma fluidez de seus mestres, mas por um bom tempo, tudo que conseguiu foi reproduzir a forma externa e dura dos movimentos codificados. 31 O tempo e a paciência talvez tenham sido a primeira grande lição que o treinamento lhe reservou: aprender a forma, penetrar na forma, para enfim ultrapassá-la e tonar-se a própria forma. Não se trata do dualismo forma/conteúdo, mas sim forma e conteúdo integrados num todo orgânico e dinâmico. O bailado vigoroso dos mestres, assim, lhe saltava aos olhos como demostração eficaz de fluidez, força, equilíbrio, precisão, energia e autocontrole. E foi isso que perseguiu durante anos de prática. O caminho apresentado pelos mestres não tinha mistério: repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir, repetir... Pela repetição do treinamento um novo modo de lidar com sua mente e seu corpo foi se arraigando gradativamente e, se outrora suas práticas esportivas lhe impulsionavam para conquistar a qualquer custo um objetivo preciso – a vitória na competição – aos poucos passou a perceber e dominar um estado de prontidão e consciência dos movimentos, da respiração, do olhar, do espaço ao redor; aos poucos deixou de repetir formas, penetrou as formas e tornou-se as formas, tal como seus mestres de Kathakali e Kalarippayattu; não mais observava o fluir do rio, tornou-se o proprio rio; usando uma expressão do dialeto malayali, Zarrilli estava se apropriando de um estado psicofísico em que “o corpo se torna todos os olhos” – meyyu kannakuka. Foram sete anos intensos de dedicação – sendo os doze primeiros meses também dedicados ao Kathakali – e várias viagens de retorno a Kerala para alcançar a compreensão e o domínio do Kalarippayattu, vindo a ser reconhecido com este grau de competência em 1988 por seu próprio mestre, Govindankutty Nayar. Mais tarde no ano 2000, Zarrilli inaugura no País de Gales o Tyn-y-parc CVN Kalari, considerado o primeiro kalari oficial localizado fora de Kerala e tendo o próprio Phillip como gurukkal. Zarrilli e o programa de treinamento de A. C. Scott. Os dois primeiros anos de intensa pesquisa na Índia, renderam uma tese de doutorado intitulada “Kalarippayatt and the perfoming artist. East and West, Past, Present, Future”, defendida em 1978, na universidade de Minnesota, EUA. E em 1979, Zarrili começa uma extensa colaboração junto ao programa de treinamento psicofísico para atuantes desenvolvido por Adolf Clarence Scott (1909-1985) na universidade de Wisconsin-Madison. O programa criado por Scott em 1963 estava voltado para estudantes da graduação em teatro daquela universidade americana e tinha como fundamento a prática diária do t’ai chi ch’ uan (estilo Wu). O encontro do autor inglês, 32 com essa [AMA], no entanto, ocorre pelo menos quatro décadas antes de Zarrilli se associar ao programa. A trajetória de Scott lhe proporcionou vivência e conhecimento aprofundado da cultura de origem de algumas tradições do teatro do Oriente. Segundo Siyuan Liu (2011, p. 414-5), Scott teve sua formação artística no Royal College of Art (Colégio Real de Arte), em Londres e conheceu a Ásia durante a segunda guerra mundial quando, então, trabalhou como fotógrafo pela Royal Air Force (Força Aérea Real). Com o fim da guerra, viajou para a China onde trabalhou como enviado do British Council for Cultural Relations (Conselho Britânico de relações Culturais) ocasião onde teve amplo acesso às tradições do teatro chinês, especialmente a Jingju (Ópera de Pequim) nas cidades de Nanjing, Shangai e Pequim. A prática do tai chi ch’ uan entrou definitivamente para sua vida quando, no início da década de 1950, se mudou para Hong Kong e estudou essa [AMA] com os membros da seita Wu Tang. É nesse período também que teve oportunidade de conhecer e se tornar amigo dos três melhores atuantes de jingju e kunqu daquela geração – Ma Lianliang, Zhang Junqiu e Yu Zhenfei. Mais tarde passou mais dois anos trabalhando em Tóquio, com atuantes de kabuki onde teve oportunidade de apreender, com maior rigor e sistemática, os elementos dessa tradição japonesa. E antes de fundar o Asian Theatre Program Experimental, realizou importantes traduções de peças tradicionais asiáticas, tanto da China quanto do Japão, além de numerosos estudos sobre essas tradições teatrais. Quando retorna ao ocidente, no início da década de sessenta, trabalha alguns anos em Nova York até ser convidado pela universidade de Wisconsin-Madison. É então, que funda o programa de teatro asiático no Departamento de Teatro e Drama da Wisconsin-Madison, em 1963, contando com o patrocínio inicial da Rockefeller Foundation que financiou o deslocamento de vários artistas asiáticos para colaborar com o programa até 1970. Com a fundação do programa, e partir da longa e intensa experiência que teve por mais de dez anos no oriente, Scott passa então a perseguir o mesmo ideário do francês Jacques Copeau que já nas primeiras décadas do século XX buscava um processo de formação e treinamento que proporcionasse autonomia, autoconfiança, disciplina, prontidão, energia e criatividade – entre outros –, princípios que se colocavam para muito além de uma simples preparação física do atuante. Todos estes princípios articulavam-se exatamente com o que Zarrilli acabara de vivenciar em Kerala, seja com o Kathakali ou com o Kalarippayattu. Phillip, então, logo aderiu a esta nova [AMA] vindo a treinar t’ai chi ch’ uan diretamente com Scott. 33 As inúmeras viagens de retorno a Kerala durante sete anos – sempre motivado pelo processo de aprendizado e amadurecimento do Kalarippayattu – também lhe proporcionou uma imersão no treinamento de hatha yoga, arte meditativa asiática que compõe a sistematização de treinamento para atuantes proposto por Zarrilli e se integrou ao programa de Scott. A colaboração entre Zarrilli e Scott gradativamente constituiu uma abordagem intercultural alternativa voltada para a compreensão e prática cênica que objetiva despertar e aprimorar a percepção sinestésica do atuante no momento de sua atuação. Robert Benedetti, (1973, p.463) mesmo antes da participação de Zarrilli no programa, definiu como princípio fundamental deste treinamento alcançar e dominar uma espécie de “quietude no centro”7, princípio elementar identificado na tradição do teatro oriental; o mesmo princípio que permite aos mestres de kalarippayattu se movimentarem com leveza, suavidade, força e vitalidade e que havia sido testemunhado por Zarrilli durante sua formação em Kerala. Embora estivessem executando sequências de movimentos codificados incluindo expansivos saltos, chutes e giros, tudo era realizado com extrema delicadeza, como se mantivessem um estado de “quietude no centro” mesmo estando em frenética dinâmica de movimentos. E este será o grande desafio para todos aqueles que passarão a se dedicar ao treinamento psicofísico com artes marciais (t’ai chi ch’ uan e kalarippayattu) e meditativas (hatha yoga): encontrar e dominar um estado de “quietude no centro” que permita o fluir natural e orgânico de todas as ações realizadas em cena. Tal como um artista marcial que domina este princípio para manter-se sempre alerta e em estado de prontidão para qualquer necessidade no combate, o atuante deve dominá-lo para o seu processo de criação e atuação disciplinando sua energia, foco e atenção; disciplina, portanto, voltada para um trabalho em que mente e corpo encontram-se integrados e em equilíbrio. Cesário Augusto: o discípulo que herdou a tradição do mestre Zarrilli. Há uma expressão popular em Belém que ficou famosa quando entoada pelo compositor Pinduca que diz o seguinte: “quem vai ao Pará, parou. Tomou açaí ficou.” Cesário Augusto Pimentel de Alencar, natural da cidade do Rio de Janeiro, é um desses sujeitos que foi capturado pela barriga. Felizmente, quando aportou em terras paraenses foi devidamente apresentado à fruta 7 Sobre este princípio ver o artigo intitulado “What We Need to Learn from the Asian Actor”, de Benedetti publicado em 1973, no Educational Theatre Journal. A abordagem de Zarrilli sobre este princípio será apresentada no sítio arqueológito “Zarrilli com Açaí ” / Diálogo Zero a partir da página 41. 34 regional e na sua tigela de açaí só havia farinha d’água e um pouco de açúcar. Foi o suficiente para deixá-lo com a sensação de que nesta cidade de calor intenso e povo hospitaleiro o futuro lhe reservaria um pequeno solo sagrado para cultivar os ensinamentos de seu mestre Zarrilli. Em janeiro de 2004, Cesário havia recém-concluído seus estudos de doutorado em Práticas Performáticas, pela University of Exeter. Sua tese que viria a ser intitulada The shining self: the actor’s journey from characterto role problematizava a falta de definição e aplicação para os termos “personagem” e “papel” o que, via de regra, ocasiona confusão tanto na teoria quanto na prática nas montagens teatrais de processos criativos contemporâneos. No entanto, como já conhecia a proposta metodológica de Zarrilli com o treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas, se deslocou para o Reino Unido cheio de segundas intenções. Já em terras britânicas, na primeira oportunidade que teve se apresentou ao mestre e o inquiriu, assim na bucha: “– Posso participar do módulo de treinamento para graduandos e pós-graduandos?”. Sem meias palavras, o mestre sentenciou: “– Se não lhe atrapalhar na tese de doutorado, seja bem-vindo, Cesário”. Era o começo do seu aprendizado no treinamento psicofísico que se estenderia paralelamente durante toda a elaboração de sua tese. A afinidade com a abordagem e metodologia proposta por Zarrilli foi imediata e juntamente com outros colegas montou um grupo fechado para treinamentos em tempo extra. Tamanha dedicação rendeu a participação em quatro montagens teatrais: The Kiss on the tarmac (a partir da dramaturgia de Nelson Rodrigues, “O beijo no asfalto”), The twelfth night (Noite de Reis, de William Shakespeare) The non-existent knight (a partir do romance de Ítalo Calvino, “O cavaleiro inexistente”) – atuou na função de diretor nas duas primeiras montagens e se auto-dirigiu na montagem em solo da última. E, por fim, participou como atuante ao lado da primeira turma que Zarrilli formou em Exeter, sendo dirigido pelo próprio mestre na montagem The Walter Station. Desse modo, quando chegou a Belém em dezembro de 2003 para ministrar uma oficina intensiva intitulada “Um treinamento psicofísico para o intérprete” promovida pelo Instituto de Artes do Pará, Cesário trazia na bagagem a herança fresquinha de todo seu aprendizado em Exeter. Um murmurinho logo se espalhou na cidade entre os atuantes de teatro, sobre aquele estranho cidadão vindo de uma formação recente feita na Europa com domínio em artes marciais asiáticas. Logo, se criou a expectativa e a imagem de uma espécie de guru oriental que nos iniciaria no fantástico mundo dos combates marciais. Imbuídos, assim, por uma espécie de espírito de 35 Daniel Larusso8 aguardávamos pela chegada de nosso Sr. Miyagi, o mestre marcial que nos revelaria os segredos para um excelente “trabalho de corpo” no palco. A expressão “trabalho de corpo”, aliás, merece um pequeno adendo para contextualizar e dimensionar a importância e expectativa gerada com a oficina que seria ministrada por Cesário. Ainda recorrente nos dias atuais, “trabalho de corpo” é usado em Belém para identificar um domínio técnico, sobretudo físico, na arte da atuação. São comuns as conversas pós- apresentações concentrarem-se em torno da questão: “há ou não ‘trabalho de corpo’ na montagem?”. Os parâmetros utilizados para tal verificação, invariavelmente, são: quantidade de energia despendida (este é um dos mais importantes: quanto mais suor derramado em cena, melhor), execução de movimentos acrobáticos como saltos, giros e rodopios, domínio e realização de alguma técnica específica como tecido aéreo, perna-de-pau e/ou trapézio, e ainda toda sorte de habilidades voltadas para o cultivo do domínio físico em cena. Desse modo, é o virtuosismo técnico (cf. BARBA, 2012, p.16) que prevalece e se estabeleceu instintivamente no imaginário dos atuantes da cidade. Para ilustrar esse aspecto do imaginário e prática dos atuantes da cidade, julgo interessante relatar, ainda que sumariamente, a experiência que tive com Zé Celso Martinez em 2010, ocasião em que o diretor do Grupo Uzyna Uzona visitou a capital do Pará com o projeto “Dionisíacas em Viagem”, primeira turnê nacional do grupo que circulou com nada menos de quatro montagens teatrais (Taniko – um clássico do teatro noh japonês, com interferências de composições “bossa- nova”; Uma Estrela Brasileira a Brilhar – Cacilda!! – homenagem contando a trajetória de Cacilda Becker; Bacantes – tragédia grega de Eurípedes, O Banquete – versão antiplatônica para o diálogo clássico do filósofo Platão) apresentadas no formato de Tenda E(x)tádio, estrutura montada em praça pública para milhares de pessoas. O grandioso projeto de Zé Celso realizou na cidade, além das montagens teatrais, uma oficina técnico-artística na Escola de Teatro e Dança da UFPA. Esta atividade tinha por objetivo envolver a classe artística da cidade nas apresentações, colocando no palco atuantes locais ao lado dos atuantes do Uzyna. Foram quatro dias de oficina que proporcionou intensas trocas com a trupe 8 Personagem do clássico filme dos anos oitenta Karatê Kid – A hora da verdade (1984), interpretados respectivamente por Ralph Machino e Pat Morita. Direção de John G. Avildsen. 36 de Zé Celso que ficou tão apaixonado pelo sabor do Tacacá9 que contratou uma conhecida tacacazeira da cidade para servir a iguaria para sua equipe durante todos os dias de apresentações. O fato que julgo relevante para discussão, no entanto, gira em torno do estado de perplexidade, e certa irritabilidade, de Zé para com o excesso de energia colocada nos exercícios que ele conduzia. Éramos cerca de quarenta participantes – a maioria, jovens atuantes da cidade – absolutamente entregues às propostas do diretor do Uzyna que a princípio adorou a vitalidade do grupo local. O problema – segundo palavras do próprio Zé, em vários momentos da oficina – era nosso excesso de energia colocada em todos os momentos, o descontrole e a falta de sutileza no trato com a energia em cena. Se isso, por um lado agradava Zé pelo fato de ter um grupo dionisiacamente entregue aos seus comandos, por outro o deixava com acessos de irritação e invariavelmente gritava: “Não grita, caralho!!! / Não precisa correr / Olha o andamento da cena / Cantem com mais suavidade / Não precisa empurrar, porra!!! / ”. Nossa entrega aos exercícios e modo de fazer teatro soou demasiadamente histriônico para os padrões estéticos de Zé. Estávamos colocando em prática toda nossa fé no “trabalho de corpo”. Embora tenha se incomodado com a falta de técnica no uso dessa energia exacerbada, é preciso dizer que Zé compartilhou também sua emoção ao lidar com a entrega incondicional e visceral a tudo o que ele propôs. Resaltou que das cidades visitadas pela turnê das “Dionisíacas em Viagem”, Belém foi a que mais lhe recebeu com calor humano e afeto, tanto por parte do público quanto dos artistas de teatro. Diante desse contexto ilustrado por este pequeno interlúdio, pode-se imaginar a expectativa criada para participação de uma oficina com artes marciais asiáticas. A primeira impressão foi animadora e satisfazia nossa expectativa hollywoodiana em torno do guru marcial: Cesário cultivava os cabelos longos – aproximadamente, um palmo abaixo dos ombros –, bigode e cavanhaque fartos e um porte físico atlético – musculatura das pernas e braços definidos, peitoral estufado e zero de barriga. Trajava camiseta regata branca e uma calça moletom cinza, bastante surrada, amarrada por um fio acima da altura do umbigo – quase próximo à altura do peito. Com voz suave e tom quase sussurrante, conduziu a oficina para trinta entusiasmados atuantes da cidade que pretendiam aprimorar o “trabalho de corpo”. A combinação de dois termos estranhos ao nosso vocabulário àquela altura, no entanto, logo nos instigaria a pensar para muito além do histrionismo 9 Trata-se de uma iguaria típica da culinária amazônica, originária da cultura indígena. No estado do Pará é servido com tucupi, goma de mandioca, camarões e folhas de jambu, esta última com a propriedade de provocar sensação de formigamento na boca. 37 e virtuosismo que nos levara até ali e nos faria reavaliar nossas expectativas: treinamento psicofísico. O legado de Zarrilli, assim, aportava no norte do Brasil pela primeira vez. Conduzindo tudo com sua fala mansa, Cesário aplicou o aprendizado prático envolvendo parte do treinamento psicofísico sistematizado por Zarrilli: 1 – apresentou a dinâmica de funcionamento prático do suryanamaskar, isto é, a sequência codificada de movimentos conhecida como “saudação ao sol” que envolve aproximadamente doze posturas diferentes do hatha yoga, todas trabalhadas controlando e mantendo atenção às três fases da respiração: puraka (inspiração), kumbhaka (retenção) e rechaka (expiração); 2 – um pequeno fragmento da sequência codificada de movimentos do t’ai chi ch’ uan, estilo wu, ressaltando sempre o processo de percepção, conexão e domínio do centro vital de energia localizado três dedos abaixo do umbigo (dantian) em sintonia com a respiração mais fluida; 3 – e, por fim, a mesma orientação com o centro vital de energia na realização das posturas abstraídas de animais (elefante, leão, cavalo e serpente) praticadas no kalarippayattu. Repetir aquelas formas codificadas e exóticas durante os dois dias da oficina – quatro horas diretas sem intervalo, a cada dia – embora satisfizesse parcialmente o desejo de desenvolver e aprimorar um “trabalho de corpo”, deixava todos com um pequeno conjunto de interrogações na cabeça: repetir as formas codificadas serviria apenas como aquecimento, alongamento e preparação física do atuante? Como demonstrar toda a plástica das formas codificadas sem uma poética de cena que justificasse todas aquelas sequências de movimentos exóticos? Como levar esse treinamento para atuação? Considerando, desse modo, o treinamento com artes marciais e meditativas a partir de nosso desejo em alcançar um “trabalho de corpo”, incorríamos, sem perceber no clássico e comum equívoco de tomá-lo numa perspectiva dualista na qual o corpo é o instrumento, a ferramenta a serviço da mente, do intelecto. O corpo, portanto, considerado na perspectiva da virtuose técnica obnubilava nossa compreensão para o alcance psicofísico do treinamento. Seriam necessários anos de prática – tal como demonstrou a própria experiência de Zarrilli – para superar essa visão tão arraigada a nossa cultura ocidental. E daquele grupo de aproximadamente trinta jovens entusiastas do “trabalho de corpo”, felizmente eu teria a oportunidade de reencontrar Cesário, o discípulo de Zarrilli, em condições mais favoráveis para minha própria iniciação no treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas. 38 Conhecendo C. Sã No início do primeiro semestre de 2007 eu era apenas um professor substituto cumprindo o segundo ano de contrato de trabalho na Escola de Teatro e Dança da UFPA. Sem o compromisso de coordenar projeto de pesquisa, mas com o desejo de conduzir uma investigação transversal entre filosofia, música e teatro subi a sinuosa escadaria dessa escola para ir ao encontro do coordenador do curso de licenciatura em Teatro da UFPA e solicitar sua aprovação para o projeto que pretendia conduzir naquele ano, intitulado “Filosofia e arte trágica: Nietzsche, Artaud e Morrison”. Empreendo um pouco de força para abrir a porta gigante do seu gabinete – o rangido da mesma denuncia o modelo antigo, feita de madeira bruta. Entro e sou recepcionado por um largo sorriso do então coordenador Cesário Augusto que se encontra sentado atrás de sua mesa de trabalho. Levo um pouco de tempo para identificar que se trata do mesmo sujeito que outrora, em janeiro de 2004, ministrara a oficina de artes marciais e meditativas. Os cabelos continuam longos, bigode e cavanhaque estão aparados e o porte atlético se mantém, embora com o acréscimo de alguns quilinhos a mais, fruto de seu vício declarado por açaí. A maior diferença, no entanto, é o modo extrovertido e descontraído de falar em contraste com a voz suave, sussurrada e introvertida dos tempos da oficina. Ao longo da conversa descontraída sobre assuntos de trabalho descubro outra faceta curiosa da personalidade de Cesário: sua incontida vontade por intercalar piadas ao longo das conversas estabelecendo conexões pelos motivos mais estapafúrdios que se possa imaginar. E assim, em meio à piada do “pescosin” ou a do “traficante gay”, fala da criação do seu grupo de pesquisa, consultando-me sobre a denominação que pretende colocar: GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante. Quando me apresenta o nome de sua pesquisa matricial cadastrada no diretório de grupos do CNPq, sou novamente confrontado com outra peculiar faceta de sua pessoa: a escrita prolixa, atestada no título da supracitada pesquisa a seguir: “O desvelo de Procedimentos Metodológicos para Irrupções Teatrais: investigação de fatos e condições sistematizadas na preparação de performances dramatizadas alicerçadas em textos escritos por meio de estudo de casos oriundos de práticas desenvolvidas por artistas da cena”. Com bom humor, Cesário dizia que esse título era um teste para verificar a aptidão do pesquisador interessado no grupo: “– Se conseguir proferir o título num fôlego só e sem gaguejar o sujeito dará conta de treinar sem perigo de ter nenhum ‘peri-paque’ durante o trabalho!”. 39 A conversa fluía naturalmente e quando as piadas já cediam lugar ao tom formal que enveredaria até o convite para que eu assumisse a direção da montagem teatral em andamento pelo GITA desde o ano anterior, somos surpreendidos por uma professora que irrompe pela porta, aos berros indignada: “– É um absurdo! Esses alunos não respeitam ninguém! Fui destratada dentro de sala de aula e exijo que você, Cesário, como coordenador do curso, tome uma providência enérgica imediatamente”. Entreolhamo-nos de soslaio e usando aquele tom suave e sussurrado de outrora, Cesário procurou acalmá-la exercitando um pouco de seu prolixismo:“– Prezada professora, fique tranquila, pois tomarei todas as providências cabíveis para que não fique impune a absurda situação, ora relatada e antes vivenciada de modo vexatório por vossa prestigiada e culta pessoa que agora se encontra, com justiça, de modo sobremaneira sobressaltada e, não obstante, dignamente anelante por reparação pedagógico-administrativa.” Confesso que fiquei zonzo e já não sabia se o motivo de minha estupefação se devia ao modo descabido e descompensado da professora ou a reação pachorrenta do Cesário. A professora não se deu por convencida, aproximou-se da mesa e continuou bradando uma atitude imediata do coordenador. Cesário, que permanecia sentado, agora apenas concordava com a cabeça tentando dizer que no momento oportuno tomaria as providências. As cobranças exaltadas da professora permaneceram por cerca de cinco minutos ininterruptos de esbravejamento que a mim pareciam uma eternidade, pois me encontrava bem no meio do debate. E quando tudo dava a entender que a professora seria vencida pelo cansaço, o coordenador, num ataque de fúria incontida, se levanta, esmurra a mesa e vocifera: “– Cala a boooocaaaa! Eu vou resolver o problema na hora QUE EU QUISER e neste exato momento isso N – ÃÃà – O vai acontecer por que eu tô ocupado! E saia agora da minha sala, AGOOOORAAAA!!!”. O silêncio invadiu a sala. A professora retirou-se com os olhos arregalados e atônitos. O coordenador sentou-se delicadamente em sua cadeira e dirigindo novamente a palavra a minha pessoa, perguntou-me com elegância e parcimônia: “– Então, Edson: você aceita dirigir a montagem teatral do GITA?”. Levei um tempo para compreender que aquele acontecimento podia ser considerado uma demonstração peculiar de “quietude no centro”: oscilando de um extremo ao outro, Cesário deixou fluir natural e organicamente sua energia, conectando-a ao momento presente tal como as águas do rio que se ajustam naturalmente ao seu curso. Era o modo “Cesário” de demonstrar um princípio 40 elementar do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas: estado de prontidão. Era uma pista importante de como o treinamento auxilia na atuação. Felizmente aceitei o convite e tive inúmeras outras experiências preciosas e inusitadas ao lado do parceiro de labuta que carinhosamente passou a ser chamado de C. Sã. Experiências dignas de considerá-lo, meu mestre. GITA: o treinamento psicofísico num pedacinho do Norte do Brasil. Quando testemunhei pela primeira vez, e de modo completo, o treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas praticado pelo GITA, compreendi toda a dedicação e respeito que C. Sã depositava no grupo. Foi numa tarde de sábado, maio de 2008. O pouco fluxo de pessoas por volta das 16h nas dependências da ETUDFPA permitia reinar o silêncio e a tranquilidade. Metódico e absolutamente pontual, fui o primeiro a chegar. Em seguida chegaram Denis Bezerra, Josefa Magalhães, Juliana Tourinho e por último, com um pouco de atraso, C. Sã portando três bastões de madeira bruta – 2m de altura, aproximadamente – e uma mochila verde abarrotada de equipamentos nas costas. Do trajeto do carro até a sala de trabalho foram aproximadamente quinze minutos com direito a algumas piadas pelo caminho, muitas risadas descontraídas e sempre um “caso” a mais para compartilhar. O tom descontraído mudou completamente quando adentramos a sala 05. As paredes pretas pareciam convidar ao silêncio respeitoso de um lugar sagrado. C. Sã conduziu os aproximadamente cento e dez minutos de uma prática meditativa e marcial vigorosa com sua voz sussurrada de outrora. Posicionando-se a frente dos demais iniciou com o hatha yoga. A tranquilidade nos permitia ouvir os ruídos da respiração voluntária de cada um perseguindo a dinâmica puraka (inspiração), kumbhaka (retenção) e rechaka (expiração). Um olhar mais atento permitia acompanhar o movimento de descida (puraka) e subida (rechaka) do diafragma. Suryanamaskar, sukhasana, julahdhara-bandha, maha-mudra, ardha matsyendranasa, baddha konasana,vakrasana, paschimottanasana, sarvangasana, halasana, chakrasana, ardha- matsyasana, jathara parivrtti, ardha-shalabhasana, salabhasana, vajrasana, bakasana, shirshasana, yoga-mudra, padahasthasana, parivrtta trikonasana e vrksasana foram alguns dos âsanas praticados no silêncio daquela tarde. Conduzindo tudo com o mínimo de orientação verbal – reservada para pontuar alguma coisa especifica de cada âsana – C. Sã prosseguia liderando o treinamento passando a executar os 41 movimentos codificados do t’ai chi ch’ uan, estilo wu. A respiração continuava vigorosa, mas seguia agora uma dinâmica mais fluida que parecia acompanhar milimetricamente a transferência de peso, de uma a perna a outra, durante toda a sequência de aproximadamente quinze minutos ininterruptos. A sala parecia se mover sincronicamente com a leveza dos quatro praticantes a minha frente. A qualidade da leveza e precisão dos movimentos se alterou quando iniciaram o kalarippayattu. A fluência ganhou potência e dinâmica mais ritmada na execução das posturas abstraídas de animais como o elefante, cavalo, leão e serpente. Combinações desses animais com chutes, saltos e giros remetendo a um combate imaginário dilatou ainda mais a qualidade de presença dos quatro que treinavam naquela sala que agora parecia pequena demais para receber as sequências codificadas do vannakan, meyppayattu e pakkakal. Naquele momento compreendi todo respeito e cuidado de C. Sã com a herança que recebera de Zarrilli. Naquele momento eu tinha o privilégio de degustar uma porção de “Zarrilli com açaí”. E como “quem toma açaí fica”, eu fiquei enlaçado e embevecido com o saboroso prato. E embora naquela ocasião houvesse mais “Zarrilli” do que “açaí”, intuitivamente, os conselhos da vó Dudu jamais foram esquecidos e me serviram de receita para o preparo de minha tigela de “Açaí com Zarrilli” Sítio Arqueológito “Zarrilli com Açaí” 43 PLANO DE ESCAVAÇÃO 1. Apresentação: Sítio arqueológito dividido em cinco partes e pretende apresentar ao leitor brasileiro, não versado na língua inglesa, o eixo estruturante do pensamento/prática de Phillip B. Zarrilli; 2. Fontes Primárias: uso as seguintes obras do autor: Asian martial arts in actor training (1993); Acting (Re) considered: Theories and Pratices guide (1995); Psychophysical Acting: An intercultural approach after Stanislavski (2009); Acting Psychophysical phenomenon and process – Intercultural and Interdiciplinary Perspectives (2013); The Actor’s Work on Attention, Awareness, and Active Imagination: Between Phenomenology, Cognitive Science, and Practices of Acting (in) Performance and Phenomenology Traditions and Transformations (2015); Intercultural Acting and Performer Training (2019); 3. Composição do texto: diálogos compostos por ficção e autoficção; 4. Composição das personagens: Phillip Zarrilli nunca veio ao Brasil e atualmente possui uma agenda de compromissos que fixados em um cronograma cumprem um período de aproximadamente vinte e quatro meses. Neste sentido, sua personagem é criada, fundamentalmente, a partir do que escreve e das impressões que tenho dele provenientes dos relatos que Cesário Augusto nos fornece do período que conviveu ao seu lado, em Exeter; C. Sã, Atrizg e Luka são personagens criados como alter ego de Cesário Augusto, Geane Oliveira e o meu próprio, respectivamente, e, por isso, agrego a eles seus próprios traços de personalidade, expectativas e vivências compartilhadas no/pelo GITA; 5. Argumento da fábula: a presença de Zarrilli nos diálogos que ocorrem em Belém do Pará, é justificada como sendo pesquisador convidado para participar da III Semana GITA – evento artístico-acadêmico promovido pelo grupo de pesquisa. O evento de fato existe, mas se encontra ainda em sua segunda edição, que ocorreu em outubro de 2017 e celebrou os dez anos de atividades ininterruptas do grupo. A situação ficcional retratada, por assim dizer, é também o desejo que a visita se torne realidade num futuro próximo. Como convidado do evento, Zarrilli participa de um ciclo de discussões com os pesquisadores do GITA; 6. Notas Técnicas: 6.1: Todas as falas em fonte normal são ficcionais, inclusive as de Zarrilli – estas últimas são pautadas pelo pensamento do próprio autor que consta nas obras analisadas e em entrevista realizada com o próprio via skape (02.07.2018); 6.2: Todas as falas de Zarrilli em [itálico e entre colchetes] são citações diretas do próprio autor e foram extraídas de obras supracitadas. A exceção fica por conta das cinco primeiras citações de Zarrilli no Diálogo Primeiro que são extraídas do prefácio que ele, gentil e carinhosamente, escreveu para o livro do grupo denominado Caderno de Pesquisa do GITA; somente neste último caso a tradução é de Igor Leite – tradutor juramentado que prestou serviço à publicação; 6.3: As Citações Originais de Zarrilli em inglês, assim como os originais de outros textos que foram traduzidos, se encontram no Sitio Arqueológito Virtual10 e aparecem sinalizados e ordenados em numeração romana ao final de cada citação; 10 Conferir na aba Citações Originais no link https://arqueologita2.cms.webnode.com/citacoes-originais/ 44 6.4: As notas de rodapé com as iniciais NB são notas bibliográficas que apresentam as referências de autores que Zarrilli cita dentro do corpo de seu texto original; as notas de rodapé com as iniciais NT são notas dos tradutores – eu e Augusto Jones – e apresentam breves comentários sobre termos, conceitos e/ou expressões específicas; os grifos originais do autor são preservados e aparecem em negrito, tanto na tradução quanto no texto original em inglês; as rubricas que contextualizam as ações ao longo do texto são apresentadas em fonte normal e em negrito; 7. Exceção: O Diálogo Zero é a único, dentre os cinco diálogos, que possui estrutura parcialmente diferenciada. Nele Zarrilli não dialoga diretamente com as personagens, pois seus textos são usados com “pontes alegóricas” que guiam a jornada de Atrizg e Luka rumo a um paradigma alternativo de atuação psicofísica. Substanciando essa premissa, altero a formatação do texto referente ao recuo de 4cm na régua à direita, para 2cm de cada lado da régua, sugerindo ao leitor a imagem alegórica de pontes entre os textos; e o recuo de 1,0 cm para início de parágrafo foi eliminado pelos mesmos motivos. As demais orientações anteriores desse Plano de Escavação são preservadas. 8. Coloquialismo: Optei pelo uso de linguagem coloquial para preservar o frescor e a fluidez dos diálogos. Desse modo, expressões e termos populares, contrações de palavras, gírias e palavrões são usados em maior ou menor intensidade de acordo com o contexto e as circunstâncias de cada Diálogo e virão em itálico e grafados em substitutivos moderados – sempre que possível. Figura 4 - Mapa Arqueológito 4: Sítio Arqueológito “Zarrilli com Açaí”. Fonte: livre criação contendo os tópicos principais deste sítio arqueológito. 45 Diálogo Zero - Pontes para uma atuação psicofísica11. Ajustando a bússola. O nome de Phillip B. Zarrilli ainda é pouco conhecido entre os que se dedicam ao estudo e à prática teatral no Brasil. Seus quase quarentas anos de trabalho dedicados às pesquisas e prática teatral lhe renderam uma extensa obra que inclui quatro publicações como autor, duas como coautor e outras três como editor. Todas elas abordam, em maior ou menor intensidade, questões pertinentes aos princípios estruturantes para o desenvolvimento de uma atuação psicofísica fundada na prática e cultivo das artes marciais e/ou meditativas asiáticas. Diversos ensaios do autor compõem sua vasta contribuição para o campo das artes cênicas. Nenhuma dessas obras recebeu ainda tradução para a língua portuguesa havendo, portanto, uma lacuna para os pesquisadores/artistas brasileiros que se dedicam ao referido tema. Esse primeiro “diálogo” inaugura o estudo e acompanhamento das principais ideias presente na obra do autor norte- americano, em particular, na primeira parte de Psychophysical Acting: an intercultural approach after Stanislavski. Dialogando com vários autores renomados, alguns discípulos diretos de Stanislavski e outros tantos estudiosos da obra do diretor russo, assim como com autores da psicologia, filosofia, antropologia, neurociência, teatro, fenomenologia, artes marciais etc., Zarrilli oferece, nas palavras e parecer de Eugenio Barba – responsável pela apresentação da obra em inglês – “uma paisagem feita de pontes”i, pontes que possibilitam a articulação entre três grandes eixos: 1 – Ponte entre a tradição do teatro ocidental e do asiático; 2 – Ponte entre Arte e Ciência; 3 – Ponte entre o trabalho performático e o trabalho do performer na sua vida pessoal. Arquitetando essas pontes Zarrilli, no meu entender, constrói os alicerces que sedimentam sua própria abordagem psicofísica para a atuação a partir da sistematização de um treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas. E se você fosse convidado para atravessar essas pontes. Estaria disposto a realizar a caminhada mesmo sem conseguir visualizar o final de cada uma delas? Isto é, estaria disposto a 11 Versão atualizada de comunicação oral apresentada no VIII Fórum Bienal de Pesquisa em Artes (PPGArtes ICA/UFPA, 2017), sob o título “Pontes para uma atuação psicofísica: Resenha Criativa a partir da primeira parte da obra Psychophysical Acting: an intercultural approach after Stanislavski, de Phillip Zarrilli”. A versão original encontra-se no prelo dos anais do evento. 46 seguir de uma margem à outra sem a certeza das condições estruturais, do tempo de travessia e do que poderá encontrar do outro lado? Este alerta, embora pareça desanimador, se articula às propriedades simbólicas presentes nas narrativas que envolvem “pontes”, segundo nos mostra Jean Chevalier: “[...] viagem iniciatória [...], local de passagem e de prova [...], poder-se-ia dizer que a ponte simboliza uma transição entre dois estados interiores, entre dois desejos em conflito [...]. É preciso atravessá-la; fugir à passagem nada resolveria” (2007, p.729-730). Como não há escapatória, é preciso seguir em frente. Os desbravadores personagens que nos permitirão acompanhar sua jornada serão: a Atrizg, jovem estudante de teatro, filha de agricultores rurais e de uma delicadeza de causar inveja ao porco espinho; e o professor de meia idade Luka Paranoid, adepto da pedagogia “do C ao K”, denominação criada por ele próprio para expressar os polos complementares de um aprendizado que concilia a amabilidade e o cuidado – necessários para forjar uma relação de respeito e confiança – com o espírito e prática marcial –, necessários para fortalecer os pés descalços dos atravessadores de pontes. A utilização de personagens para conduzir o leitor ao longo da narrativa não é procedimento inovador. Constantin Stanislavski (1863-1938), o diretor teatral russo que será bastante citado por Zarrilli, já recorreu ao procedimento nas primeiras décadas do século XX, para oferecer ao leitor um olhar didático e o mais fiel possível dos seus laboratórios de criação teatral. Meu intuito com esse procedimento é aproveitar a metáfora das “pontes” sugerida por Barba, expandindo-a e trabalhando-a como “alegoria” ao longo de todo o texto, a fim de criar um ambiente ficcional-imagético para que os personagens, por meio de sua jornada, nos revelem de modo lúdico os ensinamentos presentes nos textos de Zarrilli. Para tanto, é preciso dizer que trabalho com a concepção de “alegoria” presente no pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Em sua obra, Origem do drama barroco alemão, o pensador nos convida a pensar o conceito de “alegoria” fazendo um contraponto ao conceito de “símbolo”: (...) a medida temporal da experiência simbólica é o instante místico, na qual o símbolo recebe o sentido em seu interior oculto e por assim dizer, verdejante. Por outro lado, a alegoria não está livre de uma dialética correspondente, e a calma contemplativa, com que ela mergulha no abismo que separa o Ser visual e a Significação, e com a qual ela tem afinidades aparentes. (1984, p.187-8) Segundo Benjamim, embora o conceito de “alegoria” se estabeleça por uma relação dialética entre o objeto (o Ser) e a aquilo que ela pretende convencionar como sua significação, diferentemente do “símbolo”, há um abismo entre esses dois elementos (Ser / Significação), abismo 47 este que impede a unicidade imediata entre ambos, tal como acontece na relação dialética na esfera simbólica. E isto porque, como nos esclarece o filósofo da aura: Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora, quando tocada pelo clarão do saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue. Pois o eidos se apaga, o símile se dissolve, o cosmos interior se resseca. Nos rebus áridos, que ficam, existe uma intuição, ainda acessível ao meditativo, por confuso que ele seja. (Ibidem, p.198). Na esfera alegórica abre-se um universo múltiplo de construção de significados a partir dos fragmentos, das ruínas das imagens com as quais se relaciona. Segundo Joaquim Gama12, a alegoria na concepção de Benjamin possibilita “a revelação de uma verdade oculta. Em seus estudos, ela não representaria as coisas tais como são, mas uma versão de como foram ou poderiam ser” (2016, p.07). As “pontes alegóricas” que construo a partir dos textos originais de Zarrilli, portanto, pretendem convidar o leitor para o início de uma longa jornada estabelecida nessa pesquisa, jornada para desvendar, decifrar, revelar os segredos voltados ao paradigma alternativo para uma atuação psicofísica. Siga em frente, não se preocupe com o possível balanço das pontes e contemple a paisagem desse horizonte intercultural arquitetado por Phillip Zarrilli e Adolphe Scott. Atrizg: Éééééééguaaaaaa!!! Onde eu tava com a cabeça quando resolvi parar aqui? Pelo amor de deus!!! Eu devia tá muito doida da minha cabeça!!! Vou embora!!! Não vou atravessar isso aí nem que a vaca tussa!!! Luka: (com ar de reprovação) Cala a boca e deixa de drama. Já veio até aqui. Não tem volta. Atrizg: Mas não dá nem pra vê o que tem do outro lado. Não dá pra vê nem se tem outro lado! Olha só: parece uma ponte infinita que não vai levar a lugar nenhum. Luka: Queres dizer: pontes! Na verdade são pelo menos três que vão se conectando ao longo da trilha. Atrizg: Tchau mesmo!!! Tô cagando pra essas pontes. Tenho mais o que fazer. Prefiro voltar pra rotina da roça, plantar mandioca, feijão, milho, maxixe, abóbora e quiabo. É duro, o sol castiga, a mão fica igual uma lixa, mas os frutos são certos... Luka: (interrompendo) Para de frescura e tira logo esses sapatos. Pra seguir a diante devemos andar descalços. 12 NT: Autor do livro “Alegoria em Jogo – A encenação com prática didática”, obra onde o leitor poderá aprofundar o entendimento sobre o conceito de alegoria. É recomendável também consultar as obras do filósofo Walter Benjamin que constam nas referências. 48 Atrizg: Égua! Já disse que não vou! Tô fora! Me esquece! Não enche o saco! (Dando meia volta) Luka: Tá bom então. Mas depois não vem me procurar pelos corredores, pra ajudar nos trabalhinhos teatrais da escola ou da igreja. [Silêncio longo] Atrizg: (se retratando) Desculpa. Eu vim até aqui porque quis. Ninguém me obrigou. Ahhhh!!! Mas me assustei. Égua, como é que vou atravessar isso daí descalça e sem saber que rumo tomar? Luka: E pensas que sou burro de vir aqui de mãos abanando? Claro que não, cabeçuda. Trouxe um mapa e a famosa bússola de Zarrilli que nos orientará para seguirmos sempre perseguindo o Polo Norte, terra de habitantes que cultuam a atuação psicofísica. Atrizg: (tirando os sapatos) Nossa! Isso ajudaria pra k-raleo se eu soubesse como usar. [atirando uma banda do sapato no mar] Luka: Calma. Deixa isso comigo. Vamos seguir juntos, caminhando lado a lado. Atrizg: Ok. Não tem outro jeito mesmo. [atirando o outro lado do sapato no mar e pensando alto] Acho que tô ferrada! Luka: Vamos lá então. (começam a caminhada de mãos dadas e descalços). Atrizg: Caramba, isso é pedra!? É pedra bruta! Uma ponte de pedra bruta vai acabar com meu pé. Deixa eu colocar meu sapato? Luka: Claro que não. E além do mais, acabaste de arremessar o “encardido” no mar. Presta atenção no motivo de começarmos pela ponte de pedras: O trabalho do ator e diretor de teatro russo, Constantin Stanislavski (1863-1938), revolucionou as abordagens ocidentais de atuação no final do século XIX e início do século XX. Stanislavski foi o primeiro a usar o termo “psicofísico” (psikhofizicheskii) voltado à atuação ocidental para descrever uma abordagem focada tanto na psicologia quanto na fisicalidade do ator, ambas aplicadas na atuação do personagem que tem por base o texto. ii Atrizg: Eita! Essas pedras vieram da Rússia? E do início do século passado? Agora que me lasquei de vez. Essa ponte é mais velha que minha avó. Deve tá quase pra cair! E que invenção de moda é essa de “psicofísico”? Luka: Deixa de ser ignorante e segue caminhando. Não tá vendo a textura e consistência das rochas sedimentares que dão sustentação pra ponte? Duvido que tenha outro material mais adequado pra enfrentar este mar brabo que tá aí embaixo. 49 Atrizg: É verdade. Agora que me dei conta que o mar tá bastante agitado. Luka: Pois é. Ficaste tão assustada com o tamanho da ponte que esqueceste de olhar pro mar que se formou bem embaixo. Isso tem a ver com tua pergunta sobre o “psicofísico”. São águas milenares que nasceram da foz do mar chamado Plato-Cartesianus. Reza a lenda que desde Platão quem se banha nessas águas fica fadado a acreditar que o corpo é separado da mente. Por isso essa ponte foi construída com rochas sedimentares capazes de resistir à ação do tempo e desse tipo de mar. Atrizg: E o que isso tem a ver com o psicofísico? Luka: Tudo. Afinal, estamos caminhando numa ponte que nos levará ao paradigma alternativo de atuação psicofísica. Ou seja, caminhamos com o objetivo de aprender como desenvolver nosso trabalho de atuação sem incorrer numa abordagem que separe o “corpo” da “mente”. Atrizg: Sinceramente, acho tudo “papo furado”! Pra fazer teatro, basta decorar um texto e incorporar uma personagem. Luka: Nos fizeram acreditamos nisso durante séculos, mas graças a estas pedras russas aqui, hoje podemos pensar e trabalhar de maneira diferente. Olha só como o mapa de Zarrilli nos mostra como estas pedras foram se sedimentando para se tornar esta ponte: Elementos-chave da abordagem psicofísica em constante evolução de Stanislavski foram elaborados a partir de duas fontes principais: o trabalho do psicólogo Théodule Armand Ribot (1839-1916) e as versões limitadas do yoga indiano disponíveis para Stanislavski na Rússia da virada do século, filtradas através do então popular ocultismo e espiritualismo13. Desde seu foco inicial na memória afetiva até seu método posterior de ações físicas, Stanislavski sempre tentou superar o que dividia “a mente do corpo, o conhecimento do sentimento, a análise da ação”14. iii Atrizg: Caramba. Tá ficando complexo. Acho melhor voltar enquanto ainda consigo ver a margem de onde partimos. Meus pés estão ficando machucados dessas pedras. Luka: Nem pensar. Pega essa pequena trilha de ferro aqui à esquerda, sugerida por Sharon Marie Carnike: As teorias psicofísicas de [Ribot] [...] afirmam que a mente e o corpo são uma unidade, e que as emoções não podem ser experimentadas sem sensação física [...] Como Stanislavski escreve em O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, Parte I, “Em cada ação física há algo de psicológico, e no psicológico, algo de físico”15. iv 13 NB: (Wegner, 1976: 85-89, Carnicke,1993: 131-145, White, 2006: 73). 14 NB: (Benedetti, 1982: 66). 15 NB: (Carnicke, 1998: 178). 50 Atrizg: Égua, essa trilha de ferro tá gelada. E essa ponte de ferro range mais que as escápulas velhas da minha rede de dormir. Luka: Para de reclamar de tudo e observa como essa trilha de ferro se agrega bem à ponte de pedras de onde partimos. Stanislavski usa o termo “psicofísico” com seu significado mais evidente e comum: “inter- relacionar ou existir entre o físico e o psíquico”, ou “participar do físico e do psíquico”16. Certamente o trabalho do ator ocorre nesse território entre o que nós ocidentais pensamos como o “físico” e o “psíquico”, ou o “exterior” e o “interior”. Mas o que constitui cada elemento desse composto? Qual é a relação entre físico e psíquico, exterior e interior? É possível desenvolver uma linguagem e uma teoria da atuação que não sejam vítimas de nosso inerente dualismo ocidental “mente-corpo”?v Atrizg: Tô vendo é a hora de pegar um tétano nessa ponte de ferro, nojenta e enferrujada. Luka: A salinização do mar é que provoca esse desgaste no ferro. Mas não te preocupa. Estamos chegando numa parte onde o ferro ainda é bastante preservado. É só dobrar novamente à esquerda... Atrizg: (interrompendo) Agora que percebi esse monte de ramificações que essas pontes vão fazendo. Tá parecendo um labirinto de pontes sobre esse mar violento. Luka: Dobra nesta com a placa indicando Joel Pfister. Desde meados do século XIX até o século XX, várias versões da psicologia passaram a determinar como os ocidentais costumam pensar e falar sobre o “eu”, a experiência e a vida “interior”, incluindo as “emoções”. Como suposições particulares sobre o “eu” e sobre a subjetividade tornaram-se normativos, parecem bastante comuns para ocultar sua invenção histórica. Mas, como explica Pfister em Inventing the Psychological, é crucial “reavaliar a premissa (não histórica)... de que o psicológico é um princípio universal, um ‘princípio fixo de inteligibilidade’, uma base – estabelecida pelos psicólogos – para a explicação da motivação, caráter e comportamento”17. Historiadores, sociólogos, psicólogos, atores e teóricos da atuação devem “examinar e contextualizar” o próprio psicológico “como uma categoria histórica, um fenômeno cujos significados culturais e significado social se alteraram ao longo do tempo e, portanto, exigem explicação”18. vi Atrizg: Quer dizer que esse mar violento que é capaz de amaldiçoar quem nele resolver tomar banho, nem sempre foi assim? Luka: Tá ficando esperta, heim. Isso mesmo. As águas do Plato-Cartesianus ficaram assim turbulentas ao longo da história e cada vez mais avessas à ideia de integrar “corpo e mente” num 16 NB: (Webster's Third International Dictionary, 1976: 1833). 17 NB: (Pfister e Schnog, 1997: 42). 18 NB: (Ibidem: 42) 51 organismo só. (apontando para a próxima curva da trilha de ferro) Hora de voltar pra ponte de pedras. Atrizg: Éguaaaaa!!! Agora que comecei a entender as coisas temos que voltar pra tortura daquela ponte de pedras! Stanislavski descreveu como a “partitura física” do ator, uma vez aperfeiçoada, deve ir além da “execução mecânica” para um nível “mais profundo” de experiência que “é arredondado com um novo sentimento e... se torna, digamos, psicofísico em qualidade”19. Em Minha Vida na Arte, Stanislavski descreveu o ideal estado de consciência ou concentração do ator como aquele em que ele “reage não só em sua visão e audição, mas em todo o resto de seus sentidos. Ele abraça sua mente, sua vontade, suas emoções, seu corpo, sua memória e sua imaginação”20. O ideal para Stanislavski era que “em toda ação física... há oculto alguma ação interior, alguns sentimentos”21. vii Atrizg: A única ação física que desejo realizar agora é sentar e descansar. Luka: É uma boa ideia, mas anda só mais um pouquinho até aquela estátua indiana cravada no alto do arco da ponte. Atrizg: (apontando) Em frente à ponte de bambus? Embora o seu conhecimento de yoga fosse limitado e pudesse ter sido extraído exclusivamente de livros em sua biblioteca, Stanislavski adaptou exercícios e princípios específicos de yoga para ajudar a sintonizar e aumentar a percepção sensorial do ator no desempenho. Indiscutivelmente o elemento material mais importante emprestado do yoga por Stanislavski foi o prana (ou o composto sânscrito, prana-vayu) – a respiração, o vento, a energia vital ou a força vital entendida para circular dentro de si. Stanislavski forneceu uma descrição bastante precisa do movimento do prana, como segue: “O Prana move-se, e é experimentado como o mercúrio, como uma serpente, de suas mãos até as pontas do dedo, de suas coxas aos seus dedos do pé [...] O movimento do prana cria, em minha opinião, ritmo interno”22. viii (sentados diante da estátua indiana e na frente da trilha de bambus) Luka: Não é linda? Atrizg: Sinto tranquilidade. Mesmo com o barulho desse mar violento aqui embaixo, olhando pra estátua, consigo relaxar. 19 NB: (Stanislavski, 1961: 66). 20 NB: (Idem,1948: 465). 21 NB: (Op. Cit.: 228). 22 NB: (Carnicke, 1998: 141). 52 Luka: Então, fecha os olhos e entra em sintonia com a tua respiração. Vamos descansar um pouco. (Permanecem sentados e em silêncio por alguns minutos) Atrizg: (mais tranquila) Caramba!!! Quase dormi, de tanto que relaxei. Luka: Que bom que conseguiu descansar. Estamos só no começo. Vamos! (levantando-se) Atrizg: (ainda sentada) Vamos seguir pela ponte de bambus? Luka: Ainda não. Olha só o tanto de trilhas que a ponte de pedras nos oferece (apontando a frente): O legado de Stanislavski é profundamente diverso. É como um carvalho envelhecido – cada ramo principal com suas próprias torções, voltas, nós, etc. – alguns dos quais se transformam em si mesmos. O tronco primário e muitos de seus ramos principais incluem aqueles principalmente interessados, como foi o próprio Stanislavski, com atuação de personagens que tem por base o texto. Alguns desses ramos foram desenvolvidos por aqueles que estudaram e/ou trabalharam diretamente com Stanislavski e permaneceram na Rússia, como Maria Osipovna Knebel (1898-1985) ou Vasily Osipovich Toporkov (1889- 1970) 23. Outros foram desenvolvidos por aqueles que trabalharam e treinaram por um tempo com Stanislavski, mas emigraram da Rússia Soviética para o Ocidente. Os primeiros entre eles estavam Richard Boleslavsky e Maria Ouspenskaya que fundaram o American Laboratory Theater (1923-1926). Michael Chekhov (1891-1955) fundou o Estúdio de Teatro Chekhov em Dartington Hall, Reino Unido (1936/1938) e sobre a emigração para os Estados Unidos desenvolveu sua própria abordagem em Ridgefield, Connecticut (1938/1942) e mais tarde em Hollywood. ix Atrizg: É muita ponte pra pouca gente! Que inferno. Preferia ficar por aqui, sentada e sentindo o... como é o nome estranho que Stanislavski usa pra fazer os atores respirarem? Luka: Prana. Espero que não seja só deslembre de iniciante. Vamos seguir pelas pedras. Anda (ajudando a se levantar). Atrizg: (levantando-se e recomeçando a caminhar) Caramba! Odeio pedras. Ahrrrr! (pausa) É impressão minha ou essa parte da ponte tá com as pedras mais desgastadas? Luka: Ainda bem que notou. Foi uma parte da ponte bastante atacada e quase caiu. 23 NB: (Carnicke: 1998: 151). 53 Sharon Carnicke relata como as autoridades soviéticas estavam tão perturbadas pelo idealismo da filosofia hindu, que informava partes do trabalho de Stanislavski, que “censores atacavam o interesse de Stanislavski pelo yoga” e expurgaram o prana da edição russa de Stanislavski, em 1938, passando a enfatizar o seu método tardio de ações físicas, obscurecendo a importância do simbolismo e do formalismo do yoga em seu trabalho 24. / Nos Estados Unidos, as altamente problemáticas traduções inglesas do trabalho de Stanislavski por Elizabeth Hapgood (Stanislavski, 1936, 1949, 1961), o domínio das versões de métodos americanos da abordagem de Stanislavski e “um ethos orientado individualmente para Freud, privilegiou as técnicas psicológicas do Sistema de Stanislavski sobre as do físico” 25. Esta preocupação precoce nos Estados Unidos com a psicologia e a criação de uma vida emocional verdadeira para o personagem significava que, assim como a versão soviética, a importância do simbolismo, formalismo e yoga no sistema de Stanislavski, em constante evolução, também eram obscurecidas. x Atrizg: O que é aquilo brilhando ali? (sem conter a ansiedade, corre na direção do brilho) Luka: (gritando) Cuidado! Vai devagar. São pontes... (tentando alcançá-la) Pontes de vidro! (Param no entroncamento das pontes. Ela deslumbrada, ele ofegante). Quando Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou eventualmente visitaram a América durante os nãos de 1923-1924, os atores americanos conheceram uma versão particular de Stanislavski baseada no repertório realista que a companhia realizou e em uma série de palestras públicas sobre o sistema de atuação de Stanislavski. Enquanto nos Estados Unidos, o Teatro de Arte de Moscou apresentou quatro peças de seu bem estabelecido repertório precoce – Tsar Fiodor de Alexei Tolstoi, The Lower Depths de Maxim Gorki e The Cherry Orchard and Three Sisters de Anton Chekhov 26, não houve performances do trabalho mais experimental de Stanislavski, como as peças simbolistas de Maeterlinck. / Os atores americanos estavam tão curiosos sobre o “sistema” de Stanislavski que ele deu permissão para que seu ex-aluno e assistente na turnê, Richard Boleslavsky, desse uma série de seis palestras públicas. “Boleslavsky enfatizou a importância da memória emocional, desenvolvendo a técnica para além da prática original de Stanislavski”27. E isso na época em que Stanislavski “colocava maior ênfase em tarefas e ações físicas” no desenvolvimento de seu próprio processo. A combinação de performances do repertório realista e das palestras de Boleslavsky criou uma imagem distorcida e incompleta dos interesses de Stanislavski como diretor, bem como sua abordagem à atuação. xi Atrizg: São lindas. Vamos atravessar! Por que essa cara de espantado? Luka: Não percebeu de onde vem o brilho dessas pontes? Atrizg: Sei lá. O importante é sair deste caminho de pedras. Meu pé tá todo esfolado. 24 NB: (Ibidem: 144, 1-2). 25 NB: (Ibidem: 1). 26 NB: (Benedetti, 1999: 282-287). 27 NB: (Ibidem: 286). 54 Luka: Essas pontes não possuem brilho próprio, apenas refletem a luz e tudo que tá a sua volta. E esqueceu que estamos atravessando o mar Plato-Cartesianus? Atrizg: Poxa, mas podemos pelo menos dar uma passadinha por lá? Luka: Não. Lá tem pelo menos outras duas ramificações de pontes de vidro que podem nos desviar do caminho: Lee Strasberg (1901-1982) e Sonia Moore (1903-1995). E também já vai anoitecer. Vamos sair daqui antes que escureça de vez. (Seguem) Atrizg: Aonde vamos passar a noite? Luka: (apontado) Ali, na ponte de madeira de Bella Merlin. Ligado a linha de pensamento de Stanislavski, a atriz profissional, autora e professora Bella Merlin sugeriu recentemente que é hora de ir além dele, ou seja, além das limitações das versões anteriores de Stanislavski, indo ao encontro direto com o falecido autor russo, como praticado e ensinado na Rússia. (...) Merlin fornece uma reavaliação articulada, não- absurda e pragmática do trabalho psicofísico em Stanislavski à luz dos ensinamentos recentes do autor na Rússia e do estudo da estrutura dramática pós-moderna e do histórico dele 28. / Focando em particular no processo de Stanislavski da “análise ativa”, desenvolvido no final de sua carreira, o ator trabalha constantemente de modo autônomo através da improvisação. A ênfase está em “agir, fazer, experimentar, tocar” 29. Merlin fornece uma abordagem abrangente e prática de Stanislavski em que não há “divisão entre corpo e mente, mas um contínuo” 30. O estado ideal do ator psicofísico de Merlin é descrito como “constante improvisação interior” 31 – um estado no qual o ator se abre, age e responde ao ambiente performativo em que ele habita no momento. xii Atrizg: Não tô vendo onde vou conseguir atar minha rede. Vamos dormir no chão? Luka: Pensa pelo lado bom: é um chão de madeira, não é de vidro e nem de pedra. Boa noite. Atrizg: Ahrrrr. Que inferno!!! (Deitam no chão e dormem. Passagem de tempo até amanhecer) Luka:(sacolejando a Atrizg, que ainda dorme) Acorda. Acorda. Tá na hora de seguir. Atrizg: (bocejando) Éééééguaaaaaa!!! O sol ainda nem raiou! Me deixa dormir. Luka: Deixa de preguiça. Temos muito caminho pra percorrer hoje. (Seguindo caminho pela ponte de madeira) Tá vendo mais ali na frente, no cruzamento com a ponte de pedras? Atrizg: (começa a andar contrariada e se espreguiçando) Mal consigo enxergar meu nariz. 28 NB: (Carnicke, 1998). 29 NB: (Merlin 2001: 253). 30 NB: (Ibidem: 27). 31 NB: (Ibidem, 28). 55 Luka: (correndo na direção indicada anteriormente; os primeiros raios de sol despontam no horizonte). É aqui que começamos. Preparada pro início do treinamento? Atrizg: (Ao alcançar Luka) Tá falando do quê? (estarrecida ao se deparar com a nova ponte) Caramba!!! Luka: Tô falando do estado de “quietude no centro”xiii, necessário para se “manter imóvel enquanto não se está imóvel”xiv. Sem esses princípios32, jamais conseguirás atravessar essa ponte de cordas. (a ponte é formada por cordas nas laterais e tábuas amarradas na base que servem pra firmar os passos.) Treinar o ator para “se manter imóvel enquanto não se está imóvel” significa necessariamente uma transformação da relação do praticante com seu corpo e mente na prática, e também de como se conceitua a relação entre eles. xv Atrizg: (exclamando) Para de graça! É impossível seguir por essa ponte. Meus pés tão todos esfolados das pedras... Luka: Tudo bem. Vamos com calma. Atrizg: Por que eu fui reclamar das pedras? (Decidida) Quer saber: vou passar é correndo pra me livrar disso duma vez só. (Sai em disparada na direção da ponte de cordas. Depois dos passos iniciais a ponte começa a balançar, Atrizg entra em desespero e se agarra as cordas laterais pra não ser arremessada ao mar). Quando A. C. Scott iniciou o “Programa de Teatro Experimental Asiático”, em 1963, e encontrou pela primeira vez atores americanos, ele observou: “Fiquei preocupado com o naturalismo casual que os estudantes americanos de teatro associavam a atuação, impressionado pela vitalidade que desperdiçavam desnecessariamente, incomodado pela verborragia articulada na natureza psicológica do teatro e consternado pela sua frágil extensão de concentração que se manifestava em uma atitude pouca disciplinada, que parecia surgir de uma incapacidade de perceber que em um ator silencioso ainda deve permanecer uma presença física no palco e na sala de ensaio” 33. xvi 32NT: Trata-se dos princípios citados e trabalhados por Robert L. Benedetti (1939) e Adolf Clarence Scott (1909-1985), autores pioneiros que elaboram o programa de treinamento psicofísico para atores-alunos de graduação da universidade de Wisconsin-Madison, em 1963, e que tinha como fundamento a prática diária do t’ai chi ch’ uan (estilo Wu). 33 NB: (Scott, 1993: 52). 56 Luka: (rindo e se aproximando lenta e tranquilamente) Tanta ansiedade e pressa pra quê? Pra terminar agarrada igual uma lagartixa na parede? Esqueceu do exercício do prana? Da quietude no centro? (passando por ela e seguindo adiante) Atrizg: Caramba. Socorro. Me tira daquiiii!!! Luka: Vou te esperar no entroncamento da próxima ponte de cordas. Vê se não demora. Não esquece da respiração. Atrizg: Infernooooooooo!!! Scott começou a usar o t’ai chi ch’ uan para treinar atores “muito antes que o interesse atual nas formas asiáticas de treinamento físico tivesse varrido a América”34. Implícito no uso de Scott do t’ai chi ch’ uan como uma disciplina de treinamento de ator não estava apenas uma rejeição ao tipo de atenção exclusiva dos atores norte-americanos relacionada a um paradigma psicológico e/ou comportamental de atuação, mas também uma tentativa de atualizar um paradigma psicofísico alternativo. xvii Luka: (deitado na ponte de cordas). Acho que é ela que tá vindo ali. Até que não demorou muito. Foram apenas duas estações do ano. Um bom começo pra uma pessoa bastante ansiosa e explosiva. Atrizg: (com certa serenidade) Tu és um monstro. Quase morri. Tô toda dolorida, cansada, com o corpo e a mente em frangalhos. Exausta. Luka: Um bom sinal. Precisamos seguir. A trilha que nos levará até as cordas de Zarrilli não tá muito longe. Aproveita os últimos quilômetros pra treinar ainda mais a disciplina. Vais precisar. (Segue a frente sozinho. Com passos mais lentos ela o segue em silencio). Luka: Chegamos. Atrizg: (estupefata) Misericórdia!!! Uma ponte que só tem duas cordas: uma pra pisar e outra pra se segurar. Me ferrei de vez. Luka: Sem estresse. Já chegou até aqui. Atrizg: (irritada) Vai por inferno!!! Sai da minha frente senão vou usar essas cordas pra te enforcar. Juro que esse é o sonho da minha vida! Luka: Deixa de drama. Vou seguir na frente. Não esquece que o segredo é manter a “quietude no centro”. (começa a atravessá-la. Vez por outra observa de soslaio para ver a reação de Atrizg que se mantém imóvel no início da ponte. Suspirando em voz baixa). Pelo menos já aprendeu a dominar a ansiedade. (Pra si) Vamos, eu sei que consegue... . 34 NB: (Ibidem: 52). 57 Baseado em meus anos de treinamento de kalarippayattu com Gurukkal Govindankutty Nayar, C. Mohammed Sherif, Gurukkal de Sreejayan, Mohamedunni Gurukkal, e Raju Asan, no treinamento de t’ai chi ch’ uan com AC Scott, e treinamento de hatha yoga com Chandran Gurukkal e Dhayanidhi, eu teci um complementar conjunto de disciplinas psicofísicas que começam e terminam cada dia de treinamento com uma série de exercícios simples de controle da respiração. O treinamento começa com a respiração porque oferece um caminho psicofísico para a sintonia prática do corpo e da mente. A respiração atenta fornece um ponto inicial para compreender um estado ideal de consciência corpo-mente e de prontidão em que o “corpo se torna todos os olhos” e é capaz de “se manter imóvel enquanto não está imóvel”. xviii Luka: (entardeceu) Ela continua imóvel. Que merda. (em voz alta e irritado) Eu sabia que não ias conseguir. Me fez perder tempo. Atrizg: (com um leve sorrido no canto da boca e em voz baixa.) O tigre também aprende truques convivendo com o jumento. (Começa a caminhar, muito lentamente provocando instabilidade contínua, mas moderada na ponte, com alguns momentos de solavancos). Usando hatha yoga, t’ai chi ch’ uan e kalarippayattu, os participantes se permitem explorar três disciplinas corporais, cada uma das quais exige que eles desenvolvam e manifestem sua energia em modos qualitativamente diferentes de corporificação e expressão. No hatha yoga, a pessoa está fisicamente imóvel, mas a sua energia é internamente ativa, animando a postura. Baseado no paradigma da yoga, o kalarippayattu tem momentos de êxtase dentro de sequências que são dinâmicas e fluidas, e manifestam tremendo poder e energia. Embora bonita em seu fluxo, suas sequências têm precisas e fortes liberações imediatas de energia em alguns de seus chutes, saltos e passos. Em contraste, o t’ai chi ch’ uan é macio, circular, mas por trás disso a suavidade tem poder e uma força enraizada. xix Luka: (num misto de satisfação e indignação) Que filha da mãe! (Atrizg contem o sorriso. Longo silêncio. Ouvem-se apenas, o barulho das águas turbulentas do Plato-Cartesianus e de ambas as respirações). O processo de treinamento é inicialmente pre-performativo. A preocupação inicial não é o fim – em uma apresentação final – mas sim o fato de o ator tomar o tempo necessário para trabalhar em si mesmo. O self em que se trabalha não é o self psicológico/comportamental, mas sim o self psicofísico – o self experiencial/perceptivo constituído no momento pela percepção sensorial, percepção e atenção ao corpo-mente no ato de fazer e como resposta ao ambiente. Ao permanecer dentro dos exercícios, ao não permitir que a mente perca a atenção da respiração sempre presente e ainda manter uma consciência aberta para o ambiente, o praticante começa um processo que explora as sutilezas da relação entre os elementos físico mental/cognitivo/perceptual, tecidos juntos, simultaneamente e em jogo no trabalho incorporado. xx (uma tempestade se aproxima. Rajadas de vento balançam a ponte). 58 Luka: (Olhando pro céu) Vamos seguir. Segura firme nas cordas e mantém a atenção na respiração... (a tempestade deságua sobre a ponte que continua balançando bastante) Atrizg: Tá ficando muito escorregadio. Não tô conseguindo firmar os pés e as mãos. Falta muito pra chegar num lugar seguro? Luka: Já estais num lugar seguro. Continua trabalhando a respiração, e segue caminhando: um passo de cada vez, sem pensar no passo que veio antes e nem no que vem depois. Atrizg: (Paralisada) Tô tremendo de frio. Não consigo me mexer. O vento frio e os pingos de chuva tão me matando. Luka: Não tem vento frio; não tem pingos de chuva. Se continuar trabalhando a respiração vai perceber que tu podes te confundir com a tempestade. Não pensa no vento, te tornas o vento; não pensa nos pingos de chuva, te torna os pingos de chuva. Não pensa na tempestade, seja a tempestade. (Ela volta a caminhar com passos lentos, mas firmes. A tempestade continua por meses; a ponte balança. Entre os dois um cúmplice silêncio. Eles avançam sobre a trilha de cordas, demoradamente. Durante a caminhada que segue em silêncio, sobressaltos inesperados de ambos interrompe, por vezes, o estado de tranquilidade cultivado nos semblantes. Segue a tempestade, o vento, a chuva, o balanço da ponte, a silenciosa troca de olhares, de energia, de afeto, de cuidado...) Ao praticar exercícios psicofísicos como yoga, kalarippayattu e t’ai chi ch’ uan, sob a orientação de um professor mestre, assumimos que haverá uma mudança progressiva e refinamento na relação corpo-mente que é diferente da relação corpo-mente normativa e cotidiana. Como vimos, tal prática começa com o corpo externo e progride do externo para o interno, rumo à realização de uma relação cada vez mais sútil e refinada na prática. xxi Atrizg: Sou tempestade... Luka: Se tornou tempestade. Parabéns. Agora se torne ponte. (Avança com passos mais firmes até o próximo entroncamento de pontes onde há uma pequena plataforma de metal prateada.). Fenomenologicamente falando, nunca se pode experimentar uma mente ou corpo de forma independente... “Aspectos mentais” e “aspectos corporais” foram abstraídos com tanta frequência que há uma tendência a acreditar que esses termos têm correlatos experienciais independentes exatos. Embora possa haver aspectos mentais e aspectos corporais dentro de toda experiência vivida, a presença de qualquer um inclui experiencialmente a presença do outro. Esta relação pode ser descrita como sendo “polar” ao invés de “dual”, porque mente e corpo exigem-se uns aos outros como uma condição necessária para ser o que são. A relação é simbiótica 35. xxii 35 NB: (Shaner, 1985: 42-3). 59 Atrizg: Demorei? Luka: O tempo necessário pro teu aprendizado. Atrizg: A tempestade passou. E agora? O que faremos aqui nessa plataforma? Luka: Pausa pra aprender a dominar as tempestades que virão. Vamos seguir a trilha de David Edward Shaner. Depois voltamos pras cordas. (Seguem por uma trilha de metal) Shaner diferencia três modos de consciência do corpo-mente. Em uma das extremidades do espectro está o tipo de consciência “corpo-mente” reflexiva, discursiva36, na qual a dimensão sinestésica é menos evidente. Neste modo de consciência, estamos usando o lado direito do nosso cérebro para analisar um problema matemático, resolver um quebra- cabeça ou fazer a marcação de um texto. Podemos nos tornar completamente absorvidos pensando em algo e, momentaneamente, esquecer que temos um corpo. (...) Nós estamos usando a consciência de terceira ordem enquanto escrevemos e/ou lemos. Análise e compreensão de um texto dramático específico é, naturalmente, uma parte importante da preparação para desempenhar um papel específico; contudo, a análise e/ou a pontuação são formas de preparação para abordar a concretização de um papel. xxiii Atrizg: Quer dizer que temos três formas de enfrentar as tempestades? Luka: Exatamente. E nos três modos, corpo e mente estão sempre trabalhando de forma integrada. (Seguem caminhando por uma curva a esquerda) Na outra extremidade do espectro, a partir de formas proposicionais de conhecimento, é a consciência do corpo-mente de primeira ordem que é pré-reflexiva. Imagine que você está fora de casa para uma caminhada na floresta. Você não está determinado a chegar a nenhum lugar específico. Não há nada específico em sua mente. Você está simplesmente andando, e em um estado de liberdade, ouvindo o ambiente. Nossa experiência vivida neste estado é a mais ingênua, natural ou inocente. Não há intencionalidade em caminhar, pensar, fazer. Nesse estado “pode-se sugerir que pensamos com nosso corpo e agimos com nossa mente e vice-versa” 37. xxiv Atrizg: Não há corpo sem mente e nem mente sem corpo. É isso? Luka: Muito bem. Tudo é uma questão de onde colocamos a ênfase de nossa consciência. Já percebeu que já faz um tempinho sem nenhum resmungo ou rabugice? Atrizg: Meu cacetinho!!! Luka: Tava demorando. Atrizg: To brincando. 36NB: (Ibidem: 48). 37 NB: (Ibidem: 46). 60 Luka: Então, quando colocamos a ênfase em praguejar a tempestade, investimos energia em tentar compreender por qual motivo tamanha adversidade se abateu sobre nós. Atrizg: Quando me tornei a tempestade, me integrei a ela sem intencionalidade, sem nada pra me encher o saco. Caramba. Parece simples, mas sofri pra entender isso. Luka: Às vezes o problema é que queremos ENTENDER, ao invés de simplesmente agir sem intencionalidades. Mas isso não é tudo. Depois de se tornar tempestade é preciso se tornar ponte. (Seguindo por mais uma curva a esquerda) A consciência do corpo-mente de segunda ordem também é pré-reflexiva, mas com uma diferença. Este é o estado ideal para estar em desempenho através de modos assíduos de prática corporificada, como arte marcial, yoga ou atuação. É um estado não-intencional de “presenciar”38 em que o “horizonte é uma gestalt” de possibilidades. Este horizonte de possibilidades é a estrutura de uma sequência de artes marciais, uma postura de yoga, ou a marcação de atuação desenvolvida em ensaios. No início, um exercício ou ação pode ser preenchido com intencionalidade – estamos tentando fazê-lo ao invés de simplesmente fazê-lo. xxv Atrizg: Agora entendo porque não gostas da palavra “tentar”. Luka: Nunca TENTE fazer alguma coisa. FAÇA. A prerrogativa da TENTATIVA instaura um lapso mínimo de tempo, suficiente para estabelecermos metas idealizadas, projeções que comprometem a qualidade e o fluxo natural do que se passa no momento presente. Não se pode TENTAR ficar pronto para reagir a situações e ambientes. É necessário ESTAR PRONTO. Na percepção de segunda ordem, as tensões corporais e as intenções mentais, portanto, recuam para o fundo. “As tensões e as intenções são como a lama colocada em um fluxo claro... Elas se apresentam como obstáculos ao fluxo de presença e a consciência fica enlameada... Quando as tensões e intenções são neutralizadas, a capacidade de resposta à situação pode ser imediata” 39. / Na consciência de corpo-mente de segunda ordem, também se “pensa com o corpo e age com a mente”, mas fazemos isso enquanto expressamos a estrutura ou a forma dentro da qual se atua. No desempenho, nossa consciência/atenção é polar, isto é, move-se inconscientemente entre elementos corporais e perceptivos dentro da atividade estruturada. xxvi Atrizg: É engraçado. Parece papo de filme de [AMMA]: “Pensar com o corpo e agir com a mente”. Capturar a mosca no ar, dobrar a colher com a mente, arrebentar pedaços de madeira com chutes, saltar de terraços de prédios, mover as coisas de lugar com a força da mente... 38 NB: (Ibidem: 52-53). 39 NB: (Ibidem: 53). 61 Luka: Embora o cinema valorize bastante o lado exótico desse pensamento, quando se treina “mente e corpo” com disciplina, persistência e dedicação somos capazes de coisas surpreendentes. O importante é nunca TENTAR. Atrizg: Sempre pensei que o segredo fosse exatamente a TENTATIVA. Luka: Hora de voltar pras cordas. Vamos por aqui (indicando onde fazer a curva) Atrizg: Já entendi. Mas temos que seguir mesmo pela ponte de cordas do Zarrilli? Passamos uma tempestade de meses nela. Já não foi o suficiente? Luka: A formação de novas tempestades é quase imprevisível. Por isso devemos tá sempre prontos pra enfrentá-las. Esta ponte de cordas é uma maneira de nos deixar sempre em alerta. Atrizg: Mas podíamos tira um dia de folga, umas férias, um descanso, estabelecer um feriado: “o dia da tempestade”. Luka: Vamos logo! Atrizg: Infernooooo! Mas o que, precisamente, é adquirido ou trazido para a realização através de treinamento corporal a longo prazo? O primeiro a ser alcançado é adquirir um certo tipo e qualidade de relação entre quem faz e o que feito. O praticante realizador “ideal” é aquele que conseguiu e é capaz de manifestar na prática uma relação intensificada e focalizada (interna e externa) com atos específicos: a concentração para o praticante de meditação, o alvo para o praticante marcial e as tarefas dentro da marcação do ator. xxvii Atrizg: (surpresa) Caramba. Luka: Tava demorando. O que foi? Atrizg: Nem parece a mesma ponte de meses atrás. Luka: A ponte é sempre a mesma. A diferença está em quem faz a travessia. Atrizg: Hum. Agora tá todo se achando o Sr. Miyagi do norte. Sai pra lá projeto de guru do Jurunas. Luka: (rindo) Não te distrai cabeçuda! Continua. Ao encontrar um meio de superar a “separação” entre a mente e o corpo, uma compreensão psicofísica e prática de atuação disponibiliza ao ator uma alternativa ao modelo de criação psicológica/comportamental do personagem, muitas vezes baseado de forma cognitiva. A prática de disciplinas como t'ai chi ch'uan e kalaripayattu permite que os alunos descubram a respiração no corpo e através de exercícios de atuação, aplicar essa percepção qualitativa do corpo ao desempenho. (...) O treinamento em disciplinas psicofísicas intensivas que cultivam o corpo-mente, capacita o ator como um meio de fazer escolhas de atuação encarnadas, e não simplesmente escolhas que permanecem como intenções vazias. xxviii 62 Atrizg: É engraçado. Mesmo sofrendo na travessia dessas pontes de cordas do Zarrilli, me sinto cada vez mais encorajada a seguir firme... Luka: (interrompendo) É o mínimo que esperamos de alguém que se dedica a jornadas tão duras e extenuantes, como as que estamos atravessando. (Súbito) Lembrei de uma coisa importante. Precisamos seguir em direção às novas pontes de ferro. Atrizg: Que droga, agora que tava curtindo as cordas. Luka: Rápido. Se não chegarmos logo, corremos o risco de ser confundidos com charlatões. Atrizg: Tem certeza que não podemos continuar na mesma trilha de antes? Luka: Absoluta. E vê se para de reclamar. Já tivesses experiência suficiente pra compreender que os caminhos que seguimos são imprevisíveis. Olha ali. (Corre e para diante de outro entroncamento de pontes) É aqui. Atrizg: Eita! É imensa, e parece infinita. Luka: Como todas as outras até aqui. Atrizg: Mas esta tem um monte de ramificações, trilhas, bifurcações... A gente vai se perder! Várias ferramentas metodológicas complementares são usadas para abordar a relação corpo-mente na atuação neste capítulo – a fenomenologia pós-Merleau-Ponty de Alva Noë (2004), Drew Leder (1990), Shigenori Nagatomo (1992a, 1992b) e Yuasa Yasuo (1987, 1993); a linguística filosófica de George Lakoff e Mark Johnson (1999, 1980; Johnson, 1987), que reconsideram o papel fundamental da encenação e da experiência em formações linguísticas/cognitivas; a ciência cognitiva desenvolvida no trabalho de Francisco Varela e colaboradores (1991) e James Austin (1998); e uma abordagem ecológica à percepção desenvolvida pelo antropólogo social Tim lngold (2000). xxix Luka: Calma. Esqueceu que trouxemos a bússola do Zarrilli? Atrizg: Só de olhar fiquei doidinha. E começamos por onde? Luka: (Apontado) Vamos por essa ponte de ferro que corta as águas do Plato-Cartesianus... Atrizg: (interrompendo) Mas justo essa que parece desafiar as correntes marítimas. Olha só a força das ondas batendo nas vigas de sustentação. Tá tremendo tudo. Isso não vai dar certo. 63 Rejeitando a suposição exclusiva das ciências naturais e da psicologia moderna que tratava o corpo físico (Körper) como uma coisa, objeto, instrumento ou máquina sob o comando e controle de uma mente onisciente, desafiando o cogito cartesiano, Merleau-Ponty reivindicou a centralidade do corpo (Leib) e experiência incorporada como o próprio meio pelo qual o mundo vem à existência e é experimentado. (...) Para Merleau-Ponty, o foco da investigação filosófica mudou do “eu penso” para um exame do “eu posso” do corpo, ou seja, a sensibilidade como modo de entrar em relação inter-sensorial com objetos ou com o mundo40. Dermot Moran resume a contribuição de Merleau-Ponty como, indubitavelmente, produzindo “o exemplo mais detalhado da maneira pela qual a fenomenologia pode interagir com as ciências e as artes para fornecer um relato descritivo da natureza do ser-no-corpo humano” 41. xxx Luka: Não é hora de ficar com medinho bobo. O que seria da história da humanidade sem as grandes obras de engenharia que parecem desafiar as leis naturais? Atrizg: To nem aí pra leis da natureza. Só quero que essa bosta de ponte suporte a fúria das águas desse mar insano e furioso aí embaixo. Luka: Já chegamos até aqui... te concentras na ponte e não no mar. Quando Merleau-Ponty mudou o estudo do “eu penso” para o “eu posso” do corpo, ele colocou o fundamento filosófico para um relato mais processual de como nossa relação com os mundos que habitamos é constituída por nosso envolvimento inter-sensorial e inter-subjetivo com esses mesmos. Entre outros estudiosos, Francisco Varela e seus associados defendem que a experiência e sua relação com o pensamento como processuais – uma visão que desafia o modelo estático idealista. Varela afirma: “Propomos como nome, o termo enativo para enfatizar a crescente convicção de que o pensamento não é a representação de um mundo pré-concebido por uma mente pré-concebida, mas é a determinação de um mundo e de uma mente na base de uma história da variedade das ações que um ser no mundo executa. A abordagem enativa leva a sério, então, a crítica filosófica da ideia de que a mente é um espelho da natureza” 42. xxxi Atrizg: Égua. Esta é bem diferente daquela ponte de ferro do início de nossa caminhada. Luka: É sinal de que deslocou a atenção do mar pra ponte. Atrizg: Aquela ponte do “robô” era de um ferro feio, parecia antigo, desgastado, enferrujado... Luka: RIBOT!!! A ponte era do Théodule Armand Ribot. Cabeçuda!!!! Atrizg: (rindo) Ah, to brincando, relaxa. O que importa é que o material é bem diferente. Luka: É ferro galvanizado. Resiste muito mais aos processos corrosivos. 40 NB: (Merleau-Ponty: 1964: 87). 41 NB: (Moran: 2000: 434). 42NB: (Varela: 1991: 9). 64 Atrizg: (falando alto) Tô começando a entender o motivo de usarem este material: o mar parece cada vez mais furioso por aqui. Luka: (também falando alto em virtude do barulho do mar) É aquela trilha à esquerda. Atrizg: Não ouvi direito, vai na frente. Luka: (tomando a dianteira e indicando) Dobra nessa bifurcação da James Gibson. Um dos primeiros a desafiar a velha visão da percepção e a defender percepção e a ação como interdependentes, foi o psicólogo James Gibson. (...) Gibson adotou uma abordagem radicalmente diferente. Ele rejeitou a noção desenvolvida pela primeira vez por Descartes de que a mente é um órgão separado que opera sobre os dados que os sentidos corporais fornecem. Ele argumentou que: “A percepção [...] não é a realização de uma mente em um corpo, mas do organismo como um todo em seu ambiente, e é equivalente ao próprio movimento exploratório do organismo através do mundo. Se a mente se encontra em algum lugar, então, não é “dentro da cabeça” e nem lá fora no mundo. Pelo contrário, é imanente na rede de caminhos sensoriais que são criados em virtude da imersão do perceptor em seu ambiente” 43. xxxii Atrizg: (alto) Por que as pontes têm esses nomes esquisitos? Luka: (alto) Pra homenagear quem as construiu. Atrizg: (alto) E não tem nenhum João, José, Maria, Ana, Carlos... sei lá. Só esse povo com nome de gente de “nariz em pé”. Luka: (alto) É nome de gente como a gente. A diferença é que são de terras distantes. Atrizg: E por que não construímos nossas próprias pontes? Luka: (alto) Estamos trabalhando pra isso. (indicando) Outra bifurcação. Vamos pelo Alva Noë: Um dos defensores dessa nova visão da interdependência da percepção e da ação é o filósofo Alva Noë. (...) A tese de Noë é que “perceber é uma maneira de agir. A percepção não é algo que acontece a nós, ou em nós. É algo que fazemos... o mundo se torna disponível àquele que percebe através do movimento físico e da interação” 44. (...) Noë argumenta que a percepção é como a sensação de um toque: “O conteúdo da percepção não é como o conteúdo de um quadro. Ou seja, o mundo dado à consciência não se apresenta de uma só vez, tal como o detalhe pode ser visto num quadro. Na visão, como no tato, nós ganhamos a relação perceptual por pesquisa ativa e exploração” 45. xxxiii 43 NB: (Ingold, 2000: 3). 44 NB: (Noë: 2004: 1). 45 NB: (Ibidem: 33). 65 Atrizg: (alto e rindo) O Noë é filho do Noel? Do papai Noel? O Alva, filho daquele de cabelo e barba alva!!! Luka: (alto) Às vezes me dá vontade de deixar tudo pra trás e seguir sozinho. Te juro. Atrizg: (alto) Deixa de drama. Foi só uma piada inocente. Esta jornada já é tão estressante e cansativa, e se não brincarmos um pouco dá vontade de se jogar no mar mesmo. Luka: (alto) Certo. Mas não te distrai demais, do contrário podes tropeçar no teu humor e cair no mar do mesmo jeito. (indicando) Outra bifurcação, Tim Ingold é a ponte agora. Em paralelo a perspectiva de Noë, o antropólogo Tim Ingold adota uma “abordagem ecológica da percepção” 46 (...). Para Ingold, o “organismo inteiro em seu ambiente” não é um ser limitado, mas sim constituído por um “processo em curso, em tempo real: ou seja, um processo de crescimento ou desenvolvimento” 47. Este processo de crescimento ou desenvolvimento consiste na aquisição de habilidades perceptivas. Para Ingold, a noção de habilidades envolve, mas não deve ser reduzida, habilidades corporais; em vez disso, as habilidades perceptivas são “as capacidades de ação e percepção de todo o ser orgânico (mente e corpo indissolúveis) situado em um ambiente ricamente estruturado” 48. xxxiv Atrizg: (alto) Tudo bem. Mas pelo que tô “percebendo”, é possível reagir ao ambiente com “humor” e sem distração. Por exemplo: sigo percebendo a textura da ponte, o som furioso do mar se chocando nas vigas de sustentação, a cor do céu, a tua voz, o vento forte... e ainda sim fazer uma piada com o nome da ponte. Luka: (alto) Tens razão. Acho que fiquei ligeiramente mareado. Assume à frente, agora. Pega a bússola. Atrizg: (alto) Acho que não vamos precisar de bússola. Já consigo enxergar um novo entroncamento de pontes bem à frente. (corre até lá) Luka: (alto) Sem ansiedade, caramba. Atrizg: Nunca pensei que ficaria feliz em encontrar a ponte de cordas de novo. Luka: Felizmente, antes de sair voando, a borboleta hiberna em seu casulo. Atrizg: Até que enfim. Não aguentava mais aquele barulho do mar se chocando contra os pilares de ferro. 46 NB: (Ingold: 2000:3). 47 NB: (Ibidem: 19- 20). 48 NB: (Ibidem: 5). 66 Luka: O mar continua furioso e barulhento aqui. A diferença é que a ponte está numa altura onde o barulho nos causa menos incômodo. Atrizg: Já percebi que cada ponte de corda que encontramos é feita de maneira diferente. Esta, por exemplo, parece um triângulo de cabeça pra baixo, feito de três cordas: uma pra andar, e duas pra apoio lateral com as mãos. Luka: No formato é idêntica à primeira. Atrizg: Mas tem alguma coisa a mais que não consigo identificar. Luka: Esta é de fibra de algodão, enquanto aquela era de fibra sintética. Atrizg: Caramba, é mesmo. Por isso é que dá a sensação de ser leve, suave, macia... Luka: Preparada pra seguir? Atrizg: Claro que sim. Esse tipo de ponte já conheço há bastante tempo. (segue em frente) Desenvolvemos uma bateria ou repertório de habilidades sensório-motoras e modos de estar atentos, que são a base do nosso encontro perceptivo com o mundo. No nível mais simples, possuir conhecimento sensório-motor nos permite, por exemplo, compreender nossa relação espacial com as coisas. (...) No nível mais complexo de modos incomuns de prática de habilidades corporais, há uma forma ou sensação cada vez mais sutil que é intrínseca a atividades corporais específicas, como a prática de kalarippayattu, t’ai chi ch’ uan ou yoga, ou ao desempenhar um espetáculo bem ensaiado. (...) À medida que se aprende uma forma específica de movimento, como o kalarippayattu, a postura do elefante ou os movimentos de abertura do t’ai chi ch’ uan na forma reduzida, tanto o padrão quanto a boa qualidade de sua relação com a repetição de cada forma constituem o que Noë descreve como uma forma sensório-motora de conhecimento. xxxv Atrizg: (bem a frente) Viu só, não tem mais mistério pra mim. Consigo manter o equilíbrio e a tranquilidade sem grandes solavancos. Bem diferente da primeira experiência. Lembra? Luka: Que bom! (em solilóquio) Espero que continue assim quando a noite chegar: será preciso acender a chama, cultivá-la e seguir caminhando. Atrizg: Falou alguma coisa? Luka: (dissimulando) Pedi pra continuar firme e tranquila. Atrizg: Tá anoitecendo. Vamos parar em algum entroncamento pra descansar? Luka: (firme) Segue. Atrizg: Mas daqui a pouco não vai dar pra enxergar nada. Luka: (firme) Segue! Atrizg: Que merda!!! 67 Quando se inicia uma forma de movimento, ou quando se executa uma marcação de ação, a relação de cada pessoa com cada repetição específica da mesma forma ou estrutura é semelhante, mas diferente. Idealmente, no momento presente da ação, não se pensa na forma/estrutura, nem se baseia em alguma representação mental dela, nem se tenta reproduzir a experiência da última repetição; em vez disso, se instaura uma certa relação com a forma/estrutura no momento presente da ação através da consciência perceptiva/sensorial desenvolvida. xxxvi Atrizg: (anoiteceu) Não consigo enxergar mais nada. Égua, não sei o que faço. To perdida. Luka: Não vais conseguir continuar no escuro, não és Jedi. Então, o que vais fazer? Atrizg: Te dá um soco na cara!!! Luka: Guarda tua energia pra coisa mais importante. Segue em frente... Atrizg: Meu deus, to ferrada. (pausa). Luka: Agora é contigo. Vai na frente e... Atrizg: (interrompendo) Mas tá tudo completamente escuro. Como é que acendo a desgraça dessa chama???!!! (a corda balança) Luka: Se estressar não vai ajudar. Deixa de ataque histérico. Sente as cordas e segue em frente. Atrizg: Odeio ficar no escuro. Luka: Nunca vi ninguém conseguir acender um fósforo no meio de uma ventania. Atrizg: Que vá pro inferno: a escuridão, o fósforo e a ventania. Luka: Para de falar. (pausa) Sente as cordas. O ator envolvido em certas formas de treinamento constrói um repertório de habilidades sensório-motoras que proporcionam várias possibilidades de ação dentro do ambiente teatral. (...) Contudo, as formas também existem com um segundo conjunto de habilidades sensório-motoras – aquelas para aplicação, isto é, como se pode aplicar a energia/consciência a várias estruturas de desempenho ou dramaturgias. xxxvii Luka: Isso. (pausa) Em silêncio é bem melhor. Continua... (...) então o treinamento que os atores realizam deve fornecer-lhes um meio prático e empírico de sintonizar suas percepções conscientes para que elas sejam capazes de ser imediatamente ajustáveis e sensíveis ao ambiente de desempenho moldado por uma dramaturgia particular. Este tipo de preparação deve ocorrer em dois níveis: a preparação da percepção consciente do ator, necessária para qualquer ambiente de desempenho e a preparação da consciência perceptual específica para um ambiente de desempenho particular, moldado por cada dramaturgia específica e pela necessidade de cada desempenho específico. xxxviii (passagem de tempo grande) 68 Luka: Leve como algodão. (pausa) Duro como diamante. (pausa) Continua... A marcação de atuação de um ator é uma estrutura que está disponível para ele como uma gama de possibilidades baseadas na lógica estética de uma dramaturgia particular. (...) Trazemos o conhecimento sensório-motor acumulado no treinamento e no ensaio para suportar a experiência real da execução da partitura. No momento da apresentação estamos utilizando nossa experiência perceptiva/sensorial e o conhecimento corporificado cumulativo como exploração habilidosa no momento do mundo teatral específico ou ambiente criado durante o processo de ensaio. xxxix (passagem de tempo grande) Luka: Uma fagulha apenas... Uma centelha... Nada mais que uma faísca... É o necessário para se começar um incêndio. De acordo com este paradigma ou meta-teoria alternativa, pode ser mais útil considerar a atuação em termos de sua dinâmica energética do que em termos de representação. Ao invés de representação, um “teatro energético” – um “teatro não de significado”, mas de “forças, intensidades, emoções atuais” 49. (...) Nessa visão, o ator praticamente negocia, interior e exteriormente, via percepção em ação, em resposta a um ambiente.xl Luka: (contemplando-a) Lindo. Continua andando. Quando o brilho da chama desperta a noite, convida as sombras pra dançar. Loucos, demônios, sátyros, dragões, gênios, xamãs, ninfas, bruxas, ayamis, quimeras, exus, duendes, pitonisas, ciclopes, gopis, erês, sacis... Dançam incansavelmente festejando a chegada da viajante. Em rodopios flamejantes ela baila como se fosse a última dança, a última melodia, a última chance de inflamar o próprio ventre fazendo-o arder até o êxtase febril e violento. Incitada pelo alarido eufórico das criaturas da noite, a centelha que lhe consumia o ventre agora transborda pela genitália, pela boca e pelos olhos, a pele se inflama, o coração distribui lava pelas veias, seu sopro vital irradia labaredas... Dança como se fosse a própria chama sagrada de Huehuetotl... Em rodopios efusivos baila com Agni como se fosse o gêmeo Indra... Transubstanciada pela chama, ela não receia, avança rasgando a escuridão da noite despertando com fúria os prisioneiros da caverna. A eles é preciso cantar, a eles é preciso dançar, a eles é preciso queimar, a eles é preciso anunciar: Enquanto houver chama, haverá encontro! Enquanto houver fogo, haverá celebração... 49 NB: (Lyotard apud Lehmann, 2006). 69 Diálogo Primeiro – As tradições de origem do treinamento psicofísico [com artes marciais e meditativas asiáticas]. Na sala de ensaio Luka e Atrizg aguardam a chegada de Zarrilli. A sala possui todas as paredes pretas, duas janelas laterais e o piso em assoalho de madeira encerada – uma autêntica sala preta de teatro. Enquanto esperam, eles conversam sentados no chão, centro da sala. Luka: É a primeira vez que ele vem ao Brasil. Temos que aproveitar ao máximo sua visita, afinal ele escolheu começar sua jornada em terras tupiniquins justamente pelo Norte do país, aqui em Belém do Pará onde praticamos o sistema de treinamento psicofísico que ele, ao lado de A.C. Scott sistematizou desde o final da década de 1970. Atrizg: Será que ele curte uma “galinha caipira”? LUKA: (torcendo o nariz) Eu preocupado com a troca de conhecimento que a visita dele vai proporcionar pro GITA e tu preocupada com a barriga! Atrizg: Duvido que ele resista à galinha caipira da Dona Léia. Ah, aquele caldo cor de laranja, MA-RA-VI-LHO-SO que só a vovó sabe fazer... temperadinho com cheiro verde, chicória, cebola e favaca. A melhor receita de Fundo de Pote50 e quiçá do planeta. Luka: Para com tua mania de grandeza e te concentra no que realmente interessa. Atrizg: E desde quando comida é assunto que não interessa? Esqueceu que o treinamento se chama psico-FÍSICO? Logo, é preciso cuidar do FÍSICO. “Saco vazio não para em pé”, meu filho. E, pelo que sei, o norte-americano não é nenhum sadhu asceta que vive a jejuar e se alimentar de energia e luz. Luka: Tá bom, só não exagera. É importante aproveitarmos pra tirar nossas dúvidas sobre direção, atuação e treinamento. Como ele pensa e trabalha essas instâncias nos processos criativos que desenvolve. Atrizg: Então, tu cuidas do PSICO, e eu do FÍSICO. (risadas) Luka: (súbito) E OUTRA COISA... Atrizg: (interrompendo num susto) O que é já? Luka: Vê se controla o linguajar. Nada de palavrões. Por favor. 50 NT: Vilarejo distante 10 km de Garrafão do Norte, município localizado no interior estado do Pará. 70 Atrizg: Relaxa. Depois da “jornada das pontes”51 aprendi a ter um pouco mais de paciência. O treinamento tem me transformado, pra melhor eu acho. Luka: Ok. Vamos tentar deixá-lo à vontade pra que a conversa role com naturalidade, descontração... mas sem perder a oportunidade de aprofundar nossos conhecimentos e tirar nossas dúvidas. ATRIZG: Podíamos convidá-lo pra tomar açaí... LUKA: (interrompendo) Eles chegaram. Surge na porta Phillip Zarrilli que vem acompanhado de C. Sã. Entre os interlocutores, somente C. Sã domina a língua inglesa e a portuguesa e, por isso, se responsabiliza pela intermediação dos diálogos traduzindo do inglês para o português e vice e versa. Pelo árduo trabalho, ele quase não se posiciona nos debates. Com intermediação de C. Sã eles se cumprimentam afetuosamente. Conversam informalidades sobre o voo que trouxe Zarrilli até o Brasil. Em seguida, Luka e Atrizg mostram a sala de ensaio onde treinam três vezes por semana. Após estas informalidades de apresentação, dirigem-se para o centro da sala e sentam-se ao chão. Luka toma a palavra para iniciar oficialmente os diálogos. Luka: Gostaria de começar saudando sua visita ao Brasil. É um prazer recebê-lo em nossa sala de treinamento, localizada num pedacinho do Norte do país. Zarrilli: Agradeço o carinho e a hospitalidade de vocês. [É um prazer compartilhar alguns pensamentos sobre a formação de atores envolvidos num processo psico-físico por meio dessa roda de conversa sobre o treinamento e as pesquisas que estão acontecendo no GITA e em ouros lugares do Brasil.].xli Atrizg: Já conseguiu provar alguma coisa da culinária paraense? Nós temos uma variedade de pratos regionais – pato no tucupi, maniçoba, tacacá, caruru, vatapá, caldeirada de peixe, tapiocas... –, todos riquíssimos em calorias e que são capazes de dar força e energia pra aguentar qualquer treinamento físico e psicofísico. (risos) Zarrilli: Você é bem engraçada. Espero ter oportunidade de provar algum desses pratos, sem dúvida. Mas até agora só me aventurei no sorvete de bacuri e achei uma delícia. Treinar atuantes realmente abre o apetite. (risos) E já que começamos a falar de treinamento, penso que esse pode ser o tema inicial da nossa conversa. Luka: Que ótima ideia. Estamos ansiosos pra te ouvir. Zarrilli: [Minha carreira como ator, diretor, professor e autor tem sido dedicada a um processo em constante evolução de reexaminar como praticamos e refletimos sobre a atuação 51 NT: Ver seção “Diálogo Zero” a partir da página pg. 44. 71 contemporânea no estúdio e no “palco”, no Oriente e no Ocidente. No início da minha carreira (1976), tive o privilégio de viajar para Kerala, na Índia, por 12 meses, nos quais fiquei imerso na formação de dança/drama kathakali em Kerala Kalamandalam, e depois na de kalarippayattu no CVN kalari em Thiruvanandapuram, Kerala. Mais tarde pude treinar tai chi ch uan, (estilo Wu) com A.C. Scott o praticante/estudioso visionário que foi um dos primeiros indivíduos a utilizar o tai chi na formação de atores, e fundador do Programa de Teatro Experimental Asiático (Asian- Experimental Theatre Program) na Universidade de Wisconsin-Madison, Estados Unidos. Mais adiante pude “imergir-me” no treinamento de yoga em Kerala.].xlii Atrizg: Caramba. São quarenta e dois anos de carreira. Foi assim, então, que organizou o treinamento que praticamos hoje, aqui no grupo? Zarrilli: Sim. E como pode perceber foi um processo longo desenvolvido a partir de muita prática. [Todas essas experiências foram capazes de mudar a minha vida e exigiram que reconsiderasse como eu pensava, ensinava e praticava a atuação e dirigia os atuantes.].xliii Atrizg: É muito tempo trabalhando com a mesma coisa. Já pensou em fazer um filme da sua vida contando todas essas experiências? Luka: Boa parte dessas experiências está em suas publicações, Atrizg. Infelizmente ainda não foram traduzidas para a língua portuguesa. Zarrilli: É verdade. Por isso este diálogo que estamos começando é importantíssimo para que eu possa estender minhas ideias até o público brasileiro. Durante esta Semana GITA, vou tentar abordar reflexões que podem ser conferidas em dois livros: Psychophysical Acting: an intercultural approach after Stanislavski (2009) e no livro que assino como co-autor intitulado Acting: psychophysical phenomenon and process (2013). C. Sã: Em português a tradução possível para os livros, respectivamente, seria: “Atuação psicofísica: uma abordagem intercultural pós Stanislavski”; e “Atuação como fenômeno e processo psicofísico”. Atrizg: Caramba. Fiquei confusa só de ouvir o nome dos livros. Que sorte a gente tem de te receber aqui pra explicar isso ao vivo. Zarrilli: Também me sinto honrado com a oportunidade. [Em minha carreira, tive a sorte de dirigir e/ou ensinar artistas contemporâneos de várias culturas, incluindo atores de toda a Ásia e em vários contextos institucionais e profissionais (...). Uma dessas pessoas que trabalhou 72 assiduamente comigo por muitos anos em Exeter foi Cesário, que trouxe meus processos de exploração para o trabalho dele como atuante e professor no Brasil.].xliv C. Sã: Aproveito para reiterar as palavras do Luka a respeito da sua vinda ao Brasil, Phillip. Nós sabemos que você é um homem cheio de compromissos, mas que sempre retorna meus contatos por e-mail, com muito carinho e atenção. Eu aprendi muito quando fui seu aluno em Exeter e tento, humildemente fazer uma coisa que você sempre nos incentivou a fazer: repassar o conhecimento para as pessoas; não guardar o tesouro debaixo do colchão. O GITA é um pouco disso, o meu modo de deixar o conhecimento vivo com esses parceiros que encontrei aqui no Norte do Brasil. Zarrilli: Então, como forma de reconhecer a contribuição que o Cesário tem dado às pesquisas com o treinamento psicofísico eu trouxe um singelo presente. Revirando meus arquivos pessoais encontrei esse registro e gostaria de presenteá-lo com esta fotografia. Figura 5 – Comemoração de formatura de Cesário Augusto, em Exeter. Fonte: Arquivo pessoal de Cesário Augusto . Registro no Jardim da casa dos professores Dorinda Hulton e Peter Hulton; Alguns que aparecem na imagem são: Phillip Zarrilli do lado direito de Cesário Augusto (o único de bigode e cavanhaque), Margaret Freeman (de turbante), Paul Allan (de blazer branco) e Ha-Young Hwang (de camiseta vermelha, sorrindo). C. Sã: Ah, que surpresa boa. Relembrar essa turma e esse momento que vivemos juntos. Foi muito especial pra minha formação acadêmica e pra minha vida. Luka: É por isso que digo que é um privilégio termos Cesário aqui com a gente. Ele é o grande responsável por nosso aprendizado prático no treinamento psicofísico. Ele é o nosso mestre. Tudo o que conhecemos a seu respeito, Zarrilli, foi por meio do empenho e da fé que ele sempre 73 depositou no treinamento que aprendeu contigo. Se o GITA se mantém vivo por mais de uma década, treinando e produzindo teatro em nossa cidade, devemos isso ao Cesário. C. Sã: O Luka é exagerado nos elogios. Agora vou pedir para me concentrar na minha função de tradutor, pra garantir o diálogo entre vocês. Zarrilli: [É animador perceber que, no Brasil, há um grupo dedicado de artistas/praticantes que continuam a explorar os processos psicofísicos pré-performativos como uma base para a representação/performance e para o desenvolvimento de um ator “completo”. Como aqueles que trabalharam ou treinaram comigo sabem, meu próprio processo é sem fim. A atuação deve ser sempre uma “interrogação” para os atuantes, como os praticantes de artes marciais que precisam estar “ligados”... prontos para o que virá... sem nunca SABER o que virá, até que o momento da ação chegue e ela apareça no corpo-mente no instante de agir.].xlv Atrizg: O Luka vive dizendo isso pra mim quando estamos no processo de criação das montagens. Adora dizer que não tem respostas para as questões que surgem no meio da criação, que sou eu quem deve usar a minha sensibilidade e intuição para definir o que pretendo dizer por meio do teatro, com minhas ações... Luka: (aliviado) Que bom que agora já sabes que não se trata de mera retórica. (riso) Zarrilli: O teatro, como eu acredito, é realmente fascinante exatamente por esse grau de imprevisibilidade diretamente ligado à capacidade do atuante de estar pronto para a ação, sempre. É nisso que as artes marciais e meditativas têm muito a contribuir com o teatro. Por isso gostaria de começar falando das tradições de origem das práticas que compõem o treinamento que desenvolvi ao lado de Scott. Atrizg: Estais te referindo ao yoga, kalarippayattu e t’ai thi chi ch’ uan? ZARRILLI: Exatamente. Acho importante contextualizar a origem delas, pois estamos falando de práticas interculturais, isto é, práticas que implicam uma percepção diferente da arte e do mundo. [Dentro de cada cultura asiática específica, os modos de prática corporificada – artes marciais, técnicas de meditação, práticas médicas tradicionais, como massagem e artes cênicas – foram criados no tecido da vida e do pensamento cotidiano e estavam, portanto, em constante interação uns com os outros. As artes marciais chinesas e indianas eram práticas de aldeia. As crianças aprendiam desde cedo. Os artistas marciais locais eram aqueles que também praticavam massagem, terapias físicas e (especialmente na China) fitoterapia. O intercâmbio entre as práticas corporificadas tradicionais também é testemunhado no fato de que muitas das artes performativas 74 asiáticas tradicionais mais conhecidas foram diretamente influenciadas por artes marciais nativas. As artes marciais chinesas têm informado os estilos de movimento e combate de palco distinto para a Ópera de Pequim. Kalarippayattu foi o precursor imediato da dança-drama kathakali de Kerala. As artes marciais japonesas influenciaram diretamente o noh e o kabuki.].xlvi Atrizg: Isso significa que estamos em extrema desvantagem, pois começamos a treinar quando já somos adultos e com uma visão de mundo completamente diferente dos orientais. Zarrilli: Ter consciência disso já é um passo importante, pois ajuda a lidar com as expectativas que se depositam nestas práticas quando realizadas num outro contexto cultural. Afinal, [um conjunto comum de princípios, suposições e paradigmas do corpo, da mente, de seu relacionamento e da emoção informam os diversos modos de prática corporificada, próprios de cada cultura. As práticas corporificadas não estavam separadas do desenvolvimento do pensamento filosófico; em vez disso, práticas como a yoga e a meditação budista contribuíram para o desenvolvimento de sistemas de pensamento religioso-filosóficos em constante mudança, à medida que viajavam do sul para o sudeste da Ásia, China, Coréia e Japão.].xlvii Atrizg: Não conheço muito da religião e da filosofia oriental. Luka: Religiões e filosofias, talvez seja o mais apropriado a dizer, Atrizg. Nossa tendência ocidental a classificar as coisas categoricamente, muitas vezes, confunde o nosso entendimento para o modo de perceber as práticas corporificadas que se estabeleceram nessas regiões do Oriente. Zarrilli: Eu diria que dada a diversidade de práticas, somente com bastante reserva podemos falar de “teatros orientais”, pois quando falamos do Kathakali, Noh, Kabuki, Bunraku, Ópera de Pequim, danças de Bali, enfim... estamos falando de práticas muito diferentes histórica e geograficamente. Generalizar, nesses casos, não ajuda em quase nada. Mas vamos começar falando das três práticas que organizei num treinamento sistemático para o atuante – yoga, kalarippayattu e t’ai chi ch’ uan. Isso já nos ajudará a entender: [as perspectivas asiáticas sobre o corpo, a mente, a emoção e o relacionamento entre eles e pode nos ajudar a conceituar melhor a abordagem psicofísica da atuação contemporânea].xlviii Atrizg: Estou empolgada para ouvir e tentar fazer a relação com o que fazemos aqui. Luka e C. Sã sempre dizem que é necessário considerar o lugar de onde viemos, respeitar nossa origem. Então, vou ter o privilégio de te ouvir falar a origem do teu treinamento psicofísico. Zarrilli: A primeira consideração geral a ser feita é perceber que [os exercícios psicofísicos começam com o corpo e se movem para dentro, em direção a reinos sutis da experiência e do 75 sentimento, e para fora, para encontrar o ambiente. Eles são uma forma de busca (empírica) bem como (meta)física. Esta busca não é realizada por parte do nosso cérebro que executa o pensamento proposicional e analítico, mas pelo corpo-mente juntos, como eles se tornam um, dentro e através da prática diária. Como os exercícios iniciais são estruturas repetitivas nas quais, como observa Grotowski, “todo elemento tem seu lugar lógico, tecnicamente necessário”52, elas são um meio de “trabalhar consigo mesmo” no sentido psicofísico. A lógica de cada estrutura é revelada em/e através da prática guiada.].xlix Atrizg: Isso me lembra “o trabalho do ator sobre si mesmo”, do Stanislavski. Zarrilli: Exatamente. O mestre russo foi o primeiro a usar o termo “psicofísico” voltado ao trabalho do atuante e também se viu influenciado indiretamente – por meio de livros – com a prática do yoga indiano. Atrizg: Eu lembro disso quando o Luka me levou para fazer a “jornada das pontes”. LUKA: E eu lembro bem do quanto ficaste reclamando quase o tempo inteiro, sem conseguir escutar a si mesma nem a ninguém. Então, vê se agora escuta com atenção. Atrizg solta seus costumeiros resmungos acompanhados de caretas involuntárias, mostrando-se contrariada e quase constrangida. Zarrilli observa curioso o desempenho histriônico da jovem e cai na gargalhada. O clima se descontrai com Luka explicando que a Atrizg vive fazendo “caras e bocas” todas as vezes que se vê contrariada ou confrontada com seu jeito impaciente de ser. Em seguida Zarrilli retoma a palavra. Zarrilli: [O termo específico "yoga" é derivado da raiz sânscrita, yuj, que significa “unir ou juntar ou apertar... ficar pronto, preparar, arrumar, encaixar...”53. Yoga engloba qualquer técnica ascética, meditacional ou psicofisica que consegue uma ligação, unindo ou reunindo o corpo- mente. Uma grande variedade de vertentes do yoga se desenvolveram historicamente no Sul da Ásia, incluindo o karma yoga ou a lei da causalidade universal; maya yoga ou um processo de libertação da ilusão cósmica; nirvana yoga ou um processo de crescer além da ilusão para alcançar a re-paração com a realidade absoluta; e hatha yoga ou técnicas específicas de prática psicofisica. A hatha yoga clássica inclui repetição de exercícios de controle da respiração, formas/posturas (asanas), combinadas com restrições/limitações na dieta e no comportamento. Essas práticas são entendidas como ações que se estabelecem tanto no corpo físico (sthula sarira) 52 NB: (Grotowski, 1995: 130). 53 NB: (Monier-Williams, 1963: 855-56) 76 como no corpo sutil (suksma sarira), mais frequentemente identificado com o yoga Kundalini- Tântrico. Problematicamente, o uso popular e a compreensão do termo “yoga” no Ocidente, hoje geralmente associa suas práticas exclusivamente com uma ou mais das muitas formas de hatha yoga, muitas vezes praticado para o relaxamento em meio a nossa vida cosmopolita apressada e estressante.].l Atrizg: Depois que comecei a praticar o hatha yoga aqui no treinamento do GITA, pude perceber o quanto realmente a minha vida é corrida e estressante. Mas sempre achei que os orientais não tivessem esse tipo de problema. Zarrilli: Cuidado com as generalizações. Elas podem ser fruto de esteriótipos culturais. Atrizg: (sem graça) É verdade, desculpa. Zarrilli: [No momento da composição dos Upanishads (cerca de 600-300 aC), métodos específicos para experienciar estados de consciência e controle não comuns do self estavam bem desenvolvidos. O uso mais antigo do termo específico "yoga" está no Katha Upanisad, onde o termo significa “o controle constante dos sentidos, que, juntamente com a cessação da atividade mental, leva ao estado supremo”54. Desse modo, desde os primeiros estágios de seu desenvolvimento, o yoga deu-se como um caminho prático para a transformação da consciência (e, portanto, do self) e da libertação espiritual (moksa) através da renúncia pela retirada do mundo e dos ciclos de renascimento.].li Atrizg: Ué!!! Se o yoga nos leva a controlar os sentidos, se presta a cessar a atividade mental e nos leva a renunciar o mundo, como é que esta prática pode ajudar atuantes de teatro, uma arte que é definida, desde os gregos, como a arte da ação? Zarrilli: Boa pergunta, Atrizg. Se olharmos um pouquinho para o contexto histórico da Índia poderemos entender. Isto porquê [a filosofia do yoga e suas práticas também sempre foram informadas e/ou adaptadas diretamente por não-renunciantes, isto é, aqueles que mantêm os dois pés firmemente no mundo espaço-temporal. Tradicionalmente, isso incluía as castas marciais da Índia (ksatriyas) que serviam como governantes e/ou artistas marciais e guerreiros a serviço de governantes e uma grande variedade de artistas – atores, dançarinos, músicos, pintores e escultores. Governantes, artistas marciais e artistas plásticos e performáticos tiveram que viver e agir bastante, dentro e sobre o mundo e/ou sua ordem social. Governantes e ksatriyas eram obrigados a governar, manter a ordem cósmica espelhada no microcosmo dos reinos mundanos e 54 NB: (Flood, 1996: 95) 77 ser capazes de usar habilidades marciais bem-desenvolvidas para manter a ordem. Artistas e performers esperavam trazer prazer e alegria estética tanto para os diversos deuses do panteão hindu quanto para aqueles que estavam servindo e divertido.].lii Luka: Sempre lembro também, Atrizg, que o que fazemos na sala de trabalho é um treinamento com hatha yoga voltado para a preparação do atuante. Quando comecei a treinar no GITA aprendi com o C. Sã que não somos yoguis. Hoje, depois de doze anos treinando, nem sequer me considero um professor de hatha yoga. Sou um professor de teatro que utiliza uma prática psicofísica asiática. Zarrilli: Muito bem colocado Luka. [Em contraste com o praticante de yoga clássico como renunciante que se retira da vida cotidiana, para os artistas performáticos e artistas marciais, as práticas do yoga não conduzem à renúncia e/ou ao desengajamento da vida cotidiana. Pelo contrário, como o praticante se envolve em práticas psicofísicas baseadas na yoga, o ego se mantém quieto e as emoções calmas. É melhor ser capaz de agir dentro do seu respectivo domínio sociocultural enquanto ainda se está no mundo. O artista marcial ou performático que pratica técnicas psicofísicas baseadas em yoga faz isso para transcender as limitações pessoais, para agir melhor no mundo e não para se retirar dele.].liii Atrizg: É o que o Luka insiste bastante durante os processos criativos. Mesmo trabalhando com textos clássicos da dramaturgia universal ele me pede para estabelecer uma leitura crítica do texto, considerando o meu contexto sóciocultural. Luka: E faço isso acreditando que a prática do hatha yoga é um excelente aliado para fazer o atuante se perceber no mundo. Entrando em contato consigo mesmo, se permitindo uma escuta sensível do seu estado psicofísico, acredito que o atuante já opera com os fatores imprescindíveis para a criação: reconhecer-se no mundo; reconhecer-se como agente de transformação de si mesmo; e, por extensão, como agente de transformação do mundo. Logo, não consigo conceber o treinamento psicofísico separado da dinâmica de criação de um processo criativo. Atrizg: Treinar, então, não é a mesma coisa que se aquecer, se alongar... Treinar pro Luka é bem mais que um processo de preparação virtuosa pra cena. Luka: Exatamente. Treinar pra mim é reinventar-se a cada dia, aprimorar-se como ser humano. A dimensão ética, neste sentido, fundamenta a dimensão poética e estética. Desculpe Zarrilli. Acabamos falando demais, quando na verdade gostaríamos de continuar lhe ouvindo. Zarrilli: Não se preocupe. Estou aqui para trocar experiências com vocês e gostei do que ouvi. Desenvolver estas práticas psicofísicas sem nos permitir estabelecer as nossas conexões, realmente 78 não faz muito sentido, pois elas possuem um potêncial holístico muito forte. Mas estamos só começando nossa conversa. Atrizg: Vamos continuar falando de yoga? Zarrilli: De certa forma sim, pois o paradigma que orienta o Kalarippayattu é o mesmo. Atrizg: A pronúncia do nome dessa prática já é um desafio. (risos) Zarrilli: [Kalarippayattu é uma arte marcial regional, nativa da costa sudoeste da Ásia, conhecida hoje como Estado de Kerala. Sua forma atual data de pelo menos o século XII, embora como outras artes marciais regionais, como o distinto thang-ta de Manipur, tem raízes na antiguidade indiana. As primeiras formas indianas de práticas marciais eram coletivamente conhecidas como Dhanur Veda (a ciência do arco e flecha), uma vez que arco e flecha eram considerados a arma suprema, enquanto o combate corpo a corpo era a forma menos desejável de combater. Dhanur Veda era altamente considerado um dos dezoito ramos tradicionais do conhecimento. Seus princípios e práticas são conhecidos por histórias presentes na literatura épica antiga (Mahabharata e Ramayana), e mais amplamente a partir do mais antigo texto védico Dhanur existente – uma coleção de capítulos (249-252) em um texto enciclopédico conhecido como o Agni Purana que data do século VIII55. O paradigma do yoga é um leitmotif 56 durante todo o texto que sugere como o artista marcial alcança um estado da realização mental superior.].liv Atrizg: Eu poderia dizer, então, que o Kalarippayattu é uma espécie de yoga em movimento, uma yoga dinâmica com deslocamentos rápidos, saltos e giros? Zarrilli: Guardadas as devidas proporções e para efeito didático de compreenção dos iniciantes, talvez pudéssemos dizer isso, sim. [Como a antiga tradição védica Dhanur, o kalarippayattu é prática e conceitualmente informada por yoga, bem como Ayurveda. Assim como o praticante de hatha yoga começa aprendendo posturas básicas (asanas) e exercícios de respiração, o praticante de kalarippayattu, então, inicialmente domina o corpo e a mente através de posturas, exercícios corporais e exercícios de controle da respiração.].lv Luka: Tu te referes às posturas dos animais: elefante, leão, cavalo, serpente e javali? Zarrilli: Estas são as que o C. Sã certamente repassou a vocês. Mas há outras. [Um mestre tradicional kalarippayattu muçulmano disse-me: “aquele que quer se tornar um mestre deve 55 NB: (Pant, 1978: 3-5) 56 NT: termo alemão que significa “motivo condutor”. 79 possuir conhecimento completo do corpo”. Possuir “conhecimento completo do corpo” significava tradicionalmente adquirir conhecimento de três diferentes tipos de prática: (1) o corpo fluido, (2) o corpo composto de ossos, músculos e pontos vitais vulneráveis (marmmam), e (3) o corpo sutil e interior associado à prática do yoga. Os dois primeiros corpos são baseados no Ayurveda, e juntos constituem o corpo físico externo (sthula-sarira). O terceiro – o corpo interior sutil (suksma-sarira) – é entendido como encaixado dentro do corpo físico. Enquanto cada corpo tem sua própria história conceitual e prática, eles são experimentados pelo praticante como uma gestalt – relação de cada um desses corpos consigo mesmo e com o todo.].lvi Atrizg: Peraí. Pra ver se entendi. Quem pratica o kalarippayattu consequentemente está lidando com estes três tipos de corpos – fluido, físico e sutil – ao mesmo tempo. Por isso que você considera uma prática psicofísica, um treinamento psicofísico? Zarrilli: Isso mesmo, Atrizg. [Para o artista marcial, o conhecimento completo do corpo começa com o corpo físico ou bruto (sthula-sarira), como é experimentado através da prática de exercícios de respiração e recebimento de massagem. Juntos, eles são considerados preparação corporal (meyyorukkam). Os exercícios incluem uma vasta gama de posturas, passos, saltos e chutes realizados em combinações cada vez mais complexas para frente e para trás em todo o piso do kalari. Coletivamente, eles são considerados uma arte corporal (meiabhyasam). As sequências individuais do exercício do corpo (meippayattu) são ensinadas uma-por-uma, e cada estudante domina antes das sequências mais complexas e difíceis, formas simples de deslocamento. O mais importante é o domínio das posturas básicas (vadivu), nomeadas com nomes de animais, e comparável às posturas básicas (asana) do yoga; e domínio de passos (cuvadu) pelo qual se move de, e para, posturas. As formas do Kalarippayattu incorporam tanto linhas retas quanto movimentos circulares. Algumas formas de sequências são baseadas em yoga, como o kalari vanakkam que é provavelmente derivado da saudação ao sol (surya namaskaar).].lvii Atrizg: Agora que tu falaste eu consigo, realmente, ver uma semelhança entre o vanakkam e o surya namaskaar que praticamos. Luka: O C. Sã, aliás, já tinha comentado isso com o grupo. Mas às vezes as pessoas estão com “a cabeça na lua”. (apontando gestualmente para Atrizg que se encolhe num gesto de constrangimento. Zarrilli se diverte com a relação de implicância entre os dois giteiros) Zarrilli: [Como a prática da hatha yoga, eventualmente os exercícios tornam-se "o que é interno" (andarikamayatu). A princípio, o praticante deve superar as limitações físicas do corpo físico 80 bruto, alongar os músculos para permitir que o corpo assuma formas difíceis, remova distracções mentais e comece a alcançar um foco pontual (ekagrata).(...) Somente quando o aluno alcança um certo estado de desenvolvimento psicofísico é que ele é introduzido a uma vasta gama de armas começando com o bastão longo e progredindo através da vara curta, a adaga, a otta (uma vara curva única), espada e escudo, lança, maça e lança contra espada e escudo.].lviii Atrizg: Essa parte das armas nós não fazemos no GITA. Zarrilli: Demanda muito tempo de aprendizado, Atrizg, além do fato de necessitar de um mestre da [AMA]. Por isso, achei importante o Luka destacar que se considera um professor de teatro. O treinamento que vocês realizam aqui, assim como o que eu mininstro em muitas oficinas e workshops pelo mundo também são voltados para a cena. Tem coisas, portanto, que são especificas da prática nativa como, por exemplo: [A vigorosa prática é realizada no período fresco da monção. Os praticantes aplicam óleo no corpo antes do exercício, durante este período anual de treino, observam as restrições do yoga e recebem uma massagem de óleo, extremamente densa (uliccil), em todo o corpo. Usando seus pés enquanto segura em cordas suspensas no teto e ocasionalmente as mãos, o mestre massageia o corpo inteiro do estudante diariamente sobre um período quinze dias.].lix Atrizg: Deve ser maravilhosa esta massagem. O Luka deveria aprender pra fazer aqui no GITA, pois em mim ele “só dá patada”. (risos) Zarrilli: [A massagem limpa e purifica os corpos físico e sutil. A prática de longo prazo aumenta a capacidade de suportar a fadiga através do equilíbrio dos três corpos, adquiri-se facilidade interna e externa de movimento e fluidez do corpo para que, como disse um mestre, você esteja “fluindo (olukku) como um rio”.].lx Atrizg: Linda essa metáfora do rio. Nos meus escritos de pesquisa57 aqui no GITA, também utilizo o rio como metáfora para relacionar minha vida pessoal com o ato criativo da montagem teatral dirigida pelo Luka. Ele faz essa cara de durão, mas no fundo ele é uma pessoa sensível. E me ama. (risos) Zarrilli: Que bom, afinal é dificil conceber uma arte sem afeto. Mas falando ainda sobre o Kalariyppayattu. [Fazer o corpo fluir positivamente, afetando com líquidos orgânicos o corpo fluido e o corpo sutil do yoga, ocorre apenas quando o aluno aprende a assumir a posição correta das formas básicas e técnica na prática.].lxi 57 Ver “Diálogo de Boteco – No Bar Nosso Recanto: Atena em Solo Viril”, a partir da pg. 321. 81 Luka: O que tu consideras como “prática e técnica correta”? Zarrilli: [Kallada Balakrishnan explica como “Cada movimento, passo e postura (e arma) tem sua própria 'vida interior’ (bhava) que deve ser exibida ao praticar kalarippayattu.” Bhava é um termo comumente usado para se referir à corporificação psicofísica do atuante e um estado de ser/fazer (emoções) do personagem na prática popular dança-drama kathakali, de Kerala58. (...) Para o ator kathakali “tornar-se o personagem” é um processo psicofísico em que o atuante controla e circula sua energia interior (prana-vayu) através das formas estilizadas e codificadas que ele veio a expresar e, portanto, usa para criar o personagem. Assim como o ator se torna o personagem ao corporificar os vários estados de ser/fazer exigidos pelo contexto dramático da peça, o artista marcial “se torna um com as qualidades originais” de uma postura ou movimento.].lxii Atrizg: Então, é pela forma que chego até o conteúdo? É isso? Devo partir da forma externa (as posturas) para alcançar o que cada forma quer expressar? Zarrilli: Vou usar duas passagens que considero importantes para ajudar a entender. [Como o Bhagavad-Gita (4,38) explica: “aquele que atinge a perfeição através da prática do yoga descobre por si mesmo, com o tempo, o brahman presente em sua alma”59. O Amritabindu Upanisad fornece o seguinte relato de como o conhecimento já está presente no corpo-mente, mas escondido e depois descoberto através da prática: “E o conhecimento está escondido na profundidade de cada indivíduo / Assim como no leite / A manteiga, que não podemos ver, está escondida;/ É por isso que o sábio praticante / Deve realizar uma operação de bater dentro de si, / Empregando sua própria mente sem descanso como o batedor60.].lxiii Atrizg: Tu podias explicar relacionando com a prática do kalarippayattu? Zarrilli: [Tornar-se um artista marcial com a vida interior de uma postura kalarippayattu significa que o praticante expressa as qualidades do animal para o qual cada postura é nomeada, e manifesta essa qualidade em sua prática. A vida do animal é assumida como estando lá, na forma. Se alguém é incapaz de alcançar tal unidade, então, a forma marcial não se torna nada ou perde sua realidade.].lxiv Atrizg: Então, quando faço a postura do leão, devo assumir as qualidades de um leão; quando faço a postura do elefante, devo assumir as qualidades de um elefante... 58 NB: (Zarrilli, 2000a: 159-174). 59 NB: (Varenne, 1976: 58). 60 NB: (Ibidem: 59). 82 Luka: (interrompendo) No teu caso, deve ser bem mais fácil praticar a postura do cavalo, pois já és “delicada como um cavalo”. (Risos. Zarrilli prossegue o raciocínio). Zarrilli: [Como uma prática de yoga-em-movimento, praticar corretamente o kalarippayattu doma e purifica o corpo externo, equilibra os três corpos (fluido, físico e sutil), acalma a mente e as emoções pessoais. (...) Os corpos físico e sutil não são categorias absolutas. São conceitos fluidos e práticos. Partes específicas do corpo sutil são pensadas para corresponder a lugares específicos no corpo físico. Estas são correspondências análogas/homólogas e nunca são exatas61. Os dois são tão fundamentalmente relacionados que o que afeta um corpo é entendido para afetar o outro.].lxv Atrizg: É interesante pensar a relação entre esses três corpos, como eles vão se interrelacionando, pois no momento de praticar as posturas, e, principalmente, as sequências de movimentos, não há tempo pra pensar em nada, pra corrigir nada... somente deixar fluir a sequência de movimentos. Zarrilli: [Mestres tradicionais de kalarippayattu que interpretam a prática usando este paradigma, concordam que o corpo sutil é gradualmente revelado a partir do momento que o estudante (1) desenvolve um ponto de foco (ekagrata), (2) corrige as formas de prática de modo que a energia interna circule ao longo da coluna e em todo o corpo durante a prática das formas, e (3) desenvolve controle da respiração adequada para que a energia interna/vento circule corretamente.].lxvi Atrizg: Agora compreendo a importância de repetir as formas... Luka: O paradoxo de repetir as formas exatamente para não se limitar as formas, mas sim ultrapassá-las, penetrá-las naquilo que elas têm de mais poderoso, isto é, a capacidade de nos integrar psicofisicamente. Zarrilli: [Quando os exercícios de respiração simples (swasam) ensinados a mim por Gurukkal Mohammedunni são realizados corretamente, “sua mente está simplesmente sobre o que você está fazendo. Há um controle poderoso na base do umbigo (nabhi mula) no ponto de uma inspiração completa”. (...) Para o artista marcial (ou atuante!) simplesmente imitar uma forma externa nunca é suficiente para atingir ou despertar a realização interior. Gurukkal Govindankutty Nayar explica como na prática muitas vezes “falta algo. Falta essa faísca ou vida (jivan) que faz disto uma prática real e completa”.].lxvii 61 NB: (Ibidem, 156). 83 Luka: Estamos falando ainda das posturas e sequências de movimentos do kalarippayattu, mas acredito que o pensamento de seu Gurukkal é extremamente válido para as partituras e gestos que levamos à cena. Insisto com a Atrizg e com os giteiros que eles devem ser verdadeiros nas mínimas ações, gestos ou movimentos que criam. Não basta cumprir tecnicamente bem uma partitura de movimentos se não há vida colocada em ato – talvez o que Eugenio Barba chama de sub-partitura62. É neste sentido que acredito no treinamento psicofísico não como um produtor de atuantes de luxo – isto é, atuantes virtuosos –, mas como o canal pelo qual o atuante se escuta, se reconhece, cria e posteriormente compartilha essa criação no palco. O treinamento psicofísico é o espelho cruel que nos revela as nossas muitas faces... Atrizg: E muitas dessas faces, por uma questão de ego, não gostaríamos de ver. Talvez por isso eu ouça de outros colegas que já passaram pelo GITA, que os processos criativos dirigidos pelo Luka são tão sofridos. Luka: Sim. Não exijo menos que um pouco de verdade, uma centelha de vida – para fazer referência ao Peter Brook63. Desse modo, entendo que nos processos criativos que dirijo, por meio do treinamento psicofísico, o palco extravase pra vida, e a vida se apresente em toda sua intensidade no palco – pra fazer referência a Artaud64. Atrizg: Entendo agora os gritos do Luka quando eu apenas repetia minha partitura de movimentos que criei para o meu solo teatral. Zarrilli: [Os exercícios podem ser uma mera concha se o vento interno ou energia não forem manifestados atrás da forma. Somente quando o vento/força vital/energia vital (prana-vayu) é despertado e se espalha por todo o corpo, animando ambos, é que o benefício total de tal prática é alcançado. (...) O praticante de kalarippayattu atinge um estado em que o corpo-mente “se torna todos os olhos” – o praticante é capaz de utilizar sua energia e consciência aumentada para responder, no momento, ao ambiente imediato, como um animal. O corpo-mente estará total e constantemente energizado como e quando se mover.].lxviii Atrizg: Te ouvindo falar vou conseguindo estabelecer relação entre o yoga e o kalarippayattu. Mas e o t’ai chi ch’ uan? Também vais falar sobre essa [AMA] que compõe o treinamento psicofísico que praticamos? 62 NB: (Barba, 2012, p. 65-6) 63 NB: (Brook, 2005). 64 NB: (Artaud, 1984). 84 Zarrilli: Obrigado por lembrar, Atrizg. [Os princípios e práticas conhecidos e ensinados hoje como t’ai chi ch’ uan derivam de um rico elixir de religião, filosofia, mitologia e história. Junto com hsing-i e baqua, o t’ai chi ch’ uan é geralmente identificado como uma das três práticas marciais primárias internas ou macias (nei-chia) como um complemento às práticas externas ou duras (wai-chia)].lxix Atrizg: Arte marcial macia. É uma definição poética e bem interessante. Consigo perceber essa maciez quando o C. Sã treina. Já no Luka é diferente, parece que não é tão macio ainda. E no meu caso, então, estou muito longe de alcançar uma execução macia. Luka: Concordo. Das três práticas que realizamos, o t’ai chi ch’ uan é a que mais me desafia e a que mais demorei a apreender. Procuro realizá-la de modo mais suave a cada dia. Zarrilli: Talvez isso se deva por associarmos arte marcial a força bruta. Com o t’ai chi ch’ uan é diferente, pois trabalha com a ideia da força interna. [Sistemas externos muitas vezes enfatizam o uso da força contra a força. As habilidades internas se concentram especialmente no desenvolvimento do qi – a força vital ou a energia interna encarregada de circular por todo o corpo. Os sistemas internos enfatizam dar e receber, mudança constante e circularidade. A maioria das práticas marciais chinesas combina elementos do externo e do interno.].lxx Atrizg: De que região da China se originou essa arte marcial? Zarrilli: [Existem teorias conflitantes sobre a origem do t’ai chi ch’ uan como prática específica de artes marciais. Organizadas cronologicamente, essas teorias incluem sua invenção e desenvolvimento subsequente durante a dinastia T'ang (618-907) em quatro escolas; sua invenção durante um sonho por um espiritualista taoista durante a dinastia de Yuan (1279-1368); sua invenção durante a dinastia Ming (1368-1654) pela família Ch'en na Província de Honan; e finalmente a teoria de que enquanto o fundador original do t’ai chi ch’ uan não é conhecido para nós, sua prática foi desenvolvida por Wang Tsung-yueh da província de Shansi durante o período Ch'ine-lung (1736-1795) da dinastia Ch'ing65.].lxxi Atrizg: Éguaaa!!! Deu um nó na minha cabeça só de ouvir esses nomes. (risos) Zarrilli: Calma. O importante é ter em mente o [surgimento de quatro principais linhagens históricas de prática: Ch'en, Yang, Wu e Sun. Todas as quatro linhagens praticam o treinamento – um conjunto de longas ou curtas formas. Cada uma é uma coreografia contínua de 65 NB: (Draeger & Smith 1980: 35), ver também (Wong 1978: 59). 85 aproximadamente trinta e sete movimentos básicos, elaborados em 108 movimentos que levam entre quinze e quarenta e cinco minutos para realizar.].lxxii Atrizg: E qual dessas quatro linhagens é a que praticamos? Zarrilli: A terceira, a linhagem Wu que A. C. Scott aprendeu em Hong Kong. Scott, como vocês sabem, foi o meu professor de t’ai chi ch’ uan. [O fundador desta linhagem foi o filósofo taoísta, Chang San-feng, que dizem ter fugido para a montanha Wu Tang, durante o período de Sung (1127-1278).].lxxiii Atrizg: Então, o t’ai chi ch’ uan é influenciado pelo Taoismo? Zarrilli: [Os princípios e a prática do t’ai chi ch’ uan são informados pelas práticas taoistas que datam dos séculos III e IV, com influências adicionais do neo-confucionismo, do budismo Zen (Ch'an) e, até certo ponto, do yoga indiano66.].lxxiv Atrizg: Caramba! Pra quê fui perguntar? Agora que enrolou tudo mesmo! (risos) Zarrilli: Calma. Vou tentar explicar de modo simples. [Fundamentalmente o Tao não pode ser definido e não tem doutrina. Significa “caminho” ou o movimento do universo, mas não é, em si, esse todo. Em vez disso, “Tao é fluxo, transformação, processo (‘caminho’) e alternância de princípios do tempo cíclico: ‘Sem nome, é a origem do Céu e da Terra chamada de a Mãe dos Dez Mil Seres’ (Tao-teching, Capítulo 1)”67].lxxv Atrizg: (irônica) Ah sim. Ficou SUPER SIMPLES de entender. (risos) Zarrilli: [O nome t’ai chi ch’ uan foi traduzido como o “supremo final”, “um conceito cosmológico que significa ‘o grande final”68, e “boxe do mais Alto Final”69. O símbolo yin-yang usado para representar t’ai chi ch’ uan data tão antigo quanto uma urna de metal de 3.000 anos de idade. Yin e yang são opostos complementares que constituem entre eles um todo interativo. O círculo exterior completo é o cosmo dentro do qual há um eterno e complementar movimento de dar e receber, (a linha curva) entre a luz escura (yin) e a luz (yang), macia e dura, passiva e ativa, feminina e masculina, a morte e a vida. O pequeno círculo claro na parte escura e o pequeno círculo escuro na parte clara revela o fato de que dentro de yin há yang, e dentro de yang há yin.].lxxvi Atrizg: Agora lembrei. O yin-yang é o símbolo da COSANPA. 66 NB: (Wong 1978: 33). 67 NB: (Schipper, 1993: 4). 68 NB: (Wong, 1978: 61). 69 NB: (Schipper 1993: 137-138). 86 C. Sã e Atrizg caem na gargalhada. Zarrilli só entende a piada após C. Sã explicar que a Companhia de Saneamento do Pará – COSANPA, empresa estatal, adotou uma logomarca muito parecida ao símbolo do yin-yang: substituindo o lado claro e escuro do símbolo original, por duas gotas de água – uma na cor azul e outra na cor branca – que, juntas, formam um círculo. Ideia pouco original dos publicitários da empresa paraense. Explicado o contexto da piada, Zarrilli retoma a exposição sobre o t’ai chi ch’ uan. Zarrilli: [Praticar t’ai chi ch’ uan é um dos muitos meios para experimentar o movimento complementar do cosmos presente. Sua prática é um meio de obter e manter a saúde estabelecendo o equilíbrio entre os elementos yin e yang (...). James I. Wong explica como a prática do t’ai chi permite ao indivíduo “transcender a dualidade polarizada, transformar a energia, realizar a verdadeira natureza (Tao)”70. Eliminando todos os obstáculos se atinge idealmente um estado de "não-mente" (wu-hsin). Yuasa Yasuo explica que este estado de "não-mente" (mushin japonês) é “um estado de auto-esquecimento, no qual a consciência de si mesmo como sujeito do movimento corporal desaparece e se torna o próprio movimento”71].lxxvii Atrizg: É fascinante, mas ao mesmo tempo fico imaginado os anos de prática para se atingir esse estágio de equilíbrio energético. Zarrilli: Você tem razão. Só não esqueça que estamos falando de um estado ideal e de uma prática psicofísica de outra cultura, bem diferente da nossa. E, no nosso caso, esta prática se volta para as necessidades do atuante. Atrizg: Mas fiquei curiosa pra saber como o t’ai chi ch‘uan desenvolve isso no praticante. Zarrilli: A tua curiosidade me permite falar, então, sobre o Qigong. Atrizg: (Num súbito espontâneo) King Kong? (gargalhadas generalizadas). Zarrilli: [Qigong significa literalmente “exercícios da respiração vital”. As técnicas de respiração taoista são semelhantes às do yoga72. Conforme entendido na filosofia chinesa, na metafísica e na medicina, qi é o material psicofísico, que anima a força tanto da vida como do universo. Ela permeia tudo.].lxxviii Atrizg: Seria um conceito que mostra que existe uma “energia vital” em todas as coisas? Zarrilli: [Na cultura chinesa não é necessário conceituar qi; em vez disso, o que é importante é perceber e entender funcionalmente o que ele faz. Qi não é nem matéria nem energia, mas sim 70 NB: (Wong, 1978: 61). 71 NB: (Yasuo, 1993: 27). 72 NB: (Wong, 1978: 33-35). 87 “matéria à beira de se tornar energia ou energia a ponto de materializar-se”73, ou seja, é uma “coisa” e uma “forma de energia.”74].lxxix Atrizg: Interessante. Zarrilli: [Na medicina chinesa qi é lido de acordo com suas qualidades manifestas, isto é, pode ser forte ou fraco, etc. Se qi está fora de equilíbrio, se está doente. Dentro do corpo qi entende-se em movimento constante: entrar, sair, subir ou descer75.].lxxx Atrizg: E o t’ai chi ch’ uan, então, trabalha para equilibrar o qi? Zarrilli: [O reservatório desta força vital reside no abdômen, logo abaixo do umbigo (o dantian). É o ponto central do qual o qi se manifesta. Qi entende-se fluir por todo o corpo através de uma rede invisível de canais conhecidos como jing-luo76. Muitas vezes identificados como os meridianos, esta rede conecta o interior do corpo ao exterior.].lxxxi Atrizg: O t’ai chi ch’ uan tal como o yoga e o kalarippayattu faz isso com o qi? Zarrilli: [O Qi pode ser cultivado através de formas específicas de movimento e/ou meditação. (...) A prática do t’ai chi ch’uan também é entendida para cultivar internamente qi. Ele o faz através de um padrão uniforme de inspiração e expiração, sempre em movimento constante – a complementaridade dar e receber, o de cima e o de baixo, o de fora o de dentro, equilíbrio e contrapeso no fluxo e transição de um momento para o outro.].lxxxii Atrizg: É engraçado te ouvir falar assim, pois sugere exatamente um movimento circular, suave e constante. Tudo o que ainda não consigo fazer quando treino t’ai chi ch’ uan. Zarrilli: Calma. Leva tempo mesmo pra atingir um estado de equilíbrio do qi. Talvez a descrição oferecida pelo mestre Chang San-Feng, datado de aproximadamente 1200 d.C, ajude a continuar persistindo. [O texto arcaico postula os princípios psicofísicos subjacentes que informam a prática do t’ai chi ch’ uan: “Uma vez que você começa a se mover, o corpo inteiro deve ser leve e flexível. Cada parte do seu corpo deve ser conectada a outra parte [...] A energia interna deve ser estendida, vibrada como a batida de um tambor. O espírito deve ser condensado em direção ao centro do seu corpo [...] Ao desempenhar t’ai chi deve ser perfeito; não permitir nenhum defeito. A forma interna deve ser lisa sem irregularidades e contínua, sem interrupções [...] A energia interna, qi, se enraíza nos pés, em seguida, transfere-se através das pernas e é controlada a partir 73 NB: (Kaptchuk, 1983: 35). 74 NB: (Kennedy & Guo 2005: 27). 75 NB: (Kaptchuk 1983: 37), ver também (Needham 1954 e Huard e Wong, 1977). 76 NB: (Kaptchuk ,1983: 77-114). 88 da cintura, movendo-se eventualmente de volta para os braços e pelas pontas dos dedos [...] Ao transferir o qi de seus pés para sua cintura, seu corpo deve operar como se todas as partes fossem uma; isso permite que você se mova para frente e para trás livremente com controle de equilíbrio e posição. A falha em fazer isso causa perda de controle de todo o sistema do corpo. A única cura para esse problema é a atenção da postura. [...] A aplicação destes princípios promove o fluxo do movimento t’ai chi em qualquer direção: da frente, para trás, lado direito e lado esquerdo [...] Em tudo isso, você deve enfatizar o uso da mente no controle de seus movimentos, uso dos músculos externos. Você também deve seguir o princípio dos opostos do t’ai chi: quando você se move para cima, a mente deve estar ciente de baixo; quando se move para frente, a mente também pensa em voltar; quando se desloca para o lado esquerdo, a mente deve simultaneamente notar o lado direito – de modo que se a mente está subindo, também está indo para baixo [...] Quando o corpo inteiro é integrado com todas as partes ligadas entre si, torna-se uma vasta conexão de unidades de energia positiva e negativa. Cada unidade positiva e negativa de energia deve ser conectada a cada outra unidade e não permitir interrupção entre eles77.].lxxxiii Atrizg: Espero que algum dia eu consiga me aproximar um pouco desse estado de perfeição que o mestre Chang fala. Zarrilli: [O treinamento de longo prazo em t’ai chi ch’ uan, kalarippayattu e yoga permite que o praticante desenvolva a consciência perceptiva do corpo-mente até um ponto em que literalmente “pensa com o corpo e age com a mente”. Esse é o estado ideal de “não-mente” onde toda intencionalidade desaparece.].lxxxiv Luka: Acho que chegamos num dos pontos chaves que me interessa, e muito, nessa conversa: compreender em que medida a prática de longo prazo, do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas, articula-se com a dimensão poética, estética e ética do atuante. Mas, pelo adiantar do horário, acredito que isso será assunto para o nosso próximo encontro da semana. ATRIZG: Oh, Zarrilli, tu aceitas o convite para uma experiência intercultural: degustar a galinha caipira, receita tradicionalíssima da minha avó, Dona Léia? Fim do Diálogo Primeiro 77 NB: (Liao 2000: 87-93). 89 Diálogo Segundo – Atuação: da teoria à prática; do treinamento psicofísico à atuação psicofísica. O diálogo se passa na mesma sala do dia anterior. Luka e Atrizg chegaram cedo para arrumar a sala. Enquanto Luka varre, Atrizg arruma as cadeiras e os tatames que se encontram espalhados pelo espaço. A pedido de Zarrilli, uma mesa de madeira encontra-se na sala. Atrizg:... Lambeu os beiços!!! Luka: Estais exagerando. Ele provou por educação e respeito à gastronomia local. Atrizg: Por que pediu pra repetir, então? E repetiu duas vezes. Luka: Porque ficastes insistindo na frente da Dona Leia e ele se viu constrangido. Atrizg: (gargalhando) Eu vi o constrangimento dele metendo a mão pra comer a coxa e raspar o último bago de farinha do pirão. Luka: Tá bom. Ele gostou. Mas não precisa ficar se gabando. Ele provou, gostou e repetiu uma comida exótica que ele nunca tinha experimentado. Só isso. Atrizg: (com certo aborrecimento, mas mantendo o tom de brincadeira) Égua, mas tu és muito orgulhoso. Nunca vi. Custa elogiar a comida da minha vó? Luka: (Contrariado) Tá bom. Tá booooom. A “galinha caipira” da dona Leia tava deliciosa. Agora podemos mudar de assunto? Podemos falar um pouco sobre o que vamos discutir com ele hoje? Atrizg: Hoje podemos levá-lo pra tomar açaí. Duvido que ele recuse. Luka: Égua. Dá pra parar de falar de comida? Atrizg: E tem coisa melhor que comer? (pausa semi breve) O açaí do veropa é muito ralinho. Podias levar a gente no Point do Açaí78. O que achas? Luka: Acho que vou “sentar” essa vassoura na tua cabeça se não parar de falar de comida. Atrizg: Eu gosto de falar de comida e de sexo. Então, acho melhor continuarmos falando de comida, porque ultimamente minha vida sexual anda uma desgraça... Luka: (interrompendo, impaciente) Seria pedir demais falarmos sobre TE-A-TRO? Atrizg: (com riso maroto na boca) Não te estressa. Estais parecendo eu quando fomos fazer a “jornada das pontes”. Relaxa. 78 NT: Restaurante tradicional que serve a culinária paraense. O açaí é um dos principais atrativos do estabelecimento que oferece vários pratos com ou sem uma jarra com um litro de açaí. 90 Luka: Tens razão. Estou nervoso por conta da roda de conversa de hoje. Acho que vamos abordar assuntos fundamentais sobre o nosso modo de pensar e fazer teatro. Atrizg: Eu sei. Por isso tento descontrair um pouco. Acho que eles estão chegando. Zarrilli surge novamente ciceroneado por C. Sã. Eles trazem mochilas nas costas e Zarrilli carrega uma garrafinha de água mineral. E antes que Luka ou Atrizg iniciem qualquer assunto ele se antecipa em cumprimentá-los entusiasmadamente. Zarrilli: (cumprimentando-os com abraços) Hoje sou eu quem gostaria de começar agradecendo. O almoço servido ontem por Dona Leia, estava maravilhoso. Vou sentir saudades das “caipiras” daqui. (risos) Atrizg: (radiante) Viu só Luka?! O Zarrilli cuida muito bem do psico e do FÍ-SI-CO (fazendo gesto de quem está com a barriga cheia). Luka: Pronto! Era tudo o que ela queria. Agora vai passar o resto da vida se vangloriando de ter conquistado a barriga do mestre Zarrilli. (risos gerais) Passado o momento inicial de descontração todos se dirigem para a mesa de madeira que foi colocada no centro da sala. Todos sentam nas cadeiras ao redor da mesa. Zarrilli: Gostaria de propor, pra nossa conversa de hoje, um exame geral sobre atuação. Luka: Que ótimo. É uma excelente oportunidade para refletirmos sobre o que já foi teorizado sobre atuação teatral. Atrizg: Espero conseguir acompanhar o raciocínio de vocês. Não sou muito fã de teorias. Zarrilli: Elas são importantes Atrizg, e embora pareça que as teorias são atividades exclusivas dos filósofos eu acredito que [cada vez que um atuante está em desempenho, ele ou ela de forma implícita, encena uma “teoria” de atuação – um conjunto de suposições sobre as convenções e estilos que orientam seu desempenho, a estrutura de ações que ele ou ela executa, a forma que essas ações levam (como um personagem, papel ou marcações de ações como em alguma arte de performance) e a relação com o público79.].lxxxv Atrizg: Isso quer dizer que quando subo no palco, estou fazendo teoria também? Luka: Quer dizer que tua atuação é informada por teorias que orientam o teu modo de fazer. Zarrilli: Isso Luka. [Qualquer teoria de atuação é constituída por um conjunto de suposições histórica e culturalmente variáveis sobre o corpo, a mente, a relação entre eles, a natureza do self, 79 NB: (Zarrilli 2002a: 3). 91 a experiência interior do que o atuante faz – muitas vezes chamada emoção ou sentimento – e a relação entre o atuante e espectador. As práticas específicas de atuação e suas teorias associadas são inventadas e sustentadas para atualizar (uma ou mais) formas estéticas dentro de um contexto de desempenho específico.].lxxxvi Luka: Por isso falamos em teoria(s) do teatro, pois elas são diversas e se alteram de acordo com a história, o lugar e as pessoas. Por isso Atrizg, é importante ouvir o Zarrilli sobre o assunto, mas também tentar elaborar ou entender que teoria de teatro nós fazemos nesta cidade do norte do Brasil, com seus problemas e peculiaridades. Há uma teoria, ou várias teorias de teatro no modo como Belém produz teatro? Atrizg: E o mesmo vale para como fazemos teatro no GITA? Luka: Sem dúvida. O raciocínio é o mesmo e talvez seja até mais interessante iniciarmos tentando entender o nosso fazer no GITA para, então, articular um pensamento com o modo que a cidade faz teatro, o modo que a cidade pensa atuação. Zarrilli: Que bom que estão animados. Discutir teorias, por vezes, parece uma atividade enfadonha. Mas isso é um mito. E as pesquisas em arte têm contribuído para desconstruir esse mito, propondo meios alternativos para teorizar e compartilhar pensamentos em/e sobre arte. Atrizg: Isso me deixou mais ainda. Podemos começar a falar sobre atuação? Zarrilli: [Um dos maiores problemas com as teorias e abordagens contemporâneas da atuação ocidental é que muitas vezes elas não diferenciam o trabalho preliminar do atuante na construção de um tipo particular de desempenho, como um personagem psicologicamente real ou crível, e o fenômeno corporificado de atuação por si.].lxxxvii Atrizg: E qual a diferença? Zarrilli: Vou responder sua pergunta apresentando a taxonomia que Robert Gordon apresenta no livro “The Purpose of Playing: The Modern Acting Theories in Perspective”, pois [ele identifica seis abordagens principais para a atuação ocidental contemporânea no novo milênio: 1 – abordagens realistas à caracterização: a verdade psicológica; 2 – o atuante como suporte cenográfico: performance como artifício; 3 – improvisação e jogos: teatro como jogo; 4 – performance como práxis política: atuação como ensaio para a mudança; 5 – exploração do eu e do outro: atuação como encontro pessoal; 6 – como intercâmbio cultural: encenar a própria alteridade80.].lxxxviii Atrizg: E essas categorias foram criadas por algum autor específico? 80 NB: (Gordon 2006: 6). 92 ZARRILLI: [Usando essa “taxonomia de categorias”, Gordon debate com os principais teóricos e praticantes do teatro ocidental do século XX – Stanislavski, Michael Chekhov, Strasberg, Craig, Meyerhold, Copeau, Saint-Denis, Spolin, Brecht, Boal, Artaud, Grotowski, Brook, Barba, entre outros – a fim de “capacitar o leitor a compreender a relação dialética entre as principais tradições de desempenho”. Gordon argumenta que cada praticante/teórico “propõe uma solução diferente 81 ao fenômeno fundamental a prática da forma teatral.].lxxxix Atrizg: Em qual dessas o treinamento psicofísico que praticamos está inserido? Zarrilli: Nenhuma delas. Proponho [uma sétima categoria para a taxonomia de Gordon – Performance como processo psicofísico: a expressão e delineamento da energia.].xc Atrizg: Uaaaau!!! O nome é bonito. Zarrilli: [Com base nos recentes desenvolvimentos em fenomenologia, ciência cognitiva e ecologia antropológica, (...) proponho uma abordagem ativa para uma compreensão meta-teórica do fenômeno da atuação. Em contraste com uma meta-teoria representativa ou mimética da atuação, que é construída a partir da posição do observador externo do processo/fenômeno da atuação, (...) proponho uma teoria e prática de atuação a partir da perspectiva do atuante como atuante/realizador de dentro do processo.].xci Atrizg: Que bacana. Uma teoria que considera o olhar do atuante. Luka: Acredito que é um pouco mais do que isso, Atrizg: uma teoria e prática que se constrói e se fundamenta no próprio trabalho de atuação. Atrizg: Mas pra isso, a teoria deveria ser proposta por um atuante, certo? Zarrilli: Você tem razão, Atrizg. Por isso para demonstrar minha proposta taxionômica parto da minha experiência como atuante numa turnê realizada em 2006, nos EUA com The Beckett Project. Na ocasião eu e meu parceiro de cena, Andy Crook, montamos o texto pós-dramático de Samuel Beckett, Ohio Impromptu. Eu atuei como “Leitor” e Andy como “Ouvinte”. [A partir desta posição de dentro do processo, eu resumo o problema do corpo do atuante.].xcii Atrizg: Ah tá. Por isso nos pediu para colocar a mesa no centro da sala. Zarrilli: Sim. E como, entre vocês, somente o C. Sã teve oportunidade de conferir este trabalho, eu vou me permitir o direito de tentar descrevê-lo o melhor possível, para lhes dar uma noção aproximada do que é o fenômeno da atuação narrado por dentro. 81 NB: (Ibidem: 5). 93 ZARRILLI pede a Luka e Atrizg que levem suas cadeiras para o fundo da sala e se sentem posicionados numa perspectiva de palco italiano. Próximos à mesa ficam somente ele e C. Sã que irão tentar reconstituir as imagens e o processo ocorrido na vivência de Zarrilli. Das mochilas eles tiram os figurinos e acessórios da montagem original para dar mais realidade à descrição. Zarrilli: (explicando em tom professoral) [Duas figuras – Leitor e Ouvinte – estão vestidas de maneira idêntica em longos casacos pretos com cabelos longos e brancos. Eles estão sentados como imagens espelhadas em uma mesa de 4'×8' branca com as “cabeças curvadas propriamente nas mãos direitas”82. Aberto ao Leitor sobre a mesa um “volume gasto" e um chapéu de abas larga preto. Enquanto Leitor lê a história, as duas figuras ficam “imóveis” durante a maior parte da cena “como se transformassem em pedra”83. O Leitor lê o texto “sem cor”, ou seja, sem os contornos vocais típicos que caracterizam a conversa diária. Ouvinte escuta. As ações físicas são mínimas. Ouvinte bate na mesa de madeira ressonante quando ele deseja que Leitor pare e repita uma frase, ou quando deseja que a leitura continue. Quando a história está completa, a última página virada, e o livro fechado, depois de uma batida final, Leitor e Ouvinte gradualmente levantam a cabeça para olharem nos olhos um do outro.].xciii Figura 6 – Phillip Zarrilli e Andy Crook em Samuel Beckett’s Ohio Impromptu. Fonte: Brent Nicastro por ocasião de uma apresentação da turnê. 82 NB: (Beckett, 1984: 285). 83 NB: (Ibidem: 287). 94 Atrizg: (num suspiro reflexivo) Caramba. Gostaria de ter assistido este trabalho. Zarrilli: Fiz somente a descrição do ambiente cênico. Agora descrevo o que vivenciei em um dia de apresentação. Peço um pouco de paciência, pois a descrição é um pouco longa, mas necessária para termos um exemplo prático para nossa discussão posterior. Atrizg: (baixinho) Pode começar, estou ansiosa. Durante a demonstração Zarrilli e C. Sã realizam pequenas ações, de acordo com o desenvolvimento da narrativa. Zarrilli: [15 de setembro de 2006, Teatro Gilbert Hemsley, Madison, Wisconsin. Esta noite é a primeira das oito apresentações do Projeto Beckett. Acabamos de receber a nossa chamada de cinco minutos para Ohio Impromptu. Andy Crook (Ouvinte) e eu (Leitor) saímos do nosso camarim, imagens espelhadas um do outro em nossos longos casacos pretos, calças pretas e longas perucas brancas. (...) Entramos no teatro (...). Tomamos nossos assentos na mesa branca de 4'× 8'. Andy e eu nos sentamos em nossas cadeiras. Como Leitor eu estou situado à direita de Andy, e como Ouvinte ele está à minha esquerda. Começo meus últimos preparativos pessoais. Verifiquei meu lugar na cadeira, sentindo a sensação da cadeira contra minhas coxas e nádegas. Eu arranjo e reorganizo meu casaco preto longo, de modo que não fique debaixo de mim. Deixo minha consciência aberta através das solas de meus pés – sentindo sua relação com o chão, e sentindo a relação entre meu abdômen e as solas dos meus pés. (...) Eu verifico a colocação precisa do livro na mesa a minha frente. Seguindo o nosso aquecimento vocal anterior, coloco a palma da minha mão direita no meu esterno e repito um conjunto de pulsos vocais fortes e ressonantes – “ha, ha, ha, há” – num tom que vibra o meu esterno. Com meu foco externo dirigido para fora através do teatro, minha voz “soa” tanto no meu corpo quanto no espaço. Nos últimos momentos antes que a casa seja aberta e o público entre, eu “soo” o texto vendo se eu acerto o ressonador do peito no passo correto na linha de abertura, “Little is left to tell...” Eu sinto o ato de articulação do “t” e “tt” (s) na linha como minha língua bate a parte de trás de meus dentes, acordando minha boca, enchendo meu corpo. Minha atenção muda para minha respiração. Eu sigo minha inspiração enquanto ela lentamente cai dentro e para baixo, para o meu abdômen. Mantendo minha atenção primária na minha inspiração e expiração, eu abro a minha consciência auditiva para Andy cerca de três passos à minha esquerda... ouvindo a respiração dele. Eu abro a minha consciência além de Andy, para ao redor, através do topo da minha cabeça para a parte de trás do teatro, e atrás de mim. Estamos “prontos”. (...) As portas são abertas e o público, conversando ao entrar, é como 95 uma parede de energia e som que se deslocam para o espaço. Seu som passa por mim. Estou ciente disso, mas não me distraio. Minha consciência sensorial e atenção não são singulares, mas múltiplas, tomando fôlego enquanto tento sincronizar minha respiração com Andy. Agora, estamos respirando juntos... para dentro... e para fora... como um. Nossa consciência está aberta um para o outro. Minha consciência ao mesmo tempo me leva ao público... indo em direção à fila de trás do espaço e às presenças sussurrantes de lá. Eles começam a se acomodar e sentar. Eu sinto o calor da longa sinalização de iluminação e o calor começa a tocar minhas mãos e o brilho da luz atinge a mesa e ilumina o texto antes de mim. A plateia se acomoda ainda mais. Eminentemente na beira do discurso, sentindo as palavras em potencial na minha boca, sentindo o toque da página do livro sobre a mesa com a mão esquerda, e o toque do peso da minha testa contra o meu polegar e os primeiros dois dedos. Seguindo a respiração, quando sinto que o sinal de iluminação está cheio de calor e intensidade, e que a plateia realmente se instalou e a última tosse foi tossida, a primeira linha do texto sai inesperadamente da minha boca. Um tom com pouca cor, mas que, no entanto, ressoa no meu esterno: “Pouco há o que dizer... Em uma última tentativa...”. O som agudo, ressonante de dedos batendo a superfície da mesa para a minha leitura. Eu sigo minha respiração, sentindo sua sincronização com a de Andy, habitando com essa respiração este espaço-tempo entre nós. Assim como minha consciência sensorial/perceptiva está aberta, minha imaginação também está aberta. Ao ler a linha de abertura, as associações momentaneamente se apresentam para mim na periferia da minha consciência /atenção. Normalmente há uma sensação de um fim iminente... o fim desta leitura particular da história – só resta uma página para virar neste livro... o fim de uma vida – a de meu pai... a de minha mãe ...Meu próprio ...?].xciv Zarrilli sinaliza que a descrição acabou e recebe os aplausos de Luka e Atrizg Atrizg: Quanta riqueza de detalhes. Eu não conseguiria descrever um dia de apresentação do meu solo teatral com tamanha precisão. Luka: Não consegues descrever nem a receita de “galinha caipira” da tua avó! (risos) Zarrilli e C. Sã tomam água e se desarrumam; tendo encerrado a demonstração Zarrilli convida Luka e Atrizg para sentar ao redor da mesa novamente. Atrizg: Tu te concentras em descrever o que se passa contigo e o ambiente ao teu redor. É interessante perceber que à medida que vais descrevendo a experiência vou me dando conta de uma série de relações complexas que se estabelecem no momento da atuação. 96 Zarrilli: [(...) a descrição literal da atuação acima em Ohio Impromptu destina-se a fornecer alguma ideia de quão complexo é o fenômeno e a experiência da atuação no momento em que ela acontece. Embora qualquer relato desse tipo nunca possa descrever completamente o fenômeno da atuação em todas as suas complexidades, seguindo o filósofo Alva Noë, eu tentei “Capturar a experiência no momento em que ela se torna disponível no mundo”84.].xcv Atrizg: Parece bem complicado de fazer. Zarrilli: Sim. Principalmente se considerarmos que muitas teorias contemporâneas de atuação, particularmente no ocidente, são susceptíveis ao dualismo corpo-mente. O paradigma baseado no realismo psicológico gera um modo estático e essencialista de representação. Atrizg: Então, por isso que tu propõe Performance como processo psicofísico: a expressão e delineamento da energia?. Zarrilli: Sim. Luka: Tua classificação se fundamenta ou dialoga com quais teorias ou autores? Zarrilli: Trabalho com vários autores e algumas ferramentas metodológicas. Acho importante destacar Merleau-Ponty, Alva Noë, Drew Leder, Shigenori Nagatomo e Yuasa Yasuo na área da fenomenologia; no campo da linguística George Lakoff e Mark Johnson; Francisco Varela e James Austin na ciência cognitiva; e a antropologia social de Tim lngold. Atrizg: (num súbito arremate) Eu lembro disso!!! Na “jornada das pontes”85... O entroncamento das pontes... Luka: É verdade. Fico feliz por ter lembrado. Sofreste e reclamaste tanto durante a “jornada”, mas afinal, serviu pro teu crescimento. Zarrilli: Que bom, então, que já conhecem os autores que dão base para o meu modo de pensar uma atuação psicofísica. [Eu considero uma meta-teoria de atuação não em termos de como o atuante constrói um personagem ou como ele torna o desempenho verossímil, mas sim em termos do fenômeno de atuar visto da perspectiva do atuante-como (ser humano) realizador dentro do desempenho de uma marcação de atuação. A atuação em cena pode, portanto, ser considerada produtivamente como um entre muitos modos extra-cotidianos qualificados de prática corporificada que requer que o performer desenvolva uma sintonia intensificada de percepção 84 NB: (2004: 176). 85 NT: Ver seção “Diálogo Zero ”, a partir da página 44. 97 consciente e sensorial de certo tipo, para ser plenamente atento a ambientes teatrais e dramaturgias.].xcvi Luka: Então por isso que tu começaste falando ontem sobre as tradições de origem do treinamento. Lembro que a reflexão final apontava o quanto o treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas permite que o atuante exercite e desenvolva o domínio do seu corpo-mente até o ponto de “pensar com o corpo e agir com a mente”. Zarrilli: Isso mesmo. O treinamento psicofísico sintoniza, portanto, a percepção sensorial do atuante para o envolvimento extra-cotidiano dado pelas tarefas de atuação. Como Eugenio Barba 86 bem observou: [As artes marciais [asiáticas] usam processos fisiológicos concretos para destruir os automatismos da vida diária e criar outra qualidade de energia no corpo... as artes marciais asiáticas mostram um corpo decidido pronto para pular e agir. Esta atitude... [toma] a forma de técnica extra-cotidiana, da posição de um animal pronto para atacar ou defender-se.]xcvii ATRIZG: Foi um pouco como me senti no final da “jornada das pontes”. Zarrilli: [No meu trabalho com atuantees, o yoga, kalarippayattu e t’ai chi ch’ uan são praticados não como um fim em si, mas como um meio para um fim – uma exploração contínua das dinâmicas e princípios subjacentes da energia da atuação.].xcviii Luka: Infelizmente ainda há no imaginário de muita gente que faz teatro aqui na cidade e, principalmente, aqui na ETDUFPA – que foi, e continua sendo, uma referência no processo de formação de novos artistas de teatro no norte do Brasil – ainda perdura a ideia do treinamento como aprimoramento corporal. Muitos jovens artistas-pesquisadores procuram o GITA com a expectativa de aprimoramento de técnicas físicas... Aqui na cidade é comum, após as apresentações de montagens teatrais os seguintes comentários: “– Que excelente trabalho de corpo” ou “– Deixou a desejar no trabalho de corpo”. Entenda-se “trabalho de corpo” como um apanhado de desempenhos exuberantes, esbanjamento de energia e força física voltada a toda sorte de técnica de virtuose, técnicas que segundo Eugenio Barba (1994) “causam assombro” por sua extrema capacidade desafiar os limites das técnicas cotidianas. A empatia com esse tipo de desempenho ainda é muito forte por aqui, e muitos acreditam que o GITA trabalha nesta perspectiva. Mas estão enganados. Então, muita gente que chega no grupo e encontra outra realidade, invariavelmente, fica pouco tempo, encontra uma desculpa pra abandonar as atividades ou simplesmente desaparece. Também 86 NB: (Barba, 1991: 197). 98 já ouvi muitos comentários compartilhando a frustração com algumas montagens do GITA por elas não atenderem a expectativa no “trabalho de corpo”. Atrizg: É verdade. O povo daqui adora se exibir. Oh povinho exagerado!!! Acho que as pessoas acreditam que vão ver a gente praticando artes marciais no palco. Zarrilli: [Não há lugar no meu estúdio para a repetição estúpida de exercícios físicos para tonificar ou malhar o corpo. Exercitar o corpo sem o engajamento total da mente, isto é, sem envolver a plenamente o sensorial, a consciência perceptiva e foco, é inútil. (...) A linguagem, as imagens ativas e as metáforas através das quais eu ensino, treino e dirijo atuantees fornecem a ponte que abre, psicofisicamente, o corpo-mente do atuante para dentro do sentimento e da forma estética, bem como para o ambiente teatral exterior aos outros.].xcix Atrizg: Quando entrei no GITA o treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas era um grande mistério. Acho que a grande dificuldade continua sendo entender a relação entre o treinamento e a criação pra cena. Zarrilli: Mas não pensem que isso é uma dificuldade só de vocês aqui no Norte do Brasil. Identificar e transpor os elementos e princípios fundamentais do treinamento psicofísico para atuação não é simples, nem fácil e nem rápido. [Quando o atuante contemporâneo treina em disciplinas psicofísicas não-ocidentais, há um processo necessário para transpor os elementos e princípios psicodinâmicos subjacentes em uma nova chave.].c Atrizg: Podes dar um exemplo de como fazer essa transposição? Zarrilli: [Se um clarinetista deseja tocar uma peça de piano no clarinete, a música deve ser transposta. Do mesmo modo, elementos, princípios e qualidades dinâmicas de qualquer forma de treinamento psicofísico devem ser contextualizados, de modo que sejam acessíveis e imediatamente úteis ao atuante contemporâneo.].ci Luka: No caso do treinamento que praticamos significa, em primeiro lugar, a transposição de um contexto cultural para outro, Atrizg. Zarrilli: Exatamente. Mas neste caso trata-se de um processo ainda mais delicado, pois, [a transposição do kalarippayattu, do t’ai chi ch’ uan e do yoga para a atuação contemporânea requer um processo triplo – passar de uma arte marcial e meditativa ao desempenho, de um contexto asiático para um contexto cosmopolita e ensinar adultos ao invés de crianças ].cii Atrizg: É verdade. Eu mesma tive dificuldades pra compreender isso na prática. 99 Zarrilli: [No estúdio de atuação, não estou ensinando kalarippayattu, t’ai chi ch’ uan, ou yoga como disciplinas tradicionais em um contexto cultural asiático específico. Estou treinando atuantes pra cena. Essas disciplinas são um meio para esse fim, e não necessariamente um fim em si mesmo.].ciii Atrizg: Na prática, tu utilizas algum modo de deixar isso claro durante os treinamentos? Zarrilli: [Baseando-me em paradigmas tradicionais, eu uso imagens e frases-chave para orientar, aqueles que fazem o treinamento, para o tipo de sintonização e consciência necessária para atuar.].civ Atrizg: Mas tu tens um modelo, uma cartilha? O Luka tá doidinho pra saber!!! (risos) Luka: Não liga, Zarrilli. Atrizg: Eu to brincando. Mas se tiver alguma dica de como fazer, heim Luka?! (risos) Zarrilli: Bem. Não se trata de uma cartilha, mas algumas descobertas provenientes de muita prática acumulada. [Ao longo dos últimos trinta anos, identifiquei seis elementos psicodinâmicos primários e/ou comuns aos sistemas psicofísicos de treinamento. Através do treinamento assíduo, esses elementos e princípios são evidentes na prática realizada.].cv Atrizg: Viu só, Luka? “Quem não arrisca não petisca”. Luka: Te aquieta e deixa ele falar. Zarrilli: [1 – Despertar energia: através da respiração atenta, o praticante, gradualmente, desperta, descobre e então é capaz de circular a energia (ki/qi/prana-vayu) que se encontra dentro de si. Uma vez ativada, a energia interna fica disponível. É frequentemente experimentada como uma forma sutil de vibração interna ou ressonância. Uma vez ativada, ela pode ser qualitativamente aumentada, direcionada e moldada ao ser expressada em uma prática.].cvi Atrizg: Sim. O trabalho com a respiração é bastante enfatizado por C. Sã e Luka. Zarrilli: [2 – Harmonizar: através do exercício psicofísico, o praticante harmoniza corpo e mente em uma gestalt, em um todo. À medida que corpo e mente se sintonizam um ao outro, o praticante alcança um estado psicofísico além do dualismo. 3 – Aumentar a consciência: durante o processo de sintonia, a percepção perceptual/sensorial é aberta tanto para dentro como para fora em relação ao ambiente e aos outros no ambiente. 4 – Atendendo a: medida que a concentração e a conscientização se intensificam, é possível atender a ações/tarefas específicas assiduamente com o foco principal. 5 – Fazendo e sendo feito: em níveis virtuosos de desempenho ideais, faz-se a ação/tarefa enquanto que simultaneamente está sendo feito pela ação/tarefa. O atuante 100 desempenha a marcação de atuação, mas é simultaneamente encenado por ela. O bailarino dança, mas é dançado pela dança. Distinções desaparecem. O atuante é o que está sendo feito, mesmo quando se pode ajustar quando se faz. 6 – Habitando a consciência dual/múltipla: ao executar uma tarefa/ação específica com foco e conscientização totalmente corporificada, o atuante é simultaneamente capaz de manter uma consciência perceptiva aberta, isto é, possui uma consciência dual/múltipla ativa. O atuante ou artista marcial é capaz de permanecer na tarefa ou na ação, enquanto ao mesmo tempo faz ajustes necessários para os outros, a atividade, o público, etc.].cvii Atrizg: Acho que ainda tenho um longo processo até dominar completamente todos esses elementos. Tem dias que consigo um equilibro intenso entre mente e corpo, mas outros que estou completamente perdida. Zarrilli: [No atuante ideal, todos os elementos/princípios se manifestam como uma gestalt – um todo. Este é o ideal “eu posso” do atuante.].cviii Atrizg: Às vezes a minha mente diz “– Eu posso” e o meu corpo diz “– Quero minha cama”! (risos) Zarrilli: [Sistemas desconhecidos de movimento exigem paciência quando se ajustam a níveis cada vez mais sutis de equilíbrio necessários para assumir e executar movimentos específicos. Nos estágios iniciais, a mente frequentemente fala com o corpo, tentando dizer-lhe o que fazer. Mas através da prática diária dos exercícios, e especialmente através do uso concentrado da respiração em relação ao movimento e uso de imagens para engajar a mente, se começa a experimentar o corpo e a mente como relacionados e, portanto, como um circuito ao invés de duas entidades separadas e em conflito.].cix Atrizg: Na teoria isso é lindo e até fácil de entender. O desafio é colocar isso em prática, todos os dias de treino, harmonizar e trabalhar nesse estado corpo-mente em cena. Zarrilli: Antes de tudo, é necessário paciência. Depois entender que [o treinamento preliminar não é simplesmente uma preparação do corpo físico, isto é, uma tonificação ou aquecimento do corpo para participar de uma atividade esportiva. É o início de um processo de descoberta de um corpo- mente alternativo que é então harmonizado.].cx Luka: Observo a dificuldade da Atrizg, principalmente no desempenho das marcações de cena: execução fria, mecânica dos gestos e movimentos das partituras. É como se ela colocasse a ênfase na execução técnica e primorosa das ações em detrimento do comprometimento (intenção) pessoal com o que faz. 101 Zarrilli: Isso me fez lembrar os três tipos diferentes de integração psicofísica que o pensador Shigenori Nagatomo87 distinguiu. Atrizg: Caramba. Mal domino um tipo de harmonização psicofísica e esse filósofo japonês já me vem com três tipos diferentes. Tó ferrada... Zarrilli: [O primeiro tipo é o relacionamento normativo e cotidiano entre a mente e o corpo que é experimentado como dualista. Inerente em nossa experiência diária de corpo e mente como separada há uma tensão subjacente. No treinamento de kalarippayattu, quando um indivíduo primeiro tenta executar um exercício, ele geralmente começa usando o lado direito do cérebro para descobrir se os pés, costas, etc. estão na posição correta. A mente está tentando descobrir como fazer algo com o corpo e tenta comandá-lo. O resultado é que não há fluxo. Há tensão. Da mesma forma ocorre na atuação, quando um atuante tenta colocar uma ação no corpo, em vez de fazer a ação sem pensar. Há pouca ou nenhuma integração psicofísica.].cxi Luka: Exatamente o que ocorre muito com a Atrizg, mas também com muitos alunos iniciantes ou não de teatro aqui na cidade. Zarrilli: [Se alcança um estágio intermediário de integração quando um indivíduo desativa essa relação dualista através do treinamento psicofísico. Corpo e mente são gradualmente des- tensionados e um fluxo interno é descoberto.].cxii Atrizg: Engraçado, pois sinto esse processo de des-tencionamento mais nitidamente quando pratico alguns movimentos do t’ai chi ch’ uan. Zarrilli: [Na terceira fase de sintonia, se alcança um estado totalmente “não tensional”88. Mente e corpo são experimentados não como separados, mas como um único sistema de co-síntese. (...) À medida que o grau de conhecimento somático é refinado, obtém-se um grau mais sutil ou mais elevado de integração psicofísica, ou sintonia dentro da relação corpo-mente. Ao invés de sentir uma oposição entre corpo-mente, interno-externo, self-objeto, self-outro, há uma co-síntese entre cada um desses binários.].cxiii Atrizg: E haja treino pra atingir esse estado permanente de harmonia entre corpo e mente. Luka: O treinamento desperta a energia, Atrizg. Mas é preciso mantê-la viva. Zarrilli: [O que está sendo despertado dentro é a energia interior de cada um – a força estimulante e vivificante da vida materialmente presente na respiração, isto é, prana-vayu, qi/ki. Esta energia 87 NB: (1992b). 88 NB: (Nagatomo, 1992, 184). 102 interior é como uma semente que permanece adormecida dentro de nós que, uma vez germinada, pode crescer através do cultivo e de uma nutrição adequada].cxiv Atrizg: Já sei: treinar, treinar, treinar... No GITA treinamos sempre: na véspera e no dia de uma apresentação teatral, ou no primeiro dia do processo criativo. Mesmo quando sequer sabemos o que vamos montar teatralmente, ainda sim, treinamos. Zarrilli: [A energia interior é despertada através do trabalho na área abdominal inferior. Pelo exercício psicofísico deste centro, podemos despertar energia e deixá-la percorrer através do corpo-mente. Especialmente importante é animar a energia/consciência ao longo da linha da coluna – o eixo central do corpo-mente. Os exercícios cultivam o fluxo de energia-ki como uma consciência do centro abdominal, através dos pés, mãos/pontas dos dedos, parte superior da cabeça, etc. À medida que se move e flui é sentida a energia-ki animando, vibrando física e vocalmente a atividade mental.].cxv Atrizg: Tu trabalhas o equilíbrio da energia por meio dos chakras? Zarrilli: [Embora eu enfatize os elementos mencionados acima – engajamento constante da região abdominal inferior e ativação da energia como respiração – como Jerzy Grotowski, não enfatizo ou faço uso de todos os elementos do mapa do corpo sutil do yoga. Há um problema potencial ao ser muito específico no uso do mapa do yoga, especialmente no que diz respeito aos canais (nadi) e rodas (chakras). Tornar-se muito específico pode induzir o praticante ao erro se alguém tentar manipular ou criar consciência de acordo com alguma ideia pré-determinada sobre o que a experiência ou realidade de uma determinada relação com um momento de prática pode ou não ser. Isso pode levar à introversão e a uma introspecção excessivamente subjetiva.].cxvi Atrizg: Perguntei pelo fato de treinarmos hatha yoga. Achei que fazia todo sentido o estudo e a prática do equilíbrio por meio dos chakras. Zarrilli: Gosto de lembrar o pensamento de Grotowski sobre isso. O mestre polonês, que também realizou experiências de treinamento com yoga disse certa vez: [Nós evitamos tanto quanto possível verbalizar as questões dos centros de energia que podemos localizar no corpo [...]. Eles pertencem ao domínio biológico ou a um que é mais complexo? Os mais conhecidos são os centros de acordo com a tradição do yoga, aqueles chamados chakras. É claro que se pode, de forma precisa, descobrir a presença de centros de energia no corpo: daqueles que estão mais claramente ligados à sobrevivência biológica, os impulsos sexuais, etc., a centros cada vez mais complexos (ou, deveria dizer, mais sutil?). E se isso é sentido como uma topografia corporal, pode-se claramente 103 traçar um mapa. Mas aqui há um novo perigo: se alguém começa a manipular os centros (centros no sentido próximo dos chakras hindus), começa-se a transformar um processo natural em uma espécie de engenharia, que é uma catástrofe. Torna-se uma forma, um clichê. [...] Se tudo isso é verbalizado, há também um perigo de manipular as sensações que se pode criar artificialmente em diferentes lugares do corpo89.].cxvii Luka: A tentação de romantizar o treinamento também é muito grande. Já tive alunos que no primeiro dia de aula saíram conectando todos os chakras e energias astrais conhecíveis e definíveis no ocidente. Empolgados com a primeira experiência numa prática intercultural me narraram sensações inacreditáveis de equilíbrio e harmonização com o universo. Passadas algumas aulas, esses mesmos alunos não aguentavam mais repetir a mesma sequência codificada de formas e movimentos. Zarrilli: Por isso, [como Grotowski, uso uma terminologia que é precisa, mas não tão fixa para não levar o praticante à armadilha da intenção.].cxviii Atrizg: Essa parte do treinamento e o cultivo da energia é bem mais fácil de entender quando ligado ao próprio treinamento. Como o Luka falou: minha grande dificuldade é saber lidar com o cultivo da energia e manutenção da energia psicofisicamente em cena. Zarrilli: Eu compreendo, Atrizg. É a mesma dificuldade de vários de meus alunos, pois há uma ansiedade em ver os resultados imediatos do treinamento em cena. Isso até certo ponto é natural e compreensível. E por isso mesmo, didaticamente, divido o processo de formação do atuante psicofísico em quatro fases: Fase I: Treinamento; Fase II: Do treinamento ao desempenho; Fase III: Em desempenho; Fase IV: De volta ao treinamento (Fase I). Luka: Acredito que já falamos bastante da primeira fase, que é o treinamento psicofísico; Atrizg: Também acho. Por favor: fala dessa passagem do treinamento para o desempenho. “É ai que o bicho pega!” Zarrilli: Tudo bem. [Nessa parte do processo, os atuantes aprendem a modular e moldar sua energia interior e sua consciência às exigências de dramaturgias específicas e tarefas de atuação através de improvisações estruturadas.].cxix Atrizg: Improvisar dentro de uma estrutura não seria uma contradição? O que são essas improvisações estruturadas? 89 NB: (Grotowski 1992). 104 Zarrili: [As improvisações estruturadas são um conjunto de tarefas psicofísicas muito simples, organizadas em estruturas cada vez mais complexas baseadas em regras, desempenhadas em um ambiente de oficina. Os elementos essenciais cultivados no treinamento psicofísico – ki/percepção sensorial, energia e atenção – são aplicados a essas tarefas. Elas fornecem uma ponte entre o treinamento pré-performativo em andamento e o desempenho.].cxx Luka: Elas se dão numa fase que denominaste “oficina”. Isso quer dizer numa abordagem experimental que não tem relação direta com um processo criativo? Zarrilli: Exatamente, Luka. [Liberados de qualquer preocupação com a técnica ou a forma pela configuração da oficina, elementos-chave e princípios do treinamento são colocados em “jogo” dentro de estruturas que são, em essência, mini performances. Se atua sem “atuar”.].cxxi Atrizg: Entendi. Se elabora tarefas específicas, dentro de estruturas determinadas, mas que não farão parte da montagem teatral. O Luka faz isso também: cria um monte de desafios, uns jogos malucos que exigem atenção individual e coletiva, foco, economia de movimentos e gestos, ritmo, precisão, controle da respiração e disciplina. Luka: É verdade. Mas cada vez mais tenho desenvolvido esses jogos em relação direta com a obra indutora (texto dramático) dos nossos processos criativos. Acredito que isso já estabelece uma atmosfera favorável para os atuantes se apropriarem da obra, seja decorando o texto ou exercitando o olhar crítico para as camadas mais profundas da dramaturgia, isto é, fazendo os atuantes interpretarem criticamente o texto dramático. Atrizg: É verdade. Os jogos que fazemos utilizando o texto como uma das tarefas envolvidas no desafio, me levam a exercitar modos de pensar e dizer o texto em cena. Luka: Fui desenvolvendo isso também em função do tempo que os pesquisadores passam pelo grupo. Embora nossos processos criativos durem em média dois anos, o fluxo de pessoas que no grupo dura em média, no máximo, sete meses. Quando percebi isso, comecei a estabelecer relação direta logo com o texto dramático, mesmo nos jogos que estão na fase que também denominamos de oficina. Atrizg: (a Zarrilli) Podes falar um pouco mais sobre as improvisações estruturadas? Zarrilli: Sim, Atrizg. [ (...) o ponto de partida em cada improvisação estruturada é o mesmo que no treinamento psicofísico diário. Ambos começam com atenção à respiração e à consciência corporificada que surge quando alguém está atento à respiração. O atuante envolve atentamente seu corpo-mente em cada tarefa psicofísica simples, mantendo uma consciência-ki/sensorial 105 aberta. No treinamento pre-performativo, a consciência-ki/sensorial e a energia despertada são aumentadas, mas neutras, na medida em que não foram moldadas ou ressoadas com estruturas dramáticas.].cxxii Atrizg: Esse é meu problema. No treinamento tenho essa energia neutra. Não consigo dominar esse processo de colocar essa energia em função de uma forma dramática. Zarrilli: [Nesses exercícios, consciência e energia ressoam e irradiam dentro e fora com o sentimento de formas (dramáticas) que tomam forma como na “atuação”. Engajando-se em estruturas simples baseadas em tarefas, o atuante começa a explorar mais explicitamente a natureza do impulso e da ação à medida que são moldadas no que parece ser, e de fato constitui, o desempenho. As tarefas e as estruturas são aprofundadas e tornam-se cada vez mais complexas ao introduzir o desejo nas instruções – desejo de olhar, ouvir, tocar, mover, falar, etc. À medida que a percepção sutil do atuante é sintonizada e aprimorada, observando o desempenho de uma estrutura, o que emerge são todos os elementos que constituem a atuação – comportamento, personagens e relações. O atuante começa a atuar “sem (tentar) atuar”.].cxxiii Luka: E as regras para a composição das estruturas são baseadas no que? Zarrilli: [As regras para cada estrutura são específicas. Elas exigem, em cada momento, que o atuante fixe e cultive ki/percepção sensorial e foco/atenção das formas específicas. Cada estrutura é “jogada” habitando atenção/percepção/consciência, no momento [presente], sem intenção e sem pensar nas regras. Idealmente, o atuante começa a “jogar” (sem pensar) dentro de cada estrutura: Não sabendo quando haverá uma mudança na consciência ou foco/atenção; Descobrindo experimentalmente o que se sente ao habitar uma marcação psicofísico sem premeditação. O que é essencial neste “jogar” com uma estrutura é trabalhar simplesmente dentro de suas regras e assim estar aberto à experiência perceptiva e à descoberta à medida que elas ocorrem.].cxxiv Atrizg: Ainda não ficou claro pra mim. Podes me dar um exemplo prático de estrutura? Zarrilli solicita que afastem a mesa do centro da sala para que possam acompanhar na prática a descrição do exercício. Zarrilli: [As primeiras estruturas introduzidas são construídas diretamente a partir da experiência do atuante de coordenar a respiração com o movimento e deslocar o foco externo sobre o impulso de cada parte da respiração (...)].cxxv Atrizg: Calma que eu quero tentar fazer direitinho. Atrizg e Luka executam o exercício aos comandos de Zarrilli 106 ZARRILLI: [Fique em pé com os pés na largura dos ombros. Como no treinamento, ao longo deste exercício, continue a seguir sua inspiração e expiração com seu olho interior, mantendo uma percepção aberta. Quando eu lhe peço para começar, no impulso de cada parte da respiração, ou seja, cada inspiração ou expiração, permita que o impulso da respiração mova um de seus braços para algum lugar e simultaneamente permita que seu olho externo se concentre em algum lugar da mão ou braço que é colocado em jogo. Não antecipe qual mão ou braço será colocado e não preveja para onde seu foco externo irá. Descubra qual mão/braço se move e onde o seu foco vai acontecer. Após a respiração/movimento inicial, sinta sua conclusão no final de cada parte da respiração. No impulso da próxima parte da respiração, a mesma mão/braço que inicialmente se moveu, move-se para outro lugar e seu foco externo se desloca simultaneamente para outro lugar naquela mão/braço. E assim por diante (...)].cxxvi Atrizg: O C. Sã já conduziu o exercício dessa estrutura, algumas vezes, aqui no GITA. É fácil de realizar e bem diferente do que o Luka aplica como jogo intermediário entre treinamento e atuação de que falávamos antes. Luka: É verdade. Eu chamo os exercícios que desenvolvo de “circuitos”. Em síntese e ideia dos circuitos é estabelecer tarefas específicas e aumentar o nível de dificuldade à medida que os atuantes se apropriam dos comandos. Atrizg: É uma loucura. Vai dando um nó na cabeça, mas é bem divertido, pois exige muito estado de prontidão e disciplina. Eu consigo observar algumas semelhanças com a estrutura inicial que falaste e que nós fazemos no GITA. Disseste que é uma das primeiras que pede para fazerem. Tem outras? Zarrilli: Sim. Partindo dessa estrutura inicial vou adicionando novas estruturas. (ele retoma novamente a condução pedindo que Luka e Atrizg executem a nova estrutura) [Como na primeira estrutura, fique em pé com os pés na largura dos ombros, as regras são as seguintes: o foco externo desloca-se em cada parte da respiração, mas pode estar em qualquer mão ou braço, isto é, ambas as mãos e braços estão em jogo. Não há movimento aberto do corpo através do espaço, mas pode haver movimento residual do corpo à medida que você muda o ponto primário do foco externo. Com os pés ainda na largura do ombro, o foco muda em cada parte da respiração para qualquer ponto em seu corpo que você pode ver, ou seja, não as costas.].cxxvii Atrizg: Tenho a impressão que essas estruturas iniciais que estais mostrando pra gente me permitem perceber melhor a relação com o treinamento. São mais parecidas ou próximas das 107 formas codificadas que executamos no treino. Os circuitos do LUKA, embora nos solicitem o trabalho com a respiração, foco e atenção ao espaço, parecem um pouco mais avançados, exigem um domínio dos princípios que muitas vezes as pessoas que entram no GITA ainda estão aprendendo, como a conexão com a respiração, por exemplo. Luka: Concordo, Atrizg. Às vezes minha ansiedade e meu desejo de querer avançar os processos criativos, realmente me fazem dimensionar equivocadamente o tempo para amadurecer as etapas da pesquisa. Os exercícios que Zarrilli está mostrando pra gente são muito bem-vindos, podem e devem ser usados numa etapa intermediária entre o treinamento psicofísico e os circuitos que eu elaboro. Ou ainda, os circuitos que eu crio são etapas que se ajustam mais adequadamente como exercícios intermediários que auxiliam os atuantes no processo de investigação do ambiente dado pelo texto dramático. Neste último caso, os circuitos trabalham com o cultivo da energia, mas já abrem caminho para que essa energia comece a ser trabalhada na dimensão do texto dramático. Zarrilli: Que bom que nossa conversa leve vocês a pensarem e repensarem a prática criativa de vocês. Acredito que tudo se encontra em movimento e o modo de vocês trabalharem, descobrindo e propondo meios para uma atuação psicofísica aqui no Norte do Brasil, é extremamente válido. Mas ainda falando sobre as estruturas improvisadas, é importante observar também as regras básicas que utilizo para orientar o trabalho: [O foco externo deve mudar em cada parte da respiração; o foco externo está sempre dirigido a um ponto específico; deixar que o impulso de cada parte da respiração mova o corpo e o foco externo de acordo com as regras de cada estrutura; quando o impulso se realizar, o foco deve ir de um ponto a outro, e não viajar ou se fixar em qualquer outra coisa até chegar ao próximo ponto (outras formas de foco são introduzidas mais tarde); manter uma consciência espacial corporificada e aberta além do ponto primário de foco acima, atrás, para a periferia e através dos pés; o olho interno segue cada parte da respiração para baixo, na inspiração para abdômen inferior, e até na expiração; trabalhar de forma simples e sem premeditação, permitindo que o impulso de cada parte da respiração inicie cada ação e mudança de foco externo; manter-se ativo e habitar o espaço entre a inspiração e a expiração, isto é, sentir a conclusão da respiração, tanto no impulso anterior quanto no posterior de cada respiração; quando usar foco o especifico em algum lugar próximo, garantir que sua consciência/energia se estende além do ponto específico de foco; cada deslocamento de foco e movimento deve ser sentido por todo o corpo, mesmo que não haja nenhum movimento manifesto em todas as partes do corpo; enquanto você se movimentar de um ponto a outro do foco, mantenha 108 uma consciência residual e, portanto, uma conexão com o local, lugar de consciência anterior de cada novo impulso, para que cada ação esteja conectada ao próximo e ao próximo, etc. Ao se mover através das estruturas, não é preciso manter o mesmo ritmo, ou seja, a quantidade de tempo que a respiração leva pode e deve mudar, às vezes sendo sustentado, e às vezes levando muito menos tempo.].cxxviii Atrizg: Caramba. É bastante coisa pra prestar atenção. Luka: Na verdade, Atrizg. Todos esses elementos são acionados e exercitados enquanto realizamos o treinamento psicofísico. Desse modo, o exercício que o Zarrilli está apresentando só mostra como acionar novamente todos os princípios do treino, só que agora voltados para o exercício da atuação no que ele está chamando de improvisação estruturada. Zarrilli: Isso mesmo. Agora vou mostrar a improvisação estruturada usando cadeiras. (coloca duas cadeiras no centro da sala e convida-os para executar o novo exercício). [Ter os atuantes sentados no início deste processo é extremamente útil. Manter os atuantes sentados assegura que as possibilidades de movimento se mantenham relativamente simples no início. Isso permite que o atuante experimente a relação da sua respiração, inicialmente, com movimentos simples, como olhar para a mão, uma ligeira volta da cabeça, etc.].cxxix Atrizg: Vamos lá, então. Acho que esse vai ser mais fácil que os circuitos do Luka. (risos) Luka: Te concentra. ZARRILI: [Sente em sua cadeira com pés firmes fazendo contato com o chão. Permita que seus braços estejam ao seu lado. Nesta posição sentada, começaremos com dois ciclos de abertura dos movimentos de t’ai chi ch’ uan. Mantendo a consciência aberta através de seus pés no chão, atrás de você, acima de você, e para a periferia, na próxima inspiração, comece... através dos pulsos, permita que os braços subam até a altura dos ombros... e na expiração, para baixo permitindo que os braços voltem aos seus lados... e repita novamente... venha para um ponto de pausa e fique ativo em sua escuta... abra sua consciência para todos os outros jogadores sentados à sua direita e esquerda... mantenha essa consciência aberta, um do outro, até estarem prontos... e, sem que eu diga quando começar, faça dois ciclos completos iniciais do t’ai chi e se movam juntos, como um... venha para um ponto de pausa e fique ativo em sua escuta... sentindo a relação com seu corpo e ao seu redor a partir da repetição do t’ai chi, mantendo a relação com seus pés, permita-se assumir qualquer posição física na cadeira, desde que você mantenha um pé tocando o chão para mantê- 109 lo aterrado... verifique novamente se é essa posição que você está querendo e se está mantendo o sentido animado na linha da sua coluna...].cxxx Atrizg: (ao término do exercício) Engraçado, o C. Sã também já tinha repassado esse exercício, mas sem relacionar com o movimento inicial do t’ai chi. Luka: Tu vais aumentando o nível de dificuldade à medida que percebe que os atuantes estão realizando com tranquilidade as estruturas? Zarrilli: Sim, Luka. [Depois de jogar uma ou duas rodadas desta estrutura muito simples para garantir que todo mundo entenda as regras básicas, na medida em que começam a sentir todo o corpo sendo animado enquanto se mantêm sentados, eu começo a elaborar estruturas ligeiramente mais complexas. Cada nova rodada de jogo é iniciada pela abertura sentada do t’ai chi.] cxxxi Atrizg: Então vais aumentando a dificuldade, tal como o Luka nos circuitos malucos dele. Comparando novamente com o que o Luka faz, volto a ter a impressão que essas improvisações estruturadas simples estabelecem uma relação bem próxima do treinamento, no sentido de me permitir exercitar mais objetivamente os princípios do yoga, do t’ai chi ch’ uan e do kalarippayattu, principalmente a dinâmica da respiração – expirar, inspirar, relação da respiração com o movimento. Enquanto que os circuitos do Luka me exigem o domínio destes elementos para cumprir as tarefas que vão se apresentando. Luka: Boa observação, Atrizg. Eu concordo. Zarrilli: É importante que vocês observem que [cada estrutura não tem um significado predeterminado, narrativa ou conclusão. No entanto, à medida que as estruturas se tornam mais complexas e quando desempenhadas com pleno envolvimento psicofísico em cada tarefa, a partir da posição do espectador, as estruturas começam a assumir a qualidade do drama, ou seja, as relações aparecem, são feitas comparações, associações, significados e histórias se materializam. Mas os atuantes não estão agindo com motivações ou objetivos. Em vez disso, eles estão absorvidos e atentos à respiração, ao movimento e tecendo estruturas psicofísicas com uma consciência plenamente incorporada no momento.].cxxxii Luka: Como estabeleces o nível de complexidade das estruturas? Zarrilli: [Construo a complexidade das estruturas acrescentando pontos adicionais de foco externo, ou criando uma relação dinâmica mais complexa, justapondo três tipos de pontos. Com todos os participantes sentados em uma fileira, coloco uma cadeira vazia cerca de dois metros do grupo, de frente para eles. O conjunto de pontos de foco que começam o trabalho com a cadeira 110 inclui: a cadeira vazia, um lugar no chão cerca de meio metro na frente de cada jogador, ou um dos rostos dos outros jogadores. Uma vez que os atuantes foram colocados em jogo, certa dinâmica é criada pela justaposição dos três pontos – foco externo que está ligeiramente para baixo, foco em uma cadeira vazia e foco no rosto de outro jogador.] cxxxiii Atrizg: E quando propriamente tu começas o trabalho com a criação de cenas? Luka: O que a Atrizg quer dizer é se a etapa seguinte do teu trabalho é o que chamamos de subjetivação de uma estrutura, marcação ou partitura de movimentos. Subjetivar uma partitura no nosso modo de trabalhar significa dar sentido dramático, colocar uma camada de significados, sentidos que podem ou não estar ligados com o texto dramático do processo criativo. Zarrilli: [A próxima etapa do processo é a introdução do desejo no “jogo”, utilizando algumas das mesmas estruturas discutidas até agora.].cxxxiv ATRIZG: Podemos tentar fazer? Zarrilli: (conduzindo novamente o exercício) [Usando o foco externo nos três pontos seguintes – diretamente à frente, uma das faces dos outros atuantes, ou a cadeira vazia à frente – adicione o desejo de se levantar e ir sentar na cadeira vazia. Esse desejo deve ser constante. Onde quer que vá seu ponto de foco externo, o desejo de ir e sentar na cadeira vazia deve estar presente. Você deve sentir esse desejo com cada impulso, e a cada mudança da respiração, mas você não tem permissão para agir sobre esse desejo. Por mais forte que seja este desejo de ir e sentar na cadeira vazia, você não pode se mover. Com o seu ponto inicial de foco à frente, na próxima inspiração, comece... Permita que esse desejo seja mais forte... e ainda mais forte... cuidado para não apontar para o desejo. Sinta-o na beira da respiração... em seus pés... no espaço por trás... venha a um ponto de pausa e fique ativo em sua escuta. Vamos acrescentar mais um elemento à estrutura. Com o próximo impulso da respiração, sinta o desejo de se mover para a cadeira agindo sobre esse desejo, mas PARE! Você não pode ir para lá. Você deve permanecer onde está não importa quão forte seja esse desejo!].cxxxv Atrizg: (após o exercício) Caramba! Parece simples, mas exige muita energia, atenção e conexão com o momento presente. Luka: É verdade. Qualquer deslize e acabamos representando o desejo ao invés de simplesmente deixá-lo fluir naturalmente. Zarrilli: [Em termos de consciência-ki, o ato psicofísico de parar uma ação iniciada por um forte impulso de movimento cria uma relação psicodinâmica interna extremamente forte. Está 111 acontecendo tanta coisa dentro do atuante que isso vibra e ressoa por todo o seu corpo-mente, criando interesse para o espectador.].cxxxvi Atrizg: Acho que é o mesmo princípio que vivenciei na jornada das pontes: “se manter imóvel enquanto não se está imóvel”. Zarrilli: [Energeticamente, está acontecendo muita coisa dentro do atuante e isso atrai a atenção do público. Crucialmente, a experiência do atuante com a intensidade do desejo produz uma quantidade extraordinária de sentimento. O sentimento é gerado pela atenção e consciência do atuante totalmente incorporada na tarefa, mantendo uma consciência cinestésica aberta.].cxxxvii Luka: E o exercício pode ser feito com a indução de outros tipos de desejo? Zarrilli: [Assim como com as estruturas básicas, há um número infinito de desejos que podem ser introduzidos no processo. O fundamental é que cada desejo posto em movimento seja claro,simples e específico da tarefa. Sentir é o resultado de colocar em jogo um desejo específico da tarefa no momento.].cxxxviii Atrizg: Isso já corresponde ao processo de criação das cenas dramáticas? Luka: Calma, Atrizg. Pelo que estou vendo, são vários passos que contribuem para o cultivo e domínio da energia em cena e, consequentemente, rumo ao processo de uma atuação psicofísica. Talvez tua ansiedade revele um pouco do quanto nós, aqui no GITA, ainda estamos muito voltados a um processo de produção e criação de resultados cênicos. Mesmo considerando que nossos processos criativos durem em média dois anos, ainda assim vivemos e fomos formados numa cidade que valoriza os resultados – as montagens teatrais – apresentados ao público e não os processos. Mas vamos deixar que ele prossiga. (a Zarrilli) Qual o passo seguinte? Zarrilli: [Um novo domínio e qualidade de jogo são abertos, geralmente, quando introduzo objetos em improvisações estruturadas.].cxxxix Atrizg: Podemos fazer esse exercício com objetos também? Zarrilli: Claro. Vamos lá. [Peço a cada atuante para trazer para o estúdio um objeto que tem algum uso pessoal específico ou associação ligada a ele. Pode ser qualquer coisa – um objeto utilitário, como a garrafa de água que um indivíduo usa diariamente e carrega o tempo todo, um cachecol, um relógio, uma bola de beisebol assinada, um chapéu em particular, etc. Não precisa ser algo que tenha um valor sentimental ligado a isto. É melhor se o objeto não está sobrecarregado com memórias pessoais.].cxl (Luka e Atrizg apanham, entre seus pertences, algum objeto pessoal para realizar o exercício. A mesa volta para o centro da sala para realização desse exercício). 112 ZARRILLI: [Coloque cada um dos seus objetos na mesa à sua frente. Após a abertura do t’ai chi uníssono, tome qualquer posição física em sua cadeira. Seus pontos de foco são o seu objeto, ou um dos objetos dos outros jogadores, deslocando o foco em cada parte da respiração. Quando começamos, você pode tocar em seu próprio objeto, mas você não pode tocar em nenhum dos objetos dos outros jogadores.].cxli Atrizg: (após o exercício) É fácil. Exige os mesmos elementos do exercício passado. Zarrilli: É verdade. Mas realizando somente com vocês dois, este exercício se torna mais simples. Por isso vou apenas dizer como o torno mais complexo. [Depois de jogar a estrutura através de várias rodadas, eu adiciono o “desejo de tocar o objeto de outro jogador, mas você não pode realmente tocá-lo.” (...). Do lado de fora, a estrutura “objetos sobre uma mesa” começa a assumir a intensidade de um jogo de pôquer. Quem e quando se vai fazer um movimento? Quem deseja o objeto? Quem está olhando para o meu objeto? Quem quer meu objeto?].cxlii Atrizg: Entendi porque precisa de mais gente agora. Deu vontade de ver esse exercício acontecendo. Agora me diz uma coisa: notei que até agora todos os exercícios foram realizados sem uso de texto. Quando tu introduzes a tarefa de oralizar textos? Ou só trabalhas com estruturas sem texto? Zarrilli: O trabalho com texto é uma camada delicada, mas que é trabalhada sim, Atrizg. O texto pode ser introduzido no jogo como um “desejo de falar”. [Este desejo pode ser adicionado a qualquer estrutura, como a dos “objetos sobre a mesa”, ou na estrutura “cadeira na frente de um grupo”.].cxliii Atrizg: E como tu conduz esse “desejo de falar”? É um desejo que não pode se realizar? Zarrilli: [Quando adicionado o “desejo de falar”, eu oriento do seguinte modo: Enquanto você continua a jogar a estrutura, se o desejo de falar chegar até você por um impulso particular, permita sentir a forma dessa palavra ou frase em sua boca, mas na verdade não fale... Que palavra ou palavras vêm a você...? Qual é a “sensação” dessas palavras, daquela frase...? Sinta o desejo de falar em seus pés... no seu dantian...].cxliv Atrizg: Então, na verdade eles não falam. Zarrilli: [Eventualmente, convido os jogadores a falar, mas quando eles são autorizados a fazê- lo, eles só podem vocalizar uma palavra, depois três, e depois uma frase completa.].cxlv Luka: O trabalho com texto realmente é um grande desafio, pois acaba monopolizando a atenção e, inevitavelmente, leva à cisão de todo o trabalho realizado na etapa do treinamento. 113 Atrizg: É verdade. Quando entra o texto parece que tem um corte profundo com tudo que consigo de qualidade de presença energética e equilíbrio psicofísico. Luka: Eu que o diga. E, por isso, estou curioso pra saber se este exercício com o texto nas improvisações estruturadas é a última etapa que realizas antes de trabalhar especificamente com uma dramaturgia escolhida para o processo criativo. Zarrilli: Então, Luka. [O estágio final é inventar estruturas que atendam às necessidades e dinâmicas específicas de uma dramaturgia particular. Para introduzir este processo, eu discuto brevemente como e por que eu desenvolvi estruturas para trabalhar em “As Criadas”, de Jean Genet.].cxlvi Atrizg: Olha Luka, o Jean Genet não é o autor da primeira montagem do GITA? Luka: Sim. A primeira montagem do grupo foi uma livre adaptação do romance de Jean Genet chamado “Querelle de Brest”. A montagem ganhou o título de “Querela-Eu” e estreou em 2008. Atrizg: Que coincidência heim?! Zarrilli: É bom saber disso Atrizg, pois embora tenham feito uma adaptação de um romance, de alguma forma significa que conhecem o universo de Jean Genet. Particularmente sou fascinado pela dramaturgia de “As criadas”, pois são grandes os desafios de atuação para os papeis Madame e suas duas empregadas domésticas, Claire e Solange. Compactuo com o pensamento do filósofo Jean-Paul Sartre sobre “As criadas” quando ele afirma que nesta obra [“o real é algo que derrete [...] reabsorvido quando tocado” 90. “Realidade” e a aparência da realidade são postas em jogo.].cxlvii Atrizg: Isso significa que o tema da obra é a própria realidade? Luka: Não, Atrizg. Ele está tentando dizer que esse texto dramático possui uma dramaturgia e estética bem realista. E que isso é um dos grandes desafios para a atuação. Zarrilli: Obrigado Luka. É isso mesmo. Pra ajudar, vou contextualizar a dramaturgia de Genet com o pensamento de um sociólogo. [Erving Goffman analisou como cada um de nós performa ou atua um ou mais papéis na vida cotidiana. Empregadas domésticas e comissárias de bordo são dois dos exemplos mais óbvios de papéis sociais que exigem, a quem está nos papéis que os desempenhem, sempre que estão sob os olhos do público. Regras e convenções restringem o desempenho desses papéis sociais e o tipo de comportamento que se pode manifestar em público. 90 NB: (1954: 31). 114 Por trás do desempenho exterior do papel social, o indivíduo que desempenha o papel está experimentando uma variedade de sentimentos em relação ao desempenho do papel social. Mas esses sentimentos pessoais devem permanecer reprimidos até que o indivíduo tenha saído do palco – por exemplo, quando as empregadas estão na cozinha ou no sótão.].cxlviii Atrizg: Ah tá. To começando a entender. Realidade e aparência de realidade: realidade seria o que os papeis estão sentindo de verdade quando não estão desempenhando uma função social e aparência de realidade quando desempenham o papel social. Que bacana. Zarrilli: [Na peça de Genet, sempre que Madame está ausente, as duas irmãs “sobem ao palco” para realizar a cerimônia que criaram. Elas se revezam no papel de Madame, ou no papel da empregada de Madame, interpretada por sua irmã. Claire e Solange constroem suas próprias versões do papel de Madame se baseando na observação de Madame desempenhando esse papel social. Cada uma baseia o desempenho da empregada à Madame em observações de sua irmã. Cada uma das personagens, portanto, joga não só a si mesma, mas também pelo menos outro papel. Madame se constrói como um gesto, mas agora seus gestos são ainda mais grandiosos quando ela joga a fantasia de partir com Monsieur, o criminoso. Claire e Solange são as mais complexas. Elas se movem entre quatro registros de desempenho – Claire como Claire com sua irmã nos bastidores da cozinha/sotão, Claire como Claire a empregada quando servindo Madame, Claire como Madame, e Claire como Solange a empregada servindo Solange jogando Madame.].cxlix Atrizg: Égua!!! Que loucura maravilhosa. Zarrilli: [A cerimônia, como a atuação, é um jogo que é sempre o mesmo, mas diferente. Claire e Solange sempre jogam ao máximo. Em cada rodada da cerimônia, quais dos vestidos de Madame serão escolhidos? De quem é a vez de insultar quem? Que insultos serão dados? (...) Atuar em qualquer um dos três papéis em The Maids exige que cada atuante entre em um estado de estar em jogo no momento. O atuante não pode saber uma escolha antes que aconteça. Mudança de tática e surpresa estão no centro do trabalho do atuante em The Maids. (...) Encenar The Maids exige que os atuantes estejam no limite... entre um momento e o outro, entre um papel e o outro... num estado de “não saber”.].cl Luka: Pelo que vejo, tu conduzes o processo para estabelecimento das improvisações estruturadas partindo de uma análise da obra, uma compreensão filosófica e sociológica da dramaturgia para então estabelecer um plano de atuação para os atuantes. 115 Zarrilli: Isso Luka. [Nas improvisações estruturadas que eu planejei para o trabalho preliminar em “As criadas”, coloquei no “jogo” psicofísico a tensão subjacente entre aparência e realidade que informa a peça. Surge uma série de questões dinâmicas que são exploradas através destas estruturas: Quais são os limites, se houver, entre o papel e o personagem, entre o self e o outro – especialmente para Solange e Claire em relação uns aos outros e a Madame? / Que tipo de dinâmica simbiótica existe entre Claire e Solange, as duas empregadas e Madame, ou no modo como cada uma interpreta Madame? / Qual é a lógica e estrutura de poder com os jogos que são jogados? / Qual é a natureza dinâmica do estado extático de jogar esses jogos transgressivos de poder? Em última análise, quem é mais forte? Claire ou Solange?].cli Atrizg: Essas perguntas servem como indutores para a criação das atuantes? Zarrilli: [Essas perguntas em aberto e passagens específicas do texto de Genet são o ponto de partida para a criação de estruturas que exploram psicofisicamente a qualidade dinâmica das relações dos personagens em ação.] .clii Atrizg: Engraçado, pois o Luka também faz uma análise da obra com a gente; traz autores que nos ajudem a compreender o contexto da obra e do autor. Mas ele tem uma maneira de fazer e colocar tudo isso em relação direta com o nosso tempo e lugar. Ele sempre exige que nossa leitura da obra se volte para o nosso próprio umbigo, isto é, que a obra fale diretamente com a nossa vida, que a nossa vida esteja envolvida na obra. Por exemplo, no meu solo “Atena em solo viril” que foi montado a partir tragédia de Ésquilo “As Eumênides”, todas as partituras, gestos, movimentos, ações, relação palco/plateia, seleção das passagens do texto que foram usadas em cena, o roteiro dramático, enfim, o plano de trabalho pra minha atuação foi construído a partir do meu olhar sobre a obra, a partir das questões que me inquietam e que eu desejei discutir com a montagem. Mas quando tu vais mostrando o teu processo, como tu constrói as improvisações estruturadas, não vejo essa ênfase no material de vida dos atuantes. Não estou dizendo que isso é bom ou ruim. Só assinalando uma diferença marcante com o que o Luka faz. Mas eu queria que tu desses um exemplo de uma estrutura dessa usada nessa montagem, pra analisar e comparar outras coisas com o meu processo com o Luka. Zarrilli: Tudo bem. [Eu forneço a explicação apenas da primeira de muitas estruturas que são jogadas em um ambiente de oficina, ou quando se trabalha com um elenco durante a fase inicial de ensaios.].cliii Atrizg: Obaaa. Obrigado. 116 Zarrilli: [Para começar a explorar a dinâmica Madame-criada, aqueles que interpretam Madame sentam-se em cadeiras em uma mesa (coberta). Atrás de cada Madame está uma Solange. (Na próxima rodada, esta será Claire.) Na frente de cada Madame um espelho imaginário. A tarefa de Madame é preparar-se para uma visita a Monsieur; no entanto, ela mantém seu foco em si mesma e seus preparativos – não em Monsieur. O foco externo de Madame desloca-se entre os seguintes: olhando e tendo em seu rosto geral o olhar no espelho, examinando algum aspecto específico de seu olhar, como uma sobrancelha, pestana, uma bochecha, sua boca, ou um dos objetos em seu toucador, como batom, pente, escova de cabelo, etc. Solange está de pé, com as palmas das mãos juntas na cintura, ou atrás das costas. Solange possui o desejo de não estar presente. Ela tem o desejo muito forte de se virar e sair da sala, mas ela não pode. Ela deve estar aqui, presente com Madame. Enquanto na presença de Madame, o olhar externo de Solange deve ser indireto. Ela não deveria olhar diretamente para Madame no espelho. Seu olhar externo é, portanto, dirigido um pouco para baixo para a direita ou esquerda.].cliv Atrizg: Essa é a estrutura? Zarrilli: Ainda não. Isso é o contexto da cena. Vou descrever a estrutura agora. Você poderia me ajudar Atrizg? (Atrizg aceita. Zarrilli conduz o exercício com ela primeiramente fazendo Madame, enquanto Luka se posiciona no papel de Solange) ZARRILLI: [O foco inicial de Madame está no espelho, a cabeça ligeiramente virada para a direita ou esquerda, enquanto ela olha para si. O olhar de Solange está ligeiramente para baixo ou para a esquerda. Na próxima inspiração, comece a encenar a estrutura: Mantenha seu foco direto. Possua um senso de “propriedade” de si, seu olhar, os objetos antes de você... todo o ambiente. É o seu ambiente. Madame: quando você olha para si, habita o sentido de “eu sou bonita” em uma longa e prolongada respiração. Sinta a presença da figura atrás de você, mas não perceba diretamente ou não dê atenção a ela... Você é o que é importante. Você está presente para si, para si... Ela é invisível para você... a menos que você deseje dar sua visibilidade... Quando você a sentir, deixe a consciência dela passar por você. Não é importante... Aumentar a sensibilidade nas pontas dos dedos, palmas das mãos... permita que esta sensibilidade elevada venha de seu dantian... permita que cada momento de toque – de seus objetos, seus lábios, uma sobrancelha – vibre em você. Solange(s): mantenha seu olhar alto o suficiente que lhe permita sentir e ver o que Madame está fazendo. Sempre que ela se toca, como seus lábios com a ponta de 117 um dedo, o desejo de sair é ainda mais forte. Permita que suas inspirações e expirações sejam curtas e superficiais. Sua respiração está apertada e curta. Tenha um desejo ainda mais forte de sair cada vez que ela se tocar... permita-se começar a agir fisicamente sobre esse desejo, mas deve ser interrompido... você não pode sair... capture um vislumbre de Madame no espelho... ela vê você? ... Se você sentir seu olhar em você, você deve sorrir... sorrir através do desejo de sair... sentir esse desejo de sair em sua garganta... permitir que a saliva se reúna em sua boca... sinta o desgosto da saliva reunida lá... seu desejo de sair... você deve manter o pequeno sorriso através da aversão... ].clv (depois de encerrado o exercício) Atrizg: Confirmei minha suspeita. LUKA: Sobre o quê? ATRIZG: Quando Zarrilli constrói essas estruturas para atuar em “As criadas” ele define exatamente o que eu tenho que fazer dentro da cena, na dimensão energética; assim eu tenho coordenadas práticas que me auxiliam a cultivar e a manter a energia na cena. Então, a estrutura se mostra como um roteiro de tarefas práticas que preciso realizar como as coordenados do foco, da respiração, do uso dos objetos, relação com a outra personagem, relação desses elementos com o dantian... Quando ele começa a estabelecer relação com a camada dramatúrgica do texto eu tenho uma série de coordenadas práticas que me orientam e me mantém no momento presente, além de inibir a tentação de representar a situação, a cena, pois me mantenho atenta a cada elemento da tarefa prática que já falei anteriormente. O espectador não vai enxergar a estrutura, nem minhas tarefas práticas, mas a partir da qualidade de energia que consigo cultivar e manter em cena seu olhar é levado a construir sentidos e significados no contexto dramático. Luka: Muito bem, Atrizg. Boa análise do processo. Mas era essa a tua suspeita? Atrizg: Não exatamente. O que quis dizer é que comparando essas estruturas do Zarrilli com o plano de atuação que construímos pro meu solo, observo diferenças notórias: as primeiras parecem manter relação direta com o trabalho do atuante, enquanto que o plano de atuação do meu solo parece que se construiu a partir de um arcabouço voltado mais diretamente à encenação. A impressão que tenho é que exercitando as estruturas de Zarrilli fico segura e voltada ao trabalho da energia e, neste sentido, consigo perceber uma linha de continuidade entre o treinamento psicofísico, os exercícios pra cultivo e manutenção de energia (oficina) e a atuação com a camada dramática. Mas por outro lado, parece que o espaço de criação, o espaço de relacionar a obra com 118 a minha vida, o espaço de estabelecer relações com o meu lugar e tempo, com as questões que me atravessam e dão sentido pra eu continuar fazendo teatro; parece que tudo isso perde espaço, pois fico absorvida completamente no trabalho da energia. Por sua vez no processo criativo do meu solo, o Luka me conduziu por uma trilha de criação e autonomia criativa tão intensa que quase todas as escolhas estéticas e poéticas ficaram sob minha responsabilidade. Tudo que criamos passava por um processo de escuta pessoal e relação direta com a minha vida. Mas como as tarefas de atuação não tinham um roteiro tão precisamente ligado aos princípios psicofísicos do treinamento eu acabava fazendo as tarefas de modo frio, técnico, “representado” como ele dizia. Eu sentia uma lacuna entre o treinamento psicofísico e as ações em cena. Seria perfeito se desse pra juntar essas duas propostas: as improvisações estruturadas que o Zarrilli acabou de demonstrar com o processo de criação de uma encenação visceralmente voltado ao atuante do Luka. Luka: Calma Atrizg. O Zarrilli apresentou apenas um exemplo de improvisação estruturada. As comparações que apresentaste são bem interessantes, mas ainda é muito cedo para chegarmos a conclusões, seja sobre o processo do Zarrilli ou sobre o meu. Até porque o que nos move não é o desejo de definir, de classificar ou categorizar, mas sim perceber as perspectivas de trabalho. Zarrilli: É verdade. Concordo com o Luka. Ainda gostaria de mostrar outros exemplos onde trabalhei o treinamento psicofísico voltado para dramaturgias não realistas. E também preciso mostrar [um conjunto de estratégias complementares de ensino/acompanhamento que ajudam a sintonizar e ativar o atuante desde o momento em que iniciam a formação.].clvi Luka: Isso é excelente. Mas acho que podemos encerrar por hoje. Foi um dia intenso de exercícios e conversa. Por isso queria agradecer ao Zarrilli por demonstrar os exercícios com a gente na prática. Assim, deu pra entender bem melhor o que ele quer dizer quando propõe uma sétima categoria para a taxonomia do Gordon: Performance como processo psicofísico: a expressão e delineamento da energia. Atrizg: (cínica) E por falar em energia, o nosso açaí é conhecido por ser rico em fonte de energia. Oh, Zarrilli, tu aceitas o convite para uma segunda experiência intercultural gastronômica? Fim do Diálogo Segundo 119 Diálogo Terceiro – A questão do “corpo ausente” e a Atuação Psicofísica como Quiasma Diferente dos diálogos anteriores, este se passa no apartamento de Luka. É final de tarde e se encontram presentes na sala de estar Luka e Atrizg; eles estão terminando de arrumar a mesa para um café da tarde. Atrizg: (colocando os talheres) Adorei essa ideia do Zarrilli de fazermos um encontro mais informal aqui no teu apartamento. Luka: (arrumando as xícaras) A ideia foi do C. Sã. Mas eu confesso que também gostei. Receber o Zarrilli aqui em casa vai ser uma honra. Atrizg: (brincando) Um “lorde britânico” no Jurunas, quem diria. Luka: Brinca, mas não esquece que o Zarrilli é norte-americano. (mudando de tom) A mesa tá pronta. Me ajuda com as tapiocas? Atrizg: Claro. Vais fazer de quais sabores? Se dirigem pra cozinha e começam a preparar as tapiocas Luka: (à beira do fogão verificando a temperatura da frigideira) As básicas: só com manteiga; e manteiga, queijo cuia e peito de peru. Atrizg: (arrumando os recheios da tapioca no balcão ao lado do fogão) Deixa de ser “mão de vaca”, Luka. Credo!!! Achei que íamos oferecer um banquete de tapiocas com recheios diversos: charque, jambu, camarão, doce de cupuaçu, leite de coco... Luka: (interrompendo) Já basta de extravagâncias gastronômicas. Esqueceu que ele até experimentou maniçoba ontem? Atrizg: (rindo) Experimentou nada: se esbaldou!!!! Não teve nenhum prato, até agora, que ele tenha recusado. Luka: Ele é educado, Atrizg. Atrizg: (rindo) Educado e “brocado”. Até repetiu o prato. Luka: (espalha a goma na frigideira e começa a preparar as tapiocas) Como sempre exagerada. Ele provou em pequenas porções. Atrizg: Pode até ser. Mas que gostou, gostou!!! Zarrilli ta demonstrando excelente aptidão pra se tornar um genuíno paraense. (rindo) Só falta ir na corda do Círio. Luka: Só espero que o C. Sã não se perca pelo caminho, de novo. O interfone toca. Atrizg atende e confirma a chegada de C. Sã e Zarrilli. 120 Atrizg: São eles. Estão subindo. Dessa vez o C. Sã veio direitinho. Luka: Ainda bem. Abre a porta enquanto eu continuo o preparo das tapiocas. Atrizg abre a porta. Zarrilli está com alguns livros na mão e C. Sã aparece segurando um violão. C. Sã: (improvisando uma música no violão desafinado) Sejam todos / Bem Vindos Amigos / Ao Solar dos Silva / Já sinto cheiro das tapioquinhas / O vento bate na cara / O café mata a fome. Enquanto C. Sã segue improvisando uma performance musical os convivas entram e se cumprimentam. Luka: (Da cozinha, sem conter o estarrecimento e o riso, enquanto continua o preparo das tapiocas) Que música é essa, C. Sã? C. Sã: (mantendo as batidas fora de ritmo no violão) Não sei. Eu inventei agora em homenagem aos anfitriões. Onde está o Amor? Amor: (Vindo pelo corredor e aparecendo na sala para receber os convidados) Oi, pessoal. Vocês já chegaram animando a casa. Atrizg: (voltando à cozinha para continuar ajudando Luka) Advinha quem chegou arrasando na cantoria? Amor: Eu ouvi o “cantor” lá do quarto. Mas não sabia que o C. Sã tocava violão. C. Sã: Nem eu. Mas não conta pra ninguém, nem pra mim mesmo. Todos caem na gargalhada. Luka apresenta sua companheira, Amor, para Zarrilli. Aos poucos os convivas tomam seus lugares no sofá da sala de estar, menos C. Sã que ainda em estado de excitação convoca Zarrilli para apreciar a paisagem da janela do quinto andar do apartamento. C. Sã: (com seu jeito brincalhão) Antes de começarmos o banquete, o Zarrilli precisa apreciar a vista panorâmica: (atendendo ao chamado, Zarrilli se levanta do sofá e se aproxima da janela) este é o famoso bairro do Jurunas. Amor: (se aproximando da janela) É bom que o C. Sã canta, toca violão e ainda vai ciceroneando o Zarrilli. C. Sã: (ainda brincando) Aqui é “barba, cabelo e bigode”. Por exemplo: ao fundo é possível ver o rio Guamá. O mesmo rio que atravessamos ontem pra irmos até a ilha do Combú. Zarrilli: (com admiração) Oh, sim. Que bacana. Lembro de termos passado de carro por aqui pelo bairro e pela frente do prédio do Luka, mas a vista daqui é bem melhor. Dá pra perceber a distribuição desordenada das casas. 121 Figura 7 - Vista panorâmica do Jurunas no cruzamento das ruas principais do bairro: Av. Roberto Camelier e rua Engenheiro Fernando Guilhon. À esquerda o crescimento horizontal do bairro marcado pelas casas de alvenaria e madeira; à direita alguns prédios surgem verticalmente, pois estão mais próximos do centro histórico da cidade. Ao fundo o Rio Guamá que banha toda a extensão do Jurunas. Fonte: Arquivo pessoal. Jurunas, 2019. Luka: (Da cozinha, ainda preparando as tapiocas) É verdade. O Jurunas além de suas ruas principais é formado por centenas ou até milhares de vilas, becos e passagens que se interligam e formam uma espécie de labirinto urbano. Amor, mostra pro Zarrilli os pontos turísticos do bairro. Amor: (apontando a direita) Ali fica o Rancho Não Posso me Amofiná, a quarta escola de samba mais antiga do Brasil, fundada em 1934; (apontando um pouco a esquerda) nessa direção fica o Imperial, uma sociedade beneficente e desportiva, de 1935; (apontando mais ao alto) mais lá pra cima fica uma sede social mais recente, a Florentina Prime, (fundada na década de 80) um complexo de quadra esportiva e salão de festa; (apontando pra baixo e bem a esquerda) aqui na mesma rua do prédio ainda tem o São Domingos, sociedade esportiva beneficente de 1946, e ao lado a Paróquia de Santa Teresinha. Zarrilli: (admirado) Quanta coisa! Atrizg: Nessa igreja que o Luka começou a fazer teatro. Luka: (apressando o preparado das tapiocas) É verdade. Zarrilli: (admirado) Parece ser um bairro bem cultural. Luka: Já foi bem mais. Por exemplo: até a década de 30, no terreno onde hoje é a igreja, existia um curral de boi bumbá muito famoso: Curral do Boi Pai do Campo, criado pelo seu Nenê. Zarrilli: (intrigado) Boi??? Atrizg: É uma espécie de comédia satírica que mistura dança, música e teatro. Amor: (convidando Zarrilli e C, Sã para voltarem ao sofá) Deixa eu tentar te explicar. O personagem principal é “o Boi”; uma pessoa veste uma armação de madeira em forma de carapaça, coberta por um tecido, geralmente bastante florido e colorido. Num lado da armação fica a cabeça 122 do Boi com os Chifres bem pontiagudos e do outro lado o rabinho. Essa pessoa que veste o Boi se chama tripa; ela fica escondida debaixo da armação e só dá pra vê-la da cintura pra baixo. Atrizg: (interrompendo, enquanto continua no preparo das tapiocas) Ai tem um grupo de músicos com vários instrumentos de percussão. Eles tocam e o Boi dança. Amor: É. Mas tem uma historinha básica que é apresentada que retrata um pouco da situação da escravidão dos negros no Brasil: Catirina, uma escrava que está grávida, tem o desejo de comer a língua do Boi. Ela pede ao marido, também escravo, que mate o Boi pra ela comer a língua. Atrizg: (interrompendo, da cozinha) O problema é que o Boi é de raça, um boi reprodutor, o melhor boi da fazenda que é tratado com um monte de regalias; recebe tratamento melhor que os escravos. Amor: (retomando) Isso. Pai Francisco, o marido de Catirina, atende ao pedido, mata o boi e, em seguida é descoberto e castigado pelo dono da fazenda. Pra evitar um castigo maior, promete ao Fazendeiro que conseguirá ressuscitar o Boi com ajuda de curandeiros e de um pajé. Luka: (ainda preparando tapiocas) Antigamente, apesar da perseguição policial, havia muitos “bois” em Belém. Às vezes tinha confusão e pancadaria quando dois “bois” se encontravam. A polícia intervinha com bastante violência batendo, prendendo e em alguns casos até queimando os “bois” no meio da rua. Atrizg: Cada bairro tinha o seu boi bumbá e havia disputas, concursos pra eleger o melhor “boi” da cidade. O do Jurunas era o Boi Pai do Campo, o primeiro boi bumbá a aceitar uma mulher entre os brincantes. Zarrilli: E esse Boi ainda existe? Amor: Não. O Pai do Campo deixou de existir na década de 40. (um carro som passa na avenida principal anunciando, em volume elevadíssimo, uma festa de aparelhagem) Amor: (fazendo gesto indicando o anúncio do carro som) Hoje em dia o que tem muito são as festas de aparelhagem, principalmente, no São Domingos e na Florentina. Atrizg: (irônica) O Luka adora. Não perde uma. Zarrilli: (novamente, intrigado) O que são estas festas de aparelhagem??? Luka: (terminando de preparar as últimas tapiocas) São festas muito populares no Jurunas e no estado como um todo. Ficaram conhecidas assim por utilizarem caixas acústicas gigantes – em média, cerca de três metros de altura – e mais um aparato moderno de aparelhos eletrônicos: mesa 123 de som, equalizadores, câmeras de vídeo filmando a festa com imagens reproduzidas ao vivo em telões não menos gigantescos, efeitos visuais que vão do raio laser, fumaça e iluminação psicodélica91. Zarrilli: (surpreso) Parece um negócio grandioso. Atrizg: (terminando de rechear as ultimas tapiocas) Pra tu teres uma ideia, Zarrilli, o nome original de uma das pioneiras nesse tipo de festa era chamada de “Tupinambá – O Treme Terra”, pois a altura do som faz tremer mesmo o chão, as paredes e quem tiver por perto. Numa festa de aparelhagem o “corpo se torna todos os ouvidos”. Gargalhadas generalizadas Luka: (desligando o fogo e arrumando a cozinha) O Tupinambá ao lado de outras super aparelhagens como a Rubi, Super Pop, Ciclone e Príncipe Negro, ajudaram a popularizar esse tipo de festa. Zarrilli: E vocês frequentam estas festas aqui no bairro? Amor: (com certo desânimo) O Luka não gosta de tecnobrega, Zarrili. É o principal estilo de música que toca. Nós nunca fomos numa. Luka: (Lavando louça) É verdade. Não gosto e sofro de ter que ouvir, contra vontade, esse tipo de música que invade as casas sem pedir permissão, pois o barulho dessas aparelhagens é ensurdecedor. Atrizg: (arrumando as tapiocas numa travessa de louça) Mas os Jurunenses adoram. Precisas ver o povo “se rasgando” (imitando a dança) nessas festas, Zarrilli. Amor: Tem ainda um espetáculo a parte que são os DJ. Eles comandam as festas e interagem o tempo todo, mandando recado, incentivando alguns passos de dança e até fazendo uma verdadeira performance futurista em cima das cabines de controle92. Zarrilli: (admirado) Estou adorando a visita, pois me permite conhecer um pouco do mundo de vocês. Esta troca intercultural é muito importante. Luka: Eu sempre acreditei nisso também. Tu achas importante relacionar essa pratica intercultural do treinamento com o nosso lugar de origem? ZARRILLI: “Estou muito contente que Cesário tenha continuado a praticar. Obviamente como não sei ler em português (...), não consegui acessar muita informação sobre o que vocês têm feito. 91 NB: (Cf. Lemos e Castro, 2008) 92 NB: (Cf. Guerreiro do Amaral, 2013). 124 Mas estou muito satisfeito por ver que tudo o que eu trabalhei com Cesário tenha sido uma espécie de inspiração ou um trampolim para impulsionar para outro lugar. Eu não estou interessado em criar um ambiente fechado ou controlado. As pessoas que vêm trabalhar comigo, encontram algo que acende nelas, que podem ser as mesmas coisas que eu estava trabalhando ou então coisas que vão em diferentes direções, ou ainda o tipo de trabalho criativo que se resulta pode ser bem diferente do que eu pensei. Então, eu nunca me preocupo com: "– Oh, você deve fazer tudo exatamente como eu lhe ensinei". Não, isso não é muito interessante, pois caso contrário, as coisas não crescem e nem mudam... (...) Eu tenho pessoas de muitas partes do mundo que treinam comigo. Uma das minhas alunas mais antigas, Suki Kim, foi a primeira atriz no Reino Unido da Coréia que obteve o Mestrado em Belas Artes em Atuação. Ela trabalhou comigo por cerca de quatro anos em Madson, Wisconsin, quando eu ainda estava lá. E então, quando voltou para a Coréia, ela eventualmente se tornou chefe de atuação da Universidade Nacional de Artes da Coréia, desenvolvendo um programa de atuação por lá. Ela continua usando o que eu ensinei, mas não a vejo faz treze anos. Então, ela está ensinando o que eu havia lhe passado há muitos anos, talvez 1995, 1996. Sua versão do que eu estava fazendo pode ser diferente de Cesário. Tenho certeza que é, e pode ser diferente de outra pessoa. É como qualquer linhagem de ensino, treinamento e prática, haverá vários tipos de ramificações. É como uma árvore que vai em diferentes direções.”clvii Luka: É muito bom te ouvir dizer isso. Embora tenha as minhas críticas as festas de aparelhagem, reconheço a importância cultural delas na vida dos Jurunenses e dos paraenses em geral, afinal elas também estão presentes na vida de inúmeros municípios do estado e movimentam um mercado que vai da música até os equipamentos tecnológicos e eletrônicos de ponta. Inclusive a lógica de distribuição e circulação da produção musical feita pelos cantores locais de brega e tecnobrega tem nessas festas o principal veículo de difusão. Isso porque a maior parte do que é produzido é feito em estúdios amadores e mantém relações estruturais profundas com a pirataria e a informalidade. Então, o lugar que esses artistas têm para divulgar sua produção é exatamente as festas de aparelhagem. Atrizg: Existe um documentário muito bom que retrata toda essa questão envolvendo o nascimento das festas de aparelhagem e o sistema de produção que elas alimentam. O documentário de chama Brega S/A93. 93 NT: Direção de Vladmir Cunha e Gustavo Godinho. Disponível no link: https://vimeo.com/15641500. 125 Luka: Bem lembrado Atrizg. Acredito que é importante que você conheça essa realidade local, Zarrilli, pois são com essas referências culturais que as pessoas chegam à universidade, ao nosso GITA, enfim. C. Sã: (em tom descontraído) Então, depois de conhecer um pouco alguns pontos de cultura do bairro, já podemos degustar as tapioquinhas do Solar dos Silva? Luka: (convidando para se dirigirem a mesa) Claro, claro... Vamos sentar. Atrizg: (levando as tapiocas para a mesa) Até que enfim. Eu já tô salivando. Todos tomam seus assentos e se servem. Além das xícaras e talheres a mesa oferece uma quantidade variada de tapiocas, uma garrafa térmica com café, bolo de castanha do Pará, cuscuz em calda de leite de coco, torradas, um bule com leite, açucareiro, manteiga e queijo. ZARRILLI: (enquanto se serve) Gostaria de agradecer ao Luka por ter aceitado minha proposta de realizar o encontro aqui na sua residência. Minha ideia é conversarmos num ambiente mais informal, pra compensar o fato da abordagem que pretendo fazer de alguns elementos bem conceituais da minha visão e prática do treinamento psicofísico. Atrizg: (enquanto se serve) Excelente ideia. Juntou o útil ao “palatável”. (Risos. Daqui em diante o diálogo se passa enquanto todos se servem e comem). Luka: É sempre um prazer receber os giteiros aqui em casa. E com a tua presença, então, o prazer é maior ainda. C. Sã: É verdade. O “Solar dos Silva” de vez em quando nos oferece essa oportunidade de confraternização. Zarrilli: Então, espero não tornar o encontro enfadonho, pois gostaria de aproveitar esse momento agradável para tratar de questões que julgo importantes sobre minha abordagem enativa de atuação. Atrizg: Deixa ver se entendi: vamos fazer como naqueles banquetes filosóficos do tempo da Grécia clássica, banquetes com um tema pra ser discutido? Luka: Gostei da comparação. Mas talvez a proposta do Zarrilli seja um pouco diferente, Atrizg. Afinal, nos banquetes clássicos os gregos elegiam um tema e todos deviam se manifestar apresentando seu posicionamento crítico ou filosófico sobre o assunto. E a ordem das falas era sempre do mais novo para o mais experiente entre os convivas. Amor: (brincando) Então eu tô ferrada, porque eu sou a mais novinha aqui na mesa. Atrizg: Nós duas, Amor. (risos). Zarrilli: (entrando na brincadeira) Calma, meninas! Se o critério for idade, acho que vai dar empate entre nós três. (risos) Mas o Luka tem razão. Minha proposta é um pouco diferente, pois 126 pretendo apenas aproveitar esse clima descontraído pra falar de questões importantes sobre atuação enativa, num ambiente de debate informal e não de uma conferência densa e chata. Atrizg: É a segunda vez que usas o termo ENATIVO. E lembro de ter ouvido essa palavra pela primeira vez na “jornada das pontes”. Ela se refere à visão não dualista de Merleau-Ponty sobre a percepção humana. É isso? Zarrilli: (provando a primeira tapioca) Huuuum. Uma delícia, Luka. Parabéns. (à Atrizg) Sim, Atrizg. O termo ENATIVO, no entanto, não é de Merleau-Ponty, mas sim dos autores que ecoam o pensamento do filósofo e fenomenólogo francês. E para que a Amor possa acompanhar nossa conversa vou iniciar apresentando a noção de ENATIVO de Francesco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch. Amor: Não precisa se preocupar comigo. Zarrilli: Faço questão pela hospitalidade que você e Luka estão me oferecendo. A principal crítica desses autores se concentra na ideia estabelecida pela tradição filosófica ocidental de que a mente é um espelho da natureza, ou seja, a mente se encontra separada das coisas e da experiência. Luka: Esses autores propõem uma perspectiva fenomenológica não dualista, na qual apreendemos o mundo a partir das interações sensório-motoras, isto é, nós conhecemos as coisas NA e por meio DA experiência. Por esse ponto de vista, Amor, nosso corpo físico passa a ter papel fundamental para aquisição do conhecimento, pois diferente da visão cartesiana, o corpo não é uma coisa, um objeto passivo, um instrumento controlado pela mente. Zarrilli: Exatamente Luka. Merleau-Ponty rejeita, portanto, o dualismo cartesiano e elege o corpo, a experiência como elemento fundamental para aquisição de conhecimento. Amor: Gostei desse Merleau-Ponty. Temos que valorizar nosso corpo. Atrizg: Isso ai Amiga!! Nosso corpo pode tudo!!! (risos) Zarrilli: Como já estamos todos familiarizados com o assunto vou apresentar a questão que vai conduzir, inicialmente, nossa conversa e que o filósofo contemporâneo Drew Leder considera ser uma dos problemas mais irritantes do corpo: [a ausência corpórea, ou seja, a “questão do por que o corpo, como fundamento da experiência... tende a recuar da experiência direta”94 e assim se torna ausente para nós.].clviii Atrizg: Corpo ausente??? Será que vem daí aquela expressão: “esse corpo não te pertence?” (risos). 94 NB: (Leder: 1990: 1) 127 LUKA: (rindo) Não exagera nas brincadeiras. Zarrilli: Vou esclarecer. Em primeiro lugar gosto de Leder por ele possuir formação na área da medicina. Suas reflexões filosóficas e fenomenológicas consideram o seu domínio biomédico na área da fisiologia e anatomia. Ele assim, [(...) fornece um extenso relato dos modos de ausência corporal característicos de nossos dois corpos cotidianos – o corpo superficial e o recessivo.].clix Atrizg: (fazendo uma careta) Hum. Tá ficando intrigante. Continua. Zarrilli: [O corpo ausente de Drew Leder aborda um problema fundamental e paradoxal: “Enquanto em um sentido o corpo é a presença mais permanente e inevitável em nossas vidas, também é essencialmente caracterizada pela ausência. Ou seja, o próprio corpo raramente é o objeto principal da experiência. Ao ler um livro ou perdido no pensamento, meu próprio estado corporal pode ser a coisa mais distante da minha consciência. Eu moro empiricamente em um mundo de ideias, prestando pouca atenção às minhas sensações ou postura física”95].clx Amor: Interessante. Deve ser por isso que sou meio desligada. Mas pensei que fosse por ser pisciana. Atrizg: Que nada. Sou canceriana e vivo no mundo da lua também. LUKA: Esse tipo de ausência corporal está circunscrita às atividades consideradas “teóricas”? Zarrilli: (pegando mais café) Infelizmente não, Luka. [Esse esquecimento não está “restrito a momentos de cognição de nível superior”, mas também caracteriza nosso envolvimento em atividades como esportes, trabalho físico ou artes de representação – dança, atuação, performance ao vivo, etc. Quando “se envolve em um esporte de combate, os músculos flexionados e responsivos aos movimentos mais ligeiros do meu adversário... é precisamente sobre este oponente, este jogo, que minha atenção reside, não em minha própria encarnação”96].clxi Luka: O mesmo vale para algumas situações em que o atuante está mais preocupado com a plateia do que com suas ações no palco. Zarrilli: É verdade. Atrizg: E o que o Leder sugere para evitar esse tipo de ausência corpórea? Zarrilli: [Para Leder, o corpo vivido (Leib) não é uma coisa homogênea, mas sim “uma harmonia complexa de diferentes regiões, cada uma operando de acordo com princípios primitivos e 95 NB: (Ibidem). 96 NB: (Ibidem). 128 incorporando diferentes partes do mundo em seu espaço”97. Leder fornece uma descrição extensa de dois modos de encarnação através dos quais nossa experiência cotidiana é geralmente constituída – o corpo superficial e o corpo recessivo.].clxii Luka: E qual a natureza específica desses modos de encarnação? Zarrilli: [A posição básica do corpo superficial em relação ao mundo que ele se encontra é extática, na medida em que os sentidos se abrem para o mundo. Este é o corpo de “carne”. O uso de Leder de “carne” e “extático” para descrever o corpo superficial é descritivo e também metafórico.].clxiii Atrizg: (apanhando outra tapioca) Posso dizer que o corpo superficial é o que conhecemos por “corpo físico”? Zarrilli: Em certa medida sim. O mais importante é entender que [Fisiologicamente, o corpo superficial é caracterizado principalmente pela exterocepção, isto é, os cinco sentidos dirigidos nos abrem para o mundo externo, geralmente “sem resposta emocional imediata”98 . No entanto, o corpo vivido “sempre constitui um ponto nulo no mundo em que habita. Não importa onde eu me mova fisicamente, e mesmo no meio do movimento, meu corpo mantém o status de um ‘aqui’ absoluto em torno do qual todas as ‘possibilidades’ estão dispostas... Precisamente como o ponto central a partir do qual o campo de percepção irradia, o órgão perceptivo permanece em uma ausência ou nulo no meio do percebido”99.].clxiv Amor: (passando requeijão numa tapioca) Podes dar um exemplo? Fiquei um pouco confusa. Zarrilli: Certo. Vamos tomar, por exemplo, essa tapioca que você está comendo. No momento que você leva um pedaço à boca e começa o processo de mastigação, seu corpo superficial volta sua atenção para os sabores presentes na iguaria. A tapioca continua sendo mastigada, triturada por seus dentes e sentida na sua língua. No entanto, observe que sua percepção se volta para as texturas e o sabor da tapioca e não para os órgãos diretamente ligados ao processo gustativo. Então, experimentamos a partir do corpo (neste caso, mais propriamente a partir da boca, dentes e língua), mas segundo Leder, é exatamente nesse momento que o corpo é esquecido, se torna ausente, isto é, [“o corpo se esconde precisamente no ato de revelar o que é o Outro”100].clxv 97 NB: (Ibidem: 02). 98 NB: (Ibidem: 43) 99 NB: (Ibidem: 13). 100 NB: (Ibidem: 22). 129 Amor: (com a boca entre aberta, suspendendo por instantes a mastigação da tapioca) Caramba é verdade. Zarrilli: [Esta ausência primordial é correlativa com o próprio fato de estarmos presentes no mundo que experimentamos. “O corpo superficial tende a desaparecer da consciência temática precisamente porque é a partir do qual eu existo no mundo”, isto é, “meus órgãos de percepção e motilidade são transparentes no momento do uso”101].clxvi Atrizg: E isso ocorre quando treinamos também? Zarrilli: Sem dúvida. E quando estamos em cena também. Leder nos diz que [Quando fixamos nosso foco visual “sobre o que está espacial e temporalmente à frente, a parte de trás do corpo é comparativamente esquecida. É absorvido em desaparecimento de fundo”102].clxvii Atrizg: É verdade. Percebo isso quando estou treinando. É como se eu colocasse minha atenção numa parte do meu corpo ou num determinando ponto fixo a minha frente. Isso é muito difícil de evitar. Amor: Mas isso não é normal? Quer dizer: como é que conseguimos fazer nossas atividades normalmente se esse “esquecimento” vive acontecendo a todo o momento? Zarrilli: [Este desaparecimento banal de nosso corpo superficial é possível em parte, pela operação de um segundo modo de percepção – propriocepção – a “sensação de equilíbrio, posição e tensão muscular, proporcionada pelos receptores nos músculos, articulações, tendões e ouvido interno”103. A propriocepção permite que nosso corpo superficial ajuste, apropriadamente, nossos membros, músculos, etc. a qualquer tarefa motora; portanto, geralmente, enquanto caminhamos, não temos que pensar em como realizar uma série de passos.].clxviii Luka: (apanhando algumas torradas) Esse estado de propriocepção é trabalhado ou desenvolvido no treinamento psicofísico? Zarrilli: Em geral a propriocepção fica bem evidente quando estamos aprendendo uma nova habilidade, seja ela qual for: quando se aprende a dirigir, por exemplo. Olhar pelo retrovisor (principal e laterais), girar a chave de partida, pisar na embreagem, soltar leve e simultaneamente a embreagem enquanto pisa suavemente no acelerador; são diversos comandos que inicialmente parecem muito complicados de serem executados com naturalidade. 101 NB: (Ibidem: 53). 102 NB: (Ibidem: 29). 103 NB: (Ibidem: 39) 130 Atrizg: Legal o exemplo de dirigir. Mas dá um exemplo com o treinamento. Zarrilli: Ok, Atrizg. Você poderia deixar sua xícara de café e sua tapioca por alguns instantes e nos mostrar a postura do leão do kalarippayattu? Atrizg: (se levanta pra atender o pedido) Eu e minha “bocona”. Zarrilli: (orientando a postura) [(...) um iniciante deve aprender a assumir a postura corretamente, colocando um pé para frente e o outro pé em noventa graus, mantendo os dois em linha, um com o outro, os joelhos diretamente acima dos pés que fornecem o apoio, o foco externo adiante, e a coluna prolongada.].clxix Amor: (rindo) Parece mais simples do que dirigir. Zarrilli: (segue instruindo Atrizg) [A aquisição de habilidades é, em geral, caracterizada inicialmente por um deslocamento voluntário de atenção induzido por uma instrução do professor, por exemplo, para “verificar o alinhamento dos calcanhares” ou uma mudança autoconsciente da atenção para verificar o próprio alinhamento. O “para” (em direção a) ao longo do tempo torna- se o “de” (de onde veio), e, assim, se adquire habilidade para executar e se mover na postura do leão].clxx (orientando Atrizg para se mover na postura do leão) Figura 8 – Postura do Leão/ Kalarippayattu Treino no Teatro Universitário Cláudio Barradas, 2017. Fonte: Arquivo do GITA. Zarrilli: [O que era superficial torna-se intrínseco e intuitivo. O praticante incorporou a postura do leão e seu deslocamento a ponto de dominar sua execução e agora ela pode atuar e operar no mundo a partir desta postura e desta forma de movimento, de modo a dominar o “para” e “de” 131 da postura do leão. O sentido proprioceptivo do indivíduo permite fazer pequenos ajustes sutis ao próprio ato de colocar o pé, sem tematizar o ajuste, isto é, o corpo-mente intuitivamente se ajusta à medida que se move. Nesse sentido, o corpo desaparece.].clxxi Atrizg: (retornando a mesa) Entendi. Então, o problema do desaparecimento do corpo não é de todo ruim, pois pelo processo da nossa propriocepção somos capazes de lidar com isso naturalmente. Luka: Calma, Atrizg. Sem conclusões precipitadas. Volta pra tua tapioca e deixa o Zarrilli continuar. Zarrilli: Obrigado Luka. [O segundo corpo que Leder descreve é o corpo recessivo, isto é, o corpo profundo, interior, visceral de profundidades corporais que em termos físicos inclui a massa de órgãos internos e processos envolvidos pela superfície do corpo [pele], como digestão e sensações como a fome. Fisiologicamente, a experiência de nossas vísceras e órgãos internos é caracterizada pela interocepção. Comparado ao corpo superficial, “a interocepção não compartilha a multi dimensionalidade da exterocepção”.104].clxxii Amor: (passando requeijão na tapioca) Acho que esse é mais fácil de entender. O exemplo da tapioca que deste ainda pouco pode ser usado de novo, né? Zarrilli: Com certeza. Assim que engolimos a tapioca ou qualquer outra iguaria posta aqui na mesa, (mordida a tapioca)... Huuum... toda a experiência que trocamos com ela (como o cheiro, a cor, as texturas, o volume e o peso) desaparecem. Leder nos diria que uma vez engolida, [“essas possibilidades são engolidas também”105. Exceto pela ocasional e muitas vezes desagradável evidência de atividade digestiva ou disfunção, “a incorporação de um objeto no espaço visceral envolve sua retirada da experiência exteroceptiva”106. A retirada do corpo visceral é uma forma de “desaparecimento de profundidade” na medida em que as vísceras são “parte do corpo que não usamos para perceber ou agir sobre o mundo em sentido direto”.107].clxxiii Amor: (desalentada) Eu gostaria que o meu corpo recessivo visceral desaparecesse com mais intensidade, pois todos os dias eu acordo com dores me lembrando que tem alguma coisa errada. Zarrilli: Você chama a atenção para um dado importante. [O desaparecimento normativo dos corpos superficiais e recessivos é revertido quando experimentamos dor ou disfunção. Na dor, a 104 NB: (Ibidem: 40) 105 NB: (Ibidem: 39) 106 NB: (Ibidem: 39) 107 NB: (Ibidem: 53). 132 intensificação sensorial no corpo exige a tematização direta108. A dor é uma chamada por afetação que tem a qualidade da compulsão, isto é, a dor apreende e constrange nossa atenção. Eu devo agir agora para aliviar o desconforto do corpo.].clxxiv Atrizg: (quase falando de boca cheia) Esse modo como estabelecemos a relação com o nosso corpo é muito louca. Zarrilli: [Nossa experiência cotidiana do corpo vivido é uma constante mistura e troca de carne e sangue, ou seja, “formamos um circuito orgânico/perceptivo” habitando o corpo superficial/recessivo como uma gestalt que se move entre o estado extático e recessivo – projetando para fora do mundo e caindo de volta. O desaparecimento e a ausência do corpo marcam assim a nossa “relação incessante com o mundo” e nosso ambiente imediato109.].clxxv Atrizg: Em que medida esses dois tipos de “desaparecimento corporal” são importantes para nosso trabalho de atuante? Zarrilli: (breve pausa para um gole de café) [Uma vez que meu foco está na construção de uma análise fenomenológica e de um relato praticamente útil do corpo vivido, que leva em consideração não apenas a superfície cotidiana e os corpos recessivos, mas também o corpo não- comum extra-cotidiano vivido, proponho adicionar aos corpos superficial e recessivo um, igualmente importante, (terceiro) modo de consciência e experiência – o corpo-mente estético interior.].clxxvi Atrizg: (buscando o olhar cúmplice do Amor) Acho que estamos mais preocupadas com nosso “corpo estético exterior”, né Amor? (risos). Luka: (entrando na brincadeira) Eu estou satisfeito com a estética do corpo do Amor. Mas não posso dizer a mesma coisa da tua estética, Atrizg. (risos). Zarrilli: (entre sorriso) Vou explicar o que quero dizer com “corpo-mente estético interior” para evitar essas confusões. [Este corpo é aquele domínio da percepção extra-ordinária e da experiência associada ao envolvimento, a longo prazo, em certas práticas psicofísicas ou regimes de treinamento – yoga, artes marciais, butoh, atuação/performance por si ou formas semelhantes de prática corporificada que envolvem o corpo físico e a atenção (mente) no cultivo e sintonia para níveis sutis de experiência e consciência.].clxxvii 108 NB: (Ibidem: 77). 109 NB: (Ibidem: 160). 133 Atrizg: Tu chamas, então, o domínio nos princípios do treinamento psicofísico de “corpo-mente estético interior”? Zarrilli: De certo modo, sim. [Este processo de cultivo e sintonia é estético porque não é cotidiano, ocorre ao longo do tempo e permite uma mudança na experiência do corpo e da mente, de sua separação grosseira, marcada pelo desaparecimento constante do corpo, a uma sutil dialética do corpo-em-mente e da mente-em-corpo. É, portanto, marcado como estético, uma vez que a experiência é gradualmente refinada para níveis cada vez mais sutis de consciência, e interior, uma vez que este modo de experiência começa com uma exploração a partir de dentro, de como a consciência aprende a explorar o corpo.].clxxviii Luka: Atrizg, o termo “estético” está sendo usado na sua acepção etimológica grega, isto é, “aisthesis, de onde derivou estética, significa o que é sensível ou o que se relaciona com a sensibilidade”.110 Atrizg: (apanhando um pedaço de cuscuz) Entendi. Luka: É um processo de (re)apropriação de si. Posso considerar assim, Zarrilli? Zarrilli: (fitando Atrizg se servir de cuscuz) Sim, Luka. [Quando um indivíduo se submete a uma prática assídua de disciplinas corporificadas particulares como yoga e artes marciais relacionadas, este corpo tem o potencial para ser despertado, isto é, este modo de experiência e percepção através do corpo é aberto e pode tornar-se disponível para a experiência do praticante como corpo-mente. Para despertar o corpo interior sutil, é preciso primeiro atender diretamente a uma determinada atividade corporificada.].clxxix Luka: É curioso perceber o quanto é paradoxal essa relação, pois quanto mais cultivamos esse “corpo-mente estético interior” por meio do treinamento ou de uma prática corporificada, maior qualidade de presença se alcança na relação com o ambiente externo. Atrizg: (banhando o cuscuz com calda de leite de coco) Acho que o mais curioso disso é como tudo é desencadeado a partir da respiração. Zarrilli: (continua observando Atrizg) É verdade, Atrizg. [Este corpo interior é literalmente, tanto como metaforicamente, marcado pela respiração – a circulação interna do vento/energia/força vital identificada em costumes não-ocidentais do corpo como prana ou prana- vayu na Índia, nas práticas chinesas como qi, e em japonês como ki. Para budistas e hindus, este 110 NB: (Nunes, 2006, p. 12). 134 corpo-mente interior é completamente mapeado como o “corpo sutil” do yoga, onde a respiração ou a força vital percorre canais (nadi) e ativa pontos (chakras) ao longo da linha da coluna.].clxxx Amor: (passando doce de leite na tapioca) Acho isso muito interessante. O Luka me levou uma vez pra participar do treinamento. A experiência foi boa, mas percebi que meu corpo precisa de muita prática pra poder alcançar esses níveis sutis de experiência e consciência. Luka: (passando doce de leite numa torrada) Costumo dizer no GITA que o segredo está na disciplina para se manter numa prática por um período de longo prazo. Sem disciplina qualquer praticante cederá às tentações e armadilhas dualistas da visão ocidental que separa corpo e mente. E isso fatalmente o fará desistir. Zarrilli: É verdade, Luka. (interrompendo o raciocínio) Se me permitem, vou experimentar o mesmo que a Atrizg está comendo. Como se chama? Amor: Cuscuz. Zarrili: (procurando imitar o modo como Atrizg se serviu anteriormente). Huum... parece bom. Mas retomando o raciocínio: [Sobre a prática de longo prazo, o resultado é que a experiência de um dos aspectos do corpo e da mente na experiência pode ser fundamentalmente alterada, isto é, um corpo-mente sutil e interior é revelado e pode ser cultivado esteticamente através de práticas específicas. Uma vez despertado, este corpo-mente ou modo de consciência fica em êxtase, ele começa a vibrar/ressoar e, portanto, mover-se. Em oficinas, o performer Fran Barbe descreveu isso como o “corpo cintilante”, marcando assim a sensação vibratória gerada pela atividade interior. Dada a sua qualidade extática e cintilante, ela pode ser direcionada para dentro e/ou para fora através de sua prática.].clxxxi Amor: É engraçado te ouvir falar, pois eu sempre tive a imagem do praticante de yoga como alguém que medita e se isola do mundo. Pensei que esse tipo de prática desenvolvesse a pessoa somente pro seu interior. Zarrilli: Você tem razão em certa medida, Amor. (breve pausa para saborear a nova iguaria) Huuuuuuuuuuummm... Adorei o cuscuz. Muito bom. Mas retomando, novamente... [Em algumas disciplinas, especialmente formas de meditação dirigidas para dentro, destinados a levar a meditação longe da relação com o mundo cotidiano e longe do corpo para a renúncia ou auto- transcendência, a direção é para dentro, e o corpo, portanto, intencionalmente retrocede. Esses modos de prática são extaticamente, recessivos. Mas em outras formas, especialmente as artes marciais ou aqueles modos de meditação destinados a animar e alterar o encontro com o ambiente 135 imediato, a direção é para fora, em direção a este encontro com o meio ambiente e com o mundo como se encontra. É nessas práticas orientadas para o exterior que a postura de cada um modula extaticamente entre o interior e o exterior, do-corpo e para-o-corpo, o núcleo interior/profundo e o mundo exterior que encontramos.].clxxxii Amor: (passando doce de leite na tapioca) Acho isso muito encantador. E o mais impressionante é que tudo parte de uma coisa simples que é a nossa respiração. Zarrilli: (entre uma saboreada e outra) [O ato de respirar, como outros domínios viscerais, normalmente desaparece, a menos que uma condição física particular, como um problema cardíaco, ou um modo não normativo de esforço, como subir escadas rapidamente, chame a nossa atenção para as dificuldades ou dor na respiração. Alternativamente, focar nossa atenção no e sobre o ato de respirar de uma maneira particular, e em relação ao corpo, fornece um meio pelo qual se trabalha contra o desaparecimento recessivo da respiração, afim de cultivar a respiração e a nossa consciência interior para uma expansão do estado extático de engajamento em uma prática particular e/ou em relação a um mundo.].clxxxiii Atrizg: (colocando mais calda de leite de coco no cuscuz) Eu demorei a entender isso na prática, Amor. Como o Luka disse: demanda tempo e disciplina. Zarrilli: (também coloca mais calda de leite de coco no cuscuz) [O filósofo japonês Yuasa Yasuo discute como é possível “corrigir a modalidade da mente, corrigindo a modalidade do corpo”111 através do uso de exercícios de respiração. “Fisiologicamente, o órgão respiratório é regulado e controlado pelos nervos autônomos e pelos nervos motores; o órgão respiratório tem um caráter ambíguo de estar ligado tanto aos músculos voluntários e involuntários. Isto significa que se pode controlar conscientemente o ritmo e o padrão da respiração e, por sua vez, afetar as funções fisiológicas regidas pelo sistema nervoso autônomo.”112].clxxxiv Atrizg: (para Amor, empunhando a colher) O Luka podia treinar contigo isso todos os dias aqui no Solar dos Silva mesmo. Amor: Seria legal. O problema é só encontrar tempo pra isso. E também sou uma pessoa muito dispersa; tenho dificuldade de me concentrar. Zarrilli: (provando só a calda de leite de coco com a colher) É bom também só esse caldinho. (pausa para saborear) [Essa respiração atenta, pode gradualmente mudar a consciência de uma 111 NB: (Nagatomo 1992: 56). 112 NB: (Ibidem). 136 pessoa para a respiração no aqui e agora, como ela atravessa seu caminho para as profundidades viscerais do corpo abaixo do umbigo. (...) É um processo em desenvolvimento que Yuasa Yasuo chama de “consciência-ki”113. Embora seja normal para um iniciante no primeiro momento experimentar a mente vagando longe de ficar atento à tarefa simples de seguir a respiração de e para o abdômen inferior – mantendo os olhos no interior – sobre a prática de longo prazo, tal atenção a respiração trabalha contra o desaparecimento normativo do corpo.].clxxxv Amor: (apanhando um pedaço de cuscuz) É isso, então, que o GITA faz nos espetáculos que apresenta: essa qualidade vibratória de energia cultivada por meio da respiração e do treinamento? Luka: (colocando mais café na xícara) Talvez sim, mas de um modo diferente de como Zarrilli desenvolve o seu trabalho. Acredito que esse tipo de qualidade de presença corporal, despertado pelo trabalho com a respiração por meio do treinamento psicofísico, inevitavelmente estará no trabalho criativo dos atuantes do GITA. Mas observo que o Zarrilli estabelece uma linha de continuidade sólida entre os estados extáticos e perceptivos do treinamento e as tarefas psicofísicas para serem desenvolvidas em cena. No GITA, sinto que há uma fratura no estabelecimento dessa rede que vai do treinamento até a criação e execução da cena. Zarrilli: Por tudo que já trocamos nessa Semana GITA... (pausa para saborear a calda, novamente) eu já tinha percebido isso, Luka. E como já falei do “corpo-mente estético interior”, passo então a falar sobre o “corpo-mente estético exterior”. Luka: Estais te referindo ao trabalho do ator em cena, ou seja, ao corpo fictício que é oferecido ao olhar dos espectadores. É isso, Zarrilli? Zarrilli: Sim, Luka. (pausa para saborear a calda, novamente) [Em cena, o atuante representa uma marcação de desempenho específica – esse conjunto de ações/tarefas que constitui o corpo estético exterior oferecido para o olhar abstraído do espectador – muitas vezes lido e experimentado como personagem em um drama convencional.].clxxxvi Luka: Quando usas o termo “personagem”, te remetes somente à categoria teatral radicada a partir do texto dramático? Zarrilli: [Eu uso o termo “personagem” do drama ocidental convencional para marcar temporariamente o corpo do ator quando oferecido ao olhar e pela experiência do público, mesmo quando não há personagem dramático presente no palco. Nos gêneros convencionais de teatro, o corpo do atuante é claramente um corpo fictício; no entanto, em algumas formas de 113 NB: (Ibidem, passim). 137 teatro/performance pós-dramático, o corpo do artista torna-se o local de jogo dinâmico entre o fictício e o real114. O corpo fictício pode aparecer como personagem, figura, persona ou a corporificação ativa de imagens.].clxxxvii Luka: Entendi. Usas como um termo para demarcar o lugar da cena onde se passa o encontro entre atuantes e espectadores. Zarrilli: Sim Luka. Mas é importante perceber que a natureza da experiência que o ator realiza em cena é complexa e duplamente fenomenológica, pois seu corpo se encontra disponível [(...) para o olhar objetivo e/ou experiência de um público, e como um local de experiência para o atuante. O corpo do atuante é um lugar através do qual a representação, bem como a experiência são geradas para si e para o outro. Como atuante, a pessoa passa por uma experiência que é própria e, portanto, é constitutiva do seu ser-no-mundo e, simultaneamente, constitui um mundo (teatral) para o outro. Stanton Garner descreve isso como a “irredutível geminação de um campo que é – de todos os pontos – simultaneamente habitado e visto”.115].clxxxviii Atrizg: (saboreando o que restou do cuscuz no seu prato) Luka costuma dizer que nossa existência nunca cessa, mesmo quando estamos em cena. Luka: (apanhando um pedaço de bolo de castanha do Pará) Principalmente quando estamos em cena, pois acredito que o olhar dos espectadores gera em nós, atuantes, uma espécie excepcional de energia que (re)significa e redimensiona até nossos processos vitais como a respiração, sistema urinário e intestinal. Atrizg: (pensativa enquanto engole o cuscuz) Huuuum!! (pausa pra saborear) Isso significa que há uma interação entre os corpos superficial, recessivo, estético interior e exterior? Zarrilli: (enquanto continua degustando o cuscuz) Você intuiu muito bem, Atrizg. [Durante o desempenho, o atuante encena idealmente, atende e habita um campo experiencial estruturado pelo conjunto de ações/tarefas imediatamente à mão. (...) Para o atuante que opera em níveis virtuosos, uma vez que a partitura é criada durante oficinas/ensaios, ela se apresenta ao atuante como potencialmente tanto extática, quanto recessiva. (...) Para o atuante que executa a marcação, a percepção opera entre exterocepção, propriocepção e interocepção. Ou seja, o atuante faz os ajustes necessários para/com as demandas imediatas dos quatro corpos.].clxxxix 114 NB: (Cf. Lehmann 2006: 99-104). 115 NB: (Garner: 1994: 51). 138 Atrizg: Isso significa que as partituras são trabalhadas, ao mesmo tempo, como extáticas e como recessivas? Zarrilli: [Idealmente, o atuante tematiza a partitura à medida que ela se desenrola, preenchendo o máximo possível cada ação dentro da partitura e vinculando cada ação à medida que seu momento de promulgação chegue. No entanto, como na descrição de Ohio Impromptu, ajustes constantes devem ser feitos no momento da apresentação – para o equilíbrio, para a ação de outro atuante, para uma tosse ou um riso da plateia, etc.].cxc Luka: (passando doce de leite no pedaço de bolo de castanha do Pará) Isto é, o atuante deve habitar a partitura – a estrutura rígida, fixa – se mantendo aberto para o jogo inusitado com o ambiente que envolve o público e os possíveis parceiros de palco. O velho paradoxo de repetir o ato cênico, no momento da apresentação, como se fosse sempre a primeira vez, com o frescor da novidade e com a força do aqui e agora. Zarrilli: (observa curioso Luka passar doce de leite no bolo) [O atuante é, como explica Garner, “sujeito a ambiguidade e oscilação”. A tensão entre o interior e o exterior é o centro dessa ambiguidade”116. O atuante, portanto, opera com uma consciência dupla em um processo de constante modulação dos quatro corpos com todas as suas ambiguidades e tendências, tematizando sempre de forma ideal o desdobramento da marcação. O atuante está habitando e incorporando uma marcação através da qual ele parece agir em um mundo ou ambiente. A respiração do atuante parece ser a respiração do personagem, isto é, a respiração do atuante é sua e, simultaneamente, é o sopro do personagem.].cxci Luka: (degustando o bolo de castanha do Pará com doce de leite) E por isso usas o termo gestalt... (breve pausa para saborear) para apresentar e definir o trabalho do atuante nessa perspectiva fenomenológica. Certo? Zarrilli: (intrigado pela mistura gastronômica que Luka realizou) Isso, Luka. [Para o atuante- eu, a experiência do “circuito orgânico/perceptual” reúne todos os corpos como um todo numa gestalt dentro da qual existe um movimento dialético constante entre os estados extático e recessivo em relação a cada um dos corpos117. Nenhum desses corpos é estabelecido ou absoluto, eles estão em constante estado de ambigüidade. Portanto, a experiência vivida do atuante no mundo do 116 NB: (Op.Cit: 51). 117 NB: (Leder 1990: 160). 139 desempenho envolve uma dialética constante entre esses quatro corpos ou circuitos experienciais.].cxcii Atrizg: (brincando) Já era difícil deu dar conta da criação da minha cena com um corpo, imagine agora sabendo que eu tenho que administrar QUATRO!!! Amor: (rindo) Pior sou eu que luto todos os dias pra levantar esses quatro corpos da cama pra ir trabalhar. Enquanto um corpo fala: “– Vamos levantar que está um dia lindo”; os outros três dizem: “– Nem morta!!!” (risos). Atrizg: Deixando a brincadeira de lado, acho que o treinamento psicofísico tem me ajudado a escutar melhor esses quatro corpos. O Luka diz que é um trabalho de autoconhecimento. Zarrilli: [Como Noë, o filósofo japonês Yuasa Yasuo chama esse tipo de conhecimento de “somático” – “conhecimento adquirido através do corpo” e não “conhecimento do corpo”.].cxciii Atrizg: (coçando a cabeça inquieta) Uma coisa implica a outra, não? Podias deixar mais claro a especificidade desse conhecimento somático? Zarrilli: (terminando o cuscuz do seu prato) [“Tal conhecimento pode ser contrastado com o conhecimento ‘intelectual’. O conhecimento intelectual é um modo de cognição que resulta da objetivação de um determinado objeto, que assume proposicionalmente a forma sujeito-predicado, e que divorcia a somaticidade do conhecedor da ‘mente’ do conhecedor. Por estas razões, o conhecimento intelectual circunscreve seu objeto; é incapaz de se tornar um com o objeto. O conhecimento somático em sua ocorrência imediata e cotidiana carece dessa objetivação. Há um ‘senso-julgamento’ operatório no conhecimento somático. No sentimento-julgamento, ‘saber que’ e ‘sentir que’ são um e o mesmo no momento constitutivo de formar um julgamento. Nesta experiência, há uma sintonia da mente e do corpo, do ‘eu’ e do outro, e da natureza humana como microcosmo e natureza física como macrocosmo.”118].cxciv Atrizg: O treinamento psicofísico, então, opera como um sintonizador de corpos? Zarrilli: É uma boa imagem, Atrizg. Mas eu prefiro dizer que [O corpo-mente vivido é uma gestalt que está presente como um cruzamento, entrelaçamento, quiasma de múltiplos corpos.].cxcv Atrizg: (fazendo careta e quase se engasgando com uma torrada) Quiasma?? Luka: Calma!!! Não vai te engasgar, mulher. (rindo e dando tapinhas nas costas de Atrizg) Como o Zarrilli falou: a noção de quiasma remete a trançado, entrelaçamento ou cruzamento de 118 NB: (Nagatomo 1992: 63). 140 coisas. Neste caso, ele se refere ao entrelaçamento dos corpos de superfície extática, recessivo, estético interior e estético exterior. Zarrilli: Exatamente, Luka. E isso pode ser realizado por meio dos [(...) modos voluntários da prática psicofísica que despertam a experiência através do corpo-mente sutil e interior. Quando se exercita o corpo através das várias formas de yoga ou prática de artes marciais, entende-se trançar, entrelaçar, ou amarrar nós no interior do corpo.].cxcvi Atrizg: (se recuperando da engasgada) Entendi. Acho que estou no caminho certo, então. Embora ainda me sinta dispersa em cena, como o Luka observa algumas vezes. Luka: Acredito que é um aprendizado que não cessa nunca, Atrizg. Eu luto a cada treino para me manter integro e não me dispersar. Tenho muitas dificuldades por diversas vezes. Não sou perfeito e gosto de lembrar sempre que levei quase dois anos treinando sem conseguir não me dispersar. E o aprendizado continua a cada treino ainda hoje. (uma bike som passa pela avenida principal anunciando a festa da aparelhagem “Cineral - O Som do Amor”. O volume do som invade, novamente, o Solar dos Silva) Luka: (coçando a cabeça, desconcertado) Huuum! Tava demorando. Zarrilli: O que é esse barulho lá fora? Atrizg: São as famosas “bike som” do Jurunas. Zarrilli: (surpreso e se dirigindo pra olhar pela janela) Não acredito. Pensei que fosse um carro grande como aquele que passou há pouco. Luka: Tem a potência de um trio elétrico, mas é só uma bicicleta com poderosas caixas acústicas. Atrizg: A propaganda que ela ta fazendo é ótima, Zarrilli: “Cineral - O som do Amor”. Esse baile da saudade o Luka e o Amor não perdem por nada. (risos). (Luka rindo e balançando a cabeça em reprovação) Zarrilli: (voltando à mesa rindo) Interessante essa bike som. Vou aproveitar essa pausa para experimentar esse bolo; mas acho que não vou colocar a doce de leite, como o Luka fez. Amor: Fica à vontade, Zarrilli. É bom provar o gosto da castanha do Pará sem o doce de leite mesmo. Eu misturo com doce de leite porque sou viciada em chocolate. (riso) Prova o bolo com café. Zarrilli: (pegando um pedaço do bolo de castanha do Pará) Ok. Mas voltando a questão da Atrizg ser um pouco dispersa. (à Atrizg) Mas não esquece que o treinamento psicofísico é um modo de trabalhar que demanda tempo. O importante é se manter perseverante e continuar 141 treinando, pois [(...) os resultados do exercício a longo prazo do corpo-como-quiasma podem ser manifestados como uma energia de aterramento que parte do abdômen inferior, circula ao longo da coluna e fica disponível para os pés (...) e para as mãos (...). Neste modelo, atuar/desempenhar começa como uma distribuição dinâmica da energia interna em relação às tarefas/ações de uma marcação de desempenho. Como a energia dinâmica será moldada depende, é claro, da dramaturgia e da mise-en-scène dentro das quais ela está sendo implantada.].cxcvii Atrizg: Agora consegui entender melhor tua proposta de atuação enativa. Ou seja, se o pensamento não é a representação de um mundo pré-concebido na nossa mente, então o que realizamos em cena não pode ser baseado numa representação de um personagem pré-concebido na nossa mente, pois assim estaríamos separando mente e corpo e caindo novamente no dualismo. Zarrilli: Muito bem, Atrizg. (breve pausa para saborear o bolo de castanha do Pará) [Nessa visão de atuação, o ator-no-processo-de-desempenho não está preocupado com o “personagem” ou papel, mas com a imersão do corpo-mente nas tarefas/ações em questão, que constituem a marcação de desempenho de uma pessoa. Como um ser sensível, se age/experimenta cada momento de uma marcação de desempenho. No momento do desempenho, o ator percebe, atende, amplia a consciência, lembra, reflete, sente e/ou imagina de acordo com a marcação de desempenho, a estética que moldou a criação do desempenho, e em resposta ao que está disponível no ambiente de atuação em cada momento. Os processos de percepção, atenção, sentimento, lembrança, reflexão, sensação e imaginação constituem coletivamente a consciência corporificada do ator per se.].cxcviii Luka: E tudo isso é exercitado no treinamento psicofísico. Ou seja: o treinamento é voltado para esses estados de atenção/percepção/consciência/ki, coisas que demandam tempo, disciplina e paciência. Atrizg: Talvez por isso muitos participantes do GITA “rasguem” rapidinho. Luka: Ela quer dizer que não têm paciência pra acompanhar esse processo que envolve autoconhecimento, então “rasgam rapidinho”, isto é, vão logo embora, abandonam o processo logo no início. Zarrilli: (se divertindo com a expressão que acabou de aprender) Compreendo. Isso também ocorre com alguns dos meus alunos: eles “rasgam” rapidinho. (risos) Isso não é um problema local. 142 Atrizg: Engraçado, pois quando eu entrei no GITA, também acreditava que o treinamento se impunha como uma coisa muito mais física, técnica e virtuosa. Levei um tempo pra entender, na prática, que essa escuta de si é fundamental. Luka: Eu também. Como disse antes, no meu caso levou quase dois anos. E insisto em dizer: é um processo que exercito a cada novo treino. Zarrilli: (virando o ultimo gole de café da xícara) O bolo com café fica muito bom. (Colocando mais café na xícara. À Atrizg) Eu penso esse processo, que você denomina de “escuta de si”, como um processo fenomenológico de “estar presente/atender”, um processo relacional do ator, sua percepção e sua ação. Atrizg: (pegando outra tapioca) Esse processo de “estar presente/atender” sintetiza todos os princípios do treinamento ou se refere somente a se manter conectado ao momento presente? Zarrilli: É uma síntese de todos. E para falar dele vou retomar algumas considerações da fenomenologia de Merleau-Ponty. Para o filósofo e fenomenólogo francês [“a percepção é o foco da atenção; é vista claramente e em detalhes. Destaca-se do fundo, que é percebido indistintamente, como indeterminado”119. O pano de fundo está sempre presente porque sujeito e mundo estão inextricavelmente interligados. Nesse caso, perceber é “uma atividade consciente”, em que “consciente” não se refere à percepção do objeto de percepção (...)].cxcix Amor: (interrompendo) Como no exemplo que deste da tapioca: quando mordo e mastigo a tapioca, minha atenção e percepção estão focadas não nos órgãos que realizam a ação e nem na própria tapioca, mas nas sensações de paladar provocadas a partir da experiência de morder e mastigar a tapioca. Zarrilli: Bem lembrado, Amor. Isso quer dizer que estar “consciente” descreve [“o tipo de atividade que a percepção é”120].cc; em outras palavras, você ao comer a tapioca está “consciente em perceber” os sabores e texturas da tapioca, “ao invés de consciente” do que estava percebendo. Atrizg: (coçando a cabeça impaciente) Grrrr. Tem horas que isso dá um nó na cabeça. Zarrilli: Calma. Vamos avançar com calma. (saboreando o bolo de castanha do Pará com café) [Carmem Taylor caracteriza a concepção de percepção de Merleau-Ponty como uma experiência e prática corporificada onde “a passividade (relativa) da experiência sensorial” (...) “e a atividade (relativa) das habilidades corporais” (...) estão inseparavelmente entrelaçadas como “um 119 NB: (Romdenh-Romluc: 2011: p.126). 120 NB: (Ibidem: 166). 143 fenômeno singular e unificado”; portanto, a percepção é sempre “passiva e ativa, situacional e prática, condicionada e livre”121].cci Atrizg: É verdade. Lembro de ter visto isso na “jornada das pontes” no momento da bifurcação da ponte do Alva Noë. Zarrilli: Bem lembrado também, Atrizg. Retomando a tese de Noë para que o Amor possa nos acompanhar. Ele diz o seguinte: [A percepção não é algo que acontece conosco ou em nossos cérebros. Não é como a visão, o que faz parecer que somos espectadores passivos do mundo. Pelo contrário, a percepção “é algo que fazemos... o mundo se torna disponível para o observador através do movimento físico e da interação”122. A percepção é, portanto, mais parecida com o sentido do tato do que com a visão, já que, ao tocar, a pessoa engaja ativamente e explora o que está disponível para tocar .].ccii Amor: Entendi. O exemplo da degustação da tapioca deixa isso bem claro. (risos). Zarrilli: É verdade. Mas talvez devêssemos nos concentrar num exemplo que envolva outro sentido que não o paladar. Por exemplo: ainda pouco, nossa conversa foi parcialmente interrompida pela passagem da bike som. Quando isso ocorreu, posso dizer que minha consciência auditiva foi “tocada” pelo volume da propaganda que estava sendo anunciada e, simultaneamente “toca” esse som quase ensurdecedor. Mas percebam que isso ocorreu gradativamente a medida que a bike som se aproximava e seu volume, naturalmente, aumentava. Nossa consciência auditiva não foi “tocada” somente no momento que a bike som se aproximou. Eu, por exemplo, percebi um som indistinto que foi aumentando até se impor de modo agressivo, provocando leve trepidar das janelas. Percebi o som, mesmo sem saber do que se tratava e de onde vinha. Quando me dirigi até a janela, minha visão apenas completou as informações. Atrizg: Engraçado como o sentido da visão prioriza nossa atenção e acabamos acreditando que só conhecemos alguma coisa, de fato, quando olhamos pra ela. Zarrilli: É verdade. No Ocidente a visão é o modo de percepção dominante. Noë nos diz que [É comum supor que “Ver é [...] ter representações do mundo em forma de figuras na consciência; ver é ter um tipo de imagem mental. A visão, por sua vez, é considerada o processo pelo qual esse 121 NB: (Taylor: 2012: xii-xiv). 122 NB: (Noë: 2004:01). 144 tipo de imagem consciente interna, ricamente detalhada, é produzida [...] a partir de imagens nos olhos, imagens da retina.”123].cciii Luka: E, no entanto, foi possível para o Zarrilli perceber a bike som, antes mesmo de ter contato visual com ela. Zarrilli: Mais do que isso Luka: mesmo quando me aproximo e avisto o objeto pela janela, parte dele ainda continua oculto da minha percepção visual em virtude do ponto de vista em que me encontro – do quinto andar do prédio. [Ao contrário do entendimento comum do sentido da visão como pictórica, a percepção visual é sempre parcial e fractal; em outras palavras, em certo sentido, o que vemos é apenas o que está disponível para nós de onde estamos localizados.].cciv Luka: E isso quer dizer também que nossa percepção se relaciona com tudo que a experiência nos oferece no momento imediato, sejamos nós capazes de perceber visualmente ou não os objetos em cena e/ou o parceiro de cena. Zarrilli: Exatamente. (breve pausa para saborear o bolo de castanha do Pará com café) [A percepção, portanto, é ativa e relacional. O que aparece na percepção é emergente no momento de sua aparência/sensação à medida que nos envolvemos com o que surge do horizonte indeterminado da minha corrente de consciência no ambiente imediato124].ccv Luka: (passando doce de leite numa torrada) E o treinamento psicofísico potencializa nossa percepção exatamente para esse estado de atenção, para essa qualidade de conexão com o momento presente. Zarrilli: [Meu interesse é ir além dos relatos de objetos na percepção visual para o território complexo do que Merleau-Ponty identificou como “o poder de contar com o possível”125, em outras palavras, como podemos utilizar tanto as habilidades motoras quanto as habilidades perceptivas para encontrar, experimentar e gerar o que não está literalmente presente para nós, como objetos em nosso ambiente imediato, através da implantação de nossa imaginação ativa. O trabalho do ator com a percepção visual não se limita ao reino do que é encontrado com objetos ou ambiente dentro do campo visual imediato de desempenho, mas também incorpora atos de visualização incorporados e/ou a imaginação – dois domínios do “possível” que muitas vezes constituem uma parte essencial da marcação de desempenho de um ator.].ccvi 123 NB: (Noë: 2012: 82). 124 NB: (Merleau-Ponty:1962: 30; Csordas: 1993: 135-156). 125 NB: (Ibidem:125). 145 Atrizg: Te referes ao trabalho com as imagens ativas que comentamos ontem? Zarrilli: Sim, Atrizg. (passando um pouco de doce de leite num pedacinho de bolo de castanha do Pará que ficou no seu prato) Por isso utilizo no treinamento a imagem do olho interno localizado no baixo ventre. Esse olho interior persegue o movimento da respiração e estimula esta habilidade perceptiva diretamente ligada ao que agora estou chamando de imaginação ativa. Isso é importante pois, [quando utilizamos ativamente a visualização a partir do nosso “olho interior” (“olho da mente” ou imaginação ativa), não estamos mais limitados as restrições do campo de visão em si. A visualização como uma maneira de trabalhar com a imaginação ativa pode ser descrita como um ato psicofísico voluntário no qual se sustenta a atenção (e a consciência auxiliar que surge ao se manter atento) ao longo do tempo (...)].ccvii Atrizg: Posso dizer que o treinamento é uma forma de aprimorar nossa percepção? Zarrilli: Eu diria que [(...) o treinamento de atuantes pode ser visto de forma produtiva como uma forma específica de “aprendizado perceptivo”126, através do qual o ator aprende modos cada vez mais sutis e complexos de direcionar a atenção e abrir a consciência sensorial em/para/através de tarefas, ações e qualidades específicas que constituem o horizonte de uma marcação de desempenho realizada em um ambiente teatral específico.].ccviii Atrizg: Te ouvindo falar parece simples e até romântico, como em alguns filmes de artes marciais. Mas a realidade na sala de treino é sempre muito dura. ZARRILLI: Sem dúvida. É somente através da prática assídua e disciplinada que os resultados virão. Não acredito em mágica ou resultados mirabolantes. Tudo depende do quanto o atuante se dedica a esse processo duplo de percepção: escuta de si e do ambiente. [(...) com a prática diária assídua, cada respiração eventualmente ocupa “o primeiro plano do campo mental”, de modo que a atenção seja desprendida de qualquer outro pensamento e abra a consciência para as sensações físicas/sentidas que ficam disponíveis no ato de se estar presente/atender aos movimentos de “dentro” e “fora” do abdômen inferior, o campo visual periférico e assim por diante.].ccix Amor: Mas vocês acreditam mesmo que somente esse trabalho direcionado à respiração seja suficiente para alcançar os resultados em cena? 126 NB: (Downey:2005). 146 Atrizg: Pode parecer simples, Amor, mas esse trabalho de manter a atenção na respiração é um negócio difícil, pois qualquer deslize e nossa mente já fica vagueando com imagens e pensamentos intrometidos. Zarrilli: James Austin, neurologista e praticante Zen, oferece uma explicação científica interessante sobre isso: [“Nossos circuitos cerebrais já prestam mais atenção às sensações que surgem da cabeça do que do peito e prestam ainda menos atenção às sensações do abdômen. Esse fenômeno normal é denominado ‘dominância rostral”.127].ccx Luka: E isso certamente ocasiona e/ou contribui para o problema do “desaparecimento do corpo” de que falávamos há pouco. Zarrilli: Sim, Luka. [A respiração abdominal atenta permite que o praticante se sintonize com a consciência do corpo-mente que é afastada das áreas da cabeça/peito. Através da respiração o praticante é convidado a se abrir para esse tipo de consciência perceptiva sutil, visualizando a respiração até atingir o dantian e passando para a parte inferior do corpo até a sola dos pés.].ccxi Atrizg: (mergulhando uma torrada na calda de leite de coco) Consigo fazer este percurso da visualização da respiração com bastante propriedade até chegar ao abdômen; a conexão dessa visualização com a sola dos pés, pra mim, ainda é difícil. Zarrilli: É um processo, Atrizg. Demanda tempo. (se dirigindo pro Amor) Tinhas razão: gostei mais do bolo sem a doce de leite. (risos. À Atrizg) O importante é continuar, a cada treino, perseguindo a visualização da respiração, pois [ao abrir ainda mais a consciência para a parte inferior do corpo, o praticante inicia um processo de exploração das sutilezas da relação entre os elementos físico e mental/cognitivo/perceptivo entrelaçados no horizonte da consciência. O filósofo japonês Yuasa Yasuo descreve esse processo de desenvolvimento da habilidade perceptiva como “cultivo”128; em outras palavras, se cultiva um tipo de atenção cada vez mais sutil e consciência corporal/sensorial.].ccxii Luka: (fazendo gesto de saciado) Minha maior dificuldade, no começo, era exatamente acompanhar a respiração. Sempre fui muito inquieto, então era comum começar o treino com mil preocupações na cabeça. Por isso, descobri que precisava de um tempinho de silêncio antes de começar a treinar. Acabei criando uma ritualização pessoal que outros membros do GITA adotaram também: ao chegar à sala de trabalho, troco de roupa e falo somente o essencial; deito de peito pra 127 NB: (Austin: 2006: 477). 128 NB: (Yasuo: 1987: 18) 147 cima, fecho os olhos e permaneço imóvel por cerca de cinco minutos quando, então, começo a espreguiçar o corpo inteiro no plano baixo, médio e alto; só abro os olhos no final desse espreguiçamento; pra finalizar me dou tapinhas ao longo do corpo inteiro. Ao longo desse exercício inicial deixo minha respiração seguir seu fluxo natural, orgânico. Isso ajuda bastante me sintonizando para a realização do treinamento. Amor: Se eu deitar no chão e fechar os olhos pra fazer algum exercício, de lá eu não levanto mais. (risos). Zarrilli: É um bom exercício inicial, Luka. Aquietar a mente proporciona [(...) o que às vezes é descrito na prática Zen-budista como não-mente (mushin) ou “mente de principiante” (shoshin) – uma mente “pronta para qualquer coisa... [e] aberta a tudo”129].ccxiii Amor: “Não-mente” significa se desligar de tudo e se isolar do mundo? Zarrilli: Não. [Significa apenas que nenhum pensamento egocêntrico interrompe o fluxo. (...) Num estado de não-mente, o praticante “não precisa pensar para ser consciente... a consciência começa estando consciente”130.].ccxiv Amor: Achei lindo isso. Mas deve ser bem difícil mesmo de alcançar. Luka: (pegando mais uma tapioca) Também pensava assim, Amor. Mas o segredo de tudo é TREINO!!! Zarrilli: É verdade. Não há truques, mas sim treinamento. Como o sentido da visão é dominante entre nós, ocidentais, tomo como ponto de partida esses exercícios psicofísicos do olho interior que segue a respiração. Assim, estabeleço uma prática que, em longo prazo, enfrenta o problema do “desaparecimento do corpo” oferecendo ao atuante o aumento de sua percepção sensorial – auditiva, visual e tátil. E pra finalizar a reflexão [destaco dois aspectos da experiência da prática desses exercícios. Primeiro: ao estar atento ao olho interior e, simultaneamente, ao ponto à frente com o olhar externo e, ainda, ao abrir a percepção sensorial tanto para fora quanto para dentro, o praticante está estendendo tanto a atenção quanto a consciência para alguma coisa.].ccxv ATRIZG: (saboreando a tapioca) Ocorre uma dilatação da sua presença, certo? ZARRILLI: Se quisermos usar o termo de Etienne Decroux, sim. [A atenção alcança o ambiente e “sai” do próprio corpo-mente. Ficamos atentos às coisas, nos orientamos para elas, ficamos 129 NB: (Claxton: 1998:198) 130 NB: (Ibidem: 296). 148 face a face com elas131, ao mesmo tempo em que nos mantemos conscientes de nós mesmos, ou seja, nos mantemos abertos aos mais sutis modos de consciência disponíveis a partir dos quais o “para” emerge. Como Evan Thompson explica, gradualmente suspendemos “a desatenta imersão na experiência” e desenvolvemos “meta-consciência” – uma “consciência da consciência”132. O que se desenvolve é a capacidade de “re-habitar” constantemente o fluxo da experiência “de uma maneira nova, ou seja, com maior consciência e sintonização”133.].ccxvi Atrizg: Talvez seja por isso que o Luka vive repetindo que minhas ações em cena, algumas vezes, padecem da falta de vigor, de verdade... Luka: (interrompendo) Falta de VIDA!!! Atrizg: (com certo constrangimento) Isso. O Luka repete que falta “vida”. Luka: Pois é. É dessa qualidade de energia que falo; dessa qualidade de se manter “viva” e se relacionando atentamente com o ambiente da cena com o frescor de uma primeira tentativa. Mas vamos deixar o Zarrilli concluir a reflexão. Qual o segundo aspecto? Zarrilli: [Em segundo lugar, existe uma relação integrada e inter-sensorial entre o envolvimento com os outros sentidos, incluindo a propriocepção, como gestalt. O corpo-mente opera idealmente como um todo integrado, empreendendo dialeticamente atenção e consciência do que se está fazendo e como é feito. Ao alcançar a atenção intensificada, há igualmente um “atender com” e “atenção para” o corpo no ato de seu desdobramento de atenção e consciência. Com o passar do tempo, esse modo intensificado de habitação somática pode se tornar uma forma de conhecimento prático e tácito, informando como se utiliza a atenção e a consciência no desempenho.].ccxvii Atrizg: (interrompendo o gesto de levar à tapioca a boca) Pelo jeito ainda me falta tempo para amadurecer e ampliar esse estado de energia, atenção e consciência em cena. Luka: Mas como eu disse antes: “O segredo é TREINAR!!!”. Zarrilli: Isso mesmo, Luka. O treinamento psicofísico é o elemento chave para o ator avançar nessa perspectiva de atuação, isto é: atuação como processo psicofísico – expressão e modulação da energia. (o HulkSom – carro som de propaganda – passa anunciando a festa de aparelhagem do Búfalo do Marajó. Fogos de artifício são disparados anunciando a festa que ocorrerá, mais tarde, na sede social da Florentina Prime. A trilha sonora ensurdecedora do carro invade o 131 NB: (Austin: 2006: 38). 132 NB: (Thompson: 2007a: 19). 133 NB: (Ibidem). 149 apartamento com a canção “Xirley” do famoso álbum Treme, de Gaby Amarantos. Zarrilli corre pra janela pra conferir o que se passa na rua) Amor: (correndo pra janela) E por falar em treino: que tal vocês levarem o Zarrilli pra TREINAR alguns passos de tecnobrega lá na Florentina? Atrizg: Boa ideia, Amor!!! (dançando com os ombros) Vamos Zarrilli: TREEEEMEEEEE!!! Zarrilli: Vou deixar essa parte de “tremer” com vocês que já tem muita experiência. Aliás, não poderia encerrar essa nossa conversa sem dizer da minha satisfação pela participação intelectualmente perspicaz de Atrizg que colaborou muito para o desenvolvimento das ideias e do debate. LUKA: Sem dúvida. Embora as vezes pareça muito ríspido e brigue com ela, tenho muito orgulho da Atrizg. Fim do Diálogo Terceiro. 150 Diálogo Quarto - Atuação Contemporânea: Idiossincrasias e Interculturalismo Diferente dos Diálogos anteriores, todos já se encontram novamente na sala de ensaio. Estão reunidos no centro da sala, e sentados no chão, C. Sã, Luka, Atrizg e Zarrilli. Zarrilli: Gostaria de iniciar nossas atividades de hoje aproveitando, mais uma vez, para agradecer pela agradabilíssima tarde de ontem no Solar dos Silva. Foi uma experiência muito rica pelas trocas culturais que aconteceram. C. Sã: (brincando) O Solar dos Silva é uma espécie de “puxadinho” de lazer do GITA (risos). E a tapioquinha do Luka é a iguaria preferida dos Giteiros. Luka: (envaidecido) Ah Zarrilli, é sempre um prazer receber os Giteiros lá em casa... E com a tua presença, então, tudo ficou muito mais especial. Atrizg: Foi bem divertido mesmo. Mas a cara que o Zarrilli fez quando ouviu o anúncio das festas de aparelhagem foi impagável. (risos). Zarrilli em tom descontraído e se esforçando pra não errar o nome de tudo que já experimentou e/ou conheceu. Zarrilli: Ao longo dessa semana, vocês têm me proporcionado entrar em contato com diversos elementos da cultura local: açaí com charque, galinha caipira, carimbó, festa de aparelhagem, Jurunas, tapioca, cuscuz, peixe frito, bolo de castanha... Enfim, tudo que tenho experimentado e conhecido me fez pensar numa questão importante, e inevitável, que permeia a atuação contemporânea... Atrizg: (interrompendo) Já sei: te referes à questão intercultural!!! Zarrilli: (sorrindo pra Atrizg) Você está certa. É isso mesmo. Até agora conversamos sobre treinamento psicofísico e sobre minha abordagem enativa para atuação. As questões interculturais de alguma forma já se fizeram presentes em nossos encontros, mas gostaria agora de me deter com mais vagar nesse assunto, ou seja, falar sobre atuação numa perspectiva intercultural. Atrizg: (coçando a cabeça na sua costumeira inquietação) Atuação intercultural? Pensei que a questão intercultural se limitasse ao treinamento psicofísico por ele ser radicado nas artes marciais e meditativas asiáticas. Ainda não tinha parado pra pensar numa atuação intercultural. Zarrilli: Vejo, então, que a discussão servirá para ampliarmos nosso entendimento sobre esse assunto. Vamos partir observando o termo intercultural. [O prefixo “inter” aponta para esse 151 espaço “entre” onde algo tem o potencial de acontecer. Este “espaço” entre povos, grupos, culturas e nações tem sido frequentemente um lugar impetuoso e cheio de tensões. Em seu livro seminal de 1994, “O local da Cultura”, Homi Bhabha começou a teorizar e examinar esses espaços “entre”, isto é, os “interstícios – a sobreposição e o deslocamento de domínios de diferença” onde “experiências intersubjetivas e coletivas [...] são negociadas”134. (...) Obviamente que o contexto histórico, as circunstâncias específicas e o tipo de interação “entre” – convidados, mutuamente acordados, não convidados, impostos de fora – determinam se a troca é experimentada ou percebida como positiva/benéfica, benigna, degradante, prejudicial ou destrutiva.].ccxviii Atrizg: A “interação” com a gastronomia paraense tenha sido, benéfica? (risos). Zarrilli: Fique despreocupada. Não tenho nenhuma reclamação nessa questão. (risos). Mas em relação ao campo da atuação teatral, a história nos ajuda a perceber os fluxos de interações culturais que passaram a ocorrer, numa escala crescente, há pouco tempo. [Desde o final do século XIX até o modernismo ocidental do século XX, bem como o surgimento de movimentos de teatro de vanguarda e experimental, surgiram novas ondas e formas de intercâmbio intercultural.].ccxix Luka: Talvez, Atrizg, os exemplos mais notórios dessas interações culturais possam ser conferidos na experiência indireta de Stanislavski135 com o yoga; ou “O Mahabharata” montado por Peter Brook136; a dança balinesa que tanto encantou e influenciou Artaud137; e a técnica do ator chinês Mei Lang Fan que também encantou e influenciou a teoria do “efeito de distanciamento” de Brecht138. Zarrilli: (concordando com a cabeça) É verdade, Luka. [Durante o final do século XX, esses fluxos globais no teatro foram evidenciados pela atenção dada a um conjunto limitado de produções, iconicamente problemáticas, de diretores ocidentais, exemplificando uma forma específica de um interculturalismo histórico como, por exemplo, a controversa adaptação de Peter Brook de um dos grandes épicos da Índia – O Mahabharata – em uma apresentação de um dia inteiro.].ccxx 134 NB: (Bhabha: 1994: l-2). 135 NB: Cf. Zarrilli, 2009, p.25. 136 NB: Cf. Grande Rosales, 1998-2001. 137 NB: Cf. Martin Esslin, 1978; Florence de Mèredieu, 2011, pg 165, 426. 138 NB: Cf. Brecht, 1967. p. 104-14. 152 Atrizg: (interrompendo) Como foi a recepção dessa montagem do Peter Brook? Fiquei curiosa porque eu assisti a versão filmada da peça139 em DVD. Zarrilli: Eu destaco duas críticas importantes que essa montagem recebeu e que nos ajudam a pensar nas implicações das interações culturais. As críticas são dos autores indianos Rustom Bharucha e Una Chaudhuri. [Em relação ao Mahabharata de Peter Brook, Bharucha aponta para como “as implicações do interculturalismo são muito diferentes para pessoas em países empobrecidos, “em desenvolvimento” como a Índia e para seus homólogos em sociedades tecnicamente avançadas, capitalistas como a América, onde o interculturalismo tem sido mais fortemente promovido como filosofia e também como negócio”140. Chaudhuri, por sua vez, argumenta que “projetos interculturais bem-intencionados perpetuam involuntariamente um neocolonialismo em que os clichês culturais que subestimaram o imperialismo sobrevivem mais ou menos intactos”141].ccxxi Atrizg: (com certo assombro) Caramba, não tinha pensado nisso. Existem outras montagens com essa mesma abordagem intercultural? C. Sã: (tomando a iniciativa pra responder) Me permita um aparte Zarrilli. As montagens de Ariane Mnouchkine142, fundadora do Theatre du Soleil em Paris, talvez sejam bons exemplos também. Em algumas montagens ela trabalhou as obras de Shakespeare utilizando elementos do kabuki e utilizou também elementos do kathakali na produção de algumas tragédias gregas. Zarrilli: Bem lembrado, C. Sã. [As produções icônicas prenderam a atenção da crítica e da discussão em torno do interculturalismo, na época. Mas, como argumenta Haiping Yan, um dos principais problemas com as formas ocidentais de interculturalismo tem sido “a rubrica operativa do humanismo universalizado e do individualismo ontologizado [...]”143. Em alguns casos, no próprio trabalho artístico e/ou no processo de fazer com que as questões estéticas transcendessem completamente qualquer preocupação com “o político”, “o individual” transcenderia “o social (...) enquanto o histórico é abstraído pelo universal”.144].ccxxii Luka: Realmente, são questões bem delicadas. 139 NT: Versão em DVD produzida Cinemax, São Paulo, 1989. Roteiro e direção de Peter Brook. 140 NB: (Bharucha: 1993: 1). 141 NB: (Chaudhuri: 1991: 196). 142 NB: Cf. Béatrice Picon-Vallin, 2011. 143 NB: (Yan: 1994: 109). 144 NB: (Ibidem). 153 Atrizg: Poxa, mas essas montagens citadas são de autores de renome internacional. Eles não tinham consciência desse tipo de problema? Zarrilli: [Infelizmente, um modelo ocidental excessivamente simplista de interculturalismo foi articulado por Patrice Pavis145, que se concentrou nas icônicas produções oriente/ocidente de Brook, Mnouchkine e outros. O modelo de ampulheta de troca binária entre uma cultura “fonte” e uma cultura “alvo”, dominou amplamente a análise e a discussão do teatro intercultural. Conforme observa Ric Knowles, “o modelo de ampulheta de Pavis, propõe um fluxo e filtragem unidirecional de informações da cultura fonte para a cultura alvo, ao invés de qualquer tipo de intercâmbio de fluidos”.146].ccxxiii Atrizg: Ou seja, essa visão desconsiderava as interações entre as culturas envolvidas? Zarrilli: Isso mesmo. Atrizg: (toda faceira) Sou craque em interações. Por isso desde o primeiro encontro contigo, Zarrilli, fui logo propondo a “galinha caipira”. (risos). Luka: (olhando torto pra Atrizg) E teria outro autor com uma abordagem diferente? Zarrilli: [Entre as análises mais recentes do teatro intercultural, a “Poética da Diferença e Deslocamento”, de Min Tian, rompe o terreno teórico e histórico. Tian trata igualmente de uma série de exemplos históricos/contextuais específicos de interações e trocas interculturais no sentido chinês-ocidental, bem como no ocidental-chinês. A principal premissa analítica de Tian é que no ponto central de todo “conhecimento e compreensão intercultural” há formas e modos específicos de “deslocamento e reposição do Outro pelo Eu”.147].ccxxiv Atrizg: (confiante) Isto é, uma interação intercultural é “uma faca de dois gumes”: afeta os dois lados envolvidos na relação. Zarrilli: Sim, Atrizg. [Ele argumenta que este espaço intercultural “entre” é sempre “um local de deslocamento”, onde existe o potencial de contestação e negociação “construtiva e destrutiva”, positiva e negativa entre diferentes “forças teatrais”148. Novos conceitos teatrais, ideologias, ideias, conteúdos, convenções, bem como técnicas e práticas deslocam e modificam, e/ou substituem o que já existe.].ccxxv 145 NB: (Pavis: 1990/1992). 146 NB: (Knowles: 2010: 26). 147 NB: (Tian: 2008: 7). 148 NB: (Ibidem: 11). 154 Atrizg: (ainda confiante) Então isso também significa que o teatro que fazemos aqui no GITA, em Belém do Pará, Norte do Brasil, entra num processo de negociação cultural com os conceitos e princípios que apreendemos via treinamento psicofísico com [AMMA]. Zarrilli: Sem dúvida, Atrizg. Vocês precisam perceber quais os deslocamentos e substituições que o GITA desenvolve, tanto na abordagem do treinamento psicofísico quanto na atuação. Luka: Sim. Isso tem sido o eixo das minhas preocupações, ultimamente, aqui no GITA: identificar as descontinuidades, as fissuras e as substituições que o grupo opera em relação a tua abordagem de treinamento e atuação. Zarrilli: Isso é excelente, Luka. Afinal quando o C. Sã repassa o aprendizado que teve comigo, provavelmente desloca e personaliza a abordagem a partir de suas referências culturais. Atrizg: (interrompendo) E o mesmo vale pro Luka, né? Zarrilli: Sem dúvida, Atrizg. Assim como para cada um dos atuantes que já passaram pelo GITA. Para seguirmos e aprofundarmos nossa discussão, eu destaco alguns elementos-chave relevantes que devem ser considerados no intercâmbio intercultural voltados para atuação: [o papel desempenhado pela imaginação humana no processo de troca intercultural e (re)conceituação de processos de atuação; (...) descrição e análise detalhada do intercâmbio intercultural que ocorre nos estúdios de treinamento entre atuantes/artistas no micro-nível de transmissão de técnicas de desempenho corporificadas, elaboração de processos, o exercício da imaginação, etc.; discussão dos paradigmas subjacentes da corporificação psicofísica exclusiva de culturas específicas e dos elementos e princípios que informam modos específicos de prática em questão; análise de processos de tradução ou transposição de elementos, princípios e técnicas entre culturas.].ccxxvi Atrizg: (inquieta) Caramba. Quanta coisa. Quando tu falas em “imaginação no processo de troca intercultural” queres dizer que também acabamos por inventar modos próprios de atuar a partir dessas trocas? Zarrilli: Sim, Atrizg. [(...) quando experimentamos algo novo, podemos reconsiderar e re- imaginar o que nos é familiar.].ccxxvii Atrizg: (interrompendo) Quando passamos a dominar as habilidades do treinamento psicofísico e intercultural, por exemplo? Quer dizer, o fato de treinarmos uma prática intercultural nos leva a re-imaginar o modo como atuamos aqui em Belém? Zarrilli: Sim. [(...) o modelo de atuação existente é deslocado, pois está sendo ajustado ou re- imaginado. O problema não é tanto a re-imaginação da atuação por si, mas o fato de que muitas 155 vezes o indivíduo ao fazer a re-imaginação pode ser ingênuo sobre o que o influenciou, ou seja, pode ter pouco ou nenhum conhecimento do contexto cultural, sociopolítico e/ou histórico específico que moldou o conteúdo ou atuação que fez com que ele reconsiderasse.].ccxxviii Luka: Eu destaco também a questão das generalizações. No caso de Artaud, por exemplo, ele usou a expressão “dança balinesa”. Mas Bali é uma ilha da República da Indonésia e possui variados tipos de danças. Então, quando generalizamos utilizando o termo “dança balinesa” corremos o risco de empregar uma noção estilizada e universalizada pra uma manifestação artística diversificada culturalmente. Observo que ocorre uma coisa semelhante aqui no Pará. É comum afirmar que o carimbó é a dança do estado do Pará. Mas de qual carimbó estamos falando: do carimbó dançado na ilha do Marajó (carimbó pastoril), do carimbó da região do Baixo Amazonas (carimbó rural) ou do carimbó da faixa litorânea do Pará (carimbó praieiro)149?. Isso pra não entrar na celeuma entre o carimbó “raiz” e o carimbó “moderno” ou “urbano”150. Zarrilli: Essas questões são muito interessantes e delicadas, mesmo Luka. No caso de Brecht ocorreu o seguinte segundo nos afirma Tian151: [O “efeito D” da atuação chinesa é eventualmente “deslocado” de seu contexto histórico, cultural e artístico e passa a ser estudado “lucrativamente” como “uma técnica” de Brecht, que precisava dela para “objetivos sociais específicos” [...] na interpretação de Brecht, o xiqu chinês foi claramente deslocado e usado como meio de valorizar e legitimar os próprios desejos teóricos, colocações e projeções do autor.].ccxxix Atrizg: (em tom de desabafo) Vixe!! Se até esses autores phodões foram ingênuos a esse ponto como é que podemos evitar esses equívocos? Zarrilli: [Talvez a primeira coisa a ser feita ao abordar a atuação numa perspectiva intercultural é perceber a importância, sempre que possível, de tentamos entender com precisão como as formas de corporificação e as práticas psicofísicas como a atuação são compreendidas, faladas e praticadas a partir de perspectivas culturais diferentes da nossa. Isso significa abordar corporificação e atuação em contextos não-ocidentais.].ccxxx Atrizg: No caso do GITA devemos, então, tentar compreender como as práticas psicofísicas, que adotamos como treinamento, são compreendidas na Ásia? Zarrilli: Sim. E se houvesse oportunidade falaria mais sobre isso. O que posso adiantar sobre essa questão é que nas tradições de atuação não ocidental como, por exemplo, o kathakali e o kutiyattam 149 NB: (Cf. Huertas Fuscaldo, 2015). 150 NB: (Cf. Guerreiro do Amaral. 2003). 151 NB: (2008: 58-59). 156 indianos, a ópera de Pequim e/ou o nõ e kabuki japonês [o ponto inicial (“ponto de entrada” ou “lugar de início”) para o ator não é ler o texto dramático ou pensar e analisar o texto para entender a personagem ou as motivações que movem o personagem. Esses atuantes primeiro envolvem seus corpos-mentes em um processo psicofísico imersivo, intenso e completo que só muito mais tarde em seu desenvolvimento – depois de alcançar a maturidade e o domínio de todas as técnicas básicas de movimento/voz ou exercícios do gênero – solicita certas formas de reflexão e análise sobre sua arte e sua prática. Uma perspectiva intercultural sobre atuação sugere que examinemos a atuação como um processo corporificado que envolve plenamente o corpo-mente do ator.].ccxxxi Atrizg: É verdade. O Luka e o C. Sã sempre destacam isso aqui no GITA. Zarrilli: [E finalmente, precisamos considerar o papel que os paradigmas discursivos/explicativos desempenham na definição de como a atuação é estruturada, vista e praticada. Desde o trabalho seminal de Stanislavski, o paradigma comum dominante, que informa como os ocidentais costumam pensar e falar sobre atuação é a psicologia – uma disciplina inventada no século XIX, ao mesmo tempo em que o realismo e o naturalismo teatral concentraram a atenção no eu individual. Uma perspectiva intercultural sobre atuação nos convida a discussões sobre a atuação contemporânea, deslocando a psicologia de sua posição explicativa principal e substituindo-a por paradigmas alternativos para a compreensão dos processos internos e a possibilidade de atuar como um fenômeno e um processo corporificado. (...) portanto, a psicologia precisa ser reposicionada como um paradigma secundário a ser aplicado aos processos de atuação, quando apropriado para uma dramaturgia específica.].ccxxxii Luka: Isso, sem dúvida, é uma das dificuldades que enfrentamos aqui no GITA, pois boa parte dos artistas-pesquisadores que trabalham com a gente estão culturalmente atados ao paradigma da psicologia/texto. Embora eu observe que o teatro produzido pela cidade de Belém seja muito influenciado pelo experimentalismo – como já tive oportunidade de escrever numa crítica teatral na revista TRIBUNA DO CRETINO152 –– e cada vez mais enverede pela perspectiva pós- dramática, performática e/ou performativa153, o paradigma da psicologia ainda se mantém bastante vigoroso; muitas vezes se mantém como uma espécie de monstro a ser evitado, negado ou desconstruído, mas ainda sim se sustenta como referência importante. Corroborando com a Teoria 152 NT: “Sobre a maresia dos tempos de experimentação”, Vol. 01, Nº 01, 2015. 153 NT: Ver os cinco primeiros números da Revista TRIBUNA DO CRETINO. 157 do Drama Moderno154 de Peter Szondi, observo que nossa cidade opera, quase sempre, por meio de “tentativas de salvamento” e “tentativas de resolução” do texto dramático, tentativas é claro, amparadas pelo paradigma da psicologia. Zarrilli: É bom te ouvir sobre esse diagnóstico, Luka, pois são vocês, que vivem e produzem teatro nesta cidade, os primeiros que devem perceber o contexto cultural e histórico do lugar onde estão inseridos; essa percepção e compreensão do lugar de vocês são importantes para negar, desconstruir ou mesmo operar nas “tentativas de salvamento”, como você mesmo disse. Mas também é importante perceber que o GITA se vincula a um modelo de atuação e treinamento de atuantes que não se funda no paradigma da psicologia. Atrizg: (interrompendo) Sim. Isso eu já pude perceber ao longo da semana quando tu propões uma abordagem enativa de atuação. Tenho certeza que essa abordagem segue um paradigma alternativo de atuação. E até onde eu tenho conhecimento, por meio do Luka e do C. Sã, o Adolphe Clarence Scott exerceu um papel importante na tua abordagem de atuação e treinamento psicofísico. Zarrilli: Você está certa, Atrizg. O Scott foi um grande mestre e parceiro que me ajudou a compreender questões interculturais envolvidas no treinamento psicofísico. [Embora da mesma geração de Grotowski e Barba, a abordagem de A.C. Scott (1909-1985) para a atuação intercultural na Ásia era bastante diferente de Grotowski e Brook. Scott fez uma abordagem imersiva na Ásia. Fluente em chinês e japonês, Scott treinou no estilo t’ai chi ch’ uan sob o comando do mestre Cheng Yung-Kuan, em Hong Kong entre 1947 e 1952. Scott, inspirado por Jacques Copeau (1879-1949) e Michel St. Denis (1897-1971),fundou em 1963 o Programa de Teatro Experimental Asiático na Universidade de Wisconsin-Madison quando, então, passou a explorar uma abordagem intercultural do treinamento de atuantes usando t’ai chi ch’ uan na formação de atuantes americanos.].ccxxxiii Atrizg: Eu lembro: “Permanecer imóvel enquanto não se está imóvel”. Aprendi isso na “jornada das pontes”. Mas qual o diferencial de Scott em relação a Grotowski, Barba e Brook? Zarrilli: Boa pergunta, Atrizg. [Scott substituiu o vocabulário e os discursos do ocidente retiradas da psicologia e de Stanislavski com a prática diária de t’ai chi ch’ uan e aplicou o que estava sendo aprendido do t’ai chi para as dramaturgias específicas da produção ocidental. A co- fundadora da Mu Performing Arts, em Minneapolis, Martha Johnson, explica como Scott estava 154 NB: (Szondi, 2011). 158 experimentando os princípios mais profundos da atuação asiática e aplicando-os a encenação e atuação de peças contemporâneas. Ele não estava “fazendo versões “Kabuki” de qualquer coisa; ele estava trabalhando com os princípios artísticos subjacentes.”155].ccxxxiv Atrizg: A abordagem do japonês, Yoshi Oida, ator que trabalhou com o Peter Brook, também vai na mesma perspectiva de trabalho do Scott? Zarrilli: Sim, Atrizg. E nesse caso é o Yoshi156 que proporciona um aprendizado muito instigante para o Brook. Mas eu posso citar outros importantes nomes que têm se dedicado numa abordagem intercultural que vai ao encontro da visão de Scott: Jeungsook Yoo – atriz, diretora e professora coreana que baseia sua prática nos princípios do Dahnhak (um modo de meditação coreano), principalmente; Grisana Punpeng – tailandesa que explora os princípios do budismo e da filosofia asiática articulados ao contexto da Tailândia; Wayan Lendra – performer balinês que articulou sua experiência intercultural entre os princípios balineses (como kundalini e taksu) e o trabalho dos “movimentos” com Grotowski. Atrizg: E aqui no Norte do Brasil, o C. Sã e o Luka articulando seus conhecimentos no contexto da cultura local com os princípios do treinamento psicofísico que tu sistematizaste. Zarrilli: É verdade, Atrizg. Todos esses que citei – incluindo o trabalho de vocês do GITA – são abordagens interculturais estabelecidas a partir de relações idiossincráticas importantes. Luka: Acreditas que isso é uma característica da atuação contemporânea, ou seja, o interculturalíssimo e as idiossincrasias de artistas e grupos, pelo mundo inteiro, são os elementos que operam transformações significativas no modo de atuar contemporâneo? Zarrilli: De algum modo sim, desde que não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que essa é uma característica somente do período contemporâneo. [Se alguém consultar Actorson Acting157, de Helen Krich Chinoy e Toby Cole (...) fica imediatamente evidente que diferentes, contraditórias e idiossincráticas teorias e abordagens sobre atuação têm estado historicamente no Ocidente desde o início do teatro grego até o final do século XX.].ccxxxv Luka: Concordo. A questão, talvez, seja que atualmente as trocas interculturais se estabeleçam com maior intensidade. 155 NB: (Cf. Liu: 2011: 420). 156 NB: (Cf. Oida, 2007; Oida, 2012) 157 NB: (Cole e Chinoy: 1970). 159 Zarrilli: Sim. Mary Luckhurst e Chloe Veltman na introdução da obra On Action158 concluem que [“há tantas definições de atuação como atuantes”].ccxxxvi Atrizg: As abordagens interculturais voltadas ao treinamento também são diversas? Zarrilli: Também. [Sobre esse aspecto recomendo a leitura das seguintes obras: Actor Training, de Alison Hodge (2010); Performer Training: Developments Crossing Cultures, de Ian Watson (2002); e de Phillip Zarrilli's Action Reconsidered (2002), e também o jornal da Routledge Press newspaper, Theater Training, Dance and Performer.].ccxxxvii Atrizg: É bastante coisa mesmo. Zarrilli: Sim. E isso nos dá uma boa demonstração de como [não existe uma única abordagem compartilhada, método ou um treinamento para atuar. (...) Poderia dizer que hoje muitos, se não a maioria dos atuantes profissionais, trabalham de modos altamente idiossincráticos, isto é, cada indivíduo baseia-se nos diversos modos de performance/atuação e/ou tipos de treinamento ou “escolaridade” que experimentaram para abordar a atuação específica, conceituação ou problemas dramatúrgicos enfrentados em cada novo contexto de produção.].ccxxxviii Atrizg: Entendi. Por isso é importante perceber o nosso contexto local, o nosso modo de fazer teatro aqui em Belém. Por isso o Luka insiste nisso. Zarrilli: E ele está certo. O treinamento psicofísico que o GITA adotou como etapa estruturante dos seus processos criativos, embora tenha sido sistematizado por mim e pela parceria estabelecida com Scott, o modo de abordar esse treinamento nos processos criativos, certamente considera o lugar de vocês. E nisso o C. Sã tem uma grande responsabilidade, pois tendo sido ele a pessoa que viveu um período de aprendizado ao meu lado, ele é uma das pontes para a abordagem intercultural de vocês. Atrizg: Então, o GITA tem suas idiossincrasias? Zarrilli: Sem dúvida. E compreendê-las é tão ou mais importante que compreender o que eu escrevi sobre o treinamento ou sobre atuação. Tenho quase certeza que a abordagem que o C. Sã desenvolveu em sua tese de doutorado – que tive a oportunidade de orientar – fazendo uma distinção entre personagem e papel, e todos os procedimentos e exercícios para aplicar isso na cena, se encontram presentes no modo idiossincrático do GITA trabalhar aqui no Norte do Brasil. Atrizg: Engraçado que o C. Sã fala pouco sobre a tese dele aqui no GITA. 158 NB: (Luckhurst e Veltman: 2001). 160 Luka: (interrompendo) Mas isso não significa que nossa prática, no GITA, não esteja permeada pelas ideias que ele desenvolveu durante a elaboração da tese. C. Sã: (com certo constrangimento) Me permitam uma mea culpa para dizer que desde o momento que eu criei o GITA, em 2006, está nos meus planos traduzir as obras do Zarrilli e partes da minha tese que está publicada em inglês. Mas as demandas aqui da ETDUFPA, somada a minha falta de organização acabaram não permitindo que isso ocorresse até hoje. Luka: (interrompendo novamente) Mas eu insisto que isso não significa que tu não venhas operacionalizando elementos da tua tese na prática criativa do GITA. E eu cito alguns exemplos: o trabalho com as partituras neutras, os exercícios da conexão e tua insistência em afirmar que o “personagem” não entra, não baixa e nem incorpora no atuante, mas que tudo isso pode ser entendido e abordado como tarefas objetivas que o atuante desenvolve em cena. Acredito que tudo isso é a tua tese sendo colocada, de modo empírico, na prática criativa do GITA. Zarrilli: (interrompendo) E isso demarca uma idiossincrasia do GITA. Por isso, acredito que seja importante darmos oportunidade para que o C. Sã apresente, ainda que em linhas gerais, alguns procedimentos que ele defendeu e desenvolveu na sua tese. C. Sã: Minha preocupação é não conseguir falar e traduzir pra você poder acompanhar a conversa. Zarrilli: Não se preocupe comigo. Acho que já falei muito ao longo dessa semana. Preciso exercitar a escuta também. Fale com calma e traduza na medida do possível. Afinal eu já conheço o conteúdo da tese, mas eles precisam te ouvir falar sobre ela. Atrizg: Isso C. Sã. Sempre tive curiosidade pra ler a tua tese. Qual o título dela? C. Sã: Tudo bem. Vou selecionar algumas partes que julgo mais apropriadas e que continuamos a desenvolver aqui no GITA. O titulo traduzido da tese ficaria: “O Self/eu cintilante: a jornada do ator, do personagem ao papel”.159 Atrizg: (com certa admiração) É poético e ao mesmo tempo bem sintético. C. Sã: A ideia era exatamente essa: expressar com poucas palavras o coração da tese. Procuro indicar, já no título que minha abordagem segue uma perspectiva que não se funda no paradigma explicativo da psicologia de que o Phillip nos falava ainda pouco. Então, apresento três estudos de caso de processos criativos que eu dirigi, durante a elaboração da pesquisa e, a partir deles, desdobro as questões acerca do “personagem” e do “papel”. 159 NT: Título original da publicação: “The Shinning Self: the actor's journey from character to role”. Tese defendida em 23 de junho de 2003 na Universidade de Exeter, Inglaterra. 161 Luka: Qual o nome dessas montagens que dirigiste? C. Sã: Chamei de Windmill ou, em português, “Moinho de Vento”. Atrizg: Por que “Moinho de Vento”? É algum texto estrangeiro? C. Sã: Uma metáfora para o trabalho do atuante. [Assim como o vento move o moinho de vento, o atuante é movido por impulsos aparentemente invisíveis. De longe, vemos um moinho de vento em movimento, mas não podemos ver o vento. O espectador vê a reação do ator a um impulso, mas não vê os impulsos internos ou externos em si. O impulso é o vento que move o moinho de vento. Tanto o atuante quanto o moinho de vento giram como a terra. Essa rotação nos lembra que o ator é como uma hélice se movendo no tempo, deixando para trás uma espiral que nunca mais voltará. No entanto, essa espiral está presente na memória do espectador a cada vez que ocorre uma nova rodada. Nesse sentido, atuar também é uma espiral contínua através do tempo.].ccxxxix Atrizg: (admirada) Que lindo. C. Sã: Poético e didático, pois permite articular uma ideia/conceito sobre atuação com procedimentos práticos. Considerando o atuante como um “Moinho de Vento” é preciso colocá-lo em movimento. E, então, vem a questão: o que move um atuante em cena? A personagem? Atrizg: Dependendo do paradigma de atuação, sim. C. Sã: É verdade, Atrizg. Mas afinando minha tese com a perspectiva de treinamento do Zarrilli, que define atuação como “Performance como processo psicofísico: expressão e modulação da energia”, acredito que o movimento seja desencadeado por impulsos que não mantêm, necessariamente, nenhuma relação com a psicologia das personagens. Mais do que isso: investigo a concepção de “personagem” estabelecida na história do teatro no Ocidente e a partir das experiências dos meus estudos de caso – Moinho de Vento 1 e 3 – concluo que minha hipótese inicial se sustenta, isto é, “personagem” e “papel” são coisas distintas. Atrizg: (interrompendo) E como tu defines “personagem” e “papel”? C. Sã: [(...) o primeiro é uma ideia, enquanto o segundo é a atualização concreta de tarefas técnicas feitas pelo “atuante” – uma palavra que se refere ao sujeito enquanto ele treina, exercita e encena o “papel” – através de sua presença e ações.].ccxl Atrizg: (impaciente) Certo. A “personagem” é o que está no texto dramático e o “papel” o que eu faço em cena com essa “personagem”. É isso? Luka: Calma, Atrizg. 162 C. SÃ: [A personagem abraça duas instâncias. Sua primeira instância é a ideia que o leitor cria quando lê o “texto dramático” (também chamado de texto literário ou escrito), enquanto a segunda instância corresponde à ideia do espectador da percepção do “papel” representado no palco. (...) a ideia de “personagem” do “atuante”, derivada do texto escrito, é apenas a primeira instância do “personagem”. Por outro lado, a “personagem” criada pelo espectador quando ele percebe o “papel” é a “personagem” em sua segunda instância – o que o espectador vê e percebe como o “atuante” encena o “papel”. Mesmo que ambas as instância de “personagem” tenham o mesmo “nome”, por exemplo, “Gurduloo” do Moinho de Vento 2, e ambas sejam “ideias”, elas, no entanto diferem em conteúdo.].ccxli Luka: Ou seja, a “personagem” pode ter um significado para o atuante e outro completamente diferente para o espectador. C. Sã: Exatamente, Luka. Minha conclusão então, [(...) é que a ideia do “personagem” escrito (sua primeira instância para o “atuante”) não é sempre a mesma do “personagem” criado a partir da percepção do espectador sobre o “papel” (a segunda instância do “personagem” para o espectador).].ccxlii Atrizg: A conclusão, então, é que a “personagem” não é o elemento motor do Moinho de Vento. Certo? C. Sã: (eufórico) Isso. Matou a pau!!! (retomando) Ora, se não é a “personagem” que move o atuante, o elemento chave se encontra no “papel”. Atrizg: (impaciente) Mas o “papel” não está diretamente ligado à “personagem”? C. Sã: Calma. Vamos chegar lá. A criação do “papel” envolve etapas e procedimentos diretamente ligados ao atuante. Uma dessas etapas – em processos criativos fundados no texto dramático –, naturalmente, envolve a leitura e [(...) compreensão do personagem na peça escrita. (...) Esse tipo de leitura produz as “associações do ator”160 entre o que é lido e sua própria a existência. A partir dessas “associações”, novos papéis são criados a partir dos mesmos personagens, e esses novos papéis desenvolvem um “texto performático”161 original em oposição ao “texto dramático”162 escrito.].ccxliii Atrizg: Mas seguindo esse raciocínio a compreensão da “personagem”, feita pelos atuantes, não recairia novamente no paradigma da interpretação psicológica? 160 NB: (Grotowski: 2001b: 83-4). 161 NB: (Elam 1980: 3). 162NB: (Ibidem). 163 C. Sã: Não necessariamente, pois as associações podem ser desenvolvidas por diversas abordagens: sociológica, antropológica, literária, filosófica, mítica, semiótica, epistemológica... tudo depende do que e como o atuante pretende articular o “texto dramático” com sua experiência no mundo. Por isso considero que [Todo personagem pré-existente na peça escrita continua sendo um agrupamento potencial de ideias para ser “associado” pelo ator com sua própria vida.(...) Além disso, o “texto performático” poderia ser uma alternativa a qualquer significado estipulado previamente sobre a personagem que não o significado que o atuante lhe dá.].ccxliv Atrizg: (interrompendo) Ok... Ok... Mas é aí que reside o que move o Moinho de Vento? C. Sã: Calma, Atrizg. Essa é apenas uma faceta do que entendo e proponho como “papel”. Quando me reporto ao termo “papel”, antes de tudo, estou me referindo [(...) ao atuante em trabalho (...) e relaciono com as atividades que o atuante deve empreender. Tais atividades, ou deveres, apesar de ser um subproduto do “texto dramático”, não são exclusivamente esse texto. Em vez disso, elas surgem de ações orgânicas moldadas e organizadas (...), nas quais o atuante pondera o seu vigor.].ccxlv Atrizg: (pensativa) Hum... Tô começando a perceber onde queres chegar. Se tu consideras o “papel” como as atividades e tarefas que o atuante realiza em cena, então quer dizer que o trabalho com o “texto dramático” é apenas uma dessas atividades. C. Sã: Sim. E mais do que isso: quero dizer que o trabalho do atuante está voltado para como realizar essas tarefas com a qualidade de uma ação orgânica, ou seja, com ações onde mente e corpo estejam integrados num organismo dinâmico e vivo. É aqui que proponho o termo operacional “self performativo” para as práticas de atuação. Atrizg: O que consideras como “self performativo”? O atuante realizando suas ações em cena? C. Sã: De certo modo, sim. O mais importante é perceber o seguinte: [Sem estipular que o self do atuante suporta uma transformação completa em outro self durante o “texto performático”, (...) defendo a existência de certas qualidades desse “self” enquanto atua. Atuação aqui significa treinamento, oficinas, ensaios, apresentações e qualquer situação em que o atuante ativa sua conduta enquanto um observador o percebe conscientemente. Este modo de self é operacional e não um self diferente supostamente incorporado pelo ator.].ccxlvi Atrizg: (assertiva e brincando) Ou seja, como sempre dizes pra gente: “o atuante não incorpora a personagem; a personagem não baixa no atuante”. 164 C. Sã: (rindo) Isso, Atrizg. Desse modo, [Por ser um desafio técnico, o modo operacional do self performativo destaca a importância empírica do aprender fazendo.]. Atrizg: (seguindo o raciocínio) Daí a necessidade do treinamento psicofísico, isto é, exercitar essas qualidades técnicas necessárias para o “self performativo” independente de qualquer texto dramático ou de processo criativo. C. Sã: Exatamente. [Como essência e núcleo da atuação, o modo operacional do atuante, o modo self, sustenta um controle corporal que provoca os sentidos do espectador. Para o atuante, sua otimização funciona como uma meta a ser alcançado através da técnica.].ccxlvii Atrizg: É por meio desse domínio técnico que o atuante molda suas ações organicamente. Né? C. Sã: Foi bom você tocar no assunto das “ações orgânicas” de novo, pois acho importante esclarecer como uso e entendo essa expressão. [O termo “orgânico” no contexto das práticas do Moinho de Vento difere do uso comum do termo orgânico. Seu quadro de referência é a estimulação da psicofisiologia do atuante. As ações orgânicas resultam da integração dos movimentos com suas respectivas causas, onde o atuante pode avaliar e controlar as causas. Portanto, a ação orgânica deriva da integração máxima das faculdades orgânicas do atuante, incluindo a psique e a fisiologia desse atuante durante a realização de um movimento.].ccxlviii Atrizg: Isso é a coisa que o Luka me chamava bastante atenção, na época do processo criativo do meu solo teatral. Ele dizia que minhas ações não estavam orgânicas. Era nesse sentido Luka? Luka: (concordando com a cabeça e mexendo nas madeixas) Sim. C. Sã: [Para esclarecer a adequação teórica do termo “self performativo” na ação orgânica, vou reiterar suas especificações. Em primeiro lugar, é performativo porque ocorre nas circunstâncias das performances teatrais, onde algumas condições do organismo do atuante são postas em operação por meios técnicos. (...) Segundo, a busca do self em vez do corpo, alma ou mente é devida à ampla abrangência do self: ele compreende, em sincronia, o etéreo e o tangível, na medida em que ultrapassa os limites do corpo, da mente, da alma e personalidade, defendendo um envolvimento ideal de todo o organismo do atuante.].ccxlix Atrizg: (em desabafo) Manter esse envolvimento psicofísico ou orgânico em cena é uma coisa difícil. Engraçado que durante o treinamento isso parece mais natural, pois não fico preocupada em “representar” nenhuma personagem. Parece que assim as coisas fluem naturalmente. 165 C. Sã: Observando os Giteiros e meus alunos de teatro, tenho essa impressão também, Atrizg. Por isso faço a distinção entre “personagem” e “papel”. Ora, se o atuante se ocupasse com o “papel” e não com a “personagem”, tenho certeza que isso traria avanços para seu trabalho. Atrizg: (interrompendo) Quer dizer: se eu me ocupasse das tarefas que o Luka e eu estabelecemos para as marcações do meu solo teatral isso me deixaria mais relaxada para atuar organicamente. C. Sã: Exatamente. [Na criação do papel, o “atuante” se afasta de sua ideia do personagem. Outros elementos são dever/afazeres (ações orgânicas), o vigor (presença) e a marcação. O surgimento desses elementos resulta no papel concreto observado no palco. Assim, o papel é a presença do “atuante” (o seu vigor) percebido pelo espectador, seja pelo olfato, ou pela audição, pela visão, pelo tato ou até pelo paladar. Pertencente ao aqui e agora, o papel desenvolve sua própria existência esticando as ações orgânicas como deveres/afazeres.].ccl Atrizg: (concluindo o raciocínio) Então, o que move o Moinho de Vento é: o vigor, as ações orgânicas e a marcação (partituras). C. Sã: (num salto) Isso, garotinha!!! E [com isso, quero dizer que é possível que qualquer “atuante” teatral aprenda a desempenhar qualquer papel, por meio do aprendizado técnico. Em um espectro maior, o papel teatral é uma habilidade que pode ser ensinada e aprendida, de modo que possa fornecer ao “atuante” o vigor necessário para atuar em cena.].ccli Luka: O treinamento psicofísico, nesse sentido, nos ensina a mover o Moinho de Vento, com “vigor” (qualidade de presença) e “dever”/afazer/tarefa (ações orgânicas) por meio de marcações, que no GITA chamamos de partituras. C. Sã: Exatamente, Luka. [Enquanto o vigor, por um lado, sustenta a materialidade do papel, por outro, a tarefa prolonga essa presença, bombeando-a. Um conjunto de ações orgânicas formam a partitura do papel, cujo início e fim é demarcado pelo “atuante”. Muitas partituras compõem o papel concretizado no palco. Assim, o elemento menor do papel é a ação orgânica que, organizada em uma seqüência estrutural, forma uma marcação. Essa organização em marcações, e até mesmo a escolha dos limites de uma ação orgânica, é deliberada pelo “atuante”.].cclii Atrizg: Agora percebo que a “personagem”, realmente, deixa de ser o centro e motor do trabalho do atuante. C. Sã: E, no entanto, ela continua sendo valiosa para o processo criativo, desde que redimensionada nos termos que estamos conversando aqui – termos esses que tomam como paradigma de atuação a concepção de Zarrilli. Resumindo, então: [Enquanto o papel é encenado tecnicamente através de 166 habilidades precisas conquistadas pelo organismo do “atuante”, o personagem em sua primeira instância não é representado, mas funciona como um ingrediente para a formação de ações orgânicas, partituras e vigor do papel. Este personagem é uma ferramenta conceitual no processo técnico de encenação de papéis, um trampolim para a concretização do processo criativo. Daí se segue que o “atuante” não personifica ou representa a “personagem” em sua primeira instância, por meio de sua, respectiva e suposta, representação, como que subscrevendo-o na cena. O que o “atuante” faz é trabalhar tecnicamente em seu papel, que será percebido como a segunda instância do personagem pelo espectador. Essas inferências legitimam a sugestão de que aquilo que o “atuante” suporta no palco são deveres (tarefas). Para a percepção do espectador, no entanto, eles não ditam seu significado, mas instigam o seu poder criativo. Para o “atuante”, inversamente, o papel abrange ações orgânicas realizadas em cada fração de tempo através de conexões com objetos.].ccliii Atrizg: (coçando a cabeça, impaciente) Ai!!! Esse negócio de conexão e partitura neutra que não entra na minha cabeça. Não sei. Quer dizer: tenho dificuldade para colocar isso em prática. Luka: O C. Sã podia aproveitar o ensejo dessa conversa e nos apresentar, metodicamente, o exercício da partitura neutra que se articula com o exercício da conexão com objetos. E isso tudo, é claro, articulado a partir da distinção estabelecida entre “personagem” e “papel”. C. Sã: Posso tentar, Luka. Não posso garantir o “metodicamente” (risos). E se isso não for cansar o Zarrilli que agora só está nos ouvindo. Zarrilli: Fiquem à vontade. Está sendo muito bom recordar esses elementos da tua tese. E, ao mesmo tempo, perceber como teu pensamento e prática se articulam com o meu modo de pensar e desenvolver atuação. Atrizg: (interrompendo) De cara, me vem a dúvida: a criação da partitura neutra e o exercício de conexão com o objeto são a mesma coisa? C. Sã: O procedimento que nós trabalhamos aqui no GITA, por vezes, pode ser encaminhado com uma coisa só. Como nós nunca paramos para sistematizar “metodicamente”, como mencionou o Luka, às vezes fica confuso mesmo. Luka: A impressão que eu tenho é que colocamos nossa ênfase num aprendizado empírico e deixamos descoberta a comunicação e apreensão desse aprendizado por meio suportes didático- pedagógicos (vídeo, fotos e/ou ensaios acadêmicos sobre o assunto). Uma ótima oportunidade pra fazer isso agora, C. Sã. 167 C. Sã: (brincando) Certo, Luka. Eu me rendo: vou tentar ser metódico e didático. Atrizg: (brincando) Ai meu pai do céu! Agora me deu medo: O C. Sã sendo metódico. (risos). C. Sã: Vamos lá então. Eu vou tentar organizar o trabalho de criação das partituras neutras desenvolvidas com a utilização dos bastões, que tantas vezes já fizemos aqui no GITA. O procedimento que vou descrever, aprendi numa oficina que participei em Brasília (1993), ministrada por Luís Carlos Vasconcelos, diretor do grupo Piollin163. As etapas são as seguintes: [1– Trabalho de reconhecimento do bastão, individual e em duplas; 2– Experimento da força centrípeta (de dentro para fora), em duplas, com o bastão, até que uma sequência seja repetida nos seus detalhes; 3 –Pantomima da partitura fixa. Aqui, o bastão se torna “invisível”, mas a força centrípeta continua ligando o impulso da sola dos pés até a palma das mãos. Varia-se a posição dos integrantes da dupla: de costas, de lado, em diagonal, próximo, distante, tocando os narizes e todo e qualquer obstáculo que surja criativamente, a fim de fazer o corpo ser todos os olhos, como diz Phillip Zarrilli; 4 – Abstração da partitura, pela qual dissolve-se a pantomima de sustentar o bastão com as mãos, partindo-se à atitude de transformar os gestos a ela inerentes, prescindindo, necessariamente, de significado, história, drama, personagem, papel e intenção outra que não seja a manutenção da força centrípeta; 5–Subjetivação da partitura, onde um elemento caracterizador do papel entrará, no que chamamos “personagem”; Rememoremos sempre respirar durante a partitura, ritmados, se possível, com cada movimento, como em um t'ai chi ch'uan.].164 Atrizg: (surpresa) Gostei de ver, C. Sã. Arrasou!!! O meu grande problema com as “partituras neutras” não é seguir essas etapas. Eu até curto quando estamos realizando esses exercícios, pois percebo que, de fato, eu consigo ativar qualidades psicofísicas semelhantes às do treinamento. A questão é que depois de “prontas”, ou seja, quando chego na etapa da abstração e começo a ser estimulada pelo Luka a subjetivar a partitura, eu travo. Sei lá, parece que a estrutura que se forma, ou seja, a sequência de movimentos, me engessam. Eu não consegui usar nenhuma “partitura neutra” das sete que o Luka me fez criar no meu solo teatral, por exemplo. Luka: (interrompendo) Mas nesse ponto eu assumo minha responsabilidade, pois na condição de Diretor do teu solo eu não encontrei os caminhos e procedimentos necessários para estabelecer a 163 Companhia teatral paraibana criada em 1977 na cidade de João Pessoa por iniciativa de Luiz Carlos Vasconcelos, Everaldo Pontes e Buda Lira. A companhia procura desenvolver uma linguagem experimental própria por meio de pesquisas em diversas manifestações artísticas. 164 NT: Anotações didático-pedagógicas formuladas, e gentilmente cedidas, pelo professor Cesário Augusto Pimentel de Alencar para ministrar o conteúdo desse procedimento em aulas de graduação e/ou curso técnico de ator da ETDUFPA. Novembro de 2018. 168 relação entre as “partituras neutras” criadas e as marcações que terminaram por resultar no teu solo. E aqui, mais uma vez, fico com a impressão que se tivéssemos acesso aos escritos da tese do C. Sã, poderíamos minimizar alguns ruídos desses procedimentos que articulam o treinamento psicofísico com o processo criativo. Embora eu também destaque que o C. Sã esteja sempre compartilhando conosco, no GITA, a prática desses exercícios. Atrizg: A questão, Luka, é que quem dirige as montagens do GITA és tu. Então realmente senti falta desse socorro da direção pra destravar as “partituras neutras” no meu solo. C. Sã: Observo essa dificuldade da Atrizg nos meus alunos de teatro também. Então não precisa se envergonhar ou se culpar, não. O trabalho é árduo mesmo. Árduo pra quem dirige e pra quem atua. Eu sempre destaco na condução do processo das “partituras neutras” que o elemento fundamental é manter a conexão com o objeto que estruturou a partitura. É a conexão com esse objeto que garante o vigor dos impulsos durante a cena. No caso das “partituras neutras” criadas a partir do jogo com o bastão, é de suma importância manter a conexão com cada ponto que o bastão percorreu no corpo do atuante e a partir daí perceber e se conectar sempre com o peso, a força, o equilíbrio, o desequilíbrio, o ritmo, o foco especifico, a atenção ao ambiente, a economia dos gestos e os tempos da respiração que foram utilizados quando o bastão se fazia presente. Essa conexão com o objeto físico não pode ser perdida jamais, pois ela garante que o atuante continue a irradiar a mesma energia e empenho dedicados quando o objeto se fazia presente. Então, quando o objeto é subtraído o roteiro de movimentos estabelecido pelo atuante, deve perseguir esses impulsos como se ainda continuassem atados fisicamente ao objeto. Eu, particularmente, vejo uma grande vantagem nessas partituras criadas a partir da conexão com objetos e sem nenhuma relação prévia com o “texto dramático”: [o atuante explora suas possibilidades ‘orgânicas’ sem se preocupar com o personagem a ser retratado.].ccliv Atrizg: (interrompendo inquieta) O que achas disso, Luka? Luka: Concordo com o C. Sã. Mas acho que as circunstâncias práticas aqui no GITA – me refiro, principalmente, à dificuldade de acesso aos textos seminais de Zarrilli e da tese do C. Sã, ambos publicados em inglês – me levaram, naturalmente, a buscar outros meios para auxiliar o atuante na articulação entre treinamento e criação. C. Sã: E isso também é válido e legítimo, Luka, pois enriquece a prática criativa do GITA. 169 Luka: Também acho. Por isso na última montagem do GITA que dirigi – Fenda165, em 2017– ousei estabelecer as “partituras neutras” das atuantes a partir de elementos muito pessoais que colhi delas ao longo do processo criativo. Eu gostei do resultado, pois acredito que, de alguma forma, o que propus estabelece relação tanto com as improvisações estruturadas do Zarrilli, quanto com o exercício da conexão do C. Sã. Zarrilli: E isso constitui as idiossincrasias do GITA que, de um modo ou de outro, estabelecem relações interculturais com o saber fazer local, da cidade de vocês. ATRIZG: (cínica) Agora que descobri que o atuante é como um Moinho de Vento preciso dizer uma coisa importante: “Saco vazio não para em pé”. Portanto, acho que tá na hora de nos CONECTARMOS com as panelas que estão no fogão, antes que o “moinho de vento” me sopre pra bem longe. (risos) ZARRILLI: Concordo. Mas antes gostaria de me despedir oficialmente de vocês. Afinal encerramos nossas atividades hoje. ATRIZG: (abraçando-o de súbito) Ah, poxaaaa! Vou sentir muitas saudades de ti!!! (silêncio) Não esquece que nós estamos aqui, num pedacinho do Norte do Brasil, fazendo arte, tendo como elemento estruturante o treinamento com artes marciais e meditativas asiáticas que tu sistematizaste. ZARRILLI: (retribuindo o abraço apertado) Espero ter contribuído um pouco com o modo de vocês pensarem e fazerem teatro. LUKA: Pode ter certeza que contribuiu bastante. Esperamos te ver em breve, novamente por aqui. ATRIZG: (enxugando uma lágrima que desce do seu rosto enquanto vai buscar um presente escondido próximo à porta de entrada) A vó Leia fez questão de te mandar esse presente: é açaí congelado, embalado nesse isopor, pronto pra viagem. Pra tu não esqueceres da gente. Fim do Diálogo Quarto 165 NT: Livre adaptação teatral a partir do texto dramático “Rei Lear”, de Shakespeare. Sítio Arqueológito: Quadrante Intermediário 171 PLANO DE ESCAVAÇÃO: 1. Apresentação: Sítio arqueológito que concentra as reflexões no treinamento para atuantes, nos séculos XX e XXI; 2. Composição do texto: narrativa acadêmica estruturada com uso convencional dos recursos e ferramentas de pesquisa bibliográfica – livros, artigos de periódicos, etc. 3. Citações Originais: As Citações Originais em inglês se encontram no Sitio Arqueológito Virtual166 e aparecem sinalizados e ordenados em numeração romana ao final de cada citação. Figura 9 – Mapa Arqueológito 5: Sítio Arqueológito “Quadrante Intermediário” Fonte: Livre criação contendo os principais tópicos do Sítio Arqueológito. 166 Conferir na aba Citações Originais no link https://arqueologita2.cms.webnode.com/citacoes-originais/ 172 Escavação Preliminar. As discussões voltadas ao treinamento do atuante no Ocidente se intensificam e se desdobram em diversas abordagens desde o final do século XIX. As escavações que realizarei neste sítio arqueológito, no entanto, não tem por objetivo apresentar um panorama com as principais experiências de treinamento do atuante ocorridas desde então até os dias atuais. Diversas pesquisas e autores já cumprem essa demanda com sucesso167. O que se delineará aqui são questões introdutórias que objetivam apresentar alguns aspectos históricos e algumas questões teóricas relevantes que desencadearam e/ou precipitaram um debate fértil sobre o treinamento do atuante no Ocidente numa conjuntura na qual se procurava renovar os cânones da arte teatral. Esse é o ponto de partida sobre o qual se desdobrarão duas coordenadas de escavações: as questões interculturais pertinentes aos sistemas de treinamento do atuante no século XX e os novos desafios interculturais que se apresentam na conjuntura global aos praticantes de um sistema de treinamento do atuante no século XXI. Essas coordenadas me permitirão, em seguida, realizar as escavações do sítio arqueológito “Açaí com Zarrilli”, ocasião na qual o treinamento com artes marciais e meditativas asiáticas sistematizado por Phillip B. Zarrilli, e praticado pelo GITA na cidade de Belém do Pará, norte do Brasil, será abordado considerando os deslocamentos, descontinuidades e hibridismos culturais operados no contexto local. O treinamento do atuante no contexto da encenação moderna. Estamos bem próximos de encerrar a segunda década do século XXI (2019) e as abordagens voltadas ao treinamento de atuantes se multiplicam pelo mundo inteiro num fenômeno que apresenta diversas experiências de trocas, antropofagismos, deslocamentos, apropriações e/ou hibridações culturais. Desde que as pesquisas pioneiras dos russos Constantin Stanislavski (1863- 1938) e Vsevolod Meyerhold (1874-1940) – e na sua esteira o também russo Yevgeny Vakhtângov (1883-1922) e o francês Jacques Copeau (1879-1949) – inauguraram uma nova fase de reflexões sobre o trabalho do atuante no ocidente, ainda no final do século XIX e início do século XX, o entendimento e as propostas de treinamento têm sido elaborados e reelaborados de acordo com o contexto histórico, problemas e necessidades específicas que cada diretor teatral enfrentou – e 167A esse respeito consultar: “Twentieth Century Actor Training”, Organizado por Alison Hodge (2000); “Alquimistas do palco”, de Mirella Schino (2012); “A cena em ensaios”, de Béatrice Picon-Vallin (2008); “Systems of Rehearsal – Stanislavsky, Brecht, Grotowiski and Brook”, de Shomit Mitter (1992); “Stanislávski, Meierhold & Cia”, de J. Guinsburg (2001); “Gardzienice Polish Theatre in Transition”, de Paul Allain (1997). 173 continua enfrentando – junto ao seu ensemble (PICON, 2008, p.62) ao longo desses últimos cento e vinte anos. As transformações ocorridas no final do século XIX na Europa levaram, segundo Jean- Jacques Roubine (1939), ao surgimento de uma nova época para a arte teatral, isto é, o momento em que a encenação se torna autônoma e se emancipa da supremacia do texto; processo que, obviamente, se deu de modo lento através de diversas tentativas e proposições inovadoras voltadas aos elementos constituintes do espetáculo, isto é, cenografia, figurinos, iluminação, texto, música e trabalho do atuante. Os marcos históricos que Roubine (1998, p. 14) estabelece para esse novo período da arte teatral tem como ponto de partida o ano de 1887, quando Antoine fundou o Théâtre-Libre. Por diversas razões outros anos poderiam ser fixados como inaugurais – simbolicamente – de uma nova era do teatro, a da encenação no sentido moderno do termo: 1866, por exemplo, data da criação da companhia dos Meininger; ou 1880, quando a iluminação elétrica é adotada pela maioria das salas europeias... O fato é que as três últimas décadas do século XIX constituem, para nós, os primeiros 30 anos de uma nova época para a arte teatral. No cerne dessas transformações, inevitavelmente, a arte do atuante passará por um processo de reformulação de princípios, busca por novas técnicas de interpretação, novos modelos de atuação e invenção de soluções para os problemas que a encenação moderna apresentará aos atuantes e às demais técnicas do espetáculo teatral. E para Roubine (Ibidem.), no centro dessa nova época da arte teatral encontra-se a recém-criada figura do encenador, isto é, o artista “gerador da unidade, da coesão interna e da dinâmica da realização cênica. É ele quem determina e mostra os laços que interligam cenários e personagens, objetos e discursos, luzes e gestos” (p. 40). Desse modo, quando o paradigma do texto – radicado no ocidente desde a “Poética” de Aristóteles (324- 322 a.C.), século IV a.C. – passa a ser contestado e, aos poucos, cede lugar aos demais elementos cênicos do espetáculo é o encenador quem os articula numa linguagem criativa que dará origem, sentido e coesão à obra teatral. É importante lembrar que, até então, já existia a função do diretor de cena – ou diretor de palco, como também era conhecido –, figura responsável pela organização material do espetáculo, ordenamento e estruturação das tarefas práticas que deveriam ser realizadas antes, durante e depois da apresentação. Seu papel se voltava para as questões da maquinaria técnica do espetáculo teatral (PAVIS, 2005, p. 99-100). Sua função, portanto, é distinta do papel que o encenador passará a exercer no final do século XIX, pois enquanto o primeiro (diretor de cena) pode ser considerado como um “executor” de tarefas práticas, o último (encenador) será o encarregado pelo 174 engendramento da linguagem que interligará todos os elementos cênicos, uma espécie de “criador” e “montador” da obra teatral, como demonstra Roubine na citação supracitada. Por vezes, no entanto, a figura do diretor e do encenador se confundem na prática teatral desenvolvida em Belém do Pará. Na verdade, embora possamos estabelecer uma distinção entre elas, essas funções, com o decorrer do tempo, passaram a ser desenvolvidas de modo complementar por um único artista que em alguns casos se reconhece como “diretor” e em outros como “encenador”. A confusão só tende a aumentar se considerarmos que o termo para “encenador” no idioma de língua inglesa é “director”. Assim, muitas obras que foram traduzidas diretamente do inglês para o português, embora utilizem o “diretor”, podem estar se referindo à função do “encenador”. A opção que será usada aqui é pelos termos “diretor” e/ou “direção teatral”, termos que devem ser entendidos numa acepção de complementaridade com função do “encenador”, pois são esses termos que foram usados com maior recorrência na minha trajetória e formação teatral na cidade. Feita essa pequena, mas relevante, ressalva acerca das funções do “diretor” e do “encenador” e do uso indistinto dos termos em Belém, assim como a complementaridade entre o ofício desses artistas, segue as discussões que articulam o treinamento do atuante no contexto do surgimento do diretor no final do século XIX. Uma contribuição decisiva que o surgimento do diretor proporcionou à arte do atuante, segundo Roubine (1998, p.173), foi a tomada de consciência da necessidade imprescindível da formação de um elenco permanente para o desenvolvimento contínuo de uma linguagem estética peculiar ao grupo e, consequentemente, a experimentação e descoberta de técnicas específicas voltadas ao ofício do atuante demandadas, evidentemente, pela natureza peculiar da investigação de cada diretor. Essa tomada de consciência preparou e fertilizou as ideias que desencadearam práticas de formação e treinamentos, pois se antes, por motivos sobretudo econômicos, a prática comum era a reunião de um elenco heterogêneo para a produção de um determinado espetáculo, a partir do surgimento do diretor o desejo de aprofundar, investigar e renovar a arte teatral impulsionam nas primeiras décadas do século XX, segundo Alison Hodge (2000, p. 02), a criação e abertura de estúdios, ateliers, escolas e/ou laboratórios teatrais primeiramente por toda Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos. O termo “laboratório teatral”, aliás, merece especial atenção, como destaca a pesquisa de Mirella Schino (1956), quando afirma a historicidade da criação desses espaços considerados “laboratórios” e sua natureza: 175 Na Europa, o conceito de laboratório teatral pertence a história do teatro. É associado a uns pouco nomes, em particular ao de Stanislavski. É na obra de Stanislavski, pesquisada e realizada nos seus estúdios, isto é, neles “performada”, que a questão do laboratório teatral parece se materializar. Isso não se deu no Teatro de Arte, uma instituição que encenava “performances” do seu elenco, mas nos Estúdios, locais em que Stanislavski concentrava sua pesquisa artística pedagógica pura, amiúde não diretamente orientada a criação de performances. (...) Paradoxalmente, o termo laboratório teatral veio a ser empregado como o oposto de performance. Em todo caso, ele indica todos aqueles teatros nos quais a preparação de apresentações não é a única atividade. (SCHINO, 2012, p. VIII; grifos da autora) Além de Stanislavski, Schino (Ibidem., p.VIII-IX) cita outros autores que também desenvolvem atividades que vão ao encontro dessa acepção de laboratório teatral, começando pelos autores europeus e estendendo até algumas experiências latinas que ela considera relevantes: atuando nas primeiras décadas do século XX, os russos Evguêni Vakhtângov (1883-1922), Vsévolod Meierhold (1874-1940); e os franceses Jacques Copeau (1879-1949), Étienne Decroux (1898-1991); posteriormente a partir do final da década de 1950 o polonês Jerzy Grotowski (1933- 1999), o italiano Eugenio Barba (1936), os britânicos Peter Brook (1925) e Joan Littlewood (1914- 2002), a francesa Ariane Mnouchkine (1939), o japonês Tadashi Suzuki (1939), os colombianos Enrique Buenaventura (1925-2003), Santiago García (1928) e Patrícia Ariza (1948); e o brasileiro Antunes Filho (1929-2019). A esses nomes acrescento os nomes de Claudio Barradas (aluno e professor fundador da escola de Teatro da UFPA), Miguel de Santa Brígida (Cia Atuantees Contemporâneos e Cia Brasileira de Cortejos), Wlad Lima (Dramática Cia, Grupo Cuíra do Pará e Coletivas Xoxós), Marton Maues (Grupo Palhaços Trovadores), Aníbal Pacha (In Bust Teatro com Bonecos), Henrique da Paz (Grupo Gruta de Teatro) e Paulo Santana (Grupo Palha). Todos eles atuam como diretores168 há pelo menos 35 anos em Belém e suas pesquisas se articulam, em menor ou maior intensidade, pela natureza do laboratório teatral, tal como Schino o concebe. Todos esses diretores – os citados por Schino e os que atuam em Belém – comungam de alguns elementos estruturantes presente no que se convencionou chamar de laboratório teatral, isto é, uma investigação que articula um pensamento e prática sobre “corpo”, “treinamento”, “pedagogia” desenvolvida numa “esfera do teatro aparentemente desconectada da performance, porém na realidade intimamente ligada com ela” (Ibidem., p.XI). E historicamente as condições para o desenvolvimento desse tipo de investigação só se deram com o advento do diretor, no final do século XIX. Mas é claro que esse não foi o único fator 168 Ver escavação “Arqueologita da direção teatral em Belém do Pará”, a partir da pg. 243. 176 que desencadeou uma nova abordagem da arte teatral. Como já citado anteriormente, os outros dois fatores históricos determinantes para essa nova tomada de perspectiva da arte teatral e, consequentemente, uma guinada em direção ao desenvolvido do treinamento do atuante, segundo Hogde (2000, p.01), foram: o advento das pesquisas em ciência objetiva, e o conhecimento das tradições de treinamento do atuante desenvolvidas em vários países do Oriente também ocorridas na virada do século XIX para o século XX. Esse último fator irá desencadear questões de ordem intercultural que serão abordadas agora. Interculturalismo no treinamento do atuante no século XX. O advento da encenação teatral moderna ocorrido no final do século XIX precipita um debate em torno das questões metodológicas e pedagógicas voltadas ao treinamento do atuante no ocidente. Segundo Hodge (2000, p.07), duas questões chaves concentram a atenção dos diretores que procuram estabelecer princípios seguros para o desenvolvimento de um sistema de treinamento: Primeiramente, poderia um único e universal sistema ser alcançado, de modo que este sistema conteria um método completo de treinamento para o atuante? (...) Em segundo lugar, poderia a técnica fundamental de um sistema de atuação ser aplicada na criação de qualquer outra forma de teatro?cclv Essas questões norteadoras atravessaram, de algum modo, os estúdios e laboratórios teatrais do início do século XX. E qual não foi o fascínio quando diretores e atuantees, imbuídos pelo desejo de renovar sua arte, tomaram consciência da existência do rigoroso e disciplinado treinamento do atuante presente em tradições orientais como o Noh, Kabuki, Bunraku, Kathakali, Ópera de Pequim e Danças Balinesas? Essas tradições de desempenho do oriente foram, segundo Grande Rosales (1998-2001, p.186), as que exerceram maior influência nas pesquisas em desenvolvimento naquele início de século. No entanto, a “descoberta” dessas tradições por diretores e atuantes do Ocidente se deu de modo muito peculiar: algumas companhias e/ou atuantes da China, Japão, Índia e da ilha de Bali se deslocam e realizam apresentações artísticas em território ocidental. Esse contato cultural proporciona, portanto, no entendimento de Grande Rosales (Ibidem.) uma espécie de conhecimento indireto da natureza dessas tradições uma vez que elas são percebidas fora de seu contexto social e cultural de origem, em versões estilizadas e/ou limitadas, preparadas especialmente para o olhar estrangeiro. 177 Os exemplos mais significativos, e talvez também os mais conhecidos disso, ocorreram com o francês Antonin Artaud (1896-1948) e o alemão Bertolt Brecht (1898-1956). O primeiro entra em contato com as danças balinesas e cambojanas apresentadas no ano 1931, na França, por ocasião da Exposição Colonial de Paris. O impacto desse encontro será percebido em suas formulações do Teatro da Crueldade, síntese de seu desejo de renovação da linguagem teatral e da busca por um atuante que desenvolva uma “musculatura afetiva”, isto é, uma espécie de treinamento para o atuante para o desenvolvimento de uma linguagem física baseada em signos – e não em palavras ou psicologismos – estruturada em exercícios de respiração que, supostamente, mapeariam as emoções e produziriam a exata correspondência entre emoção e gesto (ARTAUD, 1984, p.151). O segundo, por sua vez, entra em contato com o atuante chinês Mei Lang Fang numa apresentação ocorrida em 1935, em Moscou. O encontro exerce significativa importância, segundo Ariane Guerra Barros (2016, p. 40), para que o teatrólogo alemão elabore um dos conceitos mais emblemáticos de seu pensamento, isto é, o famoso “efeito V-Effekt”. O ensaio intitulado “Efeito de distanciamento nos atores chineses” inaugura as reflexões de Brecht voltadas a um tipo de representação na qual o atuante deve romper a “quarta parede” e mostrar tanto a personagem quanto a sua condição de intérprete da obra (1967, p.104-14). A passagem do atuante chinês por Moscou teria gerado ainda impactos consideráveis em Stanislavski e Meyerhold como afirma Guerra Barros (Ibidem.): “Em Meyerhold, o deslumbramento se deu através do jogo musical, e em Stanislavski pela incrível habilidade do atuante em seus movimentos limitados, porém livres”. A esses exemplos Nicola Savarese (1945) acrescenta outros autores onde se pode observar as influências e as correspondências precisas com as tradições orientais: a proposta do atuante como uma “Supermarionete”, formulada por Edward Gordon Craig (1972-1966), e sua correspondência com a atuação do atuante hindu; a correspondência da biomecânica de Meyerhold com a tradição do Kabuki; e as propostas de treinamento do atuante de Jacques Copeau tendo influências da tradição do Noh (1992, p. 15). A partir da segunda metade do século XX, os autores que também sofreram forte influência dessas tradições do teatro do Oriente, segundo Grande Rosales (1998-2001, p.186), são: as produções de montagens shakespearianas de Ariane Mnouchkine (1939) nas quais se utiliza de elementos provenientes das tradições do Japão e da Índia; da Índia também vem a forte influência e referência de Peter Brook (1925), isto é, o Kathakali; e Robert Wilson (1941) por sua vez, 178 empresta elementos das tradições do Japão que inspiram também sua visão de atuação que exige do atuante uma técnica rigorosa e precisão. A esses se acrescenta ainda a concepção de “Teatro Pobre” de Jerzy Grotowski, formulação intimamente ligada à sua proposta de treinamento de atuante, reflexo da influência de suas viagens para o Oriente ocorridas em 1956 para a Ásia Central, em 1962 para a China e 1968 para a Índia. O autor indiano Rustom Bharucha (1953), crítico severo das abordagens interculturais que os diretores europeus realizaram na Índia – como veremos mais adiante –, destaca inclusive o papel importante do trabalho de treinamento de atuante desenvolvido por Grotowski, pois sua proposta ajudou a desmistificar algumas ideias e associações equivocadamente presentes na concepção de Gordon Craig voltados ao treinamento do “supermarionete”. Segundo Bharucha (2005, p.25), isso se deveu, fundamentalmente, pela visita de Grotowski a Índia que favoreceu o amadurecimento de seu conhecimento sobre o yoga, técnica de movimento dos olhos e dos mudras. E, é claro, a valorosa contribuição da Antropologia Teatral, cujo representante mais renomado no Brasil é Eugenio Barba, autor que, segundo Ian Watson (2000, passim), desenvolveu um sistemático estudo das tradições do Oriente, com a finalidade de entender a fonte e os princípios da “presença” do atuante. É importante destacar que Barba, também segundo Bharucha (Ibidem., p. 25), foi um dos primeiros europeus a estudar o processo de treinamento no centro de Kalamandalam, em Kerala. Qual o impacto desses “encontros” entre as tradições do Oriente no teatro do ocidente? Houve um processo de assimilação, hibridização, deslocamento, apropriação cultural e/ou interculturalismo entre esses diretores e as tradições do Oriente? Podemos considerar que a recíproca é verdadeira, isto é, houve impactos, mudanças e/ou influências do teatro do Ocidente nas tradições Orientais? Para responder a essas questões é preciso lembrar, primeiramente, que o contexto histórico e o cerne das preocupações dos diretores ocidentais giravam em torno do desejo por renovação da arte teatral; fundamentalmente, da emancipação dos elementos cênicos – cenografia, figurino, música e interpretação dos atuantes – do jugo do texto ou do que se convencionou chamar de textocentrismo, isto é, uma espécie de sacralização do texto (tragédia, alta comédia, etc.) ocorrida a partir do século XVIII principalmente na França, trazendo como consequência direta para o trabalho do atuante uma espécie de aprendizado cuja centralidade da abordagem, segundo Roubine (1998, p.46) estava voltada para a “problemática da encarnação de um personagem e da dicção, 179 supostamente justa, de um texto”. Atravessando e sustentando esse ideal textocentrista, encontrava- se uma teoria estética calcada na imitação e na teoria das três unidades dramáticas (ação, espaço e tempo) que ocasionou o psicologismo e naturalismo na abordagem e interpretação das personagens. Não estava no horizonte das preocupações daqueles diretores, no entanto, uma abordagem etnológica que considerasse as tradições do Oriente na perspectiva da cultura nativa. O que se impõe, segundo Grande Rosales (1998-2001, p.186), é muito mais o desejo de renovar a própria cultura teatral do que produzir qualquer tipo de abordagem mais ampla que considerasse o contexto cultural e os paradigmas de atuação implícitos na prática de cada tradição do Oriente e, por isso mesmo, a autora não considera que nesse primeiro momento tenha ocorrido algum tipo de hibridização com as tradições orientais. A primeira coisa a ser considerada, portanto, é o modo como o olhar dos diretores do Ocidente percebem essas tradições do Oriente, isto é, como modelos alternativos de atuação cujo fundamentos culturais – tais como: linguagem expressivamente codificada; treinamento de atuante tecnicamente rigoroso e disciplinado voltado à múltiplas habilidades (canto, dança, poesia, música); visão psicofísica integrando corpo-mente, corpo-espírito, corpo-emoção; e trabalho de qualidade e domínio da energia/presença em cena fundado em técnicas de respiração holísticas – atendem aos seus próprios anseios. Desse modo, para Grande Rosales (1998-2001, p. 188) – e nisso estamos de acordo –, trata-se de um processo de apropriação cultural que objetiva solucionar questões e problemas que dizem respeito somente as nossas próprias categorias Ocidentais. Para se ter uma ideia do quanto essa assimilação das técnicas do Oriente foi parcial, restrita aos interesses de cada diretor e superficialmente entendida quanto a sua natureza de origem basta procurarmos entende-las a partir dos paradigmas de atuação nas quais cada uma delas foram engendradas, como nos mostra Zarrilli (2002, p. 85-6) na longa, mas relevante citação abaixo: A compreensão de atuação de cada cultura como uma forma de encarnação é baseada em paradigmas nativos do corpo (incluindo a expressão vocal), na relação corpo-mente e consciência. Por exemplo, para entender os modos tradicionais de atuação na China, no Japão ou na Coréia, é preciso entender a medicina chinesa (ou suas variações) e, principalmente, o conceito/princípio de qi (ki japonês e coreano), entre outros. Como os artistas chineses o descrevem, um bom atuante deve "irradiar presença" (faqi), ao passo que um mal desempenho não teria presença (meiyou qi) (Riley 1997: 206). Essas suposições geralmente desarticuladas sobre como um performer ativa psicofisicamente essa “presença” informam e animam o processo de atuar tanto no treinamento quanto no palco. Para compreender a atuação na Índia, seria necessário compreender as teorias vibratórias do som que proporcionam uma visão dos aspectos psicofísicos da expressão 180 da voz e suas implicações metafísicas; a fisiologia/filosofia do yoga que fornecem uma compreensão detalhada do que acontece com o corpo físico e o corpo “sutil” ao praticar exercícios; e Ayurveda (literalmente, a “ciência da vida”), o sistema nativo de medicina que fornece uma compreensão humanista do corpo, fisiologia e saúde. Central para todos os três paradigmas é uma compreensão indiana do papel chave que o fluxo interno do vento (prana vayu) e o despertar da energia interior (kundalini sakti) percorrendo a linha da coluna, exercendo animação e expressão vocal.cclvi Pelo exposto por Zarrilli dá pra perceber a natureza, dimensão e profundidade dos paradigmas presentes nas tradições do Oriente. Mas, nesse primeiro momento de contato entre culturas teatrais e modus operandi muito distintos, esses paradigmas estrangeiros de atuação não são considerados, entendidos e/ou percebidos de modo global e profundo, pois, além disso não está no foco de interesse dos diretores ocidentais – e neste sentido, podemos verificar um forte traço etnocêntrico e/ou eurocêntrico nessa abordagem –, as categorias conceituais de que dispunham eram incapazes de apreender teoricamente a concepção holística que se apresentou aos seus olhos ocasionando, segundo Grande Rosales (1998-2001, p.188), “não tanto a rejeição intencional das formas orientais genuínas”, mas uma espécie de “miopia para estas formas”. Mas se por um lado é necessário fazer essa ponderação acerca da natureza e alcance do processo de interculturalismo entre os diretores teatrais do Ocidente e as tradições do Oriente, ocorrido no início do século XX, por outro não podemos deixar de considerar a importância e o impacto desse acontecimento para a arte teatral do Ocidente, pois é a partir desse processo intercultural – inicialmente, de alcance parcial – que o impulso de renovação e/ou reforma teatral ganha força e consistência, sobretudo no que tange ao treinamento do atuante. Aliás, respondendo a última questão que levantamos sobre os impactos desse processo intercultural para as tradições do Oriente, é preciso ter em mente que um movimento semelhante por renovação estava em curso no Japão por acreditar que as formas como o Noh e o Kabuki haviam se tornado modos anacrônicos de arte. Desse modo, uma série de produções teatrais foram realizadas tendo os textos clássicos de Shakespeare como o eixo estruturante de montagens que adotaram o modelo realista de atuação Ocidental. Segundo Grande Rosales (Ibidem., p.191), ainda em 1885 uma iniciativa pioneira foi realizada com a peça “O mercador de Veneza” sendo montada toda no estilo Kabuki. Posteriormente as peças de Shakespeare, “Júlio César”, em 1901, e “Hamlet” em 1911, são traduzidas para o idioma japonês dando novo impulso ao movimento de renovação do teatro no Japão que culminará com a fundação do Tsukiji, um pequeno teatro criado por Osanai Kaoru, em 1924, que adotou a dramaturgia realista de autores como o norueguês Henrik Ibsen 181 (1828-1906) e russo Anton Chekhov (1860-1904) como modelo de atuação. O objetivo dessa iniciativa no Japão, visava modernizar a linguagem teatral diante dos novos valores da sociedade japonesa daquela época. Podemos considerar, então, que o processo de interculturalismo ocorrido no século XX, manifestou seus impactos, deslocamentos, assimilações e/ou apropriações culturais nas duas vias de contato: na cultura de origem e na cultura de recepção. Para compreender esse fenômeno cultural complexo e global e escapar de inferências superficiais é necessário considerar as idiossincrasias históricas e regionais, as questões antropológicas, sociais, estéticas, econômicas e políticas. Alguns autores importantes ajudam a pensar essas questões. O primeiro que merece atenção por suas considerações, reflexões e, sobretudo, críticas ao que considerou colonialismo cultural e/ou etnocentrismo relacionados à temática do interculturalismo no teatro é o autor indiano Rustom Bharucha (1953). A primeira consideração do autor nos alerta para os diferentes níveis de apropriação cultural que estão em jogo no processo de trocas entre culturas, intercâmbio apenas aparentemente desinteressado dos valores ideológicos e políticos da cultura dominante. Desse modo, Bharucha (2005, p. 01) afirma: Eu acho que deveria ser reconhecido que as implicações do interculturalismo são muito diferentes para as pessoas em países empobrecidos, “em desenvolvimento”, como a Índia, e para seus compartes de tecnologia avançada, sociedades capitalistas como os Estados Unidos, onde o interculturalismo tem sido fortemente estimulado tanto enquanto filosofia quanto forma de negócio.cclvii (grifos do autor ) Trata-se de uma postura que denuncia as distorções implicadas no processo de interculturalismo que, na visão do autor, inevitavelmente se estabelecem por uma ideologia e hierarquia econômica entre nações de economia rica e pobre. Na perspectiva de abordagem dos diretores europeus, no entanto, esse confronto cultural, segundo Grande Rosales (1998-2001, p. 188), é atenuado por filtros idealistas que romantizaram essas relações, dando a entender que ocorria uma espécie de “encontro amoroso” entre a cultura de origem (tradições do Oriente) e a cultura de recepção (contexto dos diretores europeus). Exemplo disso seriam os filtros usados por Eugenio Barba (“teatro eurasiano”), Peter Brook (“cultura dos vínculos”), e Ariane Mnouchkine (“influência do teatro oriental”). Para a autora, no entanto, indo ao encontro da visão de Bharucha, em todos esses casos o que ocorre é uma apropriação da cultura de origem. A emblemática obra de Bharucha intitulada “Theatre and the World – Performance and the Politics of Culture”, reúne seus ensaios – escritos entre 1981 e 1989 – problematizando, dentre 182 outras coisas, o tema do interculturalismo no teatro em forte tom de crítica às experiências ocorridas na Índia. Logo na primeira parte dessa obra o autor indiano demarca sua posição crítica em relação às supostas experiências de trocas culturais ocorridas em seu país. Ele compreende essas experiências como uma “colisão de cultura”, uma espécie de choque cultural no qual o teatro indiano passou sutilmente a ser explorado em suas tradições e convenções (2005, p. 13). E o ponto de partida desse posicionamento considera que no caso particular da Índia, o interculturalismo não se deu por um processo de escolha – diferente do que ocorre nos Estados Unidos a partir da década de 1960 – e sim por imposição ligada ao colonialismo, sistema no qual a autoridade do colonizador pressupõe e impõe sua superioridade cultural, obliterando assim a possibilidade de um intercâmbio equilibrado entre as culturas envolvidas. Sua análise atravessa a obra e o pensamento de diretores como Gordon Craig, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e Peter Brook – dentre outros – tecendo considerações críticas sobre o modo como cada um deles se relacionou e interpretou as tradições do teatro indiano. Iniciando por Artaud, sua crítica se volta, fundamentalmente, à falta de contextualização histórica na abordagem das danças balinesas e cambojanas, resultando numa visão superficial e reducionista que agregou, forçosamente, tradições teatrais complexas e muito distintas – como Kabuki, Noh e Kathakali – sob a premissa conceitual e mistificadora de um “teatro Oriental”. Desse modo dispara o autor indiano (Ibidem., p.14-6): “O ‘teatro oriental’ foi um constructo para Artaud, não uma prática. Ele nunca tentou situar sua experiência alucinatória do teatro balinês dentro de um contexto imediato e performativo”.cclviii Desmistificar o Oriente dessa aura mágica e supervalorizada era de fundamental importância para Bharucha para que se pudesse considerar a materialidade histórica e regional de cada tradição que entrava em contato com os diretores ocidentais. É neste sentido que suas considerações sobre o trabalho de Grotowski ganham especial atenção, na medida que a experiência do diretor polonês que visitou a Índia pela primeira vez em 1968 será decisiva para desmistificar várias ideias que se mantinham firmes sobre o “teatro Oriental”. Segundo Bharucha (Ibidem., p.22), um dos exemplos que ilustram bem essa nova perspectiva de abordagem feita pro Grotowski é sua montagem teatral Shakuntala, uma produção realizada em 1960 no Teatro das Onze Filas: Recordando a produção em 1968, Grotowski admitiu que um de seus principais impulsos foi "criar uma performance que pudesse dar uma imagem do teatro oriental, não autêntico, mas como os europeus o imaginam". E assim foi uma imagem irônica das imagens sobre o Oriente, como algo misterioso e enigmático” (Osinski 1980, p.19). O que foi exemplar 183 sobre a Shakuntala polonesa, porém, não foi sua celebração de estereótipos que evocam o Oriente exótico, mas sua travessura deliberadamente paródica e artística de ícones orientais.cclix Quando reflete especificamente acerca do modo como o diretor polonês concebeu e foi amadurecendo sua proposta de treinamento psicofísico para os atuantes do seu grupo, Bharucha (Ibidem., p.13) destaca, positivamente, que o diretor do Teatro Laboratório mesmo tomando como ponto de partida algumas técnicas emprestadas da Índia como o trabalho de movimento dos olhos, mudras, coordenação e articulação dos membros e yoga ele teria sido perspicaz em perceber que essas técnicas e/ou convenções do Oriente não poderiam ser simplesmente traspostas e incorporadas ao seu método e/ou pedagogia de treinamento psicofísico. O contato direto com a cultura indiana proporcionou conhecimento in loco e as condições necessárias para que Grotowski percebesse, ao longo do tempo, a natureza complexa e inflexível do sistema de convenções que se encontrava presente na tradição do Kathakali, por exemplo. Insistir numa transposição de técnicas descontextualizadas de sua cultura de origem, invariavelmente, levaria a uma mera estilização estereotipada de movimentos que “nunca poderiam ser codificados como mudras”cclx (Ibidem., p.25), por exemplo. O destaque positivo que o autor indiano faz a Grotowski também se deve à recusa do virtuosismo no uso das técnicas do diretor polonês. Segundo Bharucha, a abordagem pragmática de treinamento psicofísico do diretor polonês fora desenvolvida objetivando encontrar o seu próprio método de treinamento e não a apropriação de técnicas indianas. “Consequentemente, quando técnicas e convenções indianas eram emprestadas, elas nunca eram simplesmente executadas como peças de um show. Pelo contrário, elas foram usadas como material por seus atuantes”cclxi (Ibidem., p. 25). Outro aspecto relevante destacado por Bharucha (Ibidem., p.26) sobre Grotowski é a percepção da dimensão ética fortemente arraigada nas tradições de treinamento do Oriente. Diferente das práticas esportivas desenvolvidas no Ocidente onde o espírito da competição leva os atletas a treinar objetivando melhor rendimento em busca da vitória sobre o adversário, o treinamento das tradições do Oriente articula-se e fundamenta-se nos princípios das artes marciais, princípios que levam o praticante ao cultivo do autoconhecimento, uma busca para compreender e superar seus próprios limites. Embora o autor indiano faça destaques positivos nas questões apresentadas acima, ele não poupará críticas a teoria universalista do teatro apregoada pelo americano Richard Schechner 184 (1934), a sua “ética ambivalente dos empréstimos transculturais” (Ibidem., p.13) e o uso que o mesmo faz do ritual no teatro. Para Bharucha, o criador dos Estudos da Performance é o grande responsável pela propagação das práticas e do conceito de “interculturalidade” que se disseminou no final da década de 1960, principalmente nos Estados Unidos. Sua crítica parte de uma citação do norte-americano presente em The End of Humanism. Nela Schechner (1982, p.19) problematiza justamente a questão relacionada ao teatro intercultural e o colonialismo. Schechner afirma: As pessoas não questionaram muito se esse interculturalismo – ou essa afeição pelos exercícios de Kathakali, a precisão do drama de Noh, a simultaneidade e a intensidade da dança africana – era uma continuação do colonialismo, uma exploração adicional de outras culturas. Havia algo simplesmente comemorativo em descobrir quão diverso o mundo era, quantos gêneros de desempenho havia e como poderíamos enriquecer nossa própria experiência tomando emprestado, roubando, trocando.cclxii Objetando cirurgicamente essa passagem, Bharucha (2005, p. 14) afasta qualquer entusiasmo comemorativo do entorno dos processos interculturais realizados com o teatro na Índia e assegura categoricamente que “tomar emprestado, roubar e trocar de outras culturas não é necessariamente uma experiência ‘enriquecedora’ para as próprias culturas”cclxiii. E arremata o argumento se utilizando das palavras do próprio Schechner: “O interculturalismo pode ser libertador, mas também pode ser uma ‘continuação do colonialismo, uma exploração adicional de outras culturas’”cclxiv. Desse modo, Bharucha se posiciona em favor da cultura nativa, do teatro indiano e suas raízes regionais, e defende que qualquer afirmação cultural deve ser legitimada por seus próprios representantes. Para tanto, em contraposição a perspectiva “intercultural” de Schechner irá propor uma abordagem “intracultural” (2005, p.39): Talvez, em vez do interculturalismo, o que precisamos na Índia seja uma consciência mais forte de nossas afinidades intraculturais. É somente respeitando as especificidades de nossas culturas "regionais" que nós, na Índia, podemos começar a entender o quanto temos em comum. Assim também, em nível internacional, acredito que nós (no Ocidente e no Oriente) precisamos desenvolver uma consciência mais clara, mais precisa e histórica das particularidades de culturas específicas. Nesse estágio, parece que as particularidades estão sendo prematuramente dissolvidas em categorias maiores e nebulosas, como a "tradição euro-americana", para não mencionar "a tradição indiana".cclxv A lente “intracultural” proposta por Bharucha focaliza a diversidade cultural de uma nação como a Índia e busca compreender, fortalecer e estabelecer laços de integração no âmbito da 185 própria cultura nativa ao invés de priorizar as relações com as culturas estrangeiras. É como se ele adotasse a máxima do oráculo de Delfos “Conhece-te a ti mesmo” – citada por Platão nos diálogos “Protágoras” (343B), “Fedro” (229E), “Alcibiades I” (124A, 129A, 132C), “Cármides” (164D), Leis (II.923A) e “Filebo” (48C) – como paradigma de abordagem da cultura e afirmasse: para conhecer os “outros” é necessário conhecer nossa própria cultura. Difícil não estabelecer um paralelo com a enorme diversidade cultural presente no Brasil e perguntar: conhecemos as especificidades das diversas culturas presentes nas cinco regiões brasileiras? Em que profundidade e em qual nível de consistência se dá esse conhecimento? O mesmo raciocínio se aplica ao estado do Pará, segundo maior em extensão territorial do Brasil e cujo tamanho supera o de países como França, Espanha, Venezuela e até Angola. Localizado na região norte do Brasil, o Pará é um estado com a dimensão de uma nação, dividido em 144 municípios, com boa parte do território recoberto pela imensa diversidade de fauna e flora da maior floresta tropical do mundo, a Amazônia; abriga a maior província mineral do mundo, a Serra dos Carajás, de onde se extrai, segundo a IBRAM – Instituto Brasileiro de Mineração, minério de ferro, manganês, cobre e ouro; possui uma extensa bacia hidrográfica dividida em sete macrorregiões169: Região da Calha Norte, Região do Tapajós, Região do Xingu, Região do Tocantins-Araguaia, Região de Portel-Marajó e Região da Costa Atlântica-Nordeste; são mais de trinta etnias indígenas, segundo dados da FUNAI170, espalhadas em terras e reservas regularizadas, delimitadas, em estudo e/ou encaminhadas para regularização; e ainda possui sessenta e duas comunidades quilombolas das quais, segundo o ITERPA171, cinquenta e três já possuem título definitivo de terras. Com toda essa magnitude eu não me atrevo a dizer que conheço nem metade das especificidades culturais presentes em meu estado. Por isso reconheço que minha ARQUEOLOGITA se encontra delimitada às relações culturais estabelecidas na cidade de Belém do Pará, na sua estreita relação com a Escola de Teatro e Dança da UFPA e a prática de alguns grupos de teatro da cidade. 169 Dados da Secretaria Estado de Meio Ambiente do Pará que seguem de acordo com a Resolução do Conselho Estadual de Recursos Hídricos nº 004 de 03/09/2008 (baseada nas Resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos nº30 de 11/12/2002 e nº32 de 15/10/2003). 170 Dados disponíveis em acessado em 09/07/2019. 171 Dados disponíveis em . Acessado em 09/07/2019. 186 A perspectiva “intracultural” de Bharucha, quando voltada para realidades como a da Índia, do Brasil ou particularmente ao estado do Pará, nos faz perceber a importância de um olhar atento à riqueza e complexidade das relações culturais que ocorrem dentro de uma mesma cultura. E assim o complemento da premissa do oráculo de Delfos me parece ir ao encontro do pensamento do autor indiano: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”. Trata-se, portanto, de um raciocínio e abordagem indutiva que se contrapõe, de modo categórico, ao interculturalismo universalista de Schechner que, no entendimento de Bharucha, se apropriou de várias modalidades e formas de ritos de culturas espalhadas pelo mundo, descontextualizando, ignorando e/ou deformando suas ligações míticas e místicas, além da estreita relação social que os ritos mantêm com as sociedades. Para o autor indiano (Ibidem., p.28), quando Schechner se utiliza da cultura do “outro” como um espelho para melhor compreender e fortalecer o entendimento da sua própria cultura ele dá margem para uma abordagem problemática: O problema surge, creio eu, quando a preocupação com o “eu” supera a representação de “outras” culturas, o que eu argumentaria ser o caso da escrita intercultural de Schechner. Pode-se aceitar sua crença de que um confronto com “o outro” pode aprofundar “nossa compreensão de quem nós somos”, o outro ser, “outro e um espelho ao mesmo tempo”. A dificuldade surge, no entanto, quando o Outro não é outro, mas a projeção do seu ego. Então, tudo o que se tem é uma glorificação do eu e uma cooptação de outras culturas em nome da representação.cclxvi Bharucha cita como exemplo desse tipo de abordagem, centrada nos próprios critérios e princípios euro-americanos, a representação do festival de Ramlila feita por Schechner. Segundo o autor indiano (Ibidem., p.29-30), o criador dos Estudos da Performance incorre em diversos equívocos ao registrar um festival da dimensão cultural do Ramlila: observação, descrição e registro documental apenas no nível elementar do ambiente do festival; descontextualização das ações descritas com o quadro sociocultural e religioso dos hindus dentro e ao redor de Varanasi – cidade considerada a capital espiritual da Índia; desconhecimento e descontextualização das micro relações presentes nos ritos e cerimônias diárias dos indianos com o festival; mitos estudados apenas no contexto das performances do festival; desconhecimento dos modos ambivalentes que os indianos mantém com o Ramlila. Para o autor indiano (Ibidem., p.29), tudo o que Schechner conseguiu ao tentar representar o Ramlila foi oferecer sua própria visão do festival “que ele documenta através de trechos de seu caderno, imagens aleatórias, entrevistas, mapas, gráficos e analogias para estímulos culturais especificamente euro-americanos”cclxvii. 187 Implícita na abordagem intercultural de Schechner estaria, no entender de Bharucha (Ibidem., p.31), uma metodologia segundo a qual o norte-americano toma como ponto de partida analogias entre diferentes contextos culturais. Então, sem reservas, identifica e isola uma estrutura/processo ritual, descontextualizando-a de suas relações socio-econômica-religiosa- estética para, então, aplicá-la num outro contexto totalmente diverso do original sob o pressuposto teórico de que “uma tradição cultural pode ser ‘traduzida’ em outro padrão pertencente a outra tradição cultural”cclxviii. O autor indiano (Ibidem., p.32) cita dois exemplos do modo como isso se deu em montagens do The Performance Group, dirigidas por Schechner: 1 – no intervalo de “Mãe Coragem” serve-se sopa, pão e queijo suíço aos espectadores em analogia a distribuição de carne de porco em alguns festivais da Nova Guiné; 2 – o “ritual de nascimento” performado na montagem “Dionísio em 69” é uma analogia tomada do Asmat, um grupo étnico também localizado em Nova Guiné. Em ambos os casos, segundo Bharucha, o deslocamento de contexto da ação ritual é colocado a serviço da interpretação que o diretor norte-americano faz; porém em tais analogias não está assegurado que o significado da ação ritual, que se encontra incorporado inexoravelmente à estrutura social da cultura de origem, seja incorporado à estrutura social da cultura que o performa. Logo, ficaria comprometida qualquer espécie de “restauração de comportamento”. Desse modo, as analogias propostas por Schechner, no entender de Bharucha, só produziriam falsos significados fora de seu contexto de origem. O autor indiano (Ibidem., p.33) então questiona: Mas e a cultura do “outro”? Seus rituais estão ali simplesmente para serem usados de maneira arbitrária e pessoal? É justo fazer uma cerimônia que faz parte de sua herança, despojá-lo de seu significado original e depois reproduzi-lo por sua “ação física”? Essas questões, que podem parecer ingênuas e redundantes para a maioria dos pensadores sociais, dizem respeito à ética da representação. É com essa questão em mente que eu questiono a opinião de Schechner de que “qualquer ritual pode ser removido de sua configuração original e executado como teatro – assim como qualquer evento cotidiano pode ser (SCHECHNER), 1983, p. 150)”.cclxix Por esse viés me parece que a perspectiva intracultural de Bharucha reivindica uma postura e responsabilidade ética no uso dos ritos. A paráfrase do oráculo de Delfos poderia ser assim elaborada: “Conheça os ritos a partir de sua cultura de origem para, só então, refletir sobre o seu significado dentro de sua própria cultura”. Se dependesse de Bharucha, acredito que a premissa parafraseada de Delfos seria inscrita em pórticos espalhados por toda a Índia, servindo de alerta 188 contra a prática que ele denominou de “turismo cultural”, isto é, o interesse e acesso desenfreado de estrangeiros pelo contato direto para conhecimento e registro dos mais diversos rituais. Nesse ponto a principal questão discutida por Bharucha é voltada as consequências perniciosas do comércio e da indústria do turismo sobre as práticas rituais e a integridade das formas tradicionais de teatro. Ele observa (Ibidem., p.36) como esse “turismo cultural” transformou a cultura num produto de mercado, gerando distorções e contradições nas formas tradicionais de teatro e terminou por pressionar, impulsionar e inventar novas “tradições” estéticas para o teatro indiano, todas, evidentemente, “projetadas e apropriadamente editadas para o consumo estrangeiro”cclxx, negligenciando, contudo, a preservação das genuínas tradições teatrais na Índia. A consequência mais grave, no entanto, seria o esvaziamento do conteúdo espiritual e/ou religioso dos ritos – uma espécie de desvinculação de seu conteúdo mítico – que também ocorre nas formas tradicionais de teatro indiano. Segundo Bharucha (Ibidem., p.37), rituais passaram a ser fabricados com objetivo exclusivo da apreciação dos turistas: Já é ruim se um ritual da Índia, por exemplo, for travestido no Ocidente, mas é pior quando esse ritual perde sua importância na própria Índia. Os praticantes de muitas danças e rituais tradicionais da Índia não mais se apresentam para os deuses; eles se apresentam para turistas, pesquisadores e especialistas. Em pagamento por seu desempenho, os atuantes não mais recebem prasad ou a bênção dos deuses – eles ganham dinheiro e, às vezes, nada. Afinal, não há “direitos autorais” em performances tradicionais.cclxxi (grifo do autor) O autor indiano tem o cuidado de distinguir essa prática do “turismo cultural” da proposta realizada por Eugenio Barba. No primeiro caso, segundo Bharucha (Ibidem., p. 37), ocorria uma “pirataria cultural”cclxxii, ou seja, uma relação de troca pautada pelo dinheiro ocasionando exploração e apropriação de bens culturais por parte das nações economicamente mais ricas; no segundo caso é realizado um “escambo” pautado na necessidade de mútuas trocas culturais. Embora considere as questões suscitadas por Bharucha relevantes para o debate envolvendo o interculturalismo e o teatro, não posso concordar integralmente com suas assertivas e críticas, pois o contexto no qual estou inserido, isto é, num país (Brasil), estado (Pará) e cidade (Belém) que foram formados e estabelecidos por processos de sincretismo(s) – uso o conceito na acepção proposta pelo antropólogo italiano Massimo Canevacci (2013, p. 06), ou seja, sincretismo(s) num sentido mais cultural do que religioso –, não me permite pensar de modo tão ortodoxo e purista quanto o autor indiano. Fazer apologia às “genuínas tradições” do teatro em Belém soaria, no mínimo, questionável na medida em que o processo de colonização da cidade 189 pelos portugueses, ocorrido ainda nos idos do século XVII, exterminou uma parcela significativa da população indígena – habitantes genuínos dessas terras – e iniciou um lento e contínuo processo de miscigenação com as outras diversas etnias que se encontravam e se encontram por aqui (RODRIGUES, 2008, p.69). E, no entanto, considero a perspectiva intracultural de Bharucha como uma potente ferramenta para refletirmos sobre nossos hibridismos culturais a partir de uma abordagem que se estabeleça por uma comunicação do êmico, ou seja, na perspectiva dos participantes da cultura nativa (BUCKLAND, 2013, p.143). Ainda mais importante ainda se lembrarmos que o Brasil é um país de dimensões continentais aonde as relações intraculturais entre suas cinco macrorregiões geográficas são complexas e não escapam ao processo de deturpação e apropriação cultural, como se pode observar no caso do “açaí”, fruta típica da região amazônica que foi “adotada” pela região sudeste do país e passou a ser consumida com granola e toda sorte de acompanhamentos inimagináveis e inconcebíveis para nós, paraenses, que o consumimos apenas com farinha d’água – e os mais jovens também com açúcar – peixe ou charque frito. O problema, nesse caso, não é a granola ou os demais acompanhamentos (tais como: morango, leite condensado, banana, cereais, etc.), pois acho legítimo que cada região sincretize os ingredientes de sua preferência; o problema se dá quando esse tipo de hibridismo gastronômico passa a ser considerado o modo genuíno de consumo da fruta e, então, passa a ser veiculado em rede nacional em séries e telenovelas, construindo uma narrativa que apaga as referências culturais de origem da fruta. O “oráculo de Delfos” de Bharucha pode servir de alerta, então, contra esse tipo de deturpação e apropriação intracultural. Mas nem por isso as questões levantadas pelo autor indiano podem escapar à análise crítica, objeções e refutações. O próprio Richard Schechner se encarregará dessa tarefa. O diretor norte-americano, ao tomar conhecimento que sua concepção de perspectiva intercultural para o teatro era o principal alvo das críticas de Bharucha, publica no Asian Theatre Journal (Vol. 01 / Nº 02), em 1984, um artigo intitulado “A Reply to Rustom Bharucha”. Nele, Schechner examina o teor das críticas recebidas e elabora suas refutações. Ele começa qualificando o texto de Bharucha como “redutivo, incompleto e impreciso”cclxxiii (1984, p. 245) e acusa o autor indiano de selecionar, dentre suas publicações, apenas o que lhe interessa para corroborar com seu pensamento, deixando de fora publicações recentes – considerando o ano de 1984 – como “Performative Circumstances: From the Avant Garde to Ramlila” (1983b), “The End of Humanism” (1982a) e a edição especial 190 de “Intercultural Performance of The Drama Review”, publicada em 1982, portanto, apenas dois anos antes da publicação das críticas de Bharucha. O autor indiano também teria deixado de fora, segundo Schechner (Ibidem., p. 246), suas produções fortemente influenciadas por suas viagens a Índia, quais sejam: “Seneca’s Oedipus” (1977), “Richard’s Lear” (1981) e “Cherry Ka Baghicha” (1983). Essa última com o agravante de ter sido produzida e ensaiada pelo National School of Drama, em Nova Delhi (1983), sob a direção do norte-americano que recebeu elogios dos críticos indianos por refletir elementos da “performance tradicional indiana”. Pode parecer despropositado que Schechner comece seu texto de resposta a Bharucha apenas citando algumas de suas publicações e/ou montagens interculturais, mas ele está chamando a atenção para a omissão do autor indiano de alguns elos decisivos do seu pensamento. E por isso ele arrola algumas dessas passagens omitidas por Bharucha para demostrar que tem consciência dos perigos e complexidades que o interculturalismo representa numa esfera de mercantilização global. A citação é um pouco longa, mas o próprio Schechner (Ibidem., p. 246-7) defende sua importância para contraditar Bharucha: (...) algumas forças muito sinistras estão presentes no interculturalismo. Em primeiro lugar, são as pessoas de lugares economicamente vantajosos que são capazes de exportar e importar. (...) Muitos turistas, assim como alguns empresários que importam performances, são filisteus, ou pior. (...) Eu me oponho a essas tendências em direção a um mundo sob a égide do capitalismo de Estado, do corporativismo ou do socialismo internacional. Mas também me oponho ao fervor nacional e ideológico que nos levou ao limite da aniquilação nuclear – que nos empurrou para a margem do desperdício de energia, riqueza e recursos nas indústrias da morte. (...) Então, onde é que isso me deixa? Quanto mais contato entre os povos melhor. Quanto mais nós, e todos os demais, pudermos realizar nossas próprias culturas e a de outras pessoas, melhor. Realizar a cultura de outra pessoa (...) leva a um conhecimento, uma “tradução”, que é diferente e mais visceralmente experiencial do que traduzir um livro. Mas essencialmente, o intercâmbio intercultural leva um professor: alguém que conhece o corpo da performance da cultura que está sendo traduzida. O tradutor da cultura não é um mero agente, como um tradutor de palavras pode ser, mas um verdadeiro portador de cultura. É por isso que performar outras culturas torna-se importante. Não apenas lê-los, não apenas visitá-los, ou importá- los – mas, na verdade, fazê-los. De modo que “eles” e “nós” sejam lidos, ou colocados experimentalmente lado a lado. (SCHECHNER, 1982b, p. 4)cclxxiv E um dos fatores que teria favorecido esse estreitamento das fronteiras tradicionais entre culturas, segundo Schechner (Ibidem., p. 247), foi o avanço tecnológico na área das telecomunicações, em franco crescimento já em meados da década de 1980. É curioso notar que se isso já era perceptível e influenciava as relações interculturais nas últimas décadas do século passado, nas primeiras décadas do século corrente isso apenas se intensificou a níveis inimagináveis àquela altura, seja por Schechner ou por Bharucha. E isso, evidentemente, acarretará 191 questões interculturais de outra ordem que precisam ser encaradas por quem desenvolve o teatro numa perspectiva intercultural –questões que serão abordadas no próximo tópico. E se a perspectiva intracultural de Bharucha pretendia conhecer as especificidades da cultura de origem para preservá-la, salvaguardando as tradições indianas das distorções e deturpações estrangeiras, Schechner, por sua vez, lembra assertivamente que não há uma via de mão única em processos nos quais duas culturas se encontram e trocam informações. O trabalho do dramaturgo de Bengali, Badal Sircar (1925-2011) seria um dos exemplos onde se pode constatar essas influências culturais sendo operadas de modo bem significativo a partir das próprias tradições indianas. Segundo Schechner (Ibidem., p.250), as peças de Sincar foram escritas em Bengali e em Inglês e desempenhadas em várias línguas indianas. Mas a partir de 1972 o desejo de se aproximar ativamente da vida e dos problemas sociais dos seus espectadores indianos fez com que seu trabalho trilhasse um novo caminho. O acontecimento decisivo para essa mudança de rumo teria ocorrido, segundo Schechner, um ano antes por ocasião de um workshop promovido pelo Performance Group, no Canadá, que contou com a presença de Grotowski. As palavras de Sincar, logo abaixo, são citadas por Schechner (Ibidem., p.250) como testemunho vivo de que os indianos não podem ser tomados como vítimas passivas – ingenuamente como quer Bharucha – dos processos interculturais; e nem mesmo como membros de uma cultura estática concebida e definida sob a denominação “tradição indiana”: Saímos do palco do proscênio em 1972, cinco anos após o início de Satabdi, vinte anos após o início do meu envolvimento no teatro. (...) Queríamos compartilhar com nosso público a experiência da ação humana conjunta. Mas ao fazer esse curso, também achamos nosso teatro fora das garras do dinheiro. Poderíamos estabelecer um teatro livre, desempenhado em parques públicos, favelas, fábricas, aldeias, onde quer que as pessoas estejam, dependendo de doações voluntárias do povo para as despesas leves que precisávamos. Paramos de usar cenários, holofotes, fantasias caras, maquiagem (...). Nós nos concentramos no essencial – o corpo e a mente humana. Nosso teatro tornou-se um teatro flexível, portátil e barato – quase gratuito. (...) O teatro popular/folclórico nativo da Índia, forte, vivo, imensamente amado pelos trabalhadores do país, propaga temas que são, na melhor das hipóteses, irrelevantes para a vida das massas trabalhadoras, e na pior das hipóteses datado e francamente reacionário. O teatro de proscênio que a intelectualidade da cidade importou do Ocidente constitui o segundo teatro de nosso país. (SIRCAR, 1982, p. 55-56)cclxxv Outro exemplo citado por Schechner de como as influências culturais operavam naquele momento – tanto nas montagens tradicionais quanto nas proposições modernas dos diretores 192 indianos – é a conferência “A tradição da dança indiana e o teatro moderno”172 realizada em Calcutá (1983) e organizada pelo diretor indiano Shyamanand Jalan (1934-2010). Nela, as questões levantadas por Bharucha são colocadas sob apreciação e o diretor norte-americano cita trechos do relatório redigido por ele e pela coreógrafa Carol Martin, texto que, dentre outras coisas, problematiza a perspectiva intercultural no teatro da Índia. Novamente a citação é longa, mas necessária, segundo Schechner (Ibidem., p.247-8), por esclarecer os benefícios dos modos variados de abordagem das formas tradicionais indianas – seja na perspectiva da cultura de origem (como pretendia Bharucha), seja na perspectiva intercultural moderna: (...) os artistas que estão tentando usar as artes tradicionais da Índia, não são mestres delas; as técnicas simplesmente não podem ser removidas de um contexto e inseridas no trabalho que vem de outro. Como o diretor Mohan Agashe, de Pune, disse: “Um certo metabolismo é necessário – o trabalho a ser tomado tem que ser ingerido e digerido, verdadeiramente metabolizado e feito parte do corpo e (alma) do intérprete antes de serem expressados possivelmente de uma forma totalmente nova e irreconhecível. (...) Em algumas ocasiões (...) os participantes do seminário foram convidados a experimentar em seus corpos as técnicas demonstradas. Estávamos entre aqueles que se levantaram e fizeram alguns passos e exercícios básicos de Yakshagana, seguindo a liderança do Guru H. Gopal Rao de Karnataka. Mesmo uma hora de tentativa da prática de Yakshagana foi instrutiva: não instrutiva no sentido de aprender Yakshagana, mas instrutiva como uma introdução ao funcionamento da forma física, do mesmo modo que a primeira visualização de um gênero é uma introdução ao funcionamento visual de uma forma teatral. Através dos olhos, mente, corpo e alma, não deve haver preconceito. E ainda mais importante, a experiência é uma ferramenta adicional na compreensão da infraestrutura de uma determinada forma. Há pelo menos três caminhos a seguir na pesquisa sobre atuação: aprendizado de livros, observação e experiência. O pesquisador que categoricamente rejeitar qualquer um deles ficará restrito. (SCHECHNER E MARTIN, 1983, 43)cclxxvi Quanto às críticas relacionadas às analogias realizadas entre as ações rituais de Papua Nova Guiné e suas montagens teatrais (“Dionysus in 69” e “Mother Courage”), a refutação de Schechner (Ibidem., p.249) se estabelece esclarecendo primeiramente que é o “contexto” e não a “estrutura” que distinguem um ritual de uma montagem teatral. É nesse sentido que as analogias propostas operam em suas montagens teatrais, isto é, as ações rituais seguem fora do contexto original do rito e, consequentemente, não remetem aos mesmos significados daquele, mas sim ao novo contexto, ao contexto de uma montagem teatral. A transposição não é da estrutura do ritual e sim do contexto que é reconstruído e opera numa atividade estética. Trata-se de uma metabolização – para usar o termo do diretor indiano, Mohan Agashe, supracitado – das ações rituais que se 172 Título original da conferência: “The Indian Dance Tradition and Modern Theatre”. 193 relacionam somente com os novos significados criados esteticamente, preservando e respeitando, portanto, os significados que possuem no contexto original do rito. Finalizando sua resposta ao autor indiano, Schechner (Ibidem., p. 252) lista uma série de experiências interculturais que ocorrem pelo mundo inteiro: atividades da ISTA com artistas indianos, japoneses, balineses, americanos e europeus; os workshops com artistas de Kathakali da Kerela Kalamandalam – escola de arte e cultura do governo da Índia – organizados por Julie Portman; oficinas da tradição indiana Seraikella chhau, ministradas na Índia e em Nova York pelo guru Kedar Nath Sahoo; oficinas da tradição Odissi ministradas na Europa pelo mestre Sanjukta Panagrahi (1944-1997); as bolsas de estudo desenvolvidas por Phillip Zarrilli e Wayne Ashley cujos resultados foram textos acadêmicos produzidos a partir da experiência e vivência prática de ambos os autores nas tradições indianas do Kathakali e Kalarippayatt (Zarrilli) e Teyyam (Ashley). Todas essas experiências, segundo Schechner (Ibidem., p.251), foram ignoradas por Bharucha e demonstram que o interculturalismo praticado pelo mundo, segue numa abordagem bidirecional, ou seja, “nós influenciamos uns aos outros, aprendemos uns com os outros”. Considerar essas experiências apenas como interpretações ocidentais que geram apropriações culturais pelas nações ricas é incorrer numa análise míope da história. Acredito na possibilidade dessas trocas culturais proporcionarem mútuos benefícios entre os agentes envolvidos desde que os perigos e problemas que envolvem uma abordagem intercultural sejam considerados e dimensionados a partir do contexto especifico de cada experiência proposta. A notação desta tese se desenvolve, portanto, por essa perspectiva intercultural e êmica e a partir dela debate e aprofunda as questões voltadas ao treinamento do atuante no século XXI, tendo o GITA como o locus de sua investigação. Interculturalismo no Asian Theatre Program Experimental de Adolf Clarence Scott e Phillip Zarrilli. O treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas sistematizado por Phillip Zarrilli em 1979 é um desdobramento do programa iniciado por Adolf Clarence Scott (1909- 1985) em 1963 na universidade de Wisconsin-Madison. O programa original de Scott se desenvolve a partir da prática diária de t’ai chi ch’ uan oferecida aos estudantes de graduação como método de treinamento. Ao se associar ao programa de Scott, o hatha-yoga e kalaripayattu (indianos) são agregados ao programa por iniciativa de Zarrilli. 194 Essas práticas corporais fundam-se, por sua vez, em princípios marciais (técnicas de combate indissociáveis de códigos morais e éticos) e meditativos (religiosidade-espiritualidade- filosofia) de uma Ásia de outrora. Tais princípios, segundo Sally Harrison-Pepper (1993, p.38), remontam as formas tradicionais de treinamento marcial desenvolvido na China do século VII, pelos monges do templo Shaolin, cujo objetivo era o desenvolvimento integrado, mente-corpo, para alcançar a essência do caminho de Buda. Partindo desse marco histórico, vários sistemas de treinamento marcial surgiram na Ásia, cada um deles, segundo Zarrilli (1993, p.13), se constituindo como um sistema altamente especializado de conhecimento desenvolvido em estreita relação com as ciências médicas asiáticas que, embora se diferenciem pelas formas de combate, comungam dos seguintes princípios: domínio e uso da respiração como centro motor da técnica de combate; formas codificadas de exercícios físicos para manutenção da saúde do organismo; compreensão dos pontos vitais do corpo. O código de ética implícito nesses sistemas de treinamento é cuidadosamente transmitido por meio da relação mestre discípulo. Sob esse método de transmissão rigoroso e meticuloso, escolas tradicionais de artes marciais surgiram e passaram por um processo contínuo de adaptação de seus conhecimentos tendo sempre a frente um mestre, um guru responsável pela transmissão prática dos ensinamentos ao discípulo. Essa modalidade de treinamento do atuante, segundo Robert Benedetti (1993, p. 08), passa a ser explorada pela vanguarda do teatro na América a partir da década de 1960, impulsionada pelo desejo de renovação nos seus modos de atuação e experimentação estética. Desde então, o uso das artes marciais asiáticas no treinamento do atuante expandiu sua prática e se multiplicou em diversas abordagens, num processo contínuo que desde o início buscou compreender, traduzir, adaptar e sistematizar disciplinas corporais cuja cultura de origem se fundamenta em princípios religiosos, filosóficos, sociológicos, e econômicos bem diversos das culturas do continente americano. A questão intercultural no uso das artes marciais asiáticas nos programas de treinamento de atuantes que foram criados nesse período, portanto, sempre esteve no radar das preocupações dos diretores- professores que tomaram pra si essa tarefa. E o grande pioneiro, nesse sentido, como citado anteriormente, foi Adolf Clarence Scott, fundador do Asian Theatre Program Experimental, em 1963 na universidade de Wisconsin- Madison. Sua imersão prática em t’ai chi ch’ uan, ocorrida na China, assim como todo aprendizado 195 adquirido convivendo de perto com as demais tradições do teatro chinês e japonês173, não lhe permite incorrer numa abordagem superficial que levaria a mera transposição de técnicas estrangeiras de um contexto cultural a outro – eixo principal das críticas de Bharucha. Scott tem consciência dos perigos do uso das artes marciais numa perspectiva intercultural e, por isso, sabe que é necessário um processo de contextualização, tradução e adaptação. A primeira coisa a ser considera, então, segundo Scott, é a diferença entre os paradigmas de atuação que regem o funcionamento do trabalho do atuante em cada contexto cultural. Citamos anteriormente uma passagem de Zarrilli (2002, p. 85-6) apontando alguns aspectos culturais de extrema relevância para compreensão dos paradigmas de atuação na China, Japão, Coreia e Índia. Scott (1993, p.31-2-3) destacará outros, dando especial atenção a influência que o Zen Budismo exercerá nas tradições do teatro da Ásia Oriental na medida em que essa ordem do Budismo se estabelece como um método prático para alcançar a iluminação. Trata-se do caminho Zen, isto é, um modo de vida no qual a meditação deve ser exercitada no aqui-agora, nas pequenas ações cotidianas; e esse tipo de meditação exige do praticante uma disciplina que opere a integração mente e corpo, pois a meditação deve ocorrer a cada momento, na experiência ordinária da vida. Partindo dessa influência que o Zen exerce, Scott (Ibidemem., p.32) então, destaca uma diferença marcante entre o drama ocidental e as tradições do teatro da Ásia Oriental: o uso da linguagem discursiva. Enquanto o primeiro (drama ocidental) historicamente elegeu a forma e estrutura literária como fundamento da arte teatral – e, consequentemente, a dimensão teórica, intelectual e o âmbito das ideias e conceitos –, as últimas, sob a influência do Zen, rejeitam as palavras porque elas impedem a objetividade e a imediação, tornando-se névoas verbais que obscurecem a realidade. (...) A linguagem é usada para despertar, não para expor; uma pergunta-resposta é concebida no processo e tem como objetivo despertar o ouvinte: a realização de algo que ele conhecia, mas que se tornou oculto e sobreposto. A ênfase está no som, não na transmissão intelectual. (...) As palavras são usadas como som e encantamento que invocam imagens visuais por meio de estresse acústico, rima, melodia e repetição, ao invés de comunicação literária, pela qual o poder de tornar presente o ausente é invocado na prática do palco.cclxxvii Essa distinção apontada por Scott demonstra como os paradigmas de atuação nesses contextos culturais se realizam tendo concepções, poéticas e estéticas muito diversas. No que tange especificamente ao trabalho do atuante, Scott (Ibidem., p.34) traça o seguinte quadro comparativo: 173 Ver Prologito a partir da pg. 22. 196 O atuante ocidental tenta sua tarefa do lado de fora, ele estende sua personalidade para expressar sua ideia de realidade, entrando em seu papel. O atuante asiático, por outro lado, em vez de criar um personagem fundindo-se no papel, está preocupado apenas com a fusão arquetípica. O corpo do atuante asiático é criativo à maneira de um instrumento musical e onde o atuante no Ocidente usa seu corpo para representar a realidade, o corpo do atuante asiático se torna realidade. Por isso, ele deve alcançar uma perfeição técnica que requer longos anos de prática disciplinada antes de amadurecer..cclxxviii Assim, quando introduziu o t’ai chi ch’ uan, arte marcial chinesa, como método de treinamento dos estudantes de teatro, a primeira preocupação de Scott (Ibidem., p.52) era que os alunos buscassem compreender os princípios e conceitos – tanto da estética teatral asiática, quanto da prática marcial que passavam a treinar – na perspectiva da cultura de origem. Scott buscava, assim, aprofundar a percepção do paradigma de atuação ocidental confrontado seus alunos com um paradigma diferente. A peça Twlight Crane, do dramaturgo japonês contemporâneo Junti Kinoshita, foi a escolhida para inaugurar o experimento intercultural de Scott. Escrita em estilo coloquial e sem nenhuma tentativa de estabelecer relação com as formas tradicionais do Noh ou do Kabuki a peça baseada numa antiga lenda popular tem como tema a ganância humana. E o objetivo inicial de Scott (Ibidem., p.52) se concentrava nos seguintes elementos: expressar o tema da peça com economia de meios; exercitar a capacidade de seleção e eliminação de tudo que fosse desnecessário; roteiro de ações estabelecido a partir do domínio físico da pontuação da peça. Sessões diárias de treinamentos (de segunda a sábado), fora do horário de aula, passaram a ser realizadas para praticar pequenas sequencias de abertura de t’ai chi ch’ uan. Nos meses iniciais, as duas horas diárias de trabalho eram dedicadas ao treinamento da prática marcial. E quando Scott percebeu um pequeno avanço no domínio sensório-motor e concentração dos alunos passou, então, a trabalhar também com o texto da peça; esse por sua vez deveria ser memorizado para ser experimentado no palco, observando os objetivos já traçados pelo diretor anteriormente. Esse experimento inicial ocorreu durante um semestre inteiro culminando em cinco apresentações realizadas numa pequena garagem, transformada em sala experimental pela universidade para atender as necessidades da produção. E embora, Scott (Ibidem., p.53) considere que essa primeira tentativa tenha alcançado “avanços modestos”, do ponto de vista do domínio técnico da atuação, o que o animou a continuar foi a percepção dos alunos para a necessidade da prática diária do treinamento com t’ai chi ch’ uan. 197 Impulsionado por essa primeira experiência, Scott funda o Asian Theatre Program Experimental, programa com duração de dois semestres – seis encontros semanais, com duas horas diárias. No primeiro semestre, segundo Scott (Ibidem., p.54), o curso intensivo de t’ai chi ch’ uan é precedido por exercícios introdutórios de respiração, postura, equilíbrio, relaxamento e concentração. Sequências de movimentos de t’ai chi ch’ uan são praticadas em grupo e repetidas até que se tornem familiares, ocasião em que os alunos passam a receber também orientações individualizadas sobre sua prática. O trabalho com a obra teatral é reservado para o segundo semestre. O principal desafio neste momento, Segundo Scott (Ibidemem., p.55) é exercitar nos alunos “a natureza fenomenológica de seu ofício em condições práticas de trabalho e aplicar seus conhecimentos de atuação após um período intensivo de confronto diário com os problemas colocados por uma peça em particular”cclxxix. A obra de dramaturgos como Brecht, Sartre, Beckett, Pinter, Ionesco, Duras e Ramuz foram visitadas, ao longo dos anos, para oferecer esse espaço de experimentação aos alunos-atuantes das turmas do segundo semestre. Peças tradicionais asiáticas também foram montadas pelo programa de Scott com o auxílio da transmissão de conhecimento direta de profissionais do teatro chinês e japonês. Depois de uma década de trabalho, Scott (Ibidemem., p.56) considera que o programa amadureceu bastante, vindo a se estabelecer no início da década de 1970 como exigência curricular para os alunos-atuantes que já tenham completado as disciplinas regulares de sua formação universitária. Ele observa e destaca (Ibidem., p.56) que após completar os dois semestres do programa fundamentado na prática do t’ai chi ch’ uan é possível perceber uma diferença no modo de atuar dos alunos-atuantes: Há um foco perceptível no ritmo, no tempo e no padrão vocal como uma fusão coordenada de elementos e uma restrição no foco facial, que é tão dominante na atuação realista e tantas vezes exagerado pelos estudantes de teatro. Mais do que isso, há uma coerência manifesta em uma autocontenção, uma capacidade de sustentar um papel em um nível consistente de expressão ao longo de uma performance (...)cclxxx. A colaboração de Zarrilli ao Asian Theatre Program Experimental ocorre em 1979, um ano antes de Scott se aposentar e após algumas experiências imersivas que o diretor norte- americano realizou pela Índia, ocasião onde desenvolveu seus estudos sobre o Kathakali e praticou yoga e Kalaripayattu – a arte marcial indiana da região de Kerala – sob a orientação e supervisão do Gurukkal Govindankutty Nayar. Nesse ano de transição da coordenação do programa Zarrilli 198 aproveita para fazer seu aprendizado de t’ai chi ch’ uan diretamente com Scott. Isso garante que a [AMA] que fundou o programa seja mantida após a saída de Scott. O programa passa, então, a contar com a prática do hatha yoga e do kalarrippayattu. Essas práticas compartilham, segundo Zarrilli (1993, p.14), de um mesmo “padrão similar de integração psicofísica, foco único e concentração desenvolvida através de técnicas corporais”cclxxxi. Será esse sistema ampliado por Zarrilli que chegará em terras paraenses pela iniciativa de Cesário Augusto Pimentel, professor da Universidade Federal do Pará que recebeu a transmissão desse conhecimento diretamente do aprendizado prático orientado pelo diretor norte-americano. Desde que começou sua colaboração no programa fundado por Scott, ou até mesmo antes, Zarrilli sempre teve consciência que o uso das artes marciais integradas ao treinamento do atuante precisa observar o contexto especifico no qual elas serão desenvolvidas e respeitar o paradigma de atuação do seu contexto cultural – princípio intercultural que também orientou a prática de Scott. Desse modo, ao refletir sobre o desafio de integrar as artes marciais asiáticas no treinamento do atuante do ocidente, Zarrilli (Ibidemem., p16) apresenta quatro modos de proceder: 1. Introduzir os alunos num estudo de longo prazo de uma ou mais disciplinas marciais. Este treinamento básico fornece aos alunos uma base psicofísica e experiencial para explorar a relação entre o que é descoberto no treinamento em artes marciais e o processo de incorporá-lo na atuação. 2. Selecionar exercícios de uma ou mais artes marciais e integra-los em um programa abrangente de treinamento de atuação e movimento. 3. Um professor formado em artes marciais usar sua própria experiência como inspiração ou ponto de partida para seu próprio ensino, permitindo-lhe influenciar a forma como ele abordar e tenta resolver problemas de atuação e movimento. 4. Aconselhar o aluno a treinar com um mestre em artes marciais de fora do curso de atuação e movimento.cclxxxii Dentre esses modos, Zarrilli destaca as vantagens dos três primeiros, pois neles a presença de um professor para orientar o aprendizado dos alunos pode facilitar a articulação entre as artes marciais e a prática de atuação. E, nesses casos, o mais importante é que cada professor deve ter clareza que ele precisará adaptar a prática marcial para atender a formação especifica de seus alunos. Como afirma Zarrilli (Ibidemem., p.18): Nenhum de nós está tentando treinar especialistas marciais ranqueados, mas atuantes inteligentes, criativos, habilidosos, disciplinados e conscientes capazes de incorporar a “quietude no centro” e realizar um paradigma de atuação baseado psicofisicamente, que possa ser útil para o atuante de hoje.cclxxxiii Interculturalismo no treinamento do atuante no século XXI. No primeiro semestre de 2017 a edição nº 21 da Revista Cena trouxe como questão norteadora de suas reflexões o treinamento do atuante frente a crescente tendência contemporânea 199 de uma atuação não-representativa, fundamentalmente, atravessada e contaminada pela arte da performance, pelo performativo e pelas narrativas pós-dramáticas. A capa da revista anuncia, com certo desalento, que a edição traz um dossiê com “O que restou de treinamento nas práticas corporais” e o seu editorial (2017, nº21) problematiza “em que medida as práticas corporais hoje seguem ainda princípios antes trabalhados de modo sistemático nos treinamentos de diretores- pedagogos do século XX. O que restou dessa noção tão impregnada no fazer cênico do século passado?”174 Embora a capa da revista e as questões do editorial me deem a impressão de que o periódico considere as práticas de treinamento do atuante fadadas ao declínio, como se estivessem relegadas a uma área restrita de alcance na contemporaneidade em virtude dos efeitos que os conceitos operativos supracitados têm gerado nos paradigmas de atuação no teatro do Ocidente, acredito que a revista nos provoca a pensar sobre o teatro feito na atualidade, em nosso tempo e lugar, dando ênfase para uma necessária revisão das ideias do treinamento do atuante a partir do contexto do século XXI. Na esteira desse pensamento formulado pelo editorial da revista Cena, Zarrilli em recente publicação (Junho/2019) intitulada Intercultural Acting and Performer Training175, também postula por uma revisão e análise do treinamento intercultural que está sendo desenvolvido na contemporaneidade. Segundo Zarrilli (2019, p.09) Atualmente qualquer consideração de processos, paradigmas, conceitos e/ou práticas de atuação e performance, bem como do treinamento do atuante/performer deve abordar nossos paradigmas, perspectivas e realidades globais, urbanas, multi, inter e intra-culturais como norma e não como exceção.cclxxxiv Zarrilli (Ibidem., p.09) considera que a expansão e popularização da rede mundial de computadores (internet) têm contribuído de modo contundente para as trocas interculturais ocorridas no treinamento do atuante nas primeiras duas décadas do século XXI na medida em que disponibiliza o compartilhamento imediato de diversas experiências que vem sendo gestadas no âmbito do treinamento e da própria atuação contemporânea. Com frequência crescente, os grandes centros urbanos de metrópoles como Cingapura, Joanesburgo, Xangai, Seul, Melbourne, Nova York, Teerã, Cairo, Mumbai, Berlim, Londres ou Jacarta se tornaram pontos de encontro entre as 174 Disponível em . Acessado em 13/07/2019. 175 Uma coleção de ensaios editados por Zarrilli; Anuradha Kapur (1951) diretora indiana e atualmente professora visitante na Universidade Ambedkar, em Delhi; e Thirunalan Sasitharan (1958) co-fundador e diretor do Intercultural Theatre Institute (ITI). 200 culturas do oriente e do ocidente. Eu acrescento que em Belém do Pará o panorama não é diferente. Grupos teatrais e artistas independentes produzem experiências que agregam à poética e estética de seus trabalhos, elementos culturais de matrizes diversas e oferecem à cidade centros de cultura alternativos, espaços autopoéticos176 criados e gerenciados pelos próprios artistas – via de regra suas próprias residências –, nos quais é possível observar modos variados de laboratórios de criação e, consequentemente, modos variados de treinamento do atuante, modos esses que sincretizam práticas culturais voltadas a uma pesquisa de longo prazo ou até mesmo para a realização de uma única montagem teatral. Refletindo sobre o treinamento na primeira década do século XXI, Eugenio Barba (2007, p.42) considerou esse tipo de prática como “quarto fantasma”, isto é, espaços de trabalho que precisam ser preenchidos “de acordo com a situação e a época”. Zarrilli (2002, p.87) corrobora com esse pensamento e afirma que “(...) é impossível falar de treinamento do atuante como se fosse uma coisa, separado do contexto particular dentro do qual o treinamento ocorre, e sem referência ao tipo de performance em relação ao qual se está preparando”cclxxxv. Desse modo, seguindo o pensamento desses autores lanço um olhar atento às diversas experiências teatrais que se multiplicam em Belém e procuro apresentar no sitio arqueológito “Açaí com Zarrilli”, a seguir, uma pequena amostra dos “quartos fantasmas” que os grupos da cidade têm criado desde a segunda metade do século XX até as primeiras décadas do século XXI. Será a partir da contextualização de tais experiências com treinamento que ocorrem na cidade que, em seguida, será articulada as escavações sobre o paradigma de atuação que opera na cidade e sua estreita relação com a principal instituição formadora de artistas de teatro da cidade, isto é, a Escola de Teatro e Dança da UFPA. É nesse cenário que será escavado que a prática criativa do GITA se encontra localizada e nele se desenvolve dialeticamente. 176 A expressão é da pesquisadora Roseane Tavares e essa questão também é problematizada na seção “Por uma arqueologita da direção teatral em Belém do Pará”; ver página xx. Sítio Arqueológito Açaí com Zarrilli 202 PLANO DE ESCAVAÇÃO: 1. Apresentação: Sítio arqueológito que contextualiza e problematiza o treinamento psicofísico e a prática do GITA em estreita relação com o paradigma de atuação presente na cidade de Belém e seus espaços autopoéticos de resistência política. A partir desse contexto cultural analiso e problematizo como isso ocasiona as descontinuidades e fissuras entre a prática criativa do grupo nos cinco processos criativos de montagens teatrais produzidos até 2017 e a obra/prática de Zarrilli. Este sítio se subdivide em três áreas temáticas: 1- GITA na relação com a ETDUFPA e o paradigma de atuação em Belém; 2- Direção teatral em Belém em estreita relação com a formação de artistas e grupos de teatro, espaços autopoéticos e o paradigma de atuação na cidade; 3- As cinco montagens teatrais do GITA sob influência do modus operandi da cidade. Pela natureza peculiar, as duas últimas áreas temáticas apresentarão Plano de Escavação específico. Portanto, as orientações que seguem abaixo são pertinentes apenas a primeira área temática. 2. Composição do texto: narrativa acadêmica estruturada com uso convencional dos recursos e ferramentas de pesquisa bibliográfica – livros, artigos de periódicos, etc. 3. Citações Originais: As Citações Originais em inglês se encontram no Sitio Arqueológito Virtual177 e aparecem sinalizados e ordenados em numeração romana ao final de cada citação. Figura 10 – Mapa Arqueológito 6: Sítio Arqueológito “Açaí com Zarrilli”. Fonte: Livre criação com os principais tópicos do sítio arqueológito. 177 Conferir na aba Citações Originais no link https://arqueologita2.cms.webnode.com/citacoes-originais/ 203 Alguns “Quartos Fantasmas” e o paradigma de atuação em Belém do Pará. As experiências que relato, a seguir, tomam como referência minha participação no Fórum Livre e Permanente de Teatro do Pará178, desde sua criação, e ainda o projeto de extensão criado e coordenado por mim, intitulado Tribuna do Cretino179. É desse lugar que observo e destaco alguns “quartos fantasmas” considerados dignos de nota na medida em que nos permitirão perceber o contexto particular em que se insere o paradigma de atuação na cidade. Para tanto, elaborei um questionário com o intuito de investigar o alcance e o desenvolvimento das práticas de treinamento dos artistas e grupos por mim selecionados. As questões chaves do questionário eram as seguintes: “Treinamento” é um termo usado em sua rotina de trabalho? Realiza algum treinamento especifico? Se sim, qual a rotina de treinamento (quantos dias de prática e o que treina?) Já participou de alguma atividade (oficina, workshop, etc.) de treinamento voltado para atuação cênica? Começo destacando as experiências de artistas e/ou grupos com maior tempo de atuação na cidade. Criado em 1967 o Grupo Gruta de Teatro é um dos grupos de maior longevidade na cidade. Atuando há mais de 50 anos o grupo tem uma trajetória de montagens teatrais de grande repercussão em Belém. Adriano Barroso (1969) – atuante do Gruta há 20 anos – afirma que o grupo “é uma escola essencialmente de atores que priorizam a palavra, a sintaxe as formas e nuances do texto”. Cindindo didática e categoricamente o trabalho voltado ao texto do trabalho com o treinamento corporal, Barroso informa que esse último é uma área de investigação de Monaliza da Paz, atuante responsável pelo repasse da aprendizagem das técnicas de treinamento energético do Grupo Lume, sobretudo o trabalho com a mimeses corpórea. Uma faceta importante que ocorre nos grupos da cidade é a alta rotatividade entre atuantes. De acordo com a montagem em andamento os grupos recebem novos atuantes que se agregam aos membros “fixos”. Isso ocorre no Gruta e, por vezes, esse novo participante leva sua experiência e conhecimento em técnicas específicas para somar no processo criativo. O diretor e ator Paulo Marat (1960) é um desses atuantes que colaborou com o Gruta na remontagem da obra A vida que 178 Associação de artistas cuja organização prescinde de hierarquia. Criado em 2010 com o propósito de debater e encaminhar políticas públicas de cultura para o estado do Pará também se dedica atualmente a troca de informações e produção de atividades teatrais entre grupos da capital e do interior do estado. 179 Projeto de extensão desenvolvido pela Escola de Teatro e dança da UFPA desde 2014 cujo o propósito é o fomento e elaboração de críticas teatrais das montagens produzidas na cidade de Belém. 204 sempre morre que se perde em que se perca?180 (2019). Formado em yoga pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Yoga (IEPY), de São Paulo, Marat relata que propôs ao Gruta fazer a preparação corporal trabalhando com alguns âsanas. Embora fosse uma prática desconhecida dos demais atuantes sua proposta foi agregada ao processo de preparação corporal e considerada pelos demais como “uma importante ferramenta que auxiliou no processo criativo”. Assim, mesmo Adriano considerando o Gruta como “uma escola que prioriza a palavra”, práticas de treinamento atravessam e atravessaram a rotina do grupo ao longo dessas mais de cinco décadas de atuação na cidade. No entanto, Astrea Lucena (1950) que já participou do Gruta e atua na cena teatral de Belém desde 1970, destaca que o uso do termo “treinamento” é substituído por “preparação corporal” ou “aquecimento”, seja no Gruta ou em outros grupos que participou na sua longa carreira na cidade. Ela destaca ainda que a Cia Atores Contemporâneos – da qual também já participou – foi umas das pioneiras, em Belém, na investigação e no uso do termo “treinamento”. Fundada em 1990 por Miguel Santa Brígida (1963), essa cia teatral estabeleceu e desenvolve suas pesquisas na linguagem cênica em estilo Teatro do Movimento181 a partir do sistema de treinamento do coreógrafo e teatrólogo húngaro Rudolf Laban (1879-1958). Astrea faz questão de mencionar como o aprendizado de treinamento nessa Cia teatral foi importante para sua formação e afirma que “na Cia Atores Contemporâneos se usa o termo ‘treinar’ e com o Miguel Santa Brígida aprendi muito sobre meu oficio de atriz”. O diretor e fundador do grupo Palha, Paulo Santana (1960), acredita que a principal causa das pesquisas em treinamento de atuantes não ser adotada pelos grupos da cidade se deve à falta de política cultural (município, estado, federação) que subsidie espaços adequados para o desenvolvimento de um trabalho de médio/longo prazo. Desse modo, ele conta que o Palha, fundado em 1980, embora reconheça a necessidade e importância do treinamento para aperfeiçoamento de seus atuantes, esbarra na questão de uma sede ou espaço adequado para uma pesquisa que lhe permita sistematizar um modo de treinamento para seus atuantes. Nas suas palavras: (...) o grupo PALHA não tem espaço para treinamento. Nos reunimos em apartamento e discutimos propostas, projetos e realizamos leituras. (...) Belém é uma cidade sem política cultural séria, não temos espaços disponíveis para processos longos de preparação de 180 Adaptação da tragédia Antígone, de Sófocles, cuja primeira montagem foi realizada em 1990. Nela o Gruta, sob direção de Henrique da Paz, assume uma encenação fundada no conceito de “distanciamento” de Bertold Brecht. 181 Sobre essa Cia conferir escavação Arqueologita da direção teatral em Belém do Pará” a partir da pg. 246. 205 atores e para grupos de pesquisas; ensaiamos em locais que normalmente são inapropriados, sujos e muitas vezes com problemas de ventilação e/ou horário incompatível com a vida corrida dos atuantes. Quem me dera se pudéssemos ter um espaço permanente para trabalharmos e mantermos um treinamento constante com os atores do nosso grupo. (Trecho retirado do questionário sobre treinamento) Essas palavras vindas de alguém que dirige um grupo há 39 anos revelam muito sobre a situação que os artistas de teatro da cidade precisam enfrentar e me leva a crer que um dos motivos da substituição do termo “treinamento” por “preparação corporal” e/ou “aquecimento”, supracitada por Astrea, pode ser creditado como um modo de contornar esse problema da falta de espaço adequado para o desenvolvimento de uma sistematização de treinamento. Sistematizar uma proposta de treinamento requer tempo e espaço adequado para a organização de procedimentos, classificação de elementos, estabelecimento e verificação de etapas dentre outras coisas. A esse respeito é importante observar a trajetória da Cia Atores Contemporâneos, citada por Astrea como a pioneira nas pesquisas em treinamento na cidade. Miguel Santa Brígida relata que desde a sua fundação a Cia passou por vários espaços da cidade: iniciou sua pesquisa em 1990 na Academia da professora Marilene Melo182 – bairro do Guamá – com quem firmou uma importante parceria até 1992, na medida em que a proposta de investigação da linguagem do Teatro do Movimento se estabelecia pela dialética entre as linguagens do teatro e da dança substituindo a primazia do texto dramático para assentar sua ênfase na investigação de uma dramaturgia corporal; em 1992 a Cia passa a ter sua primeira sede, um galpão alugado ao lado da Escola de Samba Quem São Eles – bairro do Umarizal – local que ofereceu espaço para treinamento dos atuantes até o ano de 1995; a Cia se muda para um galpão maior em 1995 e inaugura o espaço intitulado Teatro da Cia – bairro de São Braz –, local que abrigará até 2001 não somente a prática do treinamento, mas também as experimentações e apresentações das montagens artísticas; em 2002 nova e última mudança para uma espaço menor que abrigará até 2004 novamente somente as atividades de treinamento dos atuantes. Desde então, A Cia Atores Contemporâneos passou a trabalhar sem sede e tem recorrido a diversos espaços públicos, institucionais ou de amigos para continuar suas atividades. 182 Formada pela primeira turma de Escola Superior de Educação Física do Pará (década e 1970), e especialização na Universidade Gama Filho (RJ). Abriu sua própria academia de dança em Belém no início da década de 1980 contribuindo decisivamente para a formação de muitos outros artistas da dança como Ricardo Risuenho, Eleonora Leal, Guilherme Repilla e Waldete Brito. 206 É importante lembrar também que a Cia Atores Contemporâneos conseguiu manter sua própria sede durante um tempo considerável (12 anos), fundamentalmente graças ao investimento financeiro do próprio diretor da Cia e alguns editais públicos conquistados e isso certamente favoreceu o amadurecimento da pesquisa de treinamento no sistema Laban e, consequentemente, deu consistência à linguagem do Teatro do Movimento postulada pela Cia. Atualmente, Santa Brígida afirma que está à procura de um espaço para abrigar novamente suas atividades, pois segundo ele “ter um espaço adequado para o treinamento dos atuantes é fundamental para qualquer pesquisa voltada as práticas corporais”. A experiência de outros grupos da cidade com práticas de treinamento ajuda a entender as dificuldades e limitações que a questão do espaço adequado para treinar geram. Considero o exemplo do Grupo Teatral Anthares, fundado e dirigido por Paulo Marat – supracitado na experiência com yoga no grupo Gruta – digno de nota. O grupo teve presença marcante e atuou no cenário cultural da cidade de 1996 a 2004. Em particular nas montagens Reflexo (1997), Quem disse que Godot não vem? (1998) e Reflexo 2º Movimento (1999) pude conferir uma estética marcada pela presença e vigor corporal dos atuantes notoriamente ressaltada pelos saltos, piruetas, giros e cambalhotas agregadas a poética de cena. Marat relata que o grupo enveredou por esse caminho do vigor corporal casualmente, pois quase todos os atuantes do grupo praticavam capoeira e karatê. Então, o grupo incorporou naturalmente essas práticas marciais como preparação corporal para cena, sem o intuito de nenhuma sistematização de treinamento. Nas palavras do próprio Marat: “como no Anthares quase todos lutavam, então, alguns dias realizávamos o aquecimento com uma roda de capoeira e em outros um pouco de kata de karatê”. Na medida em que perceberam que essas práticas auxiliavam nas qualidades pré-expressivas da cena, o grupo passou a praticá-las regularmente em sua rotina de trabalho. Mas o grupo só conseguiu estabelecer sua rotina de trabalho com essas práticas corporais quando conseguiu a parceria com Escola Estadual de Ensino Técnico Professor Anísio Teixeira, que cedeu espaço nas suas dependências, momento que o Anthares estabeleceu encontros regulares todos os sábados e domingos das 14:00h às 18:00h. Outra experiência que corrobora com a questão de espaços para desenvolvimento de treinamento é o do Grupo Teatral Maromba que também atuou durante 39 anos na cidade – de 1973 a 2012. O grupo foi fundado pelo poeta e dramaturgo amazônida Ramon Stergmann (falecido em 2008) – descendente de imigrantes alemães – que transformou um grande salão de sua casa no bairro da Cidade Nova VI em sede de suas atividades, local destinado para ensaios dos processos 207 criativos, mas também de formação acadêmica e profissional de jovens atores iniciantes. Foi neste local – centro de cultura alternativo – que Edinelson Monteiro, membro de longa data do Maromba, propôs em 2012 o desenvolvimento de uma investigação a partir do método de treinamento do ator e diretor japonês Tadashi Suzuki (1939), combinado com a biomecânica de Vsevolod Meyerhold e algumas técnicas extracotidianas da antropologia teatral. Fruto de sua formação em dança adquirida ao longo de sua carreira – oficinas, workshops e cursos profissionalizantes por todo o Brasil – Edinelson conduziu o processo criativo da montagem Epheméris: a moralidade dos tempos (dramaturgia de Ramon Stergmann) após um intenso ano de treinamentos ocorridos sempre aos sábados e domingos das 9:00h as 11:00h e das 14:00h as 18:00h. Não tive oportunidade de conferir esse trabalho, mas Andreza Pinto (1981) que participou do processo e da montagem relata o diferencial que o treinamento gerou em sua atuação: Em Epheméris buscamos a partir do treinamento dar consistência a construção dos nossos personagens. Treinamos durante um ano e foi muito interessante buscar compor tecnicamente um corpo para atuar: onde se colocar, fazer movimentações precisas no palco e, sobretudo, trabalhar a respiração. Um processo muito cansativo no início, mas que foi de suma importância e me fez ter outro olhar para o meu corpo como atriz. (Trecho retirado do questionário sobre treinamento) Infelizmente esse foi o último trabalho do Maromba que se dispersou após a sede do grupo ser “readquirida” por familiares de Ramon. E isso também corrobora com o argumento de Santana de que a ausência de um espaço adequado para os grupos impossibilita as práticas sistematizadas de treinamento. No entanto, os grupos da cidade têm encontrado meios diversos para enfrentar essa adversidade. A montagem Parésqui (2006) do Usina Contemporânea de Teatro me parece um bom exemplo disso. Valeria Frota (1972) conta que o grupo atua há trinta anos em Belém – desde 1989 – e embora o termo “treinamento” não faça parte da rotina de trabalho ou eixo de investigação especifico do grupo, ela própria recebeu formação com Carlos Simione (1958) do Grupo Lume e levou seu aprendizado em mimese corpórea para a montagem. Nesse trabalho, Valeria ao lado de Nani Tavares (1978), utiliza a técnica aprendida para imitar o comportamento corpo/vocal de alguns ribeirinhos da ilha do Combu, pesquisados e observados durante nove meses. A pesquisa foi subsidiada pelo prêmio da Bolsa de Criação e Experimentação Artística (2006) do extinto IAP – Instituto de Artes do Pará o que lhe garantiu recursos financeiros – ainda que limitados183 – e espaço físico para o desenvolvimento do processo criativo. Tive oportunidade de conferi essa 183 A premiação bruta do prêmio destinava R$15.000,00 para serem investidos durante os nove meses da bolsa. 208 montagem e constatar o primor técnico e criativo no trabalho das atuantes, elementos que eu credito ao longo trabalho de pesquisa e cujo fundamento se encontra no ato de treinar. A questão do espaço, neste caso, foi suplantada via edital institucional, coisa que cada vez menos tem sido investido pelas secretarias e fundações culturais do estado e município. Talvez, por isso, vários artistas da cidade, a exemplo do Ramon Stergmann, transformaram suas residências em espaços culturais e/ou adquiriram uma sede própria. É o caso da Associação Cultural Palhaços Trovadores, fundada em 1999 pelo diretor e ator Marton Maues (1961). O grupo que viveu o mesmo drama da falta de espaço para o desenvolvimento de suas atividades por 11 anos, adquiriu em 2010 o direito de habitar um casarão abandonado no centro da cidade – Tv. Piedade, 533, bairro do Reduto. Reformada por iniciativa dos artistas do grupo, A Casa dos Palhaços desde então, se tornou um espaço cultural e centro de referência da palhaçaria produzida em Belém. A atuante e palhaça Alessandra Nogueira (1975) que atua nos palhaços Trovadores desde 2001 e atualmente é diretora executiva do grupo e coordena o projeto “Palhaçadas de Quinta” afirma que a aquisição da sede fortaleceu o desenvolvimento da pesquisa no “treinamento da palhaçaria”. Ela relata ainda que o termo “treinamento” encontra-se presente na rotina de trabalho do grupo – duas vezes por semana, as terças e quintas-feiras – de dois modos: “de modo específico usamos treinamento de palhaçaria; e para treinamento físico usamos exercícios variados a partir das experiências corporais de cada integrante (cada um pode trazer para o grupo um exercício ou técnica que aprendeu, para compartilhar)”. Dentre esses exercícios variados o grupo utiliza com mais frequência, segundo Nogueira, “o Tai chi ch uan, kung fu e exercícios do grupo Lume de Campinas/SP (raízes, lançamentos, samurai, gueixa, dança dos ventos, trabalho com bastões)”. O treinamento em palhaçaria que os Trovadores praticam regularmente em sua sede também é compartilhado em diversas atividades de formação que o grupo oferece ocasionalmente a cidade. É digno de nota que a iniciativa de tal formação e fomento do treinamento em palhaçaria na cidade é mérito de Marton Maues, que elaborou e sistematizou uma disciplina integrante da base curricular do curso técnico de ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA. A disciplina que inicialmente era intitulada Clown, passou a ser nominada como Palhaçaria a partir da aprovação no Projeto Pedagógico do Curso – PPC, vigente desde 2015. Marton, a partir dessa disciplina tem conseguido entregar a cidade, todos os anos, diversos novos palhaços que fortalecem a cena teatral e sincretizam seu aprendizado na palhaçaria com outras abordagens nada ortodoxas. 209 Nessa esteira cito dois exemplos: 1 – o trabalho do Grupo de Teatro Varieté formado em 2018, por alunos e ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da UFPA: Ruber Sarmento, Taís Sawaki, Aj Takashi, Assucena Pereira e Diego Leal. O grupo agrega ao seu trabalho de Palhaçaria a contação de história, teatro popular, teatro de máscara, teatro de animação, improviso cênico e comicidade física184; 2 – EPA – Encontro de Palhaços Aleatórios185, uma atividade que surgiu em 2014 também por iniciativa e mobilização de alunos e ex-alunos dos cursos de teatro da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Ao todo foram realizados cinco EPA(s) ocorridos sempre aos domingos pela manhã na Praça da República – centro da cidade. A atividade agregava quem quisesse vestir seu nariz e exercitar a linguagem do palhaço interagindo de modo espontâneo com o público presente. Mantendo relação com as técnicas da palhaçaria, mas ampliando sua abordagem para outras técnicas circenses está a Trupe Nós, Os Pernaltas que atua na cidade desde 2004. A atriz e palhaça Lú Maues, uma das fundadoras do grupo, afirma que a prática do treinamento em algumas técnicas circenses é o diferencial do trabalho pesquisado desde que a Trupe foi criada. Adotando uma rotina de treinamento de duas ou três vezes na semana, Lu relata que o grupo utiliza “técnicas em pernas de pau, acrobacias de chão e malabarismos.”. O reconhecimento do trabalho em técnicas circenses dessa Trupe veio em forma de convite (2004) para treinar os brincantes que desejavam acompanhar o Arrastão do Pavulagem186 andando nas pernas de pau. Foram dez anos de parceria com o Instituto Arraial do Pavulagem187, ocasião em que Nós, Os Pernaltas contribuíram bastante para a popularização dessa técnica circense na cidade. E mesmo depois de encerrada a parceria, o grupo de brincantes que participam do cortejo nas pernas de pau se mantém atestando que um consistente trabalho de formação nessa técnica foi realizado pela Trupe. O modo que Nós, Os Pernaltas encontraram para enfrentar o problema de espaços para treinar foi adotar as praças públicas da cidade como espaço de treinamento e experimentação 184 Informações colhidas no site do grupo no link: https://grupovariete.webnode.com/o-grupo/. Acessado em 12 de agosto de 2019. 185 Mais informações na página da comunidade no Facebook no link: https://www.facebook.com/comunidadeepa/. Acessado em 12 de agosto de 2019. 186 Cortejo realizado todos os anos, desde 1987, por ocasião da quadra junina. Nele participam o Batalhão da Estrela, grupo formado por cerca de 300 percursionistas que tocam canções da cultura popular paraense (Boi Bumba, Carimbó e Retumbão) além de quadrilhas juninas da cultura brasileira. Os cortejos atraem cerca 30 mil pessoas que acompanham o Boi Pavulagem pelas ruas do centro de Belém. 187 Organização autônoma da sociedade civil, sem fins lucrativos, criada em 2003. Seu objetivo é desenvolver ações de educação cultural na Amazônia que contribuam para a transmissão e fortalecimento das tradições orais por meio de uma leitura contemporânea que se utiliza de dança, música e a visualidade cênica. 210 criativa. Muitos artistas que se dedicam a arte da palhaçaria na cidade também encontram nessa via uma forma de continuar trabalhando e o Grupo Varieté também é um exemplo disso. As parcerias com instituições públicas e ONGs tem sido outro modo de sobrevivência dos grupos sem sede própria. É o caso da Cia Teatral Nós Outros. Atuando na cidade desde 2003, a cia já estabeleceu parcerias com a UNIPOP – Instituto Universidade Popular188, Cia de Dança Marina Benarrós189, Studio de Dança Lucinha Azeredo, Espaço Experimental de Dança190 e com o Espaço das Artes de Belém 191, dentre outras. Hudson Andrade, fundador da Cia, relata que essa rotatividade de espaços não impede a continuidade do trabalho da pesquisa da cia, “na medida em que não há uma determinação estanque de que linguagem seguimos, também não temos um treinamento físico específico”. Desse modo, segundo Andrade, embora a Nós Outros não adote o termo treinamento – eles também preferem a expressão “preparação corporal” – em sua rotina de trabalho já praticaram kendô, contato improvisação, artes circenses e atualmente os conceitos de vontade e contra-vontade de Augusto Boal. Nas palavras de Andrade: (...) cada processo busca um treinamento físico específico para suas demandas, conforme o pensamos enquanto encenação. (...) efetivamente é um treinamento, porque visa uma ação específica. Por exemplo: Em Batista, a base da peça era disciplina e rigor. Para isso usamos treinamento em Kendô. A mesma proposta, mas focando no uso das espadas, foi usado em Kojiki, que usaria bonecos de vara (o espetáculo não foi montado); em Dinossauros, o uso constante e excessivo da “Dança dos ventos” provocava no elenco a exaustão física que traduzia a exaustão emocional dos personagens. Até mesmo em Qorpos Santos, que aliou exercícios que promoviam a rigidez corporal até horas em absoluto silêncio desenhando e pintando mandalas. A Cia de Teatro Madalenas que atua há 17 anos na cidade adota procedimento semelhante. Leonel Rodrigues, um dos fundadores da cia, relata que a cia já buscou parcerias de espaço de ensaio no SINDIFISCO – Sindicato dos Servidores do Fisco Estadual do Pará, em apartamentos de amigos e atualmente no Casarão do Boneco. Este último espaço, aliás, é ocupado por sete grupos de teatro da cidade – In Bust Teatro Com Bonecos, Sorteio de Contos, Produtores Criativos, Vida de Circo, Projeto Vertigem e BAI – Bando de Atores Independentes – que exercitam um modo de gestão horizontal e colaborativa – tudo é negociado entre todos: agenda de ocupação dos espaços do Casarão, funções de trabalho, tarefas técnicas específicas como luz, som, 188 Entidade Civil sem fins lucrativos nascida em 1990 da mobilização de movimentos sociais e de igrejas com o objetivo de formar lideranças populares e agentes pastorais. 189 Espaço criado em 1997 voltado para atividades de dança de salão, dança do ventre, pilates e hidroginástica. 190 Criado em 1998 pela artista Waldete Brito, tem como finalidade o ensino, pesquisa e difusão da linguagem da dança na cidade. 191 Criado em 2018 por artistas de teatro da cidade, voltado a formação e fomento do teatro na cidade. 211 produção, etc. E a Cia de Teatro Madalenas é o sétimo grupo que compõe essa formação de gestão colaborativa. Rodrigues destaca, no entanto, que mesmo contando com apoio de todos lugares supracitados, a Madalenas nunca adotou um treinamento específico para suas montagens teatrais. A rotina de treinamento da sua cia se dá de modo semelhante ao relatado por Hudson Andrade, isto é, adotam um modo de treinamento de acordo com as demandas de cada processo criativo. Desse modo, Rodrigues relata que “nas duas últimas montagens teatrais, por exemplo, A Estação (2014) e Marahu (2016), a cia fez uso das técnicas dos viewpoints e adotamos uma rotina de treinos de três dias na semana, três horas por dia”. Grupos de teatro com menos tempo de atuação na cidade que seguem esse mesmo direcionamento são: Zecas Coletivo de Teatro, atuando desde 2015; o Dirigível Coletivo de Teatro, atuando desde 2011; e o Grupo Os Varisteiros que atua em Belém desde 2012. Cada um desses grupos desenvolve um modo de treinamento específico diretamente ligado à proposta de encenação do processo criativo. Dentre esses, destaco Forte como um Búfalo, recente montagem dos Varisteiros, dirigido por Marcelo Andrade. É o próprio diretor que explica o treinamento desenvolvido nesta montagem, a partir de uma prática corporal da região do arquipélago do Marajó: Faz dois anos que o grupo pesquisa a luta marajoara192 na preparação do ator para cena. Por conta da montagem treinamos 40 minutos antes de começar a criação das cenas (3 dias por semana). Colocamos em prática a luta marajoara, aprendendo os golpes e posterior a isso, na sala de ensaio, buscamos intensificar a realização dos movimentos que descobríamos através dos golpes. Em outros momentos criamos maneiras de ativar nossa consciência corporal auxiliada pelos golpes catalogados. Nosso treinamento em suma foi de usar a luta como nossa preparação para cena, construindo pontos de tensão e de relaxamento com o intuito de constituir qualidades de presença nos atuantes. Como muitos grupos da cidade, o Grupo Varisteiros, foi criado por ex-alunos do curso técnico de ator, da Escola de Teatro da UFPA. Considero que a montagem dirigida por Andrade – aluno recém-formado (2018) também pelo curso de licenciatura em teatro da UFPA – se localiza num âmbito de pesquisa que articula procedimentos artísticos em estreita relação com a formação acadêmica oferecida pela principal instituição formadora de artistas de teatro da cidade. É o próprio Andrade quem confirma isso no relato a seguir: No espetáculo Forte como um Búfalo realizamos uma direção coletiva. Todos podiam encenar, propor cenas, escrever texto. Nessa perspectiva acredito que inclusive esse espetáculo é nosso lado mais acadêmico dos últimos tempos. Porque a gente está fazendo uma pesquisa que traz muito da vivência da licenciatura. E acabo levando para minha 192 Modalidade de combate corpo-a-corpo que consiste em projetar o corpo do oponente de costas ao chão e dominá- lo. Pelo tipo de combate se assemelha a luta Greco Romana. 212 direção teatral o arcabouço acadêmico. Nossa prática teatral não é mais a mesma depois de passar por 4 anos de teorias e práticas teatrais. E neste âmbito de pesquisa destaco outros três artistas-pesquisadores que considero ser uma boa amostra de como a academia tem contribuído para gerar uma abordagem prático/teórico para o treinamento de atuantes na cidade. Os artistas-pesquisadores, os grupos de teatro aonde atuam e suas respectivas pesquisas – todas desenvolvidas no programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA – são: Renan Coelho, Cia Paraense de Potoqueiros (atua na cidade desde 2015), “Noções sobre o malabarismo sistematizado ao treinamento psicofísico do atuante cênico”, dissertação de mestrado defendida em abril de 2019; Renan Delmontt (1989), Grupo Limítrofe (atua na cidade desde 2016), “Corpo universo: uma poética das constelações compositivas como estudo e reflexão do corpo na atuação teatral”, dissertação de mestrado defendida em junho de 2019; e Silvia Luz (1975), Grupo Quintessência (atua na cidade desde 2010), “Kata Pessoal: treinamento psicofísico para atores/bailarinos por meio do judô”, dissertação de mestrado defendida em 2012. As três pesquisas recebem influência da abordagem psicofísica do treinamento do atuante desenvolvida pelo GITA, na medida em que os três artistas-pesquisadores participaram de oficinas de treinamento de atuantes promovidas pelo grupo e na medida em que as três pesquisas foram orientadas por C. Sã. Cada um ao seu modo, no entanto, trilha um caminho autônomo e investiga modos de sistematizar um treinamento psicofísico. A pesquisa de Renan Coelho aborda o treinamento a partir das artes circenses, com ênfase no malabarismo, objetivando um sistema de treino que ofereça qualidade técnica de presença ao atuante. Por sua vez, Renan Delmontt, aporta sua investigação nos procedimentos de treinamento desenvolvidos pelo ator e diretor Carlos Simione, do Grupo Lume. A partir de seu aprendizado no curso realizado com Simione, em Campinas em 2018, Delmontt procura desenvolver seu próprio método de treinamento objetivando proficiências para atuação. Essa proposta defendida no mestrado encontra-se em andamento na sua pesquisa de doutorado intitulada “Corpo Fenômeno: Um estudo fenomenológico teatral sobre o estado de atuação do ator”. O mesmo ocorre com Silvia Luz que atualmente aprofunda a proposta do treinamento no “kata pessoal” em pesquisa de doutorado em andamento intitulada “Kata pessoal: uma metodologia dialética entre o treinamento psicofísico e a criação cênica”. A pesquisa de Silvia Luz, aliás, encontra-se no mesmo escopo de treinamento com artes marciais e meditativas que o GITA pratica, pois ela adota o judô, arte marcial japonesa, como treinamento psicofísico pra cena e objetiva 213 estabelecer o “kata pessoal” – isto é, uma sequência de movimentos codificados que cada atuante elabora a partir das premissas técnicas do judô – como um elemento operativo que preencha a lacuna entre a rotina dos treinos e o processo de criação poética do atuante. Artista marcial, faixa preta, com mais de vinte e cinco anos de prática de judô, Silvia Luz também é artista-pesquisadora do GITA desde 2012 e seu envolvimento com o treinamento sistematizado por Zarrilli, e praticado no grupo, tem lhe proporcionado articular sua própria metodologia de treinamento. E embora ocorram outras experiências com artes marciais, praticadas em alguma escala, por outros grupos da cidade – caso dos Palhaços Trovadores (Tai chi ch uan e kung fu) e do Grupo Teatral Anthares (karatê e capoeira), supracitados – somente o GITA e o Quintessência adotaram e desenvolvem uma investigação contínua e de longo prazo tendo as artes marciais como treinamento de atuantes. É possível inferir pelo que foi relatado até aqui pelos artistas citados que a questão do espaço adequado para a prática do treinamento seja um dos principais motivos disso ocorrer. O próprio Quintessência sofre com esse problema e já teve que realizar seus treinamentos em espaços cedidos pelo Pará Clube193, UNIPOP e a própria Escola de Teatro e Dança da UFPA. Atualmente o grupo ocupa uma pequena sala no Terminal Rodoviário de Belém que abriga a rotina de três dias de treinos por semana, duas horas por dia. Neste sentido, o GITA, sem dúvida, é um privilegiado, pois dispõe de sala de trabalho para treinamento na Escola e Teatro e Dança da UFPA, além do apoio institucional da universidade. Desse modo, não é de surpreender que muitos grupos da cidade que adotam algum procedimento de treinamento – exercícios ou técnicas de aquecimento – o considerem como “preparação corporal” pra cena e não propriamente uma pesquisa voltada diretamente ao treinamento de atuantes. A questão da infraestrutura/políticas públicas para os grupos da cidade se impõe como uma variante de peso e estabelece limites práticos que não podem deixar de ser considerados quando se pensa e problematiza os “quartos fantasmas” de Belém. É importante e curioso notar que embora os artistas de teatro da cidade tenham estabelecido, ao longo dessas duas primeiras décadas do século XXI, uma “rede de espaços artísticos autopoéticos”– supracitados e problematizados na seção “Por uma arqueologita da direção teatral em Belém”–, que se apresentam como uma micropolítica de resistência para 193 Sede de uma associação desportiva fundada em 1906, localizada no centro da cidade. 214 enfrentar a ausência de políticas culturais para a categoria, somente o espaço sede da Cia Atores Contemporâneos tinha como foco de trabalho uma pesquisa de linguagem fundada num sistema de treinamento para atuantes. Os demais espaços, embora abriguem eventualmente grupos que, de algum modo realizam uma prática de treinamento de atuantes, desenvolvem pesquisas direcionadas a outras linguagens como, por exemplo: as investigações de Performance na interface das mídias digitais desenvolvida por Nando Lima, no seu Estúdio Reator; a linguagem do teatro com bonecos – que agrega teatro de animação e teatro de ator – do grupo In Bust, desenvolvidas no Casarão do Boneco; e as pesquisas de palhaçaria do grupo Palhaços Trovadores, na Casa dos Palhaços. Ou seja, essa rede de espaços autopoéticos desenvolvem pesquisas experimentais que relacionam e tensionam o paradigma de atuação operante na cidade: o paradigma do texto. Estabeleço o projeto Tribuna do Cretino194 como ponto de partida para fundamentar essa inferência e refletir sobre os pressupostos que informam e atravessam os “quartos fantasmas” da cidade. De minha autoria, esse projeto tem o objetivo de pensar o teatro produzido na cidade refletindo e debatendo conteúdo e forma presentes nas montagens, por meio de críticas teatrais. Coordenando-o, desenvolvo atividades de formação em crítica teatral e já tive oportunidade de escrever mais de trinta críticas, além de revisar todo o conteúdo de material que é enviado para publicação (quase duzentas críticas até o presente momento – agosto de 2019). Tomando essa experiência como referência, observo que a produção teatral local, embora desenvolva uma poética experimental diretamente influenciada e ligada à rede de espaços autopoéticos que foi criada na cidade pelos artistas de teatro há pelo menos duas décadas, poética essa que prima pelo contato corpo a corpo com o espectador, ou para usar o pensamento de Wlad Lima “uma estética da proximidade” (2008, p. 196) que tem por princípio a aplicação da fórmula espacial unitária de Grotowski (2007) que flexibiliza a relação entre espectador/atuante, palco e plateia e desestabiliza o texto dramatúrgico como único indutor de criação das cenas rasgando-o, atravessando-o e/ou hibridizando-o com histórias de vida, depoimentos pessoais que acrescentam camadas cênicas e tessituras dramáticas de variados teores, embora isso se estabeleça de modo categórico na cidade, ainda sim o paradigma do texto exerce papel estruturante em boa parte – quiçá na maioria – das 194 Em atividade desde 2014, o projeto já publicou seis edições impressas da TRIBUNA DO CRETINO – Revista de Crítica em Teatro (ISSN: 2359-4926) totalizando 155 críticas teatrais e encontra-se com outras duas edições no prelo. O projeto também abriga uma página virtual onde compartilha toda a produção escrita do projeto no seguinte link: https://www.tribunadocretino.com.br 215 montagens teatrais. Alguns dados ajudarão a entender a força que o texto exerce na poética da cidade. Considerando somente os dados das publicações impressas do CRETINO – isto é, as críticas que analisam as montagens de janeiro de 2015 a julho de 2017 – é possível perceber o seguinte quadro: Tabela 2: Dados das seis publicações impressas da Tribuna do cretino – Revista de Crítica teatral 78 Montagens Teatrais Analisadas Edição Vol. 01/Nº 01 9 Montagens Teatrais  3 textos de domínio público: “O Auto da Feira” – Gil Vicente; “Barrela” – Plínio Marcos; “Zé” – Fernando Marques.  3 textos autorais: “Ópera Profano” – Carlos Correia; “Zeca de uma cesta só” – Criação Coletiva; “Ouça meu filho” – Criação Coletiva.  Performance: Maresia - Projeto Vertigem;  Palhaçaria: “Palhaços surdos” - Cia Mãos Livres;  Colagem de textos: “Oração ao tempo” – Prática de montagem / ETDUFPA ; Edição Vol. 01/Nº 02 17 Montagens Teatrais  Texto de domínio público: “As Bacantes” – Eurípedes.  3 Textos adaptados: “A Revolução dos Bichos” – George Orwell; “Palácio dos Urubus” – Ricardo Meireles; Fábulas infantis – Diversos autores;  2 Colagens de textos: Fragmentos de Obras de Jean Genet; “Toda nudez será castigada” – Nelson Rodrigues;  2 textos autorais: “O Assassinato de Machado de Assis” – Carlos Correia; “Rosa dos ventos” – Mateus Moura e Rafael Couto.  Recriação de Pássaro Junino: “Pássaro” – Dirigível Coletivo de Teatro.  3 Pesquisas Corporais: Mitos – Resultado de Disciplina Técnicas Corporais/ETDFUPA; “Visita a casa da atriz” – Cia Atores Contemporâneos; “Da cabeça aos Pés” – Grupo Experimental de Teatro;  4 Performances: “Em busca do meu xamã” – Leandro Haick; “Assim seja... O divino High Tech” – Bando de Atores Independentes; “A sombra dos homens ausentes – Estúdio Reator; “Trunfo” – Projeto Vertigem;  Teatro com Bonecos: Fio de Pão – In Bust Teatro com Bonecos.  Experimento cênico sensorial: Pelos olhos dela – Faculdade FIBRA. Edição Vol. 02/Nº 03 17 Montagens Teatrais  3 Textos de domínio público: “As Eumênides” – Ésquilo; “Édipo-Rei” – Sófocles; “Baden-Baden” – Bertold Brecht;  6 textos autorais: “La Fabula” – Ester Sá; “Dúbio” – Fábio Limah; “Negro” – Tamires Tavares; “Auto do coração” – Grupo Cuíra; “Auto da lua crescente” – Fundação Curro Velho; “Casa das Madalenas” – Criação Coletiva;  2 Textos adaptados: “O pequeno príncipe” – Dirigível Coletivo de Teatro; “O mistério de feirinha” – Pedro Bandeira;  4 Performances: “Em caso de emergência quebre o vidro” – Estúdio Reator; “Memórias, retalhos e fios: cenas teatrais em Belém do Pará” 216 Denis Bezerra; “Apartamento 69” – Caled Garcês; “Arco-íris invisível” – Lurralle Amaral;  2 Palhaçarias: “Querem Caferem?” – Palhaços Estrelita e Wisquisito; “Quer bolacha?” – Palhaço Black. Edição Vol. 02/Nº 04 9 Montagens Teatrais  Colagem de textos: Fragmentos de Samuel Beckett – Grupo Palha;  5 textos autorais: “Antes de ir embora” – Diana Klautau, Etna Campbell e Giscele Damasceno; “A começar pelo pôr do sol” – Rafael Couto; “A lenda do boto cor de rosa” – Criação coletiva Cia Corifeus de Teatro; “Terra Preta” – Criação Coletiva GTU; “Bar do Rei” – Fabio Limah e Patrícia Grigolleto;  Palhaçaria: “Varieté” – Nós, Os Pernaltas.  2 Performances: “Maura” – Denis Bezerra; “Assim seja... O divino high tech” – Bando de Atores Independentes; “Projeto reator eterno: instalações das lembranças” – Estúdio Reator; “O velório de Dona Pereira” – Produtores Criativos; Edição Vol. 03/Nº 05 19 Montagens Teatrais  5 Textos de domínio público: “O Cortiço” – Aluísio de Azevedo; “Biedermann e os Incendiários” – Mas Frish; “O Abajur Lilás” – Plínio Marcos; “Nadim Nadinha Contra o Rei do Fuleiró” – Mario Brasini; “A Bela e a fera” Jeanne Marie Leprince.  5 textos autorais: “PopPorn” – Saulo Sisnando; “Lúgubre” – Breno Monteiro e Lauro Sousa; “Falando Sobre Flores” – Renan Coelho; “Marahu” – Saulo Sisnando; “Quarta-Feira de Cinzas” – Ana Marceliano.  3 Palhaçarias: “A Vingança de Ringo” – Palhaços Trovadores; “Queijo com Goiabada” – Cia Notáveis Clowns; “Quem não deve não temer!” – Grupo Quatrúpedes de Teatro;  Pesquisa corporal: “Cerimônia de Olhares” – Cia Atores Contemporâneos;  Teatro de Animação: “O Conto das Duas Ilhas” – Projeto Camapu.  2 Contações de história: “Histórias de carnaval” – Alana Lima, Joana Chagas e Lilian Ticia; “Sorteios de Contos” – Lucas Alberto.  Texto de Paixão de Cristo: “Paixão, Morte e Ressurreião de Cristo” – Paróquia dos Capuchinhos.  Rádio Novela: “Na Era de Ouro do Rádio” – Museu do Estado do Pará (Série Bravíssimo) Edição Vol. 03/Nº 06 7 Montagens Teatrais  Texto autorizado pelo autor: “Afrânio” – Fernando Marques.  Texto autoral: “A casa do rio” – Adriano Barroso;  2 Performances: “Parto” – Bando de Atores Independentes; Pachiculimba – Grupo Usina.  Contação de História: “O Olho que transvê” – Marluce Araújo.  Colagem de textos: “Como é que se diz Eu Te Amo” – Montagem teatral com trechos de músicas da banda Legião Urbana;  Texto Adaptado: “Santo Anjo do Senhor” – livremente a partir de Caio Fernando Abreu, Os Dragões Não Conhecem o Paraíso. 217 A classificação que apresento no quadro acima toma como referência a relação que as montagens estabelecem a partir do texto literário. Então, dentre as setenta e oito montagens teatrais analisadas temos treze que elegem um texto de domínio público – uma tragédia, comédia e/ou dramaturgia consagrada – e seguem o cânone convencional, isto é, tomam o texto literário como elemento central do processo criativo e a ele subordinam todas as funções cênicas inclusive, e principalmente, o trabalho dos atuantes. Vinte e duas outras montagens são criações de um dramaturgo local que estrutura as ações até que elas se estabeleçam como narrativa cênica. Neste caso, os procedimentos empregados são os mais variados possíveis: desde o formato convencional de concepção e escrita do texto sem nenhum vínculo prévio com o processo criativo na sala de trabalho, até as dramaturgias que nascem e se contaminam pelos indutores criativos experimentados na sala de trabalho. Outras cinco montagens trabalham com colagem de textos, procedimento que dependendo do processo criativo elege um tema central ou questão indutora a ser desenvolvida e estruturada pela encenação. E ainda outras seis montagens fazem adaptações a partir da literatura original, ou seja, realizam toda sorte de manobras textuais possíveis: (...) cortes, reorganização da narrativa, ‘abrandamentos’ estilísticos, redução do número de personagens ou dos lugares, concentração dramática em alguns momentos fortes, acréscimos e textos externos, montagem e colagem de elementos alheios, modificação da conclusão, modificação da fábula em função do discurso da encenação. (PAVIS, 2008, p.10) Agrupando as montagens nessas quatro primeiras classificações temos um total de quarenta e seis trabalhos que, de um modo ou outro, estabelecem o texto como paradigma do processo criativo. É mais da metade das montagens teatrais analisadas. É importante destacar, aproveitando a citação supracitada de Patrice Pavis, que as “manobras” próprias no procedimento das “adaptações de textos” podem ser percebidas mesmo quando se trata de uma obra dramática e/ou tragédia clássica. Exemplo disso é a montagem “Atena em solo viril”195, dirigida por mim em 2015/2016, na qual a tragédia “As Eumênides”, de Ésquilo (524-455 a.C) sofreu cortes e foi reorganizada de acordo com a questão central que movia Geane Oliveira, atuante solo do trabalho: feminismo x patriarcado. Considero importante destacar esse fato para não causar a falsa impressão de que ao afirmar que a cidade de Belém opera segundo o paradigma do texto eu esteja induzindo a imaginar um panorama de produção local completamente submisso aos traços essenciais do que Peter Szondi 195 Ver TRIBUNA DO CRETINO, Vol. 01, Nº 01, 2015. 218 (1929-1971) definiu como “drama absoluto”, caracterizado segundo ele (2010, p.30), do seguinte modo: ausência total da subjetividade do dramaturgo, nada deve existir para além das situações que ele institui por meio da conversação, diálogo intersubjetivo somente entre os personagens; passividade total do espectador; não reconhecimento de qualquer elemento que esteja fora do universo ficcional estabelecido pela situação dramática (2001, p.30). A observância irrestrita a esses traços não ocorre nas montagens da cidade. Muito pelo contrário: as montagens raramente se entregam a algum tipo de formalismo capaz de engessar o conteúdo ou a forma da encenação nos cânones do drama, principalmente aquelas cujos processos criativos são gestados e produzidos para serem apresentados nos espaços autopoéticos da cidade. Essas últimas quando elegem um texto dramático para encenar costumam tensioná-lo e atravessá-lo por diversos procedimentos épicos e/ou líricos. Exemplo disso é a montagem “Barrella”, dramaturgia de Plínio Marcos, encenada pelo grupo Varisteiros de Teatro. Tive oportunidade de conferir e escrever uma crítica teatral a partir dessa montagem e descrevi a encenação proposta do seguinte modo: (...) uma arena intimista numa sala razoavelmente pequena – dependências da Casa Dirigível Espaço Cultural – com todos os espectadores colocados sentados no chão nu, tendo todas as paredes cobertas com panadas pretas. Assim disposta, o espaço da montagem nos coloca dentro da cela e não precisamos de muito tempo para sentir o desconforto, próprio deste lugar: o calor vai impondo-se gradativamente; a dor na bunda e nas costas, por estarmos sentados no chão duro; a sensação de clausura pela ausência de janelas e de luz externa. (SILVA, 2015, p.21) Como se pode perceber pela descrição, a proposta da encenação era exatamente colocar o espectador dentro na área de atuação, aproximando-o o máximo possível do drama do garoto barrelado retratado na dramaturgia de Plínio Marcos. É importante destacar, portanto, que a produção teatral da cidade opera pelo paradigma do texto e não do texto dramático. E isso revela um elemento fundamental do modus operandi da cidade: a experimentação teatral. O termo “experimentação” que emprego aqui, encontra-se alinhado ao verbete que Patrice Pavis (2008, p.388) classifica como “teatro experimental”, isto é, práticas que se voltam contra os cânones tradicionais do drama e das receitas comerciais de rentabilidade financeira. Esse modo de experimentação encontra-se vigorosamente presente nos grupos da cidade e segundo Pavis (Ibidem) demonstra “uma atitude dos artistas perante a tradição, a instituição e a exploração comercial”. Esse tipo de atitude experimental leva os grupos da cidade a uma revisão dos procedimentos que estruturam a linguagem teatral: (...) destituição do texto como eixo principal; novas e diversas formas de conceber a relação palco-plateia; o público passa a ser parceiro da cena – dependendo da obra, de 219 modo mais contundente e explícito – e não espectador passivo e submisso; atuante como mais um signo dentro do conjunto de elementos da obra – cenografia, sonoplastia, iluminação, figurino; pluralidade de sentidos em oposição ao sentido fechado e unívoco; vulnerabilidade das fronteiras entre as linguagens das artes plásticas, cênicas e performativas; entretenimento, ação política e fruição estética agrupadas – ou diluídas? – num mesmo ato. (Ibidem, p. 50) Em Belém, um marco decisivo desse tipo de atitude experimental, sem dúvida, é o Grupo Cena Aberta criado por ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da UFPA, na década de 1970. Segundo Denis Bezerra (2013, p. 95), a montagem “Quarto de empregada” (1976) – dramaturgia de Roberto Freire com direção de Luís Otávio Barata – já apresentava inovações que a credenciavam como montagem experimental na medida em que colocava em prática alguns dos elementos supracitados. Ainda segundo Bezerra (2013, p.100-2) outras montagens que ratificam a prática do grupo no teatro experimental são: “Theastai, Theatron” (1983), cuja poética se inscreve numa corporeidade que coloca o corpo nu em relevo como forma de protesto à repressão da censura do regime militar; e depois a famosa trilogia do grupo composta por “Genet: o Palhaço de Deus” (1988), “Posição Pela Carne” (1989) e “Em Nome do Amor” (1990). Sob a direção de Luiz Otávio Barata essas montagens confirmam a opção experimental do grupo ao valorizar ainda mais uma poética corporal/sexual vinculada a uma vertente mais ritualística do teatro. A trajetória do Grupo Cena Aberta, aliás, será responsável por engendrar um lastro absolutamente experimental – numa acepção filosófica, política e estética – nos grupos da cidade vindo a influenciar toda uma geração de artistas e grupos que se formam a partir das décadas de 80 e 90. E ainda sim o paradigma do texto se mostra potente. Isso pode ser melhor percebido se retomarmos o raciocínio estabelecido a partir da Tabela 2, pois além das quarenta e seis montagens que assentam sua ênfase de modo manifesto com o texto, temos muitas outras que mantém o texto como referência importante para a encenação da montagem, embora sejam desenvolvidas numa pesquisa de linguagem específica. É o caso de algumas montagens que aparecem sob a classificação de “palhaçaria” e, dentre elas, o exemplo mais ilustrativo é “Queijo com goiabada”196. Essa montagem é uma livre adaptação de “Romeu e Julieta”, clássica tragédia de Willian Shakespeare (1564-1616), realizada pela Cia Notáveis Clowns. Adaptada livremente pela cia para o contexto paraense, a dramaturgia da montagem contextualiza o conflito trágico shakespeariano 196 Ver TRIBUNA DO CRETINO, Vol. 03, Nº 05, 2017. 220 numa disputa entre aparelhagens: a aparelhagem da família Capuleto só toca tecnobrega ao passo que a aparelhagem dos Montecchios só toca bregas marcantes do passado. Tomando esse conflito emprestado – mas (re)contextualizado – do dramaturgo inglês, assim como fragmentos dos versos originais da própria tragédia, a montagem oferece uma encenação que cruza a comicidade da linguagem do palhaço com a literatura erudita. Neste caso, o texto de Shakespeare é adaptado e oferece a estrutura narrativa cênica da montagem, desempenhada pelos atuantes por meio da linguagem da palhaçaria. Algo semelhante ocorre em “A vingança de Ringo”197, montagem do grupo Palhaços Trovadores. O texto usado pelo grupo é de um artista circense desconhecido e, inspirado nos filmes de “bangue-bangue” das décadas de 1960 e 1970, pode ser considerado um autêntico dramalhão circense. Sob a direção de Marton Maués a montagem recebe dupla marcação técnica: partituras gesto-corporais dos palhaços sincronizadas precisamente com o ritmo e intenções do texto. Desse modo, nessas duas montagens é possível perceber como o paradigma do texto se estabelece, em maior ou menor intensidade, mesmo quando a pesquisa do grupo se assenta numa linguagem específica – neste caso a palhaçaria. Observo e considero que este raciocínio se aplica tranquilamente a outras montagens cujo elevado caráter experimental das abordagens com o texto não é capaz de eliminá-lo ou descentralizá-lo do processo criativo. Agrupo nesse raciocínio os experimentos com teatro de animação, paixão de cristo, pássaro junino, teatro com bonecos e a proposta cênica da rádio novela. Embora se possa objetar que em muitos casos o que ocorra é o desenvolvimento de uma encenação a partir de tessituras dramatúrgicas e/ou dramáticas estabelecidas por um viés performático ou performativo, ainda sim considero que esse viés, no modus operandi de Belém, não rompe completamente seu vínculo com a matriz literária. O paradigma do texto ainda assim se mantém potente. A exceção, a meu ver, se concentra nas propostas de montagens classificadas como Performances e Pesquisas Corporais. Foram treze performances e quatro pesquisas corporais registradas. Nesse total de dezessete trabalhos percebo, de fato, o deslocamento do texto para uma função secundária e/ou sua total ausência. Como exemplo de trabalhos nesse formato destaco a instigante performance de Nando Lima intitulada “Em caso de emergência quebre o vidro”. A proposta e pesquisa performática de Lima, desenvolvida em seu espaço autopoético – Estúdio 197 Ver TRIBUNA DO CRETINO, Vol. 03, Nº 05, 2017. 221 Reator198 – se estabelece pela interface da linguagem do teatro e das mídias digitais. Um dos traços característicos de suas performances é a estruturação da encenação estabelecida por meio de uma simbiótica que agrega teatro, fotografias, objetos e adereços cenográficos, vídeos, sonoplastia, iluminação e projeções digitais que criam uma ambientação contemporaneamente virtual. O texto? Na performance “Em caso de emergência” ele aparece aos pedaços, em frangalhos sem conseguir estabelecer nenhum tipo de narrativa linear. Quanto às quatro pesquisas corporais registradas pelo Tribuna do Cretino, três delas estão sob responsabilidade criativa de Miguel Santa Brígida: duas são produções da Cia Atores Contemporâneos – já mencionada anteriormente – e uma é resultado artístico-pedagógico da disciplina Técnicas Corporais II – que integra o plano curricular do curso de técnico de ator da ETDFUPA e que será contextualizada mais a frente. Não poderia me limitar, no entanto, às estatísticas que extraio das publicações impressas do Tribuna do Cretino para afirmar tão categoricamente que a cidade opera sob o paradigma do texto. E embora o Tribuna do Cretino ofereça uma amostragem do que é produzido na cidade, é preciso analisar o local de formação dos grupos e artistas de teatro da cidade, pois é lá que encontraremos o conjunto de pressupostos pedagógicos, estéticos, técnicos e poéticos que fundam esse paradigma de atuação. Passarei a analisar, então, o perfil do curso de teatro da instituição acadêmica mais importante na formação de artistas de teatro da cidade: a Escola de Teatro e Dança da UFPA. Tal análise, no entanto, por abordar tema e dados muito específicos relacionados ao desenho e plano curricular da instituição encontra-se disponível no Sítio Arqueológito Virtual199. 198 Criado em 2010 na residência de Nando Lima que fica localizada no bairro de São Braz. 199 Ver aba “O Curso de Formação de Ator” no link https://arqueologita2.cms.webnode.com/o-curso-de-formacao- de-ator-da-etdufpa/ O GITA em Perspectiva 223 PLANO DE ESCAVAÇÃO: 1. Composição do texto: Escrita criativa desenvolvida em forma de narrativa livre, em primeira pessoa e com ênfase em depoimentos pessoais, afetos e memórias; diários de trabalho do diretor e dos atuantes; registros fotográficos; citações indiretas ocasionais; 2. Citações Originais: As Citações Originais em inglês se encontram no Sitio Arqueológito Virtual200 e aparecem sinalizados e ordenados em numeração romana ao final de cada citação. Gênese do GITA. A semente do que viria a se tornar a árvore GITA foi plantada pelo cidadão instigante que atende pelo nome de Cesário Augusto Pimentel de Alencar. Quem tiver oportunidade de trocar algumas palavras com ele, certamente terá grandes chances de jamais esquecer a personalidade peculiar do “carioca da gema” que resolveu radicar sua vida acadêmica e artística (não necessariamente nesta ordem) no Norte no Brasil, na cidade de Belém do Pará. Figura 11 – Cesário Augusto, Coordenador e fundador do GITA. Fonte: Arquivo do GITA. ETDUFPA, 2013. Admiro o companheiro de labuta giteira, Cesário, por sua inteligência, ética de/no trabalho, mas também por seu espírito “irrequieto”, gozador e, sobretudo, por sua capacidade de habitar extremos: de humor, de paciência, de sensibilidade humana. Considero o C. Sã como o visionário das artes cênicas que ousou erguer seu tabernáculo artístico numa cidade que dá as costas 200 Conferir na aba Citações Originais no link https://arqueologita2.cms.webnode.com/citacoes-originais/ 224 para a produção cultural de seu povo. Sendo ele o grande responsável por trazer para o Norte do Brasil os ensinamentos práticos de Phillip Zarrilli, julgo importante que ele próprio nos conte sobre a gênese do GITA nos extratos de relatos que apresento abaixo: O que pode parecer nome estrangeiro tem pronúncia, significado, origem e objetivos diferentes do que os encontrados no grande épico hindu Baghavad Gita. GITA, assim em letras maiúsculas, dá lugar a um divertido jogo de palavras. A coincidência ocorreu em um tempo de batismo do grupo, ocasião urgente em se colocar um título no projeto de pesquisa inaugurado em 2007. Receoso, pedi opinião ao colega que viria a ser, deste grupo, vice-coordenador e, desde então, seu principal colaborador (...), artista de entusiasmo contagiante, Edson Sã Fernando. “Preciso de um nome para um grupo, para um grupo de pesquisa. O que você acha de GITA?”, perguntei, de súbito, ao Edson, em uma sala da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará – UFPA. “G” de grupo, “I” de investigação, “T” de treinamento psicofísico, “A” de atuante poderia parecer, em vez de sigla, um nome de um tabernáculo voltado ao estudo da arte, cultura e religião indianas. Isso acontecendo, o futuro grupo seria suspeito de fazer aquilo que não faz, por ser a única aproximação de algo indiano constatada na prática do hatha yoga e kalarippayattu de Kerala do Sul, Índia. “Preciso de um título específico. Você tem alguma sugestão?”, continuei. “GITA parece bom, o trocadilho é adequado”, interessou-se Edson em responder e em saber do que se tratava a pesquisa. Meses depois, alguém me disse ser “gita” um termo nortista brasileiro, o qual significa “alguma coisa pequena, algo gitinha”. Alegrei-me por estar em um grupo sem receio de conotar sua pequenez orientadora de grandes propósitos. (ALENCAR, 2014, p.15) Cesário narra, com transparente paixão, o desejo de criação de seu grupo de pesquisa. Na ocasião eu era apenas um professor substituto da Escola de Teatro e Dança UFPA e não fazia ideia da parceria de palco e de vida – não necessariamente nesta ordem – que se estabeleceria entre eu, o Cesário e o GITA. Antes de chegar ao Norte do Brasil, porém, a semente do GITA já havia sido plantada, como segue relatando C. Sã: Lecionei na Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, antes de vir para a Universidade Federal do Pará. No Departamento de Artes Cênicas da UFSM, passei a praticar o treinamento psicofísico todos os sábados pela manhã. Dois alunos do curso de interpretação teatral se interessaram em participar. A aluna ficou pouco tempo. Leonel Henckes, o aluno, persistiu. (...) Fomos estranhados pela academia, amados pelos heroicos e aguerridos artistas do Teatro Universitário Independente – TUI, sentimos vontade de seguir adiante… até minha saída, logo depois, para a UFPA. Leonel, em consequência de sua dedicação parceira, envolve as lembranças de quem primeiro recebeu a transmissão do que Phillip B. Zarrilli havia passado a mim na Universidade de Exeter. Se o gaúcho Leonel pertenceu à gestação do que viria a ser o GITA, os nortistas Zeffa, Denis, Juliana e Lorena escoltaram o projeto de pesquisa organizado, com nome e registro na UFPA, comprometidamente. Nisso, procedi da mesma forma, conseguindo uma sala na ETDUFPA, a fim de praticar o treinamento, só, sem alarido. (...) As pessoas mencionadas acima, aos poucos, cada qual em seu momento, entravam na sala, curiosos, para praticar. Ali se dava a gênese do grupo. Os quatro primeiros, junto a mim, foram ao risco com gosto, entusiasmo e respeito pelo que se fazia. (...) Quando Edson chegou de vez, teria sido convidado para dirigir uma peça baseada no romance “Querelle de Brest”, do francês Jean Genet, performance sugerida por Denis. (Ibidem. p.16-7) 225 Relatando esses momentos iniciais com o entusiasmo próprio de quem só precisa de atitude, comprometimento e responsabilidade para colocar em prática a arte que exige apenas o encontro sincero entre duas pessoas – a que assiste e a que atua –, C. Sã demonstra que entendeu muito rapidamente o modus operandi da cidade que o capturou pela tigela de açaí e o acolheu como um genuíno patrício paraoara. É ele quem encerra essa breve gênese do GITA com algumas reflexões reveladoras daquilo que comungamos e acreditamos: Prosseguimos investigando. Atualmente, dos membros iniciais, Edson e eu permanecemos. Muitos passaram como membros do GITA (...), deixando suas marcas, tesouros, inquietações, envolvimento e até, mais raramente, a falta deste último. Quando tudo me interessa nas artes cênicas, o GITA, dicotomicamente, dá-me o sabor de arriscar a entrada no desconhecido, de interessar mais. Os tempos, no lugar comum de reflexões momentaneamente norteadoras de algum entendimento, são outros. Mas, por serem outros, prosseguimos, Edson e eu, junto aos colaboradores eventuais a cada ano, na convergência de propósitos nesse ofício em que ir além do imediato resultado, exercitando deficiências rumo à inalcançável obtenção plena de proficiências, corresponde ao estabelecimento de uma identidade e de uma ética, dessa forma alimentando saudáveis sensações de incompletude, de inquietude, de crença no realizar, de convivência com outras diversidades de abordar a arte do atuante cênico, de curiosidade, de pequenez. Continuemos pequenos, “gitas”, o GITA, seguindo a percepção de um universo a todo o tempo criador, gigantesco, lugar de todos, em que trabalhamos com entusiasmo e colaboração. (Ibidem. p. 17). GITA – Sítio Institucional. A Escola de Teatro e Dança da UFPA tem uma longa trajetória de formação e pesquisa em artes cênicas na cidade. Já apresentei uma breve contextualização acerca da criação dessa instituição, dando especial ênfase ao curso técnico de formação de ator que existe há cinquenta e sete anos. No entanto, a criação das licenciaturas em Dança e Teatro só ocorreu em 2008 e 2009, respectivamente, momento em que os cursos de graduação passaram a ser ofertados e abriram um novo lastro de pesquisa acadêmica na cidade, fortalecendo e ampliando ainda mais a formação artística oferecida à cidade. Seguindo a tendência de ações pedagógico-curriculares-institucionais que precisavam sedimentar o caminho para a criação das graduações, C. Sã elabora a primeira versão do projeto de pesquisa que institucionalmente vinculou o GITA ao Instituto Ciência das Artes – ICA/UFPA e, consequentemente, à ETDUFPA. Desse modo, antecipando-se em um ano à criação da licenciatura em Dança, em janeiro de 2007 o GITA é institucionalmente criado a partir do projeto intitulado “O desvelo de Procedimentos Metodológicos para Irrupções Teatrais”. 226 Oficialmente reconhecido pela Universidade Federal do Pará por meio da portaria Nº042/2007-ICA/UFPA, o GITA é cadastrado no Diretório de Grupos do CNPq no mesmo ano, tornando-se, assim, o primeiro grupo de pesquisa da instituição na área de artes cênicas. Essa ação precursora da pesquisa acadêmica em artes cênicas na UFPA, de iniciativa de C. Sã, incentivou a criação de mais dois grupos de pesquisa que foram criados logo depois: PACA – Pesquisa em Artes Cênicas da Amazônia (2008), criado por Karine Jansen; e o CIRANDA – Círculo Antropológico da Dança (2008), criado por Giselle Guilhon. A primeira versão do projeto elaborada por C. Sã foi contemplada, em 2007, com uma bolsa de pesquisa PIBIC/UFPA e outra PIBIC/CNPq, que foram desenvolvidas por Juliana Tourinho e Dênis Bezerra, respectivamente. As ações de pesquisa originadas desses bolsistas, sob a orientação e direção de C. Sã, levam à participação em Seminário de Pesquisa do SBPC – comunicações orais e demonstração prática do treinamento psicofísico – realizado em Belém, em 2007, além de gerar bastante material de criação artística para a primeira montagem teatral do grupo “Querela-Eu” 201. As versões subsequentes de projetos de pesquisa que C. Sã viria a elaborar e desenvolver na ETDUFPA, até os dias atuais, fazem algumas mudanças e/ou ajustes na abordagem da pesquisa, mas mantém sempre a mesma sistematização e metodologia de trabalho. Abaixo apresento um quadro com todas as versões de projetos matriciais elaboradas por C. Sã e que o GITA já desenvolveu. Tabela 3 – Projetos matriciais elaborados e coordenados por Cesário Augusto Período Título do Projeto Matricial do GITA Vigência: 2007-2008 Portaria: 042/2007- ICA O desvelo de Procedimentos Metodológicos para Irrupções Teatrais: investigação de fatos e condições sistematizadas na preparação de performances dramatizadas alicerçadas em textos escritos por meio de estudo de casos oriundos de práticas desenvolvidas por artistas da cena Vigência: 2009-2010 Portaria 028/2008 - ICA. Artes marciais e performance cênica no ocidente: interações metodológicas para o treinamento psicofísico do atuante cênico. Vigência: 2011-2012 Intercurso perceptivo em voluta: as aplicações de princípios do treinamento psicofísico com artes marciais em trabalhos cênicos do GITA Vigência: 2013-2014 Na intrusão da raiz para flora: intensificação do escambo de percepções entre atuante e espectador em montagens do GITA Vigência: 2015/2016 Na intrusão da raiz para flora: intensificação do escambo de percepções entre atuante e espectador em montagens do GITA. (Renovação) 201 Livre adaptação criada a partir do romance Querelle de Brest, de Jean Genet. Mais informações sobre a montagem, ver escavação Diálogos de Boteco – No Boteco do Bacú: Querela-Eu, na página 295. 227 Vigência: 2017/2018 Portaria: 070/2017 Assomos propagados no implemento de criações artísticas do GITA Vigência: 2019/2021 Portaria:083/2019 Assomos propagados no implemento de criações artísticas do GITA. (Renovação) Fonte: Pesquisa do autor Nos primeiros dezoito meses de existência do grupo – os seis primeiros (julho- dezembro/2006) ainda não vinculados oficialmente à ETDUFPA – o planejamento de atividades de pesquisa estabelecia um encontro semanal realizado sempre aos sábados à tarde, numa sala de atividades corporais nas dependências da ETDUFPA, para a prática do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas e subsequente pesquisa de criação artística. Quando passei a integrar efetivamente o corpo docente da ETDUFPA, em 2011, e me tornei oficialmente vice coordenador do grupo, a rotina de atividades práticas passou para três dias na semana – as segundas, quartas e sextas-feiras, das 9h às 12h. Desse modo, integrando o quadro oficial de pesquisadores do GITA desde 2011, passei a coordenar projetos transversais vinculados aos projetos matriciais supracitados. Minha abordagem transversal à pesquisa do GITA sempre esteve diretamente ligada à função da direção teatral e nela contribuí em cinco montagens que o grupo realizou até 2017. O quadro abaixo apresenta a relação dos projetos transversais que desenvolvi no GITA de 2011 a 2017. Tabela 4 – Projetos Transversais de minha autoria. Período Título do Projeto Matricial do GITA 2012 Do treinamento a criação cênica: montagem e direção da obra cênica Zé . Vigência: 2013 Portaria: 107/2013 – ICA Inserções, registro e continuidade na criação da montagem teatral "Zé(s) sem eira nem beira", segundo procedimentos metodológicos do GITA Vigência: 2014 Portaria: 009/2014 – ICA Montagem e direção da obra cênica “Zé” segundo procedimentos metodológicos do GITA. Vigência: 2015 Portaria: 091/2015 – ICA Montagem e direção de obra cênica segundo procedimentos metodológicos do GITA. Vigência: 2016 Portaria: 92/2016 – ICA Montagem e direção de obra cênica segundo procedimentos metodológicos do GITA. Vigência: 2017 Portaria: 009/2017 – ICA Montagem e direção de obra cênica segundo procedimentos metodológicos do GITA. Fonte: Pesquisa do autor 228 Nestes doze primeiros anos (2007-2019) de existência institucional, o GITA vem oferecendo aos estudantes de teatro (cursos técnicos e graduação) além da comunidade em geral, espaço de pesquisa para aprofundamento da linguagem teatral, com ênfase nos estudos da arte da atuação cênica e treinamento das proficiências pré-expressivas do atuante. A dinâmica de ingresso nas atividades do grupo se estabelece por participação em oficina de treinamento oferecida regularmente no início de cada ciclo de montagem. Como cada montagem teatral do grupo, em média, tem duração de dois a três anos, o fluxo e rotatividade de pesquisadores sempre foi muito grande, pois a maioria dos estudantes de teatro da ETDUFPA tem urgência pelas apresentações públicas e colocam sua ênfase no resultado da pesquisa, invariavelmente desistindo de processos longos que exigem dedicação prolongada. O investimento num período mais longo para as montagens, inicialmente, assentava-se na necessidade de apreensão e aculturação no treinamento psicofísico, base da metodologia de pesquisa do GITA. No entanto, fomos percebendo a dificuldade em manter os pesquisadores por um período maior que um ano e, então, passei a desenvolver planos de trabalho anuais para cada pesquisador objetivando fechar ciclos de pesquisas que os levassem a desenvolver todas as etapas da investigação até a apresentação pública. Abaixo apresento uma tabela com o nome e curso dos pesquisadores egressos do GITA. Tabela 5 – Pesquisadores egressos do GITA. Período Pesquisador Curso 2006 Lorena Graduação em educação Artística 2006/2007 Josefa Magalhães Fernandes Graduação em Educação Artística 2006/2007/2008 2009/2010 Juliana Ferreira Tourinho Graduação em Educação Artística 2006/2007/2008 2009 José Denis de Oliveira Bezerra Mestrado em Letras/ Curso Técnico de Ator 2007/2008/2009 2010/2011/2012 Roseane Milene de Tuñas Licenciatura em Teatro 2010 Guálter Dídimo Lima Graduação em Administração 2010 Veronica Souza Curso Técnico de Ator 2011 Ivanilde Santos da Silva Licenciatura em Teatro 2012 Diego Augusto Pereira Licenciatura em Teatro 2011 Gleiciane Farias Sardinha Graduação em Educação Artística 2012 Wallace Horst Nobre da Costa Licenciatura em Teatro 2013 Bernard Freire Licenciatura em Teatro 2013 Barbara Monteiro Licenciatura em Teatro 2013 Willian Christofile Pereira Curso Técnico de Ator 2013/2014 Marcia Carvalho Graduação em Educação Artística 2014 Elise Vasconcelos Braga Licenciatura em Teatro 2014 Fabricio Muniz de Souza Licenciatura em Teatro 229 2014/2015/2016 Geane Souza de Oliveira Licenciatura em Teatro 2014 Tainá Lima Monteiro Licenciatura em Teatro 2014 Tainá Cardoso Fortes Curso Técnico de Ator 2015 Raquel Cunha Curso Técnico de Ator 2015 Evelyn Loiola Licenciatura em Teatro 2016 Victor Hugo dos Santos Licenciatura em História 2012/2013/2017 Silvia do Socorro Luz Pinheiro Mestrado em Artes 2016/2017 Luciana Borges Pinheiro Curso Técnico de Ator 2017 Carmem Priscila Virgolino Graduação em Antropologia 2016/2017 Augusto Jones de Aragão Licenciatura em Teatro 2016 Bárbara Rayanny Gomes Viana Licenciatura em Teatro 2016 Arthur Ribeiro Curso Técnico de Ator 2016/2017 Taís Sawaki Oliveira Licenciatura em Teatro 2016/2017 Ana Luiza Pinheiro Aragão Licenciatura em Teatro 2016 João Paulo Nascimento Licenciatura em Música 2016/2017 Camila Góes Graduação em Educação Artística 2016/2017 Lorena Coelho Licenciatura em Teatro 2017 Márcia Danielle Cascaes Licenciatura em Teatro 2018/2019 Suzi Cristina da Silva Lacerda Licenciatura em Teatro Fonte: Pesquisa do autor Dentre esses pesquisadores, desenvolveram bolsas de pesquisa e/ou iniciação cientifica os relacionados na tabela abaixo: Tabela 6 – Relação dos bolsistas do GITA Ano/Tipo Bolsista/Curso Plano de trabalho 2007/2008 UFPA Juliana Ferreira Tourinho (Educação Artística) Averiguação da eficácia do treinamento actancial: até onde o treinamento informa a abordagem cênica do texto escrito? 2008/2009 FAPESPA Juliana Ferreira Tourinho (Educação Artística) Averiguação da eficácia do treinamento actancial: até onde o treinamento informa a abordagem cênica do texto escrito? 2008/2009 FAPESPA Guálter Dídimo Lima dos Santos (Administração) A atuação teatral suportada pela respiração: são as artes marciais asiáticas: uma fonte de percepção respiratória eficaz quando aplicadas à técnica do ator, afora seus fins usuais como defesa pessoal, reverência a deidades e terapia? 2009/2010 FAPESPA Diego Augusto Pereira da Rocha (Licenciatura em Teatro) Estudo diacrônico das artes marciais asiáticas utilizadas no treinamento psicofísico do GITA: uma história de memórias psicofísicas. 2009/2010 FAPESPA Ivanilde Santos da Silva (Licenciatura em Teatro) A aplicabilidade do treinamento na otimização de diferentes estéticas de montagens teatrais: a Commedia dell'Art, a Tragédia Grega e o Drama Elizabetano. 2010/2011 CNPQ Diego Augusto Pereira da Rocha (Licenciatura em Teatro) A criação do papel neutro 2010/2011 Roseane Milene de Tuñas A produção de uma obra cênica 230 CNPQ (Licenciatura em Teatro) 2011/2012 UFPA Gleiciane Farias Sardinha (Educação Artística) O self performativo 2011/2012 UFPA Jessica Silva Nascimento (Educação Artística) O self performativo 2011/2012 FAPESPA Wallace Horst Nobre da Costa (Licenciatura em Teatro) O self performativo 2013/2014 CNPQ Elise Vasconcelos Braga (Licenciatura em Teatro) Organização do acervo GITA 2013/2014 CNPQ Fabrício Muniz de Souza (Licenciatura em Teatro) Os procedimentos do GITA em solo e em grupo 2014/2015 FAPESPA Geane Souza de Oliveira (Licenciatura em Teatro) Os procedimentos do GITA em solo 2015/2016 CNPQ Marcia Danielle Cascaes (Licenciatura em Teatro) Coleta, edição e tradução do acervo do GITA 2016/2017 UFPA Tais Sawaki Oliveira (Licenciatura em Teatro) A atuação cênica, segundo metodologia do Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante- GITA, na obra Rei Lear (1605), de William Shakespeare (1564-1616) 2017/2018 CNPQ Ana Luiza Pinheiro Aragão (Licenciatura em Teatro) A atuação cênica solo, segundo metodologia do GITA, na obra Rei Lear (1605), de Willian Shakespeare (1564-1616) 2018/2019 Suzi Cristina da Silva (Licenciatura em Teatro) Proveito contíguo: apuro na sistematização de oficinas e laboratório em montagem cênica do GITA Fonte: pesquisa do autor. Observando a tabela 10 constatamos que quase metade dos pesquisadores egressos – dezesseis de um total de trinta e seis – cursam a Licenciatura em Teatro. A tabela 11 por sua vez, demonstra que dentre os quinze bolsistas que o grupo recebeu, onze eram da licenciatura em teatro. Considero que o principal motivo para isso ocorrer encontra-se no desejo de uma experiência no exercício da linguagem teatral, mais especificamente, de uma experiência de atuação numa montagem teatral, coisa que os estudantes da licenciatura em teatro consideram que o plano curricular do curso não oferece satisfatoriamente. No entanto, do ponto de vista formal isso não procede, pois, o Projeto Pedagógico da Licenciatura em Teatro (2018) assegura a realização de onze disciplinas, que são agrupadas como Práticas Cênicas e Corporais para a Formação Docente, como mostra a tabela abaixo. Tabela 7 – Disciplinas: Práticas Cênicas e Corporais para a Formação Docente. Disciplina Carga Horária Cenografia 60 horas Dispositivos de Luz 60 horas Exercício de Encenação I – Textualidade 75 horas 231 Exercício de Encenação II – Atuação 75 horas Exercício de Encenação III – Visualidade 75 horas Expressão Vocal: da cena para a sala de aula 75 horas Laboratório do Corpo 75 horas Maquiagem Cênica 75 horas Performance 75 horas Técnicas Corporais 75 horas Traje Cênico 75 horas Fonte: Projeto Pedagógico da Licenciatura em Teatro, 2018, p. 06-7. Além dessas listadas acima, ainda é possível identificar no plano curricular da licenciatura em teatro (2018) outras disciplinas como Palhaçaria (75 horas), Teatro de Animação na Escola (75 horas), Modos de ver (60 horas) e Trajetória de Si (60 horas) que embora integrem outros núcleos de formação do curso, oferecem espaço para exercício da linguagem teatral. Isso dá um total de quinze disciplinas e/ou 900 horas de aprendizado no exercício da linguagem teatral; é quase a metade da carga horária total do curso que soma 1960 horas de atividades curriculares. Por que os estudantes da licenciatura em teatro, então, consideram insatisfatório o exercício da linguagem teatral que o plano curricular do curso oferece? A resposta me parece bem simples: eles comparam o exercício da linguagem que o curso oferece com as montagens teatrais de final de ano que o curso técnico de ator realiza todos os anos. A comparação me parece inadequada na medida em que se trata de cursos diferentes, com ênfases diferentes, em processos didático-pedagógicos diferentes. Enquanto o objetivo do curso técnico de ator é a formação do atuante, a Licenciatura em Teatro forma professores de teatro. Embora isso pareça uma constatação tácita, no imaginário dos alunos de ambos os cursos isso se confunde e gera expectativas e frustrações, pois se por um lado os estudantes da licenciatura em teatro sentem- se insatisfeitos com o exercício da linguagem teatral proposto por seu plano curricular, os estudantes do curso técnico procuram se matricular na licenciatura em teatro em busca de aprofundamento teórico. E, a meu ver, o fato de ambos os cursos serem ministrados no mesmo prédio e pelo mesmo corpo docente, reforça essa confusão e tem sedimentado essa percepção dualista nos estudantes da ETDUFPA. Nunca é demais lembrar que esse dualismo (teoria/prática) que orienta o comportamento dos estudantes de teatro da ETDUFPA, repousa seus pressupostos no paradigma de atuação operante na cidade, isto é, o paradigma do texto. Logo, a expectativa dos pesquisadores iniciantes que chegam a sala de trabalho do GITA é encontrar técnicas de preparação corporal voltadas a um 232 tipo de representação de personagens. Desse modo, o dualismo teoria/prática se converte facilmente na visão dualista de atuação que cinde mente e corpo. É dentro desse panorama acadêmico que o GITA tem desenvolvido suas investigações e procura apontar uma via de pesquisa na qual a teoria esteja contemplada na prática criativa e vice- versa. Exemplo disso são os trabalhos de Tainá Lima e Geane Oliveira, duas pesquisadoras do grupo cujos resultados poéticos, sob minha direção, se tornaram também os seus trabalhos de conclusão de curso. No entanto, isso não significa que a prática do grupo não esteja imersa nesse jogo de dualismos presente na cidade e na ETDUFPA. Estamos irremediavelmente atados ao nosso contexto cultural e dele não podemos fugir. Os procedimentos metodológicos, o modo de atuação e a poética teatral que deles decorre serão, então, contextualizados e problematizados a partir de agora tendo sempre em vista essa relação paradigmática estabelecida na cidade e na ETDUFPA. Zarrilli (2002, p.16) considera isso fundamental nos processos de criação que envolvem práticas interculturais de treinamento e nos lembra que (...) podemos celebrar a liberdade de não ter que encontrar uma linguagem “universal” de uma vez por todas. Em vez disso, podemos gastar nossa energia no desafio contínuo de procurar por linguagens de atuação que melhor permitam a realização de um paradigma específico de desempenho em um contexto particular para um propósito específico.cclxxxvi GITA – Sítio dos Procedimentos Metodológicos. Os projetos matriciais de pesquisa citados acima, embora sofram alguns ajustes e adequações ao final de cada ciclo bienal de investigações, mantêm a sistemática e os procedimentos metodológicos inalterados desde o início. Desse modo, desde o projeto inaugural do GITA a metodologia de trabalho estabelece uma fase técnica e outra fase pedagógica de pesquisa, fases nas quais se desenvolvem os seguintes procedimentos: Fase Técnica subdividida em cinco etapas: a) Treinamento Psicofísico alicerçado na prática sistematizada do hatha yoga, t’ai chi ch’uan e kalarippayattu. Essa é a única etapa ininterrupta da pesquisa e estabelece uma rotina de treinamentos a cada dia de atividade. Por se tratar de práticas interculturais, o modo de integrá-las ao treinamento do atuante deve observar o contexto particular de ensino e aprendizagem onde o treinamento será aplicado sem, no entanto, negligenciar os princípios e/ou pressupostos presentes na prática de origem. No caso das artes marciais asiáticas tal aprendizado é realizado, segundo Zarrilli, por meio da repetição 233 prática e disciplinada das formas codificadas de movimentos; trata-se de um treinamento estabelecido pela relação mestre/discípulo na qual o conhecimento é transmitido “diretamente através do corpo do estudante”cclxxxvii (1993, p.13). O próprio Zarrilli segue essa orientação em sala de trabalho, tendo sido esse o modo pelo qual C. Sã recebeu seu aprendizado no treinamento psicofísico que levou para o GITA. Evidentemente que a ênfase não se encontra propriamente no desenvolvimento da relação mestre/discípulo e toda a dimensão ética nela envolvida, pois isso demanda um aprendizado de longo prazo cuja entrega e dedicação ao cultivo dos valores éticos e morais podem custar o investimento de uma vida inteira. Ao invés disso, trata-se da observância à dimensão pedagógica do aprendizado diretamente ligado ao corpo, e corpo numa inter-relação integrativa com a mente, tal como preconizada pelo paradigma das artes marciais e meditativas asiáticas. Desse modo, C. Sã segue o aprendizado recebido de Zarrilli como parâmetro para a aplicação do procedimento no GITA. Então, a iniciação e todo aprendizado dos pesquisadores nas artes marciais e meditativas asiáticas supracitadas são feitos com a sua orientação e condução prática, como o professor que encaminha a realização técnica das formas codificadas enquanto, simultaneamente, as executa. Os encaminhamentos são práticos, com pouca ou nenhuma informação verbal durante o treinamento. Dúvidas e/ou aprofundamentos são feitos ao final de cada uma das três artes praticadas. Nos quatro primeiros anos do grupo, C. Sã foi o responsável por essa função. A partir de 2011, tendo aprofundado meu aprendizado no treinamento – como retratarei mais adiante – passei a dividir essa função com C. Sã. Os princípios subjacentes às práticas psicofísicas do treinamento que realizamos podem ser conferidos, principalmente, na seção Diálogos com Zarrilli 202. Me limitarei aqui a apresentar, em linhas gerais, o modo prático de abordagem do hatha yoga, t’ai chi ch’ uan e kalarippayattu que realizamos na sala de trabalho iniciando pela preparação individual que cada pesquisador realiza, chamada “pré-treino”. Pré-Treino Antes do início de cada sessão de treinamento psicofísico há um momento de preparação individual, uma escuta solitária onde cada Giteiro procura entrar em sintonia fina consigo mesmo, uma espécie de pequena ritualização para amenizar as preocupações ordinárias da vida e se harmonizar com o trabalho energético que se dará com o treinamento. Por se tratar de procedimento 202 Ver Diálogo Primeiro no sítio arqueológito “Zarrilli com açaí”, na página xx 234 singular, cada um realiza o que julga mais conveniente para o seu processo de preparação: espreguiçamento, alongamento, meditação, etc. Não determinamos o que deverá ser feito neste momento pré-treino, apenas orientamos para a importância de cumprir os horários estabelecidos para, assim, garantir esse tempo – em média de cinco a dez minutos, no máximo – de preparação individual. Evitamos conversas e o silêncio na sala de trabalho estabelece um ambiente tranquilo e propício para o desenvolvimento das práticas psicofísicas que serão realizadas a seguir. Hatha yoga O treino com hatha yoga compreende, aproximadamente, a prática de trinta âsanas, isto é, posturas que se realizadas seguindo o paradigma do yoga, integram mente e corpo numa unidade psicofísica. O posicionamento da coluna vertebral (flexão, inversão e torção) e as três fases da respiração (1 – Puraka ou inspiração, momento que o diafragma desce; 2 – Kumbhaka ou retenção, momento que o diafragma fica parado – seja no final da inspiração [em baixo] ou no final da expiração [em cima]; 3 – Recheka ou expiração, momento que o diafragma sobe) são os principais elementos que constituem a prática dos âsanas (cf. HERMÓGENES, 1968, p.64-5) e, por isso, as descrições que constam em cada imagem são pautadas por estes elementos. As nomenclaturas em sânscrito tomam como referência o método de ensino de um dos precursores do yoga no Brasil, José Hermógenes (1921-2015). Na primeira sessão com iniciantes, indicamos o momento de cada fase da respiração, assim como orientamos a tomarem como modelo (imagem da postura) os Giteiros mais experientes que se posicionam a frente para facilitar a visualização. Nas sessões subsequentes o treino se desenvolve em absoluto silêncio; dúvidas e comentários devem ser feitos de modo objetivo ao final da sessão do hatha, se necessário. T’ai chi ch’ uan Encerrada a sessão do hatha yoga, realizamos um intervalo, de no máximo três minutos, para bebermos água e/ou comermos uma fruta (bananas é o mais recomendado). Quando não há comentários ou dúvidas sobre o hatha yoga, passamos imediatamente ao t’ai chi ch’ uan. Diferente das três fases da respiração do hatha yoga, no t’ai chi ch’ uan praticamos a circularidade entre inspiração e expiração, executadas de modo suave e leve e sem interrupção entre cada fase. A circularidade na respiração é informada pelos princípios yin e yang os conceitos do taoísmo que expressam a complementaridade que existe em todas as coisas. 235 Assim, ao executar as duas sequencias de movimentos que utilizamos no treinamento, indicamos para o praticante se manter conectado: primeiramente a circularidade da respiração; ao impulso do movimento que deve partir do dantian, região localizada no abdômen, logo abaixo do umbigo; as transferências de peso que devem ser realizadas de uma perna a outra de modo lento e progressivo; as relações de complementaridade espaciais: se o foco específico está à frente, mantenha atenção com o que se encontra atrás; se o foco específico se dirige para o alto, mantenha atenção com o que está em baixo; se der três passos à frente, mantenha atenção com os três passos localizados atrás, etc. Tal como fazemos no hatha yoga, na primeira sessão do iniciante indicamos os momentos de inspirar e de expirar na execução dos movimentos. Os Giteiros que já dominam a execução da sequência de movimentos codificados se posicionam à frente e servem de modelo para o aprendizado dos iniciantes. Mas por se tratar de uma sequência de movimentos, a sincronia entre movimento e respiração demanda um pouco mais de tempo para se estabelecer de modo orgânico. Kalarippayattu Encerrada a sequência de movimentos codificados do t’ai chi ch’ uan, realizamos outro breve intervalo, de no máximo três minutos, e passamos imediatamente para o Kalarippayattu. Como vimos na escavação “Diálogo Primeiro” (p. 63), o aprendizado desta [AMA], por ser informada pelo mesmo paradigma do yoga, começa com exercícios realizados a partir de posturas corporais sincronizadas com a respiração. As posturas são espécies de âsanas, mas com cadências bastante dinâmicas de deslocamento pelo espaço. Estas posturas são definidas e informadas por atitudes dos seguintes animais: elefante, cavalo, leão, serpente e javali. Para cada postura existe o momento exato de inspirar e de expirar, espaço correto de abertura das pernas, foco específico determinado, deslocamento específico pelo espaço, etc. A observância de todos estes elementos é que garante a realização adequada do exercício. Após a realização adequada de cada postura, passamos para o exercício dos chutes que incluem saltos e deslocamentos com as seguintes qualidades e formas diferentes: chute com pernas simples (chute a frente), chutes laterais, chutes pendulares e chutes circulares, todos realizados com ambas as pernas. Assim como nas posturas dos animais, há o momento adequado para inspirar e expirar. É importante apreender e dominar os momentos adequados das fases da respiração, pois como se trata de uma prática marcial a cadência das sequências codificadas é bem intensa. Assim, 236 saber o exato momento de inspirar e expirar evita que o praticante fique ofegante e exausto com o decorrer dos exercícios. O treinamento não procura exaurir a energia, mas sim cultivá-la. As sequências de movimentos codificados é a parte final do treino, pois combinam as posturas dos animais com saltos e chutes em deslocamento pelo espaço. As sequências que praticamos são: vannakkan, meippayattu e pakkakal. b) Oficinas. Como o treinamento psicofísico é uma etapa ininterrupta da pesquisa, a etapa intitulada “oficinas” pode ser considerada a primeira etapa da metodologia diretamente ligada aos processos de criação cênica. Nesta etapa, são realizados exercícios variados com o objetivo de levar o atuante a experimentar modos de perceber, compreender e articular as proficiências do treinamento psicofísico com a criação cênica. É importante destacar que nesta etapa ainda não trabalhamos com a obra indutora da montagem teatral, pois o propósito é tão somente estabelecer uma transição entre as formas codificadas do treinamento e a atuação cênica; a intenção, portanto, é levar o atuante a compreender e exercitar os elementos que se encontram presentes na forma codificada e não propriamente a repetir as formas codificadas na cena. Essa desvinculação com a obra indutora da montagem teatral deixa o atuante livre para experimentar os jogos de atuação propostos atenuando, assim, sua ansiedade por estabelecer relação direta entre o treinamento psicofísico e o papel que irá desempenhar. A condução desses exercícios é alternada entre eu e C. Sã. c) Laboratórios. É a partir desta etapa da pesquisa que o processo de criação da montagem teatral passa a ser trabalhado. A obra indutora é apresentada e os papeis que serão desempenhados são estabelecidos ao longo dos diversos experimentos desenvolvidos em sala de trabalho. Por obra indutora quero dizer o texto que será trabalhado. Sim, um texto. O processo de criação das cenas, assim como dos papeis e das partituras de ações psicofísicas são testados, repetidos, descartados, inventados e reinventados até que se estabeleçam elementos minimamente consistentes para estruturar a proposta de encenação da narrativa cênica elaborada. Na condição de diretor das montagens eu priorizo, a partir dessa etapa, um trabalho de criação desnudado de aparatos cênicos tais como figurinos, maquiagem, músicas mecânicas e/ou qualquer tipo de acessório cenográfico. A obra indutora do processo criativo é o único elemento disparador da investigação do atuante. 237 Ocasionalmente outros elementos serão inseridos à medida que a pesquisa avançar sem, no entanto, deslocarem a centralidade da encenação para outro elemento que não seja o próprio trabalho do atuante. Os projetos transversais que desenvolvo no GITA objetivam dar conta dessa etapa e, assim, assumo a condução dessa etapa da pesquisa, assim como das etapas subsequentes. E consequentemente, também assumi a direção teatral das cinco montagens que o grupo produziu até 2017. d) Ensaios. Esta é a penúltima etapa do processo de pesquisa, momento no qual todo o material elaborado e proposto pelos atuantes nos laboratórios serão amadurecidos e estruturados numa proposta de encenação teatral que será levada a público. Nessa etapa evidencia-se a relação diretor/atuante e a partir dela serão estabelecidos os demais elementos da linguagem teatral que constituirão a montagem: figurino, iluminação, ambientação sonora, elementos cenográficos e/ou cenografia. Professores colaboradores e artistas parceiros são convidados a participar dessa etapa do processo criativo e contribuem agregando conhecimento específico em determinadas funções da encenação. É o caso do professor Aníbal Pacha que estabelece parceria no desenvolvimento da cenografia e figurino das montagens do GITA; e Sônia Lopes que assinou a iluminação de todas as montagens do grupo. Ensaios abertos também são planejados com o intuito de colocar a montagem em perspectiva e debatê-la com os convidados para, então, afinar e definir os rumos finais da poética e da encenação. e) Apresentações públicas. Última etapa da fase técnica da metodologia. É o momento de apresentar a montagem teatral criada e promover o encontro entre o espectador e o atuante. Temporadas de apresentações são planejadas e realizadas com a comunidade acadêmica e externa, objetivando o efetivo exercício da atuação teatral. Concomitante à fase técnica – que compreende as cinco etapas mostradas: treino, oficinas, laboratório, ensaio e apresentação pública – o procedimento metodológico da pesquisa do GITA desenvolve uma fase pedagógica pela qual os atuantes-pesquisadores são providos de textos bibliográficos e vídeos remetentes ao treinamento e algumas perspectivas de abordagem do fenômeno da atuação psicofísica. Textos de apoio diretamente ligados à obra indutora de cada montagem também são utilizados para aprofundar a abordagem proposta. 238 Observo, no entanto, que essa fase pedagógica da pesquisa do GITA, embora ofereça uma revisão bibliográfica que considere e apresente os marcos teóricos do treinamento de atuantes – no Brasil e pelo mundo – deixa uma lacuna bibliográfica inaceitável, na medida em que não desenvolveu nenhuma ação que disponibilizasse a tradução das obras de Phillip Zarrilli, autor de referência da própria metodologia do grupo. Isso irá gerar, a meu ver, uma abordagem de pesquisa sui generis: uma prática de treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas sistematizada por Zarrilli, mas que recorre à lente de outros autores para apreensão dos princípios e premissas nele contidos. Em outras palavras: praticamos o treinamento de Zarrilli, mas nossa compreensão de treinamento psicofísico nos é dada pelos textos de Eugenio Barba, Jerzy Grotowski e/ou Peter Brook. Não é de todo inconsistente esse tipo de abordagem, na medida em que a visão desses autores partilha princípios comuns sobre o treinamento, sendo que a principal questão em comum é a abordagem de treinamento que integra a mente e o corpo do atuante; uma abordagem, portanto, não dualista de atuação. No entanto, quanto aos modos de integrar o treinamento psicofísico aos processos criativos, cada autor segue caminhos diferentes e desenvolvem trilhas de pesquisa que demandam conceitos operativos próprios, além de nomenclaturas específicas de pesquisa. Isso gerou, a meu ver, uma das principais dificuldades nos processos criativos do GITA, pois, sem conhecer os procedimentos utilizados e desenvolvidos por Zarrilli e sem sequer saber que ele classifica sua proposta de pesquisa como “Performance como processo psicofísico: expressão e modulação da energia”203, fui levado a trabalhar com as ferramentas conceituais e operativas que estavam ao meu alcance. Mas o que considero mais problemático foi não dispor destes para gerenciar as linhas de atrito e as contradições decorrentes do modo de atuação em que o GITA está imerso, ou seja, no paradigma de atuação do texto, prática incorporada ao modus operandi da cidade. 203 Ver escavação Diálogo Terceiro a partir da pg. 119. Arqueologita da direção teatral em Belém do Pará: Da segunda metade do século XX aos dias atuais 240 PLANO DE ESCAVAÇÃO: 1. Fonte primária: entrevistas semiestruturadas realizadas separadamente com diretores/encenadores da cidade de Belém do Pará, no período de novembro de 2018 a janeiro de 2019; 2. Entrevistados: Cláudio Barradas (1930), Henrique da Paz (1949), Aníbal Pacha (1957), Paulo Santana (1960), Wlad Lima (1961), Marton Maues (1961) e Miguel Santa Brígida (1963); 3. Tema das entrevistas: Direção/Encenação teatral na cidade de Belém do Pará, da segunda metade do século XX aos dias atuais; 4. Roteiro das entrevistas: Qual a primeira coisa que vem à cabeça quando pensa em direção teatral? Qual o primeiro trabalho como diretor teatral? Como se deu sua formação como diretor teatral? Quais suas influências e referências na área da direção teatral? Faz distinção entre direção teatral e encenação? Direção teatral nas Práticas de Montagem da ETDUFPA: diretor-professor ou professor-diretor? 5. Outras questões abordadas pelos entrevistados: Política cultural da cidade e os espaços alternativos de ocupação poética da classe artística; fatos históricos acerca da criação do curso de teatro na UFPA; relação do curso com a formação de artistas na cidade, dentre outras. 6. Composição do texto: antologia extraída das transcrições dos sete entrevistados. 7. Desenvolvimento: trama ficcional que se estabelece em formato de diálogo reunindo os sete entrevistados no Solar dos Silva para um debate cujo tema se encontra supracitado. 8. Tratamento da fonte primária: exercício de livre adaptação e recriação transpondo o pensamento formulado em linguagem oral (ocasião das entrevistas) para uma formulação em linguagem escrita (apresentada no diálogo). 9. Filtros literários: Alguns nomes mencionados pelos interlocutores foram substituídos por criptônimos com o intuito de preservar a integridade dos citados e sempre que isso ocorrer o nome virá sinalizado com um asterisco (*) no final; preservam-se os palavrões usados pelos entrevistados com o intuito de preservar o frescor, o ambiente informal e descontraído presente por ocasião da coleta dos dados; no entanto, eles virão em itálico e grafados em substitutivos moderados. 10. Apresentação dos entrevistados: Aníbal Pacha: Natural de Belém, nascido em 1957. Membro fundador da In Bust Teatro com Bonecos. No Teatro de Animação atua como diretor, ator-manipulador e bonequeiro; no teatro atua como diretor, cenógrafo, figurinista e aderecista; no vídeo e no cinema atua como diretor, diretor de imagem, direção de arte e figurino; na televisão participou do programa Cata Lendas da TV Cultura do Pará ao lado da In Bust Teatro com Bonecos, na função de direção de arte, bonequeiro, cenógrafo e intérprete; É docente da Universidade Federal do Pará (2011), locado no Instituto de Ciências da Arte – Escola de Teatro e Dança - UFPA. Cláudio Barradas: Teatrólogo, ator, diretor e padre. Formado pela primeira turma da Escola de Teatro e Dança da UFPA (1961-1964). Exerceu a docência na ETDUFPA até 1992, ano que se 241 ordena padre da arquidiocese de Belém (hoje ele tem o título de cônego). Trabalhou como ator de cinema nos filmes “Um dia qualquer”, “Marajó, barreira do mar”, “Um diamante, cinco balas” e “Brutos e inocentes”, todos dirigidos por Libero Luxardo. Trabalhou como jornalista, ator e diretor de radionovelas na Pará Rádio Clube e fez teleteatro na TV Marajoara. No teatro dirigiu e atuou em mais de trinta espetáculos; premiado em diversos festivais de teatro nacionais. Henrique da Paz: Natural de Belém, nascido em 1949. Membro fundador do Grupo GRUTA de Teatro. Atua como ator e diretor de teatro e ator de cinema. Graduado em Licenciatura Plena pelo Curso de Educação Artística da UFPA (1985). Paulo Santana: Ator, Cantor, Diretor Teatral, Professor e Publicitário. Fundador do Grupo de Teatro Palha (1980) no qual exerce as funções de diretor e encenador teatral. Atuou e/ou dirigiu mais de 90 espetáculos nas áreas de Teatro, Música e Dança. Desenvolve atividades de extensão e pesquisa teatral, com ênfase no teatro popular e na linguagem da interpretação teatral. Professor da ETDUFPA. Exerceu os cargos de Diretor do Teatro Universitário Cláudio Barradas e Coordenador do curso de Licenciatura em Teatro da UFPa / PARFOR. Marton Maués: Fundador do grupo Palhaços Trovadores (1998). Ator e diretor teatral. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Pará (1993), mestrado e doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2004). Professor da ETDUFPA. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Expressão Vocal, Corpo e Máscara, Palhaçaria, atuando principalmente nos seguintes temas: riso, palhaço, cultura popular, comicidade e circo. Miguel Santa Brígida: Fundador e diretor da Cia Atores Contemporâneos (1991) que pesquisa o Teatro do Movimento. É autor e Diretor de 25 espetáculos e performances criadas pela Cia, premiadas diversas vezes nacionalmente em mostras e festivais. Dirigiu por quinze anos O Auto do Círio – produzido pela ETDUFPA, espetáculo registrado em 2004 pelo IPHAN como Bem Imaterial da Cultura Brasileira. Participou na UFPA das comissões de criação do Curso Técnico de Formação de Ator, Curso de Graduação em Teatro, Curso de Especialização em Estudos Contemporâneos do Corpo e do Programa de Pós-Graduação em Artes/PPGARTES. Wlad Lima: Artista-pesquisadora, atriz, diretora e cenógrafa de teatro na cidade de Belém do Pará. Possui doutorado e mestrado em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia PPGAC/UFBA e graduação em Ciências Sociais pela UNAMA. Fez um Pós-doutoramento em Estudos Culturais junto a Universidade de Aveiro\Portugal. Professora da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Coordena o Grupo de Pesquisa GEPETU - Grupo de Estudo, Pesquisa e Experimentação em Teatro e Universidade. Diretora do Grupo Cuíra do Pará e Coletivas Xoxós. 242 Figura 12 – Mapa Arqueológito 7: Espaços autopoéticos na cidade de Belém Fonte: Demarcação feita a partir do mapa geográfico da cidade de Belém. 243 DIÁLOGO Luka oferece uma mesa de “queijos e vinhos” para receber seus mestres de teatro no Solar dos Silva. É noite e todos já se encontram presentes, inclusive Atrizg que insistiu em se fazer presente, pois desejava conhecer algumas figuras lendárias que, até então, só conhecia de ouvir falar. Dispostos à mesa, os convivas comem e bebem descontraidamente enquanto conversam sobre fazer teatro na cidade. Além de queijo e vinho também há sobre a mesa torradas, bolo, pupunha, cuscuz, café, chá gelado, sucos de fruta e água. Barradas: (descascando pupunhas) Meu irmão, eu já fiz muito teatro nessa cidade. Inclusive aqui no Jurunas... antes, muito antes, esse prédio era a sede da PRC-5204. Aí... eu trabalhei muitos anos na PRC-5. E aqui era conhecido como complexo cultural “Aldeia do Rádio” e tinha estúdio, salas de ensaio e até um auditório onde os musicais eram apresentados ao vivo. Pois bem, eu me apresentei aqui com a peça chamada “Os inimigos não mandam flores”, comédia do Pedro Bloch. Aí... eu fundei um grupo com o irmão de um grande político, os Carneiros. O grupo se chamava “Os doze”. Marton: Que doze, que nada. O grupo era formado só por três atores. Só o Cláudio pra batizar um grupo com um nome desses. Uma fraude. (gargalhadas generalizadas) Atrizg: (incrédula com uma taça de vinho na mão) Sério? Barradas: (rindo e saudoso) Doidice da minha cabeça. O grupo era eu, Lizete Sampaio e Raimundo Carneiro. Aí estreamos aqui no Jurunas no Aldeia do Rádio. Meu irmão, na estreia lotou que era tudo a convite. (risos, tosse) E no outro dia, entrada paga, foi um fracasso: não foi NIN-GUÉM!!!! E o Raimundo Carneiro – que era o homem das finanças – tinha comprado até garrafa de champanhe... aí eles começaram a chorar. Eu disse: “– Chorar o quê?! Vumbora é tomar esse champanhe.” (risos). Quando já estamos saindo, prontos pra bebemorar o fracasso, aparece um amigo meu, o Francisco, que tinha chegado do Rio. Ele vem andando todo afobado por achar que está atrasadíssimo pra assistir o espetáculo. Aí eu me escondi atrás do carro pra ele não me ver. E assim “Os doze” morreu aí. Atrizg: (curiosa) Isso foi em que ano? Barradas: 1955. 204 Pará Rádio Clube – PRC5, primeira rádio do norte do país inaugurada em 22 de abril de 1928, no bairro da Campina vindo a ser transferida para sua sede própria em 1937, exatamente no bairro do Jurunas. 244 Atrizg: Vixe!!! O público já era “mão de vaca” desde essa época. Luka: (com uma taça de vinho) Pelo menos ficou uma história engraçada pra ser contada. É a vantagem de ser um homem experiente. Barradas: Experiente, não: VE-LHO. Eu tenho 89 anos de idade e em janeiro de 2020 vou fazer 90 anos. Wlad: (surpresa) Tudo isso, Bábá? Barradas: Tudo isso e muito mais. A velhice acaba com a gente. Ainda ontem eu tava me olhando no espelho e pensei: “– Égua, que diabo de papada horrorosa, essa coisa pendurada.” (segurando a própria papada). Luka: Mas e a sabedoria que vem com a velhice? Barradas: Que sabedoria? Luka: As histórias de vida e de teatro são demonstrações de sabedoria. Barradas: (estupefato) Égua, mas tu achas que isso é sabedoria? (risos) É experiência, meu irmão. Olha, eu sou um criador de ditados. Um ditado meu é: “a merda quanto mais velha, mais fede”, né? (risos). Assim: dizer que velhice é sinal de sabedoria, que nada. Tem velho que é uma bosta (risos). Mas viver muito me fez aprender muita coisa. Eu errei muito. Os erros valem, né. No teatro eu também errei muito. Olha, agora... (pausa reflexiva). É melhor aprender que o teatro, por mais que não queira, tem regras. Regras básicas, por exemplo: você não pode se esconder... o ator tá lá pra ser mostrado... não pode um ator cobrir o outro. O público tem que visualizar a frente do chão. De uns tempos pra cá passou a ser comum deixar o rosto do ator no escuro. Que escuro? Como é que o público vai ver a boca do ator? Então, essas são coisas básicas. Sou muito desconfiado com essas modernices (tosse). Atrizg: Ih Luka. O professor Barradas não vai curtir as invencionices do GITA. Barradas: (interrompendo) Não me chama de professor. Me chama de Cláudio. Atrizg: (um pouco sem graça) Tudo bem. Cláudio. Barradas: Olha, vou lhe dizer uma coisa (pausa reflexiva). O teatro é o espelho da sociedade. O espelho tem uma função política, não tem? Se eu sou um velho horroroso e o espelho me mostra, então, quem critica o espelho? Isso quem fala é um autor francês, parece, Stendhal. Como é que você quer que o teatro reflita céu, se onde nós estamos é só lama? Ele tem que refletir o chão da terra. Essa é a função do teatro, além de divertir. Olhe o Brecht, que era um grande autor do teatro 245 político e que dizia assim: “– Se o teatro existir só pra divertir já é uma grande coisa”. Porque o que seria do homem sem diversão, né? Ah, fora o sexo. (gargalhadas generalizadas) Atrizg: Então, professor... quer dizer, Cláudio. Tu acreditas que o teatro de hoje reflete nosso modo de fazer teatro, quer dizer: experimentalismo e “modernices”? Marton: Gente, calma. “Devagar com o andor que o santo é de barro”. Barradas: Calma digo eu: eu sou padre, não sou Santo (risos). Marton: Tô querendo dizer que quando o Cláudio fala que “o ator não pode ficar no escuro”, que o público deve “enxergar a boca do ator”, ele tá chamando atenção para um elemento fundamental: o texto. Wlad: Concordo. Marton: E o rigor formal do Cláudio com o texto sempre foi muito grande... de esmiuçar o texto, né, trabalhar horas, dias, meses, né, em cima do texto. E isso eu herdei dele e não consigo me libertar até hoje: o trabalho rigoroso na leitura de mesa. Wlad: É verdade. Quem foi aluno dele lembra disso. E por isso considero o Cláudio como um grande diretor de ator. E aprendi com ele essa coisa muito bonita que o Marton falou, que é o trabalho de mesa. Ele dava cursos específicos pra trabalho de mesa, pra ator. Quando eu ia pra esses cursos, eu ia pra aprender como dirigir ator. Henrique: É verdade. Tive uma experiência maravilhosa com ele quando montamos o “Caosconcadicáfca”, uma adaptação de “O Processo”, do Kafka. Barradas: (com um sorriso de satisfação nostálgica) Eu lembro disso. Henrique: Estávamos no período de ensaio e eu chamei o Cláudio pra dar uma força pra gente, porque eu sabia que ele trabalhava muito bem o texto. Cara, ele deu uma técnica pra gente, fantástica, eu nunca tinha visto ninguém fazer aquilo na vida. Ele trabalhava minuciosamente a forma de emitir o texto: observar as sílabas tônicas, identificar a tônica das palavras e das frases, identificar e colocar as pausas e semi pausas no lugar certo. Enfim, esmiuçar todo o texto pra encontrar a musicalidade, a sonoridade poética de cada parte e do todo. Então, eu comecei a perceber que por meio dessa técnica o texto soava mais melódico e menos artificial. Porque no cotidiano a gente não fala mecanicamente como aparece escrito no texto. Por exemplo, vou dizer um caso extremo: “porinquanto”. Ninguém fala “por enquanto”. E se o ator falar assim no palco “por enquanto”, fica uma merda, não flui a musicalidade do texto... Eu tenho o meu texto, da época 246 desse ensaio, todo marcado. Os atores iniciantes não conseguem trabalhar o texto com essas nuances todas. E eu procuro seguir isso até hoje. Aníbal: Eu nunca me esqueço duma frase do Cláudio, numa oficina de dicção, voz e leitura de texto que ele ministrou no Centur205. Ele dizia assim: “– A palavra pode ser ‘bem dita’ ou ‘mal dita’. Mesmo se a palavra for maldita ela precisa ser bem dita”. Isso nunca saiu da minha cabeça. Era o que eu precisava ouvir como diretor pra poder orientar os atores: “a palavra precisa ser bem dita”. Ou seja, a palavra tem sempre que ser bem colocada pra que ela funcione ou, do contrário, ela vai fazer mal ao espetáculo. Wlad: Esse aspecto do trabalho do Bábá, sem dúvida, foi muito importante na nossa formação. Mas não só isso. As aulas do Cláudio, na prática encenando, eram sempre aulas de um fundo teórico muito grande. Então, tudo que ele tava fazendo – os exercícios, montando uma cena ou explicando um texto – ele sempre dizia de onde tava tirando aquilo, que autor estava sendo citado, como fez ainda há pouco ao citar o Stendhal e o Brecht. Sempre achei o Cláudio um cara muito antenado e atualizado com tudo que acontecia na linguagem teatral. Comprava muitos livros importados de Portugal. E me dava acesso a esses livros dele. Ele tava sempre lendo tudo que saía. Barradas: Eu sempre gostei de ler muito mesmo. Olhe (apontado pra Atrizg), vou lhe contar uma coisa: a prática ensina muita coisa pra gente. Eu fiz uma coisa que o Lucio Flávio Pinto chamou de “ator-objeto” e considerou “teatro avançado”, mas que descobri por um mero acaso, pois sou tímido e meio preguiçoso. (tosse) Seguinte: fui fazer uma peça e precisava de cadeira, mas não tínhamos nada pra trabalhar, nem sequer uma cadeira. Aí eu pensei: “– Ah não tem cadeira? Vamos fazer cadeira com o corpo do ator.”. Aí eu comecei a fazer tudo com o corpo do ator. Isso era novidade no Brasil. Muito depois chegou o livro Teatro Pobre e comparavam o que eu fazia com o teatro feito pelo Grotowski na Polônia e eu nem sabia que ele existia206. Mas sabe como é: eu moro em Belém que é o “cu do mundo”, né? Eu fazia teatro avançado, eu tô dizendo. Atrizg: (entusiasmada erguendo sua taça de vinho) Dona Léia, minha avó, diria assim: “O Cláudio Barradas não é pouca merda, é um pinico cheio!”. Wlad: Eu não tenho dúvidas disso, Atrizg. O Bábá devorava tudo, absolutamente tudo que lia e compartilhava o conhecimento com a gente. E eu percebo que existia uma formação paralela, 205 Centro Cultural e Turístico Tancredo Neves. O local abriga a sede da Fundação Cultural do Pará além de biblioteca pública, cinema, teatro e galerias de arte. 206 Carl Jung define esse tipo de acontecimento como “coincidências significativas” ao expor e aprofundar o conceito de “sincronicidade” em “Sincronicidade: um princípio de conexões acausais” (Cf. Jung, 2005) 247 subterrânea... (pensativa) uma formação que era pra além da sala de aula, porque a gente convivia e vivenciava aquelas leituras na prática teatral. Além de falar de autores como Barba e Beckett, por exemplo, ele fazia a gente ler Shakespeare e perceber as entrelinhas da encenação e da dramaturgia... ele sempre tava buscando algo de ponta e dava acesso a tudo que tava acontecendo no mundo teatral. Barradas: Axi!!! Assim vou ficar mais metido a besta do que já sou. Luka: É essa experiência de vida que chamo “sabedoria”. Barradas: Isso eu tenho muito. Experiência. Atrizg: (curiosa) Então fala mais. Como era a ETDUFPA na tua época? Barradas: Então, tá; bora lá. Eu sou da primeira turma do curso de teatro, 1961. Mas antes disso eu já trabalhava com grupos de teatro, a maioria do subúrbio. Num desses grupos havia um rapaz, chamado Nelson Figueiredo, que era aluno do Colégio Nazaré – ele era o queridão dos Maristas. Ele conseguiu uma sala no colégio pra nos encontrarmos todo domingo pela manhã pra estudos. Aí eu convidei todos os grupos pra participar desses encontros e passávamos a manhã toda lá no colégio. Cada um explicava o que tava fazendo, o que ia fazer... um ajudava o outro. Num desses domingos surgiu a ideia: vamos ao reitor da universidade, o doutor José Silveira Neto, grande reitor – eles nunca falam que ele foi o fundador da Escola de Teatro – e vamos pedir um curso de teatro. Aí foi quatro pessoas falar com ele: eu, Benedito Nunes, Alberto Teixeira Bastos e outra menina do grupo – não lembro o nome. Chegando lá o reitor nos recebeu muito bem e disse que faria por nós o que nós quiséssemos. Pedimos um curso de iniciação teatral e imediatamente ele nomeou o Benedito Nunes, que era professor da universidade, pra cuidar de tudo. O Benedito Nunes que já viajava com a Maria Silvia, sua esposa, com o Norte Teatro Escola para festivais, trouxe só gente deles: O Amir Haddad, de Minas Gerais, pra ensinar interpretação; Carlos Eugênio de Moura, de São Paulo, pra Voz e Dicção; Yolanda Amadei, de São Paulo, pra Expressão Corporal. O curso teve duração de um ano e era considerado de nível superior, mas eu consegui que qualquer pessoa que já trabalhasse com teatro há dois anos fizesse o curso, mesmo não tendo o segundo grau. A universidade alugou uma casa de dois andares, ali na mesma rua do SESI na Quintino entre Braz de Aguiar e Nazaré, quase esquina de um bar que havia, O Corujão. Nesse primeiro ano montamos “O velho da horta” de Gil Vicente, e o reitor, apesar de ser médico, investiu dinheiro na gente, abria a mão mesmo – a roupa, menina, era caríssima; roupa importada, veludo, era veludo mesmo, porque entrava grana. Ainda não era Escola de Teatro, era curso de iniciação teatral que durou um 248 ano, 1961. Depois nos mudaram pra uma casa maior, de um andar, e na frente dela fizeram um teatro de setenta e poucos lugares, o teatrinho Martins Pena. Essa escola pegou fogo e o incêndio destruiu tudo. Depois disso o Silveira se fechou. Porque depois do incêndio o pessoal começou a dizer assim: “Esse negócio de teatro... frescura, gastar esse dinheiro”. Aí ele não dava mais. Atrizg: Nossa!!! Quanta história!!! Barradas: E tem mais uma coisa: esse pessoal que veio de fora do estado, veio pra se aproveitar daqui pra depois ganhar bolsas de estudos. Então, eles vieram e depois foram saindo. Nos anos seguintes continuaram a vir professores de fora, mas eles vinham e iam sempre embora. Até que a Angelita, irmã da Maria Silvia, se virou e mandou buscar gente da casa e me chamou. Eu sou aluno formado da primeira turma. Então, eu sou aluno fundador e professor fundador. Luka: (admirado) Quanta responsabilidade! Atrizg: E como eram as aulas nesse período? Barradas: Vou lhe contar uma coisa: “os Nunes são muito ‘europeus’ vivendo em Belém na rua da estrela207”. Eles mandavam buscar livro em inglês, francês... só livros caríssimos pra uma molecada que ainda não lia nada. Luka: Então vocês estudavam bastante teoria. Barradas: Havia um pouco de teoria, mas as aulas eram mais ensaio, ensaio, ensaio... éramos tão loucos por teatro que domingo e feriado nós estávamos lá ensaiando. Houve uma noite... olhe lá... que eu ensaiei, só o agradecimento, umas sessenta vezes com o Amir Haddad. Era um agradecimento de um Festival Shakespeare – mostra de cenas curtas. Quando acabou o ensaio do agradecimento o Amir perguntou: “– Que tal Barradas, tá cansado?”. Eu imediatamente me ajeitei e disse: “– Não. Eu tô é alegre. Se precisar fico até duas, três horas da manhã ensaiando”. Luka: Acho que eu ainda vivi um pouco dessa pegada louca de fazer virada na escola com a minha turma (1999/2000). Lembro de marcarmos ensaio na escola em feriados e domingos pra ensaiar o Macunaíma208 dirigido pela Wlad e pela Karine Jansen. Wlad: E agora tu já sabes de quem herdei esse espírito de ensaiar sábado, domingos... Barradas: (interrompendo) Depois quando eu já era professor sentamos pra discutir como seria o formato do curso. Mas como o corpo docente não queria ter o trabalho de pensar e não queria 207 Antiga Mariz e Barros instituída oficialmente Travessa da Estrella pela lei municipal nº 8859, de 11 de julho de 2011 em homenagem póstuma a Benedito Nunes, ilustre morador do logradouro. 208 “Macunaíma em: O fim do que não tem fim.” Espetáculo resultado da prática de montagem da ETDUFPA no ano de 2000. 249 decidir PN, de um modo geral, então veio tudo pra minha costa. Aí eu propus: “– Que tal fazer no primeiro semestre as matérias: Voz e Dicção, Expressão corporal e Interpretação; e no segundo semestre só ensaio de peça, do texto escolhido pra ser encenado”. E assim foi feito. Luka: E quando começaste a dirigir? Qual foi a primeira montagem teatral que dirigiu? Barradas: Olha meu irmão, eu queria ser ator!!! Mas nos grupos que eu participava sempre me destacava como um líder. Mesmo que eu não queira, acho que sou líder por natureza. Aí acabava que precisava sempre de alguém pra tomar a iniciativa das coisas, de alguém pra encaminhar as coisas. E eu não me fazia de rogado, não. Marton: O Cláudio é o famoso “pau pra toda obra”!!! Barradas: Sou mesmo. Tô meio brocha agora, mas é da idade (risos). Eu saí do Seminário em novembro de 50 e o primeiro grupo de teatro que fundei foi na igreja de Queluz. Eu apareci lá, pois soube que estavam montando uma peça e já fui logo me metendo e assumi logo a direção. O nome da peça era “Mártires do dever”, feita a partir de uns folhetinhos católicos de capa azul. Parece que não davam nem o nome do autor. Falava de um padre que morre por não dizer o segredo de confissão. Depois eu fui fazer teatro na igreja dos Capuchinhos a convite do Alfredo, um italiano recém chegado nos Capuchinhos e que era louco por teatro. Aí eu disse “bye bye” para igreja de Queluz e fui pros Capuchinhos. Lá nós fundamos a Juventude Franciscana. E quando começamos os ensaios a molecada da rua do bairro jogava pedra, gritava, enchia o saco. Um dia eu fui lá e falei com eles: “– Entrem, venham ver o ensaio.” E acabaram entrando para o elenco. Então, eu fiz um bocado de coisa. Luka: Então, tu achas que assumir a função de diretor acontece naturalmente com aquelas pessoas que tem um instinto de liderança dentro do grupo, que tá mais a frente, que se sente um pouco mais à vontade pra propor coisas? Barradas: Não sei. Só sei que comigo foi assim. Eu queria ser ator e acabei sendo diretor também. Wlad: (interrompendo; ao Luka) Tu usaste uma palavra aí que não é muito do meu vocabulário: “instinto”. Essa palavra me incomoda muito porque eu não faço nenhuma relação com o “instinto”, com uma passagem natural; mesmo como uma passagem cultural. O único aspecto dessa passagem cultural é você nunca ter dirigido oficialmente nada e um grupo de atores te dizer: “– Agora você é diretora”. E aí você diz: “– Ok, eu sou a diretora”. Mas eu acho que tudo se dá artificialmente mesmo. Quando digo “artificialmente” quero dizer que tudo é estudado, pensado, trabalhado. Atrizg: Contigo foi diferente, então? 250 Wlad: Quando eu entrei pra escola como aluna – e sempre fui uma aluna muito estudiosa – eu, diferente do Bábá, tinha a pretensão de ser diretora. Comecei trabalhando como atriz, mas tinha a pretensão de ser diretora. Desde meu primeiro trabalho na escola já era assistente de direção, porque eu ficava numa de estudar teoricamente, de investigar a encenação, a dramaturgia, a linguagem teatral como um todo; e como assistente de direção passei a observar de perto o Cláudio trabalhando. Luka: O teu primeiro momento como diretora foi ao lado do Cláudio na ETDUFPA? Wlad: Eu sou da turma de 79, quando a escola ainda oferecia o curso livre de teatro com duração de três anos. No meu último ano de escola, 81, entro pro Grupo Experiência. Naquela época a escola proibia alunos de trabalhar em grupos. Eu fiquei indignada, fiz um ESCÂNDALO e saí da Escola. Seis anos depois eu volto, em 86, e aí eu termino o terceiro ano e concluo o curso. Em 87 me torno professora voluntária da Escola. E nesse ano o Claudio é convidado a dirigir um espetáculo na escola pelo GTU – Grupo de Teatro Universitário. Como sempre fui sua assistente de direção nos anos que cursei a escola ele me convidou pra ficar do lado dele de novo. A montagem era “A casa da viúva Costa”. Nos primeiros três meses de trabalho o Cláudio nunca apareceu pra ensaiar; todo dia dava uma desculpa diferente, as mais esfarrapadas possíveis. Então, um dia o elenco se virou pra mim e disse: “– O Cláudio não vem mais; tu és a diretora”. E eu, ingenuamente, não tinha me tocado que ele já tava armando isso pra mim desde o início. Barradas: (num sorriso cínico) Claro, não sou nada besta. Aníbal: Tu não foste a única que caiu na pegadinha do “assistente de direção”. Atrizg: O Cláudio também aplicou essa contigo, Aníbal? Aníbal: O Cláudio não. O Luís Otávio Barata. Marton: (de súbito) Égua Aníbal, também caíste na conversa da “Luísa de Marilac”. (gargalhada generalizada entre os diretores) Atrizg: (sem entender) Quem é essa Luísa? Marton: Era como chamávamos carinhosamente o Luís. Ele era uma figura. Colocava apelido em todo mundo e o dele era esse: Luísa de Marilac ou simplesmente Marilac. Aníbal: Eu digo que comecei a dirigir no susto. Conheci o Luís Otávio no processo do “Genet, O Palhaço de Deus”209. Fui chamado pra fazer as fotos e o cartaz desse trabalho porque eu trabalhava 209 Montagem teatral do Grupo Teatro Cena Aberta, 1987. Primeiro espetáculo do que viria a se tornar a famosa trilogia concebida e “dirigida” por Luís Otávio Barata. Mais sobre Luís Otávio e sua trajetória no grupo Cena Aberta conferir 251 com publicidade/propaganda e cinema. Mas o Luís Otávio foi me envolvendo no processo e acabei produzindo um documentário sobre esse espetáculo que foi exibido na estreia. Luka: Já trabalhou como assistente de direção nesse trabalho do Luís? Aníbal: (revirando os olhos) Eu não era nem assistente, mas o Barata foi me envolvendo no processo de tal forma que no final da temporada do “Genet” ele se virou pra mim e disse: “– Não quero mais esse pessoal, não aguento mais; vou me ausentar. Tu vais ficar dirigindo eles.” E SUMIU do teatro. E eu fiquei dirigindo aquele bando de gente louca do elenco. Marton: (interrompendo) Os processos do Cena Aberta210 eram um caos mesmo. O Luís Otávio não tinha essa habilidade de diretor de elenco. Ele estava mais preocupado com a concepção estética e com a visualidade do espetáculo. Pra mim ele era um “puta encenador”, mas não sabia dirigir ator, ele inclusive se perdia, não sabia organizar muito a loucura da cabeça dele. Aníbal: Por isso que pra mim, direção teatral é organização de pessoas. Organização de pessoas no sentido de equilibrar, harmonizar, dar ritmo tecnicamente à cena; mas o mais importante é o fora da cena. Quer dizer: é olhar o material humano que cada elenco traz e tentar equilibrar todas as histórias pessoais, os temperamentos, as manias e até as habilidades individuais pra ver como é que tudo se processa e se organiza na cena que chega ao público. E depois de pular essa fogueira que o Luís Otávio me colocou no final do Genet, percebi que pra ser diretor teatral eu precisava dar atenção às relações humanas, às relações de convívio diário entre pessoas muito diferentes. E saber lidar com as confusões, as cagadas que sempre aparecem nos processos criativos. Então é mais do que organizar a cena, é organizar pessoas. Marton: E tem outra: o Luís Otávio chamava gente dos mais diversos lugares e origens – imagináveis e inimagináveis – e colocava em cena. E pra quem já se sentia ator – como eu e o Henrique que também estava no processo do Genet – sentia muita dificuldade de contracenar e lidar com aquilo porque eram pessoas que não sabiam nem andar, por exemplo, em cena... e tu tinhas que conviver em espetáculos que tinha muita coisa de pele, de se tocar, de intimidade, né? a dissertação de mestrado de Michele Campos de Miranda intitulada “Performance da plenitude e performance da ausência: vida-obra de Luís Otávio Barata na cena de Belém”. 210 O Grupo Teatro Cena Aberta foi criado oficialmente no ano de 1976 sob a liderança de Luís Otávio Barata. O grupo é considerado a principal referência de militância voltada a reivindicar políticas públicas para a categoria teatral de Belém nas décadas de 70 e 80. O grupo se destaca por sua poética altamente experimental e perturbadora da ordem dos valores estabelecidos e isso o torna um genuíno representante do teatro de vanguarda na cidade, pois a estética e ideário do grupo comunga com as ideias dos principais reformadores do teatro ocidental do século XX, tais como Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Jerzy Grotowski, Peter Brook, dentre outros. Produziu vinte e um espetáculos teatrais ao longo de seus quinze anos de existência. 252 Talvez até um pouco de preconceito também... talvez com o olhar de hoje eu até entenda um pouco mais... mas naquele momento era muito estranho e caótico. Mas no meio dessa loucura toda, ele precisava de alguns atores que segurassem algumas coisas e que dialogassem esteticamente com ele, pra pensar e problematizar o espetáculo. Henrique: E na verdade eu e o Marton fomos chamados pelo Luís Otávio pra participar do Genet aos 45 minutos do segundo tempo. Eu fiquei no Cena Aberta de 76 até 85 e foi minha última participação ao lado dele, porque depois eu e o Marton retomamos as atividades do GRUTA211. Marton: (interrompendo) E a gente tava fazendo o primeiro trabalho do GRUTA –, depois de muito tempo adormecido – que era o Cínicas e Cênicas, quando o Luís chega com a gente no ensaio e diz: “– Eu preciso, desesperadamente, de vocês; eu não tenho ator. Eu tenho uns textos e eu preciso de alguém que possa segurar esses textos.” Isso faltando duas semanas pra estrear o espetáculo. Eu fiquei desconfiado. Henrique: É, mas eu resolvi ir vê como é que tava e arrastei o Marton comigo. Marton: Eu lembro que fiquei puto porque faltava pouco tempo e resolvi escolher o que eu ia fazer, pra não me sentir responsável se desse merda mais na frente. E quando a gente chegou pro ensaio é que fomos ver como estava o espetáculo. E veio a grande surpresa: o espetáculo era muito bonito. Os textos que ele selecionou eram belíssimos, lindos mesmo. Aí a gente se empolgou e criou algumas cenas juntos, eu e o Henrique. Eu fiz, inclusive, o Querrelle na peça, todo vestido de roupinha de marinheiro. Depois fomos descobrir que o “filha da mãe” do Luís já tinha até colocado o nosso nome no cartaz antes mesmo da gente ter aceitado o convite desesperado dele. Um belo dum “phela da puta!”. (erguendo a taça de água pra um brinde). Henrique: (rindo) Eu me lembro disso. O Luís Otávio era cabeção mesmo, um grande encenador que me influenciou e me fez perceber o quanto é importante a preocupação com o espaço, quer dizer com a relação palco plateia no sentido de incorporar todo o espaço numa grande cenografia. E ele fez isso, primorosamente, no “Genet”. Ele transformou o teatro Waldemar Henrique212 num templo; só que era uma visualidade com aspecto anti-religioso. 211 O Grupo Gruta de Teatro foi fundado em 1967 no distrito de Icoaraci (cerca de 20k do centro de Belém). Teve suas atividades interrompidas em 1974 principalmente por conta da censura imposta pela ditadura militar, retornando as atividades treze anos depois. É o grupo de maior longevidade que continua em atividade na cidade até os dias de hoje. (Cf. Adriano Barroso, Belém, 2017). 212 Teatro Experimental Waldemar Henrique localizado na praça da república, centro da cidade. Foi criado em 1979, fruto das reivindicações da classe teatral de Belém, liderado principalmente por Luís Otávio Barata e o Grupo Teatro Cena Aberta. 253 Atrizg: (curiosa) Como assim? Henrique: Por exemplo: nas colunas do Waldemar Henrique foram colocadas umas bonecas queimadas, distorcidas, umas fitas, uns panos velhos como se fossem aqueles anjinhos, aqueles querubins que enfeitam as colunas dos grandes templos e velas acesas espalhadas por todo o teatro. No fundo do teatro ficava uma espécie de altar sagrado feito com praticáveis altos... e quando tu entravas tocava uma música barroca só com o instrumental de órgão... e isso tudo deixava o ambiente obscuro. Alguns atores ficavam no altar como se fossem imagens de santos e lá no alto a figura de Cristo simbolizada por um pano. O espectador entrava no e se sentia num templo obscuro e ele não tinha como não fazer parte daquela cenografia porque todo o teatro estava ambientado assim. Aníbal: Isso eu aprendi com a experiência ao lado do Luís Otávio. Então, como diretor eu nunca deixo o público de fora. Acho que esse é o papel do diretor: sentar na plateia e ser o primeiro espectador do espetáculo. Então, antes deu ser o diretor, eu tenho que ser público. Porque o diretor organiza o espetáculo pra alguém ver; e esse primeiro alguém é ele próprio. Henrique: Perfeito, Aníbal. É isso mesmo. Por isso que eu acho que o Luís Otávio realmente não era diretor. Não tinha essa paciência. Ele era o “cabeção” que pensava a encenação e articulava tudo que lia sobre filosofia, psicanálise, poesia, o k-raleo a quatro... e colocava tudo em cena. O texto de “Genet”, por exemplo, como o Marton falou, era belíssimo, uma colagem de várias obras do Genet, poesia, filosofia... Wlad: (interrompendo) O Luís, assim como o Cláudio era um leitor voraz. Acho fantástico ver hoje o que ele lia naquele período: Deleuze, Foucault, Nietzsche, Lacan. E isso aparecia nos espetáculos dele. Aníbal: E eu era apaixonado pelos espetáculos do Cena Aberta, muito antes deu ir trabalhar com o Luís. Me tornei fã mesmo desde o “Theasthai Teatron”213; depois não perdia nenhuma apresentação de rua que eles faziam no Anfiteatro da Praça da República. E o que mais me atraiu e me influenciou como artista foi a estrutura desconstruída da cena, fragmentada, retalhada, descontínua... Eu nunca tinha visto isso em Belém. E o filha da mãe do Luís Otávio já me enxergava também porque ele morava no Manoel Pinto e eu morava quase do lado, na Av. Nazaré. Então, ele 213 Espetáculo autoral de Luís Otávio Barata, de 1983. O nome do espetáculo é referência direta das palavras gregas que se referiam a área destina a plateia, ou seja, “o lugar de onde se vê”. O espetáculo foi proibido pela censura federal que o considerou atentado ao pudor, principalmente por suas cenas de nudez e uso de temática bíblica. 254 já sabia que eu era fotógrafo. E me chamava de garoto da Assembleia Paraense porque eu era sócio e frequentava o clube. Atrizg: (gargalhando) “Garoto da Assembleia”. Égua Aníbal, parece título de concurso de modelo de praia. Não combina contigo (rindo). Aníbal: Isso é final da década de 70. Por isso que ele me chama pra fazer o registro do “Genet” e acabou me envolvendo no processo todo. Luka: É a tua primeira direção teatral? Aníbal: Não. O golpe fatal só veio no espetáculo seguinte “Posição Pela Carne”, que é o segundo espetáculo da trilogia do Luís, na década de 80. Então, nesse processo o Barata me chamou e disse assim: “– Tu vais ficar com a direção do Posição pela carne; eu vou escrever e tu vais dirigir esse pessoal.”. E assim foi feito. O espetáculo estreou com a minha direção, mas com o Luís Otavio direto comigo. Quando terminava os ensaios eu ia pra casa dele e reportava tudo que acontecia; ele ouvia, ficava puto com algumas coisas, mandava eu escrotear o elenco e me dava os textos pra levar pro pessoal. Acreditas que ele nunca apareceu nos ensaios? Só apareceu na estreia. Henrique: Por isso que eu digo que o Luís Otavio não era um diretor propriamente dito; ele era mais um idealizador, um coordenador; ele dominava bem a parte cenográfica, figurino, mas dirigir ator não era com ele. A parte da criação das cenas dependia muito dos atores. Se ele tivesse bons atores ele fazia bons espetáculos. O “Theastai”, que o Aníbal citou, é um bom exemplo. O espetáculo era uma criação coletiva dos atores, o Luís Otavio só estava ali dando uns toques, mas não como diretor. E foi, de fato, um grande espetáculo, como quase todos os trabalhos do Luís, porque tinha uma veia política bem crítica. Estávamos em plena ditadura militar e o Cena Aberta colocava em cena o tema da desobediência civil. Barradas: Era um subversivo. No bom e no mal sentido. Wlad: Eu sinto falta daquela pegada do Luís. O nosso teatro mudou, de certa maneira, mudou muito. Eu continuo achando a pegada do Luís – mais ainda nesses anos de polarização política e conservadorismo – aquela coisa do corpo nu, da felação, do sexo... acho que tudo isso estaria muito aqui hoje. Luka: E por que tu achas que essa pegada não existe mais hoje? Wlad: Acho que nós cansamos disso porque tava tudo muito liberado, né? Mas se o Luís tivesse vivo ele diria: “– Engano seu. Essa cidade é podre. É uma cidade de muros baixos.” E de fato, as pessoas hoje, realmente, não respeitam a diversidade. Eu acho que ele tem razão. Esse ano foi 255 muito concreto até, pra gente ver que ele tinha razão. Então, a pegada dele continua muito atual. Tá faltando a gente virar de novo. Luka: (pro Cláudio) E o teatro que o senhor fazia também tinha uma pegada política? Barradas: Eu fiz teatro durante todo o período da ditadura. E nós tínhamos fama de comunista. Aliás, nós do teatro, sempre tivemos fama: de viado, maconheiro, puta, sapatão ou subversivo. Tem nada a ver, né?. Se bem que tem uma coisa: o teatro politiza as pessoas; politiza quem faz e quem assiste. Atrizg: Mas o senhor passou por alguma situação complicada com os militares? Barradas: Me chama de Cláudio. O senhor está no céu. Sou só um padre. (pensando alto) Alguma coisa me diz que eu errei de ter escolhido ser padre. Se bem que eu sou um padre e ajudo muita gente, sobretudo. (tosse e retorna a pergunta) Olha, eu vou te falar, tive várias histórias com a Censura. Uma vez montamos uma peça com um ator gaúcho que veio pra cá, Lineu Dias e com uma aluna da escola, Carmem Soares*, filha do dono da Folha do Norte214. E como essa aluna não ganhou o papel que ela queria, ela fez o jornal espalhar que a peça era comunista. Olha lá essa “phela da puta” (risos). Aí quando chegou o dia do ensaio pra Censura o Lineu teve a ideia: “– Cláudio, você mete tudo que é palavrão que puder, inventa, inventa palavrão pra eles ficarem no palavrão e esquecer o resto”. Foi o que eu fiz. Quando o Censor viu eu falar o primeiro palavrão ele ficou com uma cara de quem pensa: “– Égua!!! O Barradas tá doido.” Atrizg: E deu certo? Barradas: Acho que sim. Ele censurou todos os palavrões, mas liberou a peça. (tosse forte). Égua tô phudido. Será que eu vou morrer na presença de vocês? (elevando os olhos) Oh senhor!!! Ele não vai me levar lá pra cima porque eu vou criar caso. (risos). Paulo: (interrompendo) Eu usava outra estratégia com meu grupo: eu preparava um espetáculo pra ele e servia docinho, salgadinhos, bolo, refrigerante, pudim, torta salgada... fazia uma festa pra desviar a atenção dele. Quando saía a liberação nós apresentávamos outra versão do espetáculo pro público, pra não dar cagada. Barradas: Agora o grande mal da Censura pra quem faz teatro aqui é que a gente tinha que mandar três cópias do texto pra Brasília. Aí, esse foi meu problema. Porque quando eu ensaio uma peça, não sei como vai ser. O teatro não é uma parede que você vai levantando tijolo por tijolo; ao 214 O jornal Folha do Norte foi um dos mais importantes periódicos do estado do Pará. Atuou na imprensa paraense de 1896 até 1974. 256 contrário, você vai construindo no ensaio. Eu construo junto com os atores. Então, eu não sei como vai ser. Como é que eu vou mandar antes? Paulo: (interrompendo) Essa coisa de construir, de compor no dia a dia do processo criativo eu aprendi com o Bábá. Aliás, eu aprendi duas coisas importantíssimas sobre direção com o Cláudio. A primeira coisa é saber contar a historinha; saber organizar a historinha no palco. O Bábá me provocou a dirigir pela primeira vez. Barradas: (exclamativo) Claro!!! Tu perguntavas demais, ficava enchendo o saco. E as tuas perguntas tinham que ser experimentadas, exercitadas por ti como ator. Paulo: Mas no começo eu perguntava exatamente porque não sabia fazer. Então como é que eu podia experimentar se achava que não sabia. Eu perguntava sobre a luz, sobre o figurino, sobre o texto, sobre a sonoplastia... porque eu não sabia como funcionava a engrenagem do teatro. Barradas: Sabia sim. Eu só estava provocando a tua intuição, a tua sensibilidade. Atrizg: (pro Paulo) E trabalhava com o Cláudio na escola de teatro? Paulo: Não. Eu era o cara da periferia, do grupo da periferia. Eu e o Rui Cabocão éramos do Grupo de Teatro João Caetano, um grupo fundado na escola Paulo Maranhão. E esse povo da periferia que fazia teatro nas escolas, nas igrejas e centros comunitários é o povo que o Cláudio organiza em laboratórios realizados nos bairros de periferia – Guamá, Jurunas... – e num domingo de cada mês ele reunia as pessoas que faziam a circulação pelos bairros no colégio Augusto Meira e passava o dia inteiro trabalhando teatro com a gente. Barradas: Eu queria fundar a FETAPA – Federação de Teatro. Eu queria que o movimento de teatro se conhecesse. Aí, um belo dia aparece alguém do SESC pedindo pra eu indicar uma pessoa, um diretor de teatro. E aí eu indiquei logo aquele moleque chato que me enchia o saco, pra me livrar logo dele. (risos e tosse). Paulo: Eu fui pro SESC me cagando de medo. Foi lá que comecei a experimentar as minhas doidices. Mas sempre com o Cláudio me ajudando, me fornecendo livros... Ele tinha uma biblioteca escandalosa ali no Panorama XXI com livros da FUNARTE, do Serviço Nacional do Teatro, todas as cartilhas... não existiam as publicações desses livros que nós temos hoje. Então, naquelas cartilhas da FUNARTE vinham jogos, discussões de jogos, inclusive eram jogos que a gente fazia com ele. E essa experiência me enriqueceu muito e todas as vezes que eu chegava com a ideia de uma peça nova e mostrava, ele dizia: “– Não estás contando a história direito; tem elementos 257 demais, corta. Ou tem pouco aqui precisava colocar mais coisa.”. E isso me doía porque era difícil ter que mexer naquilo que eu achava que já estava pronto. Barradas: Quando estamos montando uma peça nos apegamos às nossas criações e elas precisam ser mexidas, cortadas, substituídas por outros elementos, entendeu? Não é uma parede de tijolos que vai colocando um em cima do outro. Fazer teatro é saber lidar com os elementos cênicos o tempo todo. Paulo: E isso foi fundamental pra mim porque me colocou numa métrica. E é muito doido porque até as nossas loucuras, as porralouquices e os nossos delírios mais ousados precisam de uma métrica. E o Cláudio me deu essa métrica de diretor teatral com uma orientação simples: saber contar a história. E a segunda coisa que eu aprendi com o Cláudio é que dirigir é se permitir o erro. Então, se eu preciso saber contar a história, eu tenho que ter liberdade pra experimentar e me permitir errar os caminhos. Ninguém acerta de primeira, só os gênios. E pegar uma obra teatral que começa como literatura e dar vida praquilo é muito difícil. Uma coisa é o texto do autor, outra completamente diferente é a peça no palco. Como é que o verbo se transforma? Entendeu? Como é que eu alinhavo essa costura pra saber contar a história? Só errando, só dando a cara a bofete. Tá me entendendo? Por isso que eu acho que os grandes diretores vão se formando com o tempo. Pelo menos comigo foi assim: quanto mais experimentava mais eu ia ficando seguro... errava, errava, errava... mas também acertava. E o Claudio tem um papel fundamental nisso. Ele e o Luís Otávio. Eu era doido pra ir trabalhar no Cena Aberta, adorava aquelas loucuras que o Barata colocava no palco. Mas ele dizia assim pra mim: “– Tu tens que ter as tuas doidices. Tu já inventas. Tu faz bem pra k-raleo. Tu és um garoto promissor, além de bonito tu és ‘du k-raleo!’. Continua inventando as tuas doidices” Marton: Eu também percebo essa influência do Cláudio e do Luís na minha formação de diretor. E além deles o Henrique também. Essas três figuras, pra mim, são bases de tudo que eu faço como diretor. Com o Luís Otávio a questão é mais iconoclasta mesmo, romper com o formalismo que o Cláudio tinha em excesso; eu aprendi a detonar isso com Luís e buscar novas formas de transgredir dentro e fora do teatro. E com o Henrique um olhar muito carinhoso e rigoroso com o ator. Então, o Henrique tem muito isso de burilar o ator, de buscar que o ator descubra “n” formas de interpretar a personagem. Então, o Cláudio e o Henrique me deram esse suporte de direção de ator e o Barata o suporte de encenador. E depois o resto eu fui... eu fui descobrindo, na marra mesmo. Errando muito também, como diz o Paulo. 258 Wlad: É bom te ouvir, Marton, porque eu também insisto muito nessa distinção entre o diretor e o encenador. Luka: E te consideras o quê: diretora ou encenadora? Wlad: Eu acho que comecei sendo diretora. Como todo mundo que começa a fazer teatro, eu comecei ligada a um texto. Por mais experimental que fosse – e eu sou uma diretora que já nasceu no teatro experimental – no início da minha trajetória eu montava textos, peças... e ficava muito ligada ao trabalho do ator, no embate de criação com o ator. Hoje eu acho que já estou mais desligada disso. Hoje estou mais ligada a um processo de construção de uma textualidade da cena. Quero dizer com isso que tudo que escrevo e faço é pra ir pra cena. Dificilmente uma dramaturgia minha sobrevive para além da cena como literatura dramática. E a minha atenção, o foco não é mais o trabalho do ator – somente –, é numa linguagem inteira. Eu gosto de pensar no discurso cênico. Que tipo de discurso esse espetáculo tem? O que ele está falando pra cidade, pra esse tempo de agora. O que ele está provocando em mim? O que ele provoca nas pessoas? E aí eu começo a me preocupar muito mais com outras coisas que não é o trabalho do ator. Por exemplo: essa relação “palco e plateia” é o meu grande tesão. O quê que tem? Qual é a estrutura cenográfica? Que tipo de ambiente é esse e o quê que ele tem pra dizer nessa relação entre o ator e seus espectadores. Então, hoje eu me sinto mais uma encenadora do que uma diretora teatral. Henrique: A Wlad falou em “tesão” e isso me fez pensar numa coisa: quando me dedico a um processo de criação eu mergulho num outro mundo, numa outra realidade; fico completamente entregue durante o período que tô trabalhando como diretor, praticamente 24 horas por dia; mesmo quando durmo as ideias ficam povoando minha cabeça, alimentando esse mundo imaginário do processo criativo. E isso me consome. Mas é um consumir prazeroso; cansativo, mas muito prazeroso. E quando a obra fica pronta é quase um orgasmo que sinto diante da criação. Não dá nem pra explicar a emoção, a sensação que eu tenho quando realizo uma obra. É uma coisa que envolve tesão mesmo, como a Wlad falou. Atrizg: E qual é o teu tesão? Quer dizer: a Wlad se considera uma encenadora. O teu tesão também é trabalhar como encenador? Henrique: O meu grande tesão é montar espetáculos que contribuam, de alguma forma, pra um processo de reflexão crítica, pra discussão de algum problema ou de alguma questão social. Isso, pra mim, é o mais importante e faz parte da proposta do GRUTA. Tornar a obra útil – intelectualmente e politicamente falando. Porque a “arte pela arte” há muito que não me satisfaz. 259 Então as perguntas que movem os meus processos de criação são: Pra quê? Por que fazer? E pra quem fazer? Eu vou fazer pros burgueses dessa porra de cidade? Fazer um teatrão burguês que enaltece os valores ultrapassados dessa sociedade podre? Nem pensar. O Boal dizia que o teatro não revoluciona PN, mas é um ensaio pra revolução. Não a revolução de armas, mas a revolução intelectual, de consciência política, de cidadania. Esse é o meu tesão. Luka: Mas como encenador ou como diretor? Henrique: Eu não tenho problema com isso. Acho que sou as duas coisas. Eu sou um autodidata, nunca fiz escola de teatro, então, esses conceitos não me embaraçam ou me preocupam. Na verdade de uns tempos pra cá eu penso no diretor como um coordenador dando espaço e liberdade pra criação de todos: atores, cenógrafos, figurinistas e iluminadores. De todas essas funções a única coisa que não entendo é de iluminação – por isso gosto de trabalhar com a Sonia Lopes que é iluminadora de mão cheia. Então, eu trabalho dialogando com todo mundo – atores, cenógrafo, figurinista e até mesmo com o iluminador – ouço as ideias e me permito interferir no trabalho. Se o cara me apresenta uma ideia que corresponde exatamente ao que imagino, não interfiro em nada. Mas tem espetáculo que eu interfiro. Luka: Os atores recebem bem as tuas interferências, as tuas ideias? Henrique: O meu jeito de dirigir também tem uma influência grande da minha formação em artes plásticas. Então, quando tô dirigindo os atores eu vejo as cenas como quadros e procuro exercitar meu olhar estético pra equilibrar todos os elementos. Às vezes os atores até se surpreendem quando eu digo: “– Nesse momento que acontece isso, eu quero que todos estejam em diagonal, de costas pro público, em relação aquele ponto lá.”. Barradas: Égua!!! Que diabo de diretor é esse? Meu irmão quando eu trabalho como ator não gosto de ser guiado, não sou marionete pra ficar “olha pra lá, olha pra aculá”. Olhe, o teatro quer a libertação do público; e o primeiro que tem que se libertar é o ator. Então, como é que eu vou ser um diretor como um ditador? Eu dou tudo pro ator, pra que ele crie. Agora se ele não criar, eu dou- lhe um chute na bunda mesmo; não dá pra fazer teatro. Teatro não é pra gente preguiçosa. (tosse). Henrique: Mas quando eu oriento a marcação dos atores eu argumento primeiro pela estética da cena – equilíbrio, composição e harmonia; e em segundo lugar argumento pela própria ideia que sustenta a encenação e cada personagem. Então, não é uma coisa impositiva, ditatorial. Mas meu olhar de artista plástico concebe os quadros com uma métrica muito particular; uma métrica de espaço (equilíbrio, composição e harmonia) e de tempo (ritmo e andamento das cenas). Eu sou 260 muito chato com essas duas coisas. Então, eu trabalho muito com os atores a pulsação da cena e a pulsação do espetáculo, porque se o ator não souber fazer isso ele acaba com o espetáculo, fica uma merda, chatice total. O ator, por exemplo, não pode nunca assistir o espetáculo que tá atuando; muitos atores iniciantes, ingenuamente, ficam esperando só o momento da deixa do seu texto e esquecem de acompanhar todo o fluxo e pulsação que se desenrola o tempo todo. Mesmo fora de cena os atores não podem assistir ao espetáculo, é preciso manter o fluxo da linha dramática até a última cena, senão o espetáculo cai num buraco e pra tirar ele de lá é muito difícil. É impressionante: se o espetáculo começar fora do ritmo ou da pulsação dramática estabelecida, já era. Phudeu!!! Atrizg: E como faz pra exercitar essa percepção do ator? Henrique: Isso se aprende com o tempo: fazendo e vendo muitos espetáculos. Mas eu também trabalho, insistentemente, o texto com os atores. E isso eu também aprendi com o Cláudio. O texto tem que ser dito do modo mais impecável possível: modulações, pausas, semi-pausas, os grandes silêncios... isso tudo que eu chamo de música do texto. Então, no período do trabalho de mesa eu concebo o texto como se fosse uma partitura musical. Então, cada letra que forma uma palavra é um fonema, cada letra é uma nota, tem um som diferente; se tu juntas essas letras já tens uma palavra que já é a música. E enquanto o espetáculo não toma jeito com relação a isso, eu não deixo estrear. Dizer o texto no teatro desenvolve uma série de técnicas, não basta decorar e falar, não é isso. Então, eu digo pros atores: repete, repete, repete... até a música ficar afinada. Barradas: (interrompendo) Eu também levo o teatro muito a sério, sou capaz de ficar o dia inteiro sem sair do teatro, só ensaiando. Eu tive um diretor que era um horror: ajeitava o dedo de cada ator, como ele queria. Égua, ser marionete??!! Como eu não queria que fizessem isso comigo eu também não faço isso com o ator. Então, quando preparava o ator eu queria que ele criasse. Uma vez, no meio do ensaio, uma aluna me perguntou: “– E agora o que eu faço, Barradas? Eu disse: “– Esfrega a bunda no chão” (risos). Fui contar essa história pra minha mãe, que era uma moralista, ficou chateada. Mas é uma resposta pra acabar com a preguiça mental. O aluno quer tudo do professor. Não sei se é assim ainda hoje. Luka: Não sei se mudou muito não. Como reverter isso? Barradas: Eu usava a maiêutica socrática. Sócrates, o filósofo grego, fazia mil perguntas pros seus discípulos até eles concluírem que não sabiam de PN. Quando você conclui que não sabe de nada aí é que você tá pronto pra começar. Era o que eu fazia. Pra fazer o preguiçoso criar eu não dizia 261 NADA. Eu ia descobrindo: descobrindo junto com os alunos. O que é criar? Já viu alguém criando? É tentar, experimentar, errar, repetir, buscar outra coisa pra experimentar. Aí podia levar o tempo que precisasse – uma hora, duas, três... não importava. Essa que é a diferença, porque se o aluno descobre, se ele cria a partir do que experimentou, ele não esquece nunca. Agora se eu dou “papappum”, o filha da mãe decora e depois esquece. (tosse) Era assim. Luka: E no teu tempo já se fazia essa distinção entre diretor e encenador? Barradas: Não. Não se falava em nada disso. Marton: Claro. A maneira de fazer teatro mudou e as nomenclaturas também. Encenador, diretor... pra mim essa coisas se confundem. Tenho a impressão que o encenador veio substituir a figura daquele diretor mais rígido de antigamente que decidia tudo sozinho. E o encenador é essa cara que pensa de um modo mais global, como bem disse o Henrique. Luka: E te consideras o que? Marton: Um diretor. Não me chamo de encenador não. Eu sou antigo. (risos). Aníbal: Eu acho que essas funções estão muito juntas. Mas em determinados momentos elas precisam se separar. O diretor é o organizador de pessoas, o encaminhador do processo criativo. Então, pra mim o diretor tem que agir com a cabeça, com um olhar distanciado da cena e das pessoas, até pra poder sentir melhor a temperatura de cada ator, a pulsação do elenco e converter isso em prol da cena e do espetáculo. O diretor tem que ter cabeça fria pra administrar as cagadas do processo criativo. Embora eu me considere um diretor que tá sempre muito perto do ator apontando caminhos, ou seja, eu dirijo de dentro da cena, sempre lado a lado com o ator, mas usando a minha cabeça pra encaminhar as coisas. O diretor precisa garantir a harmonia dentro e fora da cena. Luka: E o encenador? Aníbal: O encenador é o que vive a cena; o encenador tem que ter vivência de palco pra entender as engrenagens, a maquinaria teatral, as técnicas de luz, figurino, sonoplastia e todas essas mídias virtuais que estão invadindo o palco contemporâneo. Eu acredito que o encenador tem que pensar essas coisas todas a partir do corpo do ator, ou seja, o que funciona e o que não funciona a partir do trabalho corporal do ator. Miguel: (num grito triunfal) Epaaaaaa!!! Chegou meu carro alegórico. (risos) Atrizg: Caramba, Miguel. Me deu um susto. Tava todo quietinho até agora. 262 Miguel: Eu tava esperando passar todas as alas do desfile: comissão de frente, carro abre alas, mestre sala e porta bandeira, bateria... Luka: E qual é a tua ala? Miguel: Meu carro alegórico sempre foi uma pesquisa autoral fundado no corpo. Luka: Um diretor que conduz uma pesquisa a partir da pesquisa corporal dos atores? MIGUEL: Diretor não. Um encenador do corpo. Desde o início eu sempre usei “Encenador”. E pra mim, conceitualmente falando, existe uma grande diferença: o diretor é aquele que stricto senso organiza a cena e trabalha mais próximo dos atores – como bem disse o Aníbal e o Henrique –; o trabalho do encenador tem um alcance muito maior. Em primeiro lugar o encenador é aquele que propõe uma questão de pesquisa. A questão de pesquisa, no entanto, não se limita ao processo de criação dos atores, mas também à criação do cenógrafo, do figurinista, do iluminador, do dramaturgo... Então, eu pluralizo o trabalho do encenador e digo que ele é um organizador de processo(s) criativo(s). O encenador, portanto, pensa processos disparadores autorais com toda a equipe envolvida no espetáculo. A premissa de encenação da Cia Atores Contemporâneos, por exemplo, é: um teatro não verbal fundamentado no corpo, no treinamento do corpo do ator. Atrizg: Treinamento. Esse é o carro alegórico do Luka também (risos). Tu falas de que tipo de treinamento? Miguel: Falo do treinamento voltado ao que denominei de Teatro do Movimento da Cia: uma investigação da relação “homem x movimento” no binômio “tempo/espaço”. E isso é o núcleo das proposições conceituais de Laban que eu adotei pra Cia. Atrizg: E tu sistematizaste isso na escola de teatro? Miguel: Não. Quer dizer, não a escola de teatro da UFPA, mas a formação que eu tive na CAL durante minha vivencia de quatro anos no Rio de Janeiro. Na CAL eu destaco três grandes nomes. O primeiro é o da Neide Neves. Minha professora de corpo na CAL, a Neide, esposa do Rainer Vianna – filho do casal mineiro Angel e Klauss Vianna – trabalhava tecnicamente com a ideia de consciência corporal como elemento disparador da criação. Neide e o Rainer foram os primeiros a trabalhar o corpo por esse viés na CAL, quer dizer um trabalho voltado à consciência de corpo, experimentos e elementos de dança livre, que foi um conceito/técnica criada por Klaus e Angel Vianna. Atrizg: Chegou a conhecer o Rainer Vianna? 263 Miguel: Tive aulas com ele. O segundo nome é o da Maria Thaís, da Cia de Teatro Balangan. A linha de trabalho de corpo dela era mais focada na questão da expressividade do ator numa relação com Grotowski. E o terceiro nome é Helena Varvaki, a pessoa que me introduziu e me colocou em contato com o trabalho da acrobacia por esse viés do treinamento na linha de Eugênio Barba. Atrizg: Que bacana. Miguel: Terminando a CAL eu fui trabalhar com a Regina Miranda na Cia Atores Contemporâneos do Rio de Janeiro que é a grande contribuição pra mim nesse pensamento da Cia Atores Contemporâneos e meu encontro com Laban. E fui trabalhar também com o grupo da Helena Varvaki, o Teatro Kairos. A Helena trabalhava acrobacia, subir o Vidigal, caminhar na praia, treinamento físico, bastão, enfim. E fui fazer dança livre com Angel Viana. Então, percebe que tem a dança atravessada e atravessando sempre. Vivi muitas experiências depois de formado na CAL, mas de todas quem me influencia até hoje como encenador do corpo é a Regina Miranda, do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro e do Centro LABAN-RJ. Com ela eu fiquei dois anos trabalhando como assistente de direção e me alimentando de Laban. Aliás, durante os três anos de CAL eu sempre fiz a assistência de direção. E devo isso ao Clóvis Levi, meu professor de interpretação que me deu B na minha primeira avaliação e disse: “– Miguel, eu acho que o teu foco é ser diretor. Eu vejo você sempre pensando, organizando, dominando, organizando a cena, tendo uma liderança com as pessoas. Começa a pensar nisso”. Daí em diante fui assistente de direção das montagens de final de ano da CAL. Então, esse é o núcleo da minha formação como encenador do corpo. Atrizg: É engraçado ouvir a experiência de vocês e perceber que os grandes diretores da cidade começaram trabalhando como atores. Wlad: É verdade. Os diretores dessa cidade são formados pela vivência. Quer dizer: é o estar fazendo na prática que forma essa criatura. É quase um pacto: a gente começa a dizer, nos nossos grupos, que a criatura é um diretor e ele se torna um diretor e acabou. Aníbal: Formação pela prática. Concordo. Uma formação pela observação, quer dizer observar aquele que já dirige e aprender vivenciando a experiência. Uma coisa que eu sinto falta é do ponto de encontro pra discutir teatro depois dos ensaios. A gente frequentava bares ou outros lugares, mas não pra discutir a nossa vida, os nossos problemas pessoais, a gente saía dos ensaios e continuava o processo de discussão e entrava numa outra relação, num outro nível de discussão sobre criação, experimentação, encenação, figurino, luz... a gente discutia filosoficamente teatro. 264 Paulo: É verdade, Aníbal. E o Bar do Parque era um desses lugares estratégicos porque estava ali perto do Waldemar Henrique, do lado do Teatro da Paz. Mas também tinha um boteco 24 horas na Trav. 3 de Maio, esquina com a Pariquis. O Luís Otavio chegava e me via bebendo sozinho – porque eu não era de nenhum grupo grande da cidade, eu era de grupo da periferia – e me chamava. “– Hei moleque, tu estás aí sozinho? Vem beber pra cá.” E nós bebíamos até de manhã. Então, a gente discutia sobre os trabalhos que os grupos da cidade estavam montando. Eu vivi um momento de ouro do teatro em Belém que grupos produziam, experimentavam muito e se provocavam. O Luís Otavio dizia que a gente parecia inimigos nos seminários, encontros, debates e mostras de teatro da FESAT. Mas quando a gente se encontrava no bar ele dizia: “Todos os grupos de teatro têm que existir. Eu provoco o teu grupo a fazer mais; o Geraldo Salles me provoca e aí o teatro tem essa força, essa energia que te prepara pra ser melhor do que eu. Tu queres trabalhar pra ser melhor do que eu, do que o Cena Aberta. Eu confronto esses moleques; eu te confronto moleque”. O Geraldo era o grande diretor do Grupo Experiência, o Luís Otávio do Cena Aberta, o Claudio Barradas tava em todo lugar mais principalmente dirigindo na Escola de Teatro e eu bebia e discutia teatro com esses diretores phodões... É claro que a gente também aproveitava pra falar mal dos outros, mas tudo que a gente lia sobre teatro, tudo que a gente fazia na sala de ensaio alimentava muito mais as discussões do que o falar mal gratuitamente dos outros. Luka: É o tipo de vivência que sinto muita falta hoje em dia. Lugares de encontro para discutir teatro; principalmente esses lugares não formais como os bares da cidade. Acho que ainda vivi um tiquinho disso no final dos anos 90, quando entrei pra ETDUFPA e comecei a conhecer os artistas de teatro da cidade. Atrizg: Antes tu fazias teatro aqui no Jurunas, né? Luka: Sim. Primeiro na Paróquia de Santa Teresinha, envolvido com os grupos jovens e pastorais da igreja, depois no Rancho quando fundamos o Grupo de Teatro Tenetehara em 1996 e nos apresentávamos nos centros comunitários aqui do bairro. Quando entrei pra escola de teatro eu já tinha a vivencia de diretor de teatro há algum tempo. Então, o meu laboratório de diretor aconteceu aqui no Jurunas. Paulo: Parecido comigo. Isso é bacana porque é uma vivência de grupo. Marton: Nós tivemos um momento na cidade que os grupos tiveram um peso muito grande, eram muito fortes na cena cultural da cidade. 265 Henrique: Eu chamo esse momento de “era de ouro do teatro de Belém”. Década de 70, 80 até um pouco de 90. Não existia um monte de grupos aqui em Belém; os grupos mais importantes eram o Experiência215 e depois surgiu o Cena Aberta. Mas desde essa época eu percebo a pegada experimental muito forte no trabalho dessa geração, principalmente no trabalho do Cena Aberta. Luka: E isso te influencia muito? Henrique: Sem dúvida. Uma dessas influências é o trabalho que chamávamos de colagem: colagem de textos, fotografias, vídeos, etc. Hoje se fala em teatro pós-dramático com essa pegada não linear do drama. Mas o Cena Aberta já fazia isso desde a década de 70. Quem me disse isso foi o Kil Abreu, crítico de teatro, paraense, que trabalha em São Paulo há um tempão. Marton: O Cínicas e Cênicas também é um bom exemplo de colagem. Henrique: Eu dirigi esse espetáculo em 1987com Marton na assistência de direção. Marton: A gente dirigia e atuava. Duas bichas doidas. (risos). Henrique: (rindo) Era exatamente isso, cara: a gente trazia um monte de coisas, um monte de cenas que a gente foi montando aleatoriamente. Esse trabalho foi montado no Waldemar Henrique; montamos o palco como se fosse uma passarela em “L”; o fundo era todo de jornal – a gente não tinha grana... Atrizg: (suspirando) Novidade! Henrique: Lembro que nós vivíamos o momento que as pichações invadiram a cidade. Então, agregamos isso no trabalho e nessa parede de fundo de jornal cada ator fez a sua pichação, criou na hora. E eu acredito que foi a primeira vez que aconteceu aqui em Belém um espetáculo multimídia. (risos). Atrizg: (desconfiada) Não entendi a piada. Henrique: Porque a gente usava em cena um televisor e um vídeo cassete, recentemente lançados aqui no Brasil. Marton: A gente não sabia nem mexer. Aníbal: Eu que emprestei o meu vídeo cassete pra eles. Henrique: Chamamos o Aníbal pro trabalho, porque só ele sabia mexer. Ele ligava e deixava tudo no ponto, pro ator chegar, clicar e pronto, o vídeo aparecia no monitor da televisão. Mas teve um dia que deu uma CAGADA. 215 Criado em 1971 num colégio particular, o Colégio Moderno. Gerado Salles é um dos fundadores e o grande diretor do grupo que revelou atores renomados como Natal Silva, Cacá Carvalho e Fafá de Belém. 266 Marton: Uma atriz, doida, mexeu errado e destrambelhou tudo e ninguém sabia ajeitar. Henrique: Isso no meio da cena. E eu vendo aquilo da coxia chamo o Aníbal e digo: “Pô Aníbal. Vai lá. Só tu podes resolver”. Aníbal: Égua. Eu morria de vergonha. Nunca tinha entrado em cena. Henrique: Ele entrou rapidinho, no susto, resolveu e rasgou de cena. (risos). Aníbal: Eu queria morrer, me enterrar. (risos). Henrique: Então, esse espetáculo era “multimídia”, posso dizer que era pós-dramático. Luka: Não só pelo uso dessa parafernália tecnologia pra época, mas por conta da estrutura feita com colagens de diversas coisas, inclusive com vídeos, né? Henrique: Exatamente. E por eu ter iniciado numa época muito efervescente de golpe militar, de censura – a gente sofreu muita repressão lá em Icoaraci – nossa criatividade estava sempre a mil pra driblar a censura. Então, eu considero que os espetáculos dessa era de ouro do teatro em Belém já tinham uma estética “moderna” pra época. Não queríamos fazer a linha “teatrão” tradicional com palco italiano e tal. Nossas influências eram o Teatro de Arena, Augusto Boal e pelos espetáculos que vinham pra cá. Atrizg: Chegavam muitos espetáculos de fora aqui em Belém, nessa época? Henrique: Alguns chegavam. E eu lembro que um desses espetáculos marcantes que me influenciou e me influencia até hoje foi o Macunaíma (1978), do Antunes Filho, com Cacá de Carvalho no elenco. Pra mim esse espetáculo foi fantástico porque eles trabalhavam com o mínimo de objetos de cena, mas eles pegavam os poucos objetos cênicos e transformavam em tudo que fosse preciso pra contar a história. Daí em diante eu adotei isso pra minha poética: usar o mínimo possível pra fazer construir a cena. Luka: Eu adoro isso também. O palco nu, o espaço vazio216 que vai sendo significado pela ação dos atuantes. Henrique: Então, essas coisas todas nós já experimentávamos nessa época de ouro. Wlad: (interrompendo) Eu acho que teve um momento político muito forte e de muita luta da categoria teatral aqui em Belém. Década de 70, todo o Pará sem nenhum teatro, praticamente, a não ser o Teatro da Paz. Aí os grupos vão pra um enfrentamento grande com o poder público; muita luta, briga, briga; o Cena Aberta nasce e vai pra rua e ocupa artisticamente o anfiteatro da Praça da República, sempre contestando aquela situação da política cultural para os grupos de teatro da 216 NB: (Brook, 1970). 267 cidade. Até que em 79 nós conseguimos o Teatro Experimental Waldemar Henrique. Aí vem a década de 80. Uma década de muita produção e muita pesquisa feita pelos grupos de teatro e não pela universidade – até porque a universidade, nesse momento, é totalmente decadente. E o Waldemar Henrique é o núcleo fundamental das experimentações dos grupos da cidade. A universidade ela só vai aparecer... só vai voltar a renascer, na década que o Waldemar Henrique nos é tirado. Luka: Eu vivi esse capítulo triste da história. E o marco disso, pra mim, é a reabertura do Waldemar Henrique, no final dos anos 90 – após reforma que se arrastou por anos. A cerimônia comemorativa que oficializava a reabertura do teatro contou com a participação do então governador Almir Gabriel e sua comitiva de tucanos, dentre eles o tucanalha secretário de cultura Paulo Chaves (todos se benzem em gesto de repúdio). E nós, artistas de teatro, fomos impedidos de entrar. Mas à medida que mais artistas chegavam e se concentravam na porta fechada a indignação aumentava. Até que a indignação se transformou em protesto: cercamos o teatro, esmurramos portas e janelas e realizamos um apitaço com muita gritaria para incomodar e forçar a entrada na cerimônia. Não conseguimos entrar, mas provocamos uma confusão suficiente para interromper o ato comemorativo. Não tardou para o batalhão de choque da PM ser acionado para fazer a escolta do governador e suas aves de rapina. Um corredor com guardas empunhando escudos e cassetetes se formou da porta do teatro até o camburão da PM. Alguns performers mais ousados entre nós, desfilavam no meio do corredor da PM, debochando da situação como se estivessem a desfilar no “barrados no baile fashion week”. O Tucano-Mor deixou o teatro sob os nossos apupos acalorados e ainda foi atingido de raspão por uma lata de cerveja vazia. Daí em diante percebo que o Teatro Waldemar Henrique foi, cada vez mais, sendo deixado de lado pela classe teatral. Wlad: Engraçado isso, né? Tem toda uma relação. Esse estremecimento com a SECULT fez com que nós nos retirássemos do Waldemar Henrique. Porque teve um momento que nós paramos de ligar pro Waldemar Henrique. E começamos a fugir pros porões da cidade. Então, hoje há uma rede imensa de espaços217, sobrevivendo “mal e porcamente”, mas sobrevivendo. Alguns não aguentam a barra e desaparecem. Mas outros lutam pra se manter todo dia. Eu acho que hoje a 217 Roseane Tavares em sua dissertação de mestrado intitulada “Contra dispositivos-mapas de uma rede de espaços artísticos autopoéticos em Belém do Pará” realiza uma cartografia desses espaços na cidade. Ao defini-los como “espaços artísticos autopoéticos”, Tavares os entende como micropolíticas de resistência frente à visão elitista que dominou a Secretária de Cultura do Pará, na pessoa do secretário Paulo Chaves que esteve à frente desta pasta por nada menos que vinte anos (PPGArtes-UFPA, 2017). 268 gente faz uma política cultural independente do estado. E acho muito importante isso. A maior parte da nossa produção não vai pra teatro. Porque o Paulo Chaves só soube fazer isso: quanto mais teatro ele construía, mais a gente saía dos espaços teatrais oficiais, porque a política dele não era pra ser ocupada pelos grupos da cidade. Então, eu acho que tem uma política cultural feita pelos artistas nessa cidade, muito forte. E isso é muito importante. Barradas: Ah, mas e a questão da acústica e da visibilidade? Eu prezo muito por isso. O teatro do Sesi – Gabriel Hermes – é o melhor teatro de Belém porque tem acústica e visibilidade em todo canto; o Teatro da Paz não tem acústica e nem visibilidade graças as várias reformas que foram estragando o bichinho. E nesses espaços novos não tem nada disso. Teatro tem que ser feito em teatro. E se nós temos teatros oficiais na cidade eles têm que ser ocupados por nós. Wlad: Mas, eu acho que a gente virou as costas pros equipamentos oficiais. E virar as costas significa fazer uma poética totalmente diferente, entende? Um modo de pensar direção, um modo de pensar encenação, a relação com o espaço e com o público se alterou totalmente. É tudo micro políticas, mesmo. E isso dá uma diferença. Paulo: Com certeza. Isso é muito presente na cidade e essa é a minha viagem também: um teatro ao alcance do tato, próximo, bem próximo, onde atores e público sintam a respiração um do outro, a respiração do cara que criou toda aquela fabulação se chocando com a respiração do espectador pra que ele seja tocado, de alguma forma, e o espetáculo atravesse a sua vida. Wlad: (interrompendo) E eu percebo isso como um movimento global. No período do meu pós- doc em Portugal fui visitar alguns grupos e observei a organização da união europeia – as propostas e projetos voltados à política cultural – olhando pra essas pequenas iniciativas, de pequenos lugares, pequenas plateias, pequenas sedes. Então, eu vi um país como Portugal, acreditando e começando a fazer investimento nisso. Cada espaço que surge, sempre tem uma badalação enorme. Aí eu penso: “– Gente tem quarenta, só em Belém.” Vejo o teatro brasileiro de grupo, fazendo o que a gente tá fazendo há muito também nas suas sedes. Se eu fosse Secretária de Cultura uma das primeiras coisas que eu ia fazer era exatamente abraçar todo esse fenômeno que a cidade vive de espaços culturais que nós artistas criamos; ou seja, abraçar a política de ocupação cultural que foi uma iniciativa particular de vários artistas que transformaram a sua casa num centro de cultura. Paulo: (interrompendo) Égua é tudo o que eu quero pra minha vida. Na verdade é uma meta que eu quero realizar em breve. Ter o meu próprio espaço, a minha própria sede. Só que eu acho que eles estão muito mal, “minhas colegas”. Eles abriram pra eles; os espaços não são compartilhados 269 com os outros grupos. Aí continua um monte de gente querendo fazer sem ter espaço pra fazer. Então, quando eu abrir a minha sede a primeira coisa que vou fazer é chamar os grupos pra ocupar esse espaço. Aníbal: Quero te dizer que essa política de ocupação por outros grupos nós fazemos lá no Casarão do Boneco218. Hoje o gerenciamento e manutenção do espaço são feitos por diversos Coletivos de Teatro da cidade. Então, há muito tempo deixou de ser o Casarão da In Bust. Agora mesmo assim, não é nada fácil manter um espaço cultural aberto. Paulo: Eu imagino, mano. Mas tem outra coisa que me incomoda muito: continua o exercício de quinta a domingo. Uma temporada de quinta a domingo não dá tempo pra amadurecer nada do espetáculo. E é a mesma dinâmica dos teatros oficiais. Não dá tempo de mexer no processo de viajar e amadurecer as doidices da nossa cabeça. E nos teatros oficiais, viu Cláudio, ainda tem uma coisa pior que é você ficar refém dos funcionários, do horário dos funcionários. O cara chega nove da manhã, tu tens que chegar com teu material e montar tudo, cenário, iluminação, marcar tudo com os atores e estrear nove da noite. Que doidice! E a pauta é uma fortuna pra tu ficar nesse esquema louco. Eu tô fora. Não aceito. Então, eu acho muito legal o movimento dos espaços. É outro exercício poético mesmo, muito mais orgânico. Agora precisa ter outra dinâmica de funcionamento. Eu quero ficar em cartaz seis meses com meu espetáculo. Criar uma estratégia de divulgação, chamar a imprensa, usar as mídias sociais, o boca a boca, divulgar e colocar o público nesses espaços de quinta a domingo, mas durante uma boa temporada de apresentações. Wlad: (interrompendo com os braços cruzados e expressão de incrédula) Seria lindo isso, Paulo. Quem me dera passar seis meses em cartaz num teatro. Mas isso é romântico demais. A realidade é bem diferente. Alguns espaços culturais só não sobrevivem mais tempo porque sempre tem alguém que tá pagando pro lugar existir; sempre tem alguém que tá pagando mais que os outros aquele espaço; até aquela criatura não aguentar mais e sucumbir junto com o espaço. Às vezes tem vinte pessoas trabalhando ali, mas sempre tem uma criatura que acha que não pode contribuir com dinheiro porque ele já tá dando a sua mão de obra, sabe? Eu vi isso acontecer, várias vezes. A Casa Cuíra219 é isso. O Cuíra é pago pelas três mulheres que trabalham ali, hoje em dia: a Zê, a Lucila (mãe) e a Olinda. Tudo é pago por elas. Se tem um curso livre, parte do curso livre – mesmo o 218 Sede do Grupo In Bust Teatro com Bonecos. Localizada no bairro de Batista Campos, abriga hoje os seguintes coletivos artísticos: Produtores Criativos, Sorteio de Contos, Projeto Vertigem, Vida de Circo, Núcleo de Performance, Companhia Madalenas de Teatro e Bando de Atores Independentes (BAI). 219 Desde 2016 é a segunda sede do Grupo Cuíra de Teatro. É também a residência da família Vasconcelos Charone. 270 curso sendo cobrando – é pago por elas; elas que pagam as despesas de água, luz, IPTU... aí o dia que elas não puderem pagar, aquilo fecha. Mas aquilo podia ser pago por um grupo muito maior de pessoas. Como às vezes nós temos outros interesses, para além do Capital, então esses espaços sobrevivem um pouco mais por idealismo dessas pessoas. Eu acredito que o meu teatro é para além do Capital. Então, ultimamente a gente tem trabalhado no sentido de otimizar tudo: luz, água, alimentação, transporte... todo mundo trabalhando junto e dividindo tudo. Quando alguém ganha um edital, todo mundo para o seu e vem junto, trabalhar junto e otimizar o processo. Não é criação coletiva, é processo colaborativo em todos os custos. O problema é que tem gente que não sabe fazer assim ou não compreende dessa forma e diz: “– Só faço com um salário mínimo.”. Imagina: se são vinte pessoas envolvidas, são vinte salários mínimos. E quem vai pagar essa conta? O dono do espaço? Luka: Se a gente considerar que tá fazendo essa micro política dos espaços culturais há pelo menos duas décadas, então, a gente pode dizer que essa poética muito particular que nasce nesses pequenos espaços – uma poética do corpo-a-corpo, tudo ao alcance do tato – influencia o olhar dos alunos que entram atualmente na escola de teatro? Wlad: Sem nenhuma sombra de dúvida. Marton: É nesse sentido que considero atualmente a ETDUFPA como a grande formadora de artistas de teatro da cidade. Os grupos estão completamente sem força, estão muito enfraquecidos. Os espetáculos da escola, podem até não agradar completamente as pessoas, mas é inegável que eles apresentam uma consistência. Atrizg: Tu estás falando das montagens dos cursos técnicos? Marton: Exatamente. E tô me referindo aos últimos quinze anos pelo menos. Não é uma coisa recente, talvez até mais. Quem tá fazendo teatro na cidade são as pessoas que saíram da escola. Saulo Sisnando – que faz dramaturgia e dirige – saiu de onde? Wlad: É verdade. Mas dentro da escola o espaço que tem sido o laboratório de diretores e encenadores é o GTU – Grupo de Teatro Universitário. É o projeto que tem autonomia e a mínima intervenção da nossa parte. A Olinda, por exemplo, faz uma curadoria muito cuidadosa exatamente pra oferecer o máximo de autonomia criativa pra cada processo. Eu faço parte do projeto também, mas só sou chamada quando tem embate político, crise ou cagada. Ou seja, só me chamam pra parte “porcaria”. (risos) 271 Aníbal: (em tom de desabafo) Eu também acompanho o GTU e acho que lá é o lugar onde o aluno tem oportunidade pro exercício da direção e da encenação. O projeto Novos Encenadores, que é desenvolvido pelo GTU, dá oportunidade pra alunos ou ex-alunos apresentarem suas propostas de espetáculos e se encarregarem de TUDO: dramaturgia, cenografia, iluminação, preparação corporal, figurino, enfim, tudo. Eles administram sala, convocam a comunidade pra fazer parte do elenco, não tem prova pra participar – só inscrição. Passam seis meses ensaiando, fazendo experimentações diversas e são LIVRES pra decidir sobre tudo. Eu considero o GTU uma incubadora da escola, uma incubadora do trabalho de ator, diretor e encenador. Então, quem não passa nos testes de seleção dos cursos técnicos vai buscar essa oportunidade de vivenciar teatro no GTU. A mesma coisa os ex-alunos que ainda não tem seu grupo de teatro. E as equipes do GTU acabam chamando alunos do curso de cenografia, do curso de figurino e até de dança pra trabalharem com eles. Ou seja, é uma ação que envolve toda a escola. E pra mim esse deveria ser o modelo das práticas de montagem dos cursos técnicos: um semestre inteiro com todo mundo junto (dança, teatro, cenografia, figurino) fazendo as mesas coisas, juntos, e não separados por disciplinas formatadas por um currículo que compartimentaliza tudo. É um horror. Eu queria ver um processo criativo com cento e vinte alunos (trinta de cada curso) pulsando juntos, debatendo tudo, encaminhando propostas cênicas. Mas o nosso modelo ainda é de uma escola com padrões, moldes que mantêm as coisas sob controle. É claro, porque assim é mais seguro. E o modelo do GTU não é seguro, é um lugar de risco e o pensamento é sempre de não colocar a instituição em risco. É phoda! Paulo: Eu entendo tua angustia, Aníbal, principalmente no que diz respeito ao desenho das disciplinas do curso de Cenografia que não batem com as disciplinas do curso de ator. Como que tu vais dialogar se os conteúdos não se articulam, as ações dos cursos não se articulam. Eu já estou há dez anos e não se ajeita nunca. Wlad: Uma coisa que eu preciso dizer e reconhecer sempre, é que nós fomos institucionalizados. Ao longo desses mais de 50 anos de escola de teatro nós nos institucionalizamos. Acho que nós fizemos um trabalho muito bom que é cuidar da formação como um todo, assim, de cabo a rabo – do teatro infantil ao doutorado em artes. Não sei nem pra que serve os mestres e doutores, mas nós estamos fazendo essa porra. Mas ficamos institucionalizados. E a gente aprendeu que fazer teatro significa institucionalizar nossos grupos de teatro, colocar dentro dos projetos, formatar pra editais, leis de incentivo... e assim a gente garante também que toda a nossa produtividade seja reconhecida 272 e a universidade nos pague por essa produtividade teatral. Isso é instituição; isso é ser institucionalizado. Acho que todos nós fizemos isso. Mas também tem os limites que a institucionalização impõe. Hoje em dia os cursos técnicos são tão institucionalizados que o aluno entra às 14:30h e sai às 18:00h. Se eu como diretora de uma prática de montagem inventar que vamos fazer virada e ensaiar sábado e domingo ou de madrugada eles me devoram viva. Luka: São apenas dois meses de trabalho pra montar um espetáculo, é uma loucura. Os processos do GITA, por exemplo, levam no mínimo um ano. Henrique: Bom, eu vou falar como um autodidata, que sempre fui, com esse meu olhar de fora da escola mesmo (nunca fiz escola de teatro). Eu observo que alguns espetáculos da escola têm certo ranço acadêmico – não sei explicar direito o que é –, muito diferente do que é feito fora da academia, pelos grupos de teatro, por exemplo. Observo que a postura do diretor é outra, o modo de fazer às vezes envereda por um preciosismo técnico que faz perder a naturalidade e espontaneidade em cena, os atores ficam parece robôs. E isso me incomoda porque fica aquela coisa mecanizada que não emociona. Eu acho importante manter a emoção. Não é aquela coisa do cara incorporar em cena, não tem sentido isso. Você deve abstrair sem perder a consciência do que está ao redor. Pra poder passar realmente a emoção pro público. E isso eu vejo comprometido em alguns espetáculos da escola, talvez por essa institucionalização do fazer. Miguel: É engraçado ouvir vocês falarem desse aspecto da escola como instituição ou desse fator “acadêmico” como um obstáculo a criação ou coisa do tipo. Eu nunca sofri nada disso nesses anos todos trabalhando na ETDFUPA. Muito pelo contrário, a academia me permitiu uma virada de vida. Quando eu retorno do Rio de Janeiro fundo a Cia Atores Contemporâneos em 91; começo a trabalhar como professor na escola de teatro em 93, e toda minha vivência prática/teórica dos estudos do movimento fundados na premissa maior de Laban “corpo: oficina do pensamento e da criação” é levada pra dentro da academia na disciplina Técnicas Corporais. Quase dez anos depois, em 2002, eu me senti numa encruzilhada, numa encruzilhada afro-brasileira de Umbanda e Candomblé – Candomblé principalmente – que é meu encontro com a Etnocenologia, mestrado na Bahia, Armindo Bião. Nessa encruzilhada senti que o Laban tinha me proporcionado o aporte teórico pro que sempre gostei de exercitar como criador/professor: entender e dominar o trabalho com a energia, os princípios e fatores do movimento pra organizar o corpo... Mas eu precisava fazer o mergulho na 273 matriz afro-brasileira. Então, digo que nesse momento de encruzilhada “joguei o Laban na macumba”. Barradas: (se benzendo) Axé meu irmão. Miguel: Axé. Então, eu digo que Laban me jogou numa encruzilhada e ali ele não foi suficiente. E aí eu mergulho no que chamo hoje de “espetacularidades afro-brasileiras amazônicas”. É o momento que o Lula promulga a lei 10639/03 que institui o ensino obrigatório sobre história e cultura afro-brasileira. A escola precisava atender a essa lei e isso me deu mais certeza de que precisava aprofundar isso também nas minhas disciplinas. Daí em diante passo a trabalhar só com mitos220 afro na disciplina Técnicas Corporais II, tiro o CD de sala de aula e chamo o Edson Santana221 (meu grande parceiro de vida, desde então) pra tocar tambor. E isso transformou minha metodologia, completamente; tudo que eu fazia de preparação técnica com o CD foi alterado energeticamente pelo batuque do tambor. Eu considero que foi um encontro espiritual com o toque do tambor. Depois passei a frequentar terreiro como pesquisador e fui percebendo que todos os elementos técnicos presentes no pensamento do Laban – tempo, espaço, peso, fluxo, energia – estavam encadeados naquela prática religiosa: a organização espaço temporal do rito, o fluxo das ações, a energia e o peso quando o santo incorpora... e aí foi um encontro absolutamente profundo. (emocionado) Minha parceria com o Edson Santana me estimulou, emocionou, espiritualizou pra ser o que sou hoje. E tudo isso por uma questão acadêmica, o meu encontro com a Etnocenologia. A Etnocenologia abriu esses caminhos e eu devo isso à academia. Não sei se teria me dado conta disso se não tivesse ido pra mestrado e doutorado, encontrado a Etnocenologia, porque foi o lado pesquisador encontrando minha vida pessoal, minha espiritualidade, minha sensibilidade religiosa... repito: isso eu devo à academia. Atrizg: Teu depoimento é muito emocionante. É muito bacana perceber como tu constróis uma relação envolvendo o pesquisador, o criador, o professor/artista dentro da academia. Mas tu não sentes nenhum tipo de amarra institucional na academia? Miguel: Não tenho amarras. Pelo contrário: eu sou o desamarrador. O que eu faço, o que vivo, o que ensino é minha crença. Identifiquei coisas que estavam em mim; não pesquisei nada fora de 220 Trabalho proposto pelo professor Miguel Santa Brígida na disciplina Técnicas Corporais II. A proposta consiste no aluno escolher um personagem qualquer da mitologia e preparar uma cena para ser apresentada ao público como resultado artístico da disciplina. 221 Músico percussionista, educador musical e sacerdote afro religioso. 274 mim. Nada do que eu tenha atravessado, nenhuma teoria me incomodou. Foi tudo muito tranquilo pra mim. Luka: Talvez a Atrizg se refira, mais propriamente, as coisas que afligem também o Aníbal: formato de disciplinas bimestrais oferecendo pouco tempo pra montagem de um espetáculo. Mas, em termos da institucionalização da escola, minha maior inquietação é a tensão que se estabelece na prática de montagem envolvendo professor-diretor e aluno-ator. Marton: Graças a deus eu nunca tive conflito com esse aluno-ator. A minha postura não é a mesma que tenho no grupo. Sempre tentei me colocar como um professor que tá dirigindo uma turma de alunos que precisam passar por aquela experiência. Claro que não tem aluno igual; tem aluno mais dedicado e aluno menos dedicado. Mesmo assim acho que não dá pra excluir o aluno do processo. Então, sempre procuro fazer malabarismo pra que todos que estão participando, de fato do processo, possam ter um momento de exercício do fazer teatral. Paulo: Isso é um exercício muito difícil pra mim. Porque eu acredito que uma prática de montagem deveria ser mais potente, mais intensa, oferecer um mergulho profundo pros alunos. Mas são eles que não se permitem; eles faltam muito, chegam atrasados, não são aplicados. É louco isso, né? Eu acredito que uma escola de arte deveria ter a potência pra fazer esse aluno nascer pra um mundo novo. É um nascer de novo. Mas precisa ter dedicação. Uma escola de arte vai muito além de uma simples escola com disciplinas fechadinhas, bonitinhas. Quando começo essa disciplina me vejo como um diretor. Mas eu venho com essa força do encenador porque me preocupo com o quê e como vai ser montado. Então, eu planejo toda a minha loucura: escolho o texto, pesquiso imagem, vídeos, músicas... tudo que possa alimentar o processo. Mas hoje não compartilho mais esse material porque tem o cenógrafo – o aluno de cenografia – e tem o figurinista – o aluno de figurino. Então, me volto pra trabalhar com os atores e digo pra eles: “– Cria um paralelo com teu personagem; cria um universo de transição entre a tua pessoa e a história dessa personagem, uma história que faça sentido pra ti e que ajude teus parceiros de cena e a direção”. Porque aí a gente vai poder discutir, debater o trabalho do ator e a própria encenação. Cobro que o ator esteja íntegro no trabalho. Atrizg: O Luka também. E isso me ajuda muito no GITA. Embora haja momentos tensos e de crise, eu entendo como parte do processo. Paulo: Mas eu sinto que os alunos não querem ser cobrados, eles acham que já sabem de tudo. E aí começa o embate porque eles me acusam, colocam palavras na minha boca “– Mas o senhor 275 disse que queria assim e assado”. Eu respondo na hora “–Eu disse, mas isso se chama processo. Hoje eu tô experimentando uma coisa e amanhã quem sabe essa mesma coisa pode não funcionar. E tu também deverias fazer o mesmo, deveria te permitir a experimentação”. Então, entendo que na prática de montagem tô criando um ser, uma obra. Entendeu? Os alunos não se deixam ser burilados, esculpidos, trabalhados... Aí é phoda né? Não existe diálogo. Pra quem não me conhece às vezes fica magoado, chateado comigo por eu agir com certa imposição. Já ouvi muito isso que o Marton falou: “Não é teu grupo”. Não é meu grupo, mas é como eu trabalho, cacete. Marton: Não é uma relação fácil, Paulo. Porque nós temos que conseguir dar conta das duas coisas: ensino e prática criativa, ser professor e diretor. Mesmo que em alguns momentos tenhamos que ter certa dureza, afinal o cara vai pro mercado de trabalho que não é “docinho de coco”, né? O aluno tem que ter essa consciência. Mas eu não posso ter o rigor do diretor do meu grupo ou de alguém que está dentro de um empreendimento empresarial. “– Olha você não fez, você tá fora, vou romper o contrato, etc.”. Com os atores do meu grupo eu até posso soltar uns k-raleos, né. Mas com aluno da escola os k-raleos ficam só na minha cabeça mesmo (risos). A dimensão didático- pedagógica nos coloca limites. Miguel: Exatamente. Esse limite pedagógico pra mim está muito claro. Aníbal: Eu tenho uma percepção bem categórica sobre a prática de montagem na escola: toda direção é impositiva. Não falo só do Paulo, mas de todos que dirigem ou já dirigiram processos desde que eu entrei na escola (2012). E pra mim, novamente, vem a questão da institucionalização. O formato dos cursos com grade curricular, habilidades e competências, conteúdos, conceitos, teorias... isso tudo não permite outro tipo de direção pela necessidade de tempo, pela urgência. E como desconstruir isso dentro de uma academia que exige o produtivismo do professor? É uma doideira essa prática de montagem. Aí eu entendo a posição desses diretores-professores: “– É meu nome que tá lá assinado; eu sou o responsável”. E no final das contas a responsabilidade, de fato, recai no diretor. E tem cobrança do aluno, da instituição, da comunidade... Wlad: (interrompendo) Tu sabes que a gente vai perder esse lugar. Dentro dessa máquina que a gente inventou, a gente vai perder essa função de diretor dentro da prática de montagem. E eu tô ajudando muito nisso, inclusive... (risos). Nós já temos os alunos de cenografia e figurino assinando por essas linguagens. E acabamos de criar o Curso de Especialização Técnica em Dramaturgia (2019). Amanhã serão alunos escrevendo, adaptando ou sendo dramaturgos de ideias. E no início do próximo ano (2020), o Curso Superior Tecnológico de Direção. Aí os alunos tomarão 276 conta de toda a engrenagem da prática de montagem. Nós (professores da escola) passaremos a ser um grupo de consultores. Então, tudo estará nas mãos dos nossos alunos em processo de formação. Isso eu acho bacana porque aposto na formação pela prática. Se formar pela prática. Eu aposto nisso e acredito que isso vai ser uma revolução. Marton: Eu não sabia desses cursos novos. Acredito que pode ser muito válido porque tanto o ator como o diretor se formam na prática mesmo; e um curso dessa natureza pode trazer uma série de informações organizadas, sistematizadas, a priori, que são importantes, entendeu? No nosso caso, como não tinha curso, a gente foi aprendendo na marra, experimentando, quebrando a cara, acertando e errando. Esses cursos novos podem oferecer alguns experimentos interessantes. Wlad: Eu diria, Marton, que iremos oferecer uma “formação sistematizada pela prática” aqui na escola. Antes deles chegarem na prática de montagem já receberam toda uma fundamentação prática e teórica, não vão chegar cegos, como nós chegamos. Que não invalida porque serão alguns diretores formados dessa natureza, com uma fundamentação, que eu acho que é o que cabe à universidade dar. E outros diretores continuarão a ter essa formação como a gente fez, nos grupos. Aníbal: (interrompendo) É. Tira da informalidade, organiza conteúdo, sistematiza... mas eu bato na mesma tecla: o desenho curricular do curso em formato de disciplinas continua reproduzindo o mesmo modelo que me incomoda muito nos cursos técnicos. Eu tô questionando a estrutura didático-pedagógica da escola: os cursos técnicos precisam desse formato de disciplinas? Talvez esse formato seja adequado pras licenciaturas, mas pros cursos técnicos eu acredito numa formação única, continuada, sem quebras, sem compartimentar o conhecimento. A experiência que a gente tem de teatro de grupo demonstra que isso é possível. Caramba, nós nos formamos pela prática, na marra, como o Marton disse. Luka: E qual seria o modelo mais adequado pros cursos técnicos, Aníbal? Aníbal: Acredito em módulos de experiências, de vivências, de criações coletivas. Então, desde o primeiro momento que o aluno entra no curso ele já está desenvolvendo a prática de montagem. O trabalho com a voz ao invés de ser uma disciplina bimestral (Voz e Dicção) seria trabalhada em consonância com exercícios de consciência e domínio da expressividade corporal, com leitura e interpretação de textos... fazendo o aluno perceber que o discurso cênico tem várias camadas e que o texto e o uso da voz é só uma das diversas camadas da linguagem cênica. Assim ele poderia perceber que o trabalho de voz deve ser articulado com a visualidade do espetáculo. A gente vive dizendo que voz é corpo, mas o curso divide: Voz e Dicção e Técnicas corporais. Eu não entendo. 277 Atrizg: Então tu és cético em relação a esses novos cursos? Aníbal: Se o curso seguir a mesma estrutura ele vai formar um acadêmico. Posso tá falando bobagem. Mas não sei se um curso de direção teatral tem que ser fragmentado. Acho que tem que ter um olhar, primeiro constante, diário e não interrompido. Mas isso é muito difícil de encaminhar na escola porque a gente tem muita coisa pra resolver sempre, muitas demandas acadêmicas e não consegue discutir e amadurecer questões complexas como essa. Algumas universidades, inclusive, nos cursos de graduação, já estão pensando em cursos modulares, com módulos compactos de muitas coisas, sete professores acompanhando os alunos durante o modulo inteiro; e acompanham mesmo, na formação, cada um no seu conteúdo e se organizando dentro de um processo. Acho que poderia funcionar e aí sim demarcaria um momento mais interessante na escola. Barradas: (lamentando) Vocês falam, falam, falam... buscam se aprimorar, se formam em mestrado, doutorado e o k-raleo e depois não fazem teatro. Não vejo ninguém fazendo teatro. Se servem do teatro e não servem ao teatro. O que é uma pena. Wlad: (cruzando os braços com cara de poucos amigos) Eu acho muito engraçado isso. As pessoas me perguntam muito isso: “– Por que eu não tenho um grupo? Por que não tô fazendo teatro?” Mas eu tenho grupo e estou em cena todo domingo. “Oh de casa”, do Coletivo Xoxós, vai à casa das pessoas, um público desse tamanhinho. (gesto de gitinho). Tudo meu, hoje é mínimo, tudo é micro. Marton: Os Palhaços Trovadores têm espetáculos no repertório e a Casa dos Palhaços tem atividade de oficinas e espetáculos quase toda semana. Aníbal: O Casarão dos Bonecos também oferece muitas atividades e espetáculos. Atrizg: (pro Barradas) Não acompanhas a programação de teatro da cidade? Não sai pra ver teatro? Barradas: Não. Moro muito longe. Eu gasto uma ponta de taxi. Olha só. Eu tô morando lá em Icoaraci no Monte Tabor222 que é longe de tudo, nessa merda. Wlad: Mas voltando pra questão que o Aníbal levantou. Eu penso que a escola pega toda a maquinaria técnica e tecnológica e coloca pra trabalhar juntas. Então, nós temos uma escola técnica tecnológica funcionando integrada. E são poucos escolas técnicas como a nossa, ligada às 222 Casa de Retiros Monte Tabor, sede da Comunidade Católica Sementes do Verbo. Fica localizada no distrito de Icoaraci, distante cerca de 20 km do centro de Belém. 278 licenciaturas, com curso superior, mestrado e doutorado. Acho que a gente tem algo muito inovador pra apresentar. E isso repercute na prática teatral fora da escola. Luka: Nas experiências dos grupos de teatro? Wlad: Sim. Algumas funções vão ser mais cobradas, como por exemplo, esse diretor espontâneo que nasce no grupo tende a ser enfraquecido. Assim como a escola já exporta cenógrafo e figurinista, passaremos a exportar dramaturgos e diretores. A diferença é que os diretores formados pela escola vão fundar os seus próprios grupos. E isso é uma coisa cultural: quem forma os grupos são os líderes. E o diretor que já sai daqui formado vai ser muito mais cobrado, porque ele sai formado pela universidade. E isso eu não sei se é bom ou ruim. Luka: O teatro funciona por uma hierarquia, então? E o diretor além da função poética também acumula o papel de liderança? Wlad: Todo o meu raciocínio é reconhecendo que o teatro é hierárquico. O teatro não é uma democracia, é uma hierarquia. E alguns papéis são de hierarquia. Essa coisa de dizer que teatro é democrático é uma mentira. Nunca vivi essa democracia. A gente já chegou muito perto com o Usina223, por exemplo, mas é muito difícil. Aníbal: A In Bust, hoje, procura manter uma relação horizontal com vários diretores comandando funções diferentes: diretor-administrativo, diretor-financeiro, diretor não sei do quê... Luka: (interrompendo) Isso se reproduz nas funções dentro do processo criativo, quer dizer, essa hierarquia está posta na relação diretor/ator? Wlad: Com certeza. E às vezes isso se dá às avessas quando escuto, por exemplo: “– Tu não és mais a mesma pessoa. É incrível como tu mudaste. Eu não tô entendendo mais como é que tu dirige”. Aí quando eu tô puta, eu vou logo direto na ferida: “– Ah, é? Porque antes eu gritava contigo, mandava se phuder. Agora eu não grito, não faço mais isso e estou o tempo todo discutindo. E tu vens me cobrando esse lugar da ‘escrotice’?” Luka: Então, esse tipo de direção mais ríspida ficou pra trás? Wlad: Sim. Mas não porque as pessoas não queiram. Acredito que isso ainda está no imaginário das pessoas e demora um tempo pra se atualizar. Mas o mundo atualmente não está precisando mais daquela coisa rígida, do diretor escrotão. Pra mim o maior dom do teatro hoje é ser coletivo, embora ele permaneça sendo uma hierarquia. 223 Usina Contemporânea de teatro, criado em 1989 vindo da militância política estudantil. Agrega em seu trabalho a pesquisa experimental e autoral de atuação, mas também o teatro de animação e o teatro multimídia. 279 Atrizg: Isso é muito louco. O teatro sem o ator não existe, mas me parece que nessa relação hierarquia o poder se concentra, de algum modo, no diretor. Mesmo em processos que tentam ser o mais democrático possível como vocês acabaram de dizer. Aníbal: É verdade. As relações de poder se estabelecem nas funções do processo criativo. E fica parecendo que o diretor é sempre “o cara”. Mas na verdade, o diretor não serve pra PN (risos). Porque no fundo, no fundo, quem tem o poder é quem tá no aqui e agora no momento que toca a terceira campa. Eu tenho um exemplo disso que aconteceu no “Cínicas e Cênicas” com o queridíssimo Euzébio. Ele adorava purpurina. No espetáculo ele fazia uma cantora de opera e na primeira cena do espetáculo, descia as escadarias do Waldemar Henrique todo montado. Eu tava ajudando o Marton e o Henrique com a visualidade e cheguei pra ele e disse: “– Euzébio, não enche a tua cara de purpurina. Tu estás te desvalorizando. Porque quando acende o refletor se perde toda a tua fisionomia, vira um brilho só, vira um bando de ponto brilhoso. Tu és tão bonito, tem o rosto tão bonito; quando tu te travestes de mulher fica lindo. Mas tu enches a cara de purpurina. Não faz mais isso.”. Passei dias, semanas conversando com ele pra convencer o desgraçado. Até que ele se convenceu e começou a fazer uma maquiagem linda, linda, linda. No dia da estreia ele tava lindo, com a maquiagem perfeita. Tocou a primeira campa, eu tava do lado dele. Tocou a segunda campa fui lá pra frente do Waldemar Henrique. Tocou a terceira campa eu voltei pra ver a cena. Quando o refletor acende e eu olho pro Euzébio já tava com a cara inteira cheia de purpurina. O phela da puta correu pro camarim depois da primeira campa e jogou purpurina na cara de qualquer jeito (risos). O diretor tem alguma coisa a ver com isso? Nada. Chega na hora quem decide é o desgraçado do ator. Atrizg: Tu não chegaste a perguntar por que ele fez isso? Aníbal: (desconsolado) Ele achava bonito. Só disse assim: “– Com purpurina fica mais bonito, Aníbal”. E cagou pra minha orientação. O diretor não serve pra PN. (risos). Henrique: É o momento que os atores se apropriam e tomam conta do espetáculo. Nessa hora o diretor tem que reconhecer que ele não é nenhum deus soberano. Ele tá ali pra coordenar, pra puxar coisas dos atores e até ajudá-los a se transformarem como pessoas. E pra isso eu preciso me misturar com os atores, conviver, trocar ideias a partir da convivência diária no processo criativo; só assim eu consigo acessar melhor a vida dos atores e eles a minha. Então, a gente se transforma como pessoa. Eu não tenho nenhum rompante de ser dono do espetáculo. Eu quero mais é que os atores se apossem, porque quando eles se apossam eles são capazes de tudo. 280 Atrizg: (erguendo sua taça de vinho) Todo poder aos atores. Luka: Eu concordo com o Henrique. O problema é que às vezes é preciso saber tocar no desgraçado, provocá-lo pra que ele perceba o potencial criador que está nas mãos dele. E um dos desafios é desnudá-lo das suas defesas, dos pré-conceitos e condicionamentos sociais. Lidar com esse aspecto humano é delicado e nada fácil. Aníbal: É uma função que tu gosta ou não gosta. Quem trabalha como diretor tem que saber que terá pela frente uma eterna descoberta, porque a gente lida com o conhecimento, certezas e expectativas do outro. Luka: E essa dimensão existencial do trabalho do ator, vocês acham que é possível trabalhar na escola de teatro ou é uma coisa pra ser vivida nos grupos de teatro? Aníbal: Acredito que a escola oferece uma experiência ímpar, mesmo com todos os problemas da formatação acadêmica que já falei. Mas, talvez, esse aspecto existencial – como tu dizes – precise de tempo pra ser maturado. Aí os alunos saem da escola e montam os seus grupos de teatro e vão intensificar isso depois. Posso citar o Madalenas, Teatro de Apartamento, Nós Outros, GEMTE, Nós os Pernaltas... Atrizg: E o próprio Tenetehara que era o grupo do Luka. Miguel: Deixa eu entrar nessa ala do desfile. Eu penso que o aluno-ator da escola de teatro tem que sair minimamente com condições de se auto dirigir, isto é, ele tem que saber organizar o seu corpo “na” e “pra” cena. Esse é o meu foco na disciplina Técnicas Corporais II trabalhando os princípios do Laban (controle e fluxo de energia, harmonia e arquitetura do movimento). E a questão chave pra mim é o “movimento”. Então, eu começo as aulas orientando os alunos a experimentar movimentos. E mal começam a experimentar os movimentos eles já estão com toda a personagem pronta. Por exemplo: eu entrego um bastão pra eles trabalharem, peso, resistência, força... mas eles já se transformam numa idealização de guerreiro e começam a reproduzir formas estereotipadas de luta. Aí fica só na forma. O ator, antes de qualquer coisa, precisa saber que ele tem um corpo, com um peso e dimensões muito particulares e, obviamente, com uma energia e movimento próprios. Então, nas primeiras aulas esses princípios labanianos são fundamentais pro aluno entender como ele organiza o próprio corpo pra modular e expressar sua energia em cena, ou na Sapucaí, na televisão, no cinema... Luka: Estás querendo dizer que se trata de princípios que estão diretamente ligados a questões pessoais? 281 Miguel: Sem sombra de dúvidas. Se eu não conectar uma coisa muito íntima vai ficar só na forma. Uns chamam de organicidade, outros de princípios que retornam, Laban usa energia vital; eu poderia dizer que é ancestralidade. Como diretor se eu não perceber aquele “brilho nos olhos” do aluno eu sei que não vai funcionar. E o uso do tambor como metodologia de sala de aula revolucionou minhas aulas, porque antes eu ficava um mês no Cd, experimentando volume alto, médio e baixo. Mas com o batuque do tambor tudo ganhou outra dimensão... o tambor potencializa uma conexão ancestral e molda a energia pra se expressar. Luka: E isso dá uma dimensão existencial pro trabalho do ator. Isso me fez pensar no seguinte: tu te defines como “encenador do corpo” que trabalha uma ancestralidade pessoal do ator, é isso? Miguel: Sim. Mas eu faria um complemento: o encenador do corpo que trabalha essa ancestralidade para múltiplos e diversos espaços (quadrilha, carnaval, teatro, auto do círio, etc.) labanianamente falando. Atrizg: Mas como tu articulas o treinamento do Laban com a criação? Como tu conduz isso com o ator ou com os alunos da escola? Miguel: Fazendo o ator compreender que não é só da ordem do intelecto, da dramaturgia escrita; não é da ordem da leitura dramática, do texto ou mesmo da indicação do diretor. É preciso conectar essa energia de ancestralidade e moldá-la nos elementos técnicos do treinamento (tempo, espaço, fluxo, energia e movimento). É assim que ele vai organizar o corpo dentro do processo criativo. Atrizg: É engraçado perceber como cada um de vocês dirige e faz teatro de uma maneira diferente, mas tem muitos pontos em comum. E o principal deles, pra mim, é essa pegada experimental e autoral que lança o ator num processo de reflexão crítica que entrelaça vida e obra. Barradas: (interrompendo) Vocês ficam falando um monte de bobagens sobre teatro... eu até gosto de ouvir essas bobagens, mas eu tenho que ir embora – moro longe pra cacete. Atrizg: Ainda não. Gostei de ouvir suas histórias. Barradas: Eu era famoso pelas minhas tiradas. Vou contar a última e depois vou “capar o gato”. Eu tava participando de um festival no Nordeste, não lembro a cidade. Aí veio um caboquinho de Pernambuco dizendo que o grupo dele tinha inventando um teatro avançado que ele chamou de “teatro ambiente”. Dizendo ele que “teatro ambiente” era o teatro que o ator se move. E ficou lá falando um monte de besteira como se fosse a coisa mais séria do mundo. Eu pensei comigo: “– Égua, isso é doidice. Todo ator se move”. E pedi a palavra e comecei a fazer críticas. Aí ele pôs a mão na cintura e disse: “– Olha Barradas, fica sabendo que eu estudei no Conservatório Nacional 282 de Teatro do Rio de Janeiro”. Aí eu me levantei, fiz a mesma pose dele e disse: “– Maninho, das duas uma: ou esse Conservatório não ensina PN ou tu que não aprendestes PN”. (gargalhadas generalizadas) Aí fui aplaudido de pé. Ele teve ataque de choro. Depois no dia seguinte no nosso espetáculo um dos refletores pifou. Aí o pessoal queria dar porrada nele que pensavam que ele que tinha feito isso com raiva de mim. Não era. É que nós levávamos tantos refletores da escola de teatro, que a distribuição elétrica do palco não aguentou. Atrizg: Acho que com essa tirada do Cláudio já podemos encerrar a discussão sobre direção teatral. Barradas: E das duas uma: ou essa conversa foi só papo furado e não serviu pra PN ou vocês não aprenderam PN com essa conversa. (risos) Fim do Diálogo Processos Criativos do GITA em Diálogos de Boteco 284 PLANO DE ESCAVAÇÃO: 1. Fonte Primária: Meus diários de trabalho (caderno do diretor) com os registros de pesquisa que abrange o período das cinco primeiras montagens do GITA (2008 a 2017); 2. Outras fontes: diários de trabalho dos atuantes-pesquisadores do GITA; trabalhos de conclusão de curso dos atuantes-pesquisadores do GITA; críticas teatrais das montagens do GITA; 3. Tema: recepção do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas nos atuantes-pesquisadores do GITA e sua articulação nos processos criativos das montagens teatrais do grupo; 3. Recortes temáticos: linhas de descontinuidades com os procedimentos de Zarrilli; treinamento psicofísico como elemento propulsor da poética experimental do atuante; o diretor como mediador entre treinamento psicofísico e processo criativo; a poética do GITA sob influência do modos operandi da cidade de Belém; 4. Unidade de espaço: os diálogos se passam em botecos e bares de Belém, local que mantêm viva a tradição de encontro e debate dos artistas de teatro; 5. Composição do texto: trama ficcional e autoficcional livremente baseada nos diários dos pesquisadores, vivências em sala de trabalho assim como de dois trabalhos de conclusão de curso de pesquisadoras que refletiram sobre a prática do GITA; o texto segue o formato de diálogos reunindo em cada boteco e/ou bar o elenco de uma das montagens teatrais do GITA; 6. Personagens: todos os personagens são ficcionais; os personagens assumem os sobrenomes dos atuantes-pesquisadores do GITA como forma de homenageá-los pela contribuição de pesquisa desenvolvida no grupo – a exceção, neste caso, é Luka, C. Sã e Atrizg que já foram apresentados em outras seções que também assumem o formato de diálogos; 7. Filtros literários: Alguns nomes mencionados pelos interlocutores foram substituídos por criptônimos com o intuito de preservar a integridade dos citados e sempre que isso ocorrer o nome virá sinalizado com um asterisco (*) no final; embora a linguagem se desenvolva na coloquialidade própria da unidade de espaço definida (isto é, bares e botecos) e preserve com isso o ambiente informal e descontraído, alguns termos virão em itálico e grafados em substitutivos moderados – é o caso dos palavrões e expressões populares, por exemplo. 285 Figura 13– Mapa Arqueológito 8: Bares e Botecos Fonte: Criação a partir do mapa de Belém com localização dos bares onde ocorrem os diálogos. 286 No Boteco do Bacú – Querela-Eu Cidade Velha, bairro mais antigo de Belém, setembro de 2009. Nos cruzamentos das ruas Triunvirato e Tv. Monte Alegre se concentram alguns bares que animam os notívagos da cidade: Bar e Churrasquinho Dois Irmãos, Sambar Grill, Dom Barriga Restô, PH Food Truck e o Boteco do Bacú. Esse último faz o estilo boteco de calçada, e embora possua área com mesas no salão principal, os lugares mais disputados ficam na rua, no asfalto ou por sobre as calçadas. O nome do estabelecimento é uma homenagem direta ao dono, o Seu Bacú – até hoje não sei o nome verdadeiro desse cidadão – sujeito de simpatia ímpar que recebe a todos com um misto de delicadeza, atenção e rusticidade, além é claro da característica voz embargada, possivelmente pelos anos de tabagismo desenfreado. Sem cerimônia nenhuma ele vai logo nos orientando a escolher o prato principal do boteco. BACÚ: Caldeirada de Pirarucu! É minha mulher que prepara! Eu garanto que vem “só o filé... só o filé”! C. SÃ: Maravilha meu camarada. Pode mandar preparar. BEZERRA: E traga uma cerveja bem gelada pra gente fazer um brinde ao Genet e ao GITA. TOURINHO: Égua mano, com certeza. Mais de um ano e meio treinando e suando pra levantar essa primeira montagem do grupo. A gente merece refrescar a cabeça. C. SÃ: A minha cabeça vou refrescar com água. LUKA: (se dirigindo a Bezerra) Eu acompanho na cerveja, viu Fresco?! BACÚ: Pode deixar, meus queridos. Vou mandar o menino trazer logo a cerveja e a água enquanto vocês esperam a caldeirada (sai). C. SÃ: Caramba o tempo passa rápido mesmo, Tourinho. Parece que foi ontem que comecei nossas missas semanais aos sábados na sala 05 da ETDUFPA. LUKA: Missa, é? BEZERRA: (se dirigindo ao Luka) Ih, Fresco! Precisava ver como o C. Sã era no início: treinamentos e ensaios sob portas fechadas; não podíamos comentar nada sobre a montagem do Genet; visitantes só se ele autorizasse e todo o material do grupo (fotos, vídeos e livros)... tudo ficava com ele. C. SÃ: Claro. Pra mim o GITA, desde o início, foi um tabernáculo sagrado, um dia de encontro na semana que era como se fosse a minha missa. E a exigência era voltada a esse aspecto sagrado do trabalho do atuante. LUKA: Disciplina. Acho que foi isso que procurou prezar desde o princípio. E a disciplina está diretamente ligada à dimensão marcial/ética do treinamento. Não vejo como poderia ser diferente. 287 C. SÃ: Perfeito, Luka. Estética sem Ética não leva ninguém a lugar nenhum. E o treinamento com artes marciais e meditativas asiáticas nos ensina isso no GITA desde o início. LUKA: Eu sei e, por isso, fiz questão de começar a praticar o treinamento assim que tu me convidaste pra dirigir o “Querela”. Acho que intuitivamente percebi que o elemento estruturante da montagem estava de algum modo ligado ao núcleo dessa prática psicofísica. E uma coisa que me intriga até hoje é entender a articulação que vocês fizeram entre o treinamento e o processo poético de criação das cenas. TOURINHO: Acho que foi um processo cheio de dúvidas, incertezas e descobertas... BEZERRA: Como tudo na vida, né mana. Mas lembro que no início a preocupação do C. Sã estava no treinamento. Então, a gente se encontrava e treinava, treinava, treinava... TOURINHO: E era um treinamento bem aos moldes marciais, quer dizer, o C. Sã conduzia o hatha, t’ai chi ch’uan e o kalarippayattu e a gente repetia as formas codificadas; não tinha espaço pra perguntas no momento da prática; a gente trocava ideia sobre o treinamento somente no final do dia. O começo foi punk. BEZERRA: É verdade, mas acho que esse período foi importante pro aprendizado de toda a sequência de movimentos codificados, respiração, foco... e tanta coisa que o treinamento acionava na gente, né. Mas chegou uma hora que eu precisava entender onde aquilo tudo ia dar. Aí comecei a pensar: “ Se esse treinamento é pro atuante, temos que montar alguma coisa, ora bolas.” LUKA: Então, foste tu quem propôs o “Querelle de Brest”, Fresco? C. SÃ: (sem conter o riso) O Bezerra me procurou depois de uma aula do curso técnico e disse que eu era a cara do Tenente Seblon... BEZERRA: (interrompendo rindo) Eu tava era mal intencionado. Aproveitei e fiz logo o convite pra trabalharmos a partir do texto do Genet. LUKA: Acho engraçado isso: a ênfase da pesquisa do grupo estava no treinamento, mas é a adaptação de um texto que será o disparo pra montagem. Não acho que as coisas sejam incompatíveis, mas destaco o fato do grupo não enveredar por uma investigação que descentralizasse o texto do processo criativo encaminhando, talvez, pra uma pesquisa com uma encenação autoral que abrisse mão do próprio texto, quem sabe... BEZERRA: Ih, Fresco. Acho que ainda estás muito influenciado pela Cia Atores Contemporâneos. 288 LUKA: Pode ser. Minha preocupação na verdade é entender se isso não deixou o treinamento completamente em função do texto, quer dizer: no momento de criação das cenas o papel do treinamento se limitou à preparação corporal? C. SÃ: É uma boa provocação, Luka. Vou “molhar o bico” e contar como foi esse processo. (O garçom serve a cerveja e a água. Todos erguem as taças e brindam) Todos: AGITA, AGITO, AO GITA!!! C. SÃ: Antes de tudo é preciso entender que o treinamento envolve sim aspectos da pré- expressividade. Mas não acho que isso signifique, necessariamente, que uma montagem com texto dramático transforme automaticamente o treinamento em preparação corporal. Os ganhos de pré- expressividade que o treinamento proporciona podem ser usados em qualquer estética, com texto ou sem texto. No caso do “Querela” começamos com um trabalho de mesa dedicado à leitura do texto na íntegra. TOURINHO: Quase 500 páginas! Te mete, Fresco! (Entorna o copo de cerveja de uma só vez na boca) C. SÃ: Depois fomos selecionando as partes que nos interessavam. As partes selecionadas foram adaptadas pra virar cena de teatro, tudo feito de modo bem literário mesmo – partindo de um texto em forma de romance, pra um texto em forma de gênero dramático. BEZERRA: Mas fizemos acréscimos de falas durante os laboratórios de criação. C. SÃ: Certamente. Tínhamos liberdade criativa pra brincar com o texto e passamos um bom tempo fazendo isso sem definir os papeis que seriam representados. LUKA: E não achas que isso desencadeou, de alguma forma, uma abordagem dualista? Quero dizer o seguinte: se mente e corpo operavam em âmbitos diferentes (corpo/treinamento, mente/texto) o treinamento psicofísico não se tornou um mero instrumentalizador do corpo? BEZERRA: O primeiro copo de cerveja deixou o Luka afiado. Assim que eu gosto. Toma-te. C. SÃ: Vai com calma aí, Luka. Não vou carregar ninguém até o Solar dos Silva. (Risos) C. SÃ: Nesse mesmo período criamos as partituras de movimento que usaríamos nas cenas. Embora nessa época não utilizássemos o termo “partitura neutra”, eu conduzi o processo orientando os atuantes a elaborar partituras de movimentos sem nenhuma ideia das personagens, sem nenhuma intenção de expressar nada; eram simplesmente marcações corporais que os atuantes deveriam realizar, no tempo e no espaço, considerando elementos técnicos como ritmo, deslocamentos, 289 transferência de peso, força, resistência, etc. Segui o modo como Zarrilli trabalha com as partituras, ou seja, elas são criadas sem nenhuma relação com o texto, papel ou personagem. TOURINHO: Cara, essa fase foi muito intrigante pra mim porque as partituras não tinham nenhuma vinculação com o texto e me ofereciam um campo de exploração perceptivo riquíssimo pra eu exercitar a dimensão da expressividade psicofísica. Mas ao mesmo tempo ficava noiada de como isso ia se encaixar no texto depois. Fresco, foi uma “bateção de cabeça”. LUKA: É assim que o Zarrilli encaminha o trabalho, C. Sã? C. SÃ: Olha Luka, tive oportunidade de ser dirigido por Zarrilli na montagem “The Water Station”, de Ōta Shōgo224 e uma das partituras que ele criou era assim: caminhávamos em grupo, encostados na parede, dando voltas pela sala; ele primeiramente só orientava que o ritmo dos nossos movimentos deveria ser coordenado com nossa respiração; depois de repetirmos bastante essa partitura é que ele estabelecia relação com o texto. Ele dizia, por exemplo: “Essa respiração e esse movimento vocês vão usar para estabelecer relação com a fonte de água que está ali na frente”. Ele encaixava, assim, movimento com o universo dramático do texto ou da obra indutora do processo; e só depois determinava os papeis. Então, eu observei que esse procedimento te leva a criar por fora de qualquer relação com o texto e isso me deu uma liberdade criativa muito grande. Então, eu perguntei ao Zarrilli se poderia denominar essa fase de “partitura neutra”. Ele sinalizou positivamente com a ressalva de que nada é absolutamente neutro. LUKA: Mas, pelo que dizes, Zarrilli concebe as partituras diretamente ligadas à encenação da montagem, ainda que os atuantes não tenham conhecimento disso. Tenho a impressão que o Zarrilli, então, orquestra, coreografa, marca toda a encenação a partir de sua perspectiva de diretor/encenador e cabe ao atuante executar a proposta. BEZERRA: É verdade. Mas no caso do “Querela”, o C. Sã não entregou as partituras pra gente, nos fez criar as próprias partituras. LUKA: E como criaram as partituras? C. SÃ: Como eu não tenho a expertise de encenador/diretor de Zarrilli, recorri a um procedimento que aprendi numa oficina que participei em Brasília (1993), ministrada por Luiz Carlos Vasconcelos, diretor do grupo Piollin. O Luiz nos mostrou como criar partituras de movimento usando bastões de cerca de 2m de comprimento. O procedimento é simples225: trabalhamos em 224 A experiência ocorreu em outubro e novembro de 2000. 225 Mais informações técnicas sobre o procedimento podem ser conferidas na escavação Diálogo Quarto, p.159. 290 duplas, cada dupla com um bastão; o bastão deve ser usado como elo de ligação entre os dois atuantes; geralmente começamos com o bastão na palma das mãos pressionando em sentido contrário ao parceiro de dupla, para que o bastão não caia; depois podemos explorar várias partes do corpo para apoiar o bastão, mantendo ele sempre tensionado contra o corpo do parceiro de dupla; à medida que a dupla vai se adaptando ao exercício podem também se deslocar pelo espaço e explorar os planos alto, médio e baixo, desde que o bastão não caia no chão; o passo seguinte é selecionar alguns movimentos explorados anteriormente, criar, repetir e fixar um roteiro de movimentos; depois, então, a dupla realiza o roteiro de movimentos, mas sem o bastão. TOURINHO: É um trabalho exaustivo de repetir, repetir, repetir... mas depois que assimilei o roteiro de movimentos tive a sensação de encontrar um território imenso de possibilidades pra ser explorado e preenchido com o que eu quisesse. C. SÃ: Sem dúvida. Foi um processo longo que permitiu criar várias cenas com esse material. LUKA: Então é um procedimento que não está articulado com o Zarrilli? C. SÃ: Embora o procedimento não seja do Zarrilli, identifico o mesmo princípio norteador para o trabalho do atuante. TOURINHO: Não entendi. C. SÃ: Estou me referindo à abordagem stanislavskiana que Zarrilli também adota em seu trabalho: o “trabalho do ator sobre si mesmo”226. E eu levei essa abordagem pro “Querela-Eu”. Então, durante os laboratórios de criação das cenas eu orientava que os atuantes pesquisassem a sua versão das personagens e não a versão do papel, isto é, não uma versão idealizada estabelecida pelo autor do texto. Mas isso não quer dizer que orientei para fazerem um estudo autobiográfico ou para falarem da vida deles. Nada disso. Eu usava uma metáfora de Grotowski, que considero muito potente, para orientar o trabalho dos atuantes: “O personagem como um bisturi para revelar o que o atuante tem dentro”. TOURINHO: Eu sinto isso mesmo. O texto do Genet serviu mais como provocador, um estímulo pra eu criar e experimentar coisas no roteiro de movimentos que as partituras neutras me oferecem. BEZERRA: Algumas cenas eram jogos de improvisação que aproveitavam a situação dramática e as personagens do romance; em outras cenas, usamos apenas fragmentos do texto original interpolado com textos que a gente mesmo criava. 226 Ver principalmente o livro Psychophysical Acting: An intercultural approach after Stanislavski (2009). 291 C. SÃ: E em outras cenas ainda, havia apenas a partitura de movimentos articulada e ambientada no contexto ficcional do romance, sem nenhuma fala. LUKA: Acho muito bacana vocês relembrarem isso... BACÚ: (interrompendo) Meus queridos, o pirarucu tá quase saindo. Já fui lá dentro conferir e olha: “tá só o filé... só o filé”. No máximo em cinco minutos tá saindo. Tão precisando de mais alguma coisa? BEZERRA: Mais uma cerveja, por favor. BACÚ: É pra já, meu querido. (falando pro garçom que está do outro lado da rua) Oh Careca!!! Traz mais uma gelada aqui pros meus amigos. TOURINHO: Cara, já tô ficando com água na boca toda vez que ele fala “só o filé... só o filé”. BEZERRA: Mana te acostuma que isso é virgula na boca do Bacú. (risos) LUKA: Como eu ia dizendo. Ouvindo vocês, eu consigo identificar no processo criativo de vocês os três princípios operativos da “dramaturgia pessoal do ator”227, concebido pela Wlad Lima, ou seja, “1 - refletir o seu espaço natal (cidade); 2 - criar com a matéria; capturar o ator, duplamente; 3 – construir uma realidade inventada (as flores de plástico ou a artificialidade)”228. C. SÃ: E eu acho isso um barato, Luka. A gente vai se misturando e se encontrando nesses descaminhos de pesquisa. LUKA: Eu também acho isso fascinante. Tu achas que eu posso considerar, então, que o “Querela- Eu” foi uma livre adaptação da obra de Genet criada a partir do olhar crítico de vocês? Ou seja, problematizaram o que está por trás do texto do autor, ao invés de simplesmente adaptá-lo para a forma dramática, estabelecendo assim “uma maneira de olhar esse texto, uma ideia sobre ele, uma concepção”229. C. SÃ: Não tenho nenhuma objeção quanto a isso. Às vezes a gente faz as coisas usando nomenclaturas diferentes, mas com os mesmos princípios. BEZERRA: O Luka tá perguntando e pensando muito. Quero saber quais foram as tuas primeiras impressões sobre o nosso trabalho, Fresco? 227 Dissertação de mestrado de Wlad Lima defendida em 2004 pelo programa de pós-graduação em artes cênicas da Universidade Federal da Bahia. O título completo da tese é “Dramaturgia pessoal do ator: a história de vida no processo de criação de Hamlet – um extrato de nós com o Grupo Cuíra, em Belém do Pará”. 228 NB: 2004, p.49-53-61-64. 229 NB: Ibidem, p.52. 292 LUKA: Vou confessar uma coisa pra vocês: a primeira coisa que senti foi um certo desconforto em ter que assumir a função de diretor sem ter participado da gestação do processo. Acredito num tipo de direção/encenação compartilhada com o atuante, ou seja, o diretor como coautor, um parceiro de cena do atuante. E chegar com tudo praticamente pronto me fez sentir fora do processo. TOURINHO: Mas e depois que foste te integrando? Quais tuas impressões do que a gente criou? LUKA: Percebi duas coisas: uma qualidade de presença cênica colocada na execução de cada pequeno gesto ou ação. Isso demostra a disciplina e o rigor que o C. Sã empregou no processo. Mas por outro lado, curiosamente, as cenas também pareciam cruas, inacabadas na perspectiva da fábula ou sem aprimoramento formal da linguagem teatral; ou seja, eu pensava em termos da literatura dramática, pois essa foi a referência que recebi na minha formação; estranhamente o vigor percebido na execução das partituras de movimento parecia não se coadunar com o texto que vocês falavam. Então, era estranho porque as cenas tinham essa “dimensão laboratorial”230, quero dizer de ato experimental por excelência sem o contorno formal da linguagem. O texto parecia uma camada que precisava ser cuidada, aprimorada, enquanto que o jogo de experimentação proposto me pareceu pronto. E isso me fascinou. (O garçom serve a segunda cerveja) TOURINHO: (ao garçom) Obrigado. (ao Luka) Mas Luka eu acho que foi por isso que o C. Sã te chamou pra dirigir. A gente precisava de um olhar de fora, entende Fresco? C. SÃ: É verdade. Comigo participando das cenas não dava pra fazer o acabamento, a lapidação de tudo que foi criado. LUKA: Eu percebi que era essa a expectativa de vocês. Mas foi então que pensei: “– E se ao invés de tratar formalmente as cenas, levássemos esse material quase bruto ao encontro do espectador? O que aconteceria se as cenas em estado laboratorial se apresentassem como produto para fruição? Por que não testar a potencialidade das cenas por sua dimensão laboratorial e desafiar os limites formais da linguagem teatral?” BEZERRA: E isso contrariava toda a expectativa do C. Sã que falava em cenário, figurinos, maquiagem, sonoplastia e iluminação. LUKA: Eu também percebi isso mas optei pelo lugar de risco, de beira, de borda, de margem... optei por uma encenação estruturada a partir da natureza desnudada dos elementos poéticos, colocando todas as minhas expectativas na qualidade de presença de vocês. Mas como era recém- 230 NB: Mirella Schino, 2012, p. VIII. 293 chegado no grupo e não queria causar nenhum tipo de contrariedade com o que C. Sã já havia estabelecido com vocês, convidei Aníbal Pacha para fazer a consultoria visual da montagem e ele – que também é encenador de mão cheia – de imediato, comprou a ideia de uma encenação experimental minimalista, pois também identificou a qualidade de presença dos atuantes como uma das principais virtudes do trabalho. C. SÃ: E eu confiei em vocês dois. Afinal, o mestre Aníbal tem uma sensibilidade refinadíssima. Só não abri mão do figurino que aliás, o Aníbal caprichou; são simples, mas visualmente impactantes: sobretudo na cor cinza, shorts e camisetas sem mangas na cor branca, quepe também na cor cinza; e todo mundo descalço. Grande sacada. BEZERRA: E a interferência visual do corino vermelho cobrindo o chão, compôs perfeitamente com os temas recorrentes das cenas: violência, morte, sexualidade e o submundo das relações entre os personagens marginais que Genet retrata no romance. C. SÃ: E o trabalho da Sônia Lopes na iluminação arrematou tudo: apreendeu a atmosfera soturna do trabalho e acrescentou uma camada tensa à montagem com aquele jogo de meia luz, penumbra, área iluminada e áreas completamente escuras. LUKA: É verdade. A Sônia é uma grande parceira, além de excelente profissional. Mas acredito que a principal contribuição tanto da Sônia quanto do Aníbal foi entender que a natureza da encenação apostou tudo no trabalho de atuação de vocês. Então, Aníbal concebeu uma cenografia que mergulha vocês na densidade passional e violenta do universo de Genet, enquanto a iluminação ressalta o desenho preciso das marcações de cena. Aliás, acredito que minha principal contribuição foi exatamente exigir a precisão técnica das partituras de movimento, a exatidão dos códigos gestuais criados e do ritmo das cenas. TOURINHO: E ponha exigência nisso, heim Fresco? É cada k-raleo que tu solta no ensaio que dá até medo de errar a cena. (Risadas generalizadas) LUKA: Às vezes me excedo. Mas pensa numa função angustiante que é a direção: eu observo tudo de fora, sei o tempo exato de cada coisinha e não posso fazer nada na hora da apresentação. Então, pra compensar solto mesmo todos os k-raleos nos ensaios. É só o que me cabe. Mas garanto que são k-raleos ditos com todo carinho. (Risadas generalizadas) 294 BEZERRA: É, Fresco. Tu és um Fresco mesmo. Mas eu gosto de ti, mesmo sabendo que segues a linha de diretores como o Cláudio Barradas. Às vezes um k-raleo bem-dito ajuda a se manter vivo em cena. Mas só às vezes, viu Fresco!? (Risadas generalizadas) LUKA: Prometo que vou pensar nisso com carinho daqui pra frente, Fresco. C. SÃ: Não se preocupe não, Luka. Aqui no GITA a gente coloca o “bode pra dançar” mesmo. Fique à vontade pra soltar quantos k-raleos forem necessários. O importante é zelarmos pra que esse k-raleo se mantenha na dimensão ética da disciplina marcial e não se confunda com destrato pessoal. LUKA: Sem dúvida. BEZERRA: Sem confundir “alhos com bugalhos”, mas trocando os “alhos” sem esquecer os k- raleos... Vocês viram a crítica que o Kil Abreu231 escreveu sobre o nosso trabalho? TOURINHO: Égua mano, não vi. Onde saiu? BEZERRA: No site do Festival232. Eu imprimi uma cópia aqui. Querem que eu leia? C. SÃ: Não faça cerimônia Bezerra. Fiquei curioso pra conhecer as impressões do Kil. BEZERRA: Ok. Vou ler alguns trechos: Confesso a surpresa, ao assistir a esta versão do GITA para o romance de Genet. Fui surpreendido no próprio preconceito, certamente, mas lembrando das incontáveis tentativas a que assisti, de grupos que tentam dar conta de um imaginário tão fascinante, empregado em uma forma de tão difícil transposição como esta, a literatura de Genet. (...) Assim como nas traduções, o desafio das versões cênicas é alcançar este algo essencial que está lá, mas que normalmente se perde caso a atenção fique demasiadamente localizada no plano mais superficial, o do enredo. (...) O mais interessante nesta montagem dirigida por Cesário Augusto e Edson Fernando é a certeza de que no palco há uma outra obra em jogo, além da literária. Esse despudor no tratamento do romance, em que se aproveita apenas algumas passagens julgadas necessárias (então, uma síntese a partir dos postos-chaves) faz da escritura cênica coisa autônoma, que tenta dialogar com aquele essencial da obra inventando em cena uma forma própria para isso. (...) Fundamental aqui é o elemento físico, corporal, que vai buscar na gestualidade quase (ou efetivamente) coreografada a sua interpretação daquele elemento ritual que está no espírito das ações que o romance narra. Para um universo de paixões desmedidas há esse jogo com ações bem estilizadas, que têm uma beleza quase plástica ao mesmo tempo em que dão o seu depoimento próprio a respeito das aproximações cheias de códigos e pormenores provocantes entre as personagens. (...) Por fim, se este crítico fosse diretor (“SE”) arriscaria um palpite – o que em tudo fere a atitude esperada de um crítico: sugeriria que o espetáculo fosse sonorizado, que tivesse uma trilha como mais um elemento expressivo a compor a cena. É claro que dito assim, isto não passa de uma abstração, pois só as escolhas a respeito do que seria essa trilha contariam efetivamente. Mas isso nos ocorreu durante toda a representação. Talvez pelo fato de que o espetáculo já seja mesmo muito musical, pois há nele uma dedicação grande na área rítmica, só que traduzida fisicamente, no corpo e na gestualidade. (...) De um modo ou de outro este “Querela-Eu” cumpre 231 Crítico teatral paraense que atua e reside na cidade de São Paulo. 232 Trata-se da segunda edição do Festival Territórios de Teatro, uma produção independente dos artistas Ester Sá e Nando Lima, realizado em agosto de 2009, em alguns espaços autopoéticos de Belém. 295 mesmo o que o título indica: remete a aspectos essenciais de Genet, mas não perde a oportunidade para ser também um depoimento artístico pessoal do grupo, argumentado em um instigante projeto cênico.233 TOURINHO: Que massa! LUKA: Acho que ele responde, em parte, a provocação que fiz a C. Sã sobre o treinamento ser colocado em função do texto. Embora eu continue intrigado com essa relação entre treinamento psicofísico e criação, pelas palavras do Kil não dá pra negar que “Querela-Eu” tem uma assinatura autoral que se coloca pra além do trabalho com o texto. Apesar do Kil não fazer nenhuma menção direta ao treinamento que praticamos, nós sabemos que é ele que alicerça todo o projeto de criação cênica da nossa montagem. BACÚ: (Interrompendo) Fiz questão de trazer o pedido de vocês. Olha aqui essa beleza de pirarucu: só o filé... só o filé... E se vocês não gostarem não precisa pagar nada. C. SÃ: Oh camarada. É assim que eu gosto. TODOS: Só o filé... só o filé... Fim do diálogo. 233 Disponível na integra em http://territoriosdeteatro.blogspot.com/2009/08/terca-das-criancas-genet.html. Acessado em 30 de agosto de 2019. 296 No Bar do Rubão – Ze(s) – sem eira nem beira TV. Gurupá, 312, abril de 2013. Há menos de dez minutos de caminhada da Catedral Metropolitana de Belém se encontra o muro grafitado e a agradável calçada que recebe as mesas do Bar do Rubão, certamente um dos botecos mais concorridos da Cidade Velha. Dono de um sorriso e simpatia cativantes, Rubens Estevam Lobato ou simplesmente Rubão é o premiado chefe de cozinha que oferece um delicioso cardápio com destaque para o caranguejo, bolinho de bacalhau, mexilhão, camarão empanado e o meu preferido: charque frito com farofa. Enquanto degustam as iguarias... CARVALHO: Até que enfim te vejo mais relaxado, Luka. No começo do processo te achava muito tenso, muito preocupado com o resultado do trabalho. LUKA: Ah, sei lá. Talvez tenha sido por conta do C. Sã ter saído pra fazer pós doc sanduíche Brasília/Califórnia... Foi a primeira vez que fiquei responsável por conduzir o processo de pesquisa sozinho. E aí tive que me virar pra articular o treinamento com a criação cênica. Isso ainda confunde um pouco minha cabeça. PINHEIRO: Mas qual é a tua questão? Vejo o treinamento tão integrado com o que conseguimos criar pro “Zé(s)”. LUKA: Aí é que tá: integrado em que sentido? Como preparação corporal, como dispositivo pra gerar qualidade de presença? Sinceramente isso não me interessa muito e por um motivo simples: é claro que o treinamento já proporciona tudo isso. CARVALHO: E qual é o “x” da questão então? LUKA: Pra mim o problema é fazer com que o treinamento se torne também uma máquina de “parir centauros”234. Quero que vocês se libertem do jugo do texto e coloquem o “bode pra dançar!”, entende? PINHEIRO: Claro. Estás te referindo a nossa autonomia criativa pra propor coisas que estão além do texto, né? LUKA: Exato. E mais do que isso: penso numa poética experimental que se sustente independente do texto... de uma narrativa organicamente centrada em vocês, nos atos, gestos, movimentos, ações e micro ações realizadas em cena... uma partitura de cena composta por troca de olhares, um toque de mão, um grito, uma gargalhada, um sorriso... os silêncios preenchidos com a integridade de vocês, com a humanidade de vocês, com a vivacidade de vocês, com a tenacidade de vocês... Mas 234 Alusão à passagem de uma carta de Nietzsche ao amigo Erwin Rohde, escrita em 1870, na qual ele afirma: “ciência, arte e filosofia crescem tão juntas em mim que um dia parirei centauros”. (NIETZSCHE, 1969, p.63) 297 pra isso é preciso pensar o treinamento psicofísico pra muito além de um condicionamento técnico pra cena. E pra mim, o treinamento é o elemento propulsor disso que tô chamando de “poética experimental do atuante”. E o meu papel como diretor seria mediar o treinamento e o processo de criação. Mediar, portanto, um procedimento que historicamente foi condicionado ao cultivo de princípios eminentemente técnicos (o treinamento) com o ato de criação de vocês, atuantes. E eu confesso que isso não é nada fácil. Entende, então, o motivo de me ver tenso na sala de trabalho? PINHEIRO: Égua, mano. Bebe um pouco pra tu não ficar tenso com isso tudo, logo hoje que conseguimos pegar o Bar do Rubão aberto e com essa mesa maravilhosa bem aqui na esquina. LUKA: Égua nem me fala. Depois de “bater com a cara na porta” duas vezes, até que enfim, conseguimos. CARVALHO: Gente o Rubão é assim mesmo: quando bate na veneta dele não abrir, não abre mesmo!!! (risos) PINHEIRO: Mas também quando abre, ele arrasa na comida, arrasa no caranguejo... Brinde ao Rubão. Todos: AGITA, AGITO, AO GITA!!! CARVALHO: Agora voltando ao assunto do “bode dançar”: tu não achas que é contraditório querer que a gente se liberte do texto e escolher exatamente um texto pra ser a obra indutora da pesquisa? LUKA: E tu achas que isso não martela na minha cabeça? CARVALHO: Por que não abre mão do texto, então? LUKA: Sei lá. Não é simples de responder. Primeiro porque respeito muito os procedimentos que o C. Sã estabeleceu pro grupo. E no caso do texto do “Zé” ele negociou a autorização diretamente com o Fernando Marques, que é amigo dele dos tempos da UnB. Então, não posso simplesmente descartar o texto. Mas tem uma coisa mais importante que isso: depois de seis anos no GITA é que começo a perceber a potencialidade do treinamento diretamente ligada ao ato criativo de vocês. E ainda tenho muitas dúvidas e inquietações em como encaminhar isso na prática. E, por fim, acredito que é possível um tipo de encenação – muito presente na cidade – na qual o texto é o ponto de partida da montagem, mas não necessariamente o ponto de chegada. Então, eu procuro apontar caminhos de desconstrução do texto e, talvez, o próprio treinamento possa ser uma dessas vias de desconstrução textual. 298 CARVALHO: Eu tô te provocando, mas acho que me sentiria perdida se não trabalhássemos com o texto. Afinal os grupos de teatro que já participei trabalham assim... LUKA: (Interrompendo) A própria Escola de Teatro trabalha assim. PINHEIRO: Nisso acho que levo vantagem porque nunca fiz teatro antes. E por outro lado, treinar já faz parte da minha vida há vinte e três anos. Treino judô desde os quinze anos de idade e sei que é um trabalho árduo, mas gratificante. Então, pra mim, treinar no GITA é tão árduo quanto meus treinamentos no judô. E não tem nada de romântico, de bonitinho: é duro, cansativo, as vezes chato, tedioso... mas quando termina o dia me sinto revigorada, pulsante, cheia de vigor... LUKA: Mas tu és literalmente uma artista marcial. O GITA não te deu isso e sim o judô. No GITA não treinamos para nos tornarmos artistas marciais, mas para sermos atuantes criativos e disciplinados. Acredito que a dimensão ética cultivada num treinamento com artes marciais e meditativas tem muito a nos oferecer. Então, essa tua consciência marcial ajuda muito. Diferente de muitos que entram no grupo e não duram nem um mês porque idealizam o treinamento como se ele fosse capaz de operar maravilhas, sem nenhum esforço e num curto espaço de tempo. CARVALHO: Não achas que assim estás diminuindo a importância e o alcance do treinamento do GITA? LUKA: Não. Estou tentando dizer que as artes marciais e meditativas que praticamos no GITA são um caminho, uma ponte para a criação e atuação, não um fim em si mesmas. CARVALHO: Mas às vezes tenho a impressão que és tão obstinado no repasse do aprendizado das formas codificadas do treinamento que parece que me tratas como se eu fosse uma artista marcial. LUKA: (com um leve sorriso no rosto) Talvez eu erre a mão algumas vezes, ou muitas vezes... Mas meu próprio aprendizado no treinamento demonstrou uma coisa importante que procuro colocar em prática: é preciso aprender a forma pra superar a forma. CARVALHO: E pra aprender a forma eu preciso te ter como modelo a seguir, certo? LUKA: Exatamente, aprendizado pela prática: vocês olham e repetem as formas e tudo que há nelas (controle da respiração, foco, ritmo, precisão, economia de movimentos, etc.). Mas assim que aprendem as formas não precisam mais de mim ou do C. Sã como modelo. Então, podem treinar com o foco somente em vocês... é o momento que começam a se perceber, a se escutar... E pra mim essa escuta é fundamental pra criação, seja num trabalho com texto ou sem texto. 299 PINHEIRO: Aprender as sequências das formas codificadas do GITA foi muito angustiante, mesmo pra mim que já pratico judô há um tempão. Mas entendo que é uma fase do trabalho. CARVALHO: Foi angustiante pra mim também. Mas o que mais me inquietava era terminar o treinamento e ter que começar a trabalhar com o texto do “Zé”. A sensação é que o “lé” não encaixava no “cré”. (risos) PINHEIRO: É, mas o texto só entrou depois que criamos as partituras neutras. Até aí eu tava curtindo bastante os exercícios de criar e brincar com as partituras. CARVALHO: É verdade, tava esquecendo dessa fase. PINHEIRO: Pois eu não esqueço, querida; além de bem didática foi a fase mais divertida. LUKA: Confesso que também achei bem divertido. Aproveitei o procedimento que o C. Sã trouxe pro GITA de criar partituras neutras com bastões235 e comecei a desenvolver meus próprios aplicativos cênicos. CARVALHO: Tu podias sistematizar isso e repassar pra gente; quero aplicar numa oficina de iniciação teatral que vou ministrar. LUKA: Ah, é muito simples. A fase mais trabalhosa é criar a partitura neutra com os bastões, pois precisa repetir, repetir, repetir... até fixar os movimentos. Mas depois de estabelecida a partitura de movimentos podes brincar com diversos indutores de criação. CARVALHO: Tipo o quê? Vai falando aí que vou aproveitar pra relembrar. LUKA: Eu trabalho com três tipos de indutores de criação: espaço ficcional como indutor – por exemplo: igreja, praia, parada de ônibus, estádio de futebol, motel, escola, cemitério, biblioteca, restaurante, etc.; objeto como indutor – neste caso o importante é usar os objetos que estejam a disposição na hora do exercício; e imagens como indutor – neste caso pode usar um quadro, uma fotografia, uma escultura, um desenho, etc. Aí é escolher um tipo específico de indutor e conduzir as improvisações, ressaltando que o único recurso pra improvisar é o roteiro de movimento das partituras. PINEHIRO: Eu adorei isso, porque tu és bem severo na condução do exercício: qualquer coisinha que fugia do roteiro das partituras, tu imediatamente paravas o exercício e começava tudo de novo. CARVALHO: Égua, às vezes dava um ódio porque já tava no meio da improvisação, tudo fluindo aparentemente bem, e tu paravas porque tinha esquecido ou mudado alguma parte da partitura. Que ódio que dava! 235 Ver escavações Diálogo Quarto e No boteco do Bacú, respectivamente nas páginas 159 e 301. 300 PINHEIRO: Mas eu gostava exatamente por isso: disciplina. CARVALHO: É a judoca falando. PINHEIRO: É, pode ser. Duas coisas que me guiam: disciplina e respiração. LUKA: Eu acho isso fundamental; por isso conduzo primeiro o trabalho individualmente, pra poder orientar minuciosamente cada elemento da partitura (plano, foco, deslocamento, transferência de peso, etc.), evitar o uso de pantomimas de objetos imaginários ou de qualquer outra coisa desnecessária pra improvisação. O trabalho em grupo só vem depois que percebo segurança na improvisação individual. PINHEIRO: No começo me sentia numa gaiola, numa estrutura rígida que limitava a imaginação. Mas depois de repetir muitas vezes comecei a perceber que a gaiola sempre esteve aberta, eu só precisava voar sabendo o ponto de partida e o ponto de chegada. Aí comecei a me deliciar com as partituras. LUKA: É uma metáfora interessante pra dizer que as partituras neutras passam a ser subjetivadas por vocês, isto é, caracterizadas a partir do próprio jogo de improvisações que se estabelece. E quando vocês se sentem livres pra caracterizar as partituras, transformam as gaiolas em pássaros. Aí é só voar e curtir a paisagem que vocês mesmas estão criando. CARVALHO: Pois é. Até aí o voo tava lindo. Mas quando o texto do “Zé” entrou na roda, provocou um voo rasante que me fez cair de cara no chão. (risos) LUKA: Acho que as partituras neutras ajudaram vocês num trabalho de transição entre o treinamento psicofísico e os jogos de improvisação cênica; ajudaram a exercitar a consciência e percepção corporal brincando com as estruturas de movimentos criados. CARVALHO: É verdade. Eu me sentia criando minha própria forma codificada de movimento e comecei a observar como os princípios técnicos do treinamento estavam todos ali, sendo acionados naturalmente. PINHEIRO: Foram muito gostosos e reveladores todos aqueles jogos. Eu que nunca tive experiência de pisar no palco, me senti segura pra brincar de atuar, pois sabia que tinha uma estrutura rígida (as partituras) pra nortear minhas improvisações. LUKA: Repito o que falei antes: essa articulação com a dimensão técnica do treinamento é importante, mas pra mim ela não basta. Porque se ficar só nisso eu transformo vocês em “atuantes de luxo”: cheias de qualidades técnicas e virtuosismos. Mas e a criação? Quem cria o discurso cênico, a estrutura narrativa da encenação? Eu, como diretor? 301 PINHEIRO e CARVALHO: (em coro) Lógico que és tu!!! (risos) CARVALHO: Não queres fazer nada é? PINHEIRO: Qual o problema de tu conduzires a encenação? O diretor tem que servir pra alguma coisa, ora bolas. (risos) LUKA: Vocês são umas parasitas du k-raleo. (Gargalhadas generalizadas. Chamam o garçom) PINHEIRO: Querido, traga mais uma bem gelada que a discussão esquentou. LUKA: A questão é compartilhar as coisas. Entendo que meu trabalho como diretor é estabelecer a encenação a partir do material que vocês me trazem e não da minha própria cabeça. CARVALHO: Eu acho isso maravilhoso, porque já trabalhei com diretores que querem decidir tudo sozinhos. Eu gosto de me sentir parte do processo, opinando, propondo... O problema realmente começou quando o texto entrou na jogada. Até acho bem interessante as questões que o “Zé” me provocou a pensar, mas traduzir isso em forma de ação teatral foi muito difícil. Eu confesso que no começo não conseguia ultrapassar a literalidade do texto. PINHEIRO: Eu sentia quase todo o trabalho do treinamento se esvair e ficar só o texto. Na verdade, me senti muito travada. Toda aquela brincadeira de improvisações com as partituras neutras desapareceu quando começamos a trabalhar o texto. LUKA: Eu sei disso. Agora pensa num desespero pra tentar resolver isso com vocês. (a Carvalho) E depois ainda me pergunta porque estava tenso durante o processo. E não sei se perceberam, mas quando passamos pra fase dos laboratórios de criação com o texto do “Zé”, eu fui abandonando gradativa e sutilmente as partituras neutras que criamos. CARVALHO: Eu percebi, mas achava que isso era natural; que as partituras já tinham cumprido seu papel. Não tinha expectativas de usá-las na montagem. PINHEIRO: Eu percebi que entramos numa fase de estudo do texto. Inclusive aquele esquema de investigação do texto que desenvolveste me ajudou bastante. LUKA: (abrindo a bolsa e mostrando um caderno de pesquisa com um desenho) Estais te referindo a esse diagrama aqui? 302 Figura 14 – Diagrama para criação de uma encenação coletiva do GITA Fonte: (SILVA, 2014, p.50). PINHEIRO: Que bacana. É isso mesmo. Tu que elaboraste? LUKA: Sim. Fará parte do primeiro livro do GITA que vamos publicar em breve. CARVALHO: Nós passamos por todas essas etapas. Mas aonde está o treinamento??? LUKA: Essa é a questão: não está contemplado aqui. Ou pelo menos não diretamente. CARVALHO: Talvez eu tenha bebido demais, mas não entendi. LUKA: Ok. Vamos lá. Minha intenção com esse procedimento era criar a encenação a partir da análise pessoal de vocês. Embora o procedimento parta do texto e retorne a ele depois de passar por todas as etapas de investigação, no centro eu coloco vocês e não o texto. CARVALHO: Até aí tudo bem. Lembro de todas as etapas da investigação: lemos o texto e analisamos cena por cena... PINHEIRO: Depois descrevemos os acontecimentos da fábula com nossas próprias palavras. Isso foi bem interessante pra perceber como uma cena pode ser vista em diferentes perspectivas, afinal cada uma de nós contava de um modo diferente. LUKA: E isso aquece o ambiente para a próxima etapa, momento em que vocês precisam se posicionar criticamente diante das circunstâncias em que se movem as personagens da fábula. PINHEIRO: Nossos posicionamentos críticos se chocavam ou divergiam e isso também foi bom pra aprofundar o texto. CARVALHO: Até aqui, percebo semelhanças com a “dramaturgia pessoal do ator”, da Wlad. 303 LUKA: Concordo. Essas três primeiras etapas formam um núcleo de investigação que estabelece relação com o princípio de criação que a Wlad chama de “refletir o seu espaço natal (cidade)”236. Agora percebam que até essa etapa, o treinamento psicofísico não se relaciona diretamente com os procedimentos. É claro que o treinamento proporciona uma escuta, um trabalho de percepção e conscientização sensório-motor numa perspectiva não dual, ou seja, mente e o corpo integrados. Mas isso não se estende imediata e naturalmente para uma análise textual. PINHEIRO: Queres dizer que o treinamento não influencia nossa leitura do texto. LUKA: O treinamento proporciona qualidade de vida, escuta de si, autoconhecimento, cultivo de valores éticos, mas é um processo gradativo de médio/longo prazo. Nas tradições de origem237, essas práticas levam uma vida inteira para formar um artista marcial. Então, alguns meses de treinamento aqui no GITA só podem oferecer o início de um longo processo de descobertas pessoais que varia muito de acordo com cada atuante. E é claro que o primeiro passo é o domínio técnico do treinamento, o aprendizado e domínio das formas codificadas. CARVALHO: Que vai nos levar naturalmente a exercitar, por extensão, esses mesmos princípios técnicos aplicados à cena. Esse me parece o percurso natural. Ainda não entendi qual é a tua crise. PINHEIRO: Saquei o que te incomoda: o treinamento como preparação técnica pra cena. LUKA: É isso. Minha expectativa era integrar treinamento, texto dramático, encenação e pesquisa autoral de vocês. PINHEIRO: Então querido, redimensione suas expectativas, pois como tu mesmo disseste trabalhamos com práticas marciais e meditativas que precisam de tempo pra se estabelecer. O treinamento é uma joia bruta que precisa ser lapidada por cada atuante. Controla tua ansiedade, respira e deixa as coisas se estabelecerem no tempo adequado. O GITA é um bebê que está só engatinhando. CARVALHO: (ao Luka) Do jeito que tu falas parece que o “Zé(s)- sem eira nem beira” foi decepcionante pra ti. Achas que não conseguimos articular texto e treinamento psicofísico de modo satisfatório? LUKA: Sinceramente, fiquei muito satisfeito com o resultado, principalmente porque vocês compraram a ideia de centrar a encenação só no trabalho de atuação de vocês – coisa que no “Querela-Eu” eu não consegui fazer completamente. Então, ver vocês atuando naquela arena 236 NB: 2004, p. 52. 237 Ver escavação Diálogo Primeiro, da página 63 até 81. 304 triangular que eu concebi pra trinta e cinco espectadores, sem objetos de cena, apenas com as calças e blusas pretas de ensaio me dá um baita tesão. São vocês duas ali “sem eira nem beira” tendo que se virar pra colorir um texto difícil como o Woyzech, ainda mais pelo fato do Fernando Marques adaptar o texto de Büchner de modo rimado e metrificado. PINHEIRO: O próprio Fernando disse, depois de assistir nossa apresentação, que ficou surpreso com o que viu. Talvez porque esperasse encontrar ao menos algumas indicações textuais da cena, mas a nossa proposta não tinha paralelo com as indicações do texto. E isso fez ele enxergar o texto por outra ótica, instigando ele a ver coisas bem interessantes. Por exemplo: ele disse que associou a figura do Zé a um touro inquieto. Acredito que isso só foi possível pelo trabalho que tu conduziste articulando as proficiências técnicas do treinamento com as subpartituras238 de atuação que descobrimos pra cada cena. Então, quando digo que percebo o treinamento integrado às cenas me refiro a uma camada de criação que se estabelece pela qualidade técnica da atuação, sim. LUKA: Não sabia desse depoimento do Fernando. PINHEIRO: Conversei com ele depois da apresentação no Fórum Bienal. Então, eu acho que tu tens que relaxar mesmo um pouco e parar de querer resolver todas as questões relacionadas ao treinamento de uma só vez. CARVALHO: Relaxa, “homem brabo”. Deixa as coisas acontecerem mais naturalmente. LUKA: Ok, vocês venceram. Vou tentar controlar meu ímpeto de diretor obsessivo e deixar rolar. Acho que ainda temos muito chão pela frente. PINHEIRO: Oxalá!!! Merece mais brinde. Todos: AGITA, AGITO, AO GITA!!! Fim do diálogo. 238 Acepção usada por Eugênio Barba: “A subpartitura é um apoio interno, um pilar escondido que o ator esboça para si e que não tenta representar”. (2012, p.65) 305 No Bar Meu Garoto – Zé Av. Senador Lemos, 641, bairro do Umarizal. Da esquina da octogenária Praça Brasil (1935) é possível ver o movimento da boêmia que lota a calçada do Bar Meu Garoto, estabelecimento muito procurado pela famosa cachaça de jambu; aliás o carro chefe do bar pode ser visto nas prateleiras de madeira que compõem o ambiente, além de diversas outras cachaças artesanais. Samba, partido alto e chorinho ambientam o local que oferece bancos de madeira, mesa alta e balcão para os clientes, dentro e fora do bar. É noite de sexta-feira, novembro de 2014. No balcão que circunda a coluna central do bar os personagens se encontram entornando algumas cachaças. VASCONCELOS: (fazendo careta enquanto vira uma dose de cachaça de bacuri) Égua, Fresco. Essa é deliciosa. Experimenta. LUKA: Eu sei. É a minha preferida. Só não precisa fazer essas “caras e bocas”. CARDOSO: Parece até a careta que fazias representando o Capitão. SOUZA: Sai do palco, mana! A temporada do “Zé” já acabou! (risos) LUKA: Égua nem me fale em Capitão, Zé e Maria. Depois de mais de três anos trabalhando esse texto preciso dar um tempo pra minha cabeça descansar. Em Coro: “Calma, José, calma!/Assim fico tonto./O bigode pronto/em tempo tão curto/não vale uma palma. CALMA, HOMEM, CALMA!”239 (gargalhadas generalizadas) LUKA: Vocês é que não “valem uma palma”, seus phelas da puta! (Risos) SOUZA: Eu não sei vocês, mas eu também tô aliviado de terminar esse trabalho. Me desgastei muito... Desculpa Luka, mas foi muito escroto. LUKA: Te referes exatamente a quê? SOUZA: Sinceramente: TUDO. O treinamento é puxado, o texto é denso e tu... tu és Uó. Chato, muito exigente, escroto... égua foi muito phoda pra mim. CARDOSO: Eu te entendo. Pra mim também foi difícil, principalmente porque o GITA me exigiu uma coisa que tenho pouco: Disciplina. Então, repetir o mesmo treinamento a cada encontro, cumprir horário, realizar as demandas da montagem que o Luka encaminhava... às vezes a sensação era de tá caindo num abismo e dava vontade de fugir, de gritar, de sumir, de matar o Luka... LUKA: “Calma José, calma!”. (Risos) 239 NB: (MARQUES, 2013, p.26) 306 CARDOSO: Acho que esse é o primeiro impacto que a pesquisa do GITA me deu... e praticar o treinamento com artes marciais e meditativas, aos poucos, me fez ver que na verdade eu tava lutando contra os meus vícios, minha ansiedade, meus medos, minha indisciplina... e a medida que fui me percebendo respirando melhor no treinamento, me apropriando daquelas formas estranhas, fui me vendo diante de um espelho, sendo despida desses condicionamentos... LIMA: Engraçado te ouvir e me reconhecer nisso também. Antes de entrar no GITA eu implicava com o termo treinamento: a primeira coisa que me vinha à cabeça eram animais sendo adestrados para adquirir habilidades, técnicas especificas. Então, comecei bem desconfiada e fui descobrindo, aos poucos, que o treinamento não me dava nada do que eu já não tivesse... o treino não me deu habilidades ou técnicas, mas fez florescer coisas que eu já tinha. Então pra mim, o treinamento estabeleceu um caminho de auto investigação com plaquinhas indicando algumas trilhas como: quem eu sou, como eu sou, o que posso vir a ser e como posso expressar o meu ser por meio do teatro. SOUZA: Mana isso é muito lindo e eu realmente acredito que o treinamento pode oferecer esse caminho. Mas comigo não rolou. Me senti pressionado, sufocado pelo treinamento e pelo processo criativo... agora vou fumar um cigarro lá fora porque não vim aqui pra filosofar. (saí) LUKA: Relaxa, Fresco. CARDOSO: Não é fácil mesmo. Até consegui me ver nesse espelho que é o treinamento eu sofri. No começo, esperava que tu (ao Luka) ou o C. Sã explicassem o passo a passo do treinamento e odiava aquele silêncio, aquela falta de orientação de como fazer. Aí eu só repetia as formas e era muito, muito chato. Até que tu começaste a provocar a gente a praticar as sequências de movimentos codificados sozinhos. Foi um desespero, eu não sabia quase nada. Então, vi que não tinha escapatória e comecei a prestar mais atenção em como fazer e “aos trancos e barrancos” fui memorizando os movimentos até conseguir executá-los naturalmente; quando atingi esse estágio é que minha percepção do treinamento mudou: deixei de pensar em “como fazer” e passei a simplesmente “fazer”. LUKA: É uma coisa simples, mas que só pode ser descoberta na prática. Nada que possa ser falado na sala de trabalho será mais valioso pra vocês do que essa descoberta prática. VASCONCELOS: Descoberta prática é o que vou fazer com a cachaça de cupuaçu. (Se dirige até o balcão e solicita a cachaça ao atendente) ATRIZG: Confesso que ainda tô na fase de me sentir completamente perdida. 307 LUKA: Relaxa, Atrizg. Todos passam por isso. E além do mais, chegaste com o “bonde andando” e foste muito corajosa de substituir o C. Sã há menos de um mês da estreia do “Zé”. Enquanto teu aprendizado no GITA só tá começando esses phelas da puta já tem um ano de treino nas costas. CARDOSO: Gosto de como o C. Sã resume o que é o treinamento: [primeiro se reproduz a forma, em seguida se está na forma, para então ser a forma]240. ATRIZG: Mana, por enquanto eu tô na forma de “bunda de índio”: completamente por fora. (Gargalhadas generalizadas. Vasconcelos retorna com a cachaça e serve a todos) LIMA: (a Atrizg). Não vou te enganar: o treinamento dói. As formas codificadas são bonitinhas perifericamente, mas por dentro ele foi me cortando cirurgicamente: dói a musculatura, dói a consciência que exige disciplina e dói saber que tudo só depende de mim mesma. CARDOSO: Dói porque a gente vai se desmontando, se despedaçando... e vai se conhecendo e desconhecendo em cada pedaço que carrega as nossas próprias dores. LIMA: É quando a gente aprende a se entregar verdadeiramente ao processo. LUKA: Fico feliz por vocês terem alcançado a dimensão marcial do treinamento. Isso é uma coisa que precisa ser conquistada com calma e paciência. Não assustem a Atrizg. E não esqueçam que o GITA não tem o objetivo de transformar vocês em artistas marciais. LIMA: Eu sei, mas acho que esse aprendizado, no meu caso, foi fundamental pra conduzir meu processo de criação. Descobri que eu não treino pra aplicar técnicas na cena, mas pra expressar quem eu sou por meio do Zé. ATRIZG: E como fizeste isso? Porque no meu caso só tive tempo de decorar as falas que eram das personagens do C. Sã. Bem diferente de vocês que de tão íntegras e vivas em cena pareciam possuídas pelo capeta. (Risos) CARDOSO: Todos os procedimentos do GITA me ajudaram muito: as partituras neutras com o bastão, os exercícios de caracterização das partituras, a descoberta das subpartituras além das etapas de leitura, descrição e análise crítica do texto que o Luka conduziu com “mão de ferro”. De algum modo, que não sei explicar, isso tudo foi se conectando ao treinamento. VASCONCELOS: (ao Luka) Esse Fresco é o responsável por isso, ora bolas. Ele foi dirigindo a gente pra beira do abismo exigindo que a gente se mostrasse mais, sem máscaras, sem subterfúgios... e depois começou a traçar paralelos entre a situação escrota vivida por Zé no texto 240 C. Sã baseia esse pensamento, principalemnte, em premissas do Zen budismos cujo contato fora estabelecido por intermédio da monja Aida kakuzen, da comunidade Zendo de Brasilia. 308 e a escrotice da nossa própria vida. Lembro do dia que ele nos colocou sentados de frente, uns para os outros, no centro da sala 24, fechou as janelas, apagou a luz de serviço e acendeu um refletor bem em cima da gente. Foi tão marcante que guardo uma foto desse dia até hoje, aqui no meu celular. Figura 15 – Exercício da etapa de laboratório de criação da montagem Zé. Fonte: Arquivo do GITA. Sala 24, ETDUFPA, 2014. CARDOSO: Lembro disso. Depois pediu pra gente conversar sobre o que quiséssemos. VASCONCELOS: Os primeiros vinte minutos foram só trivialidades, bobagens e coisas inconsequentes... depois comecei a ficar impaciente porque o Luka não encerrava o exercício. LIMA: Só que teve um momento de silêncio grande... nossos olhos se encontraram de verdade e eu comecei a falar tudo que tava passando de verdade em casa: problema de grana, desagregação familiar... tinha dias que mal me alimentava... eu era uma espécie de Zé que “só se alimentava de ervilhas”. VASCONCELOS: Daí em diante todo mundo se abriu de verdade, até o Fresco do Souza: choramos de verdade, rimos de verdade, nos ouvimos de verdade, nos encontramos humanamente de verdade. LIMA: E descobrimos que éramos tão phudidos quanto os personagens do texto. CARDOSO: Esse exercício foi um marco realmente, pois me fez perceber o tipo de entrega que o Luka queria: não era pra eu me fundir emocionalmente com as personagens, mas pra eu abordar humanamente aqueles dramas, sem cabotinismos ou maneirismos de representação. Então, eu passei a alimentar e ser retroalimentada pela personagem Maria. VASCONCELOS: (a Atrizg) Viu como a culpa de tudo é do Fresco. 309 CARDOSO: (a Atrizg) Entende porque o Souza ficou tão tocado com esse trabalho? ATRIZG: Deve ter tocado em feridas que ele não queria mexer. LIMA: O diretor é um cutucador de feridas. Luka é um cutucador de feridas. CARDOSO: Por isso a relação com a direção no GITA é de amor e ódio: às vezes quero matar o Luka, às vezes quero guardá-lo no coração. LUKA: Pra mim todos os sentimentos são válidos num processo criativo, desde que sejam mediados pela confiança. Quando existe confiança entre atuante e diretor os laços não se quebram, os k-raleos, de ambos os lados não se confundem com ofensa pessoal... pelo contrário, os k-raleos podem ser ingredientes de criação. LIMA: Cultivar essa confiança também não é fácil. Porque eu acho que às vezes o atuante vai se comportar como o maior dos phelas da puta e vai contraditar tudo o que o diretor encaminhar. E aí o diretor vai fazer o quê? Dar chilique e expulsar do processo? LUKA: Eu dou chilique, mando pra baixa da égua e digo pra não ousar atrasar um minuto no próximo ensaio. (risos) CARDOSO: O que eu tenho aprendido com o Luka é que ele não é o dono da verdade; ele não sabe o que tenho que criar e nem como eu vou conseguir criar. Mas ele é capaz de farejar quando me esquivo da responsabilidade de criar e apenas recorro aos subterfúgios da representação... LUKA: Ou seja, quando fica tentando me convencer que “entrou na personagem”, que “incorporou” o Zé, a Maria, Hamlet, Édipo, Madame Clessi, Godot, Geni... o k-raleo a quatro... quando na verdade só tá fazendo firulas técnicas, se escondendo por trás de uma representação barata repleta de “caras e bocas”... VASCONCELOS: (a Atrizg) Mana, aí o Fresco fica phulo da vida e solta todos os k-raleos na tua direção. LUKA: Cacete: a personagem não esconde nada... ela REVELA! Revela: como, quando, onde e o quê pensamos sobre essas personagens e suas relações com o mundo... revela como nos posicionamos criticamente no mundo. LIMA: E demorei a perceber que esses k-raleos, antes de qualquer coisa, exorcizam meus próprios demônios do comodismo e querem me impulsionar pra criação autoral. CARDOSO: (a Atrizg) Mas isso só vai acontecer se tu estiveres aberta e se entregar inteiramente ao processo. 310 LUKA: Por isso precisa ter confiança, respeito, paciência, disciplina... valores que o treinamento com artes marciais e meditativas ajuda a cultivar. ATRIZG: Tô ficando assustada e ao mesmo tempo encantada. VASCONCELOS: Te joga, fresca. (Servindo outra rodada de cachaça de cupuaçu) LUKA: Essa merece um brinde. (a Lima) Chama o Fresco do Souza. (Souza se junto aos demais) Todos: AGITA! COGITA! BIRITA! AGITO! DIGITO! EGITO! AGITA! CABRITA! AO GITA! SOUZA: Já pararam de filosofar? LUKA: (ao Souza) Larga de ser besta e senta aqui com a gente, Fresco. VASCONCELOS: Qualquer um é capaz de filosofar com duas doses de cachaça na cabeça. Até tu Souza. ATRIZG: Senta aí, Souza, que o papo tá bom. (Souza senta) A maior dificuldade que encontrei no momento da substituição do C. Sã foi o texto. SOUZA: Claro, tiveste que decorar uma porrada de coisa em cima da hora. ATRIZG: Teve isso também, mas me refiro a me apropriar do texto. Contracenando com vocês percebo que tem uma camada de trabalho, um peso no modo de dizer as coisas, não sei explicar exatamente... tem uma impetuosidade, um sopro de vida que transforma as palavras em outra coisa... diferente do que eu faço em cena: me sinto fazendo canastrice. LUKA: Mas não podes te comparar, afinal chegaste praticamente no fim do processo. Não tínhamos escolha e deixei tu enveredar pela linha da caricatura, uma vez que a proposta da encenação não tinha nada de realista e ainda flertava com uma pegada expressionista. Agora com os outros, fomos encontrando meios pra dar densidade ao texto. VASCONCELOS: Relaxa que essa dificuldade com o texto não é exclusividade tua. LUKA: É verdade. Articular treinamento psicofísico, texto e atuação psicofísica é uma das dores de cabeça que tenho. Mas, como disse, fomos encontrando modos de fazer isso. E, pra mim, um dos achados mais valiosos foi feito por Lima, ao criar subpartituras de animais pra conduzir todo trabalho dela. ATRIZG: Pois é. Como foi isso, Lima? LIMA: Comecei esse trabalho a partir de um exercício que o Luka propôs quando pediu pra gente oralizar o texto enquanto treinava as formas dos animais do kalarippayattu. Percebi que cada 311 animal tinha um ritmo diferente, uma atitude diferente... e isso dava um colorido diferente no modo de dizer o texto. Então, pensei: “E se eu criar as minhas próprias abstrações de posturas de animais?” ATRIZG: Mas se as posturas dos animais do kalarippayattu já te davam uma qualidade diferente, por que resolveu criar as tuas próprias? LIMA: Porque não me davam o tom, a qualidade que eu queria pro Zé. Um dia, assistindo um documentário sobre animais selvagens na TV consegui fazer uma associação com a relação do Zé e do Capitão: os dois pareciam animais selvagens prontos pra se atacarem mutuamente. Então pensei no Zé como um tigre. Levei pro laboratório de criação e o Luka me incentivou a lapidar esse procedimento: comecei pela forma de andar, respirar, olhar, enfim, comecei pela forma. Depois o Luka me ajudou a abstrair a forma e usá-la como subpartitura. ATRIZG: Mas ficaste só no tigre? CARDOSO: Achas que o Luka ia me dar essa colher de chá? LIMA: O tigre foi só o primeiro. Então, a partir dos procedimentos de análise do texto que o Luka aplicou eu mapeei todas as minhas cenas e cheguei a quatro posturas de animais que corresponderiam pelo menos a quatro qualidades, tons e atitudes do Zé: tigre, guepardo, galo e águia. LUKA: A partir dessas quatro partituras de animais começamos a brincar com as transições de uma a outra, gerando uma série de combinações entre elas e, consequentemente, oferecendo variações, nuances e camadas diferentes de atuação. LIMA: Eu quase fiquei doida com tanta coisa que surgiu. Mas foi libertador porque como eu passava a montagem inteira praticamente estática no centro da arena retangular era isso que me mantinha viva durante os cinquentas minutos de duração do trabalho. ATRIZG: Que bacana, me deu até vontade de fazer isso com meus papeis na montagem. LUKA: Pode até funcionar, mas não acho que procedimentos com uma abordagem pessoal, como esse, devam ser usados como modelos. Prefiro te incentivar a encontrar o teu próprio caminho. Assim como os outros atuantes foram encontrando o caminho deles. ATRIZG: Égua. As coisas podiam ser mais simples. Não faço nem ideia de por onde começar. SOUZA: Mana põe uma coisa na tua cabeça: com o Luka nada é simples. LUKA: Estar perdida já é um ótimo começo. Eu também me senti perdido quando Pinheiro e Carvalho tiveram que sair do GITA. Elas me ajudaram muito a dar os primeiros passos rumo a uma 312 poética experimental do atuante. Aproveitamos a linha de encenação do “Zé(s) – sem eira nem beira”, ou seja, uma linguagem centrada no trabalho de expressividade psicofísica de vocês e desnuda de acessórios cênicos, mas descobrimos outros modos de operar e articular treinamento e criação. Então, eu não tenho respostas prontas e meu trabalho de diretor só pode existir a partir do que vocês me dão. ATRIZG: Em outras palavras: Tô ferrada! VASCONCELOS: E mal paga!!! SOUZA: Então mana, vamos beber que é a melhor coisa que a gente faz. (Erguendo o copo para mais um brinde) Fim do diálogo 313 No Bar Nosso Recanto – Atena em Solo Viril Praça do Carmo, Cidade Velha, maio de 2016, algum tempo depois da “jornada das pontes”241. Da porta da igreja que dá nome a praça – Igreja Nossa Senhora do Carmo, arquitetura de Antonio Landi, século XVIII – é possivel avistar as frondosas mangueiras que se integram ao cenário boêmio do ambiente: mesas e cadeiras de madeira no passeio da praça, gente que bebe, petisca, fuma, conversa alto... ampliando a vista ainda é possivel observar as crianças que brincam de pira, esqueitistas, dançarinos de street dance, jovens enamorados, famílias jogando conversa fora ou simplesmente aproveitando o aconchego da praça em suas cadeiras de praia; típico cenário aonde sagrado e o profano convivem harmoniosamente. Os badalos do sino da igreja por vezes se confundem com o chiado dos discos de vinil do Bar Nosso Recanto, estabeleceimento que aproveita o clima aconchegante da praça pra servir seus clientes. Luka e Atrizg já estão na segunda cerveja e aguardam o empanado de camarão e uma dose de maniçoba, respectivamente. LUKA: A mesa parece enorme agora. Éramos seis no “Zé”, e agora “Atena” tá sozinha. ATRIZG: O lado bom é dividir cerveja com menos gente. (risos) Sente falta do povo que entra e vai saindo? LUKA: De alguns, sim, mas já me acostumei com essa rotatividade do grupo. ATRIZG: Reparaste que no início desse processo éramos sete mulheres e só tu e o C. Sã de homens? LUKA: Sério? Não tinha atentado pra isso. És uma sobrevivente. ATRIZG: É engraçado pensar nisso agora. Entendo melhor a repulsa, angústia e sofrimento que o Souza vivenciou no grupo, embora discorde dele. LUKA: (interrompendo) Tu também sofreste, né? ATRIZG: Com certeza. A estrutura rígida do treinamento fere, marca e provoca dor. LUKA: E o que te fez continuar até aqui? ATRIZG: Em Garrafão do Norte, o igarapé Jipúuba fica mais quieto na época do verão: chove menos e o fluxo das águas diminui; o calor aumenta e se tornava praticamente um convite obrigatório pra um banho naquelas águas geladinhas. LUKA: E o que tem a ver o cu com as calças? 241 Ver escavação Diálogo Zero, da página 41 até 62. 314 ATRIZG: Como o rio tava mais calmo, nessa época eu e meu irmão íamos pro outro lado pra brincar de “tsunami”: atirar pedras nas águas pra ver qual delas ricocheteava mais longe. Como ele era mais novo e menor que eu, atravessava nadando com ele nas minhas costas. Mas embora o igarapé tivesse mais calmo e a travessia fosse gostosa, essa brincadeira era arriscada e eu precisava me esforçar muito, afinal nadava por mim e por ele enfrentando a força da correnteza. Chegava cansada do outro lado, às vezes machucava a perna e os braços trombando com galhos e troncos de arvores... LUKA: A perda do teu irmão pouco antes da gente estrear o “Zé” te marcou muito, né? ATRIZG: Enfrentar a dor nunca foi motivo pra largar nada na minha vida. Não que eu goste ou me acostume com a dor, mas enfrentar situações dolorosas fortalecem a gente de algum modo... Então, quando a gente chegava do outro lado o prazer de jogar as pedras na água compensava o esforço e os machucados. LUKA: O treinamento é como a travessia do rio? ATRIZG: Ele ajuda na travessia. A diferença é “quem” ou “o que” a gente coloca nas costas. LUKA: (interrompendo) E determinar qual o propósito de chegar do outro lado do rio. ATRIZG: É verdade. Então, depois que se entra no rio, não adianta ficar reclamando da correnteza, dos galhos, troncos... ninguém obrigava a gente a jogar as pedras do outro lado do rio, era uma decisão só nossa. Ninguém me obrigou a entrar no GITA... LUKA: E chegaste no GITA com “quem” ou com “o que” nas costas? ATRIZG: No começo estava perdida, não sabia realmente o que queria. Cheguei a ver algumas demonstrações do treinamento, achei bonito, legalzinho... e também sentia a necessidade de praticar teatro num grupo, minha experiência teatral se resumia ao que fazia na igreja, precisava expandir meus horizontes. O GITA me oferecia isso dentro da ETDUFPA. Mas assim que comecei a atravessar o rio percebi que precisava de uma motivação mais concreta pra continuar ali. LUKA: Precisavas descobrir qual era a brincadeira que tava te esperando do outro lado. ATRIZG: Isso. Passei um tempo me questionando: “Por que cargas d’água eu repito, três vezes na semana, um monte de exercícios que foram inventados do outro lado do mundo?” LUKA: (sorrindo) E qual era a tua conclusão? ATRIZG: Sei lá. Eu ouvia tu dizeres que o treinamento não se esgotava só ali na sala de trabalho, ficava intrigada, achava que era tudo papo furado... e aos poucos fui percebendo que tava mudando minha rotina fora do grupo; primeiro porque eu precisava chegar às nove da manhã pra pegar o 315 treinamento desde o começo. Teve um dia que cheguei quinze minutos atrasada e fiquei com-ple- ta-men-te perdida, porque ao invés de tu recomeçares os exercícios pra eu poder acompanhar com os demais, simplesmente seguiu treinando sem deixar eu pegar os exercícios dali em diante. LUKA: Fazer isso seria dar um “jeitinho” no teu atraso, minimizar o problema. ATRIZG: Tive que seguir a sequência sozinha sem saber ao certo se estava fazendo as coisas direito. Então, aprendi que preciso chegar às nove da manhã ou tava ferrada. Mas pra chegar no horário, enfrentando um trânsito Uó, precisava acordar mais cedo, preparar meu café e organizar todas as minhas tarefas do dia; e pra acordar disposta precisava também ir dormir mais cedo no dia anterior. Me vi numa espiral de coisas que precisavam ser organizadas. Minha vida estava imersa num rio agitado demais e eu nem percebia isso. LUKA: E como o treinamento te ajudou a atravessar o rio? ATRIZG: A primeira coisa foi me escutar, me enxergar nisso tudo, e ouvir minha respiração fez toda a diferença. Pode parecer bobagem ou clichê, mas quando estamos nos afogando, manter a calma é o primeiro passo pra chegar a salvo na beira. Então, percebi que a estrutura rígida do treinamento estava de algum modo ligada ao teu modo severo e às vezes inflexível de conduzir os exercícios; não era implicância comigo, não fazias isso pra me machucar ou machucar quem quer que seja no grupo, era um cuidado, zelo e respeito por uma prática muito valiosa. (O garçom chega com os pedidos) LUKA: Opa. Chegou bem hora. Já tava ficando com água na boca só de olhar pras outras mesas. Obrigado. ATRIZG: Luka, tu vais comer esse tigelona de maniçoba essa hora da noite? LUKA: E daí? Não vou atravessar nenhum rio agora. (Risos) E por falar nisso: o que encontraste do outro lado do rio, nessa montagem? ATRIZG: No começo me sentia atravessando o rio com o mundo nas costas: o texto do Ésquilo pesava, as partituras com o bastão pesavam, meus compromissos pessoais pesavam, a personagem Atena pesava... quase me afogo. LUKA: Eu percebi, mas só podia te mostrar o curso do rio. ATRIZG: Demorei a entender isso também. Aliás, uma coisa que me intriga e que me deixou muito, mais muito irritada e sem chão a certa altura do processo foi tu abandonares as partituras neutras. Égua fiquei muito puta da vida porque passamos meses pra criar sete partituras usando os bastões... os bastões me esfolaram todo o corpo de tanto eu repetir e memorizar TODAS as sete 316 sequências de movimentos... aí um belo dia tu chegas “lindo” e diz: “– Não vamos usar as partituras. Precisamos descobrir como será a tua encenação”. Meu mundo caiu inteirinho nesse dia. LUKA: (sem conter o sorriso maroto) Estás exagerando: o rio tava calmo, tuas braçadas cada vez mais firmes e não precisavas de nenhum tipo de boia pra continuar a travessia... ATRIZG: (interrompendo) Boia? Agora eu boiei. LUKA: Eu tava tão obcecado em chegar logo do outro lado do rio que esqueci uma coisa simples: a travessia era tua. Quando percebi que as partituras se transformaram num artifício técnico pra resolver a encenação, ou seja, pra resolver algo ligado mais a minha função de diretor/encenador do que propriamente a tua de atuante, saquei então, que elas só te faziam boiar na superfície do rio; mas até que ponto devemos atravessar o rio sem mergulhar? ATRIZG: (rangendo os dentes) A questão, querido diretor, é que se a travessia era minha, o rio era meu e a brincadeira que seria estabelecida do outro lado também deveria ser minha, a decisão de mergulhar ou não também deveria ser minha, não achas? LUKA: Neste caso não podes confundir a travessia com o rio. A travessia (o processo), sem dúvida é tua, mas o rio é nosso (GITA). ATRIZG: Boiei de novo. LUKA: Me refiro à pesquisa do GITA, aos procedimentos metodológicos, e sobretudo ao texto da montagem. A decisão de atravessar o rio foi tua... ATRIZG: (interrompendo) Mas não sou dona do rio, saquei. Mas não achas que ao menos a decisão de mergulhar deveria ser minha? LUKA: Acho que só tu podes determinar a profundidade do mergulho. (pausa) Pensa comigo: se o treinamento te fortalece pra atravessar o rio, ele também te prepara pro mergulho. Então, não tem como eu não te provocar a dar pelo menos um thibum de leve. ATRIZG: E desde quando tu te contentas com um thibum de leve? (risos) LUKA: Se é pra mergulhar, vamos mergulhar com vontade, ora bolas. ATRIZG: Mas precisava ser uma tragédia do fresco do Ésquilo, escrita no tempo do puta merda lá onde o Judas perdeu as botas? LUKA: “As Eumênides” é um clássico, cabeçuda. E como todo clássico da literatura oferece a possibilidade de abordar questões universais e atemporais. ATRIZG: Égua, mas eu tive que mergulhar fundo pra encontrar essa maldita Atena, descobrir quem ela era e o que queria falar na montagem. Quase me afogo nesse mergulho, égua. 317 LUKA: Mas confessa se não ficou satisfeita com o que encontrou? ATRIZG: Não sei se “satisfeita” é a palavra adequada. Mergulhei e encontrei uma mulher evangélica submissa, cerceada pela religião e amordaçada por princípios patriarcais. LUKA: E desse mergulho conseguimos articular a tua versão da Atena com a tragédia de Ésquilo. Se a questão pautada na tragédia é a oposição entre deuses novos e deusas antigas – Apolo e as Erínies, respectivamente – e isso toca no ponto crucial para os atenienses que é se questionar sobre o que é “justiça” numa atmosfera de transição de valores políticos, morais, econômicos e políticos, tu redimensionas isso tudo pra questão que te afeta hoje: como estabelecer igualdade de gênero numa sociedade patriarcal? ATRIZG: Ou seja: a encenação foi construída a partir do meu mergulho. LUKA: Exatamente. Uma coisa que eu vinha perseguindo desde a primeira versão do Zé de 2013. Acho que o fato de trabalharmos um solo teatral me ofereceu a possibilidade de conduzir tudo com mais atenção, concentrado nas peculiaridades das tuas descobertas pessoais a partir do texto e me colocando como alguém que oferece soluções poéticas para a narrativa que tu precisavas apresentar em cena. ATRIZG: Mas, então, eu posso dizer que tu mergulhaste comigo. Afinal todo o trabalho de adaptação do texto que se transformou num monólogo estruturado pelos longos solilóquios de Atena, nós fizemos juntos. LUKA: Eu só me arrisco a dizer que nadei contigo. Chegamos do outro lado do rio juntos, mas o mergulho realmente é só teu. ATRIZG: Mas eu acho muito louco que alguém nade do meu lado e não se permita mergulhar também. (Pausa longa) LUKA: Lembrei que na tua brincadeira de infância, nadavas com teu irmão nas costas até chegar do outro lado. ATRIZG: Achas que te levo nas costas na hora que mergulho? LUKA: Talvez sim. E mesmo nesse caso, quero dizer que o mergulho continua sendo teu: és tu quem determina a duração, a rota e a profundidade. Talvez eu possa ser um tanque de oxigênio... ATRIZG: (interrompendo) Ou um boto que me enfeitiça e quer me manter pra sempre no fundo do rio... Talvez tu sejas tão obcecado pelo nosso mergulho que não consegues frear teu ímpeto... e isso pode afogar alguns de nós como o Souza, por exemplo. 318 (Pausa longa) LUKA: (Reflexivo) Minha condição de diretor na linha tênue entre o oxigênio e a feitiçaria amazônica. ATRIZG: E pra gente que tá concentrado no mergulho, pode ser difícil distinguir uma coisa da outra. Daí a confusão de sentimentos: te amamos, te odiamos... ora oxigênio, ora boto... Lembra que a Lima te definiu como um “cutucador de feridas”? LUKA: Sim. ATRIZG: E lembras qual foi o elemento que ela determinou como o fiel da balança na relação entre diretor e atuante? LUKA: Confiança. ATRIZG: Pois é, meu irmão confiava em mim pra chegar do outro lado. E eu me sentia responsável por nós dois e procurava nadar desviando dos obstáculos... nem sempre conseguia e às vezes quando esbarrava em galhos ou pedras ele reclamava, me chamava de besta e dizia pra eu nadar direito. Embora isso me irritasse um pouco não impedia que continuássemos a brincadeira. LUKA: E na travessia do rio no processo da tua montagem, achas que houve momentos onde essa relação de confiança de desestabilizou? ATRIZG: Não sei dizer exatamente, mas sei que continuamos a nadar até chegarmos do outro lado. LUKA: Eu entendo as tuas ponderações, penso que são realmente bastante pertinentes e me provocam a ter um comportamento semelhante ao teu em relação ao teu irmão, ou seja, preciso cuidar do outro com afeto e demonstrar confiança. ATRIZG: Confiança no que faz já demonstras até demais. Te sinto seguro dirigindo as montagens. Talvez falte temperar com um pouco mais de afeto: menos k-raleos e mais carinho. Atravessar o rio exige técnica e afeto. O rio que atravessei com Atena teve um pouco dos dois... LUKA: O caminho do meio. A ética aristotélica defende isso há milênios. Virtuoso é aquele que consegue equilibrar sua ação entre os extremos.... ATRIZG: (interrompendo) Na sabedoria popular: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Ora oxigênio... ora boto... LUKA: Ora k-raleo... ora carinho... e o que me anima nessa travessia é que chegamos do outro lado juntos. Então, embora realmente pareça que é uma jornada solitária do atuante, eu me sinto presente em cada momento da travessia e aprendo com o mergulho de vocês. 319 ATRIZG: E o que aprendeu com meu mergulho? LUKA: Sobre os meus procedimentos de direção aprendi que é possível estruturar uma encenação a partir das questões e anseios de vocês, mas que é preciso encontrar as chaves de entrada pra que vocês possam acessar o texto indutor da montagem; e cada vez mais sou levado a crer que as partituras neutras não oferecem essa chave de acesso; as partituras neutras oferecem uma transição entre as proficiências e princípios do treinamento e a atuação, e isso não é pouca coisa, mas isso as situa na dimensão da expressividade e não na dimensão da criação. ATRIZG: Uau! Vou deixar tu pagares a conta sozinho, afinal tu aprendes muito comigo. LUKA: Sempre aprendo com vocês. E não foi só isso não: a tua abordagem feminista da obra de Ésquilo me provoca a pensar sobre o meu machismo, dentro e fora do GITA, o quanto de patriarcado ainda está encrustado no meu modo de ser e pensar a direção teatral. Reflexões que me provocam a pensar sobre os meus caminhos até aqui e sobre o que virá... ATRIZG: Espero continuar nesses caminhos... LUKA: Eu também! (Se olham com serenidade, apertam as mãos com afeto e se abraçam) Fim do diálogo. 320 No Espaço Cultural Boiúna – Fenda Rua do Pariquis, 1556, bairro Batista Campos, próximo do Natal de 2017. Como quase todos os bares da cidade, o Boiuna também oferece mesas na calçada, mas o grupo prefere curtir o som instrumental do Cumbuca Jazz dentro do estabelecimento, na soturna, porém aconchegante área do subsolo. Escolhem uma mesa bem ao fundo, distante o suficiente para conversarem e ao mesmo tempo apreciarem o repertório musical da banda que toca música brasileira, regional e, evidentemente, as grandes composições de jazz. Aproveitando o clima de improvisação instrumental dos músicos, Luka conduz a brincadeira na mesa do grupo. PINHEIRO: Flecha que se atira com os olhos vendados. SAWAKI: O fio que nos guia dentro do labirinto. GÓES: Como o vento: ora brisa suave e refrescante, ora tempestade selvagem e cortante. LUKA: Uma âncora que me mantém firme em mares tempestuosos. PINHEIRO: Roda gigante no parque ITA: ora por cima apreciando a suntuosidade da basílica de Nazaré, toda iluminada, ora por baixo observando gente catando latinhas de cerveja/refrigerante no lixo. SAWAKI: Leve como miriti, denso como açaí. GÓES: Leve como miriti, denso como maniçoba. (Gargalhadas generalizadas) LUKA: Ri, mas não para. Vou continuar. Livro que vai nos decifrando um pouquinho, todos os dias. PINHEIRO: Caminho imprevisível com buracos, pedras, curvas sinuosas... mas também flores e um arco-íris de muitas cores. SAWAKI: Caminhar de pés descalços sobre corais numa ilha paradisíaca. GÓES: Caminhar na beira do precipício e, se precisar, não hesitar em pular. LUKA: Olhar pras setas, mas enxergar os caminhos. PINHEIRO: Caminhar solitário aonde não se pode dar ouvidos aos demônios de estimação. SAWAKI: Acordar num país estrangeiro e aprender a língua materna local a cada dia. GÓES: Mata virgem de sensações. LUKA: Soca-soca de miriti. SAWAKI: Égua, não vale, perdeu. Nada a ver. LUKA: Claro que vale. Dois bonequinhos socando um de cada lado o mesmo pilão. PINHEIRO: É Sawaki, vale sim. SAWAKI: (Desconfiada) Tá bom, continua. 321 PINHEIRO: Desopilar o céu nublado pra enxergar as estrelas. SAWAKI: Ver, nadar e brincar seguindo a corrente do rio. GÓES: Bússola para trafegar por sobre meus próprios escombros. LUKA: Faca, bisturi, terçado, florete, adaga, sabre ou canivete. Corte, incisão, entalhe ou golpe. SAWAKI: Égua, macabro. LUKA: Não para! Continua... continua... PINHEIRO: Abridor de latas, picareta, talhadeira... SAWAKI: Ficar nua pra sentir e vestir a minha segunda pele. GÓES: Crua, nua, pelada cercada por espelhos. LUKA: Cantar em coro equilibrando e harmonizando as vozes da cabeça com as do coração. PINHEIRO: Jogo fofinho que te faz transitar entre o tormento e o desespero. SAWAKI: Jogo que não se vence com o olho da razão, mas com a sintonia da respiração. GÓES: Jogo de respirações audíveis, coro silencioso que invade o espaço e ensurdece o cabeção. LUKA: Brincar de pira-esconde com os próprios demônios: ora eu me escondo, ora eles se escondem; e às vezes fazemos uma festa juntos. (Risos) PINHEIRO: Silêncio ensurdecer que exorciza demônios. SAWAKI: Jogo de peteca onde literalmente não se pode deixar a peteca cair. (Risos) GÓES: Atravessar a BR às 18h debaixo de um toró sem hesitar. LUKA: Se espera encontrar o paraíso, é melhor nem sair de casa. PINHEIRO: Se deparar com o leão, respirar, respirar, respirar... até transformá-lo num bichano. SAWAKI: Acordar o leão e descobrir como domá-lo. GÓES: Luta implacável entre o leão e a criança. LUKA: Transpirar, suar, exalar... PINHEIRO: Um espelho que revela o que não vemos; e talvez até o que não queremos ver. SAWAKI: No começo correria aleatória dentro do labirinto; aos poucos se experimenta uma frágil fatia de liberdade ao descobrir fendas nas paredes do labirinto; até percebermos que enquanto olhávamos pra frente nossas asas cresciam nas costas; aí é só voar. PINHEIRO: Égua, arrasou! LUKA: Continua... continua Góes... GOÉS: Acender a vela, se posicionar diante dela, perseguir o movimento da chama até encontrar uma faísca dentro de si; cultivá-la, então, para si e para o encontro com o mundo. 322 PINHEIRO: Caramba, tô ficando até com vergonha de falar qualquer coisa. (Risos) LUKA: Escrita corporal enigmática, no tempo e no espaço. PINHEIRO: Ginastica paradoxal: aprender a forma, repetir a forma e depois esquecer/superar a forma. SAWAKI: Impulsos elétricos que vão dos fios de cabelo até a unha do dedão do pé. GÓES: Cordão umbilical, elo entre o que fui, o que sou e o que posso vir a ser. LUKA: Entrar num quarto escuro, com os olhos vendados e enfrentar os próprios fantasmas. PINHEIRO: É caminhar pela casa e descobrir que o próprio quarto é o fantasma. SAWAKI: Tranquilo como água de poço, em noite de luar, sentindo a luz que a incide; o balde desce e toca a água com violência, aGITAndo tudo; o balde sobe cheio daquilo que é mais importante: vida. PINHEIRO: Eita porra que ela tá inspirada. (Risos) GÓES: Em cena me deixa como a farinha do meu açaí: expandida, dilatada, inchada... (risos) LUKA: Transmutador de ar: entra coisa boa e elimina as coisas ruins. PINHEIRO: Caminhar ao lado do mestre e, sem perceber, desbravar a própria trilha. SAWAKI: Aprender a voar. GOÉS: Cultivar as próprias asas. LUKA: Semente que faz brotar suas raízes no palco... e muitos galhos pra fora dele. PINHEIRO: Uma ponte entre a boca de cena e a porta da minha casa. SAWAKI: Arrancar o companheiro da cadeira com a força e leveza de um olhar. GÓES: Escuta, memória e sabedoria da pele. LUKA: Aprendizado pelo tato. PINHEIRO: Quando a pele se torna o mapa do tesouro. SAWAKI: Quando o corpo se torna todos os olhos. Os demais gritam em coro: Peeeeeerdeeeeu!!!! (Risos e comemorações descontraídas) SAWAKI: (Se recuperado do susto que tomou): Como assim? Por que? Era metáfora. LUKA: Mas não vale usar definições, frases ou expressões já estabelecidas. PINHEIRO: E tu usaste uma que o Zarrilli aprendeu na Índia: “Quando o corpo se torna todos os olhos”, isto é, quando o praticante de kalarippayattu alcança um grau de excelência na conexão corpo/mente por meio do treinamento. 323 SAWAKI: Égua! A fala da Pinheiro antes da minha me induziu a errar. Égua! PINHEIRO: Ah, mas foi bem bacana. Eu curti. Deu pra gente brincar de metaforizar o treinamento. E surgiram umas imagens bem interessantes. GOÉS: A Sawaki foi se empolgado, foi falando bonito e derrapou. (Risos) LUKA: Ah, mas até que conseguimos desenvolver bastante. Pensei que alguém ia errar logo no começo. SAWAKI: Acho que aprendemos a trabalhar com metáforas. Já esqueceu que vivias provocando a gente a pensar nossos solos do “Fenda” por meio de metáforas. GÓES: Nem me fale. Quebrei a cabeça até descobrir que eu era “uma mulher em escombros”. PINHEIRO: Se tu estavas em “escombros” eu era o próprio “corpo-cadáver”. (risos) SAWAKI: E eu o “caminho de ningen”. LUKA: Credo só desgraça. SAWAKI: A culpa é do fresco do Shakespeare. Égua do texto lazarento esse “Rei Lear”. LUKA: Eu diria que o treinamento abriu caminho pra boa parte dessa densidade na apropriação do texto que vocês fizeram. PINHEIRO: É verdade. Mas tinha um guia, um aGITAdor que foi auxiliando a gente a dar os passos, conduzindo nossos delírios e possibilitando que eles se transformassem em metáforas potentes pra nossa atuação. GÓES: (a Luka) Égua e que puta “agita dor”, heim? (Risos) LUKA: A Lima no processo do “Zé” se referia a minha função de diretor do GITA como “cutucador de feridas”. Agora a Góes vem com essa de “agita dor”. Tô ficando com medo de mim mesmo. (Risos) PINHEIRO: Acho que, na verdade, tudo é um processo com várias camadas: a camada do treinamento que envolve uma escuta pessoal, a camada do texto do Shakespeare que me provoca uma leitura de mundo e a camada da direção do Luka que me aGITA a tecer uma linha entre as duas primeiras camadas. Isso pra mim é aGITAr o processo criativo. Então se vem as dores, as questões angustiantes, as insatisfações ou incômodos que a obra me faz pensar, então, isso de algum modo já está em mim... e a montagem me oferece espaço para compartilhar minha visão muito particular de mundo pelas lentes do Shakespeare. GÓES: Mas até a gente chegar a esse entendimento e a um resultado criativo que satisfaça minimamente o Luka, atravessamos um processo bem tortuoso. 324 PINHEIRO: Não tô dizendo que é simples ou fácil, querida. Mas eu prefiro participar de um processo de criação onde eu me sinta responsável por mobilizar a matéria prima que vai dar vida ao meu papel em cena, descobrir o meu plano de atuação junto com a direção e companheiras de cena do que participar de uma montagem onde tenho apenas que decorar o texto e seguir as marcações que o diretor me dá. GÓES: Não tô reclamando disso. Na verdade não tô nem reclamando da direção do Luka (apesar de achar ele muitas vezes obsessivamente chato e severo no encaminhamento das demandas)... só tô chamando atenção pra como isso é muito delicado e, no meu caso, me provocou sensações dolorosas. LUKA: É o tipo de teatro que fui formado. Acredito que a gente pode também se revela a partir do texto. Nunca esqueço de “Macunaíma em: o fim do que não tem fim”, montagem da minha turma de primeiro ano da ETDUFPA. O texto do Mario de Andrade era apenas um provocador das questões que queríamos discutir em cena. Claro que a Wlad e a Karine concentravam as decisões da encenação, afinal era uma turma de quase trinta alunos, então, não tinha como criar uma encenação a partir do que cada um de nós oferecia. Mas as duas nos provocavam a pensar o nosso contexto a partir do texto. No GITA procuro fazer isso também. A diferença é que por sermos em menor número dá pra fazer um acompanhamento mais individualizado, encaminhar a encenação a partir dos materiais que vocês mesmas descobrem e dispõem no processo. Nem sempre é fácil... na verdade não é nada fácil porque eu tenho que acessar coisas que estabelecem relação com o universo íntimo de vocês. Quem dá dimensão dessa intimidade são vocês, mas quando percebo que as coisas se mantêm numa zona de superfície estável e segura, significa que preciso agitar as coisas pra obter repostas mais consistentes que ultrapassem essa abordagem mais superficial do texto. E nessa hora eu sou muito Artaud: Teatro é vida; teatro é rito; teatro é espaço sagrado, lugar que guarda características semelhantes com o espaço liminar do rito, ou melhor, com o espaço liminóide (pra usar o conceito que o Victor Turner)242 cunhou pra nossas sociedades industrializadas que se afastaram da experiência liminar do rito que oferecia uma transformação completa na identidade do indivíduo, posto que envolvia e agregava os valores de uma coletividade, de uma sociedades inteira; os espaços liminóides, por sua vez, podem oferecer experiências semelhantes, mas numa dimensão menor, ou seja, experiências que podem oferecer reflexões e mudanças de conduta humana). Penso no processo criativo como esse espaço liminóide, lugar de encontro onde eu e 242 NB: 2008, p.14. 325 vocês nos dispomos a um mergulho sagrado em nós mesmos; o texto é apenas uma ferramenta, um parâmetro de referência pra jornada. E o treinamento, na medida que oferece uma escuta refinada de nós mesmos, proporciona qualidade e densidade a esse mergulho. Por essa perspectiva, como aGITAdor do processo criativo tô sempre me arriscando a tecer essa linha tênue entre o treino e a criação. GÓES: Caramba, quanta coisa. Ainda não tinha parado pra pensar em cada cena da montagem como uma experiência liminóide. SAWAKI: Eu só não entendo uma coisa: se queria fazer um trabalho mais individualizado com a gente, por que não manteve os trabalhos como solo? Por que resolveu juntar os solos e transformar numa montagem teatral? (O garçom chega com duas porções de pastel de jambu) PINHEIRO: Gente dá licença: a conversa tá boa, mas garanto que esses pasteizinhos são tão sagrados quanto os liminóides do Luka. Merece um brinde. (Erguendo as tulipas de cerveja) TODOS: AGITA! COGITA! BIRITA! AGITO! DIGITO! EGITO! AGITA! CABRITA! AO GITA! SAWAKI: Nossa... é bom mesmo. LUKA: Adoro esses pasteis... o tremor que o jambu deixa na boca... GÓES: Só não é melhor que o da cachaça... LUKA: Com certeza não. (Risos) PINHEIRO: Eu até gosto da cachaça, mas prefiro a minha cerveja bem gelada. LUKA: Eu topo tudo: a bebida que baixar na mesa tá valendo! GÓES: Credo. Nem parece o diretor chato que não aceita qualquer coisa que a gente leva pro processo. (Risos) LUKA: Vocês reclamam, mas no fundo gostam que eu cobre as coisas de vocês. Tenho quase certeza que se eu fosse indiferente, ficariam frustradas e até poderiam se sentir perdidas... SAWAKI: Perdida eu me senti em boa parte do processo. Mas certamente não foi por tu ser indiferente com o que eu levava. Acho que tu sempre me provocaste a demonstrar se eu acreditava realmente nas coisas que trazia pro processo. E isso foi importante pra eu me enxergar no texto do Shakespeare. A minha questão é saber por que não seguiu com as propostas dos solos? 326 LUKA: Não sei. Talvez tenha sido mais por uma questão de administrar um só trabalho, de organizar a encenação pra um trabalho ao invés de três, quatro ou cinco solos. PINHEIRO: Mas eu percebo que toda a condução do processo criativo foi desenvolvida como um solo. O que fizeste depois foi costurar nossa criação numa unidade criativa. LUKA: É verdade. Essa descoberta veio no trabalho solo da Atrizg. Fiquei muito satisfeito com o resultado da encenação, pois acredito que contemplou as questões que ela queria levar pra cena. Embora eu tenha proposto alguns elementos decisivos da encenação – como por exemplo, a relação palco/plateia com homens sentados em cadeiras e mulheres sentadas no chão – tudo nasceu do desejo dela de discutir o lugar das mulheres no nosso tempo. Então, trabalhar sozinho com ela me fez perceber o quanto dá pra aprofundar as relações e tornar a encenação muito mais autoral. Se formos analisar o trabalho de vocês separadamente, dá pra perceber isso também. Por exemplo, o teu Sawaki: como chegamos à construção do teu solo? SAWAKI: Pra mim, o marco foi a descoberta da partitura de movimentos que eu desempenho no espaço, o kanji 人間 (ningen). LUKA: Sem dúvida. Mas pra chegarmos a esse kanji tivemos um longo processo de tentativas e erros, experimentando coisas e, fundamentalmente, aprofundando tua percepção na relação com o texto. Então, quando chegamos ao kanji ele se mostrou como um elemento síntese na tua relação com o texto, um elemento que carrega um pouco da tua história de vida... SAWAKI: É verdade. Mas começou com a canção que tu pediste pra gente levar. Quando eu levei a Tyurippu (“Tulipa” numa aproximação pro português) tudo começou a fazer sentido pra mim. GÓES: Tu és descendente de japoneses? SAWAKI: Sim. Meu bisavô é japonês; meu avô é filho de imigrantes japoneses e ele casou com uma brasileira; nasceu minha mãe (brasileira, descendente de japoneses) que casou com meu pai (brasileiro). Então eu sou uma yonsei que quer dizer “descendente de japoneses da quarta geração”. PINHEIRO: Mas tu és brasileira? SAWAKI: Sim, mas nasci no Japão. GÓES: Tens dupla nacionalidade então? SAWAKI: Não. Diferente dos EUA, os japoneses não dão a nacionalidade só pelo fato de nascer lá. Então, eu nasci lá, mas não sou japonesa, sou a yonsei. PINHEIRO: Caramba. Isso e muito louco. 327 SAWAKI: Também acho, é uma confusão pra conseguir documentos. Eu nasci lá e vim pro Brasil quando tinha três anos de idade; depois voltei pro Japão quando já tinha seis anos e fiquei por lá até completar dez anos de idade. GÓES: E ainda sabe falar japonês? SAWAKI: Mais ou menos. Lembro de algumas coisas, mas é um idioma muito difícil. LUKA: Mas o que importa é o que acontecia com ela na escola. Conta. SAWAKI: Então, meus colegas da escola me chamavam de gaijin, é uma expressão pejorativa pra estrangeiro. GÓES: É como se te chamassem de brasileirinha? SAWAKI: Quem dera, é algo bem pior. É quase como me chamar de extraterrestre, alienígena, monstrinho do espaço... PINHEIRO: Que horror. Mas como sabiam que não eras japonesa? SAWAKI: Pelo sobrenome. Eu sou Sawaki Oliveira. E quando queriam fazer um bullyng mais pesado me chamavam ainda de buta ou butajirujin GOÉS: Tô até com medo de saber o que significa. SAWAKI: Significa “porco” ou “gente porca”. Eu sofri com isso. E aí quando volto pro Brasil, com dez anos e vou pra escola, as crianças daqui não me reconhecem como brasileira por causa dos meus traços fisionômicos. Aí me chamavam de japa, japinha, japrega e por aí vai... Ou seja, eu cresci sem ser reconhecida nem pelos japoneses e nem pelos brasileiros... cresci com a sensação de não pertencer a nenhum lugar. LUKA: Isso tudo foi acionado pela canção Tyurippu. A partir daí eu não tinha como desprezar esses dados. SAWAKI: E foi muito louco porque pra chegar ao kanji 人間 (ningen) tu me fizeste olhar pro “Rei Lear” e extrair uma imagem síntese... LUKA: “Por onde o texto de atravessa?” essa sempre foi a chave de tudo pra mim. SAWAKI: E no começo eu olhava pro texto e achava até bonitinho, mas não conseguia fazer nenhuma conexão direta comigo... e na medida que eu lia o texto novamente só ficava na minha cabeça que o Shakespeare estava retratando questões sobre o ser humano, sobre valores que a humanidade estava perdendo... ficava na cabeça a imagem da degradação humana. LUKA: Então, num belo dia eu me deparo com o kanji desenhado no caderno da Sawaki e pergunto o que ele significa. E olha só o que ela me responde... 328 SAWAKI: Esse kanji quer dizer “ser humano”. Eu desenhei ele no caderno exatamente porque pra mim representava o tema do texto. É formado por duas partes, na verdade, sendo que o primeiro quer dizer “pessoa” e quando se junta ao outro passa a significar “ser humano”. LUKA: Então, somando o depoimento pessoal da infância dela com esse kanji chegamos ao nome da cena solo que é “Caminho de ningen”, que tanto remete ao “caminho do ser humano”, quanto serve ao trocadinho aportuguesando a expressão para “caminho de ninguém”, esse ninguém que é a sensação dela de não pertencer a lugar nenhum. SAWAKI: E foi impressionante como o texto ganhou outra dimensão quando o Luka estabeleceu esse kanji como minha partitura de atuação. Então, na minha cena solo quando digo, por exemplo, “Não há porto algum livre, nenhum ponto em que não haja guarda e rigorosa vigilância, no intuito de apanhar-me (...) / Salvo estarei enquanto fugir deles, pretendendo assumir a mais abjeta, mais humilde aparência com que nunca, no seu desprezo aos homens, a miséria dos animais se houvesse aproximado (...)” eu me reconheço nesses versos shakespearianos. Encontrar os gestos, as nuances, os objetos de cena e a temperatura da cena se tornou mais fácil depois disso. LUKA: Mas pra chegar nesse ponto de contato entre vida e obra foi preciso trabalhar na perspectiva liminóide. E com vocês duas foi a mesma coisa (se dirigindo a Pinheiro e Góes). As chaves de acesso é que foram diferentes. Por isso que acho que o trabalho solo me permite me aproximar muito mais de vocês pra tentar encontrar essas chaves de acesso pra construir a encenação. PINHEIRO: Uma coisa que notei nesse processo em comparação a montagem do “Zé(s) – sem eira nem beira”, de quatro anos atrás, é que tu te desprendeste mais do texto. Mesmo o texto sendo o ponto de partida pra nossa criação, tenho a impressão que tu foste mais flexível com o texto, abrindo mão de montar o “Rei Lear” na íntegra e até encaminhando que nós selecionássemos fragmentos, versos ou passagens que mais nos interessassem pra montar o solo. LUKA: Vou ser bem sincero: depois de dirigir cinco montagens no GITA, não tenho certeza se o texto como indutor de criação seja o caminho mais adequado para os próximos trabalhos; pelo menos não como temos feito até aqui, isto é, escolhendo um texto clássico pra conduzir o processo do grupo. Me sinto propenso a deixar essa decisão com o atuante; penso que é o atuante quem deve determinar o ponto de partida; se vocês determinarem que será um texto, tudo bem, mas pode ser um poema, uma música, a bíblia, um livro de aritmética... até bula de remédio tá valendo. Acho que minha responsabilidade como diretor no GITA será mediar e encaminhar a relação entre 329 treinamento psicofísico e criação. Num processo criativo pensado e trabalhado como liminóide, o indutor, o ponto de partida tem que ser do atuante. (as três, sem conter o entusiasmo com as palavras de Luka) PINHEIRO: Que bom te ouvir dizer isso. SAWAKI: Égua isso é muito animador. Animador pra k-raleo!! GÓES: Porra, com certeza. Acho que isso vai dar uma outra pegada no GITA. K-raleo, merece um brinde. (Erguendo as tulipas) LUKA: Calma aí. Eu disse que tava “propenso” a fazer isso. (sorrindo) Não coloquem palavras na minha boca. PINHEIRO: Já era. Um ciclo novo de pesquisas no GITA se anuncia... (Brindam com o Luka ressabiado) LUKA: Onde será que fui amarrar meu burro!? Fim do Diálogo, Quiçá desta pesquisa de doutorado. 330 Epilogito – Rumos do treinamento psicofísico [com artes marciais e meditativas asiáticas] num pedacinho do norte do Brasil Desde o dia em que o professor Cesário Augusto Pimentel, fundador do GITA, me convidou para dirigir “Querela-Eu”, a primeira montagem teatral do grupo, em abril de 2007, acompanho as pesquisas e me tornei parte integrante e viva da história do GITA. Ao longo de mais de uma década, assinei a direção de cinco montagens teatrais e me vi enredado na teia marcial e meditativa que o GITA adotou como fundamentação de suas pesquisas: o treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas, desenvolvido e sistematizado por Scott e Zarrilli. Praticar regularmente esse treinamento mudou, radicalmente, minha forma de me perceber e perceber o mundo, pois como o próprio Zarrilli assinala: “Qualquer disciplina psicofísica praticada assiduamente, em longo prazo, e com atenção apropriada, mudará fundamentalmente o relacionamento entre o corpo e a mente de quem as pratica” cclxxxviii (2009, p. 259). Antes de conhecer e praticar esse treinamento eu era absolutamente temperamental, ansioso, teimoso, inquieto, orgulhoso, nervoso, impaciente, rancoroso, vingativo, metódico, perfeccionista e cheio de convicções. No trânsito, chegava ao cúmulo de descer do carro e comprar briga quando levava uma “fechada” de outro automóvel; “batia-boca” mesmo quando eu era o responsável pela “barberagem” no trânsito; os taxistas eram meus inimigos mortais. Tal temperamento descompensado se estendia às minhas relações familiares: passei aproximadamente dezesseis anos “de mal” com minha irmã mais velha, por ela envenenar (a meu ver) a cabeça de minha mãe com a ideia de que eu havia me convertido ao ateísmo depois de ingressar no curso de bacharelado e licenciatura em Filosofia, na Universidade Federal do Pará; e aproximadamente um ano sem trocar uma palavra com minha mãe por ela acreditar nessas fabulações maledicentes (novamente a meu ver). Evidentemente, tal descompasso temperamental também se estendia a minha vida artística. Defendendo minhas convicções ideológicas e poéticas colecionei desafetos mortais pelos grupos de teatro que passei: da igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus – lugar onde comecei minha carreira teatral – fui expulso por montar peça de teatro tematizando a AIDS e distribuir preservativos gratuitamente no salão paroquial; da Cia Atores Contemporâneos fui expulso por questionar, raivosamente, às diretivas poético-administrativas do diretor Miguel Santa Brígida, e não me retratar em nenhuma linha do que disse; na Cia de Teatro Tenetehara briguei com um primo de sangue por mera competição de egos e depois rompi relações com os amigos e companheiros 331 de trabalho quando percebi que o grupo havia se acomodado e já não produzia nada de novo artisticamente por pura preguiça. Figura 16– Comemoração de casamento religioso dos meus pais. Fonte: Arquivo pessoal. Ao lado de mamãe e papai por ocasião dos festejos do casamento religioso. Fonte: Arquivo pessoal. Jurunas, 1998. Acredito ter herdado geneticamente esse temperamento de meu pai, sujeito tão teimoso, orgulhoso e ranzinza quanto eu. Pra se ter uma ideia de seu temperamento, por ocasião dos festejos dos seus setenta anos de idade, ele foi capaz de se trancar no próprio quarto, não cumprimentar ninguém da família e sequer comparecer à mesa na hora de cantar os “parabéns”. Havia acordado emburrado e passou o dia esculhambando minha mãe por ela ter preparado a festa sem o seu consentimento – papai, assim como eu, nunca gostou de comemorar o próprio aniversário. Resultado: realizamos a festa sem a presença do aniversariante, seguimos o rito da canção dos “parabéns a você”, mas não sopramos a velinha – modo simbólico de dizermos que ele ainda viveria aceso por muitos e muitos anos entre nós. Foi com esse temperamento difícil que cheguei às portas do GITA. E, no entanto, quando me deparei pela primeira vez com o treinamento psicofísico praticado pelo grupo, numa tarde de sábado, sala 05, na Escola de Teatro e Dança da UFPA, fiquei encantado com a codificação corporal exótica que me foi apresentada pelo Cesário e pelos os membros de origem do GITA. Mas não fazia ideia das dificuldades que esse treinamento me colocaria à prova. Ingenuamente, me deixei convencer de que seria apenas mais um grupo de teatro na minha vida, apenas mais uma técnica de treinamento para atuação, como tantas outras que já havia praticado. E, então, seduzido 332 pelo fascínio ingênuo e romântico que as artes marciais e meditativas exercem no senso comum, assumi o compromisso com o grupo. Obviamente que aos 32 anos de idade eu não era tão ingênuo assim. Logo esse não foi o único motivo de ter me interessado pelo GITA. O fator determinante, sem dúvida, foi o elemento marcial presente na metodologia do grupo via treinamento psicofísico. Como sempre fui metódico, disciplinado, perfeccionista, obsessivo e rigoroso, vislumbrei a possibilidade de trabalhar num grupo que cultivasse os aspectos marciais em sua própria prática de trabalho – disciplina, no sentido marcial, sempre me interessou muito. Acrescido a isso, já fazia quatro anos desde que eu havia sido expulso da Cia Atores Contemporâneos, grupo fundado e dirigido por Miguel Santa Brígida como já disse anteriormente. Participei de três montagens teatrais243 durante os quatro anos como membro dessa Cia e procurava um grupo que me possibilitasse continuar essa linha de pesquisa voltada ao treinamento de atuantes. Outro fator importante que pesou na minha decisão de aceitar o convite de C. Sã para dirigir uma montagem do GITA foi o fato de já ter feito uma oficina de treinamento para atuantes que ele mesmo havia ministrado em Belém244, em 2004. Desse modo, já tinha alguma noção do que encontraria na rotina de trabalho do grupo. Esse conjunto de fatores me aproximou bastante da proposta de trabalho do GITA. E, exatamente por tudo isso, quando aceitei o convite de C. Sã para dirigir “Querela-Eu”, de imediato, percebi que para fazer parte daquele enclave teatral deveria seguir sua rotina de trabalho, metodologia, ética e poética. Assim, mesmo tendo sido convidado apenas para a função de diretor teatral, fiz questão de me dedicar a prática do treinamento psicofísico. Os primeiros dias de treino – embora ainda envolvido pela aura exótica de uma prática intercultural – foram reveladores, pois o silêncio da sala, atenuado apenas pela suave, mas vigorosa, dinâmica da respiração de C. Sã, Denis Bezerra, Josefa Magalhães e Juliana Tourinho, logo me confrontou com toda minha carga de ansiedade: desconforto físico, coceiras por todo o corpo e tédio, muito tédio provocado pela execução lenta dos movimentos do hatha yoga e do t’ai chi ch’ uan. Somente quando chegava a prática do kalarippayattu é que as coisas melhoravam um pouco, em função dos saltos, deslocamentos e sequências de movimentos muito mais cadenciados realizados no espaço. Além do fato de ser muito persistente nas coisas que me comprometo a fazer, 243 Violentago (2001/2002/2003/2004); Celebração (2002) e Valsa de Sangue (2003/2004). Todos estes trabalhos foram fruto da pesquisa autoral da Cia Atores Contemporâneos sob a direção de Miguel Santa Br. 244 Ver escavação Prologito a partir da pg. 22. 333 o kalarippayattu, sem dúvida, foi o grande responsável por me fazer querer continuar participando daquelas sessões torturantes de treinamento com artes marciais e meditativas asiáticas que o GITA praticava. Naquela ocasião o grupo treinava apenas uma vez por semana e C. Sã orgulhava-se em dizer que o dia de praticar o treinamento era como o de uma “missa” sagrada para os Giteiros, o dia mais importante da semana pra ele. Quando comecei a praticar o treinamento psicofísico com o grupo, pra ser sincero, havia sempre um turbilhão de coisas na minha cabeça, desde as preocupações mais triviais, como alimentar minhas três gatas – Pã, Videl e Magrelinha – e meus dois cachorros – Dezoito e Vedita –, até os pensamentos existenciais mais complexos, como administrar minha relação amorosa com minha namorada – a quem até hoje ainda chamo de Amor –, a saúde do meu pai, debilitada pelo alcoolismo, a violência alarmante do bairro onde moro, o Jurunas, ou meu angustiante emprego de professor de filosofia do ensino médio, na rede estadual de ensino do Pará – carga horária de 200 horas distribuídas nos turnos da manhã, tarde e noite, num total de vinte turmas de jovens “aborrecentes”, sendo muitos deles delinquentes perigosos, membros de gangues de pichadores e/ou traficantes do bairro. Difícil demais encontrar concentração com todas essas coisas fervilhando a cabeça. E esse estado de agitação mental se chocava com a lenta cadência do hatha yoga e do t’ai chi ch’ uan. Assim, fui percebendo aos poucos que aquela ideia romântica do praticante de artes marciais e meditativas asiáticas como alguém equilibrado e centrado, estava muito, muito, muito distante da minha realidade. Durante um bom tempo, eu me ative aos movimentos que precisam ser executados. Tendo o C. Sã como modelo a seguir, eu simplesmente repetia os movimentos, tomado pelo mais absoluto tédio. E ao final de cada sessão de treino uma coisa me intrigava, sobremaneira: Cesário, Denis e Juliana encontravam-se banhados em suor, enquanto eu – uma pessoa que sempre transpirou bastante – permanecia sem uma gota de suor no corpo; meus cachos sequer estavam desfeitos. Como aquilo era possível? Havia algo de muito errado com aquele sistema de treinamento. E assim foram aproximadamente um ano e meio de treinos sofridos, sem suar e sem entender exatamente aonde tudo aquilo me levaria. O marco decisivo para a mudança das coisas só veio a ocorrer por ocasião de minha pesquisa de mestrado, quando, então, procurei articular o treinamento psicofísico do GITA com minha investigação voltada ao teatro da crueldade concebido por Artaud. Foi quando me coloquei o desafio de aprender a treinar sozinho sem precisar da figura do C. Sã como modelo para repetição dos movimentos. Passei a treinar quatro vezes por 334 semana, três horas por dia. E mesmo tendo sofrido um desvio femoral que ocasionou dores terríveis no meu nervo ciático – em virtude do aumento drástico na carga horária de treino – entendo que foi a melhor estratégia que eu poderia ter tomado, pois me permitiu, pela primeira vez depois de muito tempo treinando, me encontrar comigo mesmo. Sozinho na sala de trabalho não havia escapatória, não havia como dissimular os exercícios, a sequência de movimentos, enfim, não havia como mascarar o treino. Só me restava o exercício da escuta. Foi, então, a primeira vez que tive consciência dos pensamentos invasores que tomavam a minha mente. Eles gritavam qualquer coisa que me fizesse parar com aquela rotina de exercícios extracotidianos, pois queriam me dispersar a atenção me fazendo acreditar que havia coisas mais importantes bem longe da sala de trabalho. Quando os treinos eram realizados com a condução do C. Sã – e eu simplesmente repetia os movimentos – minha mente se via livre para vaguear de preocupação em preocupação, enquanto meu corpo se limitava a imitar cada célula do treinamento. Não havia harmonia entre meu corpo e minha mente; ambos estavam empenhados e dispostos a desistir de tudo pelos motivos mais estapafúrdios possíveis. A solidão na sala de trabalho foi minha salvação. Diferentemente do processo de aprendizado do treinamento psicofísico de outros pesquisadores do GITA, a solidão pro meu aprendizado foi fundamental e necessária para que eu pudesse me reencontrar e estar em grupo no GITA. E assim, na solidão daquela sala me encontrei, me escutei, senti minhas dores e limitações – físicas, emocionais, existenciais. Na solidão daquela sala passei a perceber minha própria respiração a conduzir o sopro de vida por toda a minha epiderme. Na solidão daquela sala passei a perceber, gradativa e lentamente, o impulso da minha respiração atar minha mente ao meu corpo. Na solidão daquela sala eu comecei a suar pela primeira vez. É obvio que não foi um processo imediato de apreensão de todos os princípios que o treinamento proporciona. A escuta e percepção do meu estado psicofísico foi gradual, progressiva e contínua – na verdade esse processo é para toda vida. Desse modo, ninguém deve se enganar acreditando que consegui dominar o meu temperamento impulsivo e explosivo da noite pro dia, pois nenhuma [AMMA] tem esse poder mágico. Tudo depende da motivação do próprio praticante e da justificação que ele encontrar para continuar treinando. Minha motivação inicial era estritamente estético-poética, isto é, estava voltada para o domínio de técnicas de atuação; queria dominar aquela codificação de movimentos exóticos e colocá-los a serviço do palco – fosse como diretor ou como ator. No entanto, mesmo com essa motivação absolutamente admissível e 335 compreensível, meu temperamental genioso não me permitia desfrutar dos benefícios psicossomáticos desta prática intercultural, pois minha impaciência e ansiedade me limitavam à mera imitação das formas codificadas. Ainda estava dominado pelas armadilhas de minha mente. Sobre esse aspecto é esclarecedora a sentença de Gurukkal Govindankutty Nayar explicando a Zarrilli o paradoxo presente no Kalarippayattu, [AMA] baseada nos princípios do yoga: “Você deve lavar o chão do kalari com seu suor. Kalarippayattu é 80% mental e só o restante é físico”cclxxxix (Ibidem, p.82). Depois de aproximadamente um ano e meio praticando o treino do GITA, suar pela primeira vez, indicava que algo significativo havia acontecido: domei as inquietações da minha mente e harmonizei-a com meu físico. E ao fazê-lo fui me dando conta da dimensão ética envolvida nesta prática. Comecei a perceber e seguir, então, o caminho apregoado por Zarrilli: “comprometer-se plenamente com o treinamento como um processo contínuo de autoconhecimento”ccxc (Ibidem, p.45). A partir de então, gradativa e inevitavelmente os benefícios do treinamento psicofísico se expandiram para muito além do palco. Como afirma o mestre Jigoro Kano245 (1860-1938): “é errado acreditar que o judô termine no dojo” (2008, p. 66). Sob a premissa maior “ceder para vencer”, o mestre japonês entende o judô não apenas como uma arte marcial, mas como um princípio filosófico básico que pode orientar o comportamento humano. Aplico o mesmo raciocínio ao GITA: é errado acreditar que o treinamento psicofísico se limite a sala de trabalho, ao ensaio e/ou ao palco. A dimensão estético-poética não limita o alcance do treinamento, mas antes se vê irremediavelmente envolvida numa relação dialética com o mundo do praticante. Como nos afirma Zarrilli ao comparar o ideal de renúncia do yogui clássico – aquele praticante que tem como meta a transcendência do mundo físico por meio da meditação – com o artista marcial ou performático que se envolve com práticas psicofísicas baseadas no yoga: O artista marcial ou performático que pratica técnicas psicofísicas baseadas em yoga faz isso para transcender as limitações pessoais, para agir melhor no mundo e não para se retirar dele ccxci (Ibidem, p.86). Desde então, minha poética mudou – seja como ator ou como diretor –, pois o treinamento mudou e continua mudando o meu ser no mundo. O treinamento psicofísico que pratico no GITA me atravessa, portanto, na dimensão poética, profissional, familiar, social, cultural, existencial. 245 Mestre japonês criador do judô Kodokan em 1882. 336 Esses atravessamentos constituem minha trajetória no GITA e, por isso, foram e são relevantes para uma ARQUEOLOGITA; assim como os atravessamentos de cada artista-pesquisador do GITA foram relevantes para arqueologitar os processos criativos que o grupo já produziu até 2017. Onze anos se passaram desde que tudo isso começou e nesse ínterim dirigi cinco montagens teatrais do GITA, me integrei ao quadro efetivo de professores da ETDUFPA e conheci parte da obra escrita de Zarrilli no decorrer da notação desta tese. Esses acontecimentos amadureceram minha visão para a questão do treinamento/criação no contexto do GITA, isto é, na sua relação com a ETDUFPA e, consequentemente, com a cidade de Belém do Pará. Para discorrer sobre isso e tecer algumas considerações possíveis, fruto dessa jornada de pesquisa, recorro a duas expressões da sabedoria popular, ambas muito ligadas ao treinamento do esporte mais praticado no Brasil, o futebol. A primeira afirma que “Treino é treino. Jogo é jogo”. Sob essa perspectiva admite-se o treinamento como uma espécie de preparação para o acontecimento, uma experiência preliminar que proporciona espaço para se testar coisas, não sendo ele próprio (o treino) a coisa mais importante, mas sim o que virá a acontecer, isto é, o jogo. O treinamento recebe, assim, uma conotação menor e, principalmente, se estabelece por uma compreensão dicotômica onde ele nunca terá a mesma importância e valor que o jogo. Esse é o tipo de abordagem e compreensão de treinamento que procuro evitar na sala de trabalho do GITA, mas que infelizmente encontra-se enraizada no modus operandi dos fazedores de teatro da cidade de Belém do Pará. Regido pelo paradigma do texto, o modo de pensar e produzir teatro na cidade subentende o treinamento como uma atividade de preparação corporal e/ou como técnica de aquecimento: o corpo é preparado para representar um texto, uma obra teatral textual. Trata-se evidentemente, de uma abordagem dualista na qual se pressupõe que a criação parte do trabalho de pesquisa teórica (estudo do texto), cabendo ao treinamento a função de preparar, aquecer tecnicamente o corpo para dar vida à “entidade” criada pela mente. A segunda expressão popular afirma o seguinte: “Quem treina, joga”. Por essa perspectiva o treinamento ganha outra conotação. Embora a expressão ainda abrigue certa relação de verticalidade entre treinamento e jogo – sendo que esse último (o jogo) se mantém no patamar – me parece que ela dá menos margem para uma abordagem dicotômica, pois considera que o ato de treinar guarda em potência, o jogo. Desse modo, quem se dedica a algum tipo de treinamento – algum esporte, musculação ou alguma formação profissional – fatalmente se encontrará mais 337 preparado, qualificado, disposto e/ou organizado para o jogo. Por esse viés ainda se poderia dizer que o treinamento é uma espécie de antecipação do próprio jogo, no qual os envolvidos se empenham no aprimoramento de suas proficiências, embora tenham clareza de não se tratar do próprio jogo. Essa perspectiva se aproxima mais do que eu tenho experimentado e pensado nas poéticas do GITA ao longo desses mais de dez anos como diretor/encenador. Digo se aproxima, pois o que proponho é pensar o treinamento psicofísico que o GITA pratica como elemento ético e estruturante do ato poético dos atuantes, o treinamento como processo de descoberta de si. Não sem propósito, o treinamento se estabelece como uma fase ininterrupta da pesquisa do grupo e isso me faz acreditar que essa prática marcial e meditativa constante TAMBÉM prepara o atuante para a cena, mas antes e/ou concomitantemente nos prepara para a vida. Logo, não se trata apenas de um aprendizado técnico voltado à qualidade de presença pré-expressiva pra cena, mas de um processo de autoconhecimento que os atuantes, de um modo ou de outro, expressam estética e poeticamente no palco. Na condição de diretor, oriento os atuantes do GITA a se entregarem numa escuta refinada de si mesmos por meio do treinamento psicofísico e a partir daí estabelecer uma dialética criativa com as obras indutoras que o grupo elege. Nesse sentido, acredito que treinar é se lançar ao desafio de se perceber no mundo e interferir nele poeticamente com as tessituras pessoais que o atuante estabelece a partir dos textos clássicos que o GITA sempre usou como obras indutoras dos seus processos criativos. Textos clássicos? Sim, a prática do GITA também operou ao longo desses anos de pesquisa sob a égide do paradigma do texto. E não poderia ser diferente, pois estamos inseridos no contexto cultural da cidade e, mais propriamente, em relação direta com a ETDUFPA, instituição responsável por minha formação e, como demonstrado, também opera pelo paradigma do texto. O nosso modo de fazer teatro, então, é atravessado por práticas interculturais (treinamento psicofísico), questões culturais de formação, produção e difusão das obras (micropolítica de resistência da categoria teatral/espaços autopoéticos) e permeado por relações institucionais (ETDUFPA/ICA/UFPA), em outras palavras, o GITA desenvolve um modo de fazer teatro em dialética com nosso tempo e lugar. Nossa pesquisa, portanto, não é e nunca foi uma reprodução fiel dos procedimentos de Zarrilli. E confesso que nos primeiros anos da notação desta pesquisa de doutorado isso me causava certo incômodo, na medida em que me debruçava (ao lado do incansável giteiro Augusto Jones) 338 no árduo trabalho de traduzir algumas obras de Zarrilli e percebia minha prática de diretor desvinculada, em aberta contradição e/ou em linhas de descontinuidade com as proposições do diretor norte-americano. O elemento fundamental que sempre nos manteve conectados (GITA e Zarrilli) sempre foi a prática do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas. E como as montagens do GITA operam sob o paradigma do texto, tive que enfrentar o desafio de articular o treinamento com o modus operandi da cidade. Então, enquanto Zarrilli estabelece procedimentos que garantem a transição do treinamento psicofísico para uma atuação psicofísica, o mesmo treinamento, nas montagens do GITA, ao se encontrar agenciado por uma atuação assentada na primazia do texto, era compreendido pelos atuantes como preparação corporal pra cena e acabava corroborando com uma visão dualista, ou seja, tudo aquilo que eu queria evitar no encaminhamento dos processos. Esse foi o rumo que o treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticos de Zarrilli e Scott percorreu até agora, no GITA. Para usar uma expressão de Eugenio Barba, digo que esse foi o “quarto fantasma” que habitamos e construímos. Identificando como ele se estabeleceu e quais elementos operam no seu jogo com a ETDFUPA e com a cidade, podemos alterar sua configuração, afinal como afirma Barba “é a existência deste espaço, deste quarto que pertence somente a nós, que é essencial. Não o que o preenche” (2007, p.42). A questão, então, é que rumo seguiremos a partir de agora. As escavações dessa arqueologita me ofereceram pistas valiosas, nesse sentido. A principal delas indica uma revisão interna nos procedimentos metodológicos de criação do grupo tendo como principal eixo de mudança a desestabilização do texto clássico como obra indutora dos processos criativos. A experiência até aqui me demonstrou que eleger um texto dramático para o exercício de atuação fundada no treinamento psicofísico não só foi incapaz de superar a visão do treinamento como preparação corporal como também distancia atuante e obra, na medida em que não é ele (atuante) que escolhe com qual texto irá trabalhar. Ora, se o meu entendimento de treinamento psicofísico encaminha os atuantes para um processo de descoberta de si, por que não deixar sob responsabilidade do próprio atuante a escolha dos indutores de criação? Pode parecer uma mudança elementar, mas que pode gerar desdobramentos significativos na relação do GITA com a ETDUFPA e com a própria cidade. Quero dizer com isso que o GITA pode e tem a responsabilidade de oferecer um espaço laboratorial para o exercício do paradigma alternativo de atuação definido por Zarrilli como “Performance como processo psicofísico: 339 expressão e modulação da energia”, em consonância com nosso modo de pensar e fazer teatro na cidade. Uma pesquisa estabelecida por esse escopo, no entanto, exige pelo menos duas coisas elementares: 1 – tempo para assimilação e amadurecimento das práticas interculturais de treinamento; 2 – espaço adequado para treinar. Não é de surpreender, portanto, que os grupos da cidade não se dediquem a uma pesquisa voltada diretamente ao treinamento de atuantes. A questão da infraestrutura/políticas públicas (municipal, estadual, federal) da cidade se impõe como uma variante de peso e estabelece limites práticos que não podem deixar de ser considerados quando se pensa e problematiza sobre treinamento de atuantes. E se por um lado a rede de espaços autopoéticos criada na cidade nas últimas décadas por iniciativa dos próprios artistas – sem o apoio institucional de entidades governamentais – redimensiona a experiência teatral para um formato que Wlad (2008, p.196) definiu como “estética da proximidade” e ao fazê-lo por meio, fundamentalmente, da aplicação da fórmula espacial unitária de Grotowski (2007) que flexibiliza a relação entre espectador/atuante, palco/plateia e desestabiliza o texto dramatúrgico como único indutor de criação das cenas, por outro lado esses espaços, dentro de suas limitações financeiras e operacionais, ao não se tornarem centros continuados de pesquisa e ensino voltados especificamente para a investigação de paradigmas alternativos de atuação mantém grande parte da sua produção sob a égide do paradigma do texto246. Nisso o GITA pode ser considerado um privilegiado na medida em que dispõe de espaço físico e apoio institucional para desenvolver suas pesquisas com razoável planejamento de metas em consonância com o calendário acadêmico da UFPA, exatamente as duas coisas elementares supracitadas. Acredito que esse privilégio deva ser convertido a partir de agora em novas ações práticas que redimensionem o alcance das pesquisas produzidas internamente no grupo fazendo-as reverberarem didático-pedagogicamente na ETDUFPA e estético-poeticamente na cidade. No horizonte dessas ações que traçam os rumos do GITA e, consequentemente, os rumos do treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas de Zarrilli e Scott num pedacinho do norte do Brasil, apresento algumas atividades que demarcam o ponto de partida. Rumos internos no GITA na área da pesquisa: 246 Exceção seja feita aos espaços mencionados no sítio arqueológito “Alguns ‘Quartos Fantasmas’ e o paradigma de atuação em Belém do Pará”. 340  Plano de Trabalho Compartilhado para desenvolvimento de processos criativos fundados no treinamento psicofísico:  Os atuantes: Elaboração de proposta simplificada com o indutor de criação e o ponto de partida estético;  GITA: Formação continuada no treinamento psicofísico por pelo menos dois semestres consecutivos; direção teatral da proposta apresentada pelo atuante articulando-a às fases metodológicas do grupo (treinamento psicofísico, oficinas, laboratórios, ensaios e apresentação pública);  Plano de trabalho específico para tradução das publicações de Phillip Zarrilli com especial atenção as mais recentes:  Intercultural Acting and Performer Training (2019);  (Toward) a phenomenology of acting (2019);  Plano de trabalho específico para elaboração de publicações que versem sobre as pesquisas em andamento dos pesquisadores do grupo;  Terceira edição da “Semana GITA”: evento artístico-acadêmico para compartilhamento do andamento das pesquisas do grupo com a comunidade interna e externa da ETDUFPA; articulação desse evento junto às agências de fomento de pesquisa das universidades federais para trazer Phillip Zarrilli ao Norte do Brasil; Rumos externos: Ações estratégicas na área do ensino e pesquisa da ETDUFPA:  Oficina de Treinamento: atividade a ser realizada na Semana Acadêmica dos cursos de licenciatura em teatro e técnico em ator para apresentar o nicho de pesquisa que o grupo desenvolve dentro da instituição oferecendo vivencia prática nas artes marciais e meditativas do sistema de Zarrilli e Scott;  Disciplina optativa “Treinamento Psicofísico e Criação”: elaboração e apresentação dessa disciplina (ementa, objetivos, justificativa e bibliografias) aos colegiados dos cursos técnico em ator e licenciatura em teatro com o objetivo de integrá-la aos planos curriculares dos respectivos cursos.  Laboratório de Criação integrado às Práticas de Montagem: elaboração e apresentação de proposta curricular aos colegiados dos cursos técnicos de ator, cenografia e figurino, assim como ao curso de especialização em dramaturgia, para oferecer aos alunos desses cursos 341 espaço para desenvolvimento de atividades de aprendizagem, nas suas respectivas áreas, nos processos criativos do GITA; essas atividades corresponderiam a carga horária, habilidades e competências necessárias à disciplina Prática de Montagem dos cursos supracitados, ou seja, os processos criativos do GITA seriam uma opção para estágio, atividade complementar e/ou cumprimento das demandas curriculares da disciplina Prática de Montagem. Rumos externos: ações estratégicas na área da extenção.  Cursos de extensão em treinamento psicofísico aos grupos da cidade: elaboração e encaminhamento de proposta aos grupos da cidade com o intuito de apresentar o paradigma alternativo de atuação de Zarrilli “Performance como processo psicofísico: expressão e modulação da energia” assim como oferecer vivência prática nas artes marciais e meditativas asiáticas do sistema de treinamento psicofísico de Zarrilli e Scott;  Parcerias institucionais com a rede de espaços autopoéticos da cidade: aproximação e levantamento de possíveis demandas de interesse dos artistas que gerenciam esses espaços. Essas são apenas algumas iniciativas, pontos de partida que podem e precisam ser pensados para desenvolver ações que reconfigurem o modo de ser do GITA na relação artística-acadêmica com seus pesquisadores, na relação institucional-curricular com a ETDUFPA e na relação política- estética-poética com a cidade. A ambição pode parecer demasiadamente grande, porém sabemos que nossa natureza é e continuará sendo sempre GITA. As escavações dessa ARQUEOLOGITA que me trouxeram até aqui, portanto, não esgotam as questões levantadas e nem exprimem certezas, apenas contribuem para visibilizar o complexo terreno das relações que envolvem arte e vida, vistas na perspectiva dum pedacinho do norte do Brasil. Sítio Arqueológito das Referências ALENCAR, C. A. P. de. O desvelo de Procedimentos Metodológicos para Irrupções Teatrais: investigação de fatos e condições sistematizadas na preparação de performances dramatizadas alicerçadas em textos escritos por meio de estudo de casos oriundos de práticas desenvolvidas por artistas da cena. Projeto de pesquisa portaria Nº 042/2007-ICA/UFPA, Belém, 2007. ALENCAR, Cesário A. P. de. The Shinning Self: the actor's journey from character to role. LAP LAMBERT Academic Publishing, 2013. ALENCAR, Cesário A. P. de. 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