ADRIANO MEDEIROS DA ROCHA A CONSTITUIÇÃO DO HERÓI NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Belo Horizonte / MG UFMG / EBA 2015 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES Adriano Medeiros da Rocha A CONSTITUIÇÃO DO HERÓI NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito para obtenção do título de Doutor em Artes. Área de Concentração: Criação e Crítica da Imagem em Movimento. Orientadora: Profa. Dra. Ana Lúcia Andrade Pesquisa com estágio de investigação na Universitat Autònoma de Barcelona, na Espanha, sob a co-tutoria da Profa. Dra. Virginia Luzón Fernández. Belo Horizonte, Setembro de 2015. 3 4 Dedico esta tese a todas as pessoas que também fazem e amam, de forma profunda e abnegada, o cinema em nosso Brasil – verdadeiros e incríveis heróis! 5 AGRADECIMENTOS A Deus, pai e amigo fiel! Aos meus pais, Antônio e Juraci, meus estimados e grandes heróis! Ao meu irmão e grande parceiro, Anderson, por manter, bravamente, a qualidade da produção cinematográfica do Laboratório de Produção Audiovisual do ICSA- UFOP, durante os sete meses da minha estância de investigação na Europa! À Aline de Queiroz Lopes, minha mulher maravilha e presente de Deus! Aos primos do coração, Alexandre Medeiros, Claudinei Fernandes, Cristian Lima, Jeferson Fernandes, Larissa Motta, Lucas Motta, Márcio Medeiros, que nunca me deixaram sozinho, mesmo quando eu estava “do outro lado do mundo”! Aos realmente queridos amigos, Adriana Passos, André Carvalho, Angeline Queiroz, Bruno Scalla, Carlos Scalla, Cassio Elísio, Emmanuelle Vaccarini, Fábio Fagundes, Flávio Correa, Igor Spínola, Paulo Caetano, Samuel Ribeiro, Wilton Araújo, que sempre me traziam uma palavra amiga e animadora em qualquer dia ou fuso horário! Ao bom amigo, Cristiano Rodrigues, que sempre me motivou na ida para Barcelona e nos estudos do cinema! Que você receba multiplicada toda generosidade que sempre me doou! À minha amiga, Denise Figueiredo, que assumiu, bravamente, minhas disciplinas práticas de criação em audiovisual, no curso de Jornalismo da UFOP, durante meu período em território europeu! Aos colegas de trabalho do curso de Jornalismo da UFOP e a toda equipe do DECSO-UFOP, que entendeu a importância desse período fora da sala de aula e do país para mim. Com toda certeza, volto ao Brasil como um pesquisador, professor, cineasta, artista e um ser humano muito melhor! À minha querida orientadora, Profa. Dra. Ana Lúcia Andrade, pela confiança, liberdade, objetividade e revisão dos caminhos por mim trilhados! Aos amáveis funcionários do Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da UFMG, Zina Souza, José Sávio e Fabiano pela a atenção cotidiana! A todos os professores da Escola de Belas Artes da UFMG que partilharam comigo seus ensinamentos, experiências e paixão pelo cinema! Ao amigo Gabriel, por dividir comigo as incertezas do cinema na EBA-UFMG! À Capes, por me proporcionar a bolsa de estudos para a realização dessa etapa do doutorado fora do país – um período realmente importante e inesquecível para mim. Tenham certeza que cada centavo em mim investido dará muitos e bons frutos para o nosso cinema brasileiro! 6 À querida co-tutora, Profa. Dra. Virgínia Luzon, que confiou em meu trabalho desde o primeiro momento e que me recebeu tão bem na Catalunya! A Ernest Verdura e aos demais funcionários do Departamento de Audiovisual da Universitat Autònoma de Barcelona, com os quais eu sempre pude contar! Ao grande amigo, Fernando Cruz Quintana, fiel parceiro de todas as horas e das inúmeras aventuras pela Europa! Sua amizade verdadeira é, sem dúvida, um dos maiores elixires que ganhei na Catalunya! Un gran viva al México! Aos amigos doutorandos da Universitat Autònoma de Barcelona, especialmente Celina Navarro, que dividiram comigo suas inquietudes e incertezas! À estimada atriz espanhola e grande amiga Esther Lázaro, por compartir conmigo risas, proyectos, sueños y la alegría de hacer cine en Catalunya! Ao Departamento de Audiviovisual e Publicidade da Universitat Autònoma de Barcelona, que me deu todas as condições necessárias para desenvolver um bom e inspirado trabalho de pesquisa! Se depender de mim, não faltarão novos projetos de pesquisa, ensino e extensão para desenvolvermos em um futuro breve! Assim, para vocês, digo apenas hasta luego! Às amigas da classe de Español da Universitat Autònoma de Barcelona, especialmente Ilaria, e Jhane, e também à professora Lúcia, que sempre se mostraram extremamente atenciosas comigo em todos os momentos! Ao atencioso Davi e toda maravilhosa equipe da Filmoteca da Catalunya, que sempre me fez sentir tão em casa (em todas as incontáveis visitas) neste sensacional espaço dedicado ao cinema! ...Aprendi muito a cada sessão! A forma de trabalho neste equipamento cinematográfico é um grande exemplo para mim! Ao nobre Orion Moreno e toda a equipe do Parc Audiovisual da Catalunya, que me receberam de maneira tão afetuosa e aberta. Com certeza, nossa parceria entre Brasil e Espanha está só começando! Aos amigos de piso em Barcelona, Carol, Felipe, Marta e Kami, pelo acolhimento e companheirismo (e até pelos latidos). Os nossos saraus artísticos e diálogos ficaram eternizados em minha memória! Aos músicos tão apaixonados do simples e familiar bar Prize, que traziam para mim, em muitos miércules, aquele blues tocado com tanta profundidade e alma, que embalava a escrita de minha tese. À cidade de Barcelona (melhor do mundo, em minha eleição, totalmente apaixonada e nada imparcial), tão charmosa, inquietante e inspiradora para este artista do cinema! À Catalunya, tão diversa, bonita, encantadora, cinematográfica! Hasta muy luego! 7 O herói moderno, o indivíduo moderno que tem a coragem de atender ao chamado e empreender a busca da morada dessa presença, com a qual todo o nosso destino deve ser sintonizado, não pode – e, na verdade, não deve – esperar que sua comunidade rejeite a degradação gerada pelo orgulho, pelo medo, pela avareza racionalizada e pela incompreensão santificada. “Vive”, diz Nietzsche, “como se o dia tivesse chegado.” Não é a sociedade que deve orientar e salvar o herói criativo; deve ocorrer precisamente o contrário. Dessa maneira, todos compartilhamos da suprema provação – todos carregamos a cruz do redentor –, não nos momentos brilhantes das grandes vitórias da tribo, mas nos silêncios do nosso próprio desespero. (CAMPBELL, 2007, p. 376). 8 RESUMO Esta investigação busca evidenciar que elementos simbólicos estão sendo utilizados para a constituição do mito do herói no cinema brasileiro contemporâneo e de que maneira tais elementos estão sendo orquestrados. Para isso, foi necessária a delimitação do conceito de herói e identificação de seus propósitos dramáticos principais. A aproximação deste objeto com o cinema brasileiro se deu a partir da percepção de alguns aspectos fundamentais da identidade cultural deste país e seu povo. Em relação à delimitação temporal, optou-se por trabalhar com um recorte iniciado a partir do período de Retomada do Cinema Brasileiro, na década de 1990, prosseguindo até os dias atuais. Estabelecendo o mesmo recorte, buscou-se também evidenciar o referido período e as principais características das produções cinematográficas produzidas. Continuando este caminho, também foram propostos estudos de caso, selecionando-se três filmes brasileiros de longa-metragem (Lamarca – 1994; Central do Brasil – 1998; e Tropa de Elite 2 - 2010) para o desenvolvimento de aprofundadas análises fílmicas que tiveram como base um olhar minucioso sobre as estruturas e estratégias narrativas utilizadas e o perfil construtor dos heróis protagonistas. Palavras chave: Cinema Brasileiro, Retomada, Herói, Análise Fílmica, Identidade. ABSTRACT This research seeks to show that symbolic elements are being used for constituting the hero myth in contemporary Brazilian cinema and how these elements are being orchestrated. For this, the definition of the concept of hero and identification of its main dramatic purposes was necessary. The approach of this object with the Brazilian cinema took place from the perception of some fundamental aspects of the cultural identity of this country and its people. Regarding the temporal boundaries, we chose to work with a cut started from the Brazilian Cinema Resume period, in the 1990’s, continuing to the present day. Establishing the same cut, also sought to demonstrate that period and the main characteristics of the produced film productions. Continuing this way, it also have been proposed case studies, selecting three brazilian movies full-length (Lamarca - 1994; Central Station - 1998, and Tropa de Elite 2 - 2010) for the development of in-depth filmic analysis which had as a base a thorough look at the structures and narrative strategies used and the builder profile of the protagonists heroes. Keywords: Brazilian Cinema, Resumption (Retomada), Hero, Film Analysis, Identity. 9 LISTA DE ILUSTRAÇÕES – FOTOGRAMAS Fotograma 01 – Slide mostra o ex-capitão Carlos Lamarca como um exemplo de vitória e modelo a ser seguido dentro do Exército Brasileiro. Fotograma 02 – No aconchegante e tranquilo ambiente familiar, Lamarca se mostra brincalhão e bastante humanizado, junto de seus filhos e sua esposa. Fotograma 03 – A beduína do Canal de Suez: principal arauto de Lamarca. Fotograma 04 – Momento de relativa tensão na saída com as armas do quartel: o salto de fé de Lamarca. Fotograma 05 – Lamarca: o herói dos monólogos interiores. Fotograma 06 – A irresistível sensualidade da companheira Clara. Fotogramas 07, 08 e 09 – Base da sequência que retrata, visualmente, o conflito interno travado por Lamarca a respeito de sua relação com a companheira Clara. Fotograma 10 – A caçada: junção dos dois maiores inimigos de Lamarca – Major e delegado Flores. Fotograma 11 – A natureza como prisão. Fotograma 12 – A fotografia aponta que o cerco contra Lamarca apertou ainda mais. Fotograma 13 – Guerra e paz: o herói carregado. Fotograma 14 – A aproximação visual de Lamarca a Jesus Cristo. Fotograma 15 – Lamarca em preto-e-branco: o mito cristalizado. Fotograma 16 – O grito silencioso de Josué pela ajuda da heroína Dora. Fotograma 17 – A fiel mentora Irene tenta dar consciência à amiga Dora, em vários momentos do filme. Fotogramas 18, 19 e 20 – Principais imagens da sequência que aponta a dimensão macro do espaço como barreira complexificadora, além da exposição da fragilidade da heroína para enfrentar os desafios impostos em sua trajetória de aventuras. Fotograma 21 – A imagem da família tradicional, tão idealizada por Josué, é formada na boléia do caminhão do aliado e mentor Cezar. Fotograma 22 – O reviver da feminilidade: Dora reencontra fragmentos anteriormente perdidos de sua própria identidade. 10 Fotograma 23 – Dora se desespera, procurando Josué em meio à multidão de peregrinos. Fotograma 24 – O plongée que ressalta o momento de quase morte de Dora. Fotograma 25 – A Pietà invertida Fotograma 26 – Um dos típicos personagens que ditam cartas para Dora e que promovem uma aproximação estética entre ficção e documentário. Fotogramas 27 e 28 – Amizade e memórias cristalizadas a partir da fotografia dos monóculos. Fotograma 29 – Nas mãos de Nascimento, o telefone celular substitui as armas. Fotograma 30 – Capitão André Matias: o aprendiz que se tornou mentor. Fotograma 31 – Os conflitos pessoais enfrentados pelo pai Nascimento. Fotograma 32 – O jogo de interesses e dominação apresentado durante a festa na favela. Fotograma 33 – O apartamento de Nascimento como reflexo da sua própria alma. Fotograma 34 – Da inusitada tentativa de reaproximação com o filho à resolução do caso sistema. Fotograma 35 – O herói fragilizado. Fotograma 36 – O pai vingador luta contra qualquer instância ou inimigo para defender “sua” família. Fotograma 37 – Nascimento é ajudado pelos seus “verdadeiros amigos” e surpreende os milicianos. Fotograma 38 – O herói toma posse de outra arma: a palavra. 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 012 Capítulo 1 – MITO E HERÓI .............................................................................. 016 1.1 – Caminhos do mito ........................................................................... 016 1.2 – A invenção do herói ........................................................................ 021 1.3 – Um herói conceituado ..................................................................... 027 1.4 – Alguns tipos de herói ...................................................................... 030 1.5 – Um passo na trajetória de aventuras do herói ................................ 036 1.6 – De Campbell a Vogler: levando a jornada de aventuras para o cinema ......................................................................................... 042 Capítulo 2 – PROJETANDO UMA IDENTIDADE CONSTITUTIVA PARA O HERÓI NO CINEMA BRASILEIRO ........................................... 054 2.1 – Identidade e diferença .................................................................... 054 2.2 – Certidão de nascimento: um possível mito fundacional na cultura brasileira ........................................................................ 059 2.3 – A identidade heróica do povo brasileiro ......................................... 072 2.4 – Novas reflexões sobre o herói no cinema desta terra .................... 077 Capítulo 3 – O CAMINHO ATÉ O CINEMA DE RETOMADA ............................ 081 3.1 – As primeiras intervenções estatais no cinema brasileiro ................ 081 3.2 – Novamente o Estado como máquina motriz ................................... 090 3.3 – Retomada: fotogramas de um cinema verde-amarelo das últimas décadas ............................................................................. 096 Capítulo 4 – NOSSOS FILMES, ALGUNS HERÓIS .......................................... 112 4.1 – Pré-produção das análises fílmicas ................................................ 112 4.2 – Colocando em cena alguns códigos de análise fílmica .................. 122 4.3 – A construção de um método de análise para a narrativa do herói no cinema brasileiro: rodando mais uma aventura ......................... 132 Capítulo 5 – OS FILMES DESTA SESSÃO: ESTUDOS DE CASO .................. 139 5.1 – Lamarca (1994) .............................................................................. 140 5.2 – Central do Brasil (1998) .................................................................. 196 5.3 – Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro (2010) ............................ 258 ANTES DOS CRÉDITOS FINAIS ...................................................................... 325 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 330 ANEXOS ............................................................................................................ 336 12 INTRODUÇÃO A partir desta pesquisa, almeja-se refletir sobre o processo constitutivo do herói representado pela cinematografia brasileira das últimas décadas. Um herói que, em última instância, também pode representar ou se aproximar de uma forma de identidade ou reconhecimento do próprio povo brasileiro dentro de um determinado recorte temporal e espacial. Este estudo tem início, considerando sobre a delimitação daquilo que se convencionou chamar de mitologia e, no seu cerne, o surgimento e a definição do próprio mito, suas funções e suas possíveis relações contraditórias para com o conhecimento científico. A partir desta ambientação inicial, pode-se estabelecer uma base para discorrer a respeito do arquétipo do herói, pensado a partir de sua manifestação mitológica. Além da origem deste personagem, sua própria delimitação conceitual é evidenciada. Deseja-se perceber alguns dos principais propósitos dramáticos do herói na narrativa. Os diversos tipos e modos com os quais ele pode se apresentar, desde o clássico, passando pelas formas épicas e trágicas também possuem importância estratégica. Dentro da trajetória de “aventuras” do herói, discorre-se sobre o percurso conhecido como padrão, a unidade nuclear do monomito e a sugestiva proposta de transgressão da proibição em busca do mecanismo impulsionador conhecido como limiar. Nos estágios da jornada heróica, abordam-se a função e as perspectivas narrativas de personagens de apoio, como mentores e arautos. O rompimento da estrutura tradicional e as transformações observadas do herói clássico em direção a um herói mais humano e atualizado com representações cotidianas também se mostram relevantes para esta pesquisa. A aproximação deste objeto para com o cinema brasileiro começa a ser estabelecida a partir do momento em que se debruça sobre a delimitação de identidade e diferença. Através dessa conceituação busca-se perceber aspectos da identidade cultural deste país, bem como a aplicação daquilo que Darcy Ribeiro (1922-1997) definiu como brasilianidade. Assim, pode-se pensar a identificação do ser nacional a partir de mecanismos, como a fábula das três 13 raças, a ideologia do trabalho e mesmo a constituição da sociedade brasileira. A partir de alguns espaços sociais é possível refletir sobre tipos já tradicionais de heróis brasileiros, seus caminhos e indefinições. As relações entre Estado e cinema ganham força neste percurso. Identificando as primeiras formas de intervenção estatal na cultura e, mais especificamente no cinema, abarca-se o trabalho desenvolvido na Embrafilme, as primeiras leis de incentivo fiscal às atividades culturais, bem como as novas relações entre mercado e cinema. Esse contexto é importante para que se reflita sobre as atividades cinematográficas desenvolvidas durante o período conhecido como Retomada (a partir de meados da década de 1990). Deseja-se identificar as características principais da produção desse período, suas escolhas estéticas e políticas, suas formas narrativas. Buscando amparar a análise dos filmes selecionados como estudo de caso dentro do período pesquisado, são evidenciados aspectos da própria linguagem cinematográfica, da observação semiológica e das formas de discurso. A análise de conteúdo considerou alguns elementos narrativos fundamentais, como personagem, espaço e ambientação. Assim, como objetos de estudo, foram selecionadas três obras cinematográficas a partir do período denominado Retomada. Filmes ficcionais, de longa duração, que tiveram boa difusão nacional (e até internacional), atingindo uma fatia significativa de público: Lamarca (Brasil, 1994), de Sérgio Rezende; Central do Brasil (Brasil / França, 1998), de Walter Salles; e Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro (Brasil, 2010), de José Padilha. Além de contidos nesse período, com certo intervalo de tempo entre eles, sobretudo, os filmes selecionados apresentam heróis que se destacam por sua complexidade, com peculiaridades que apontam uma amostragem heterogênea do herói no cinema brasileiro desse momento. Sabendo que estes filmes possuem temáticas variadas, refletindo, inclusive, a base do período da Retomada, buscou-se identificar, selecionar, mapear características que possibilitassem a avaliação das obras nas suas especificidades e singularidades, a partir de um olhar crítico individualizado. Todos os filmes foram analisados sob a perspectiva da Jornada do Herói, sendo que, no caso de Tropa de Elite 2, optou-se, ainda, por uma aproximação teórica com o pensamento do filósofo Jacques Rancière (1996, 14 2005, 2010), acerca de política e polícia, no sentido de refletir sobre alguns aspectos temáticos importantes na obra para se compreender a constituição do herói. Vale ressaltar que esta pesquisa tem uma natureza básica, ou seja, apresenta interesses universais, sem uma aplicação prática previamente prevista. A forma de abordagem do problema foi qualitativa, expondo a descrição e interpretação de fenômenos e seus significados. No decorrer deste estudo, o problema delineador trata ou busca interpelar a seguinte questão chave: que elementos simbólicos estariam sendo utilizados para a constituição do mito do herói, após o início da Retomada no Cinema Brasileiro? Dentre os objetivos deste estudo, pode-se refletir sobre uma proposta exploratória que incidiu nas seguintes atividades: a) Estudar a origem e delimitação conceitual do herói; b) Apontar os principais propósitos dramáticos do herói na narrativa cinematográfica; c) Identificar os principais tipos e formas nos quais o herói pode se apresentar; d) Promover um tipo de registro da memória e da história do herói apontado pela cinematografia brasileira após a Retomada; e) Produzir conhecimento mais aprofundado a respeito do tema: constituição do herói no cinema brasileiro contemporâneo; f) Identificar as principais características das produções cinematográficas brasileiras advindas do período após a Retomada; g) Realizar três análises semiológicas dos filmes brasileiros indicados, buscando identificar e interpretar as principais características da trajetória de aventuras dos referidos heróis, a partir da aplicação das 12 etapas da Jornada do Herói, indicadas por Christopher Vogler (2006). Entre as inúmeras hipóteses possíveis, esta pesquisa trabalhou com duas perspectivas principais: a) Os elementos artísticos, estéticos, técnicos e de conteúdo presentes nos filmes analisados se conjugariam entre si para colaborar na constituição de heróis no cinema brasileiro; 15 b) A partir da aplicação das 12 etapas da Jornada do Herói, indicadas por Christopher Vogler, seria possível, além de analisar a trajetória de aventuras de cada história, identificar também os elementos essenciais de um perfil constituinte das três categorias de heróis representativos da sociedade brasileira, conforme a sugestão conceitual do antropólogo Roberto da Matta (1997). Neste caminho, seria possível pensar que a construção da representação de um herói brasileiro a partir da cinematografia nacional poderia refletir a própria constituição de uma identidade ou identificação do povo dito brasileiro. Entre os procedimentos técnicos adotados para esta tese estão a pesquisa bibliográfica de materiais impressos e arquivos científicos disponíveis na internet; a pesquisa documental em materiais relacionados aos filmes tratados, como fotografias, reportagens e cartazes das obras analisadas; o próprio estudo de caso, que propõe um olhar profundo e exaustivo sobre os três objetos fílmicos selecionados, a fim de consolidar um amplo e detalhado conhecimento a respeito dos heróis e heroínas ali constituídos, bem como de suas relações dentro de uma trajetória de aventuras no campo cinematográfico. 16 Capítulo 1 – MITO E HERÓI 1.1 – Os caminhos do mito Ainda na Antiguidade, algumas civilizações, como a grega, a babilônica e a egípcia começaram a glorificar seus mitos ou heróis nacionais através de uma grande quantidade de lendas e relatos poéticos. De acordo com José Rosamilton de Lima e Ivanaldo Oliveira dos Santos (2011), o mito surgiu ainda nos povos primitivos que realizavam seus ritos e cultos na presença de indivíduos que se destacavam entre os demais através da sua valentia ou coragem. Teriam sido os gregos os primeiros a denominarem este tipo de mito reconhecido enquanto herói. Através das leituras de Ernest Cassirrer (2009), os autores defendem que a mitologia pode ser entendida como um tipo de poder que a linguagem exerce sobre o pensamento humano. Assim, o mito estaria associado à linguagem e ambos representariam o resultado de um mesmo ato que envolve o lado espiritual e a percepção sensorial. O que chamamos comumente de mitologia nada mais é que um resíduo de uma fase muito mais geral do desenvolvimento de nosso pensar, é apenas um débil remanescente daquilo que antes constituía todo um reino do pensamento e da linguagem. Neste sentido, poderíamos perceber a mitologia como um tipo de poder que a linguagem exerce sobre o pensamento humano. (CASSIRRER, 2009, p. 104). Muitas vezes, os relatos míticos se tornam enigmáticos pela coincidência de alguns detalhes e pela sua reaparição em outros lugares e grupos míticos. Um dos estudiosos dessa questão é Otto Rank que afirma: La historia del nacimiento y la infancia de esas personalidades llego a ser investida, en particular, de rasgos fantásticos que en las diferentes naciones, aun aquellas separadas por vastas distancias geográficas y de existencia totalmente independiente presentan una desconcertante similitud y hasta, en parte, una correspondencia exacta. (RANK, 1992, p. 09). 17 Rank considera que as teorias mitológicas procuram explicar esses fenômenos de semelhanças a partir de três pontos principais: a) A ideia do povo, proposta por Adolf Bastian (etnólogo alemão, 1826-1905): suposição da existência de pensamentos elementares, de modo que a coincidência dos mitos seria resultado da disposição uniforme da mente humana que, dentro de certos limites, seriam praticamente idênticos em todo tempo e lugar; b) A ideia de uma origem comum, desenvolvida por Theodor Benfey (filologista alemão, 1809-1881): analisa as formas folclóricas e os relatos paralelos. Nesta concepção, estes relatos teriam sido originados na Índia. Logo depois, teriam continuado crescendo, mas mantendo traços fundamentais comuns. c) A teoria moderna da migração ou préstamo: defesa de que os mitos individuais se originaram em povos definidos (especialmente, o babilônico) e acabaram sendo coletados ou usados por outros povos a partir das tradições orais da comunicação realizadas pelo comércio e tráfico. Para Joseph Campbell (2007), a função primordial da mitologia sempre foi a de oferecer os símbolos que levariam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias que tenderiam a levá-lo para trás. Na Antiguidade, os mitos eram alegóricos e simbólicos, apresentando uma verdade moral, religiosa ou filosófica. Segundo Campbell, em diversas épocas e circunstâncias, os mitos floresceram como inspiração para todos os produtos das atividades do corpo e da mente humanos. Contudo, o pensador alega que os símbolos da mitologia não podem ser ordenados ou enquadrados no campo do conhecimento lógico. Ao tentar entender as narrativas míticas racionalmente, o indivíduo não conseguiria trazer para a sua realidade as mensagens nelas contidas. A mitologia é muito fluida. Muitos mitos se contradizem a si mesmos. É possível, até, encontrar quatro ou cinco mitos, numa dada cultura, que fornecem diferentes versões do mesmo mistério. Então a teologia se intromete e diz que a coisa deve ser entendida dessa ou daquela maneira. Mitologia é poesia, e a linguagem poética é muito flexível. [...] A mitologia não é uma mentira. É algo metafórico. É a penúltima verdade – penúltima porque a última não pode ser transformada em palavras. Está além das palavras, além das imagens, além da borda limitadora da Roda do Devir dos budistas. A mitologia lança a mente para 18 além desta borda, para aquilo que pode ser conhecido, mas não contado. (CAMPBELL, 2000, p. 150). Buscando constituir uma definição para mito, Karen Armstrong (2005) delineia este objeto de estudo como um guia do comportamento, no qual sua verdade só é exposta quando ele seja colocado em prática – tanto através de mecanismos rituais quanto éticos. Como o mito não transmite informações factuais, caso seja lido como pura hipótese intelectual, pode tornar-se remoto ou até mesmo inacreditável (ARMSTRONG, 2005, p. 25). Dialogando com a proposta definidora de Armstrong, Gabriel Lage Neto (2010) pensa os mitos como histórias relacionadas à sabedoria de vida. Nessa concepção, haveria mensagens ou conhecimentos escondidos por trás de cada um deles, como uma espécie de frutos do desejo da humanidade em explicar determinados fenômenos naturais, aparentemente inexplicáveis, que ela não é capaz de compreender. Entretanto, normalmente, essas explicações são construídas a partir de oposições simplificadoras e binárias como “bem” e “mal”, homem e mulher, vida e morte. Na perspectiva do esclarecimento, ou seja, da valorização daquele conhecimento que é comprovado pela ciência, os mitos podem ser interpretados como resultado da criação imaginária do homem que se vê atormentado pelo natural ou por aquilo que ele ainda desconhece. Assim, tem-se a projeção de imagens especulares do homem, como projeções do subjetivo da natureza, transfigurados em anjos, espíritos, fantasmas. Lima e Santos (2011) afirmam que, para se refugiar de qualquer medo, o homem tende a buscar por um sentimento interior e, muitas vezes, desconhecido: sua força espiritual. Através dela e como resultado da aproximação com o mundo imaginário, pode-se observar a constituição de personagens divinos, na tentativa de exteriorizar a vontade de reação e superação dos vários obstáculos cotidianos. Atualmente, a questão do mito possui uma riqueza conceitual enorme. Várias interpretações e tentativas de delimitações já foram apresentadas. Contudo, para Campbell, não há um sistema definido de interpretação dos mitos e jamais haverá algo parecido. 19 A mitologia tem sido interpretada pelo intelecto moderno como um primitivo e desastrado esforço para explicar o mundo da natureza (Frazer); como um produto da fantasia poética das épocas pré-históricas, mal compreendido pelas sucessivas gerações (Muller); como um repositório de instruções alegóricas, destinadas a adaptar o indivíduo ao seu grupo (Durkheim); como sonho grupal, sistemático dos impulsos arquetípicos existentes no interior das camadas profundas da psique humana (Jung); como veículo tradicional das mais profundas percepções metafísicas do homem (Coommaraswamy); e como a Revelação de Deus aos seus filhos (a Igreja). A mitologia é tudo isso. Os vários julgamentos são determinados pelo ponto de vista dos juízes. Pois, a mitologia, quando submetida a um escrutínio que considere não o que é, mas o modo como funciona, o modo pelo qual serviu à humanidade no passado e pode servir hoje, revela- se tão sensível quanto a própria vida às obsessões e exigências do indivíduo, da raça e da época. (CAMPBELL, 2007, p. 368). No livro Mitologias (1980), Roland Barthes reflete sobre o mito a partir de uma visão semiológica, como uma fala incomum, um sistema de comunicação ou uma linguagem definida pela história, uma vez que seria esta história a transformadora do real em discurso e gestora da vida ou morte da linguagem mítica (BARTHES, 1980, p. 132). Este pensamento de Barthes é revisitado por Gabriel Lage Neto (2010), sugerindo que o mito precisa, primeiramente, induzir o indivíduo a participar da vida do seu mundo. Na sequência, irá desengajá-lo. A partir de exemplos de muitas outras pessoas que passaram pelos mesmos caminhos e travessias, o mito ensina a não temer os possíveis obstáculos que irá encontrar. Aqui, Neto dialoga claramente com Campbell, quando afirma que os mitos dizem como interpretar, enfrentar ou suportar o sofrimento. Contudo, nenhum mito afirma que na vida não pode ou não deve haver sofrimento. Tudo o que membros de uma sociedade têm em comum frequenta e é revelado pelos mitos, que são histórias da busca da verdade, por um sentido. [...] Além de compreender a vida, é necessário compreender a morte e enfrentá-la. Os indivíduos precisam de auxílio na passagem do nascimento à vida e, depois, à morte. Precisam que a vida tenha significação. (NETO, 2010, p. 25). 20 No pensamento de Campbell, experiência da vida e do mundo somente pode ser entendida plenamente através do conhecimento dos mitos. Eles forneceriam pistas para essa compreensão. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. (CAMPBELL, 2007, p. 15). Em entrevista concedida ao jornalista Bill Moyers, Joseph Campbell1, ao ser questionado sobre como conseguir chegar à experiência de vida que ele tanto defende, responde de forma direta: Lendo mitos. Eles ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos símbolos. Leia mitos de outros povos, não os da sua própria religião em termos de fatos – mas lendo os mitos alheios você começa a captar a mensagem. O mito ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é. (CAMPBELL, 2007, p. 06). Campbell também relaciona os mitos aos sonhos. Nesse caso, o sonho seria o mito personalizado e o mito seria o sonho despersonalizado. Em outras palavras, o mito e o sonho simbolizariam, de maneira geral, a dinâmica da psique. Entretanto, nos sonhos, as formas são distorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade. Nesse caminho, a mitologia pode revelar perigos e técnicas específicos do enigmático caminho interior. Dessa maneira, os incidentes podem se apresentar como fantásticos e “irreais”, representando triunfos de natureza psicológica e não física (CAMPBELL, 2007, p. 28). 1 Em 1985 e 1986, Joseph Campbel participou de uma série de entrevistas que originaram a minissérie de TV chamada O poder do mito (Joseph Campbell and the Power of Myth, EUA, 1988). 21 O autor aponta que um grave problema ocorre quando alguns estudiosos tentam interpretar o mito como biografia, história ou ciência. Para ele, essa ação aniquila a poesia existente no tema. “Quando uma civilização passa a interpretar sua mitologia desse modo, a vida lhe foge, os templos transformam-se em museus e o vínculo entre as duas perspectivas é dissolvido” (CAMPBEL, 2007, p. 245). As linhas gerais dos mitos e contos estão sujeitas a danos e ao obscurecimento. Dessa maneira, diferentes personagens ou episódios podem ser fundidos, assim como um elemento considerado simples pode reduplicar-se e reaparecer sob muitas formas diferentes. Vários elementos importados são revisados para se adequarem à paisagem, aos costumes ou às crenças locais. Além disso, a recontagem das histórias propicia outras distorções acidentais ou intencionais. Campbell acredita que uma melhor aproximação do mito seria dada com a Psicologia. A mitologia é a psicologia confundida com biografia, história e cosmologia. O psicólogo moderno tem condições de retraduzi-la em suas anotações próprias e, desse modo, recuperar para o mundo contemporâneo, um rico e eloquente documento das camadas mais profundas do caráter humano. (CAMPBELL, 2007, p. 251). Vale ressaltar que o discurso pelo mito deve ser interpretado levando-se em conta a sociedade que o produziu, seu contexto histórico e cultural, bem como os interesses particulares que estariam em jogo no momento de sua constituição. Algumas vezes, classes dominantes usaram (e ainda usam) o mito para justificar determinadas situações ou ações. 1.2 – A invenção do herói Alguns fatores ocultos ou indeterminados envolvidos nos mistérios históricos a respeito do herói ainda aguçam a curiosidade e interesse de muitas pessoas sobre a temática, mesmo em nossos dias. Refletindo sobre o nascimento do mito do herói, Otto Rank (1992) debate a teoria da evolução mitológica que 22 apresenta possibilidades tanto de um início em um nível terrestre evoluindo para uma projeção ao universo celeste, como também em um sentido contrário de criação. Todavia, o autor defende um único sentido desse processo: Estamos convencidos de que los mitos, por lo menos en un principio, son estructuras de la facultad humana de la imaginación, que en determinada época fueran proyectadas, por ciertas razones, a la esfera celeste, pudiendo haber sido transferidas secundariamente a los cuerpos celestes, con sus enigmáticos fenómenos. La significación de las inequívocas huellas que esa transferencia ha dejado sobre los mitos, como las figuras fijas y demás, no debe subestimarse bajo ningún concepto, aunque el origen de estas figuras fuera posiblemente de carácter psíquico, para convertirse posteriormente en la base de los cálculos del calendario y del firmamento, precisamente en razón de su importancia. (RANK, 1992, p. 17). A origem dos heróis nas narrativas mistura-se com a origem dos mitos. Dario de Barros Carvalho Júnior (2002) lembra que, na Grécia Antiga, os mitos eram representados por narrativas que contavam histórias repletas de criaturas maravilhosas. Como um herói encarna e simboliza valores e aspirações de um povo, é relativamente natural que se torne modelo mítico, ou seja, que a narração de suas aventuras ou desventuras sirva como forma de entender o mundo, adaptar-se a um grupo ou entrar em contato com experiências da vida. (CARVALHO JR., 2002, p. 08). José Rosamilton de Lima e Ivanaldo Oliveira dos Santos (2011) contextualizam o nascimento dos heróis a partir de algum tipo de necessidade espiritual, uma forma de proteção contra o desconhecido. Na sequência da evolução humana e na sua infinita busca pela sobrevivência, as pessoas passaram a se organizar em sociedade. Inicialmente, o destaque ia para aqueles mais corajosos, bravos ou protetores. Tais pessoas assumiam a liderança do respectivo grupo, muitas vezes, reverberando características superiores atribuídas ao sobrenatural, originando, então, os primeiros heróis. Na opinião de Martin Cezar Feijó (1995), a mitologia grega pode ser resumida na vida dos deuses e heróis, sendo que os deuses tinham características humanas, como 23 vícios e virtudes, e os heróis características divinas, com poderes especiais, embora fossem mortais (FEIJÓ, 1995, p. 14). Conversando com os escritos de Feijó, Lima e Santos (2011) apresentam o momento da criação do herói a partir de um apelo popular incontestável. Ao herói da Antiguidade são atribuídos grandes feitos e, muitas vezes, ele aparece como fundador de uma determinada cultura. Nesse sentido, várias personalidades transitórias entre o mundo real e o mundo imaginário ganham espaço fixo e sólido em uma sociedade ou cultura a partir de sua constituição enquanto mito. Luis Alberto de Cuenca (1991) resume bem esta possível busca de espelhamento entre sociedade e heróis: Individuos marcados por el hierro candente de la desmesura, gigantescos en la Victoria y enormes em el sufrimiento, los héroes tienen que aceptar la precaria existencia del símbolo y del arquetipo. Y es que no existen: solo representan, son el espejo de cuanto hay en nosotros de superior, de divino. (CUENCA, 1991, p. 17). Inúmeras são as situações históricas que inspiraram heroísmos e diversos também foram (e são) os personagens das artes delineados a partir dos heróis. Em muitas ocasiões, eles são baseados em pessoas que realmente existiram e se destacaram por seu caráter moral – um dos aspectos mais representativos do herói. Aristóteles foi um dos defensores de que o caráter moral participaria de um processo de aprendizado e rotina cotidiano, no qual, a repetição de uma ação ou posicionamento originaria resultados substanciais sobre a constituição das virtudes humanas. As virtudes, nós adquirimos por tê-las inicialmente e realmente praticado, tal como praticamos as artes. Aprendemos uma arte ou ofício fazendo as coisas que teremos que fazer quando a (o) tivermos aprendido: homens se tornam construtores, construindo casas e se tornam tocadores de lira tocando lira. Analogamente, nos tornamos justos realizando atos justos, corajosos realizando atos corajosos. (ARISTÓTELES, 2007, p. 25). Refletindo sobre essas virtudes humanas que podem ser encontradas em alguns heróis, Luiz Alberto de Cuenca idealiza e romantiza características que, para ele, seriam base de identificação de um personagem heroico. 24 El héroe siempre dice la verdad. Odia la mentira como algo infame y defiende la fraqueza con entusiasmo. Cumple con su palabra, se mantiene en lo que ha prometido. […] Es en los ojos donde, de manera especialísima, se reconoce al héroe. Brillan con energía y pasión. Su posición, color, forma y tamaño son siempre excepcionales. Muchos héroes poseen ojos brillantes y luminosos como reminiscencias de las divinidades de la luz o del sol, de quienes descienden. (CUENCA, 1991, p. 19) Ampliando também com Victor Brombert (2001), Lima e Santos explicitam concepções diferenciadas a respeito da moral apresentada pelos heróis: Friedrich Schiller acreditava que o herói encarna um ideal de perfeição moral e enobrecimento. (“Veredlung”). Thomas Carlyle via os heróis como modelos espirituais guiando a humanidade, e portanto merecedores do “culto do herói”. Joseph Campbell, em nossos dias, descreveu o herói de mil faces como capaz de “autoconquistada submissão” e pronto a dar a vida por alguma coisa maior do que ele mesmo. [...] Para Johan Huizinga, o herói era apenas um exemplo superior de homo ludens. [...] Sigmundo Freud, de maneira menos lúdica, embora também destacando a competição, ofereceu uma visão mais sombria. Em Moisés e o Monoteísmo definiu o herói como alguém que enfrenta o pai e “no fim suplanta-o vitorioso”, e ainda menos tranquilizadoramente (a noção de parricídio não é nada edificante) como um homem que se rebela contra o pai e “mata-o de um modo ou de outro”. [...] Joseph Conrad [...] sugere que a “treva” é o domínio privilegiado da alma heróica. A finalidade entre o herói e as zonas obscuras tem sido expostas muitas vezes. Paul Valéry afirmou que tudo que é “nobre” ou “heróico” está forçosamente vinculado à obscuridade e ao mistério do incomensurável, ecoando a observação de Victor Hugo a respeito do obscurecimento legendário (“obscurcissement légendaire”) cerca a figura do herói. (BROMBERT, 2001, pp. 18-19 apud LIMA; SANTOS, 2011, p. 8). Como se pode perceber, muitos heróis nascem a partir de uma necessidade espiritual ou forma de proteção contra o desconhecido. Na perspectiva da política, da economia ou da sociedade, o herói pode surgir tanto no berço esplêndido da elite, como nas classes sociais menos favorecidas, insurgindo, por exemplo, contra algum tipo de injustiça social ou sistema de governo. Em ambos os casos, quando é utilizado como um processo de invenção, ele pode dar sentido a pessoas e lugares. 25 Ele pode surgir como resultado da imaginação de muitas gerações e que posteriormente são contemplados na literatura ou como também podem ser pessoas reais que desempenham ações de grande generosidade que adquirem visibilidade por representar coragem, astúcia, sabedoria, ousadia. Neste caso, o herói defende uma causa que beneficia sua comunidade ou uma nação, lutando assim por igualdade e justiça social. (LIMA; SANTOS, 2011, p. 03). Lima e Santos lembram que, ao longo dos séculos, homens e instituições poderosas distorceram ou inventaram fatos a seu favor para colocar o passado e o presente a serviço de ideologias ou de seus interesses próprios. Diante disso, alguns personagens reais foram transformados em lendas, seres sobrenaturais com evidências tão bem inventadas que parecem ter existido. Aqui, se inclui a categoria dos heróis. A História consagrou seus heróis na perspectiva de como ela é e por quem é escrita. Sendo assim, quem determina o que é verdadeiro e deve entrar para suas páginas é também o detentor do poder. Nessa medida, a criação dos heróis se dá pelo meio da construção do discurso. Nesse processo, Roberto Da Matta (1997) evidencia que a crença no herói não circunscreve somente o “inocente” receptor da narrativa, mas inclui seus criadores – que também estão presos ao mito e a todas as ações que ele pode criar ou desencadear sobre as camadas da sociedade que acreditam nele. Como seus receptores, as histórias baseadas no herói também não são inocentes. [...] elas não trazem só o divertimento; se expõe de uma forma perspicaz às questões referentes à ética e moral, que todo “ser normal” enfrenta em seu dia-a-dia. Estas histórias introduzem e abordam de forma vivida as questões de suma importância enfrentadas pelos seres humanos, as questões referentes à ética, à responsabilidade pessoal e social, à justiça, ao crime e ao castigo, à mente e às emoções humanas, à identidade pessoal, à alma, à noção de destino, ao sentido de nossa vida, ao que pensamos da ciência e da natureza, ao papel da fé na aspereza deste mundo, à importância da amizade, ao significado do amor, à natureza de uma família, às virtudes clássicas como coragem e muitos outros temas. (WESCHENFELDER, 2012, pp. 02, 03). Aproximando o mito do herói à perspectiva da democracia, Sidney Hook (1958) acredita que, caso o herói seja pensado como um indivíduo que “faz 26 época” e determina o curso de sua história, a comunidade democrática estará eternamente em guarda contra ele. Para o autor, essa conclusão simples já está implícita na própria concepção de sociedade democrática. Porque, en tal sociedad, la conducción no puede arrogarse un poder heroico. A intervalos legalmente determinados, el gobierno debe obtener su sanción del consentimiento libremente dado por los gobernados. […] Según un viejo proverbio chino, “el grande hombre es una calamidad pública”. En él se expresa con perspicacia la experiencia y sabiduría de un pueblo amante de la paz. (HOOK, 1958, p. 163). Hook considera que, em uma comunidade democrática, o herói é qualquer indivíduo que realize bem seu trabalho e faça uma contribuição mínima ao bem- estar público. Tal personagem seria um homem com poder em potencial de fazer ou mudar o seu tempo. Inicialmente, ele pode até crer que aceita a filosofia implícita na democracia. Contudo, mais cedo ou mais tarde, irá contra dois mecanismos do processo democrático: o princípio da norma maioritária (quando ele tem convicção de que a maioria está equivocada em um assunto de grande importância) e a lentidão de ação desta maioria (mesmo quando está convencido de que ela tem razão). El “héroe potencial” en una democracia ve lo que otros no ven. Su voluntad de acción es más fuerte. Es más seguro su conocimiento de lo que debe hacer para realizarlo. Por tales razones, lo más probable es que pronto se encuentre en minoría. El sentido de su vocación lo impulsa a luchar por su visión interior. Su lealtad al ideal democrático lo constriñe a hacer de su visón interior la fe común de la mayoría. (HOOK, 1958, p. 165). Repercutindo as ideias de Joseph Campbell a partir de uma perspectiva mais pragmática, Christopher Vogler (2006) considera que o propósito dramático do herói é dar à plateia uma janela para a história. Muitas vezes, é por ele que o espectador, no caso do cinema, vai se identificar e também se preocupar com seu destino na trama. Cada pessoa que ouve uma história ou assiste a uma peça ou filme é convidada, nos estágios iniciais da história a se identificar com o herói, a se fundir com ele e ver o mundo por meio dos 27 olhos dele. [...] As histórias nos convidam a investir no herói uma parte de nossa identidade pessoal, enquanto dura a experiência. Em certo sentido, durante algum tempo, nós somos transformados no herói. (VOGLER, 2006, pp. 76-77). Gabriel Lage Neto (2010) defende que uma grande prova de que o momento contemporâneo ainda pode ser considerado um tempo mítico é a necessidade da sociedade moderna de possuir heróis. De forma geral, povos e nações ainda se espelham em heróis que adquirem forma mitológica não por serem fantasiosos, imaginários, mas por terem executado grandes feitos (bons ou maus) ou por adquirirem extraordinária fama. Oferecendo uma perspectiva anterior de diálogo sobre a essa temática, Luis Alberto Cuenca (1991) acredita que, apesar da degradação do mito, o herói ainda se conserva íntegro e com o mesmo vigor antigo. Su fuerza y belleza no envejecen. La cultura popular puede crear y destruir héroes para solaz del consumidor, pero no inventa formas nuevas. Un solo sueño universal ha imaginado, desde el comienzo de la historia todas las visiones heroicas posibles. El contenido de esas imágenes es siempre el mismo: solamente varía la apariencia exterior. (CUENCA, 1991, p. 19). Com o passar dos anos e os desdobramentos da própria história, o mito converte-se em esclarecimento e a natureza em mera objetividade. Para Adorno & Horkheimer (2006), o preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. Assim, o homem torna-se dependente do próprio saber que produziu, à medida que sente necessidade de fazer uso dele para se manter no poder e possuir a mera ilusão de satisfação pessoal, algo que na percepção dos mitos se busca na divindade (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 21). 1.3 – Um herói conceituado As histórias de heróis variam de cultura para cultura. O herói evolui na medida em que a cultura evolui. Normalmente, mesmo quando se supera o culto 28 infantil/juvenil a respeito do herói, boa parte dos indivíduos permanece com um forte interesse por estes personagens. As fontes desse direcionamento de olhar são muitas e profundas. De acordo com Sidney Hook (1962), o fato básico de interesse pelos heróis é a indispensabilidade da liderança em toda a vida e organização social. “Quem quer que nos salve é um herói. Os homens estão sempre procurando alguém que os salve” (HOOK, 1962, p. 18). Nessa linha de pensamento, o que denomina um herói, desde a Antiguidade clássica até os nossos dias, seria a função de protetor ou salvador assumida por este personagem. Conforme Lima & Santos (2011), o conceito grego de herói inclui uma série de aspectos, como o nascimento difícil, profecias envolvendo o futuro, exposição ao perigo, descoberta da origem nobre, façanhas memoráveis, vingança de humilhações sofridas, casamento com princesa ou heroína, reconhecimento dos méritos e, até mesmo, uma possível morte trágica. Originalmente, o termo herói foi usado para designar também o protagonista de uma obra narrativa ou dramática. Para os gregos, por exemplo, o herói situa-se em uma posição intermediária entre os deuses e os homens, e, portanto, tem dimensão semidivina. Assim, o herói é marcado por uma projeção ambígua em que, por um lado representa a condição humana na sua complexidade psicológica, social e ética, e por outro lado, transcende a mesma condição, na medida em que representam facetas e virtudes que o homem comum não consegue, mas gostaria de atingir tais como bravura, coragem, superação, nobreza e força de vontade. Desse modo, suas motivações serão sempre moralmente justas ou eticamente aprováveis, mesmo que às vezes ilícitas e violentas. (LIMA; SANTOS, 2011, p. 08). De acordo com Joseph Campbell (2000), um herói ou uma heroína é alguém que descobre ou realiza alguma coisa além do nível convencional de realização ou de experiência. Normalmente, o início do seu trabalho se daria com a perda ou falta de alguma coisa entre suas experiências normais. Assim, esse ser parte numa série de aventuras que ultrapassa seu usual e perfaz um círculo entre partida, descoberta de algum elixir da vida e retorno. Ele deixa o mundo onde está e se encaminha em direção a algo mais profundo, mais distante, mais 29 alto: tenta atingir aquilo que faltava em sua consciência. “O herói se sacrifica por algo e aí está a moralidade da coisa. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo” (CAMPBELL, 2000, p. 135). Campbell (2007) promove a defesa do herói como aquele homem ou mulher que consegue vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcança formas normalmente mais evoluídas do ser humano. Essa seria a sua principal missão. Já a segunda tarefa solene desse personagem seria retornar ao nosso meio transfigurado e ensinar a lição de vida renovada que aprendera. Seu objetivo moral pode ser o de salvar um povo, uma pessoa ou, como encontramos mais nos dias atuais, o de defender uma ideia. O sentido original das histórias de heróis era fazer com que o indivíduo se sentisse cativado por eles, que saísse do seu conforto e lutasse por alguma coisa maior em que acreditasse. A definição do que é um herói mostra-se confusa através dos tempos. O termo acabou ganhando diversos contornos. Dario de Barros Carvalho Junior (2002) acredita que: Mais do que um ser humano extraordinário, por seus feitos, um herói representa um padrão de valor, tem a capacidade de satisfazer à necessidade (ou necessidades) de um povo, encarnando os valores que simboliza. É ou se torna, de maneira emblemática, uma soma de aspirações de um indivíduo, de uma sociedade, de uma época. (CARVALHO JR., 2002, p. 06). Flávio Kothe (1987) propõe outra forma de se pensar o herói: como a dominante no sistema de narrativas. Nesse sentido, um sistema seria um conjunto de elementos coerentes entre si e distintos do seu meio. Assim, a dominante – geralmente algum tipo de herói – seria o seu princípio de organização e estaria presente em todos os elementos do sistema. Enquanto dominante, o herói se torna estratégico para decifrar o texto como contexto estruturado verbalmente. Dessa maneira, a análise do herói poderia ser vista como um modo estratégico de se estudar a dominante nas narrativas também cinematográficas, possibilitando superar a contradição entre análise forma e análise sociológica, entre abordagem imanente e abordagem extrínseca da obra. Sabendo que o cinema contempla um espaço amplo que agrega vários tipos de heróis, uma vez 30 que suas obras reproduzem o sistema social, o herói, que é a dominante deste espaço, traz à luz a identidade de tal sistema. No modo de pensar de Kothe, todo personagem que apenas corporifique qualidades positivas ou negativas seria um personagem trivial, pois foge à natureza contraditória das pessoas e não questiona os próprios valores – e o herói realmente não pode ser assim. Nesta pesquisa, o herói passa a ser entendido não como aquele indivíduo realizador de façanhas extraordinárias, que vão muito além do nível convencional da experiência. Aqui, interessa o olhar detalhado sobre aquele herói que, além de ser protagonista da narrativa, se sacrifica por alguém ou alguma coisa na qual acredita fielmente. A relação com diversas formas de sacrifício, conforme aponta Campbell, parece demasiadamente próxima também do perfil construtor do herói brasileiro. Independentemente do tamanho do perigo, ele irá buscar ajudar ou, salvar um determinado personagem ou grupo, como aponta Sidney Hook (1962). Além dessa conceituação mais ampla de herói, também são utilizadas as três categorias definidoras e delimitadoras dos principais tipos de heróis brasileiros, de acordo com os apontamentos do antropólogo Roberto da Matta (1997). As mesmas categorias são apresentadas em capítulo seguinte que analisa a constituição de uma possível identidade para o herói brasileiro. 1.4 – Alguns tipos de herói José Rosamilton de Lima e Ivanaldo Oliveira dos Santos (2011) afirmam que o primeiro tipo de herói a surgir foi o clássico: homem de bravura que detém as estratégias certas para enfrentar seus obstáculos. Normalmente, esse tipo de herói realiza ações de generosidade, astúcia e ousadia, na defesa de causas que beneficiam sua comunidade ou nação. Além desse aspecto, ele também demonstra disposição para adquirir sabedoria durante sua jornada, o que o diferencia daquelas pessoas que buscam apenas a sobrevivência dentro dos diversos processos de submissão social. Contudo, os autores argumentam que esse herói clássico representava, em última instância, o poder de classes dominates. Assim, ele seria também denominado de herói trivial. “O verdadeiro 31 herói deve sempre lutar para estabelecer e garantir a ordem para proteger sua nação. O herói trivial busca a legitimação do poder vigente e, dessa forma, procura elevar sempre a classe social a que pertence” (LIMA; SANTOS, 2011, pp. 04 e 05). Leonardo Cunha (2011) busca delimitar o herói clássico a partir do pensamento de Aristóteles, para quem os heróis, tanto nas epopeias, como nas tragédias, seriam aqueles protagonistas “melhores do que nós”. Assim explanam Lima & Santos: O herói é quem leva a coragem ao máximo a ponto de sacrificar a própria vida por uma causa maior. As obras clássicas são construídas por determinadas classes sociais e permite-nos compreender o passado, repensando-o, criando novas sensibilidades e novas luzes para que se possa progredir no presente. (LIMA; SANTOS, 2011, p. 03). Refletindo sobre a categoria do herói do tipo clássico, Flávio Kothe (1987) primeiro tenta circunscrevê-lo como aquele herói pertencente à elite dominante, que tenta demonstrar o estrato ou a “classe” desta camada social. O autor subdivide esse herói clássico em herói épico e herói trágico. O primeiro destes seria aquele que tenta constituir sua grandeza através de uma série de “baixezas”, como mentir, matar, enganar. Apesar disso, ele possui um percurso de elevação. Por outro lado, como afirma Leonardo Cunha: O herói épico constitui-se como um personagem praticamente imaculado, um homem idealizado e virtuoso, possuidor de grande força, inteligência, bondade e senso de justiça. Imbuído destas qualidades e de um desafio grandioso, ele enfrenta uma série de obstáculos e adversários – podendo, inclusive, sofrer derrotas – mas, ao final, sai engrandecido da história (CUNHA, 2011, p. 42). Já o herói trágico tem um percurso de queda. Ele parece pertencer a um plano elevado, mas, aos poucos, descobre que seu agir fora errado. Geralmente, comete um erro ou falha mágica que o leva ao tropeço. Muitas vezes, essa falha está ligada ao orgulho ou a uma qualidade em excesso, como a autoconfiança. Esse herói representa, ao mesmo tempo, tanto seres superiores, como a fraqueza 32 e o vício do homem comum. Um dos mecanismos de destaque no herói trágico é a intensa luta contra o seu destino. Este último é superado somente ao final da trama, depois de muito esforço do herói que, durante este percurso, se torna mais humanizado. É através da queda que ele consegue redescobrir sua grandeza. Contudo, nem sempre isto significa recuperar o poder perdido ou mesmo a vida. Ele é o personagem principal ou a dominante do sistema constituído pela tragédia; “[...] é um raio que só atinge os altos carvalhos e não as plantas rasteiras” (KOTHE, 1987, p. 28). Assim, quanto maior a desgraça, maior também será sua grandeza. Diferentemente do herói épico, que se preocupa com obstáculos externos, a principal batalha do herói trágico é travada em seu interior, com seus dilemas éticos, morais, remorsos, sua própria consciência. Flávio Kothe (1987) coloca todo herói grego como um híbrido, um semideus, um ser que possui, ao mesmo tempo, uma dimensão humana e outra de divindade, uma parte fraca e uma parte forte. No seu íntimo, ele carregaria o pecado original de ser o resultado de uma violação ocorrida entre um ser humano e um deus. Refletindo a respeito dos heróis baixos, Kothe aponta para um tipo de herói às avessas: o pícaro – um personagem manipulador que usa de vários truques para sobreviver; quase sempre está com fome e inseguro. Buscando trabalhar o mínimo para obter o máximo. É exatamente a partir da sua marginalidade que ele consegue desvendar o sistema. Na opinião de Kothe, o louvor à preguiça e à vagabundagem deste tipo de herói carrega em si um implícito protesto contra o trabalho alienado. Contudo, ele não tem nenhum projeto político ou participação partidária. Apesar de seu cerne ser social, ele não abriga qualquer papel societário. No seu cotidiano, ele se faz de bobo e usa do riso para encenar o acaso e suas desvalias. Kothe argumenta que, pelo fato de o pícaro ser engraçado, a dissolução dos seus problemas se dá no riso, o que acaba sugerindo um eufemismo no trato da negatividade social. Normalmente, o pícaro aparenta não ter princípios morais. Ele finge cortejar os poderosos, mas acaba desnudando os mesmos, 33 desmascarando suas fraquezas. “O pícaro Macunaíma2 vai de um lado para o outro, sempre procurando viver às custas dos outros para não trabalhar. Macunaíma não é um herói sem nenhum caráter: ele tem o caráter de um pícaro, de um picareta, de um picarus brasiliensis” (KOTHE, 1987, p. 49). Joseph Campbel alega que a sociedade necessita de heróis porque eles representam uma constelação de imagens suficientemente poderosas para reunir, sob uma mesma intenção, as inúmeras tendências individualistas. O autor estabelece duas espécies de heróis. A primeira delas trata daqueles que escolhem realizar certa empreitada, preparando-se responsavelmente e intencionalmente para a proeza. A segunda diz respeito àqueles que são lançados à aventura; não era sua intenção, mas, de repente, eles se veem jogados naquela situação. Outra tipificação possível do herói é através do viés histórico no qual ele se vê inserido. Sidney Hook (1962) propõe uma distinção entre o herói como homem-momento e o herói como homem-época. O homem-momento é qualquer homem cujas ações tenham influenciado desenvolvimentos numa direção completamente diferente daquela que teria sido seguida se essas ações não tivessem sido perpetradas. O homem-época é um homem- momento cujas ações são conseqüências de extraordinária capacidade de inteligência, vontade e caráter, em vez de acidentes de posição. O simples homem-momento desempenha um papel na história semelhante ao do pequeno holandês que tapou com o dedo o buraco dos diques e salvou a cidade. (HOOK, 1962, pp. 130 e 131). Com o passar dos anos, o pensamento sobre mitos e heróis e suas possíveis tipologias mudou bastante. A partir do momento em que o homem adota o saber desenvolvido através dos métodos científicos, ele se afasta dos mitos, dos heróis e de qualquer princípio relacionado à espiritualidade ou às crenças costumeiras. O próprio esclarecimento do ser humano a partir da ciência exige a destruição de deuses e grandezas abstratas. 2 Personagem do romance homônimo (1928) de Mário de Andrade (1893-1945), adaptado para o cinema, em 1969, por Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988). 34 O saber produzido cientificamente é visto como conhecimento preciso e seguro, na medida em que apresenta mecanismos da razão e da evidência observacional e experimental. Na sociedade atual, o homem encontra-se amedrontado pelo natural e por aquilo que ele desconhece. “O homem torna-se dependente do próprio saber que produziu, à medida que sente necessidade de fazer uso dele para se manter no poder e possuir a mera ilusão de satisfação pessoal, algo que na percepção dos mitos se busca na divindade” (LIMA; SANTOS, 2011, p. 10). Por conta deste processo de ascensão da ciência, os mitos foram, aos poucos, se metamorfoseando, na tentativa de encontrar outros lugares de existência. O herói clássico, por exemplo, começou a ser visto como anacrônico, ou seja, antiquado, obsoleto, em desacordo com os costumes da modernidade. A história da literatura marca a passagem do herói divino para o herói humano, daí surge o personagem. Martin Cezar Feijó (1995) lembra que, na mitologia, o herói é visto como divino; durante a poesia épica, ele se torna unidade de sentimento e ação; nos relatos da história, é separado da realidade e, na literatura, o destino do herói é a sua própria iniciação que, muitas vezes, leva à redescoberta de si mesmo. Aos poucos, o herói foi se tornando menos mitológico e mais humano (FEIJÓ, 1995, p. 63). [...] à medida que o herói épico decai em sua “epicidade”, ele tende a crescer em sua “humanidade” e nas simpatias do leitor/espectador. Assim, o leitor sente-se mais emotivo por ver no herói características e semelhanças que estão relacionadas com maior proximidade da realidade da vida desse apreciador da literatura. (KOTHE, 1987, p. 14). Campbell também reflete sobre essa mudança no perfil do herói atual, alegando que, nos estágios finais das tradições locais, a lenda mitológica se abre para os heróis humanos, mais cotidianos ao tempo registrado. Contudo, aqueles que fazem as lendas raramente aceitam os grandes heróis como simples seres humanos que rompem as barreiras limitadoras dos seus semelhantes. Historicamente, sempre houve uma tendência de colocar nesses personagens poderes extraordinários. Muitas vezes, toda a vida do herói é apresentada como 35 uma grande sucessão de prodígios. Assim, encontra-se uma visão na qual o herói seria um indivíduo predestinado a tais façanhas. Contudo, Campbell concorda que o mito está em colapso na nossa época. Para muitos estudiosos, os mistérios perderam sua força, os símbolos já não interessam mais e o mito chega a ser denominado inverdade. Depois do desenvolvimento do método científico de pesquisa, o herói ganhou um novo papel. A tarefa do herói, a ser desempenhada hoje, não é a mesma do século de Galileu. Onde havia trevas, hoje há luz; mas é igualmente verdadeiro que, onde havia luz, hoje há trevas. A moderna tarefa do herói deve configurar-se como uma busca destinada a trazer outra vez à luz a Atlântida perdida da alma coordenada. [...] O problema não é senão o de tornar o mundo moderno espiritualmente significativo ou possibilitar que homens e mulheres alcancem a plena maturidade humana por intermédio das condições da vida contemporânea. (CAMPBELL, 2007, p. 373). Uma aproximação entre a mudança do papel do herói também pode ser encontrada nos escritos de Walter Benjamin (1892-1940) que pensa o herói como o verdadeiro objeto da modernidade. Em outras palavras, para viver a modernidade seria preciso uma verdadeira constituição heróica. Assim, o operário assalariado que trabalha para sobreviver e é escravizado pelo sistema capitalista, representaria o herói, uma vez que ele luta intensamente para ganhar seu sustento (BENJAMIN, 1989, p. 73). Conforme Leonor Areal (2003), diferentemente do modelo de herói clássico que tende para o ideal e que apresenta um caráter íntegro e benévolo, o herói pós-romântico moderno assume suas fraquezas e vive em conflito interior e em crise com o meio social. Seu comportamento e ações devem funcionar como modelos de identificação e/ou projeção para o público atual. Assim, ele se torna bem mais realista e, normalmente, promove reflexões sobre os problemas contemporâneos. Por conta desse posicionamento, Areal pensa que esse tipo de herói deve ser designado como anti-herói. Esse tipo de herói, agora desmistificado, é problemático e tem, em si, a ausência de algumas virtudes daquele herói do passado, como a honestidade e a 36 perseverança. Contudo, ele não deve ser confundido com o vilão, uma vez que não é o antagonista, mas, sim, uma espécie de herói ao contrário. Sua reação ao descompasso com o ambiente e com a comunidade ao seu redor pode ser demonstrada de várias formas, como, por exemplo, através do delírio, da utopia ou fantasia. Areal aponta, ainda, para dois tipos de anti-herói: aquele que entra em conflito com o mundo exterior e aquele cujo conflito se dá consigo mesmo e, a partir daí, segue até sua própria anulação. Neste segundo tipo, a solidão seria um fator marcante. Flávio Kothe (1987) diz que o percurso do herói moderno é a reversão do percurso do herói antigo. Enquanto, anteriormente, se colocava a questão do percurso individual ou grupal entre o alto e baixo da sociedade, a partir do processo de industrialização, o herói passa a ser o próprio questionamento da estruturação social em classe alta e classe baixa. 1.5 – Um passo na trajetória de aventuras do herói As reflexões sobre a jornada do herói estão presentes nas diversas culturas e em várias épocas. Apesar de suas variantes serem infinitas, alguns autores defendem que sua forma básica ou modelo permanece constante. No século passado, um dos teóricos que mais se debruçou sobre este tema foi Vladimir Propp (1895-1970). Ele produziu uma aprofundada investigação científica a respeito da jornada do herói, culminando com a confecção do texto Morfologia do Conto Popular Russo, datado de 1928, no qual divide cada conto em 31 unidades, denominadas de funções. Cada função representa um momento elementar na narrativa. Logo depois, a pesquisa de Propp foi retomada por outros investigadores, como Roland Barthes e Algerdes-Julien Greimas.3 Aqui, se faz necessária uma elipse histórica para levar a leitura até a visão de Joseph Campbell (1904-1987) a respeito da jornada do herói. Ele é um 3 Este momento da pesquisa sobre a jornada do herói será retomado adiante, tratando da constituição do modelo de análise estrutural da narrativa. 37 dos principais teóricos sobre o tema na atualidade e constrói um percurso padrão da aventura mitológica desse sujeito agente, através de uma fórmula representada nos rituais de passagem. Independentemente das inúmeras diferenças entre os heróis, sua jornada sofre poucas alterações do ponto de vista físico/estrutural. Dentro do percurso padrão da aventura do herói, Campbell (2007) formata uma análise absolutamente significativa para esta pesquisa. Trata-se da fórmula representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno, que pode ser considerada a unidade nuclear do monomito. “Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes” (CAMPBELL, 2007, p. 36). Aqui, tem-se o destaque para o herói dinâmico, ou seja, aquele que não está ligado a um desses mundos, demonstrando a possibilidade de transpor fronteiras. Yuri Lotman (1978) dialoga com essa proposta, informando que “A estrutura do mundo apresenta-se ao herói como um sistema de proibições, uma hierarquia de fronteiras que, aparentemente, não se pode transpor. Isto pode tanto ser a linha que separa a casa da floresta, no conto de fadas, como os vivos dos mortos, no mito” (LOTMAN, 1978, p. 118). Lotman argumenta que é exatamente esta transgressão da proibição que constitui o elemento significante da conduta do personagem, ou seja, o acontecimento que desenvolve o filme. Pode-se entender essa divisão do espaço do tema em duas fronteiras, como a forma mais elementar de segmentação. A própria transgressão não se realiza em um ato único, mas como resultado de uma microcadeia de acontecimentos. Campbell mostra a trajetória de aventura do herói sendo iniciada a partir de um chamado. Aqui, há que se destacar outro personagem importante para essa transposição do herói: o arauto ou agente anunciador da aventura. Normalmente, ele costuma se apresentar sombrio, repugnante ou aterrorizador, considerado maléfico. O arauto pode ser um animal, representando a fecundidade instintiva reprimida em cada um de nós. Também pode se apresentar como uma figura misteriosa que nos aponta para o desconhecido. Apesar de parecer 38 assustador, o arauto é o elemento que precisa ser encarado. Ele aparecerá como uma espécie de guia, marcando um novo período para a história. No primeiro estágio da jornada mitológica (o chamado à aventura), o destino faz a convocatória para o herói e o transfere do seio da sua sociedade para uma região desconhecida. Esta região de perigos e tesouros pode ser representada de formas variadas; contudo, Campbell alega que é sempre um lugar habitado por seres estranhamente fluidos e polimorfos e façanhas sobre- humanas. A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. (CAMPBELL, 2000, pp. 131 e 132). Vale ressaltar que nem todos assumem a jornada. Alguns optam pela recusa ao chamado. A recusa à convocação converte a aventura em sua contraparte negativa. Ela explicita uma negação à renúncia daquilo que aquele que foi chamado considera interesse próprio. “Aprisionado pelo tédio, pelo trabalho duro ou pela „cultura‟, o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado e se transforma numa vítima a ser salva” (CAMPBELL, 2007, pp. 66 e 67). Campbell também relaciona o herói com a religião. Nessa concepção, as grandes religiões ensinam que as provações da jornada enfrentada pelo herói representam parte significativa da vida e que não há qualquer recompensa sem renúncia. Buscando defender este lugar de fala, cita um fragmento do Alcorão – “Você acha que pode ter acesso ao Jardim das Delícias sem passar pelas provações daqueles que o antecederam?” – e mais um trecho do Evangelho de São Mateus, na Bíblia, em que Jesus diz: “Grande é a porta e estreito o caminho que conduz à vida, e poucos os que o encontram”. Na tradição judaica, não seria diferente: os heróis também enfrentam duros testes antes de cumprirem seu destino. 39 A partir daqui, este estudo se desenvolve sobre aqueles que efetivamente não recusaram o chamado. Para estes, o primeiro encontro dentro da jornada do herói se dá, nas palavras de Campbell, com uma figura protetora – muitas vezes, um ancião ou anciã – cuja maior função é fornecer ao aventureiro um tipo de amuleto ou anteparo ou, ainda, conselho que irá protegê-lo contra forças ocultas com as quais ele irá se deparar. A forma masculina não é comum para esses ajudantes do herói. Normalmente, observam-se anciãs solícitas e fadas- madrinhas caracterizando as lendas e contos europeus. Nas lendas dos santos cristãos, esse papel costuma ser desempenhado pela Virgem que, pela sua intercessão, pode obter a misericórdia do Pai. Essa figura representa o poder benigno e protetor do destino. A fantasia é uma garantia – uma promessa de que a paz do Paraíso, conhecida pela primeira vez no interior do útero materno, não se perderá, de que ela suporta o presente e está no futuro e no passado e de que, embora a onipotência possa parecer ameaçada pela passagem de limiares e pelos despertares da vida, o poder protetor está, para todo o sempre, presente ao santuário do coração, e até imanente aos elementos não familiares do mundo, ou apenas por trás deles. Basta saber e confiar, e os guardiões intemporais surgirão. (CAMPBELL, 2007, p. 76). As mitologias mais elevadas desenvolvem essa função através da figura do guia, do mestre, do barqueiro, do condutor das almas para o além. Na mitologia cristã, encontra-se como exemplo o Espírito Santo. Depois de ter decidido aceitar o chamado e de ter encontrado ajuda com esta figura protetora, o herói segue a aventura até chegar ao guardião do limiar. Este defensor marca o limite da vida presente do herói. Além dessa demarcação, está o desconhecido, o perigo. Aqui, pode-se fazer uma analogia à criança fora do olhar paternal ou ainda ao índio fora da proteção de sua tribo. Para a maioria das pessoas (os comuns), há um grande temor em dar os primeiros passos em direção ao desconhecido. A maior parte delas prefere permanecer nos limites indicados. As regiões do desconhecido (deserto, selva, fundo do mar, terra estranha) são campos livres para a projeção de conteúdos inconscientes. Apesar de ser conveniente não desafiar os vigias dessa fronteira estabelecida, será apenas ultrapassando esses limites e provocando o aspecto 40 destrutivo dessa força que o herói passará para uma nova região da experiência. Campbell crê que a passagem do limiar mágico também representa a passagem para uma esfera de renascimento, que é simbolizada pela imagem do útero ou ventre da baleia. Aqui, o herói é jogado no desconhecido, originando a impressão de que morreu. A analogia com o devoto se dá no sentido de que este último, ao entrar no templo, passa por uma transformação: morre para a temporalidade e retorna ao útero do mundo, ao centro do mundo, ao paraíso terrestre. Em lugar de passar para fora, para além dos limites do mundo visível, o herói vai para dentro, para nascer de novo. O desaparecimento corresponde à entrada do fiel no templo – onde ele será revivificado pela lembrança de quem e do que é, isto é, pó e cinzas, exceto se for imortal. O interior do templo ou ventre da baleia, e a terra celeste, que se encontra além, acima e abaixo dos limites do mundo são uma só e mesma coisa. Eis por que as proximidades e entradas dos templos são flanqueadas e defendidas. [...] A entrada num templo e o mergulho do herói pelas mandíbulas da baleia são aventuras idênticas; as duas denotam, em linguagem figurada, o ato de concentração e renovação da vida. (CAMPBELL, 2007, pp. 92 e 93). Depois de cruzar o limiar, o herói deve sobreviver a uma sucessão de provas (a fase favorita do mito-aventura) para conquistar os momentos de iluminação. Roberto da Matta (1997) afirma que as provas e obstáculos vivenciados pelo herói revelam a dureza da vida e do mundo. Muitas vezes, os heróis se encontram sozinhos, vivendo de forma isolada. Assim, eles precisam demonstrar uma força ainda maior diante dos obstáculos. Aqui, segundo Roberto da Matta, ficaria explícita a oposição entre casa e rua (família/mundo). Nesse sentido, a rua representaria um universo cruel, hostil e um ambiente de luta. Voltando a Campbell, verifica-se que o efeito da aventura bem-sucedida do herói é a abertura e a liberação do fluxo da vida no corpo do mundo. A própria aventura também pode ser uma forma de recompensa para o herói. Ele deve seguir seu próprio caminho, sem proteção, em um campo de poderes superiores àqueles que conhecemos. A provação aparece como um aprofundamento do problema do primeiro limiar. Vale ressaltar que o próprio conceito de limiar é um tanto vago e abstrato, mesmo para Campbell (2000, p. 140): “O limiar, a superfície comum ao que pode ser conhecido e ao que nunca será descoberto, porque é um 41 mistério que transcende todo ser humano. O que é a fonte da vida? Ninguém sabe”. Após chegar ao seu objetivo e vencer as lutas contra os inimigos, o herói aventureiro ainda precisa retornar com seu troféu ou mecanismo impulsionador da vida – também conhecido como limiar. Ele deve trazer os símbolos da sabedoria para o reino humano, onde a bênção alcançada por ele pode servir a toda população. O seu retorno é descrito como a volta do além. Se as forças abençoarem o herói, ele agora retorna sob sua proteção (emissário); se não for esse o caso, ele empreende uma fuga e é perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar do retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A benção que ele trás consigo restaura o mundo (elixir). (CAMPBELL, 2007, p. 242). Flávio Kothe (1987) diz que, apesar dos perigos que o herói corre em seu dia-a-dia, quase sempre ele tem assegurado que, no fim, tudo dará certo. Isso por conta da existência de um sonho de valorização dos mais fracos. O autor coloca o muito tradicional happy end das histórias de heróis como a restauração da situação anterior à violação inicial da norma. Nesse sentido, estaria implícita a posição de que a felicidade é a manutenção do status quo. As obras triviais tenderiam a este “final feliz” que corresponderia ao desejo de felicidade inerente a todo ser humano. “Nas narrativas triviais, os heróis „de direita‟ procuram defender o status quo e os valores da classe alta como os valores altos da sociedade, enquanto os heróis “de esquerda” procuram inverter esse processo” (KOTHE, 1987, p. 88). Na visão de Campell, o primeiro problema do herói que retorna ao seu lugar de origem consistiria em aceitar como reais as alegrias passageiras e as banalidades da vida. Após ele ter passado por uma “experiência da visão de completeza da vida, que traz satisfação à alma”, esta se torna uma tarefa difícil. O mundo divino e o mundo humano se apresentariam tão diferentes entre si, como a vida e a morte ou o sol e a lua. 42 1.6 – De Campbell a Vogler: levando a jornada de aventuras para o cinema O mitólogo Joseph Campbell influenciou diversos estudiosos a respeito da discussão do mito do herói. Um deles, o pesquisador, roteirista e analista de histórias para cinema Christopher Vogler, defende que a jornada do herói é mais do que apenas a descrição de padrões oculto da mitologia. Pouco depois de começar a trabalhar na Companhia Walt Disney e partindo do livro O herói de mil faces de Campbell, Vogler escreveu um memorando intitulado “Guia prático de „O herói de mil faces‟”. Sua pesquisa foi se expandido até a consolidação da primeira versão publicada do livro A jornada do escritor, em 1998. Na primeira parte da obra, o autor sintetiza e ressignifica as 19 etapas da jornada do herói apresentadas por Joseph Campell em 12 estágios da trajetória de aventuras em uma versão voltada para a sétima arte. Aqui cabe uma comparação esquemática quanto à terminologia utilizada nas duas obras: A JORNADA DO ESCRITOR O HERÓI DE MIL FACES Primeiro ato Partida, Separação Mundo Comum Mundo Cotidiano Chamado à Aventura Chamado à Aventura Recusa do Chamado Recusa do Chamado Encontro com o Mentor Ajuda Sobrenatural Travessia do Primeiro Limiar Travessia do Primeiro Limiar Barriga da Baleia Segundo ato Descida, Iniciação, Penetração Testes, Aliados, Inimigos Estrada de Provas Aproximação da Caverna Oculta Encontro com a Deusa Provação A Mulher como Tentação Sintonia com o Pai Apoteose Recompensa (apanhando a espada) A Grande Conquista 43 Terceiro ato Retorno Caminho de Volta Recusa do Retorno Vôo Mágico Resgate de Dentro Travessia do Limiar Retorno Ressurreição Senhor de Dois Mundos Retorno com o Elixir Liberdade de Viver A segunda parte apresenta os principais arquétipos encontrados, os dramatis personae relacionados ao mito do herói. Esses 12 estágios da jornada do herói apontados por Vogler são aqui utilizados como balizas para a constituição das análises fílmicas propostas e das reflexões a respeito dos heróis das narrativas cinematográficas desenvolvidas a partir do período da Retomada no Brasil. Vogler começa sua análise evidenciando as diferenças encontradas em diversas culturas na interpretação do papel do herói. Alguns países, como Austrália e Alemanha parecem ser “ligeiramente „herófobas‟”. Os australianos desconfiam dos heróis porque este conceito foi utilizado para seduzir seus jovens a lutarem nas batalhas britânicas. No caso da cultura alemã, nazismo e militarismo manipularam e distorceram os poderosos símbolos do mito do herói, evocando suas paixões para ações bem opostas a este arquétipo, como desumanizar, escravizar e destruir. Christopher Vogler lembra que, de um modo geral, a jornada do herói foi muito criticada como sendo uma encarnação de uma cultura guerreira dominada por homens. Em alguns momentos históricos e em determinadas regiões e países (como a Alemanha), acabou sendo usada como peça de publicidade para recrutamento de rapazes nas forças armadas. Para muitas mulheres, a jornada do herói também era criticada por acreditarem ser uma teoria masculina, engendrada pelos homens para impor seu domínio. Sobre esse aspecto, Vogler acredita que há uma distinção efetiva na maneira de se construir narrativas entre personagens heroicos homens ou mulheres: 44 Quando se trata de uma mulher, isso impõe ciclos, ritmos, pressões e necessidades distintas. Pode haver uma diferença real na forma das jornadas dos homens e das mulheres. A jornada dos homens pode ser, sob certos aspectos, mais linear, evoluindo de uma meta exterior para a seguinte, ao passo que a jornada das mulheres pode se desenvolver em espiral para o interior e para o exterior. Um outro modelo possível consistiria numa série de anéis concêntricos com a mulher fazendo a jornada para dentro, na direção do centro e, em seguida, se expandindo para o exterior outra vez. A necessidade masculina de sair e vencer obstáculos, realizar, conquistar e possuir pode ser substituída na mulher pelo empenho em preservar a família e a espécie, fazer um lar, dedicar-se às emoções, chegar a um acordo ou cultivar a beleza. (VOGLER, 2006, p. 20). A partir daqui, apresentam-se, de forma sucinta, os 12 estágios da jornada do herói, já direcionados para o cinema, conforme versão constituída por Vogler. 1. Mundo Comum: Grande parte das histórias desloca o herói para fora do seu mundo ordinário, cotidiano e o introduz em um Mundo Especial, novo e estranho. O Mundo Comum representa o lugar de onde o herói veio; seu contexto, sua base, seu passado e, normalmente, serve de base para se estabelecer uma comparação com o Mundo Especial. É a partir do Mundo Comum que o espectador conhece a história pregressa e todo tipo de informação essencial para construir, em seu imaginário, o conhecimento sobre determinado herói e a temática da história que será desenvolvida. Para a maioria dos heróis, o Mundo Comum é, contraditoriamente, uma condição estática, mas instável. 2. Chamado à Aventura: Apresenta-se ao herói um problema, um desafio, uma aventura a ser realizada. Assim, seria preciso algum tipo de vento para catalisar ou dar partida na história. Contudo, também haveria a possibilidade de este Chamado ser apenas algo que se agita dentro do próprio herói, como uma espécie de mensageiro inconsciente que traz os sinais ou desejos de mudanças através de procedimentos, como, por exemplo, sonhos e visões. Uma vez aceito tal desafio, ele não pode mais permanecer no seu Mundo Comum. O Chamado à Aventura estabelece o objetivo do “jogo” e do herói. Muitas vezes, tal Chamado é feito a partir da manifestação do arquétipo do Arauto. 45 3. Recusa do Chamado (o Herói Relutante): Normalmente, este é o momento em que o herói demonstra seus primeiros medos, hesitando a partir em sua aventura. Isso pode ser compreensível, uma vez que o Chamado à Aventura lhe propõe o terror ao desconhecido. Aqui, ele ainda pode estar pensando em recuar. Essa parada antes que a jornada realmente comece demonstra para o público o quanto é perigosa a aventura. Tal pausa serve para medir as possíveis consequências e também faz com que o herói examine essa nova busca com cuidado, podendo promover uma redefinição de seus objetivos anteriores ou mesmo do foco da aventura. Assim, é necessário que surja alguma nova influência para ajudá-lo a vencer esse medo, uma nova ofensa à ordem natural das coisas ou o encorajamento de um Mentor. 4. Encontro com o Mentor: A relação do herói com o Mentor é um dos temas mais comuns da mitologia e também um dos mais ricos em valor simbólico. Representa o vínculo entre pai e filho, mestre e discípulo, Deus e o ser humano, entre tantos outros. Seus inúmeros serviços ao herói incluem proteção, orientação, experimentação, treinamento e fornecimento de dons ou presentes mágicos. O Encontro com o Mentor é o estágio da Jornada do Herói em que este último recebe as provisões, o conhecimento e a confiança necessários para superar os medos relativos à aventura. É importante salientar que o mentor só pode ir até certo ponto da narrativa com o herói. Mais adiante, este último deve seguir sozinho ao encontro do desconhecido. 5. Travessia do Primeiro Limiar: É o momento efetivo em que o herói realmente se compromete com a aventura, resolve enfrentar o problema e partir para a ação. Aqui, a aventura realmente inicia. O herói já ouviu o Chamado, manifestou suas dúvidas e apreensões, superou-as, já fez todos os preparativos e, agora, vai atravessar o primeiro limiar. Essa coragem especial apresentada pelo herói é chamada de salto de fé. Alguns filmes vão apresentar essa travessia também como uma barreira física, como portões, pontes, desertos, muralhas, desfiladeiros, oceanos, rios. É importante salientar que a Travessia pode tanto ser um momento único como também uma passagem extensa na história. Neste mesmo estágio, normalmente, o herói se encontra com algum tipo de Guardião do Limiar, um tipo de figura poderosa que bloqueia a passagem do herói antes que a 46 aventura comece. Além disso, este arquétipo também é usado para questionar a capacidade do herói em enfrentar todos os desafios da nova aventura e sobreviver. Inevitavelmente, os heróis precisam violar os limites impostos pelo Guardião do Limiar, descobrindo uma maneira de passar ao largo ou de enganar este Guardião. 6. Testes, Aliados e Inimigos: Retrata o início do aprendizado das regras do Mundo Especial. Neste momento, se observa como o herói e seus novos aliados reagem à tensão. Os testes para o herói representam uma das funções mais importantes do seu período de adaptação ao Mundo Especial. Aqui, ele se prepara para as provações ainda maiores que estão por vir. Nesse sentido, o herói precisa descobrir em quem pode ou não confiar, identificando aliados e inimigos. 7. Aproximação da Caverna Oculta: O herói chega à fronteira de um lugar perigoso onde está escondido o objeto de sua busca. Quando o herói entra neste lugar temível, atravessa o segundo limiar. Muitas vezes, ele se detém do lado de fora durante algum tempo, a fim de se preparar, planejar e até enganar os protetores da entrada deste lugar, no qual pode estar a provação central da aventura. Na mitologia, a Caverna Oculta pode representar a “terra dos mortos”. Nesse caso, o herói pode ter que descer aos infernos para salvar sua amada ou enfrentar algum grande perigo. 8. Provação: Este é o exato momento de confronto direto do herói com seu maior medo. Ele enfrenta a possibilidade da morte e é levado ao extremo numa batalha contra algum tipo de força contrária e terrivelmente hostil – normalmente, seu maior desafio e mais temível adversário. É considerado o momento mais crítico da história. O herói tem de morrer ou parecer que morre para poder renascer em seguida. Este aspecto é umas das principais fontes da magia do mito heroico. O resultado deste reviver é uma sensação de entusiasmo e euforia para o público que já se identificara com o herói nos estágios anteriores. O herói de cada história é um iniciante, sendo introduzido nos mistérios da vida e da morte, assim, como alguns ritos de passagens utilizados em determinadas confrarias e sociedades secretas. É importante mencionar que muitos heróis não se limitam a visitar a morte e voltar para casa. Quase sempre, eles voltam mudados, transformados, 47 uma vez que, dificilmente, uma pessoa sai de uma experiência de quase morte sem modificar-se internamente, como explica Vogler: A Provação nos mitos significa a morte do ego. Agora o herói se torna, plenamente, uma parte do Cosmos, morrendo para a velha visão limitada das coisas e renascendo para uma nova consciência de conexões. Os antigos limites do “Eu” foram ultrapassados ou aniquilados. De certa maneira, o herói torna-se um deus, possuidor da capacidade divina de pairar acima dos limites normais da morte, e é alguém capaz de ter aquela visão mais ampla que revela como todas as coisas estão ligadas. Os gregos chamam este momento de apoteose – um degrau acima do entusiasmo, quando meramente se tem o deus dentro de si. No estado de apoteose, somos o deus. (VOGLER, 2006, p. 174). 9. Recompensa (Apanhando a Espada): Depois de sobreviver a essa quase morte, trazida pelo momento de Provação, o herói é capaz de conseguir aquilo que viera buscar: sua recompensa. Este triunfo pode até ser enganador, revelando, na sequência, novos perigos. Contudo, neste momento, o herói experimenta o prazer da vitória e do apanhar da Recompensa. Um dos aspectos essenciais desta etapa é que o herói tome posse daquilo que viera procurar. Com maior frequência, ele apanha algum tipo de tesouro; contudo, algumas vezes, tal elemento desejado não é necessariamente um objeto, mas o conhecimento ou a experiência que conduzem a uma compreensão melhor de determinado fato ou, ainda, a reconciliação com algum tipo de força anteriormente hostil. Tendo alcançado a Recompensa, o herói pode se tornar mais atraente. Outro termo utilizado para representar a Recompensa é o Santo Graal, antigo símbolo de tudo que seria ligado à alma. Este estaria ligado diretamente à ideia de Recompensa como Elixir, ou seja, um tipo de meio ou veículo para se alcançar um remédio que cure qualquer mal ou restaure a vida. Na alquimia, o elixir representa um dos passos para a pedra filosofal, capaz de transmutar metais, criar vida e transcender a morte. 10. Caminho de volta: Embora o Mundo Especial apresente muitos encantos, poucos são os heróis que decidem ficar no mesmo. A maioria toma o Caminho de Volta, regressando ao seu ponto de partida e, muitas vezes, buscando aplicar as lições aprendidas no Mundo Especial. Neste trecho da narrativa, o herói começa a lidar com as consequências de ter confrontado as forças obscuras durante a 48 Provação. Normalmente, o herói é perseguido por essas forças que desejam vingança pela perturbação sofrida. Uma sombra vingadora é capaz de dar um golpe muito duro no herói. Muitas vezes, neste ponto da narrativa, o herói precisa decidir o que é mais importante para ele. 11. Ressurreição: Trata-se de uma última depuração ou Provação do herói. Antes de conseguir voltar ao seu Mundo Comum, ele precisa se purificar através de um tipo de renascimento. Assim, muitas vezes, este será o segundo momento de vida-ou-morte do herói. É uma espécie de exame final do herói que se transforma exatamente a partir desses momentos de quase morte. A Ressurreição é a última tentativa do herói para conseguir grandes mudanças em termos de atitude e comportamento. É preciso provar que o antigo “eu” mudou, se transformou com o decorrer da narrativa. Aqui, se apresenta o clímax da história, no qual o herói precisa provar que adquiriu conhecimento no Mundo Especial e, agora, irá levá-lo para o Mundo Comum. Tal clímax também pode sugerir a catarse ao espectador, ou seja, o alívio da ansiedade ou do sofrimento construídos durante a narrativa. Em um plano mais simplificado, a Ressurreição pode ser apenas o último confronto do herói com a morte, a partir de uma batalha ou duelo com o vilão ou a Sombra. 12. Retorno com o Elixir: Ao retornar para o Mundo Comum, normalmente, o herói leva consigo algum tipo de tesouro ou ensinamento do Mundo Especial, que é chamado de Elixir. Algumas vezes, ele pode ser algo material conquistado durante a trajetória, mas também pode ser representado pelo amor, pela liberdade, pela sabedoria ou, simplesmente, pela possibilidade de volta para casa. Uma das funções do Retorno é efetuar a distribuição final de recompensas e castigos, visando restaurar o equilíbrio da história. O Elixir trazido pelo herói pode até ter o poder de restaurar a vida no Mundo Comum. Voltar com o Elixir é o último teste do herói. Ele precisa demonstrar que está maduro para compartir com os outros o fruto de sua conquista. Vogler recorda que a ordem dos estágios citada por ele é apenas uma das variações possíveis. Alguns podem ser suprimidos e outros acrescentados. O autor defende que a Jornada do Herói se traduz facilmente para os dramas 49 contemporâneos, bastando substituir as figuras simbólicas e os adereços por equivalentes modernos. Os heróis modernos podem não estar entrando em cavernas e labirintos para lutar contra animais mitológicos, mas não deixam de entrar em um Mundo Especial e numa Caverna Oculta quando se aventuram pelo espaço, pelo fundo do mar, pelos subterrâneos de uma cidade moderna ou quando mergulham em seus próprios corações. [...] A Jornada do Herói é infinitamente flexível, capaz de variações infinitas sem sacrificar nada de sua magia, e vai sobreviver a nós todos. (VOGLER, 2006, p. 47). Com a difusão das narrativas heroicas, a partir dos grandes veículos de comunicação, a Jornada do Herói se tornou parte do conhecimento comum sobre narrativas e seus princípios são cada vez mais utilizados para se criar filmes de grande alcance popular. Contudo, analisando o trabalho do roteirista de cinema, o próprio Vogler alerta para o que ele chama de autoconscientização – a confiança excessiva na linguagem tradicional ou naqueles últimos conceitos da moda que podem resultar em produtos descuidados e estereotipados. O uso preguiçoso e superficial dos termos da Jornada do Herói, tomando de forma demasiadamente literal seu sistema metafórico, ou impondo arbitrariamente suas formas em todas as histórias, pode provocar um embrutecimento dos sentidos. Eles devem ser usados como uma forma, não uma fórmula, um ponto de referência e uma fonte de inspiração, não uma ordem ditatorial. (VOGLER, 2006, p. 18). O imperialismo cultural, principalmente norte-americano, que exporta de forma agressiva as técnicas de Hollywood trouxe o perigo das linguagens e dos métodos padronizados e de massa. Muitas vezes, tais valores acabam conseguindo suprimir ou minimizar importantes diferenças locais, que apresentam versões e sabores singulares de outras culturas. Nesse sentido, a Jornada do Herói não deve ser ingenuamente interpretada, cegamente copiada ou inquestionavelmente adotada. Precisa ser pensada como uma ferramenta útil para contar histórias das variadas culturas, apresentando suas qualidades únicas e inimitáveis. 50 Conforme o próprio Vogler sugere, ao contrário da maioria das histórias de heróis, que eventualmente chegam a um fim, a trajetória para compreender e articular a perspectiva da Jornada do Herói é infinita. Novas visões estão sempre aparecendo e fazendo com que se adapte aos novos tempos, tribos ou valores. Além da Jornada do Herói, Christopher Vogler também retoma o conceito de arquétipo desenvolvido pelo psiquiatra e psicoterapeuta suíço, Carl Gustav Jung (1875-1961). Para ele, o termo arquétipo designa antigos padrões de personalidade que são uma herança compartilhada entre os membros da raça humana. Assim, os mitos poderiam ser interpretados também como sonhos de um inconsciente coletivo. Vogler defende que o conceito de arquétipo é ferramenta indispensável para se compreender o propósito ou função dos personagens na história. Nesse sentido, os arquétipos não devem ser vistos como papeis rígidos para os personagens, mas, sim, como uma função flexível que ele toma para si em um determinado momento da narrativa, a fim de obter determinados resultados. Analogicamente, os arquétipos podem, então, ser visualizados como máscaras, utilizadas temporariamente pelos personagens que podem, inclusive, começar a história com uma máscara e trocar para outra. O autor também sugere que os arquétipos clássicos podem ser vistos como facetas da personalidade do herói. Sob essa perspectiva, o herói percorreria a história reunindo e incorporando fragmentos de energia e/ou traços de outros personagens, aprendendo com eles até se transformar em um ser mais completo. Conforme Vogler, os arquétipos que ocorrem com mais frequência nas histórias são: o próprio herói, o mentor, o guardião do limiar, o arauto, o camaleão, a sombra e o pícaro. Ele argumenta que os arquétipos constituem uma linguagem de personagens muito flexível, que apresenta a função que determinado personagem desempenha em um dado momento da história: a) Herói: Analisando o herói como um tipo de arquétipo, Vogler lembra que a raiz da palavra em grego significa proteger e servir. Nesse sentido, um herói, na sua concepção, é alguém que está disposto a sacrificar suas próprias necessidades em benefício de outros. A raiz da palavra, então, estaria ligada ao sacrifício de si 51 mesmo. Dentro da função psicológica do herói, ele seria o indivíduo capaz de transcender os limites e ilusões do ego. Contudo, inicialmente, eles se confundem com o ego. Para Vogler, tal arquétipo do herói representa a busca da identidade e totalidade do ego, a incorporação de diversas partes em um ser integral. Dentre as funções dramáticas do herói, Vogler cita seis principais: identificação com o público; crescimento ou aprendizado; desenvolvimento da ação ou da atividade de maior risco ou responsabilidade; capacidade de sacrifício (“fazer sagrado”); e de lidar com a morte ou com situações de quase morte. Os heróis nos ensinam a lidar com a morte. Eles podem sobreviver, provando que a morte não é tão dura. Podem morrer (ainda que simbolicamente) e renascer, provando que ela pode ser transcendida. Podem morrer uma morte de herói quando transcendem a morte ao oferecer suas vidas por uma causa, uma ideia, um grupo. O verdadeiro heroísmo aparece nas histórias em que o herói se oferece no altar da sorte, disposto a correr o risco de que sua busca de aventuras possa levar ao perigo, à perda ou à morte. [...] Os heróis que funcionam melhor são aqueles que experimentam o sacrifício. Ao longo do caminho pode ser que tenham que entregar a amada ou um amigo. Ou podem ter que desistir de algum vício querido ou excentricidade, como preço para entrar numa nova vida. (VOGLER, 2006, p. 55). b) Mentor: Figura que ajuda ou treina o herói, ensinando-o, protegendo-o ou lhe dando determinados dons. Vogler lembra que a palavra mentor vem da Odisseia (de Homero), na qual um personagem chamado Mentor guia o jovem herói, Telêmaco, em sua jornada heróica. Na mesma história, é a deusa Atena que ajuda Telêmaco, assumindo a forma de Mentor. A função psicológica dessa máscara é, inicialmente, a representação do deus dentro da própria pessoa. O mentor representa as mais elevadas aspirações dos heróis, aquilo em que o herói pode se transformar se persistir em sua jornada. Dentre as principais funções dramáticas desta máscara destacam-se as ações de ensinar ou treinar, prover o herói de alguma ajuda ou presente necessário, inventar mecanismos de auxílio para o herói, promover a consciência do herói, motivar o herói e ajudá-lo a vencer seu medo. Com freqüência os mentores falam a voz de um deus, ou são inspirados pela sabedoria divina. Os bons mestres e os mentores entusiasmam, no sentido original da palavra. “Entusiasmo” deriva 52 do grego em theos, em deus, significando “inspirado por deus, tendo um deus em si, ou estando na presença de deus”. (VOGLER, 2006, p. 62). c) Guardião do Limiar: Um tipo de ser que impede a passagem para o Mundo de Aventuras. Bloqueia temporariamente o caminho do herói. Normalmente, não é o principal vilão da história. Representa um tipo de capataz desse vilão, que guarda o acesso que leva até seus superiores. Sua função psicológica pode estar ligada às neuroses, cicatrizes emocionais, vícios, dependências, autolimitações que seguram o crescimento e o progresso de determinado personagem. Sua principal função dramática é testar o herói, imputando a ele um tipo de enigma ou teste. Tal máscara também contribui dramaticamente para o reconhecimento dos sinais de um novo poder do herói. Ele aprende a ler os sinais do guardião do limiar. d) Arauto: Pode ser uma pessoa real, uma figura dos sonhos ou mesmo uma nova ideia encontrada. Lança desafios e anuncia a vinda de uma mudança significativa na trajetória do herói, a instabilidade que irá acontecer naquele Mundo Comum e a necessidade de o herói correr riscos e se lançar à determinada ação. Tal Chamado pode parecer, à primeira vista, como algo perturbador ou desorientador para o herói. Tem a possibilidade de se apresentar como um personagem positivo, negativo ou neutro. É comum que os heróis não consigam distinguir se o personagem que faz uso de tal máscara é aliado ou inimigo. Sua função psicológica é exatamente chamar o herói à mudança. A principal função dramática do arauto é dar motivação ao herói, lançando a ele um desafio e desencadeando ação na história. e) Camaleão: Personagem em constante metamorfose, instável por natureza. Sua aparência e estado de espírito mudam assim que é examinado de perto. A mudança pode ser vista tanto pelo herói quanto pelo público. Sua função psicológica é expressar a energia do animus (elemento masculino no inconsciente feminino) e da anima (elemento feminino no inconsciente masculino) – termos utilizados por Carl Jung. Segundo a teoria do psiquiatra, toda pessoa teria um conjunto completo tanto de qualidades femininas, como de masculinas. Ambas seriam necessárias para a sobrevivência e o equilíbrio interno. Contudo, durante a vida, homens e mulheres teriam este segundo lado energético reprimido. Nesse 53 sentido, o camaleão permite a expressão deste tipo de força interna inconsciente e poderosa. Catalisando o animus ou a anima, o camaleão pode ser uma figura positiva ou negativa para o herói, ajudando-o ou procurando promover sua destruição. Personagens que se transformam, como vampiros e lobisomens são uma espécie de ecos simbólicos dessa qualidade de mudança tipicamente encontrada no arquétipo de camaleão. Sua função dramática é trazer dúvida e suspense à história. Normalmente, ele confunde ou intriga o herói. f) Sombra: Representa a energia do lado obscuro, os aspectos não expressos, irrealizados ou rejeitados. A sombra tem sua função psicológica relacionada com mecanismos reprimidos do interior de um indivíduo, seus segredos e todas aquelas características que ele deseja renunciar ou arrancar de si. Tais faces negativas da sombra podem ser projetadas tanto no interior do próprio herói – quando ele está paralisado por dúvidas ou culpa –, como em personagens conhecidos como vilões, inimigos ou antagonistas do herói. Os dois primeiros desejam a aniquilação do herói. Já o terceiro pode não se apresentar como uma força tão hostil, apenas propondo discordâncias em relação à tática do herói. Já a função dramática da sombra é desafiar o herói. g) Pícaro: Incorpora as energias da vontade de pregar peças e do desejo de mudança. Normalmente, é expresso por manifestações cômicas, como palhaços. Sua função psicológica é podar os grandes egos e, a partir do riso, chamar a atenção do espectador para o desequilíbrio ou absurdo de uma situação psicológica estagnada. Sua função dramática é promover o alívio cômico, reavivando o público. Para isso, provocam confusões. Após explanar sobre a mitologia do herói, um dos arcabouços para as análises por vir, e para se debruçar sobre o que se identificaria como herói brasileiro cabe abordar a questão da identidade, além de contextualizar o cinema brasileiro no momento aqui destacado. 54 Capítulo 2 – PROJETANDO UMA IDENTIDADE CONSTITUTIVA PARA O HERÓI NO CINEMA BRASILEIRO 2.1 – Identidade e diferença Neste estudo, antes que se busque delimitar um herói brasileiro, é preciso estabelecer mecanismos reflexivos sobre a própria constituição do Brasil e da identidade do povo brasileiro. Para isso é proposto um caminho que busca promover aproximações com alguns dos conceitos defendidos por Stuart Hall e Kathryn Woodward (2011) que explicitam a necessidade do cuidado na tentativa de se definir identidade. Em uma aproximação rápida, pode-se pensar identidade como simplesmente aquilo que se é, como, por exemplo, ser brasileiro, ser negro ou ser heterossexual. “A identidade assim concebida parece ser uma positividade („aquilo que sou‟), uma característica independente, um fato autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é autocontida e autossuficiente” (SILVA, 2011, p. 74). Nessa maneira de pensar, a diferença se apresentaria em oposição à identidade, representando aquilo que o outro é. Mesmo aqui, já é possível perceber que identidade e diferença se encontram em uma relação de estreita dependência. Contudo, a maneira afirmativa como normalmente expressamos sobre a identidade pode deixar velada esta relação. Quando eu digo “sou brasileiro” parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. “Sou brasileiro” – ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros. A afirmação “sou brasileiro”, na verdade, é parte de uma extensa cadeia de “negações”, de expressões negativas de identidade, de diferenças. Por trás da afirmação “sou brasileiro” deve-se ler: “não sou argentino”, “não sou chinês”, “não sou japonês” e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável. [...] Dessa forma, as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre identidade. Identidade e diferença são inseparáveis”. (SILVA, 2011, p. 75). 55 Normalmente, a identidade é tida como o ponto de referência para se definir a diferença. Tal posicionamento pode ser visto como a tendência de tornar o que somos ou pensamos ser como a norma ou regra para avaliarmos também aquilo que acreditamos que não somos. Entretanto, Silva lembra que há também visões mais radicais nas quais a diferença seria vista em primeiro lugar. Nesse sentido, passaria a ser entendida como processo e não apenas como resultado. De uma forma ou de outra, a identidade e a diferença não podem ser compreendidas fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido. Ambas representam o resultado de um processo de produção simbólica e discursiva, uma relação social. Elas não são simplesmente definidas, mas impostas e disputadas. Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo de diferentes grupos sociais, assimetricamente situados de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. [...] A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. (SILVA, 2011, pp. 81 e 82). Se quando alguém diz o que é, também acaba por dizer aquilo que não é, há, conjuntamente, a declaração de quem pertence e quem não pertence, aquele que fica dentro e o indivíduo que está de fora. Essa fronteira também demarca classificações sociais e relações de poder entre “nós” e “eles”. Muitas vezes, as relações de identidade e diferença ordenam-se em torno de oposições binárias, como masculino/feminino, branco/preto, heterossexual/homossexual. Stuart Hall (2011) afirma que, conforme se alteram as necessidades internas de um grupo, o seu pensamento e discurso sobre identidade também são metamorfoseados. O conceito se atualiza constantemente, conforme as novas necessidades. A identidade e a diferença com o outro fazem movimentos de aproximação e distanciamento constantes no campo das representações. 56 Contudo, o autor sugere uma reflexão sobre este tema como uma identificação e não como uma identidade. A identificação é um processo social que deve sempre ser revisto pelo grupo. A identidade e a diferença com o outro se aproximam e se distanciam no campo das representações, que são construções dependentes de necessidades e interesses. Os meios de comunicação, entre eles o cinema, são primordiais na mediação dessas representações. Auxiliam na produção da identidade cultural de um grupo. [...] O cinema é produzido através de uma visão que faz parte de uma sociedade. O ambiente cria identidades e, desta forma, as construções produzidas pelos filmes irão criar a identidade do grupo que está representado nela. (SANTOS; COSTA, s/d, pp. 7 e 8). De acordo com Hall, na concepção sociológica, há a identidade entre o interior e o exterior da pessoa, seu mundo pessoal e o mundo público. Nesse viés, a identidade contribuiria para estabilizar os sujeitos quanto aos mundos culturais que habitam, tornando ambos mais unificados e predizíveis. O fato de projetarmos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos para lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. (HALL, 2011, p. 12). Na opinião de alguns autores, como Miriam de Souza Rossini (2005), o conceito de identidade estaria ligado tanto às representações verbais como às representações não-verbais e, desta forma, poderia ser entendido como o modo de definição de um grupo sobre si mesmo e suas trajetórias. Dialogando com as reflexões de Hall, Jessé Souza (2009) acredita que a identidade nacional é uma espécie de mito moderno, um sinônimo de imaginário social, um conjunto de interpretações e ideais que permitem compreender o sentido e a especificidade de um tipo de experiência coletiva, um sentimento de que, juntas, as pessoas formam uma unidade. Em última medida, esse mito nacional seria uma transfiguração da realidade de modo a provê-la de “sentido” moral e espiritual para indivíduos que compõem uma determinada sociedade. Seria este “sentido” moral o responsável por cimentar relações de identificação 57 social e pertencimento grupal, garantindo laços de solidariedade entre aqueles indivíduos e grupos a que se refere. Souza defende que uma nação somente se constitui como tal quando os nacionais se identificam efetivamente com uma generalização de vínculos abstratos proposta a eles, em contraponto a vínculos concretos como aqueles estabelecidos por relações de sangue, vizinhança ou localidade. Na opinião do autor, para se efetivar um mito nacional, é preciso que as pessoas comuns internalizem este tipo de generalização construída como sua como parte indissociável de sua personalidade. Assim, aquilo que é comunitário precisa coincidir com o pessoal; a esfera pública precisa estar diretamente ligada aos sentimentos mais íntimos do povo. Do mesmo modo que amamos nossos pais porque os temos de certo modo “dentro de nós”, porque em tenra idade nos identificamos inconscientemente com a maneira de ser e agir deles, nos identificamos também, do mesmo modo, desde tenra idade, com a autoimagem que nosso mito nacional nos lega. Por conta disso, independentemente de qualquer julgamento racional, nós “amamos” tudo que tem a ver com ele e “odiamos” tudo que o contradiz e o nega. (SOUZA, 2009, p. 34). Contudo, Hall alerta que esse tipo de relação está mudando. O sujeito que antes era visto por alguns pesquisadores como portador de uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado e, a cada dia, é composto por mais e mais identidades distintas, algumas delas contraditórias ou mal resolvidas que buscam direções diferentes umas das outras. O sujeito dito pós-moderno já não possui uma identidade fixa, essencial e permanente. A identidade passou a ser vista como uma celebração daquilo que é móvel ou transformado continuamente. Pensado de maneira ampla, o próprio processo de identificação através do qual cada indivíduo projeta suas identidades e culturas também se tornou mais provisório e problemático. Dessa forma, aquele antigo “eu coerente”, que unificava as identidades vem sendo gradativamente abandonado. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortável narrativa 58 do eu. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. (HALL, 2011, p. 13). Em outra medida, Start Hall também chama a atenção de seus leitores sobre as maneiras pelas quais as identidades culturais nacionais também estão sendo afetadas ou deslocadas pelo processo de globalização. Para ele, as culturas nacionais nas quais o indivíduo nasce, se constituem uma das principais fontes de identidade cultural. Ele lembra que, muitas vezes, ao buscar uma definição para si, a pessoa diz: sou brasileiro, sou espanhol ou francês. Contudo, o autor defende que as identidades nacionais não são características que as pessoas tenham desde seu nascimento. Ao contrário, são mecanismos formados e transformados de acordo com um tipo de representação construída. Nessa medida, o termo nação não seria apenas uma entidade política, mas um sistema de representação cultural que produz uma infinidade de sentidos. Hall ressalta que as culturas nacionais são tipos de discursos, ou seja, modos de construir sentidos que influenciam e organizam tanto as ações das pessoas, quanto a concepção que estas pessoas tenham de suas ações. Ao produzir esses sentidos identificatórios sobre uma determinada nação, essas culturas nacionais acabam construindo a própria identidade coletiva de um determinado povo. Por esse motivo, alguns autores pensam identidade nacional como uma comunidade imaginada. Neste caso, o conceito de nação busca suprimir ou minimizar as muitas diferenças de classe, gênero, raça entre seus membros e, ao mesmo tempo, unificá-los por uma cultura nacional que, em última medida, deseja criar a identidade de uma família nacional. Contraditoriamente, a maioria das nações foi constituída a partir de culturas separadas que só foram unificadas através de um violento processo de conquista e da supressão – pelo menos em teoria – de suas diferenças externas. A partir dessas ações, uma maneira de representar tais identidades unificadas seria a expressão “um único povo” ou “etnia”, conceito que abrange língua, religião, costumes, tradições. O autor defende que as denominadas culturas nacionais deveriam ser pensadas enquanto um dispositivo discursivo que representa a diferença como uma unidade ou identidade. Não é difícil notar que, historicamente, a maior parte das culturas nacionais é marcada por grandes divisões internas e que, hoje, as 59 chamadas nações modernas são grandes híbridos culturais. “As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas”. (HALL, 2001, p. 66). As reflexões de Hall podem muito bem ser aplicadas também à construção das nações na América Latina e, mais especificamente, ao Brasil. Nesses países, houve um grande esforço por parte de uma elite dominante em suprimir as enormes diferenças culturais dentro do próprio território, a fim de moldar um único Estado mandatário. Dessa forma, foram eleitas as características que melhor serviam como discurso de identidade do país que aquele grupo desejava naquele momento. 2.2 – Certidão de nascimento: um possível mito fundacional na cultura brasileira Um dos exemplos que Stuart Hall oferece a respeito da narrativa da cultura nacional é visto pelo mito fundacional, ou seja, um tipo de história que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional do passado, que, pela distância, algumas vezes, chega a se perder no tempo mítico. A partir das próximas linhas, tal mito passa a ser utilizado para se refletir sobre a constituição do povo brasileiro e das relações deste para com seus heróis. A construção da identidade cultural do que se convencionou chamar de “nação brasileira” se dá a partir da união de vários elementos, como língua, religião, cultura, política, economia, entre tantos outros. Um dos pioneiros na procura das identidades do povo contra o português e o Estado imperial foi o cearense João Capistrano de Abreu (historiador, 1853-1927). Conforme José Carlos Reis (2007), Capistrano foi um dos iniciadores da corrente do pensamento histórico brasileiro que “redescobrirá o Brasil”, a partir de suas lutas, costumes, miscigenação, clima tropical e da própria natureza. Reis defende que Capistrano teria sido um dos grandes defensores da troca ou substituição do conceito de raça pelo conceito de cultura, ao tratar do 60 processo de construção da identidade brasileira. Nesse sentido, ele seria um dos precursores do pensamento crítico de Gilberto Freyre (1900-1987) e de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), valorizando o indígena e pensando um Brasil mais como mameluco e sertanejo. Na sua concepção, uma vez que o colonizador adentrou o país, ele teria se tornado uma personalidade distintamente brasileira. Vivendo no interior do Brasil, ilhado e sem vínculos contínuos com o litoral, convivendo com os indígenas e a natureza, foi-se constituindo um homem novo, até então inexistente no mundo: a história universal ganhava um novo personagem: o brasileiro. [...] O brasileiro é o europeu que sofreu um processo de diferenciação graças ao clima e à miscigenação com o índio. (REIS, 2007, pp. 96, 97). O português foi entendido por Capistrano como o primeiro elemento exótico, o primeiro imigrante ou, ainda de forma mais direta, como o invasor, conquistador e colonizador. Em seus escritos, ele ressalta que os primeiros colonos do Brasil eram degredados, desertores e náufragos. A partir dessa delimitação, seria possível pensar em uma correlação direta de um passado que teria originado a grande corrupção existente hoje no Brasil e explicitada de maneira ostensiva no filme Tropa de Elite 2 (analisado adiante nesta investigação). No caso dos naturais da terra, eram vistos, de forma generalista, como selvagens, rancorosos, antropófagos. Naquele momento histórico, não havia muitas opções para aqueles primeiros colonos: uns adotaram a maneira de viver dos índios, outros teriam combatido os mesmos e outros se indianizaram sem deixar perder sua identidade européia. De acordo com José Carlos Reis, no final do século XVI, o povo do território que depois viria a ser denominado Brasil, era constituído por três raças vindas de continentes diferentes e seus respectivos mestiços. Nesse meio, já havia diversos desafetos, tanto entre elas, como entre os mestiços entre si. O autor dá um breve panorama da situação conflituosa daquele período: Forças dissolventes, centrífugas dominavam a sociedade colonial do século XVI. Só havia a percepção da diferença e não da unidade. Esta era garantida à força pelos portugueses que ocupavam, povoavam, miscigenavam e expulsavam. Os índios os temiam, ao mesmo tempo em que eram fascinados pelos 61 portugueses, seus equipamentos. Mas faziam-lhes guerra. Os negros, dominados, oprimidos, escravizados e estrangeiros viviam sob a hostilidade constante do português. Hostilidade, talvez, atenuada pela solidão do branco, que forçava a aproximar-se das negras, assim como das índias. Os índios fugiam para as florestas, os negros chegavam algemados e humilhados. Os brancos armados de espadas e terços, humilhavam, ofendiam, estupravam, escravizavam e exterminavam índios, negros e mestiços de uns e outros, além de expulsar brancos de outras nacionalidades e religiões. (REIS, 2007, p. 102). Para Darcy Ribeiro (1995), o brasileiro começou a se reconhecer como tal mais pela percepção da estranheza que provocava nos portugueses do que por sua própria identificação como membro de sua comunidade. Outro objetivo desse reconhecimento como brasileiro também pode ter sido a tentativa de demarcar a diferença e “superioridade” em relação aos indígenas. Na busca de sua própria identidade, talvez até se desgostasse da idéia de não ser europeu, por considerar, ele também, como subalterno tudo que era nativo ou negro. Mesmo o filho de pais brancos nascidos no Brasil, mazombo, ocupando em sua própria sociedade uma posição inferior com respeito aos que vinham da metrópole, se vexava muito da sua condição de filho da terra, recusando o tratamento de nativo e discriminando o brasilíndio mameluco ao considerá-lo como índio. O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio mestiço na carne e no espírito, que não podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos – que ele desprezava – nem com os europeus – que os desprezavam –, e, sendo objeto de mofa dos reinos e dos lusonativos, via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia: o brasileiro. (RIBEIRO, 1995, pp. 127 e 128). O autor ressalta que a chamada brasilianidade somente foi conseguida através dessas inúmeras oposições e de um processo diversificado, longo e, muitas vezes, dramático. O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índio, não- europeus e não-negros, que eles se vêem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira. (RIBEIRO, 1995, p. 131). 62 Continuando a análise do caminho do mito fundacional, proposto por Capistrano, Reis afirma que, de acordo com aquele autor, para a constituição da unidade do povo brasileiro, as guerras contra a Holanda, entre 1624 e 1654, teriam sido decisivas. A partir de um catolicismo exacerbado que defendia a união de todos contra “os hereges holandeses”, as diversas forças até então divergentes se uniram a fim de expulsar aqueles que teriam “invadido” seu território de moradia. Em nome de Cristo, índios, negros e mestiços participaram vivamente da luta que, em última instância, tratava apenas do combate ao comércio holandês dos produtos exóticos brasileiros na Europa. Desde anos anteriores, eles teriam se instalado e permanecido em Pernambuco. Na verdade, entre 1621 e 1654, quando Portugal optava pelo Brasil e o defendia mais vigorosamente dos ataques estrangeiros, começava a perder o controle sobre o Brasil. Um século e meio depois do seu descobrimento, o Brasil era “redescoberto” por sua nova população. Surgia o “Brasileiro”. Essa guerra e essa vitória serviriam para revelá-lo a si mesmo. Havia um sentimento patriótico não português, original, novo, brasileiro. Vencia o espírito nacional. Todos combateram pela divina liberdade. Sob a pressão externa e apoiada na fé católica, operou-se uma solda superficial, imperfeita, mas um princípio de solda entre os diversos elementos étnicos vencedores dos flamengos. Os combatentes de Pernambuco sentiam-se um povo, e um povo vencedor, que já possuía seus próprios heróis. (REIS, 2007, p. 103). Nesse sentido, a vitória portuguesa no conflito com os holandeses se constituiu como o prenúncio de uma grande derrota. Enquanto eles tinham conquistado o litoral e continuaram a viver neste espaço, os novos brasileiros adentraram e conquistaram e povoaram o espaço do sertão. Esses novos conquistadores brasileiros viviam longe do rei e da elite da época, de maneira autônoma, soberana e orgulhosa. Reis relata que Capistrano vê o povo brasileiro, criado como sertanejo, mais como um mestiço de índio e branco, enquanto o mestiço de negro e branco pertenceria ao mundo litorâneo e ao português. As primeiras ações brasileiras se destacaram pela violência e brutalidade contra os indígenas. De maneira espelhada, o brasileiro continuou o exemplo dado pelo português, mantendo uma forte ação colonizadora e cristianizadora. Esses bandeirantes ou mamelucos paulistas teriam sido vítimas de duas rejeições básicas: dos pais brancos, com os quais desejavam se identificar, mas 63 eram vistos como filhos impuros da terra; e a do gentio materno, que não valorizava a descendência da mãe. Dessa forma, não podendo se identificar com os brancos e não tendo ancestrais, este personagem permanecia em um tipo de limbo, em uma terra de ninguém, a partir da qual ele próprio teria construído a identidade brasileira. José Carlos Reis conta que, na expansão do território, os brasileiros já tinham se acostumado a ficar muito distantes do rei. Sua reaproximação teria sido tão opressiva que desencadeara os movimentos pela independência. Aquele brasileiro mestiço, ainda cristão, não possuía uma expressão política clara e vai buscar sua identidade no interior, no sertão e nas rebeliões. Conforme relata Reis, no final do século XVIII, aquela solda que unia os diversos grupos da nação brasileira se consolidou, aprofundando a consciência patriótica brasileira, que culminou na contestação do rei e de sua lei opressora, em diversos pontos do país, como Maranhão, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e São Paulo. As descobertas auríferas foram a gota d‟água, vieram a completar a obra. Os brasileiros não se sentiam mais inferiores aos nascidos na metrópole, não eram mais os humildes mazombos do século XVI. [...] Começaram os conflitos entre brasileiros e portugueses. A consciência brasileira formou-se lentamente durante três séculos. No final do terceiro, já era sólida o bastante para ser formulada e expressa e dar legitimidade à ação emancipacionista. Os brasileiros se sentiam sustentadores da Coroa e espoliados por sua opressão. (REIS, 2007, p. 108). Conforme relata Jessé Souza (2009), com a independência, tornou-se urgente a construção de uma identidade nacional própria, para sobrevivência tanto simbólica como material. Dessa forma, era necessário convencer e sentir-se pertencente a uma comunidade nacional, ligando a identidade individual de cada membro à comunitária. Em última medida, o Brasil deveria conquistar o “amor” do seu povo. O Brasil se via – e era efetivamente uma nação pobre. O país que se torna autônomo em 1822 e que, portanto, vê-se subitamente confrontado com a questão de elaborar uma identidade para si – Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? – sofria de extraordinário complexo de inferioridade, especialmente em relação à Europa, ideal e sonho inatingível de toda a elite culta. 64 Que fazer com um país recém-autônomo, composto em sua imensa maioria de escravos e homens livres incultos e analfabetos? Homens acostumados a obedecer e não serem livres. (SOUZA, 2009, p. 35). Com a ausência de aspectos positivos naquela sociedade, Jessé de Souza argumenta que acaba sendo na natureza que o brasileiro vai retirar uma primeira imagem de identificação – uma primeira vertente “positiva” acerca da brasilidade, refletida através do meio natural exuberante. Tal tema foi bastante recorrente no decorrer do século XIX e ainda se mantém como um tipo de alusão metafórica de grandezas e glórias do país. Contudo, logo se mostrou limitado para a construção de um processo de identidade mais amplo do povo brasileiro – verdadeiros sujeitos da história do país. O autor relata que, durante o século XIX e a década de 1920, o paradoxo da identidade brasileira foi construído com base na impossibilidade de se construir uma “imagem positiva” para um “povo de mestiços”, sendo este, muitas vezes, percebido como uma degeneração das raças puras, tanto do branco, como do negro. Refletindo sobre a cultura brasileira e a identidade nacional, Renato Ortiz (2012) mostra de que forma a categoria de mestiço pode ser vista como uma linguagem que exprimiria a realidade social, e que, no nível simbólico, ela corresponderia também a uma busca de identidade. A construção de um modelo de ser nacional foi tentada pelo movimento romântico; entretanto, sem o aprofundamento necessário e em uma perspectiva próxima do modelo europeu, ou seja, buscando entender o presente a partir da volta a um passado glorioso. Nesse caminho tortuoso, os fundamentos da brasilidade são expostos alterando ou idealizando personagens de nossa história, como os índios ou simplesmente excluindo outros, como os negros. Somente após as transformações sociais profundas propostas pelo movimento abolicionista é que o negro passou a ser gradativamente integrado às preocupações nacionais. Hoje, a identidade do povo brasileiro é pensada a partir de um processo da mestiçagem entre três raças: branca, índia e negra. Ortiz relata que a fábula das três raças sugere um ponto de origem ou centro a partir do qual se difundiria um mito cosmológico cujo objetivo seria o de retratar a própria origem do Estado brasileiro. 65 Se o mito da mestiçagem é ambíguo é porque existem dificuldades concretas que impedem sua plena realização. Em jargão antropológico eu diria que o mito das três raças não consegue ainda se ritualizar, pois as condições materiais para sua existência são puramente simbólicas. Ele é linguagem e, não, celebração. (ORTIZ, 2012, pp. 38 e 39). Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil começou a passar por grandes mudanças. Além do desenvolvimento da industrialização e da classe média, surgia o proletariado urbano. Culturalmente, o modernismo trouxe consigo uma grande consciência histórica. A partir disso, o mito das três raças ganhou mais sustentação e conseguiu atualizar-se como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas, ao ser reelaborada, pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos, como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional. (ORTIZ, 2012, p. 41). Na opinião de Ortiz, a obra Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre (1900-1987), é um marco para a discussão da cultura brasileira e da mestiçagem. Freyre teria sido o primeiro a notar, entre os brasileiros, a cultura e não mais a raça como fundamento da singularidade social e cultural brasileira. Uma das qualidades ressaltadas no livro seria o poder de unir a todos: casa- grande e senzala, sobrados e mucambos, apresentando um povo que ainda se debatia com as ambiguidades de sua própria definição. Ortiz afirma que Casa Grande & Senzala se transformou em unicidade nacional, oferecendo ao brasileiro uma carteira de identidade. Jessé Souza também discute a questão do mestiço relatada por Gilberto Freyre. A mistura étnica e cultural do brasileiro, ao invés de ser um fator de vergonha, deveria, ao contrário, ser percebida como motivo de orgulho: a partir dela é que poderíamos nos pensar como o povo do encontro cultural por excelência, da unidade na diversidade, desenvolvendo uma sociedade única no mundo precisamente por sua capacidade de articular e unir contrários. Aquilo que durante 66 um século fora percebido apenas como negativo, agora passa a ser visto com outros olhos. Para Freyre, o que antes era motivo de vergonha, vira razão de orgulho, ser mestiço, agora, passa a indicar virtualidades positivas. Para Freyre, enfim, o mestiço “is beautiful”! (SOUZA, 2009, pp. 36 e 37). A partir dos anos 1930, pensando no processo de desenvolvimento econômico e social do país, o Estado começaria a transformar radicalmente o conceito de homem brasileiro. Muitas das “características” atribuídas à raça mestiça, como a preguiça e a indolência, são substituídas por uma ideologia do trabalho – uma transformação cultural, na tentativa de adequar as mentalidades às novas exigências do Brasil moderno. Ao permitir ao brasileiro se pensar positivamente a si próprio, tem-se que as oposições entre um pensador tradicional e um Estado novo não são imediatamente reconhecidas como tal, e são harmonizadas na unicidade da identidade nacional. O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam. Isto coloca um problema interessante para os movimentos negros. À medida que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra no discurso unívoco do nacional, tem-se que elas perdem sua especificidade. A construção de uma identidade nacional mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor. (ORTIZ, 2012, p. 43). Conforme Ortiz, o hibridismo no Brasil foi logo adotado pelas políticas de estímulo à cultura popular enquanto um sinônimo de identidade cultural. A valorização da nação multirracial e do seu caráter híbrido se tornou uma constante na construção simbólica da nossa identidade. Ortiz lembra que as narrativas de identidade nacional são atravessadas pelo campo de poder, no qual se operam constantes formulações e reformulações daquilo que é mostrado como nacional. Na verdade, a luta pela definição do que seria uma identidade autêntica é uma forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procura se impor como legítima. Colocar a problemática dessa forma é, portanto, dizer que existe uma história da identidade e da cultura brasileira que corresponde 67 aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relação com o Estado. (ORTIZ, 2012, p. 9). Dialogando com Ortiz, Eduardo Dias Fonseca (2012) afirma que, na construção da identidade brasileira, a cultura popular, sincrética e mestiça foi um dos pilares para que os diferentes projetos políticos pudessem agregar distintos grupos no círculo do pertencimento. O discurso nacional pressupõe necessariamente valores populares e nacionais concretos, mas para integrá-los em uma totalidade mais ampla. [...] O Estado é esta totalidade que transcende e integra os elementos concretos da realidade social, ele delimita o quadro de construção da identidade nacional. É através de uma relação política que se constitui assim a identidade; como construção de segunda ordem ela se estrutura no jogo da interação entre o nacional e o popular, tendo como suporte real a sociedade global como um todo. Na verdade, a invariância da identidade coincide com a univocidade do discurso nacional. [...] A pergunta fundamental seria: que é artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que grupos sociais elas se vinculam e a que interesses elas servem? (ORTIZ, 2012, pp. 138-139). Buscando promover a análise desta última citação, é importante lembrar que as bases da formação daquela comunidade imaginada Brasil seguem premissas que perpassam por um constante processo de hibridização que também influencia em uma eterna negociação dos principais aspectos identitários. Dessa maneira, conforme explicita García Canclini (2008), dificilmente se conseguiria manter uma identidade pura ou autêntica, uma vez que os sujeitos agentes estão sempre modificando suas práticas e adaptando-as conforme as trocas existentes dentro daqueles grupos sociais nos quais estão inseridos. Stuart Hall (2006) também estabelece importantes reflexões sobre a questão da identidade. Em toda parte estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que reiteram seus recursos, o mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns no mundo globalizado (HALL, 2006, p. 88). 68 Dentre os diversos círculos de influência na criação da identidade do brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda (1977) defende que teria sido o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura no Brasil. Os contatos primários, dos laços de sangue e de coração – que se criam na vida doméstica – sempre teriam representado o modelo obrigatório de qualquer composição social entre brasileiros. Além disso, o autor acredita que a grande contribuição brasileira para a civilização seria o exemplo de cordialidade. Seria um engano supor que a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade – virtudes tão gabadas por estrangeiros que visitam esta terra – possam significar “boas maneiras”, civilidade. Seriam, antes de tudo, expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Ao contrário, o autor acredita que nenhum povo estaria mais distante do ritualismo da vida do que o brasileiro que teria no cotidiano do seu convívio social justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (HOLANDA, 1977, p. 107). Conforme afirma Holanda, armado dessa máscara, o brasileiro conseguiria manter sua supremacia ante o social. Neste caso, a polidez implicaria em uma presença contínua e soberana do indivíduo. De certo modo, para o “homem cordial”, a vida em sociedade seria vista como a possibilidade de libertação do pavor que ele tem de viver consigo mesmo, de apoiar-se sobre si próprio. Sua maneira de expansão para com os outros reduziria o indivíduo à parcela social e periférica – um tipo de “viver nos outros”. Nosso temperamento admite fórmulas de reverência e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar. A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. [...] O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de 69 fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade. (HOLANDA, 1977, pp. 108 e 109). Dialogando com Sérgio Buarque de Holanda a respeito da característica da cordialidade, Jessé de Souza (2009) acredita que o brasileiro representa o povo da alegria, do calor humano, da hospitalidade e do sexo. Em outras palavras, seria o povo da “emocionalidade” e da “espontaneidade”, fazendo oposição à racionalidade e ao cálculo tão presentes em outras nações. Como relata Souza, a negação dos conflitos de toda espécie passou a ser percebida como um atributo positivo, articulado e desenvolvido como ideia construída, que leva ao elogio da unidade, da homogeneidade e da índole pacífica do povo brasileiro. Contudo, o autor tem ressalvas a tal forma de pensar, uma vez que a mesma apresenta somente o resultado e não o processo que teria levado a este resultado de união, solidariedade e amor entre “raças” e “culturas”. O mito freyriano da identidade brasileira é parte da alma de todo brasileiro sem exceção, de todos nós que nos imaginamos com a autocomplacência e com a autoindulgência de quem diz: tudo bem, temos lá nossas mazelas, nossos problemas, mas nenhum povo é mais caloroso, simpático e sensual neste planeta. “Isto”, esta deliciosa fantasia compensatória, ninguém nos tira. [...] O corolário de nosso mito da cordialidade é a aversão a toda forma de explicitação de conflito e de crítica. [...] A aversão do conflito é o núcleo da nossa “identidade nacional”, na medida em que penetrou a alma de cada um de nós de modo afetivo e incondicional. (SOUZA, 2009, p. 39). Para Roberto da Matta, o brasileiro cordial não deixa de ser, ao mesmo tempo, autoritário. Assim, os costumes internos ligados à cordialidade não seriam inocentes. Segundo ele, o chamado jeitinho brasileiro ou, ainda, o mando da expressão “sabe quem está falando?” sempre embutem algum tipo de personalização ou quebra da lei coletiva que, normalmente, iria reger as relações e impedir os conflitos. Nesse sentido, o brasileiro seria cordial até um determinado momento ou fase que lhe interesse. “Quer dizer: a lei não é para mim, porque, no meu caso, eu não tenho razões para cumpri-la ou para não cumpri-la em parte. Ou 70 pelo fato de que eu tenha alguma coisa urgente para fazer, como ir a um enterro de um parente próximo ou estar doente. Já o „sabe quem está falando?‟ é mais ou menos a mesma coisa ao inverso. Para tudo. Vocês não podem aplicar isso a mim. Eu não vou obedecer. Eu sou uma autoridade. Assim, há um conflito entre dois princípios que a sociedade adotou: o conflito entre a importância dos cargos e as pessoas que ocupam estes cargos. No Brasil, as pessoas literalmente tomam posse dos cargos”.4 É fácil notar a explicação de Roberto da Matta sobre o “jeitinho brasileiro” no comportamento da heroína Dora, no filme Central do Brasil (1998), que aplica pequenos golpes em pessoas analfabetas, a fim de conseguir aumentar sua renda. Já a expressão “sabe que está falando?” fica ostensivamente explícita a partir da fala do personagem Guaracy, no filme Tropa de Elite 2 (2010), na sequência em que seu carro é parado por uma patrulha do Bope. Naquele instante, ele tenta usar da sua influência como “autoridade” – mesmo estando afastado do cargo público de Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro para concorrer às eleições para deputado federal. “É aquele negócio: não pode cuspir no chão. Mas, se eu fiz a lei, eu posso cuspir na placa que diz que não pode cuspir no chão”!5 Para Roberto da Matta, tanto o “jeitinho brasileiro”, como o “sabe que está falando?” estariam ligados a um dos grandes perturbadores do povo de alma verde-amarela: a relação contraditória entre anonimato e pessoalidade. Nessa medida, o indivíduo se sentiria mal ao chegar a um lugar e não ser reconhecido. Apesar disso, em sua opinião, o brasileiro possui um senso muito grande de justiça, o que não quer dizer de justiça igualitária. Por este viés, estariam aqui destacados a vingança, a reversão e o retorno do oprimido. Tal tipo de justiça pode também ser facilmente identificada a partir de Tropa de Elite 2 e da própria grande identificação obtida pelo protagonista (Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura) com o grande público. O autor alega que a transferência de responsabilidades é uma prática comum na sociedade brasileira. 4 Trecho da entrevista de Roberto da Matta para o programa “Personalidade”, exibido na TV Câmara (2ª parte) e disponível na web através do link: acesso em 01 junho de 2015. 5 Trecho da entrevista de Roberto da Matta para o programa “Personalidade”, exibido na TV Câmara (2ª parte) e disponível na web através do link acesso em 01 junho de 2015. 71 “Não adianta você falar: „Ah, a lei não é aplicada, então o problema não é meu. É da polícia‟. Aí, a responsabilidade daquilo que seria coletivo passa a ser da lei e dos guardiões da lei, ou seja, a polícia. A gente fala: „vou chamar a polícia: o problema é da polícia‟. Tem tráfico de drogas, o problema é da polícia e não nosso”.6 Refletindo sobre o aspecto da religiosidade do brasileiro, Holanda acredita que o catolicismo, tão forte no Brasil, permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa, suscitando cultos amáveis e quase fraternos, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. Assim, no Brasil, o rigorismo característico do rito utilizado em outros países se afrouxa e se humaniza. Independentemente de sua classe social, todos querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e com o próprio Deus – um amigo familiar, doméstico e próximo. Foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma propriedade, “democrático”, um culto que se dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso. (HOLANDA, 1977, pp. 110 e 111). Do ponto de vista do trabalho, Holanda ressalta que o brasileiro é notoriamente avesso às atividades morosas e monótonas, nas quais o sujeito se submete a um mundo distinto dele. Em terras tupiniquins, a personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por qualquer tipo de regime ou sistema disciplinador. Assim, cada indivíduo afirma-se indiferente à lei geral existente, em qualquer ponto no qual tal lei contraste com suas afinidades emotivas. Ele sempre quer ser distinguido dos demais. No trabalho não buscamos senão a própria satisfação. Ele tem o seu fim em nós mesmos e não na obra: um fins operantis, não um fins operis. As atividades profissionais são, aqui, meros acidentes na vida dos indivíduos, ao oposto do que sucede entre outros 6 Trecho da entrevista de Roberto da Matta para o programa “Personalidade”, exibido na TV Câmara (2ª parte) e disponível na web através do link acesso em 01 junho de 2015. 72 povos, onde as próprias palavras que indicam semelhantes atividades podem adquirir acento quase religioso. [...] Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante, as ideais claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos a verdadeira essência da sabedoria. (HOLANDA, 1977, pp. 114 e 117). Holanda acredita que a origem da sedução exercida pelas carreiras liberais no Brasil é resultado do apego quase exclusivo de seu povo aos valores da personalidade. Este também seria o motivo da ânsia por meios de vida relativamente definitivos, como os desejados concursos públicos que dão certa segurança e estabilidade financeira e, ao mesmo tempo, exigiriam o mínimo possível de sujeição da personalidade individual. 2.3 – A identidade heróica do povo brasileiro Analisando a constituição da sociedade brasileira, Roberto da Matta (1997) defende que, em sociedades hierarquizantes, como a nossa, o personagem do herói é geralmente o homem comum, com uma rotina desinteressante e achatada. Nesse recorte espacial, este último personagem se tornaria mais interessante na medida em que se apresentasse dentro de um perfil mais trágico, com uma trajetória tortuosa e cheia de peripécias e desmascaramentos – um padrão próximo de tipos, como Conde de Monte Cristo7. Para esse tipo de herói: A promessa geralmente contida nos nossos dramas raramente é feita da conquista da felicidade com recursos e posição possuídos ou ocupados pelo herói na abertura da narrativa, mas, ao inverso, sempre narramos e ficamos deveras fascinados com contos de enriquecimento e ascensão social violenta e irremediável do herói. A base do drama é fazer o personagem central terminar com muito mais do que possuía no começo da história. (MATTA, 1997, p. 270). 7 Do romance francês homônimo, Le Comte de Monte-Cristo (1844), escrito por Alexandre Dumas em colaboração com Auguste Maquet; também adaptado diversas vezes pelo cinema. 73 Roberto da Matta considera que os heróis e mitos seguem curvaturas homólogas às da própria sociedade na qual estão inseridos. No caso brasileiro, ele crê que temos um continnum que vai da ordem à desordem ou da rotina fechada à abertura total. O autor exemplifica esta última ação – a abertura – através do carnaval: os heróis do carnaval brasileiro são marginais de todos os tipos, seja porque estão situados em uma delimitação do tempo histórico, seja porque estão em pontos extremos das fronteiras sociais, seja porque estão escondidos pelas prisões, polícia ou ainda por sua própria ingenuidade. O carnaval representaria, assim, uma espécie de abertura interna dos porões da sociedade brasileira. Todo tipo de herói do carnaval, explica Da Matta, pode ser reunido na categoria do malandro – visto como um ser deslocado das regras formais, avesso ao trabalho, portador de muita criatividade e liberdade usadas na busca pela sobrevivência. O malandro também é identificado como alguém que busca expressar-se com seu código próprio. No seu mundo, o que conta é a voz, o sentimento, a improvisação: tudo que se aproxima da ideia de coração. “O malandro fica na linha intermediária entre o seguidor das normas e o criminoso que não segue regra nenhuma. E, numa outra vertente, você tem o otário, sem o qual o malandro não existe. Mas é preciso fazer uma distinção entre o malandro e a malandragem como valor. Porque a malandragem é essa coisa que a gente faz quase todo dia. É a declaração de renda que tem certo dinheiro que o „cara‟ não vai declarar, porque se ele declarar ele vira otário. É o sinal de trânsito que o sujeito fura... A malandragem é o sintoma de uma sociedade que tem uma relação ruim com o Estado”.8 Contudo, o autor salienta que existe um tipo de herói brasileiro oposto ao malandro: o ator das paradas militares e dos rituais de ordem, mais conhecido como o caxias. Seu nome, derivado do venerável patrono do Exército, o duque de Caxias, demonstra o poder do domínio uniformizado e regular do qual saiu para ganhar popularidade numa sociedade também fascinada pela ordem e hierarquia. Aqui, já não estamos mais 8 Trecho da entrevista de Roberto da Matta para o programa “Personalidade”, exibido na TV Câmara (1ª parte) e disponível em: acesso em 01 junho de 2015. 74 num universo marcado pela criatividade musical e gestual, típica das fronteiras e interstícios do mundo social onde grassa a malandragem, mais nas vertentes formais mais controladas do nosso universo social. Trata-se de outra leitura do mundo, definindo-o por suas regras, leis, decretos, regulamentos, portarias e regimentos. (MATTA, 1997, p. 277). Enquanto o malandro tem como cenário o carnaval, a música e o divertimento, o caxias vai se ambientar nas paradas militares, como na tradicional Sete de Setembro. Nesse lócus, tudo está regulado e no seu devido lugar. O mais importante é o exterior, como medalhas, uniformes, armas, formas fixas de conduta, reverências. A moldura das leis e regulamentos liga todos pelo lado de fora. O herói caxias reforça a ordem social e deseja mantê-la. Da Matta também aponta para um terceiro tipo de herói brasileiro: o renunciador. Ele pode ser entendido como aquele que rejeita o mundo social na forma como este normalmente é apresentado. Assim, o renunciador abre mão de hinos marciais ou sambas, procurando expressar-se através do seu próprio código, criando outra realidade. Por conta dessa característica primordial, Roberto da Matta considera-o um verdadeiro tipo revolucionário dentro de universos hierarquizantes, como seria o caso do sistema brasileiro. O renunciador reza e caminha, procurando a terra da promissão, onde os homens finalmente poderão realizar seus ideais de justiça e paz social. [...] O renunciador procura juntar o interno com o externo e criar um universo alternativo e novo. Ele não promete uma vida mais elevada no sentido da ascensão social e econômica. Sua promessa é a de um mundo social renovado, um universo social alternativo, como fez Antônio Conselheiro e, em escala menor, fizeram todos os nossos cangaceiros ou bandidos sociais, como Lampião. (MATTA, 1997, pp. 278 e 279). O autor acredita que o herói renunciador esteja na mesma estrada dos santos católicos. Essa aproximação se daria a partir do paradigma de Cristo que apresenta como características a renúncia das coisas do mundo e as contradições entre hierarquia e individualismo. Também seria possível a ligação deste personagem com a política. Neste caso, se refletiria sobre sociedades e períodos históricos nos quais o líder político atinge o poder através de 75 mecanismos não democráticos. Ele se apresenta como um sacrificado, um renunciador das glórias do mundo. Em uma entrevista para o programa de TV “Personalidade”, exibido pela TV Câmara, Roberto da Matta buscou resumir seu pensamento sobre a sociedade brasileira a partir desses três tipos de herói da seguinte forma: “Uma das características do Brasil é que você tem três leituras, três focos interpretativos. Tem uma maneira carnavalesca de ler o Brasil, que é o Brasil da malandragem, que é o Brasil que a gente ouve até hoje: “Ah, não adianta consertar”; “Não tem conserto”; “O nosso negócio é que ninguém quer trabalhar”; “Nós somos uma sociedade do leva com a barriga, deixa tudo para amanhã”. Tem outra vertente que corresponde à regulamentação, a certo autoritarismo, correspondente a uma vertente do caxias. A leitura do Brasil pedindo lei, pedindo limite, pedindo pessoas fortes, que também até hoje acontece. E há uma terceira vertente que é o Brasil lido através do sobrenatural, do outro mundo, do pagar o carma da reencarnação, do lado místico. São homens que saem do mundo”.9 Roberto da Matta argumenta que é preciso compreender este sistema de personagens e heróis da mesma maneira que o sistema de ritos e dramas sociais: um mecanismo complexo e mutável. Ele chama atenção no sentido de que esses heróis (caxias, malandro e renunciador) não podem ser pensados como tipos estáticos, uma vez que cada um deles cobre uma área ampla e também mantém, entre si, relações de transformação. Como visualização inicial, o lugar das regras, ocupado pelo caxias, também permite a existência de outros personagens, como o quadrado, o palhaço e o otário. Um caxias muito convencido da sua posição de amigo e fazedor de leis pode facilmente vir a ser não mais o seu comandante, mas o seu fiel e cego servidor, isto é, o cidadão que acaba por tornar-se ingênuo e quadrado. Daí a transformar-se num otário completo, isto é, num homem crédulo, sempre pronto a obedecer, constituindo-se na eterna e predileta vítima dos malandros, é um passo. (MATTA, 1997, p. 282). 9 Trecho da entrevista de Roberto da Matta para o programa Personalidade, exibido na TV Câmara (1ª parte) e disponível em: acesso em 01 junho de 2015. 76 Um exemplo de herói caxias, para Roberto da Matta, é o personagem Policarpo Quaresma, da obra literária Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), escrita por Lima Barreto. Ele encarna uma complexa combinação de seguidor das leis, lealdade absoluta e patriotismo crédulo; deseja ver o Brasil melhorado, contudo, seu grande problema é realizar a revolução por meio de requerimentos e de forma burocrática. No caso do malandro, exemplificado pelo autor através de personagens, como Macunaíma e Pedro Malasartes10, a gradação vai daquela malandragem socialmente reconhecida e aprovada por boa parte da sociedade – como uma espécie de esperteza para sobrevivência – aos atos explícitos de desonestidade. Quando o malandro adota estas últimas práticas, ele corre o risco de abrir mão do “jeitinho” para viver apenas dos golpes. Aqui, ele perde a linha tênue de equilíbrio entre ordem e desordem na qual vive e vira um autêntico marginal ou bandido pleno. Já os heróis renunciadores estariam em uma posição extrema, um não retorno ideal no sistema. Assim, haveria uma relação próxima entre o renunciador, o romeiro e o fiel. Pela própria vontade e por terem sido marcados pelo destino – normalmente, algum motivo trágico –, eles tanto recusam como fogem da sociedade, direcionando sua atenção para fora do espaço social conhecido e programado. Um exemplo deste tipo de herói renunciador brasileiro seria Antônio Conselheiro, no episódio ocorrido na cidadela de Canudos11. Roberto da Matta resume a associação dos três rituais, cujos personagens dominantes seriam o caxias, o malandro e o renunciador, da seguinte maneira: Pode-se dizer então que o risco do caxias é entrar totalmente na ordem e, retificando-a, perder a consciência de que as leis, atos e decretos foram realizados num certo ponto de um calendário histórico – que tudo isso é passível de modificação, que as leis, afinal, são relativizáveis. Mas, à medida que deixamos essa posição dentro da ordem, ou melhor, a posição na qual somos 10 Respectivamente, personagens da obra homônima (1928) de Mário de Andrade e da série literária de Monteiro Lobato, O Sítio do Pica-Pau Amarelo (1920-1947). 11 Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, foi uma figura carismática que liderou o arraial de Canudos, um pequeno vilarejo no sertão da Bahia, contra o Exército da República brasileira, atraindo milhares de sertanejos, entre camponeses, índios e escravos recém-libertos, para a chamada Guerra de Canudos, em 1896. 77 definidos pelo exterior, por meio de regras gerais e plenamente visíveis, começamos a virar malandros. Se caminhamos um pouco mais, dependendo dos motivos que nos conduzem para fora, viramos bandidos ou renunciadores. (MATTA, 1997, p. 284). 2.4 – Novas reflexões sobre o herói no cinema desta terra A partir dos textos de Robert Stam (2005) pode-se refletir sobre como o cinema dito como aquele do terceiro mundo constrói suas propostas discursivas centralizadas no nacionalismo. Para o autor, um dos fatores que mais influenciou este processo seria a aproximação dos cineastas latinos ao Neorrealismo italiano. Assim, nota-se um cinema que apresenta visões de mundo a partir de uma territorialidade delimitada em produções feitas por e para latino-americanos. O caminho do terceiro-mundismo cinematográfico se viu possibilitado, em um primeiro momento, pela popularidade do Neorrealismo italiano; como mínimo, este foi o caso latino- americano, num processo facilitado pela imigração italiana como também por certas analogias entre as situações sociais da Itália e da América Latina (STAM, 2005, p.116). Apesar de Robert Stam apontar para um caráter alegórico das produções cinematográficas latino-americanas, também relacionado com o nacionalismo presente nestes países, Eduardo Dias Fonseca (2012), lembra que as alegorias foram usadas para a construção fílmica de discursos políticos de alguns cineastas – como, no caso brasileiro, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade –, como estratégias para burlar o sistema de censura das ditaduras políticas e, ao mesmo tempo, imprimir um caráter estético na construção fílmica. No texto “Cinema brasileiro e identidade nacional”, Robson Souza dos Santos e Felipe da Costa rememoram que o cinema é um importante agente de difusão da imagem e da cultura brasileira, bem como da identidade nacional, divulgando nosso país não apenas para os brasileiros, mas para o mundo. O cinema é produzido através de uma visão, que faz parte de uma sociedade. O ambiente cria identidades e, desta forma, as 78 construções produzidas pelos filmes irão criar a identidade do grupo que está representado nela. [...] Os filmes produzem sentido sobre as nações, constroem identidades. Assim, imagens e representações do Brasil são constituídas através das cenas que os filmes exportam. (SANTOS; COSTA, s/d, pp. 08 e 09). Em seu texto, Santos e Costa explicitam o fragmento de um dos pronunciamentos do então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em 2006, relacionando nossos filmes diretamente com a identidade brasileira, entendendo que o objetivo do cinema brasileiro seria: [...] o de um cinema que reflita a dimensão de nossa grandeza cultural, territorial e econômica, de uma expressão audiovisual que reflita e energize nossa consciência de nacionalidade e nossa soberania, que apresente com luz própria, para nós e para o mundo inteiro, nossa maneira brasileira de ser (apud SANTOS; COSTA). Em 2011, o Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo promoveu um evento importante para esta pesquisa: o debate intitulado Para onde vão nossos heróis?. O evento aconteceu dentro da “Mostra Cinema Brasileiro Anos 2000, 10 questões” e contou com a participação de Francis Vogner e Sheila Schvarzman, além da moderação de Cléber Eduardo. Uma das primeiras provocações do próprio moderador da mesa para a plateia foi o questionamento sobre a existência, na nossa cinematografia, de espaço para a construção desta figura conhecida como herói. “O cinema brasileiro não se construiu na sua história com narrativas produtoras desta figura do herói. Ou, se tivermos que pensar nessa possibilidade de heróis para a nossa cinematografia, me parece que eles são, em geral, meio tortos. Não são heróis necessariamente exemplares, modelos”.12 Ao entrar no diálogo, Sheila Schvarzman chamou a atenção para o grande número de filmes brasileiros das últimas décadas que tratam de “seres de 12 Trecho da fala de Cleber Eduardo retirado da transcrição do debate Para onde vão nossos heróis?, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, no dia 14 abril 2011. 79 alguma forma exemplares”. Para ela, tamanho aumento neste tipo de produção reflete um discurso de superação, assim como: “[...] uma mudança da nossa própria mentalidade, do malandro que, de alguma forma, escapa, ao contrário dos seres que têm que estar diante disso. [...] Esses heróis têm a ver com pessoas reais, que estão aí. Chegamos, graças a Deus, ao que há de exemplar nas pessoas comuns, cada um de nós. Somente na última década, temos 34 filmes que podem ser enquadrados nessa categoria”.13 Schvarzman alegou que boa parte desses heróis brasileiros ainda são retratados através de biografias cinematográficas. Esse seria o caso de Lula, Herbert Vianna, Pelé, entre tantos outros. Ela considerou que este fator poderia corresponder a uma necessidade de temas seguros que tanto permitiriam a espetacularização da história do país, como também estariam associados a manifestações culturais midiáticas de grande apelo, como a música e o esporte. Ela lembrou que, na década de 1930, o Brasil já possuía obras dedicadas a este tipo de narrativa sem risco, através dos heróis da cultura pensada por Roquette Pinto – os “homens divinos”, e encenados cinematograficamente por Humberto Mauro. Depois de contextualizar o herói na cinematografia brasileira, Sheila Schvarzman propôs várias indagações: “Que histórias contam nossos heróis protagonistas? O que dizem do país que os seleciona como objeto de narrativa, de lembrança e testemunho? O que revelam esses filmes sobre o Brasil? O que trazem de novo, que não se conhecia até o filme ser exibido? De que forma esses filmes tornam compreensível os fenômenos e mudanças de sentimentos das pessoas em relação ao seu tempo, aos objetos que são analisados?”.14 Ao entrar no debate, Francis Vogner argumentou que, no Brasil, há uma troca de personagens históricos entendidos como heróis. Nesse sentido, alguns 13 Trecho da fala de Sheila Schvarzman retirado da transcrição do debate Para onde vão nossos heróis?, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, no dia 14 abril 2011. 14 Trecho da fala de Sheila Schvarzman retirado da transcrição do debate Para onde vão nossos heróis?, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, no dia 14 abril 2011. 80 filmes forjariam mitos. Ele desenvolveu sua fala também sobre o anti-herói brasileiro. Em sua análise, o herói apontado pela grande mídia (revista Veja), como foi o caso do Capitão Nascimento15, não seria romântico, mas pragmático. “No passado, podia-se ser idealista, querer a mudança de estado das coisas, como mostram os filmes Lula e Olga16. Agora, no presente, há que se ser pragmático, apontar a arma para a câmera e dar um tiro, como no final de Tropa de elite”.17 Através do pensamento de Vogner, seria possível evidenciar dois tipos de paradigmas no cinema brasileiro: os heróis da história, de esquerda, e o herói do presente, representado por aquele indivíduo que abre mão dos ideais e vai “limpar a casa”. Um dos exemplos que ele mais utilizou em seu discurso para falar deste segundo tipo ainda foi o Capitão Nascimento, de Tropa de elite. Contudo, Vogner ressaltou que houve uma mudança significativa no perfil do personagem do primeiro para o segundo filme. Em Tropa de elite 2, Nascimento já não é aquele policial tão pragmático assim. Ele passa a enfrentar outros inimigos: os políticos que, na trama, representam o vilão agregador de poder, influenciando na imprensa e, até mesmo, aglutinando as ações de bandidos. Antes de se expor os mecanismos escolhidos para a análise fílmica proposta ou mesmo se debruçar em olhar criterioso sobre os objetos deste estudo de caso, acredita-se ser importante contextualizar o momento histórico no qual se iniciou o período da produção cinematográfica brasileira denominado de Retomada. Para isso, torna-se pertinente o conhecimento do caminho no qual seriam explicitadas as primeiras e mais relevantes intervenções do Estado na produção cinematográfica brasileira até a substituição deste modelo pelo atual, apoiado nas leis de incentivo à cultura. O desenvolvimento desta trajetória possibilita uma contextualização mais aprofundada do papel e importância do Estado na história da produção cinematográfica deste país. 15 Personagem central dos filmes de José Padilha, Tropa de elite (Brasil, 2007) e Tropa de elite 2 – O inimigo agora é outro (Brasil, 2010), interpretado pelo ator Wagner Moura. Ver capa da referida revista, ao final, em Anexo. 16 Lula, o filho do Brasil (Brasil / Argentina – 2009), de Fábio Barreto, Marcelo Santiago, e Olga (Brasil – 2004), de Jayme Monjardim. 17 Trecho da fala de Francis Vogner retirado da transcrição do debate Para onde vão nossos heróis?, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, no dia 14 abril 2011. 81 Capítulo 3 – O CAMINHO ATÉ O CINEMA DE RETOMADA 3.1 – As primeiras intervenções estatais no cinema brasileiro A partir dos anos 1930, depois de muitos artigos da revista Cinearte e de várias manifestações dos profissionais de cinema, o Estado passou a regular a atividade cinematográfica, intervindo na produção, distribuição, importação e exibição. No sentido de promover uma solução disciplinadora para a campanha em prol da consciência cinematográfica nacional, foi assinado o decreto Nº 21.2140/32. Por intermédio deste decreto, algumas mudanças foram compensatoriamente oferecidas aos nossos profissionais do cinema: a nacionalização da censura cinematográfica (válida em todo o território brasileiro); a criação do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural que deveria ser mantido através da “taxa cinematográfica para a educação popular” e cujo objetivo era desenvolver uma cultura de massa; redução das taxas alfandegárias para importação de filme virgem; e, talvez a mais importante, a exibição obrigatória de filmes nacionais de curta-metragem classificados como educativos em cada programa de exibição. [...] Não só os filmes que tenham por objeto intencional divulgar conhecimentos científicos, como aqueles cujo entrecho musical ou figurado se desenvolver em torno de motivos artísticos, tendentes a revelar ao público os grandes aspectos da natureza ou da cultura. [...] tendo em vista a capacidade do mercado cinematográfico brasileiro, e a qualidade dos filmes de produção nacional, o Ministério da Educação e Saúde Pública ficará a produção da metragem de filmes nacionais a serem obrigatoriamente incluídos na programação de cada mês. (Decreto Nº 21.240/32 apud SIMIS, 1996, pp. 94-95 e 108). No trecho acima, do referido decreto, percebe-se uma abertura em relação à exibição obrigatória de outros gêneros cinematográficos, como longas- metragens de enredo. O decreto ainda menciona a realização de um Convênio Cinematográfico Educativo, instituindo espetáculos infantis de cunho educativo 82 nas salas de cinema; incentivos e facilidades econômicas aos produtores, distribuidores e exibidores e, ainda, a obrigatoriedade de exibição de cinejornais. Dessa forma, os donos de cinema passaram a apostar que, se produzissem seus próprios filmes e os exibissem, ganhariam mais do que comprando ou alugando cópias de um distribuidor. Assim, inicialmente, criou-se um mercado para o filme educativo que, pouco depois, acabou sendo adaptado também para a produção de cinejornais. Como o Governo ainda não havia estipulado a metragem mínima para exibição, os produtores nacionais se articularam para o desenvolvimento de um projeto de lei que estabelecesse a obrigatoriedade de exibição de filmes com, no mínimo, 250 metros lineares – cerca de oito minutos de duração, o que representava 10% da metragem de um programa cinematográfico da época. Por sua vez, os exibidores se organizaram para reclamar sobre a redução de seus lucros, já que a renda obtida na bilheteria era dividida entre os filmes estrangeiros e os curtas-metragens nacionais. Na visão do exibidor, os curtas representavam apenas ônus desnecessário. Após várias negociações intermediadas pelo presidente da Comissão de Censura do Ministério da Educação, Roquete Pinto, produtores e exibidores concordaram em reduzir para 100 metros lineares a medição mínima para exibição obrigatória de qualquer gênero cinematográfico. Tal medida começou a vigorar a partir de agosto de 1934. No mesmo ano, em 11 de julho, foi publicado o decreto que criava o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. Entre suas principais funções relacionadas ao cinema nacional, estava o estudo da utilização do cinematógrafo como meio de difusão, o estímulo à produção, à racionalização da exibição em todos os meios sociais e à classificação dos filmes educativos. Esse departamento havia sido inspirado em regimes autoritários europeus, cujas experiências na área da cultura tinham impressionado autoridades do Governo Vargas. No Brasil Novo de Getúlio Vargas, o cinema ocupou lugar de destaque, sendo também muitos os defensores da sua utilização enquanto meio auxiliar de ensino. Um dos maiores influenciadores desse pensamento foi o antropólogo Edgar Roquete-Pinto que, a pedido do Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, teria planejado e organizado o Instituto Nacional do Cinema 83 Educativo (INCE) – o primeiro órgão oficial brasileiro a se dedicar à produção cinematográfica. Sob a coordenação de Roquete-Pinto, a partir de 1937, o INCE assumiu sua função pedagógica, no sentido de promover a conscientização das massas, através de filmes educativos. Um dos principais objetivos era valorizar os aspectos desconhecidos da cultura brasileira. Para tamanho trabalho, o organizador do INCE contou com a ajuda e a experiência de um mineiro especial: Humberto Mauro (1897-1983) que dedicou vários anos de sua vida ao órgão, produzindo centenas de filmes. Mais que um agente pedagógico para aprimoramento do povo brasileiro, esse veículo de comunicação era pensado enquanto instrumento de propaganda política do regime autoritário. Sanear a terra, polir a inteligência e temperar o caráter do cidadão adaptando-o às necessidades do seu “habitat”, é o primeiro dever do Estado. Ora, entre os mais úteis fatores de instrução de que se dispõe o Estado moderno, inscreve-se o cinema, elemento de cultura, influindo diretamente sobre o raciocínio e a imaginação, ele apura as qualidades de observação, aumenta os cabedais científicos e divulga o conhecimento das coisas, sem exigir o esforço e as reservas de erudição que o livro requer e os mestres nas suas aulas reclamam. A técnica do cinema corresponde aos imperativos da vida contemporânea. Ao revês das gerações de ontem, obrigadas a consumir largo tempo no exame demorado e minucioso dos textos, as de hoje e, principalmente, as de amanhã entrarão em contato com os acontecimentos da história e acompanharão o resultado das pesquisas experimentais através das representações da tela sonora. [...] O cinema será, assim, o livro de imagens luminosas, no qual as nossas populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil, acrescendo a confiança nos destino da Pátria. Para a massa dos analfabetos, será essa disciplina pedagógica mais perfeita, mais fácil e impressiva. Para os letrados, para os responsáveis pelo êxito da nossa administração, será uma admirável escola. (VARGAS, Getúlio. “O Cinema Nacional, elemento de aproximação dos habitantes do país”: A nova política do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, v III, s/d., p. 183-9 apud ALMEIDA, 1999, p. 19). Além da função educacional, Vargas via no cinema a capacidade ordenadora que uniria o povo espalhado pelas diversas regiões do país. 84 Por sua desmesurada grandeza geográfica, depara o Brasil, ao estadista, uma série de problemas complexos, de ordem econômica, política e social, cujas soluções dependem da análise rigorosa de certos dados fundamentais, em geral, obscuros e indecisos. O papel do cinema, nesse particular, pode ser verdadeiramente essencial. Ele aproximará, pela visão incisiva dos fatos, os diferentes núcleos humanos, dispersos no território vasto da República. O caucheiro amazônico, o pescador nordestino, o pastor dos vales do Jaguaribe ou do São Francisco, os senhores de engenho pernambucanos, os plantadores de cacau da Bahia, seguirão de perto a existência de fazendeiros de São Paulo e de Minas Gerais, dos criadores do Rio Grande do Sul, dos industriais dos centros urbanos: os sertanejos verão as metrópoles, onde se elabora o nosso progresso, e os citadinos, os campos e os planaltos do interior, onde se caldeia a nacionalidade do porvir (VARGAS apud SIMIS, 1996, p. 43). Com o passar dos anos, surgiram novas pressões para que o Estado investisse ainda mais no cinema brasileiro, especialmente por parte dos intelectuais que buscavam fomentar uma cinematografia mais livre e experimental, desvinculada de preceitos educativos ou governamentais. Entretanto, de acordo com Sidney Ferreira Leite (2005), nas duas décadas que se seguiram, não houve grandes avanços, uma vez que o Governo temia concentrar seus esforços em um segmento que teria lucros pouco significativos ou até mesmo inexistentes e ainda iria fazê-lo enfrentar poderosos interesses estrangeiros sobre a distribuição de produtos cinematográficos. Excetuando o período Vargas, os sucessivos governos optaram pelo investimento em setores mais seguros da economia. Desde 1952, o Congresso Nacional havia recebido o projeto para criação de um órgão capaz de gerenciar as ações cinematográficas no país. Tal proposta foi elaborada por uma comissão nomeada pelo então presidente Vargas e coordenada pelo cineasta Alberto Cavalcanti (1897-1982). O projeto ficou tramitando durante anos no mesmo espaço, sem qualquer sinalização para prosseguimento. Leite relata que a situação de desinteresse para com o cinema brasileiro somente foi alterada a partir da segunda metade da década de 1960. Depois do golpe de 1964, os militares procuraram intervir na cultura, a fim de minimizar ou encerrar as manifestações dos segmentos mais críticos da população. Assim, em 85 1966, foi criado o esperado Instituto Nacional de Cinema (INC), cujas funções principais eram estimular o cinema brasileiro, formular políticas para produção, importação, distribuição e exibição dos nossos filmes. O órgão assumiu as funções desenvolvidas anteriormente pelo INCE. Suas receitas vinham de três principais vertentes: as dotações orçamentárias, as taxas sobre exibição de filmes e o resultado da bilheteria. Por intermédio do INC, o poder Executivo assumiu o gerenciamento das atividades cinematográficas no país. Através do decreto-lei Nº 862, de 12 de setembro de 1969, o governo militar do General Emílio Garrastazu Médici criou a Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima – Embrafilme –, idealizada pelo ministro Roberto Campos. No mesmo ano, todos os recursos de receita do INC foram transferidos para a empresa. Com poucos anos de existência, a Embrafilme já havia assumido todas as atribuições daquele instituto que, em 1975, foi definitivamente extinto. A Embrafilme se tornou a principal referência da produção cinematográfica brasileira. Sidney Ferreira Leite divide sua trajetória em três fases. Na primeira fase, que vai da criação do órgão até o ano de 1974, atuou como apêndice do INC, distribuindo e divulgando o filme brasileiro no exterior e realizando mostras e festivais. A partir de 1970, passou também a financiar filmes, o que representou um aumento significativo do seu aporte financeiro e o fortalecimento da empresa, em contrapartida ao declínio do INC. A segunda fase da Embrafilme pode ser reconhecida entre 1974 e 1985. Com o apoio do Estado, os filmes nacionais ganharam impulso, os espectadores voltaram às salas de exibição e alcançou-se grande êxito de bilheteria. Esse momento positivo teve o cineasta Roberto Farias (1932-) à frente da empresa. Durante sua gestão foram definidas as normas para as produções levadas a cabo pela empresa, isto é, os filmes passaram a receber da estatal, no máximo, 30% do valor do orçamento, que não poderia exceder o valor total de 2.200 salários mínimos vigentes. Também foram instituídas outras formas de apoio financeiro aos produtores, como a concessão de avanços de bilheteria sobre filmes em distribuição. Tais medidas levaram a Embrafilme a ter uma gestão mais profissional e a capacitaram para enfrentar o problema decisivo que impedia o desenvolvimento das atividades cinematográficas no país, a dominação do mercado nacional pelas produções oriundas dos Estados Unidos. (LEITE, 2005, p. 113). 86 A terceira fase teria iniciado a partir de 1975, quando a estatal absorveu as demais atividades do INC, passando a atuar em diversas vertentes, tanto culturais como comerciais. Nesse período, os filmes brasileiros passaram a ser exibidos durante todo o ano e quatro deles alcançaram marca superior a três milhões de espectadores: Dona Flor e seus dois maridos (1976 – 10.800), de Bruno Barreto; A dama do lotação (1978 – 6.500), de Neville de Almeida; Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977 – 5.400), de Hector Babenco; e Xica da Silva (1976 – 3.200), de Carlos Diegues. A partir dessa terceira fase, também houve um aumento significativo na fiscalização da atividade cinematográfica no país. Antes, os dados estatísticos eram imprecisos e se baseavam em vagas estimativas. Outro fator relevante desse período foi o reconhecimento internacional da produção brasileira que conquistou vários prêmios em festivais importantes, como os de Cannes, Veneza e Berlim. Na sua melhor fase, a Embrafilme chegou a ocupar até 35% do mercado cinematográfico nacional e a alcançar 50 milhões de espectadores para nossas obras. Apesar desse relativo desenvolvimento da cinematografia brasileira nas suas diversas vertentes, a partir do final da década de 1980, o país começou a sofrer duras consequências de uma crise que desestruturou a economia, promoveu um aumento assustador nos índices da inflação e contribuiu para um novo declínio do nosso cinema, subsidiado diretamente pelo Estado ou pelo capital privado. Como se sabe, em momentos de crise econômica, o corte de verbas para cultura e arte é uma prática constante. Dessa forma, não demorou muito para o caos atingir duramente a Embrafilme. Houve restrição quanto aos investimentos e também forte diminuição de público nas salas de cinema, afetando ainda mais a arrecadação da empresa. O que já parecia ruim ficou ainda pior a partir do lançamento do filme Pra frente Brasil, em 1982, dirigido pelo ex-diretor da Embrafilme, Roberto Farias. Ao descrever o funcionamento dos “porões da ditadura” e toda a repressão envolvida na mesma, a obra provocou antipatia do então governo militar que, apesar de muito fragilizado, ainda controlava a distribuição de verbas para o setor. O filme, 87 que havia desagradado os militares, tinha como principal produtora a Embrafilme, que começou a ser boicotada por eles. Com o retorno da democracia ao país, reascendeu-se também na classe artística o sonho de se consolidar uma indústria cinematográfica nacional. Enquanto a Embrafilme era cada vez mais abandonada, o então presidente José Sarney promulgou a primeira lei federal de incentivo fiscal para atividades artísticas no Brasil: Lei Sarney (Lei Nº 7.505, de 2 de julho de 1986). Essa ação teria ocorrido um ano após a separação dos ministérios da Cultura e da Educação. Mônica Herculano (2012) relata que, através dessa lei, as empresas passaram a poder financiar, por meio de renúncia fiscal, algumas ações realizadas por produtores artísticos, que deviam ter registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CNPC). Esse cadastro era gerido pelo MinC (Ministério da Cultura) e pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda. Depois de o projeto receber os recursos necessários, seja por doação ou patrocínio, a entidade cultural realizadora deveria prestar contas à Receita Federal e ao Ministério da Cultura sobre as formas de aplicação do dinheiro. A autora diz que esse procedimento representava um dos principais problemas da Lei Sarney: as ações não eram julgadas como peças de pré- produção, através de um projeto aprofundado e orçamento detalhado – como acontece hoje –, mas, sim, como mecanismos de pós-produção, ou seja, somente após todo o investimento ter sido feito. Pautada no simples cadastro do preponente, a Lei Sarney suscitou diversas fraudes e irregularidades. Para piorar a situação, a lei também não obrigava que o produto cultural apoiado tivesse circulação pública. Assim, algumas ações com vultoso investimento do Estado sequer chegavam aos olhos e ouvidos do público que, em última instância, pagava pela realização cultural. Muitas críticas e reclamações foram dirigidas à Lei Sarney, especialmente no campo cinematográfico. Dessa forma, mesmo com o início da abertura política e com o desenvolvimento da Nova República, o processo de abandono da Embrafilme não mudou muito. O próprio ministro da Cultura na época, Celso Furtado, justificava o esvaziamento, alegando que a empresa era um resquício do regime militar e, 88 desta maneira, representava um corpo estranho aos tempos de abertura política. Em 1987, foi aprovada uma nova reestruturação para a estatal, o que, na prática, representou a aceleração dos passos na direção do fim desse órgão, poucos anos mais tarde. Melina Izar Manzon (2006) explica que o modelo adotado pela Embrafilme, no qual o Estado financiava diretamente a produção de filmes, já era duramente criticado por alguns cineastas que apontavam para certo favoritismo de determinados realizadores dentro da instituição. O processo de deterioração da estatal foi, aos poucos, sendo ainda mais agravado. Em 1990, o então presidente Fernando Collor de Mello, dentro de uma estratégia neoliberal, promoveu a abertura do país para as importações, fazendo o chamado “enxugamento da máquina” e cortando a presença do Estado em diversas áreas. O período marcou até mesmo a inusitada extinção do Ministério da Cultura. No caso do cinema, deixou de haver fiscalização sobre a entrada do filme estrangeiro e obrigatoriedade de exibição do filme brasileiro. O Brasil, de forma apressada e desestruturada, entrou na nova fase do capitalismo, em que os bens culturais tornavam- se cada vez mais importantes, graças à nova configuração do capital que faz do consumo o elemento central. (MARSON, 2009, p. 31). O discurso oficial dizia que o cinema nacional deveria se inserir na lógica de mercado, desobrigando assim o Estado dos incentivos ou interferência direta. Coube ao ex-presidente Collor de Mello, em um mandato que acabou durando apenas dois anos, dar o tiro de misericórdia na estatal, em 1990, e originar um dos legados mais negativos para o cinema nacional. No início dos anos 1990 a crise do cinema brasileiro alcançou seu ápice. A produção de novos filmes ficou praticamente reduzida a zero. As salas de exibição espalhadas pelo país exibiam somente filmes norte-americanos. O fim da Embrafilme levou ao colapso o antigo sistema de produção, distribuição e exibição de filmes nacionais. Embora a empresa tenha apresentado durante sua existência grandes defeitos, o cinema brasileiro tinha um ponto de referência. (LEITE, 2005, p. 120). 89 Muitos autores, inclusive Sidnei Ferreira Leite (2005), defendem que os dois anos do governo de Fernando Collor estão entre os piores da história do cinema brasileiro. Vale lembrar que até mesmo o Ministério da Cultura foi rebaixado à condição de Secretaria. O então secretário de cultura, cineasta e jornalista Ipojuca Pontes (1942-), advogou a favor do fim da Embrafilme, alegando que a entidade havia se tornado ineficiente com o tempo, transformando-se em mais um “cabide de empregos” do governo militar. Na opinião de Pontes, a estatal contribuía para o fortalecimento da burocracia, o esvaziamento da iniciativa privada, a devastação das atividades independentes relacionadas ao cinema, bem como a desunião da classe cinematográfica, uma vez que teria se tornado uma espécie de condomínio fechado que privilegiava determinado grupo de cineastas. Refletindo sobre esse posicionamento do governo, o antigo diretor da Embrafilme, Roberto Farias, chama a atenção para um amplo leque de interesses que motivaram tamanho abandono por parte do governo. Como a Embrafilme foi criada durante o governo militar, a imprensa não tinha por ela nenhuma simpatia. Choviam mandados de segurança. O cinema estrangeiro pagando matérias nos jornais com acusações de corrupção. Foi neste momento que o Brasil elegeu Collor de Mello. Com um peteleco, ele acabou com a Embrafilme, o Concine e todos os fundos baseados na receita do filme estrangeiro no Brasil. Foi um dos primeiros atos. Ele desmontou as leis de proteção e destruiu todos os mecanismos de controle do mercado instituídos pelo Concine para fiscalizar a remessa de lucros das distribuidoras estrangeiras. Hoje, ninguém sabe com certeza quanto rende um filme no Brasil e o Banco Central é obrigado a autorizar a remessa que as distribuidoras estrangeiras apresentarem como corretas. (FARIAS in LEITE, 2005, p. 120). Na prática, o Governo acreditava que os filmes produzidos no país deveriam enfrentar o cinema norte-americano sem nenhum tipo de proteção, inclusive nos âmbitos da distribuição e divulgação. Com o fim da Embrafilme, em 1990, as atividades cinematográficas no território nacional foram reduzidas drasticamente, criando um cenário de terra arrasada para a cinematografia brasileira. 90 De acordo com Luiz Zanin Oricchio (2008), a produção cinematográfica brasileira só não caiu a zero porque alguns filmes já haviam começado a ser produzidos anteriormente. Para se ter uma ideia da redução, até aquele momento, no ano de 1992, impensada em todo o país, foram finalizados apenas dois longas-metragens18. Em 1993, esse número ficou restrito a 11. Vale ressaltar que boa parte desses filmes não conseguiu chegar ao circuito comercial. Até mesmo os mais tradicionais festivais de cinema do país tiveram dificuldades para encontrar participantes nesse período. Em 1992, o Festival de Gramado teve que se tornar ibero-americano para conseguir um número mínimo de produções, enquanto o Festival de Brasília – o mais antigo do país – acabou diminuindo muito seu nível de exigência sobre as produções nacionais sobreviventes. 3.2 – Novamente o Estado como máquina motriz Pedro Butcher (2005) lembra que, quando a Embrafilme acabou, o Brasil estava vivendo uma grande turbulência política. As primeiras medidas do governo Collor de Mello refletiam um discurso pretensamente modernizador que desejava colocar o país dentro do modelo neoliberal daquele momento. Entre as ações estavam o confisco de contas bancárias e a extinção de instituições públicas, como a própria Embrafilme. Dessa maneira, a crise vivida pelos produtores de cinema, nesse período, estava contida dentro de um mecanismo bem mais amplo que atingia toda a sociedade brasileira. Além dos problemas na área cultural, o governo de Collor de Mello enfrentava dificuldades para construir uma base sólida de apoio no Congresso. Para agravar sua situação, surgiram as acusações de corrupção sobre a figura do presidente. Assim, ele se viu obrigado a substituir ministros e secretários, na tentativa de reverter tal desgaste. Naquele momento, Ipojuca Pontes foi substituído por Sérgio Paulo Rouanet na Secretaria de Cultura. 18 Fonte: Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. 91 Após o fechamento da Embrafilme e a instituição dessas leis, o Estado parou de investir diretamente na produção de filmes. Iniciaram-se, então, movimentos de pressão por parte dos cineastas para a constituição de um novo dispositivo de amparo legal para a produção audiovisual brasileira. Foi preciso pensar e construir uma nova maneira de se produzir filmes. Durante a sua gestão, Paulo Rouanet buscou formas de recuperação para a cultura brasileira, especialmente para o cinema nacional, cuja produção já havia se tornado praticamente nula. Após diálogo com vários setores, ele propôs o texto da Lei Nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, que ficou conhecida Lei Rouanet. Começou a funcionar através da concessão de incentivos fiscais às atividades culturais (incluindo projetos audiovisuais), possibilitando aos contribuintes a opção pela aplicação de parcelas do Imposto de Renda tanto no apoio a projetos apresentados por pessoas físicas ou jurídicas de natureza cultural, com ou sem fins lucrativos, ou através de contribuições ao Fundo Nacional de Cultura. Cabia ao Governo Federal fixar, anualmente, o valor limite global de deduções relativas aos incentivos fiscais previstos na Lei. A nova Lei contemplava duas formas de incentivo: a) Doação: transferência gratuita, em caráter definitivo, à pessoa física ou jurídica de natureza cultural, sem fins lucrativos, de recursos financeiros, bens ou serviços para a realização de projetos, previamente aprovados pelo MinC. Nesse caso, era proibido o uso de publicidade para a divulgação desse ato; b) Patrocínio: transferência gratuita, em caráter definitivo, ao proponente de projeto cultural aprovado pelo MinC, com ou sem fins lucrativos, de recursos financeiros para a sua execução, com finalidades promocionais ou institucionais de publicidade. Como o Governo Collor foi muito curto e demasiadamente conturbado, as leis de incentivo à cultura foram aprimoradas somente durante os governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. O primeiro presidente recriou o Ministério da Cultura e teve a produção de filmes como uma prioridade, destinando cifras bem vultosas para esta atividade. Em 20 de julho de 1993, foi promulgada a Lei Nº 8.685, mais conhecida como Lei do Audiovisual. Apesar de seguir o mesmo mecanismo de renúncia fiscal, ela estava direcionada somente 92 para projetos da área de cinema, TV e vídeo. Por esta lei, qualquer empresa poderia deduzir até 3% do imposto de renda se este dinheiro fosse revertido para a produção de obras audiovisuais. Além disso, incentivava produtoras estrangeiras a investir na produção audiovisual brasileira, permitindo a dedução de até 70% do imposto sobre a remessa de royalties para o exterior. Em ambos os casos, a dedução seria integral, sem necessidade de contrapartida de investimento próprio. A partir dessa data, os projetos audiovisuais puderam se beneficiar das duas fontes: Lei Rouanet e Lei do Audiovisual, desde que para financiar despesas distintas. Assim, o Estado passou a oferecer dedução fiscal de imposto de renda para as empresas privadas promoverem este tipo de patrocínio ou apoio, principalmente através da Lei do Audiovisual. A partir da Lei do Audiovisual, os cineastas brasileiros começaram a construir um novo modelo de economia para o cinema nacional, um “modelo em parceria”, como se de repente descobríssemos que o cineasta brasileiro só pararia de viver de ciclos e se tornaria uma atividade permanente no país, na medida que fosse um bom negócio para todos os agentes da atividade. Mas, esse é um modelo que não constrói na porrada, mas com muita paciência e negociação, acreditando que aquilo que demora a ser negociado no tempo é sempre o que acaba durando mais. (DIEGUES apud SILVA, 2009, p. 89). Com a promulgação da Lei do Audiovisual e Lei Rouanet, o Estado se recolheu a um tipo de mediador do fazer cinematográfico, uma vez que o mercado se tornou o grande regulador e centro desta nova cadeia de produção. É importante salientar que essas novas leis, de operação complexa, demoraram a surtir efeito. O ritmo das produções foi gradativamente retomado e, a partir do ano 2000, alcançou certa estabilização, alcançando uma média de 30 longas nacionais lançados por ano. Lúcia Nagib (2002) argumenta que as leis de incentivo, os prêmios e particularmente a Lei do Audiovisual proporcionaram uma abertura democrática no cinema nacional. Inúmeros diretores que, no início dos anos 90, estavam confinados ao curta-metragem, a partir de 1994, puderam lançar- se no longa, com obras que já se tornam marcos em nossa cinematografia. Não apenas porque estreantes no longa- 93 metragem, como Tata Amaral e Beto Brant encontram-se em pé de igualdade com veteranos como Cacá Diegues e Nelson Pereira dos Santos. [...] Mas também porque o Brasil se mostra em sua geografia ampla, para além do eixo Rio-São Paulo. [...] Cineastas vindos da publicidade encontram representantes do Cinema Novo, documentários estão ao lado da ficção comercial, dramas contemporâneos se alinham a filmes históricos. (NAGIBI, 2002, p. 14). Nagib também destaca o crescimento da participação feminina no cinema brasileiro. A partir da segunda metade da década de 1990, a mulher assumiu muito mais funções de direção e produção em longas-metragens.19 Na opinião da autora, a partir da diversificação geográfica e etária dos diretores, bem como da elevação gradativa do número de mulheres cineastas, o cinema brasileiro foi conseguindo oferecer uma imagem mais acurada do país. Apesar dos números e alguns aspectos positivos apontados por Lúcia Nagib, Luiz Zanin Oricchio (2003) reflete sobre a participação equivocada da crítica naquele momento, que teria voltado seu olhar meramente para processos mercadológicos. Depois do período mais traumático, quando começa a renascer das cinzas, o cinema brasileiro suscita reações ambíguas da crítica. Parte dela, veterana do desmanche operado nos anos 1980, durante algum tempo finge que o cinema brasileiro continua não existindo. [...] Outra parte passou do desprezo à adesão assim que o cinema brasileiro deu mostras que iria sobreviver. Gente que nem podia ouvir falar de filmes brasileiros passou a citar Paulo Emílio Salles Gomes e Glauber Rocha como se fossem referências de longa data. [...] outro segmento passou a tratar o cinema como uma criança convalescente. O doente que estivera à beira da morte e agora emitia sinais vitais mais estáveis deveria ser tratado com cuidado. Tanto a crítica destrutiva, também a superproteção podia ser pouco recomendável, como se viu depois. Cineastas mimados, nada dispostos a escutar qualquer coisa que não fosse elogio incondicional, foram criados à sombra de uma trégua temporária, que eles julgavam eterna. É curioso como, naquele período, nos primeiros anos da década de 1990, a agenda jornalística para o cinema nacional passou a ser predominantemente legal e econômica. (ORICCHIO, 2003, p. 217). 19 Lúcia Nagib aponta que, durante as primeiras décadas da Retomada, 20% das produções cinematográficas brasileiras são dirigidas por mulheres. 94 A Lei do Audiovisual também contribuiu para a distribuição de nossos filmes, dando novas condições para as distribuidoras internacionais instaladas no país investirem em obras brasileiras e debitarem os mesmos investimentos no imposto pago sobre a remessa de rendimentos. Dessa maneira, grandes distribuidoras (especialmente norte-americanas) passaram a atuar como co- produtoras de filmes brasileiros que ganharam inserção mais competitiva no mercado. Contribuindo para esse quadro positivo, a estabilidade monetária, a partir da segunda metade dos anos 1990, aqueceu o mercado cinematográfico no país. Em um período de apenas cinco anos, entre 1997 e 2002, o número de espectadores em nossas salas de cinema saltou de 2,5 milhões para auspiciosos 7 milhões. A Lei do Audiovisual atuou em dois setores fundamentais das atividades cinematográficas: a produção e a distribuição de filmes. No segundo aspecto, criou, por exemplo, condições novas para as distribuidoras internacionais instaladas no Brasil investirem em projetos cinematográficos nacionais e debitarem tais investimentos no imposto pago sobre a remessa de investimento. O fato tornou possível que produtoras como a Fox, a Warner e a Columbia, e distribuidoras independentes como a Lumière, passassem a atuar como coprodutoras de filmes. A rigor, a distribuição das películas nacionais, que nos tempos da Embrafilme ficava a cargo do Estado, passou a ser feita pelas distribuidoras privadas, notadamente multinacionais (LEITE, 2005, p. 123). Sidney Ferreira Leite crê que outro fator também tenha contribuído para esse sucesso de bilheteria: a implantação gradativa do sistema multiplex de exibição. O grupo norte-americano Cinemark difundiu novos conjuntos de salas de cinema mais confortáveis, dotadas de equipamentos com maior qualidade de imagem e som. Além disso, esses espaços, normalmente, foram construídos em shopping centers, o que, de certa maneira, agregou valor ao empreendimento através da segurança, conforto, comodidade de estacionamento e outros serviços disponíveis. No Brasil, o primeiro conjunto de salas começou a funcionar em 1997, na cidade de São José dos Campos. Vale ressaltar que nem todo cineasta teve a oportunidade de exibir suas obras em uma sala dessas. Muitos ainda reclamam de guetos de exibição. Pensando o Cinema de Retomada a partir da leitura de García Canclini (2008), Eduardo Dias Fonseca (2012) defende que o processo de reconversão, 95 proposto pelo primeiro autor, pode ser identificado como saberes já adquiridos e usados pelos diferentes ciclos da cinematografia no Brasil. Dessa forma, através da reconversão, nossos realizadores estariam assimilando os novos processos produtivos desencadeados pelos dispositivos legais e a nova realidade da produção audiovisual. Nesse caso, nos últimos anos, estaríamos acompanhando a negociação dos conjuntos de saberes e técnicas usadas pelo cinema produzido no Brasil a fim de inseri-lo em novas condições de produção e mercado. A reconversão opera no seio do dispositivo legal, reorientando o saber patrimonial da realização fílmica no Brasil (direcionada à relação cinema-arte) para a possibilidade de transformá-lo em produto de consumo (relação cinema-mercado), ou seja, seria uma reviravolta entre os eixos cinema-arte para tentativa de, a partir dos dispositivos legais, criar a ponte com o eixo cinema- consumo (FONSECA, 2012, p. 19). Nesse caminho, revivemos o trânsito dual e o embate entre as possibilidades eruditas do fazer artístico e a indústria cultural. Na opinião de Marson (2009), o cinema brasileiro ocupa exatamente essa posição intermediária entre a indústria e o desejo intelectual. O campo do cinema no Brasil oscila entre a arte erudita e a indústria cultural, e essa oscilação, que está presente em toda a história do pensamento e do fazer cinematográfico brasileiro, é responsável pela grande contradição na definição do cinema no Brasil como arte ou como indústria. Uma contradição que implica aceitação de duas formas distintas de legitimação, a saber: a legitimação via reconhecimento interno do campo (como nos demais campos da arte erudita) e a legitimação via mercado de bens simbólicos (como nos campos da indústria cultural) (MARSON, 2009, p. 71). Para Eduardo Fonseca (2012), a partir da Retomada, esse velho embate entre cinema erudito e cinema comercial perdeu a intensidade, uma vez que o Cinema de Retomada estabeleceu uma muito tênue linha entre essas duas formas de produzir, apresentando características mais próximas do cinema de entretenimento e promovendo significativas mudanças em nossa forma de ver e pensar sobre o consumo das obras cinematográficas nacionais, em um diálogo 96 mais íntimo com outras nações. Fonseca defende que, este tipo de reconversão geraria a possibilidade da criação de um cinema mais próximo do público. 3.3 – Retomada: fotogramas de um cinema verde-amarelo das últimas décadas Atualmente, o termo Retomada é apontado por alguns autores como uma designação demasiadamente desgastada e manipulada. Conforme Pedro Butcher (2005), Retomada designa o processo de recuperação da produção cinematográfica no Brasil, depois de uma das mais graves crises, no começo dos anos 1990. Dialogando com Butcher, Rosana Elisa Catelli e Shirley Pereira Cardoso (2009) pensam o cinema da Retomada como o conjunto de produções nacionais realizadas a partir de 1995, com recursos decorrentes da nova legislação, especialmente da Lei do Audiovisual. Pedro Butcher defende que o nome “Retomada” guarda em si um sentido curioso, uma vez que ele não subentende qualquer denominador comum ou forma de totalização estética ou política. Em seu sentido literal, estaria apenas a ação de retomar aquilo que fora interrompido. Possivelmente, essa é a primeira vez na trajetória da produção de filmes no Brasil que uma fase de sua história é batizada com um nome que não subentende um novo começo a partir do zero (como Cinema Novo, por exemplo), e nem propõe uma unidade estética ou temática. “Retomada” apenas denota um processo. (BUTCHER, 2005, p. 15). A maior parte dos primeiros longas-metragens que foram concretizados e lançados no período da Retomada foi feita sob uma grande cobrança, na qual, cada um deles tinha uma espécie de missão de redimir o cinema brasileiro e reconquistar sua dignidade. Mais do que nunca, a responsabilidade do êxito comercial e a exigência de se alcançar determinado “padrão de qualidade” pesavam sobre produtores e realizadores. Era preciso “estar à 97 altura do cinema americano”, fazer sucesso, provar competência. Talvez por isso, boa parte dos filmes desse período se pareça com tentativas isoladas de acertar uma fórmula mágica. (BUTCHER, 2005, p. 22). Conforme relata Pedro Butcher, em 1992, José Joffily lançava A maldição de Sampaku, um tipo de exercício de gênero que misturava o thriller americano a temas brasileiros. No mesmo ano, Ricardo Pinto e Silva dirigiu Sua Excelência, o candidato, uma comédia de grande sucesso no teatro. Em 1993, Mauro Farias lançava Não quero falar sobre isso agora. De acordo com Butcher, somente em 1994 começaria a se desenhar um quadro mais animador a respeito da consolidação de uma nova safra de produção cinematográfica no Brasil, com estreias dos filmes A terceira margem do rio, de Nelson Pereira dos Santos, Veja esta canção, de Carlos Diegues, Era uma vez, de Arturo Uranga, Capitalismo selvagem, de André Klotzel, Alma corsária, de Carlos Reichenbach e Lamarca, de Sérgio Rezende – que é analisado neste estudo. Em 1995, a produção cinematográfica torna-se ainda mais forte em captação de público. Nesse ano, 13 longas-metragens chegaram aos cinemas, totalizando mais de 2,9 milhões de espectadores, um resultado dez vezes superior ao público do ano anterior. O filme apontado como marco desse período é Carlota Joaquina, princesa do Brasil, dirigido por Carla Camurati e lançado também 1995. Apesar de ter sido realizado com baixo orçamento e de não contar com nenhum grande esquema de distribuição, o filme obteve mais de um milhão de espectadores. Entre os segredos para essa repercussão podem ser apontados: o elenco já conhecido da televisão, o humor típico das chanchadas, a ironia no olhar sobre a História do Brasil e o gosto do público nacional pelas caricaturas. Além disso, o filme símbolo da Retomada usou recursos criativos para driblar a precariedade do orçamento (R$ 500 mil), como o uso de planos mais fechados e a pesquisa de materiais mais baratos para a confecção dos figurinos de luxo de época. Na opinião de Pedro Butcher, esses primeiros filmes do período da Retomada falam e retratam o Brasil de uma maneira enviesada, com um tipo de receio de tocar em certas feridas. Para ele, esse “medo” pode ser resultado do próprio modo de produção gerado pelas leis de incentivo fiscal, uma vez que boa 98 parte das decisões sobre quais filmes deveriam receber financiamento ficava a cargo dos departamentos de marketing das empresas. Assim, de forma subentendida, diretores e produtores passaram a constituir projetos que não ferissem a imagem das marcas que se associariam a eles. Além disso, havia outro fator muito determinante: o medo de desagradar o público e afastá-lo ainda mais das produções brasileiras. Os anos logo após o fim da Embrafilme foram marcados por um grande vazio institucional e pela disseminação da ideia de que os filmes feitos no Brasil seriam de baixa qualidade. Era preciso provar a capacidade com o produto estrangeiro, este sim, o “verdadeiro” cinema. “Nem parece filme brasileiro” passou a ser uma frase corrente na saída das sessões de tantos filmes da retomada. (BUTCHER, 2005, p. 33). Nesse contexto, o reconhecimento internacional da produção brasileira começou a ganhar maior importância. Assim, em seus primeiros anos, os filmes da Retomada lutaram para reconquistar o público interno e também o prestígio internacional – conseguido, anteriormente, com o Cinema Novo. Em muitas daquelas novas produções, foi colocado o fardo de representar o país em uma missão que se aproximava ao futebol. Paralelo a este movimento, acompanhava- se também um tipo de febre nacionalista. Quando O Quatrilho, de Fábio Barreto, recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1996, o diretor chegou a posar para uma revista enrolado na bandeira brasileira. A cada cerimônia do Oscar com participação nacional – o que se repetiu em 1998, com O Que É Isso Companheiro?, e em 1999, com Central do Brasil – espalhavam-se torcidas país afora. Era como uma Copa do Mundo, em que a derrota seria vista de forma devastadora. (BUTCHER, 2005, p. 33). Lúcia Nagib (2002) e Sidney Ferreira Leite (2005) ressaltam que o significado da expressão retomada, que ressoa como um boom ou um movimento cinematográfico está longe de alcançar unanimidade, tanto entre os pesquisadores, quanto entre os realizadores. Para aqueles contrários, não houve propriamente uma retomada, mas, sim, uma longa interrupção, em virtude do fechamento da Embrafilme. Eles alegam que parte dos recursos da produtora 99 extinta foi direcionada para o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro que realizou três seleções de propostas entre 1993 e 1994 e contemplou um total de 90 projetos (25 de curtas, nove de médias e 56 de longas-metragens), que foram finalizados logo depois. Com o estrangulamento da produção, entre 1990 e 1992, ocorreu um acúmulo de filmes que foram produzidos a partir de 1993, sugerindo uma aparente efervescência. Nesse posicionamento, o termo Retomada seria visto, antes de tudo, como uma estratégia de mercado. A lista de filmes que começaram a ser produzidos a partir desse período é extensa e bastante diversificada em termos temáticos e estéticos, apontando para uma das principais tendências do cinema brasileiro dos últimos anos: a mistura dos diversos gêneros. Nesse sentido, a Retomada não se configurou como um movimento cinematográfico que apresentasse uma plataforma política ou uma unidade estética. Pode sim ser caracterizado como um movimento do cinema nacional em que os investimentos advindos das leis de incentivo proporcionaram uma ampliação da produção de filmes, de novos diretores e de uma grande diversidade de propostas. (CATELLI; CARDOSO, 2009). Logo nos primeiros anos da Retomada, novos nomes começaram a aparecer nos créditos dos filmes, como os de Tata Amaral, Beto Brant, Lírio Ferreira e Paulo Caldas, entre tantos outros. Boa parte deles estava preocupada com a renovação da dramaturgia e da linguagem. Luiz Zanin Oricchio (2008) destaca a estreia dos filmes Um céu de estrelas (1996), de Tatá Amaral; Baile perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira; e Os matadores (1997), de Beto Brant. A valorização das obras não seria tanto pelos temas abordados, mas, principalmente, pelo sentido de inovação na forma apurada de narrar. Conforme Lúcia Nagib (2002), na década de 1990, verifica-se o aprofundamento da tentativa de apreensão de um Brasil real. Por um breve período, a paixão pelo Brasil andou de mãos dadas com o aumento da produção de filmes. Assim, para muitos cineastas desse período, o “renascimento” do cinema nacional também significou a “redescoberta” da pátria. Um bom exemplo desse posicionamento pode ser encontrado no trabalho do cineasta Sérgio 100 Rezende (1951-), através da adaptação de alguns fragmentos de nossa história, culminando em produções como Lamarca (1994) e Guerra de Canudos (1996). Em 1998, acompanha-se o lançamento do longa-metragem Central do Brasil (Brasil / França, 1998), de Walter Salles, que, pouco depois, passou a ser conhecido como filme-símbolo da Retomada. Para Lúcia Nagib, a obra segue o próprio movimento já sugerido no próprio título, de convergência para o coração de um país que precisa mostrar outras faces na telona. O filme se abre com imagens frontais de atores escolhidos entre populares, de idades, sexos e cores variadas, que ditam cartas com sotaques das diferentes regiões do Brasil. Evidencia-se aqui uma atitude que se tornará recorrente no cinema brasileiro até o presente: cineastas procedentes de classes dominantes dirigem um olhar de interesse antropológico às classes pobres e à cultura popular, com destaque para os movimentos religiosos. Tenta-se vencer o abismo econômico entre os realizadores e seus objetivos, se não com adesão, pelo menos com solidariedade. (NAGIB, 2002, p. 16). Dialogando com Nagib, Pedro Butcher (2005), defende que, a partir de Central do Brasil, o cinema feito no Brasil teria entrado em uma nova fase. Na obra, a bagagem documental de Walter Salles contribuiu para incorporar à história depoimentos de pessoas que cruzaram com a equipe ao longo das filmagens, formando uma mistura indissociável entre atores e não-atores que interpretam ou expressam depoimentos previamente escritos e outros espontâneos. Constituindo uma narrativa em tom afetuoso, Central do Brasil é o filme brasileiro recente que mais foi premiado no exterior, acumulando mais de 20 importantes troféus e fazendo com que Walter Salles se tornasse um dos diretores de maior prestígio da Retomada. Central do Brasil exerceu um papel fundamental no processo de reinserção do cinema no coração da sociedade brasileira. Com ele, o cinema brasileiro voltou a ser motivo de celebração. Para alguns, Central teria desempenhando um papel além do cultural, com uma possível influência na recuperação da auto-estima do país, que havia chegado a um de seus piores momentos durante a crise moral e política do governo Collor. [...] Mas parte da crítica também lançou questionamentos que geraram a primeira grande polêmica da retomada. Para alguns, Central do Brasil seria o exemplo mais claro de um cinema brasileiro de tendências 101 cordiais e não combativas, longe da proposta de se encontrar um caminho próprio de expressão inaugurado pelo Cinema Novo. (BUTCHER, 2005, p. 46). Sidney Ferreira Leite considera que a falta de unidade temática e estética revela que o período conhecido como Retomada representa mais que o renascimento das produções nacionais. Para ele, seriam obras sem compromisso com a continuidade de movimentos anteriores, como o Cinema Novo ou o Cinema Marginal. Nos filmes da Retomada é notável a pluralidade em todos os níveis, sobretudo, temática, num forte desejo de adentrar em novos espaços de mercado. Os filmes da “retomada”, mesmo quando têm como cenário de seus roteiros ambientes socialmente degradados, especialmente o sertão e a favela, desenvolvem uma narrativa melodramática. O enfoque recai sobre dramas individuais, os aspectos sociais mais amplos são obliterados ou colocados em plano secundário. Em outras palavras, as mazelas e contradições da sociedade brasileira servem apenas de moldura, não são discutidas. No entanto, abordar as chagas sociais do país agrega às produções recentes uma espécie de chancela de qualidade intelectual e artística. (LEITE, 2005, p. 130). Na visão de Leite, boa parte dos filmes da Retomada prima por uma postura politicamente correta, abrindo mão de apresentar ou debater projetos políticos alternativos. O hibridismo demonstrado não deve ser entendido como alteridade dos diretores em relação às suas obras. Além disso, pode ser observado um alto grau de pragmatismo no que se refere à abertura de parcerias para a produção cinematográfica atual. A pesquisadora Lúcia Nagib (2006) relata que, após o início da Retomada, houve o aparecimento de um tipo de estética transnacional, que passou a empregar uma tipologia de estruturação de roteiros “com tendências mundializantes”, direcionados ao fomento via prêmios, concursos e coproduções. Dessa forma, passou-se a priorizar um público mais amplo e obras sem grandes ambições estéticas. Na opinião da autora, essa nova “estética transnacional” originou filmes com características em comum, como um tipo de linguagem autorreflexiva e a construção de um herói privado, representando uma sociedade ou um grupo social. Nesse sentido, o tom pessoal também é evidenciado, pela 102 autora, como uma das características comuns aos filmes do cinema brasileiro pós-Embrafilme. O cineasta Sylvio Back (1937-) evidencia que a submissão às regras do mercado é extremamente prejudicial e, na sua visão, os filmes, a partir da Retomada, formam: Um cinema asséptico, um cinema pudico, descarnado politicamente, [...] um cinema anódino. Simplesmente porque a grande maioria dos patrocinadores „vigia‟ os roteiros, impõe cortes, veladamente provoca a autocensura nos diretores- produtores, incentiva o cinema de emoções baratas ou [...] a empresa ignora o projeto para não se comprometer. (BACK in LEITE, 2005, p. 132). Refletindo sobre a forma de registro do sexo no cinema nacional, Cléber Eduardo (2003) afirma que, com a Retomada, enfrentou-se uma espécie de limpeza da imagem e, ao mesmo tempo, uma relação de pudor no tratamento de temas, como erotismo e sensualidade. Tal comportamento seria um reflexo da busca pela aceitação de uma moral das elites, bem como de um padrão de exibição internacional. De acordo com Catelli e Cardoso (2009), o novo modelo de produção cinematográfica baseado na renúncia fiscal originou filmes nos quais há uma supremacia de critérios publicitários, em detrimento das escolhas estéticas ou propostas políticas. Tal fator teria originado a oposição “estética da fome” versus “cosmética da fome” – conceito cunhado pela pesquisadora Ivana Bentes. Nesse sentido, uma aproximação comparativa entre Cinema da Retomada e Cinema Novo se fez presente. As autoras explicitam que o próprio sertão foi revistado por diversas vezes no cinema produzido durante a Retomada; contudo, sob um olhar diferenciado, como em Baile perfumado (1997) – no qual a própria caatinga é mostrada coberta de verde e cortada por rios caudalosos; ou em grandes produções épicas, como Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende. Nessa base crítica, Luiz Zanin Oricchio (2003) alega que muitos dos produtos audiovisuais que tomaram a miséria brasileira como tema a colocaram à venda de uma forma edulcorada e pasteurizada, promovendo um tipo de “miséria bonitinha para gringo ver e classe média comprar” (ORICCHIO, 2003, p. 222). 103 Sidney Ferreira Leite (2005) mostra que, enquanto os cineastas do Cinema Novo investiram no experimentalismo, muitas vezes, permanecendo distantes das leis de mercado – e de próprio público –, no Cinema da Retomada, encontra-se a fidelidade às narrativas tradicionais, esquemáticas e naturalistas – típicas do cinema hollywoodiano. Os profissionais do cinema brasileiro passaram a buscar espaço também no mercado internacional. Contudo, esse procedimento requereu a adoção de algumas estratégias narrativas, como o predomínio de dramas, tensões e conflitos do cotidiano nos filmes; a inovação técnica na captação; a busca pelo requinte no tratamento das imagens e na confecção do roteiro; a ênfase ao multiculturalismo, trazendo as margens para o centro da discussão. Isso se deve a dois motivos principais: o condicionamento de boa parte dos críticos europeus em visualizar as obras brasileiras apenas dentro de um cinema social, radical e violento e também por conta de uma expectativa por parte do público norte-americano e europeu. A diversidade temática dos últimos anos normalmente é atribuída ao reflexo da própria imensidão do território nacional, agora registrado de forma descentralizada, com produções advindas das mais variadas regiões. Entretanto, essa opinião não possui unanimidade. Zanin Oricchio (2003) argumenta que apenas 25% da produção nacional é realizada fora das capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. Conforme Oricchio, são poucos os filmes autorais ou inovadores no Cinema da Retomada. Embora heterogênea, a produção tenderia a uniformalizar a linguagem. Apesar do discurso da diversidade, podem-se perceber linhas de força que direcionam recortes temáticos. Um demonstrativo desse aspecto é a visível concentração em enredos que buscam recuperar a história nacional, como o próprio Carlota Joaquina, Guerra de Canudos, Brava gente brasileira (2000), de Lúcia Murat, ou Desmundo (2002), de Alain Fresnot. Nesse sentido, o rótulo da diversidade mais se aproximaria de uma espécie de álibi comercial, no qual as pequenas diferenças são servidas até o limite adequado para o consumo, sem apresentar elementos que possam assustar o dileto público em formação. O apelo à construção de textos fílmicos objetivando o caráter unitário de uma nação, tomando por base a cultura popular, 104 mestiça e sincrética (híbrida) se modifica. Seria como se os cineastas estivessem em paz com o Brasil, ainda que os problemas estejam tão latentes no país. Os temas sociais seguem muito parecidos, mas a maneira de tratamento desses temas é que se modifica. Passa-se da estética da fome e da violência para outra estética transnacional que leva em conta toda uma cinematografia mundial como patrimônio comum a todos. (FONSECA, 2012, p. 103). Na concepção de Oricchio (2008), o cinema brasileiro contemporâneo se assemelha a uma massa informe, sem contornos muito definidos e de difícil reflexão enquanto um conjunto. O autor é bastante incisivo ao ressaltar que a “irreflexão” seja a mais notável característica dos filmes brasileiros da atualidade. Cabe, aqui, um questionamento: todos esses fatores dispersivos apontados para as produções brasileiras atuais também não seriam um traço de um cinema universal de nossos dias? Pelo pensamento de Zanin Oricchio, na ausência de coletivos conceitualmente mais consistentes, é natural que apareçam outros grupos para reivindicar a captação de recursos e a conquista de mercado. No caso brasileiro, ele cita o exemplo das produtoras O2 e Conspiração Filmes, advindas da publicidade. Mesmo a crítica sobre o Cinema da Retomada é tida como simplificadora, para Oricchio. Rara e rala também é a reflexão (em especial por escrito) sobre o fazer cinematográfico no Brasil. Os “manifestos” são mais anedóticos do que realmente refletidos, tais como Dogma 1,99, Dogma Feijoada, BOAA (Baixo Orçamento e Alto Astral), mas voltados para chamar a atenção sobre um ou outro filme específico do que para efetivamente discutir questões estéticas, políticas ou mesmo de produção. [...] Prevalece a abordagem filme a filme e evitam-se, por perigosas, grandes generalizações. (ORICCHIO, 2008, p. 152). Com uma posição mais moderada, Andrea França (2003) afirma que o cinema produzido no Brasil, a partir dos anos 1980, trouxe a junção e a coexistência de vários elementos de linguagem do cinema clássico com o cinema moderno, promovendo uma terceira fase no cinema, regada de influências da publicidade, do videoclipe e da TV. 105 Boa parte das narrativas presentes na indústria cultural cinematográfica tende a operar com as formas de linguagem tradicionais, de um cinema clássico normativo, onde o que importa são os esquemas da linearidade, da transparência de sentido, do fechamento ou desfecho. Mas, a nosso ver, esse modelo de mundo altamente idealizado, apaziguador e confortador, tem sido atravessado por outras formas de linguagem, desarticuladoras desse modelo tradicional, permitindo o aparecimento de situações ambíguas, com sujeitos múltiplos e relações fragmentadas. De fato, pode-se dizer que há, neste terceiro estado da imagem cinematográfica, uma convivência e mesmo uma interpenetração das formas de narrativa convencionais com as formas narrativas de caráter ambivalente e cético; há uma vontade de pensar a ficção como experiência coletiva do real, no sentido de explorar e renovar a relação entre cinema e mundo, cinema e indivíduo. (FRANÇA, 2003, p. 124). Eduardo Dias Fonseca (2012) lembra que as inquietações políticas dos cinemanovistas e dos realizadores da Retomada são esteticamente diferentes. Esses últimos trabalhariam sobre as referências em um Brasil como patrimônio cultural. O autor busca um diálogo com Ismail Xavier para refletir como o cinema realizado nos anos de 1990 estaria sintonizado com discursos que valorizam o “ressentimento da classe média” e o “pragmatismo dos pobres”. Apesar de o cinema da Retomada ter trazido de volta parte da tradição de “representação do país” através de alguns dos traços identitários da cultura, como carnaval, futebol, candomblé e folclore, Ismail Xavier (2007) diferencia este ciclo do Cinema Novo, ressaltando que, no último movimento, Havia antes a ideia de que o cineasta tinha um mandato da sociedade. Ele representava valores de transformação, falava em nome das classes populares, do Brasil excluído. Isso se dissolveu e hoje se tem um cinema mais preocupado em se legitimar. É um cinema culpado. Ele precisa provar que tem legitimidade. Precisa de uma penetração social que o justifique, diante de um quadro legislativo no qual determinadas leis o viabilizam. É a ideia de que, se o cinema brasileiro não ampliar sua comunicação com o público, a Lei do Audiovisual vai se deslegitimar. Acredito que esse projeto de reconciliação tem a ver com o quadro geral da política do país. O que se tornou hegemônico na política do país é o pragmatismo.20 20 Trecho da entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 03/02/2007. 106 Ismail Xavier alega que, dessa forma, o pragmatismo que sempre esteve presente na forma de pensar dos realizadores brasileiros, passou a atuar em sintonia com a política vigente. Os cineastas abandonam a forte atitude política dos filmes do Cinema Novo para se dedicarem a uma perspectiva na qual a responsabilidade social se torna o centro. Retomando o conceito da alegoria, já explicitado anteriormente, podem-se perceber mudanças significativas àquelas formas de utilização nas décadas de 1960 e 70. A partir dos anos 1990, após o processo de abertura política e econômica, a alegoria, ainda atrelada ao nacionalismo, perde sua força como elemento construtor de discursos fortemente politizados. O interesse pelo país de origem, mostrado pela maioria dos cineastas brasileiros, já não reflete posições nacionalistas. Se em ocasiões se ufana (no deslumbramento paisagístico, por exemplo), se deve a questões circunstanciais (por exemplo, de mercado) que a anacrônicos sentimentos patrióticos (NAGIB, 2000, p. 41). Conforme aponta Eduardo Fonseca (2012), a mudança na maneira de narrar a identidade nacional contemporânea dialoga de forma ostensiva com os movimentos de globalização econômica e mundialização das culturas. O autor defende que os estudos dos processos atuais de hibridismo cultural originam uma zona de resistência à possibilidade de qualquer homogeneização da cultura. Dessa forma, passamos a ter um território de luta em que não se evidencia a “pureza” ou a “tradição”, mas a conscientização dos constantes passos de reconversão dentro das culturas hibridizadas. Quando analisamos o processo cultural na comunidade imaginada Brasil, sob a perspectiva da antropologia de Oswald de Andrade, vemos momentos de intensa reconversão. Uma das características mais marcantes desse processo são os aspectos mundializantes existentes nos procedimentos adotados por vários momentos da produção cultural do Brasil. O cinema da Retomada, como parte de um processo constante de reconversão, se encaixa nesse grupo de momentos da cultura brasileira nos quais a busca do mundo é uma característica marcante. Os aspectos dessa busca do mundo se concretizam através dos constantes apelos relacionais dentro das alteridades. O fato de assumir projetos e procedimentos de 107 culturas distintas é revelador do amplo processo relacional com o outro, e antropofágico por essência. (FONSECA, 2012, p. 111). Fonseca acredita em um duplo aspecto relacional: primeiramente, encontra-se, de um lado, a existência do capitalismo contemporâneo que indica as regras e caminhos para a globalização da economia e da cultura. Já, do outro lado, observa-se a constante utilização de procedimentos mundializados na evolução do processo cultural brasileiro em seus momentos de reconversão. Nesse sentido, a Retomada, que intitula o cinema brasileiro contemporâneo, seria mais que o retorno da produção de filmes que desejam reencontrar o público, mas também reuniria mecanismos de reconversão que operaram as diversas questões relacionadas à mundialização, ao longo do desenvolvimento do projeto cultural deste país. Na opinião de Pedro Vinicius Lapera (2011), o cinema produzido atualmente no Brasil possui um desejo de veracidade na produção de imagens relacionadas à brasilidade. Tais imagens são pautadas na ação de legitimar, contestar ou mesmo reescrever certas categorias identitárias. Lançamos duas hipóteses principais: o cinema brasileiro contemporâneo continua a explorar os lugares da imaginação do país privilegiados durante a formação discursiva do nacional popular (leiam-se favela, sertão e subúrbios) por intermédio do diálogo com outros campos da comunicação audiovisual; e, assim como as representações relativas às personagens e à narrativa, os locais/as imagens também passaram a ser representados de acordo com vários sistemas de classificação que disputam, nas fissuras do discurso pátrio, seu direito de significar, isto é, os espaços começaram a ganhar significações racializadas de gênero, de classe, entre outros. (LAPERA, 2011, pp. 146 e 147). Sidney Ferreira Leite pensa que o ciclo da Retomada não trouxe mudanças significativas na infraestrutura de produção do cinema brasileiro, exceto nas produções da Globo Filmes. Criada em 1997, mas funcionando efetivamente a partir do ano 2000, a produtora cinematográfica se impôs no mercado principalmente através da reciclagem de programas televisivos da Rede Globo. 108 Prevalece uma produção bastante rotineira, do ponto de vista da linguagem cinematográfica. O constante desafio pelo mercado tende a conduzir a um tipo de expressão banal, que se aproxima da linguagem audiovisual dominante da ficção, que é a das novelas da TV Globo, um padrão naturalista, cômico, melodramático já estabelecido pelo mercado. Sobra, portanto, pouco espaço para a inovação, a ousadia temática, a pesquisa de linguagem, quer dizer, aquilo que seria o exercício, de fato, de uma diversidade ativa e não pró-forma ou mercadológica. (ORICCHIO, 2008, p. 155). Devido à poderosa exposição de seus filmes pelo grande conglomerado de comunicação, a produtora consegue uma parte enorme do mercado interno. Apenas para exemplificar, em 2003 e 2004, dos dez filmes nacionais de maior bilheteria, sete pertenciam à mesma produtora. A Globo Filmes chegou a obter quase 70% da ocupação das salas de exibição que se abrem ao cinema nacional.21 A presença da Globo Filmes viria, em tese, suprir o filme nacional daquilo que ele tem de mais frágil em relação ao poderoso concorrente norte-americano: os altos investimentos em marketing. O preço a pagar é certa domesticação da linguagem audiovisual, adaptada a um padrão de gosto médio, tal e qual se busca em uma televisão de sinal aberto e grande alcance de público. Não por acaso, vários filmes recentes parecem se enquadrar com perfeição no famoso “padrão Globo de qualidade”, marca registrada da empresa e da qual ela muito se orgulha. (ORICCHIO, 2008, p. 144). Apesar do sucesso pontual da Globo Filmes, o cinema norte-americano continua hegemônico e a atividade de produção cinematográfica ainda é considerada uma aventura de risco. O cineasta Roberto Farias fez uma avaliação detalhada da forma de produção cinematográfica brasileira a partir dos anos 1990. Hoje, as condições são adversas, o mercado encolheu e não compensa mais. Temos menos salas de cinema e não é possível buscar dinheiro no banco. Se você calcular a receita de quanto os filmes estão dando, levando em consideração como é o mercado, 21 Dado informado no Boletim Filme B, Nº. 223, 18 fev. 2002. 109 vai perceber que não paga. Os filmes não se pagam. [...] Hoje existem fontes de financiamento, mas não existe mercado. Depois de você pedir dinheiro para colocar no filme, é como se o filme não tivesse obrigação, é como se seu filme não fosse um negócio, algo que tivesse que transformar em receita, numa atividade rentável, pagar seus custos para haver uma continuidade mínima da atividade. [...] O governo tem instrumentos que poderiam servir para desenvolver o cinema, mas toda vez que o cinema brasileiro começa a mostrar a sua força existe uma reação muito grande do cinema estrangeiro. Não é segredo para ninguém que toda vez que acontece alguma coisa importante para o cinema brasileiro, desembarcam senadores americanos nas nossas embaixadas para fazer, diplomaticamente, algumas promessas de retaliações, em taxas. (FARIAS in LEITE, 2005, pp. 137 e 138). Depois do marco zero, o diálogo entre o cinema brasileiro e seu público se tornou uma questão, ainda hoje, muito mal resolvida. A maior parte de nossos filmes entra e sai rapidamente de cartaz, não conseguindo marcar culturalmente o público por conta da falta de acesso. Oricchio relata que, depois de tirar o cinema brasileiro da UTI, as leis de incentivo, especialmente a Lei do Audiovisual, acabaram se tornando instrumento de intermediários dos projetos junto às empresas. No caso das particulares, o processo seletivo, normalmente, passou a ser baseado nas relações de marketing/retorno de imagem, sobrepondo critérios estéticos e de conteúdo. No caso das estatais, o processo de seleção parece ser menos atrelado diretamente à imagem da própria instituição e mais às obras em si. Hoje, já se contabilizam alguns anos em que a Petrobras é a principal financiadora do cinema brasileiro. Em 2004, o Governo Federal, através da Ancinav – Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual – buscou instituir políticas mais conscientes e de longo prazo para o audiovisual. Contudo, não conseguiu força necessária para o debate. Logo foi tachado pela mídia, pela Globo e por grandes empresas do setor cinematográfico de “dirigismo cultural”. Na visão desses setores poderosos da vida econômica e cultural, de um lado, havia o “atraso jurássico”, centralizador e estatizante de um governo de centro-esquerda; de outro, a saudável liberdade do mercado e de expressão, supostamente ameaçada por um intervencionsmo de tipo getulista. O que estava em questão era a consideração da cultura como setor estratégico, que não deveria ser desnacionalizado por força de fatores econômicos. Mas não 110 havia diálogo capaz de prosperar nesse clima de Fla-Flu ideológico. Após curta, mas sangrenta batalha de ideias travada na mídia, preservou-se o status quo. E neste ponto estamos. (ORICCHIO, 2008, p. 146). Os próprios cineastas se mostram divididos, gerando certa “luta de classes no cinema brasileiro”.22 Alguns setores da classe cinematográfica defendem o financiamento de filmes mais onerosos, na tentativa de retroalimentar o mercado interno. Do outro lado, encontra-se o grupo que aposta no cinema de baixo custo – filmes também conhecidos como BOs ou de baixos orçamentos. Sua defesa estaria alicerçada na liberdade de experimentação, na pluralidade de temas e propostas estéticas, bem como na possibilidade de acesso mais democrático às obras. O estabelecimento de um “sistema” cinematográfico mais estável no Brasil é coisa para um futuro talvez distante, quando políticas mais consistentes puderem ser desenvolvidas e quando se estabelecer uma demanda social por ele, uma expectativa de fato enraizada na sociedade e que não possa ser desfeita por um decreto. Esse é um processo histórico com ritmo próprio. Talvez não se possa queimar etapas e a criação de órgãos e políticas condizentes tenha de esperar por momento político mais propício. De toda forma, não parece haver clima para um desmanche radical como o que ocorreu no início dos anos 1990. (ORICCHIO, 2008, p 148). A data limite do Cinema da Retomada também é controversa. Alguns usam a expressão apenas para designar o período de governo de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, outros autores, como Pedro Butcher (2005)23 e boa parte da imprensa continuam a utilizar a nomenclatura para expressar a produção cinematográfica brasileira contemporânea, entendendo que o cerne das regras de financiamento dos filmes não foi alterado. Nesse sentido, a Retomada não é vista como etapa vencida, mas como processo ainda em curso, um cinema em fase de reestruturação, com muito ainda para avançar. 22 Expressão usada por Oricchio, em título de artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 25 de setembro de 2004. 23 Citado por Luiz Zanin Oricchio (2008). 111 Capítulo 4 – NOSSOS FILMES, ALGUNS HERÓIS 4.1 – Pré-produção das análises fílmicas Francesco Casetti e Federico di Chio (1998) defendem que a análise fílmica não é simplesmente o deciframento de um texto, mas também a exposição e valoração de um modo próprio de aproximar-se do cinema. Os autores alertam que a análise fílmica não possui uma disciplina precisa e nem um trajeto puramente teórico. “En la práctica de análisis ciertos pasos se efectúan sólo tácitamente: el recuento final los pone entre paréntesis o los engloba en fases vecinas”. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 63). Eles ressaltam que o analista de filmes deve responder às questões da análise usando também seus próprios critérios de intervenção e sempre deixando uma margem para os elementos subjetivos e para a criatividade. El objeto-filme, por ello, como es de suponer, forzará algunas elecciones, requerirá procedimientos concretos, pero nunca limitará u obstaculizará las acciones del analista. Sabiendo esto, podemos por fin afrontar el film sin ningún tipo de temor reverencial. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 38). Casetti e Di Chio propõem uma sequência de quatro passos fundamentais para guiar o trajeto de uma análise fílmica. O primeiro deles seria segmentar a obra, ou seja, subdividi-la em várias partes distintas. Os autores comparam este tipo de visualização mais individualizada para os fragmentos que compõem o objeto fílmico ao olhar de um botânico diante a uma planta, distinguindo raízes, troncos, folhas, flores, entre outros. Para eles, como o botânico, o pesquisador de cinema deveria colocar sua atenção sempre nas partes menores, mais imperceptíveis às pessoas comuns, tomando cuidado para não danificar qualquer um daqueles segmentos vivos. Si se rompe una unidad en fragmentos es para reunirlos en una nueva unidad que nos diga cómo está hecha y cómo funciona la primera; a la disgregación de los elementos debe seguir una 112 regregación que consienta a la perfección la estructura o el mecanismo de lo que se tiene delante. En este sentido, analizar no significa hacer una autopsia, es decir: seccionar hasta la sutura no es posible. Nuestros objetos están vivos, y el procedimiento analítico debe servir sólo para comprender mejor su esqueleto y su nervadura. De ahí que deban utilizarse el microscopio y el bisturí, pero sin poner en peligro el retorno a la vida del “paciente”, su salida del estado de anestesia. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 34). Nessa aproximação, tanto para homem que lida com plantas quanto para aquele que lida com cinema seria fundamental saber exatamente o que e onde cortar em seu objeto. Nesse primeiro momento – da segmentação –, deveriam ser respondidas questões, tais como: por onde entrar no texto fílmico? Como iniciar o texto? O que examinar? La decomposición de la linealidad consiste en subdividir el texto en segmentos cada vez más breves que representen unidades de contenido siempre más pequeñas. El procedimiento parece claro. El problema, sin embargo, se plantea cuando debemos decidir en qué parte del flujo del film debemos intervenir para interrumpirlo, dónde situar los confines y qué distinciones operar. Lo más natural, y probablemente lo más adecuado, es comenzar a subdividir el film en grandes unidades de contenido, en bloques amplios y cerrados sobre sí mismos, para poder continuar progresivamente fraccionando esta unidad en otra más pequeña, intentando que el propio contenido se muestre susceptible de subdivisiones significativa. De este modo se obtienen fragmentos de distinta amplitud y complejidad: respectivamente, los episodios, las secuencias, los encuadres y las imágenes. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 38). O segundo passo, sugerido por Casetti e Chio, seria o de estratificar a obra. Nesse caso, depois de recortado ou subdividido o filme, o investigador passaria a trabalhar de uma forma transversal sobre os componentes internos das partes individualizadas. Aqui, já não se seguiria a linearidade da obra, mas se colocaria a atenção nas seções. Continuando com a aproximação do filme com uma planta, o botânico estaria se dedicando à análise dos extratos concêntricos que se encontram na parte interna do tronco da planta. Juntos, eles formam o sustentáculo do tronco, contudo, cada círculo também possui identidade própria. Nessa etapa, as perguntas deveriam incluir diversos gêneros, tais como: o que devo distinguir no interior do filme? O que posso privilegiar? Por quê? 113 Una vez dividido el film en episodios, secuencias, encuadres e imágenes, se pasa entonces a seccionar estos segmentos, diferenciando sus distintos componentes internos (el espacio, el tiempo, la acción, los valores figurativos, el comentario musical, etc.) que serán analizados uno por uno tanto en su juego recíproco en el interior de un segmento dado (“¿Qué relaciones existen entre la música y la ambientación escénica en la secuencia X?”) como en la diversidad de formas y funciones que asumen luego a lo largo del film (“Cómo cambia la música entre la secuencia X y la secuencia Y?; Qué distintas funciones desempeña el los dos fragmentos?”). Estos elementos son, pues, los diferentes componentes que, más allá del simple criterio de sucesión lineal, puntúan el film con espesamientos y rarefacciones, intervalos y discontinuidades, sugiriendo una trama transversal que resulta esencial para el tejido del film. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 45). Como terceiro passo a ser seguido, os autores sugerem enumerar e ordenar as partes recortadas do todo. Através destas duas últimas ações seria possível definir um primeiro mapa do objeto em estudo, levando-se em conta as diferenças e semelhanças, tanto no lugar estrutural onde cada peça foi anteriormente colocada, como suas funções. A partir deste mapa descritivo seria possível descobrir as correspondências, a regularidade e os princípios do objeto analisado. O último passo, na opinião de Casetti e Chio, seria o de recompor e modelar uma nova visão global e unitária do filme. Aqui, se mostra uma representação sintética dos princípios de construção e funcionamento da obra. Na opinião dos autores, esta fase de recomposição traçaria uma linha a ser seguida, estabelecendo um modelo no qual os principais elementos seriam reencontrados sobre uma nova lógica. Casetti e Chio defendem que este reagrupamento: […] consiste en ciertas operaciones concretas: ante todo, la unificación por equivalencia o por homología (de dos elementos que pueden superponerse se hace uno); después la sustitución por generalización (de dos elementos similares se extrae uno que los engloba) o la sustitución por su inferencia (de dos elementos relacionados se extrae uno que deriva de ambos); y finalmente la jerarquización (de dos elementos de distinto rango se privilegia el de mayor alcance). En resumen, se cancela y se abstrae, se elimina y se amplía, para llegar de todas formas a una imagen restringida del texto. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 51). 114 O modelo de análise proposta por Francesco Casetti e Federico di Chio dialogam com alguns dos procedimentos adotados por Francis Vanoye e Anne Golliot (2006). Esses autores explicitam que, além de ver, rever e interpretar tecnicamente o produto audiovisual, a análise fílmica deveria promover uma nova atitude com relação ao objeto-filme, demonstrando seu registro perceptivo e, com isto, usufruí-lo melhor, caso o filme seja realmente rico. Vanoye e Golliot propõem que a análise deveria fazer com que o filme se movesse, ou seja, suas significações, seus impactos. Os autores mostram esse processo como uma ação que conduziria o analista a reconsiderar suas hipóteses ou opções no intuito de considerá-las ou invalidá-las. Analisar um filme é despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente a olho nu, pois se é tomado pela totalidade. Parte- se, portanto, do texto fílmico para desconstruí-lo e obter um conjunto de elementos distintos do próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire certo distanciamento do filme. Essa desconstrução pode naturalmente ser mais ou menos aprofundada, mais ou menos seletiva, segundo os desígnios da análise. (VANOYE; GOLLIOT, 2002, p. 15). No desenvolvimento da análise fílmica, a sugestão seria fazer uma triagem entre os elementos do texto fílmico, retendo alguns deles para o estudo. O mesmo texto contém outros traços que seriam pertinentes para a pesquisa dos diversos sistemas não singulares (isto é, códigos que estão operando no filme). Este processo de fragmentação inicial daria origem à descrição do objeto fílmico, na qual o analista procuraria manter-se com certo distanciamento da obra. Em uma segunda etapa da forma de trabalho descrita por Francis Vanoye e Anne Golliot (2006), o analista estabeleceria elos entre os elementos isolados, buscando compreender essas associações e reconstruindo “outro filme” limitado pelo próprio objeto. Na descrição e análise do mesmo, os autores sugerem atenção para sete elementos/ações: a) Numeração do plano, duração em segundos ou número de fotogramas; b) Elementos visuais representados; 115 c) Escala de planos, incidência angular, profundidade de campo, objetivas; d) Movimentos: d1) no campo: dos atores e objetos, d2) da câmera; e) Raccords (passagens de um plano a outro): olhares, movimentos, cortes, fusões, escurecimentos; f) Trilha sonora: diálogos, músicas, ruídos; intensidade, transições sonoras, continuidade/ruptura sonora, silêncios; g) Relações sons/imagens: sons in/off (dentro/fora de campo), sincronismo e assincronismo entre imagens e sons. Além desses aspectos conseguidos através da fragmentação inicial, os autores também pontuam o cuidado para a observação detalhada do cenário, dos personagens, a direção ou encenação e o(s) ritmo(s) proposto(s) pela narrativa. Casetti e Chio denominam a nova representação do filme como modelo. Na opinião deles, ela deveria ser capaz não apenas de sintetizar o filme pesquisado, como também explicá-lo. Assim, esse modelo seria uma espécie de esquema que proporcionaria uma visão concentrada do objeto analisado, permitindo, ao mesmo tempo, o descobrimento de suas linhas de forças e seus sistemas recorrentes. Se trata de la representación simplificada de un texto que permite situar en primer plano sus principios de construcción y sus principios de funcionamiento. […] Es algo que, a partir de ocurrencias no siempre claras, muestra sus leyes constitutivas. En una palabra, el modelo es un dispositivo que permite descubrir la inteligibilidad del fenómeno investigado. Todo ello nos sugiere también que un modelo es siempre en cierta forma un “alter ego” de cuando se ha modelizado o, si quiere, su reflejo puntual. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 52). Os autores apresentam quatro modelos diferentes, separados em duplas de oposição. A primeira delas seria representada pelos modelos figurativo e abstrato. Neste primeiro modelo, o texto seria analisado a partir de uma espécie de imagem total, um verdadeiro retrato capaz de especificar sistemas e estruturas. Assim, poderia tratar de situações canônicas, como um amor 116 contrariado, de uma dimensão simbólica, como os quatro elementos, de um núcleo mitológico, como vida e morte, entre outros. O modelo abstrato reduziria a estrutura e a composição do texto fílmico analisado a um conjunto de relações meramente formais, expressas, conforme os autores, em um tipo de linguagem logicomatemático. A segunda dupla trataria dos modelos estáticos e dinâmicos. O modelo estático se referiria às relações entre os elementos do filme em uma visão imobilizada. Assim, este texto não seria aprendido no prosseguir da obra, mas, sim, em sua disposição completa, em suas articulações gerais. Já o modelo dinâmico propiciaria o ordenamento dos elementos significativos em torno do avançar do mesmo texto. Aqui se prevê o movimento, a evolução, o futuro. Este modelo dinâmico sugere que um filme primeiro coloca barreiras e que, logo depois, salta por sobre as mesmas, materializando deste modo um processo. Casetti e Chio lembram que esses quatro modelos também poderiam se cruzar, formando outras possibilidades de rede de relações. Eles apontam para cinco tipos de significantes ou matérias de expressão dentro de um filme. Os mesmos são agrupados em dois núcleos: a) Significantes visuais: tudo aquilo relacionado à visão, com os olhos. São expressos nas imagens em movimento e signos escritos; b) Significantes sonoros: tudo o que está ligado aos ouvidos. Expressos nas vozes, ruídos e músicas. Casetti e Chio acreditam que o código que serve ao aspecto cinematográfico se apresenta de três maneiras diferenciadas: código correlacional – quando percebido como dispositivo de correspondências –; código acumulativo – como repertório de sinais e sentido –; código institucional – como corpus de leis. Apesar de distintas, essas três formas operariam muito unidas. Un código es siempre: a) un sistema de equivalencias, gracias al cual cada uno de los elementos del mensaje tiene un dato correspondiente (cada señal tiene un significado, etc.); b) un stock de posibilidades, gracias al cual las elecciones activadas llegan a referirse a un canon (las palabras pronunciadas reenvían a un vocabulario, etc.); c) Un conjunto de comportamientos ratificados, gracias al cual remitente y receptor tienen seguridad de operar sobre un terreno común (ambos utilizan la misma lengua, etc.). 117 Sólo por la presencia de estos tres aspectos, y por su presencia simultánea, puede funcionar verdaderamente un código: esto nos permite definir el área en el que se encuentra, describir las fórmulas usadas y referirlo a otras elecciones posibles. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 72). Ampliando a discussão a respeito da análise da narrativa fílmica, Jesús Garcia Jiménez (1993) apresenta aos seus leitores três modelos de análise: fenomenológico, estruturalista e pragmático. Dentro dessa tríade, este último modelo parece ser o mais apropriado para a presente investigação. Jimézez caracteriza tal modelo pragmático a partir de seu caráter indutivo. Nele, o ponto de partida seria a análise dos textos narrativos audiovisuais para intuir as regras que presidiriam sua construção. Assim, a maior tarefa do analista seria a de refazer o processo criativo e reviver a experiência poética da criação audiovisual. O autor evidencia o ecletismo deste modelo que assume as contribuições positivas de cada modelo anterior e trata de superar suas limitações. Nele, pode- se observar uma clara preferência pelas condições de produção do discurso e pelos efeitos de sua recepção, recriação. Em sua dimensão poética, o modelo pragmático primaria pelo sentido da liberdade criativa. El modelo pragmático es la representación de un tipo particular de organización discursiva, que incluye a la intervención y a la creatividad entre sus componentes y relaciones esenciales. Tienes, por tanto, una irrenunciable vocación práctica. En cuanto tal, su problema es saber cómo compatibilizar el grado exigible de construcción formalizada que requiere todo modelo, con su carácter inventivo, poético y pragmático. […]. Es, además, un modelo “icónico-analógico”, es decir, el acto narrativo, que constituye la “cosa representada” por el modelo, puede ser analizado como un modo intuitivo y, sin embargo, las distancias y dimensiones cuantitativas de las relaciones pueden ser calculadas con una relativa precisión, hasta el punto de que es posible aplicar a su objeto el análisis de contenido. (JIMÉNEZ, 1993, p. 52). Jacques Aumont e Michael Marie (2009) também dão uma importante contribuição para o diálogo a respeito da análise fílmica, a partir do livro A análise do filme. Na obra, os autores apresentam quatro modelos analíticos: a) Análise do filme como texto (ligada ao Estruturalismo); 118 b) Análise do filme como narrativa; c) Análise da imagem e do som; d) Análise do filme a partir da psicanálise. Refletindo sobre esses quatro modelos, optou-se por uma aproximação deste estudo de caso à análise do filme como narrativa. Aumont e Marie trabalham este modelo a partir de três vertentes. Uma primeira diz respeito à análise temática e à análise de conteúdos. Eles lembram que, na sua forma trivial, a análise do tema é a mais generalizada das abordagens ao filme. O “assunto” do filme é sempre um grande gerador de debates e reflexos cotidianos. Além disso, possui uma importante existência institucional, como, por exemplo, nas escolas e universidades. No caso do conteúdo, os autores defendem que ele nunca é dado de imediato, que faz parte de um construir-se e que para se entender o mesmo há que se levar sempre em conta a forma, uma vez que existe uma interação permanente e demasiadamente íntima entre ambos. Uma segunda vertente da análise do filme como narrativa propõe a análise estrutural da narrativa. Tal vertente remonta ao trabalho de Vladmir Propp, Morfologia do Conto Popular Russo (1928). Ele teria sido o primeiro a apresentar nos seus estudos, sobre os contos maravilhosos do folclore russo, um duplo princípio analítico e estrutural que consiste em decompor cada conto em unidades abstratas, definir as combinações possíveis dessas unidades e, por fim, classificar estas combinações. A unidade de base é o que Propp chama de função, ou seja, um momento elementar da narrativa, que corresponde a algum tipo de ação que se encontre presente em muitos contos. Ele definiu 31 funções e sete papéis ou esferas de ação realizadas pelos personagens dos contos. A partir dessas bases, ele estabelece que o conto maravilhoso russo é uma sucessão de sequências de funções que partem de um dano ou de uma falta. Segundo Aumont e Marie: O conto folclórico maravilhoso russo, apesar da abstração sedutora e da aparente generalidade do modelo obtido, este não deixa de ser um modelo ad hoc. É também praticamente impossível, a despeito das aparências, e não obstante mais uma vez o grau de formalização alcançado, utilizar sem alterações 119 esse modelo em outra área – sobretudo no cinema. (AUMONT; MARIE, 2009, p. 87). A análise estrutural também ganhou fortes contribuições de Roland Barthes e Algirdas-Julien Greimas. Este primeiro distingue duas categorias de unidade de conteúdo: as unidades distribucionais (batizadas por Propp como funções) – que se definem pelas relações, que têm com outras funções, e as unidades integrativas ou indícios, que garantem as correlações com os níveis de ação e narração. Para Aumont e Marie, o problema encontrado nesta proposta é definir a chamada “sintaxe funcional”, ou seja, o modo com que as diferentes unidades se encadeiam umas nas outras narrativas. Como Propp, Barthes acredita que a ação pretende descrever os personagens de maneira objetiva, mais como agentes do que como indivíduos, abrindo mão do lado psicológico destes personagens. Já Greimas vai chamar as esferas de ação de Propp de actantes. Ele parte das 31 funções de Propp, reduzindo-as a 20 e, depois, a quatro conceitos principais: Contrato, Prova, Deslocação, Comunicação. A lista de actantes deriva, até certo ponto, da de Propp (o destinador agrupa, por exemplo, o doador e o mandatário; o oponente reúne o vilão e o falso herói, etc.); mas diferencia-se profundamente desta por se aplicar não a determinado corpus de narrativas, mas a qualquer “micro-universo” coerente: por exemplo, aos mitos e narrativas míticas e também a qualquer texto narrativo, conquanto seja um micro-universo. [...] O eixo que une o Sujeito ao Objeto é o do desejo (da procura), e o que une o Destinador ao Destinatário é o eixo da comunicação. (AUMONT; MARIE, 2009, p. 91). Outro pesquisador que contribui com a análise estrutural da narrativa é Gérard Genette. A ele interessam as relações entre a narrativa e os acontecimentos que ela conta, o ato da narração que ela produz. A partir do que ele denominou modo da narrativa, estuda-se como a mesma poderia fornecer mais ou menos informações sobre a história que conta, dando a ela algum ponto de vista. Genette formaliza esta ideia a partir da noção de focalização. Este último processo implicaria a resposta a duas questões: o que se sabe do personagem e o que se vê deste personagem. Para isso, haveria três respostas possíveis: 120 a) um narrador omnisciente, que diz mais do que os personagens sabem. Esta narrativa seria do tipo não-focalizada; b) um narrador que só diz o que vê certo personagem (narrativa com ponto de vista, “visão de...”). Esta narrativa seria de focalização interna fixa (quando não deixa o ponto de vista deste determinado personagem) ou de focalização interna variável (quando se passa de um personagem para o outro) ou ainda de focalização interna múltipla (quando os mesmos acontecimentos são contados várias vezes sob pontos de vista de personagens diferentes); c) um narrador que diz menos do que sabe a personagem. Esta narrativa seria de focalização externa. Aumont e Marie lembram que o ver de um personagem varia muito, mesmo a cada sequência. Assim, elegê-lo como critério de focalização conduziria, na maior parte dos casos, a um regime de focalização demasiadamente variável, podendo chegar a variar, inclusive, a cada plano. Nesse sentido, eles defendem a proposta feita pelo investigador François Jost, de definir a focalização unicamente em termos do saber respectivo do narrador, dos personagens e do espectador. Outro mecanismo trabalhado na análise estrutural da narrativa seria a relação entre o ponto de vista dos personagens e o ponto de vista do narrador. Aumont e Marie argumentam que seria o lugar a partir do qual se olha, mas também a maneira como se olha. No filme narrativo – como nos três filmes aqui analisados – este ponto de vista estaria atribuído a alguém, seja ele um dos personagens da narrativa ou somente um agente narrador externo. Normalmente, o essencial neste tipo de análise seria debater a relação complexa entre o ponto de vista da instância narradora e os pontos de vista dos diversos personagens. Adentrando esta perspectiva da voz narrativa, ou seja, das relações entre o narrador e a história contada, haveria algumas perguntas a serem respondidas, tais como: Como se situa temporalmente a narração em relação à história? (ela é anterior, posterior, simultânea ou intercalada?); A instância narradora é interna à diegese24?; Qual o grau de presença do narrador na narrativa? 24 Partindo da teoria das situações, de Barwise y Perry, Odile Bachler conceitua diegese como: “un conjunto de situaciones constituidas por indivíduos teniendo propiedades, entreteniendo relaciones en diferentes localizaciones espacio-temporales” in AUMONT; MARIE, 2009, p. 91. 121 4.2 – Colocando em cena alguns códigos de análise fílmica Segundo Christian Metz (1980), o trabalho do semiólogo começaria onde termina o do cineasta. Seria um percurso paralelo ao do espectador, não de uma escrita, mas de uma leitura. “O semiólogo tem diante de si o filme já realizado; não tem como fazê-lo, nem dizer como deve ser feito: tem que olhar como foi feito. Não caminha em direção ao filme (este é o trajeto do cineasta), mas a partir do filme, em direção a tal ou qual de seus sistemas” (METZ, 1980, p. 88). Sobre a análise semiológica, André Parente (2000) apresenta dois pressupostos: impressão de realidade e retorno à gramática. Ele rememora que a semiologia estuda os códigos, as regras e configurações estruturais específicas que condicionam as imagens cinematográficas ao fazer do cinema uma linguagem. Na opinião de Parente, não bastaria o fato de o cinema contar histórias para se tornar linguagem. Nessa concepção, a obra cinematográfica deveria apelar para duas operações semiológicas suplementares: na primeira delas, a história do filme precisaria ser submetida a regras linguísticas e, na segunda, as imagens deveriam ser assimiláveis a enunciados narrativos. A conceituação de cinema enquanto língua ou linguagem ainda é muito debatida por alguns autores. Robert Stam (2003) acredita que o cinema seria uma linguagem não apenas em um sentido metafórico mais amplo, mas também como um conjunto de mensagens formuladas em um material de expressão como uma linguagem artística, representando também discurso ou prática significante. Ele diferencia: “Para falar uma língua, basta usá-la, ao passo que „falar‟ a linguagem cinematográfica é sempre, em certa medida, inventá-la” (STAM, 2003, p. 131). Dessa forma, na linguagem cinematográfica, existiria uma sensação de “revolução” permanente, uma compulsão descontrolada por mudar as formas exteriores. Edgar Morin (1997) crê que a linguagem do cinema seria fundada em processos universais de produção, uma espécie de “esperanto natural” e, no filme, ela apresentaria poucas reificações, permanecendo fluida. Seria essa fluidez o diferencial do cinema para a linguagem das palavras. “Se a linguagem do cinema atraiu todas as linguagens, é porque ela própria é o sincretismo em 122 potência de todas elas: estas fazem-se contraponto, apoiam-se uma na outra, constituem uma linguagem-orquestra” (MORIN, 1997, p. 215). Yuri Lotman (1978) relaciona duas tendências para a linguagem do cinema: a primeira se basearia na repetição dos elementos e na experiência quotidiana ou artística dos espectadores, criando um sistema de expectativas; uma segunda tendência buscaria desestabilizar certos pontos deste sistema de expectativas, sem destruí- los, proporia um deslocamento, uma deformação das propriedades ou das aparências habituais. Ana Lúcia Andrade (2000) pontua que a forma de conduzir a trama ou a maneira como as informações são ordenadas determinaria o estilo de narrativa. A autora considera que, para constituir o estilo de um narrador, haveria a junção de uma série de elementos, como os recursos de linguagem empregados, a maneira de usar matrizes dramáticas, as inovações ao padrão estabelecido, a visão de mundo transmitida e a habilidade de equilibrar todos estes elementos. Dessa maneira, os cineastas experimentam várias estratégias narrativas, sendo que o aperfeiçoamento dos recursos fílmicos aliado a articulações cada vez mais complexas permitiu que o cinema se organizasse como uma expressiva forma de discurso. Christian Metz (1980) reflete que um discurso pode ser, ao mesmo tempo, texto singular e mensagem de um código ou de vários. Tal distinção dependeria do ponto de vista da análise. Assim, cada filme deveria ser tratado como texto singular, na medida em que procura evidenciar um sistema singular. “O código é uma construção do analista e não um discurso preexistente. O código consiste, portanto, em um conjunto de asserções relativas aos textos e verificáveis apenas neles” (METZ, 1980, p. 184). O autor relata que, diferentemente do cinema, o filme constituiria um espaço delimitável, voltado para a significação, um discurso fechado que só permitiria ser encarado como “uma linguagem” em seu todo. Dialogando com Metz, Yuri Lotman (1978) diz que texto cinematográfico representaria sempre uma narração. Já a narração ou narrativa representaria sempre uma ação. A composição do texto cinematográfico e artístico seria feita com uma sequência de elementos funcionalmente heterogêneos. 123 Imaginemos que, ao analisar este ou aquele filme, poderíamos estabelecer a descrição estrutural dos planos utilizados, depois de termos mostrado a organização da sua sucessão na composição. Podemos fazer a mesma coisa com uma sequência de “raccourcis” ou o acelerado dos planos, a estrutura dos personagens, o sistema de sonorização etc. [...] O principal portador de significação é o próprio “raccourci” (LOTMAN, 1978: 121). Dessa maneira, qualquer unidade de texto, seja visual, figurativa, gráfica ou sonora poderia tornar-se elemento de linguagem cinematográfica, a partir do momento em que ofereça uma alternativa que aparecerá no texto de uma forma não automática, mas associada a uma significação. Metz mostra que a sintagmática representaria a regra de uso linguístico fundamental para o cinema, representando o código cinematográfico na sua profundidade. Seria responsável por organizar a lógica da ação e mensagem do filme – também chamada de diegese. Metz (1980) afirma que o caráter de objeto ideal construído pela análise seria o sistemático ou não-textual. Já o textual ou não-sistemático seria um objeto concreto que pré-existe ao trabalho do analista. O autor argumenta que um grupo de filmes poderia ser abordado semiologicamente, dividido de duas maneiras. Na primeira, poder-se-ia tratar de um conjunto de mensagens do mesmo código, visto que existiriam códigos particulares e visto que sua definição seria a de não serem observados em todos os filmes, mas em apenas alguns. Nesse tipo de abordagem, cada um dos filmes seria examinado separadamente, uma vez que poderiam não se assemelhar. A segunda possibilidade seria quando o conjunto de filmes é apreendido como texto único e contínuo, ligando fronteiras interfílmicas e supondo parentesco global. Aqui, teríamos certa unidade de impressão, um “ar familiar”, algum tipo de semelhança instituída. No pensamento de Metz, existiriam apenas quatro códigos específicos definidos no espaço fílmico: a montagem propriamente dita, a organização do som em relação à imagem, os códigos de pontuação e os movimentos de câmera. Analisando alguns desses códigos, Yuri Lotman (1978) pensa que: 124 Cada imagem é projectada num “écran” é um signo, quer dizer, tem um significado, é portadora de informação. Contudo, este significado pode ter um caráter duplo [...] podendo revestir-se de significações suplementares, por vezes completamente inesperadas. A iluminação, a montagem, a combinação dos planos, a mudança de velocidade, etc. podem dar aos objetos reproduzidos no “écran” significações complementares: simbólicas, metafóricas, metonímicas. (LOTMAN, 1978, pp. 59 e 60). As relações temporais que estão envolvidas com as narrativas fílmicas também possuem relevada importância. Cândida Vilares Gancho (1999) busca entender o tempo como movimento, passagem. É preciso dizer que são encontrados diferentes tipos de tempo nas narrativas, especialmente na cinematográfica. Apenas para iniciar esse apontamento, podem-se elencar dois tipos de tempo: o tempo da própria obra, ou seja, a duração de sua projeção, e o tempo da história criada pelo filme, que é descontínuo e condensado. A descontinuidade e condensação das obras podem ser facilmente identificadas através de mecanismos de montagem, como flashback e flashforward. Assim, o tempo da história criada pode ser bem diferente do tempo cronológico no qual se delimita o enredo, ou seja, aquele que é designado através de horas, dias, meses, anos, séculos. Nessa análise, as relações oferecidas pelo tempo psicológico, ou seja, de percepção do espectador, seus desejos, imaginação, sua impressão dos acontecimentos relacionados àqueles personagens, também se mostram bastante pertinentes. Nele, não há nem lógica, nem cronologia. Tudo pode ser relativizado. Gancho (1999) chama atenção também para o tempo de presente fictício, no qual o espectador se vê em uma realidade imediata, ou seja, se imagina na ação com/do o personagem. Ainda refletindo a respeito do tempo cinematográfico, Francesco Casetti e Federico di Chio (1998) apontam uma categorização de ordem de quatro tipos: a) Tempo circular: o ponto de chegada é sempre idêntico ao ponto de origem. Pode-se citar como exemplo o filme Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, EUA, 1950), de Billy Wilder, que abre com o cadáver de um homem flutuando na piscina e termina com o próprio ato homicida. 125 b) Tempo cíclico: o ponto de chegada é análogo, semelhante ao ponto de partida. Janela indiscreta (Rear window, EUA, 1954), de Alfred Hitchcock, por exemplo, inicia com o protagonista em uma cadeira de rodas com uma das pernas engessada e finaliza com o mesmo protagonista na cadeira de rodas, agora, com as duas pernas no gesso. c) Tempo linear: está determinado por uma sucessão de acontecimentos nos quais o ponto de chegada é sempre distinto do ponto de partida. Normalmente, é vetorial, ou seja, segue uma ordem contínua, progressiva e homogênea. Se a história é contada de maneira fraturada (a partir de flashback ou flashforward), tem-se narrativas em tempo não vetorial. d) Tempo anacrônico: relacionado à desordem. Os autores exemplificam este tipo com o filme O grande golpe (The killing, EUA, 1956), de Stanley Kubrick, em que a trama é narrada com interpolações temporais e mudanças de pontos de vista “organizadas”, em sua maioria, pela figura do narrador (em voice over). Refletindo sobre a duração das cenas ou sequências cinematográficas, Casetti e Chio apontam para dois tipos: normal e anormal. O primeiro seria a extensão temporal da representação que coincide aproximadamente com a duração “real” ou supostamente real do acontecimento. Um exemplo seria o plano-sequência que busca contar o acontecimento dramático, preservando a continuidade direta, sem cortes (pelo menos, aparentes). No caso do segundo tipo, duração anormal, os autores apontam para o que chamam de la escena, um conjunto de enquadramentos concebidos e montados com o fim de obter uma relação artificial entre o tempo da representação e aquilo que é representado. Sua duração difere do que se pode definir como natural. Aqui, sugerem uma subdivisão em dois tipos: por contração (como nas elipses) ou dilatação (como na câmera lenta). Como o tempo, outro elemento que pode ser apresentado fragmentado na narrativa é o espaço, representando o lugar físico no qual a história se passa, situando a ação dos personagens. As características socioeconômicas, psicológicas, morais e religiosas dos personagens dão origem ao ambiente. É através dele que conseguimos situar o personagem no tempo. Casetti e Chio dividem o espaço cinematográfico em três categorias de análise: 126 a) Espaço In (no qual os elementos estão presentes dentro da borda do quadro) ou espaço Off (no qual os elementos estão fora da borda do quadro); b) Estático (no qual o espaço é imóvel, imutável, podendo se dar tanto pela câmera quanto pelos personagens dentro do plano) ou dinâmico (no qual o espaço está em movimento, transformação); c) Orgânico (conexo e unitário) ou Desorgânico (desconectado, disperso). Refletindo a respeito do uso da profundidade de campo, os autores também apontam para a desomogeneidade. Neste caso, sugerem duas variações: o espaço plano, visto como uma superfície sobre a qual são distribuídas uniformemente as figuras; de maneira vertical e horizontal em oposição ao espaço profundo, visto como um volume no qual as mesmas figuras são dispostas em profundidade. Eles ainda dividem o espaço narrativo em outras dez categorias: espaços realistas; espaços íntimos, pessoais, sociais e públicos – definidores dos círculos concêntricos da comunicação interpessoal; espaços intelectuais, políticos e ideológicos – remetem a modos de presença/ausência e proximidade/distância entre as instâncias enunciadoras do texto narrativo; espaços mágicos – habitados por forças sobrenaturais, paranormais, ocultas, misteriosas; espaços homogêneos; espaços sintéticos; espaços descontínuos; espaços temporalizados: – que demarcam algum período específico da história; espaços referenciais – identificados em um tratado de geografia, topografia, relevo. Entre os diversos conceitos de narrativa audiovisual conhecidos, Jesús Garcia Jimézes (1993) oferece um que parece mais próximo dos objetivos deste estudo de caso: Narrativa audiovisual es la faculdad o capacidad de que disponen las imágenes visuales y acústicas para contar historias, es decir, para articularse con otras imágenes y elementos portadores de significación hasta el punto de configurar discursos constructivos de textos, cuyo significado son las historias. (JIMÉNEZ, 1993, p. 13). Nesse caminho, também é preciso ampliar a discussão sobre a forma com a qual a narrativa é apresentada. Gancho (1999) entende o narrador como elemento estruturador da história, como aquele que delimita o foco narrativo e o 127 ponto de vista que será contado. Expõe dois tipos básicos de narradores, constituídos a partir da primeira ou terceira pessoa. No cinema, é mais comum encontrar o narrador em terceira pessoa, representando a própria câmera. Neste caso, ele está fora da ação, promovendo um ponto de vista que busca a imparcialidade ou a observação. Além disso, este narrador em terceira pessoa se apresenta onisciente (sabe tudo da história) e onipresente (pode estar em todos os lugares da trama). Na narração em primeira pessoa, o narrador participa literalmente dos acontecimentos, ganhando assim uma dupla função: a de personagem-narrador. Se ele tem uma participação secundária nos acontecimentos, tem-se um destaque para sua função de narrador. Todavia, ele também pode ter importância fundamental na trama, apresentando-se como o personagem principal. Assim, a narração em primeira pessoa permite conhecermos bem mais profundamente o mundo psicológico do personagem. Nesse tipo de narrativa, nem tudo o que é afirmado pelo narrador corresponde à verdade. Como ele participa dos acontecimentos, acaba promovendo uma visão subjetiva, individual e parcial. Tudo passa pelo filtro de suas emoções e percepção. Francesco Casetti e Federico di Chio (1998) denominam a narração feita por um personagem que participa da mesma história como omnisciência ingerente. Caso este personagem seja a figura principal na trama, estaria evidenciado o narrador protagonista ou autodiegético. Geralmente, ele demonstra a maturidade proporcionada por sua experiência e fala em primeira pessoa. Já se a narração for efetivada por um personagem autônomo dentro da história, com uma relativa implicação na ação, este narrador seria denominado testigo ou homodiegético. Também haveria a possibilidade de se encontrar um narrador heterodiegético que conta uma história na qual não é um dos personagens. Analisando o conceito de ponto de vista, os autores vão identificá-lo como aquele lugar em que se coloca a câmera ou o ponto a partir do qual se capta a realidade apresentada na tela. Nesse sentido, o ponto de vista coincide com os olhos do emissor que enquadra as pessoas e coisas a partir de certa posição, com determinado objetivo, certa amplitude visual... Paralelamente, o ponto de vista também é o ponto no qual se coloca o espectador para seguir o filme. Nesse sentido, o ponto de vista coincide com os olhos do receptor. Casetti e Chio 128 ressaltam que um ponto de vista não se limita a identificar esta dupla colocação: é algo muito mais abstrato dentro da imagem, atribuindo um autor e um espectador. Una imagen es como es porque existe un lugar, y sólo uno, desde el que ha sido captada y construida: esto significa que la imagen se hace cuando existe un punto de vista que la determina. De hecho, una imagen se hace visible en la medida en que construye una posición ideal en la que situar su observador: isto significa que se da cuando un punto de vista le ofrece, por dicirlo de algún modo, una orilla. (CASETTI, CHIO, 1998, p. 232). O ponto de vista encarna, por um lado, a lógica segundo a qual se contrói a imagem e, por outro, a chave principal para atravessá-la, recorrê-la. É o elemento que contempla o olhar total do filme, suas medidas e suas perspectivas, identificando os princípios abstratos. Pode encarnar a visão de um único personagem: câmera subjetiva, flashback, representação dos sonhos. Para eles, haveria três tipos de pontos de vista: literal – através dos olhos de alguém; figurado – a partir da mente de alguém; e metafórico – segundo a idelogia de alguém. Refletindo a respeito dos personagens nas narrativas fílmicas, Robson de Souza Santos e Felipe da Costa classificam os personagens conforme suas funções, ou seja, papéis desempenhados. Nessa trajetória, o protagonista é o personagem principal, podendo ser o herói ou o anti-herói. É preciso ressaltar que essa fórmula não é seguida como uma regra pelos realizadores, especialmente aqueles que prezam características mais autorais em suas obras. Há uma grande diversidade de filmes nos quais o protagonista não assume nenhuma das duas funções. O antagonista se opõe ao protagonista, marcando o lugar de “vilão” da história e, muitas vezes, originando um conflito na disputa por um objeto, pessoa ou ação com o protagonista. Há também os personagens secundários ou de apoio que, normalmente, participam menos da ação dramática. Santos e Costa alegam que os personagens podem se apresentar de dois modos. O primeiro deles seria a forma indireta e estática. Neste modo, conhecemos o personagem através da maneira como ele fala sobre si mesmo ou através de outro personagem. O segundo modo trata da forma direta e dinâmica, na qual o personagem é conhecido a partir do seu comportamento na atuação. 129 Para Casetti e Chio, a definição ou caracterização dos personagens é vista como tarefa complexa e muito pormenorizada. Las tramas narradas son siempre, en el fondo, tramas de alguien, acontecimientos y acciones relativos a quien tiene un nombre, una importancia, una incidencia y goza de una atención particular: en una palabra, un personaje. Ahora bien, determinar clara y sintéticamente en qué consiste y qué es lo que en definitiva caracteriza a un personaje, más allá de sus puntos de fricción con el ambiente, resulta bastante difícil. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 177). Os autores refletem sobre os personagens de três maneiras: enquanto pessoa, a partir do seu papel ou rol e ainda como actante. Olhando o personagem como pessoa, será buscado o perfil intelectual, emotivo e actudinal, assim como de uma gama própria de comportamentos, reações e gestos de determinado indivíduo. Nesta primeira categoria, eles apontam uma série de diferenciações possíveis para o personagem: plano (simples, unidimensional) ou redondo (complexo, variado); linear (uniforme e estável) ou contrastado (contraditório e sem estabilidade); estático (estável) ou dinâmico (em constante evolução). Na segunda categoria, que analisa o personagem a partir do seu papel ou rol, é evidenciado o(s) tipo(s) que ele encarna ou “dá vida” a partir de suas atitudes, seu perfil físico, aspectos peculiares e específicos. Aqui, estariam expostas mais algumas subcategorias: ativo (fonte direta da ação, primeira pessoa) ou passivo (segue as iniciativas de outros e se apresenta mais como término da ação do que como fonte); influenciador (faz os demais agirem, provoca ações) ou autônomo (trabalha sem causas e sem mediações); modificador (trabalha para trocar algum tipo de situação, melhorando ou piorando) ou conservador (mantém o equilíbrio das situações existentes); protagonista (sustenta a orientação da narrativa) ou antagonista (manifesta a possibilidade e uma orientação inversa). Na última categoria, o personagem seria visto como actante, ou seja, elemento analisado pelo lugar que ocupa na narração e sua contribuição para que ela avance. Neste caso, a relação entre sujeito e objeto se mostra essencial para esta compreensão. O sujeito é representado por aquele que se move até o objeto para conquistá-lo, a partir de uma dimensão do desejo. Ele atua sobre o objeto e 130 o mundo que o rodeia (dimensão da manipulação). Como consequência de sua atuação, obtém algum tipo de recompensa ou objeto, representada por aquele ponto de influência da ação do sujeito ou aquilo pelo qual este sujeito se moveu e sobre o qual irá operar (dimensões do desejo e da manipulação). Jesús Garcia Giménez (1993) acredita que o herói possui funcionalidades diferenciais dos demais personagens da narrativa, a partir da presença de algumas características, tais como: sua capacidade de mediação de diferenças e conflitos; a presença de um determinado oponente; o recebimento de cooperação (modalidade de poder) de possíveis ajudantes; participação em um contrato inicial (de dever e querer) que o coloca em contato com o objeto de um desejo. Além disso, de alguma maneira, ele também liquida algum tipo de falta ou carência apresentada no início da narrativa. Refletindo sobre os códigos sonoros, Casetti e Chio separam os mesmos em dois tipos: os diegéticos, cuja fonte sonora está presente no espaço da ação representada e os não diegéticos, cuja origem não está presente no espaço da história. Esses códigos ainda são subdivididos em três categorías: a) Som in: aquele som diegético exterior, cuja fonte está enquadrada, aparece na imagem e forma parte da história; b) Som off: aquele som diegético exterior cuja fonte não está enquadrada, não aparece na imagem. Também chamado de som extradiegético; c) Som over: aquele som diegético interior, seja in ou off, e o som não diegético. Ele é procedente de um fora de campo radical, total. Dialongando com os autores acima citados, Jesús Garcia Jiménez (1993) propõe uma subdivisão dos códigos sonoros de maneira ainda mais aprofundada: a) diegético-elíptico: a fonte do som não aparece agora, mas já apareceu anteriormente na imagem; b) diegético-citado: escutado pelo espectador e por um personagem (Ex.: latidos de lobos, passos, gemidos); c) diegético-suspensivo: o espectador que escuta o som não dispõe, naquele momento, de elementos para saber identificar sua origem, mas disporá deles depois; 131 d) extradiegético: som em off propriamente dito. Sua fonte não aparece nem antes e nem depois (Ex.: voz de um narrador externo). 4.3 – A construção de um método de análise para a narrativa do herói no cinema brasileiro: rodando mais uma aventura Para a constituição de um método de análise para esta pesquisa levou-se em conta, inicialmente, alguns dos instrumentos propostos por Jacques Aumont e Michel Marie (2009). Assim, este estudo de caso utiliza basicamente três categorias: instrumentos descritivos, instrumentos citacionais e instrumentos documentais. No caso da primeira categoria, o objetivo era o de descrever unidades narrativas maiores ou menores, de acordo com a sugestão interpretativa entendida daquele trecho ou ainda a análise descritiva mais profunda de uma determinada imagem, cena e sequência ou fragmento da banda sonora. Já a partir dos instrumentos citacionais, buscou-se a construção de um estado intermediário e o exame analítico, porém, conservando-se mais próximo da “letra” do filme. A terceira categoria utilizada, os instrumentos documentais, diz respeito à inclusão de informações provenientes de fontes externas ao filme, como o cartaz de divulgação do mesmo ou reportagens sobre a obra em algum veículo de comunicação. Esta categoria também pode oferecer importantes informações a respeito da produção, distribuição e difusão do filme – o que sugere o caminho feito pela obra e também sua relação com o mercado e o público. Refletindo sobre a primeira categoria, que expõe os instrumentos de descrição, optou-se por não se desenvolver a decomposição plano a plano nas obras como um todo. Este procedimento foi efetivado somente em cenas ou sequências consideradas vitais para o entendimento da participação do herói nas referidas narrativas. Nestes fragmentos, conforme sugerem Jacques Aumont e Michel Marie, procurou-se observar a duração dos planos, sua composição, os movimentos – tanto da câmera como dos personagens e objetos em cena, a banda sonora, a montagem e as relações construídas entre imagem e som. Na análise interior das cenas ou sequências vitais para decomposição, tentou-se 132 seguir o cuidado sugerido por Aumont e Marie aos elementos interpretativos obtidos a partir da banda sonora e suas relações com a imagem. Uma decomposição plano a plano contribui, por definição, para perpetuar o privilégio unanimemente (e muitas vezes inconscientemente) concedido à imagem. A banda sonora é muito mais contínua, em certo sentido, do que a banda de imagem – ou pelo menos as transições sonoras efetuam-se de modo inteiramente diverso da “mudança de plano”. (AUMONT; MARIE, 2009, p. 37). Nesse caminho, a ação de segmentação foi importante para separar os fragmentos fílmicos que realmente eram primordiais para este estudo. Depois da separação desses trechos, foi possível constituir descrições de imagens do filme, transpondo seus elementos de informação e significação para a linguagem verbal/escrita. Na opinião de Aumont e Marie, nem mesmo a escrita mais detalhada ou árida pode esgotar um fragmento fílmico. Uma imagem sempre possui vários níveis de significação. No mínimo a imagem sempre veicula elementos informativos e elementos simbólicos (nem sempre é impermeável a fronteira entre esses dois níveis que os semiólogos costumam distinguir). Ao descrever uma imagem, a primeira tarefa do analista é identificar correctamente os elementos representados, reconhecê- los, nomeá-los. (AUMONT; MARIE, 2009, p. 49). Ainda dentro dos instrumentos de descrição, foram utilizados três quadros, a fim de originar dois mecanismos de esquematização. O primeiro deles trata dos personagens, identificando suas funções ou máscaras principais assumidas durante a narrativa, suas ações primordiais, além de apresentar o ator ou atriz que os interpreta. Os dados espelhados neste primeiro quadro foram trabalhados de forma aprofundada durante o corpo do texto relativo a cada obra. O segundo quadro apresenta o núcleo de criação principal da obra, explicitando os profissionais envolvidos na direção, produção, roteiro, fotografia, som, música e montagem. A partir desta apresentação dos mesmos, pode-se mirar a história fílmica pregressa desses profissionais. Já o terceiro quadro trabalha questões ligadas ao investimento financeiro, difusão e distribuição do filme. Por intermédio deste último é possível perceber como se dá inclusão deste tipo de produção – 133 que tem como protagonista algum herói ou heroína – no mercado cinematográfico brasileiro. Passando aos instrumentos citacionais, este estudo de caso utilizou a análise sobre alguns fotogramas, cenas e sequências, levando em conta tanto o poder como a responsabilidade do ato de pausar uma imagem da narrativa cinematográfica. Este gesto, que consiste em cristalizando momentaneamente o desfile fílmico, realça duplamente o fotograma: em primeiro lugar ao suprimir pura e simplesmente a dimensão sonora do filme (não existe “pausa no som”!) e, em seguida, ao suprimir o que desde sempre se tem como essencial da imagem do filme, isto é, o movimento. (AUMONT; MARIE, 2009, p. 55). Buscando sempre ter em conta a relação de cada fotograma dentro de sua cena, sequência e narrativa como um todo, foram apontados alguns exemplares para esta pesquisa. A partir desses fotogramas eleitos como típicos foi possível estudar de maneira visualmente mais aprofundada parâmetros formais, como imagem, composição, profundidade de campo, iluminação, movimentos e ângulos. Já os instrumentos documentais, que possibilitam a inclusão de informações exteriores ao filme, foram utilizados principalmente para se revelar ao leitor dados posteriores à difusão da obra, como reportagens ou dados quantitativos dos resultados mercadológicos dos filmes, como renda e público alcançados. Além disso, como já apontado, estas análises fílmicas tiveram como base a aplicação das 12 etapas da Jornada do Herói, sugeridas por Christopher Vogler. Nesse sentido, além dos três quadros descritos anteriormente, também foram eleitas perguntas relativas a cada uma dessas etapas e constituído um formulário modelo que estabelece as principais questões tratadas em cada uma das obras. Conjuntamente ao olhar minucioso sobre a trajetória de aventuras do herói, também se buscou remontar o perfil construtor do próprio personagem protagonista, observando-se as principais características físicas, sociais e psicológicas do herói, bem como do meio em que ele propõe a ação. Ainda nesta 134 análise, foram observadas diversas questões relativas ao sentido narrativo, sentido dos significantes visuais e sonoros e também do sentido ideológico. Antes de expor o quadro abaixo, que serviu de mecanismo construtor para as análises, é preciso salientar que as 12 etapas da Jornada do herói, sugeridas por Christopher Vogler são variáveis conforme a própria obra fílmica, podendo haver supressão de algumas destas etapas, como também alargamento de uma etapa específica, conforme a chave interpretativa adotada. Outro aspecto que é necessário notar trata do introdutório a determinados filmes. O mesmo instrumento foi utilizado quando foi sentida a necessidade de se desdobrar determinados subtemas envolvidos com a temática principal ou mesmo para oferecer determinadas informações ao leitor que não deveriam ser expostas durante as 12 etapas da Jornada do Herói, a fim de se manter a unidade textual. Instrumento de análise fílmica utilizado: 1) Informações fílmicas de base: título original; sinopse (resumo da obra disponibilizado pela própria equipe, ou seja, como eles divulgam o filme; tema e subtemas; gênero (classificação advinda tanto da equipe, como da mídia); ano de lançamento; duração; faixa etária (ajuda na definição de público e na forma de tratamento dado à obra). Quadro de personagens, arquétipos e ações desenvolvidas: Personagem Máscara/arquétipo Ação principal Ator/atriz Quadro do núcleo de criação: EQUIPE DE CRIAÇÃO PRINCIPAL DO FILME FUNÇÃO EXERCIDA NO FILME PROFISSIONAL Direção Roteiro Produção Fotografia Direção de Arte Montagem Som Música 135 Quadro com dados de investimento e distribuição da película:25 RELAÇÃO ENTRE ORÇAMENTO E INSERÇÃO NO MERCADO DO FILME Produtora executiva Cidade sede a produtora Orçamento Distribuidora(s) Público oficial alcançado nas salas de cinema Espectadores Renda oficial a partir das salas de cinema R$ Nº de salas alcançadas: 2) Introdução ao filme. 3) A configuração/construção do herói: quem é o herói/heroína do filme?; ele(a) é o protagonista?; quais as características principais da composição desta personagem (físicas, sociais, psicológicas); como herói/heroína é caracterizado como pessoa?; como é o seu passado?; quais os personagens se relacionam com o herói e de que maneira?; qual é o conflito principal travado pelo herói?; que tipo de força ele precisa enfrentar (humana, não humana, interna)?; quem o herói/heroína precisa auxiliar?; o que ele deve superar dentro da sua trajetória (fatores externos e internos)?; quais foram os mentores do herói/heroína?; existem inimigos bem delimitados para o herói/heroína?; o que ele deve superar dentro da sua trajetória (fatores externos e internos)?; o herói/heroína possui alguma proposta ética e moral?; o que faz este personagem ser especial?; que tipo de transgressão(ões) esse herói/heroína faz para iniciar sua jornada de aventuras?; o que faz este personagem poder ser entendido como herói/heroína?; a partir de quais características desse personagem se poderia aproximá-lo de certa identidade heróica brasileira? 4) A narrativa audiovisual no filme, a partir dos 12 estágios da Jornada do Herói (conforme Christopher Vogler): - Mundo Comum (Qual é seu mundo comum? O que ele fazia antes? Qual é a sua história pregressa? Como o herói desta história é incompleto? Sua incompletude 25 A partir de dados conseguidos a partir de tabelas e demonstrativos disponibilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, disponíveis no site www.ancine.gov.br. 136 é externa ou interna? O que ele possui de necessidades, desejos, objetivos, falhas, arrependimentos, fraquezas, neuroses); - Chamado à Aventura (Que “chamado à aventura” ele recebe? Encontra-se algum tipo de agente anunciador da aventura – arauto? Quem atua como arauto? Que desafio(s) este tema propõe para o herói/heroína? Qual é o local onde acontece o chamado à aventura? Que tipo de transgressão(ões) esse herói/heroína faz para iniciar sua jornada de aventuras?); - Recusa do Chamado (Há uma recusa inicial do chamado à aventura por parte do herói? Caso sim, como? Quais são os medos do herói diante do chamado à aventura? Como esses medos se manifestam ou se expressam?); - Encontro com o Mentor (Há algum mentor ou identifica-se uma história sem mentor aparente? Quem ou o que é o mentor do herói? O que ele precisa ensinar ou com que ele deve equipar o herói? Como se dá o período de aprendizagem do herói e sua relação com o mentor?); Travessia do Primeiro Limiar (Qual é o primeiro limiar?; Qual “porta secreta” deverá ser violada pelo herói? O herói já está decidido fazer a travessia ou possui medos e incertezas? Quais forças guardam o limiar? Como elas dificultam o “salto de fé” do herói?); - Testes, Aliados e Inimigos (Em que o “mundo especial” é diferente do “mundo comum”? Como o herói reage ao mundo especial e suas estranhas regras? De que modo o herói é testado? Onde acontecem os testes principais? Como esse ambiente influencia?); - Aproximação da Caverna Oculta (Existe uma “caverna oculta” concreta e física – quartel general de algum vilão, “barriga da baleia” – ou percebe-se uma força oculta emocional, interna ao herói? Como se apresenta uma ou outra? O herói se apresenta de maneira destemida, enfrentando sem medo o desconhecido, ou pensa em dar meia volta e desistir da aproximação da “caverna oculta”? O herói se prepara para enfrentar esses desafios externos ou internos?); - Provação (Qual é a provação pela qual o herói precisa passar? Qual é o maior medo do herói neste momento de provação? De que modo o vilão ou antagonista atua como sombra do herói? De que maneira o herói enfrenta a morte nesta provação?); 137 - Recompensa – Apanhando a espada (O que o herói aprendeu experimentando a sua quase morte? Existe algum tipo de auto-exame ou percepção de uma consciência ampliada? Ele percebe suas próprias falhas internas?); - Caminho de volta (O herói deseja retornar ao ponto de partida ou ficar no mundo especial? Como é o caminho de volta do herói? Há algum elemento de perseguição ou aceleração neste caminho?); - Ressurreição (Que tipo de provação final o herói enfrenta? Como se dá o momento de ressurreição? Quem aprende alguma coisa – o herói?, o público?); - Retorno com o Elixir (Qual/o que é o elixir que o herói traz da experiência? Este elixir é compartilhado de alguma maneira? De que forma o herói foi adquirindo responsabilidade durante a história? 5) Panorama, pontos de vistas e revelações da análise fílmica para além da trajetória de aventuras do herói: a) Sentido narrativo (Quem conta a história? Como a história é contada – 1ª, 3ª pessoa, off? O narrador sabe mais, menos ou tanto como os personagens? Que tipo de diálogo é apresentado entre os personagens? Quais as relações temporais existentes (tempo da narrativa e o tempo psicológico)? Qual é a ordem temporal existente?); b) Sentido dos significantes visuais e sonoros na dinâmica narrativa de herói (Como é o tipo de espaço narrativo? Onde está a câmera em relação ao objeto a filmar? Quais as características dos planos – enquadramentos, ângulos, movimentos? Quais as características do lugar fílmico apresentado? Dentro dos elementos visuais da obra, como são trabalhadas a iluminação e a cor? Como os códigos sonoros são trabalhados na obra – diálogos, músicas, ruídos? Quais os momentos de destaque da banda sonora e por que? Como se dá a intervenção musical no filme? Como é estruturada a montagem? Como se dá a organização do som em relação à imagem?); c) Sentido ideológico (Qual é a posição, mensagem ou ideologia do filme/realizador? Qual o lugar reservado para o espectador?). 138 Capítulo 5 – OS FILMES DESTA SESSÃO – ESTUDOS DE CASO Selecionar obras que pudessem, de alguma maneira, representar o processo de constituição de um herói no cinema brasileiro não foi tarefa das mais fáceis, especialmente a partir do período denominado como Retomada que, como visto, anteriormente, não possui margens temáticas ou estéticas tão delimitadas. A base deste recorte temporal foi o início da Retomada (meados da década de 1990) até os dias atuais (primeira década do século XXI). Para delimitar ainda mais o objeto deste estudo, procurou-se eleger somente filmes narrativos, do gênero ficção, em longa-metragem e que conseguiram uma resposta positiva em termos de distribuição e recepção do público. Além disso, as obras analisadas têm como protagonista um personagem com características do herói anteriormente delimitado. Como previamente exposto, a categoria de heróis nacionais apresentada pelo antropólogo Roberto da Matta (1997) foi tomada como base para a escolha dos filmes. Neste sentido, buscou-se uma aproximação entre a análise e a construção conceitual dos tipos de heróis brasileiros, exposta por da Matta, às películas escolhidas. Inicialmente, foram definidos três filmes brasileiros para compor o objeto pesquisado. Poder-se-ia trabalhar com um número maior de produções, caso fosse buscado um formato de pesquisa que abarcasse, quantitativamente, mais tipos sociais, como o “herói negro”, exemplificado no filme Besouro (Brasil, 2009), de João Daniel Tikhomiroff, ou o herói (heroína) criança, exemplificado em Tainá – uma aventura na Amazônia (Brasil, 2000), de Sérgio Bloch, ou, ainda, um herói coletivo, exemplificado em Batismo de sangue (Brasil, 2006), de Helvécio Ratton. O fato é que existem muitas variações, tipos e possíveis subclassificações de heróis percebidos dentro da sociedade brasileira. Não havia como contemplar todas as infinitas possibilidades em uma mesma pesquisa. Neste sentido, optou- se por três heróis que, de alguma forma, dialogam de forma bastante construtiva com o referencial teórico e conceitual adotado. O trabalho aqui realizado utilizou a observação aprofundada naqueles personagens tidos como heróis nas obras selecionadas. Assim, se buscou 139 compreender seu perfil constitutivo, suas relações espaciais, temporais e psicológicas, bem como os elementos intrínsecos e promotores da sua trajetória de aventuras, relacionando suas buscas ou inquietações à realidade brasileira. 5.1 – Análise do filme Lamarca 5.1.1 – Informações fílmicas de base Título original: Lamarca Sinopse26: O filme é baseado na vida do famoso guerrilheiro Carlos Lamarca (1937-1971). Capitão do Exército brasileiro que deserta, em 1969, e entra na luta armada contra o regime militar. Envia sua família para Cuba, cai na clandestinidade, comanda assaltos e o sequestro do embaixador suíço. Apaixona- se por Clara, uma militante política, e vive com ela uma turbulenta história de amor. Em 1971, embrenha-se no sertão baiano, com o projeto de implantar no país a guerrilha rural. Descoberto pelas forças de repressão, é implacavelmente caçado até ser morto, em setembro daquele ano.27 Tema/subtema(s) do filme: a retrospectiva da vida do guerrilheiro Carlos Lamarca; o guerrilheiro Lamarca a partir de suas memórias; a perseguição do guerrilheiro; o embate entre Vanguarda Popular Revolucionária e a ditadura militar brasileira, a partir do ponto de vista de Carlos Lamarca. Gênero: drama biográfico. Ano de lançamento: 1994. Duração: 130 minutos. Faixa etária: 14 anos. 26 As sinopses foram retiradas do site www.adorocinema.com 27 Story line baseada na capa do próprio DVD Lamarca (lançado pela Paramount / Universal). 140 Quadro de personagens, arquétipos e ações desenvolvidas: PERSONAGEM MÁSCARA / ARQUÉTIPO AÇÃO PRINCIPAL ATOR/ATRIZ Carlos Lamarca herói Defender os ideais revolucionários Paulo Betti Marina aliada Manter a base familiar para o herói; Promover humanização, suavidade na narrativa Deborah Evelyn Pai de Lamarca mentor Dar uma perspectiva de família para o herói: humanização; Ouvir os desabafos do herói: ser seu confidente; Dar conselhos e orientação Nelson Dantas Mulher beduína arauto Chamar à mudança, motivar, promover a consciência do herói; Indisponível Clara / Iara aliada, camaleoa Ajudar nas ações de guerrilha; Agir como tentação para o herói: femme fatale Trazer suspense à história Carla Camurati Fio aliado, mentor Dar conselhos, promover a consciência do herói; Provedor de instrumentos ou serviços necessários para o herói Roberto Bomtempo Zequinha aliado, mentor Provedor de instrumentos ou serviços necessários para o herói Eliezer de Almeida Professor aliado, camaleão Provedor de instrumentos ou serviços necessários para o herói; Trazer suspense à história; Trair a causa por conta de suas fraquezas Jurandir de Oliveira Ivan aliado Provedor de instrumentos ou serviços necessários para o herói; Produzir conflito e ação na narrativa; Questionar o herói e sua postura Selton Mello Major sombra Perseguir e combater o herói e seus aliados; Desafiar o herói e seus aliados José de Abreu Delegado Flores sombra Perseguir e combater o herói e seus aliados Desafiar o herói e seus aliados Ernani Moraes 141 Quadro do núcleo da equipe de criação EQUIPE DE CRIAÇÃO PRINCIPAL EM LAMARCA FUNÇÃO EXERCIDA NO FILME PROFISSIONAL Direção Sergio Rezende Roteiro Alfredo Oróz e Sergio Rezende Produção José Joffily e Mariza Leão Fotografia Antonio Luiz Mendes Direção de Arte Clóvis Bueno Montagem Isabelle Rathery Som Jorge Saldanha Música David Tygel Quadro com dados de investimento e distribuição da película28 RELAÇÃO ENTRE ORÇAMENTO E INSERÇÃO NO MERCADO DE LAMARCA Produtora executiva Morena Filmes Cidade sede a produtora Rio de Janeiro Orçamento * Distribuidora(s) Sagres, Paramount Pictures do Brasil Público oficial alcançado nas salas de cinema Cerca de 150 mil espectadores Renda oficial a partir das salas de cinema * Nº de salas alcançadas: * 5.1.2 – Introdução ao filme Lamarca Na opinião de Alex Barros Cassal (2011), o resgate do período da ditadura militar no cinema, a partir da década de 1980, contribuiu para colocar em evidência os militantes e organizações de vanguarda como “heróis falhados”. Neste caso, mudam-se os personagens, contudo, o final nunca é feliz. 28 Dados conseguidos a partir de tabelas e demonstrativos disponibilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, disponíveis no site www.ancine.gov.br. * Como são mais antigos, esses dados não constam das planilhas da Ancine. Os mesmos já foram oficialmente pedidos três vezes à produtora Morena Filmes, a partir de contato registrado em e- mail. Contudo, até o momento, os mesmos não foram repassados. 142 Vista como um sacrifício estéril ou como ato que semeou uma liberdade futura, a luta revolucionária vai ser considerada sempre como um auto-sacrifício (muito embora os movimentos de vanguarda estivessem preparados não só para morrer, mas também para matar). (CASSAL, 2001, p. 156). Logo no início da década de 1990, o diretor Sergio Rezende teria resolvido resgatar o personagem Lamarca, após uma conversa entre cineastas e o Secretário da Indústria e Comércio, Luiz Paulo Veloso, quando este último apresentou as propostas do Governo Federal para o cinema. Em uma entrevista para uma revista, o próprio diretor revela que: “O Veloso chegou lá já tarde, fumando um „charutão‟, e começou a dizer que a economia, agora, havia se tornado mundial e que o Brasil não poderia produzir tudo, mas apenas aquilo que fosse competitivo no mercado internacional. Acabou dizendo que fazer cinema no Brasil não valia a pena, que era mais negócio importar filmes. E essa situação – na qual não se precisava do Brasil, não se precisava falar português – pareceu-me uma tragédia que acabou me inspirando para a filmagem de uma outra tragédia: a vida do Lamarca”.29 O filme Lamarca foi o ponto de partida para uma prática cinematográfica que se desenvolveu a partir das obras de reconstituição histórica (baseadas na biografia de alguém ou em algum evento que realmente ocorreu) ou através dos chamados filmes de época (localizados em um tempo passado, porém com enredo não verídico). Na década de 1990, cerca de 20% das películas em longa- metragem produzidas foram baseadas nesses subgêneros. Para aquele período de ressurgimento do cinema verde-amarelo, Lamarca foi um relativo sucesso de público. Analisando aquele contexto histórico de grande inércia do cinema brasileiro, a produtora Mariza Leão acredita que, como o próprio protagonista, o filme também representa um forte marco de lutas idealistas. “Eu me lembro que, naquela época, praticamente o Brasil não produzia filme nenhum. E quando o filme foi lançado, em 94, só houve uns sete ou oito filmes lançados. E o Lamarca fez 150 mil espectadores, e isto representava mais que o dobro da soma dos outros filmes lançados naquele ano. Obteve uma repercussão 29 Trecho da entrevista de Sergio Rezende retirado de O olho da história, Revista de História Contemporânea, Bahia, 2(3), Nov., 1996, p.166. 143 enorme, imensa, e eu tenho muito orgulho, como brasileira, como cidadã, de ter produzido Lamarca naquele momento”.30 Pouco depois do lançamento do filme, o diretor Sergio Rezende, em uma entrevista para a revista O Olho da História, reafirmou as diferença entre aquela nova safra de filmes, advindos da Retomada, e aquelas películas filmadas durante o Cinema Novo. Em sua opinião, depois do regime militar, por conta de vários fatores, como a exigência de uma qualidade técnica superior, teria ocorrido um encarecimento da produção dos filmes. Nesse sentido, a partir da década de 1990, fazer cinema nos moldes antigos, sem uma planilha de gastos e outra de arrecadação seria uma postura muito inviável. “O Glauber [Rocha, diretor] quando veio filmar no sertão só contava com ele mesmo, com o Maurício [do Valle, ator] e com o câmera. Era só chegar lá e filmar. Nossa realidade é bem diferente: quando a gente se desloca, são quatro caminhões e dez ônibus. Não se trata de um filme de autor que exige apenas uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.31 5.1.3 - A configuração/construção do herói De uma maneira pouco comum, no início de Lamarca, há um grande investimento de tempo exatamente na tarefa de contar, verbalmente, ao espectador a configuração deste personagem. Em uma sala de reuniões escura, vários militares do Exército Brasileiro veem imagens projetadas de Lamarca (Fotograma 1), enquanto um coronel explicita para eles um resumo da história do ex-capitão, com grande riqueza de detalhes: - “Calos Lamarca. Nascido em 27 de outubro de 1937. Filho de sapateiro. Lamarca foi um garoto normal. Os vizinhos dizem que desde criança falava em ser soldado. Com 11 anos conheceu a moça que iria se casar. Em 54, entrou para a Escola Preparatória de Cadetes, em Porto Alegre. Em 57, foi transferido para a Academia Militar das Agulhas Negras. Ali, o Partido Comunista infiltrava panfletos embaixo do travesseiro dos cadetes. Parece 30 Trecho da fala de Mariza Leão presente no making of de Lamarca, disponível em DVD. 31 Trecho da entrevista do diretor Sergio Rezende retirado de O olho da história, Revista de História Contemporânea, Bahia, 2(3), Nov., 1996, p. 166. 144 que Lamarca se tornou um simpatizante. Em 60, nasce seu primeiro filho. Lamarca vai servir em São Paulo: Quitaúna. Conhece o sargento Denis Rocha – comunista de quem se torna grande amigo. Dênis é preso no vale da Ribeira. Promovido a segundo tenente, participa da ocupação do Canal de Suez, nas forças da ONU. Fica em Rava 13 meses. Essa estadia marca sua vida. Em Suez, ele forma suas convicções políticas. Está na PE de Porto Alegre em 1964, quando Jango cai. Durante um de seus plantões, um preso subversivo foge. O inquérito administrativo não dá em nada. Lamarca pede transferência. Volta para Quitaúna. Forma um grupo de estudos com cabos e sargentos. Ao que tudo indica, já pensando em estruturar um foco guerrilheiro em área rural. Não levanta suspeita. Ele é brilhante! Campeão de tiro, representa sua unidade em várias competições. Promovido a capitão, em 67, é designado para comandar tropas contra manifestações de rua. Ele vai, mas já está do outro lado. Tinha entrado para a VPR, Vanguarda Popular Revolucionária, organização armada da linha de Che Guevara. Em janeiro de 69, foge do quartel levando 70 fuzis Fal e cai na clandestinidade”.32 Através desta narração já se pode ter uma boa ideia deste personagem até o momento em que ele resolve deixar o Exército Brasileiro. Contudo, o guerrilheiro Carlos Lamarca, também conhecido por seus companheiros de luta por outros nomes de guerra, como Cirilo, Paulista e Cid, vai muito além dessa narração oficial. Fotograma 1: Slide mostra o ex-capitão Carlos Lamarca como exemplo de vitória e modelo a ser seguido dentro do Exército Brasileiro. 32 Todas as falas desta análise foram retiradas (transcritas) do filme Lamarca. 145 Em boa parte da película, ambientada principalmente no período posterior ao roubo dos 70 fuzis pelo ex-capitão, observa-se um Carlos Lamarca pouco ativo. Por vários momentos, ele aparece magro, abatido e frágil. Aquele sujeito, anteriormente protagonista no Exército Brasileiro, agora, está muito limitado por conta da clausura imposta a partir das forças policiais e militares da ditadura brasileira. Contudo, ele não deixa de ser questionador da miséria e da exploração do povo, determinado a promover mudanças sociais profundas; defensor fiel dos ideais revolucionários. Socialmente, ele se mostra um idealista ao extremo, mas está impossibilitado de muitas atividades. Devido à sua luta e sua ideologia, possui poucas relações pessoais próximas e de sua confiança. Todas elas se limitam às paredes internas (ou externas) dos esconderijos por onde ele precisa ir despistar as autoridades. No filme, o líder revolucionário tem sua movimentação diuturnamente cerceada. Ele é um tipo de prisioneiro por conta da própria causa que defende. Os personagens que mais se relacionam com ele são Clara (a amante e parceira que ele conhecera entre os revolucionários), Fio (um dos organizadores do movimento revolucionário), Zequinha (revolucionário que acolhe e cuida de Lamarca no esconderijo a céu aberto). Em um longo trecho do filme, Lamarca está totalmente sozinho, em meio a um cárcere natural. Independente da pressão sofrida nos diversos ambientes, ele prima, em parte da narrativa, por uma postura justa, humanista e coerente com seus ideais. Psicologicamente, Lamarca também não esconde os diversos conflitos que trava internamente, como medos, angústias, indecisões. Uma prática que demonstra um pouco deste momento de tensão interna vivido por Lamarca é o uso constante que faz do cigarro durante o filme. Revisando seu passado, a partir das cenas apresentadas no filme, pode-se notar que Lamarca era um pai atencioso, carinhoso e até brincalhão com seus filhos e com sua esposa. Contudo, à medida que vai se envolvendo mais com o movimento revolucionário, começa a temer pela segurança deles e prefere que se mudem para Cuba, a fim de se resguardarem de possíveis represálias. A partir desse momento, sua luta e seus ideais ganham uma proporção bem maior que sua família. Assim, seu lado pessoal e familiar dá lugar à perspectiva do guerrilheiro. Apesar de parecer amar muito sua família, tanto pelas cenas em que se mostram juntos, como pelas 146 cenas nas quais Lamarca escreve para eles, a revolução social que defende ganha o primeiro lugar em sua vida. Um dos principais conflitos travados por Lamarca se expressa justamente a partir dessa equação contraditória de ideologia versus família. Em um fragmento da sequência em que ele se encontra doente, por conta da insolação daquele cárcere a céu aberto, lembra-se com carinho e emocionado de seu pai: -“Ah, que falta eu sinto do velho!”. Para manter-se na luta, ele precisa abdicar de quase todas as suas relações interpessoais. Algumas vezes, tem que se afastar dos próprios companheiros do movimento, como é o caso de Clara. Com o objetivo de manter as pessoas queridas em segurança, ele se afasta delas, vivendo como um herói solitário. Outro conflito emergente e cotidiano de Lamarca, registrado pelo filme, diz respeito à manutenção da sua própria vida. Embora o personagem tenha um histórico de lutas pelo social, por ideais de defesa do povo brasileiro, na película, é ele quem precisa ser ajudado. Pode-se pensar que ele ajuda os outros no sentido de continuar a motivá-los com seu próprio exemplo e resistência, para que não desistam da luta que pretende transformar o Brasil em um país melhor. Contraditoriamente, o personagem que mais defende essa luta pelo coletivo já não tem forças sequer para se defender enquanto indivíduo. Internamente, Lamarca precisa superar muitos desafios, como a saudade da família, a solidão imposta por sua condição de líder de um movimento como aquele, os fracassos acumulados na luta revolucionária, a indecisão quanto ao papel de Clara em sua vida, o entendimento de uma visão equivocada sobre a luta armada no campo, entre outros pontos de tensão. Externamente, ele enfrenta outras muitas provações, como a perseguição implacável do Exército Brasileiro e da polícia política, além da sofrida vida em forma de cárcere, mesmo sem estar oficialmente preso. A ambientação final aonde Lamarca é obrigado a viver deixa este aspecto bastante evidente. Entre os principais inimigos que o guerrilheiro ganha em sua trajetória, destacam-se o Delegado Flores que já teria matado vários dos seus aliados na luta revolucionária, e o Major que não teria suportado a “traição” de Lamarca ao desertar-se e se engajar no movimento revolucionário. É curioso que, 147 historicamente, sabe-se que este último personagem se refere ao Major Nílton Cerqueira, que teria caçado e matado Lamarca, sem dar-lhe a oportunidade de qualquer tipo de julgamento legal. Contudo, no filme, por “algum motivo de força maior”, ele é chamado apenas de Major, impossibilitando sua identificação ao grande público. Em uma obra que busca uma perspectiva fiel aos fatos como esta, a ausência desta informação é, no mínimo, curiosa. Quando se observa também as entrevistas disponíveis no making of do filme, pode-se verificar um fragmento da fala do diretor Sergio Rezende que dialoga bem com esta inquietação. “Dois dias antes do lançamento, nós recebemos a notícia de que tinha sido impetrado um mandato de segurança para impedir que o filme estreasse e o autor dessa medida havia sido o general, o então general Nilton Cerqueira, Secretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro naquele momento e que tinha participado atividade da caçada ao Lamarca no interior da Bahia. E o general considerou que o filme era ofensivo â sua imagem ou a qualquer coisa nesse sentido e entrou com um mandato de segurança para impedir a exibição do filme. Felizmente, a justiça teve o bom senso de não acatar esse mandato de segurança e o filme ficou absolutamente livre para cumprir a sua trajetória”.33 Um dos fatores que faz este ex-capitão ser tão especial pode ser o fato de ele ter abdicado de tudo o que lhe era mais importante, representado, inicialmente, por sua carreira no Exército Brasileiro e por sua família, para se entregar, totalmente, a uma proposta ética e moral em prol do coletivo, do povo brasileiro, que, algumas vezes, sequer entendeu ou mesmo conheceu o porquê desta luta. Por essa causa, ele passou por diversas privações que culminaram, inclusive, na perda da própria vida. Parece contraditório: um herói que tanto lutou pelo povo, mas que nunca pôde estar junto dele durante toda sua trajetória. 33 Fragmento da fala de Sergio Rezende presente no making of do filme Lamarca. 148 5.1.4 - A narrativa audiovisual de Lamarca a partir dos 12 estágios da Jornada do Herói (conforme Vogler): a) Mundo Comum: Com uma montagem narrativa que faz uso de vários flashbacks, o filme apresenta ao espectador alguns poucos fragmentos do mundo comum de Lamarca somente bem depois do início da narrativa. Desde o começo da obra, ele já está totalmente embrenhado em seu mundo especial. Contudo, é possível perceber resquícios desse mundo comum a partir das memórias de Lamarca, apresentadas no filme por intermédio de flashbacks evocativos de suas lembranças. Um desses retornos ao passado acontece logo depois que Lamarca avista um menino procurando pássaros, bem próximo do seu esconderijo natural, no meio da caatinga. Sem se deixar ser visualizado, em primeiro plano, por entre aquela vegetação retorcida, ele olha fixamente para aquele garoto que deve ter a idade aproximada de seus filhos que estão em Cuba. Neste trecho da obra, roteiro e montagem contribuem para o gancho dramático de entrada ao flashback. A expressão de Lamarca já sugere a temática de sua imediata lembrança. Antes mesmo de surgir imagens do passado, a montagem já antecipa um fragmento da leitura de uma de suas cartas, a partir de voice over. Tal som diegético, do pensamento de Lamarca sobre sua lembrança, continua também quando é iniciado propriamente o flashback. Assim, o som de um passado bem próximo e recente é mesclado à imagem de pessoas em ações já bem mais distantes. Nesse sentido, as primeiras falas desta leitura em voice over trabalham como uma espécie de elemento antecipador para a ação que será rememorada através do flashback. Tal procedimento é utilizado por outras vezes no filme. A partir da recordação de Lamarca do seu antigo ambiente familiar, o espectador adentra uma cena que se inicia com uma imagem desfocada que, aos poucos, começa a ganhar nitidez. Na mesma, se observa Lamarca fardado, deitado e se arrastando pelo piso, como se estivesse fazendo algum exercício militar. A câmera está muito baixa, ao nível em que se encontra este personagem. Contudo, logo depois, ele abre a porta de um armário e abraça seus dois filhos 149 que estavam brincando de esconder com o pai. Continuando a brincadeira, os três se escondem atrás da porta do mesmo quarto, enquanto sua esposa Marina chega, fingindo não saber onde eles estão, para continuar a brincadeira. Ela logo é surpreendida pelo marido e filhos. O cenário da casa tem iluminação que sugere luz natural de um dia ensolarado. Junto com as paredes brancas, os fachos de luz, que simulam o sol, provocam sombras suaves e criam um ambiente de harmonia e tranquilidade. A ação dos personagens dialoga diretamente com essa proposta. Depois do “susto” em Marina, os quatro se jogam na cama, brincando. Em plano inteiro, trocam carícias e risos. Nesta cena, a farda de Lamarca não lhe impõe qualquer peso ou mecanismo limitador. Ele está deitado, de forma bem relaxada e com as pernas em cima da cama. Sua família é sua alegria e sua grande prioridade naquele momento, embora sombras abatam-se sobre eles (Fotograma 2). Fotograma 2: No aconchegante e tranquilo ambiente familiar, Lamarca se mostra brincalhão e bastante humanizado, junto de seus filhos e sua esposa. Pode-se considerar aqui exatamente o ponto de ligação à sua maior incompletude que, neste caso, será tanto interna como externa a ele. Quanto mais Lamarca segue em direção aos seus ideais – aquilo que ele considera como missão revolucionária, mais terá de se afastar deste universo familiar, harmônico e tranquilo. A partir de um determinado momento de sua vida, o mundo comum começa a parecer impraticável, porque, mesmo sem perceber muito bem, 150 Lamarca já teria entrado também em um mundo especial do qual não poderia mais voltar. Esta questão será revisitada nos próximos estágios. O principal objetivo de Lamarca é fazer a revolução social no Brasil. Assim, ele abdica de tudo e de todos, empregando a própria vida neste objetivo. Seu maior desejo é acabar com a miséria e exploração do povo. Contudo, como todo ser humano, possui muitas falhas. Uma delas é acreditar que seria possível promover a revolução a partir de uma guerrilha no campo. Mesmo tendo que abandonar mulher, filhos, pai, amigos e até sua amante, ele não se mostra arrependido de nada. No filme, sua luta por melhores condições de vida para o povo brasileiro é sempre o ponto de seu maior direcionamento e dedicação. b) Chamado à aventura: A partir do filme, é possível dizer que Lamarca teve vários chamados à aventura. O próprio coronel que apresenta Lamarca para outros militares, no início do filme, fala sobre três desses chamados. O primeiro teria acontecido ainda quando Lamarca era cadete na Academia Militar das Agulhas Negras. Lá, o Partido Comunista infiltrava panfletos embaixo do travesseiro dos cadetes. Um segundo chamado mencionado refere-se à aproximação e amizade de Lamarca com o sargento Denis Rocha que já era um comunista engajado. Contudo, estes dois primeiros chamados aparecem apenas a partir da apresentação do coronel. Dentro do recorte proposto pelo cineasta, a prioridade parece ter sido evidenciar o maior de todos os chamados à aventura de Lamarca: o momento em que ele teria formado suas convicções políticas durante a ocupação militar do Canal de Suez pelas forças da ONU. Apenas próximo ao final do filme, o espectador irá conhecer um pouco de como fora o chamado de aventuras mais forte de Lamarca. A sequência que trabalha esta temática, a partir de um flashback, é iniciada quando ele está chegando a sua casa, após voltar da ocupação no Canal do Suez. Familiares e amigos estão alegres ao recebê-lo; batem palmas para cumprimentar aquele herói familiar. A trilha musical extra diegética e over faz uma introdução à sequência para exaltar o então segundo tenente. Neste momento, ele conhece a filha que nascera ainda quando estava fora. Há um corte para o momento do almoço de celebração de sua chegada. A partir de um plano conjunto, se vê uma 151 mesa farta no ambiente simples do quintal da casa de seu pai, sugerindo um clima de maior descontração e proximidade. Contudo, mesmo rodeado de seus entes queridos, as lembranças daquilo que vivera durante os meses que passara em Suez parecem atormentá-lo. Puxando assunto à mesa, um dos amigos lhe pergunta como é a vida no deserto. Cabisbaixo e pensativo, Lamarca responde apenas: -“É... é triste!”. A sequência continua com uma fusão lenta que acaba no mesmo ambiente, porém, já no período da noite. Agora, aparecem na tela somente Lamarca e seu pai. Pela sugestão da passagem de tempo dada pela montagem e pela primeira fala do diálogo entre os dois parece que Lamarca não teria se aberto muito durante aquele almoço. Com a presença apenas de seu pai, Lamarca já se sente seguro para dizer exatamente tudo o que acontecera naquele lugar. Sua própria postura já dá indicativos de diversas mudanças. Sem farda e também sem camisa, sentado na cadeira de maneira invertida, usando seu encosto para apoiar os braços à sua frente, Lamarca quebra algumas regras de sua normalidade hierárquica e, a partir da fala, vai deixar claro para seu pai como toda aquela vivência no Canal de Suez o teria influenciado para uma grande mudança na maneira de perceber seu papel como soldado e os verdadeiros porquês de sua luta. O diálogo é uma espécie de desabafo de Lamarca ao pai, explicitando que teria aceitado aquele chamado à aventura. Pai de Lamarca: -“Fala Carlinhos...” Lamarca: -“Aquilo foi um inferno. Foi logo que chegamos no deserto. Aí começou aquela voz de mulher. Uma ladainha que não parava. Dia e noite. Era um grito de dor, pai. Escuto aquela árabe. Ali pelo terceiro dia, decidimos sair em patrulha para ver o que era aquilo. Areia pelos joelhos. De repente, eles estavam ali. Uma tribo de beduínos. O senhor não pode imaginar pai. Sem água, famintos. Fedendo a carne podre. Eu não entendia o que eles falavam, mas... A mulher dos gritos tava lá. Com uma criança no colo, uma outra embrulhada em farrapos. Que miséria, pai!” Pai de Lamarca: -“Como no nosso nordeste”. Lamarca: -“Os guris fervendo de febre com crostas na cabeça. Aí, pegamos para levar eles para o acampamento, para o médico ver. Aí, a mulher parou de cantar. O menor morreu no caminho. A outra criança, na enfermaria. Não me conformei, pai. Chorei. O major, nosso médico, me diz: „tenente, você não veio para o Canal de Suez para salvar criancinhas. Você veio para instaurar a paz‟. Mas que paz é essa que só serve para as grandes potências ficarem com o petróleo dos árabes? Não pode haver paz com 152 miséria e exploração. Eu pensei tanto no Brasil, em nossa situação. A gente precisava transformar este país, pai”. Pai de Lamarca: -“Êêê... mas não é fácil! Ninguém entrega nada de mão beijada Carlos. Fazendeiro, nem empresário, nem ninguém. Este país vai acabar incendiado”. Lamarca: -“Suez mudou minha cabeça. Descobri que tarefa de militar é tarefa política. Pai, se a guerra fosse declarada, eu passava pro lado dos árabes”. Pai de Lamarca: -“Aí seria considerado traidor”. Lamarca: -“Traidor? Mas ser leal o que é? É ficar calado diante das maiores injustiças? Ser leal é ficar contra o povo? Eu sempre quis ser soldado e nunca vou deixar de ser, mas mudo de exército se o nosso passar para o lado dos exploradores”. Mesmo sem saber exatamente, Lamarca já teria mudado ideologicamente para outro exército: o revolucionário. Por intermédio do diálogo exposto, fica evidenciada a postura e o caráter de homem que busca a justiça e a igualdade social adotado pelo então capitão. Além disso, a partir do que o filme revela, pode-se atribuir à mulher beduína descrita por Lamarca, que clamava por ajuda a seus dois filhos, a função de arauto da aventura para este herói. Apesar de outros chamamentos anteriores, teria sido esse chamado – daquela árabe à beira da morte – o que realmente teria comovido e contribuído para seu aceite. Em outro momento do filme, é possível observar uma imagem do que seria um fragmento da memória de Lamarca a respeito dessa mesma mulher, dividido em quatro planos. O primeiro deles é iniciado a partir de um fade in, que sai de um fundo sólido branco e, aos poucos, vai se abrindo para a visão da mulher, carregando um dos filhos nos braços e tendo o outro a seu lado. Eles são vistos em plano conjunto, caminhando pelas dunas. As roupas simples da mulher balançam ao prazer do vento forte, especialmente o longo tecido que lhe cobre a cabeça e desce até suas pernas. A partir de um plano detalhe nos pés da mulher, é evidenciada sua dificuldade para continuar caminhando. Vê-se um super close do seu rosto com expressão sofrida. No mesmo plano, uma de suas mãos (curiosamente com unhas bem cuidadas e limpas) segura aquele longo pano que cobre sua cabeça e, ao mesmo tempo, segue a trajetória do vento. Esses dois planos anteriores têm baixa profundidade de campo, que pode ressaltar o caminhar debilitado e a expressão de sofrimento. Em um último plano conjunto desta sequência, a mulher e os filhos continuam, com dificuldade, seu caminho. Os quatro planos são cobertos por uma trilha musical extra diegética e over que 153 busca ressaltar aquele momento de sofrimento da personagem. Contudo, diferentemente da atmosfera de horror explícito narrada por Lamarca, a cena é bem mais branda (Fotograma 3). A opção do diretor foi apresentar a mesma personagem com um sofrimento menos terrível do que aquele momento de encontro apenas verbalizado por Lamarca. Ela é mostrada em uma bonita duna de areia branca e sob um céu claro e azul. Assim, essas imagens representariam uma projeção visual bem mais eufemista sobre aquela situação de fome, sede e desespero – um processo de estetização da dor e da miséria. Fotograma 3: A beduína do Canal de Suez: principal arauto de Lamarca Quando a beduína suplica com as últimas forças pela vida dos filhos, mesmo em outra língua – conforme Lamarca conta a seu pai – esta súplica torna- se também um momento de reflexão para ele. A grande aventura proposta seria dar um passo atrás e buscar entender para que e para quem estaria servindo o seu trabalho de soldado. A mulher propõe uma questão que não lhe é nova; porém, a maneira como ela apresenta é demasiadamente mais forte do que as formas já lidas ou ouvidas sobre o mesmo questionamento. c) Recusa do chamado: O filme não deixa claro se houve algum tipo de recusa anterior ao chamado à aventura na luta revolucionária por parte de Lamarca. Ao que parece, ele 154 estava, gradativamente, se aproximando do movimento. Sua amizade com o sargento Denis Rocha, comunista, aponta para este caminho. A partir do filme, pode-se formular uma hipótese de que Lamarca, naquele momento, ainda não teria realmente entrado totalmente para o movimento, em virtude do amor que tinha pelo Exército Brasileiro – sua aspiração profissional desde criança – e também por conta do seu papel de provedor daquela harmoniosa família que tinha construído com Marina. Talvez, a única sequência que traduza um pouco dos seus medos, antes da mudança radical e totalizante que vai tomar, diga respeito ao momento em que é surpreendido por sua filha entrando em seu quarto. A sequência acontece durante a noite. Vê-se Lamarca e sua esposa deitados e dormindo em seu quarto. A câmera, que está nas mãos do operador, vai se aproximando lentamente dos dois, simulando uma visão subjetiva de um observador desconhecido e sugerindo um possível momento de tensão. A iluminação é de penumbra. O quarto é iluminado apenas por raios de luz externos, simulando o luar, e deixando o ambiente com um contraste de luzes e sombras. Um mínimo ruído, que quase não é percebido pelo espectador, desperta Lamarca. Apreensivo, ele vai logo pegando um revólver – que já está embaixo de seu travesseiro. Em plano médio fechado e um leve contra-plongée, ele coloca a arma em condição de tiro e aponta para a direção da porta de seu quarto, pronto para disparar. Contudo, quem vai abrindo a porta e entrando, lentamente, ali é sua filha Claudinha que não estava conseguindo dormir. Enquanto sua mulher acorda e corre em direção à menina, Lamarca vai logo desarmando seu revólver e se colocando cabisbaixo, se reclinando entre as próprias pernas, como se estivesse envergonhado e também refletindo sobre o que ele poderia ter feito à sua filha naquele momento. A sequência continua com um plano detalhe no qual se vê uma mão pegando artefatos bélicos. Com um corte para um plano médio fechado, observa- se a chegada de Marina dizendo que a filha teria conseguido dormir. Eles estão em um tipo de lavanderia da casa. Lamarca está juntando armamentos que a esposa deve entregar para alguns de seus companheiros revolucionários. Contudo, ele se mostra muito preocupado. 155 Lamarca: -“Isso não pode continuar assim. Marina, você precisa saber! Eu vou deixar o exército”. Marina: -“Quê?” Lamarca: -“Passo pra luta revolucionária! Isso vai exigir um grande sacrifício. Meu, seu, das crianças. Eu não posso continuar assim, arriscando a vida de vocês. É uma covardia. Vou desertar”. Marina: -“Como desertar?” Lamarca: -“Eu não posso mais continuar vivendo essa vida dupla. Eles vão acabar descobrindo o desvio desse material”. Por este fragmento citado já se percebe a mudança integral de Lamarca para o lado dos revolucionários. Ele já não aguenta mais ter que permanecer naquele exército que luta a favor de outras propostas divergentes dos seus ideais. A sequência termina com Marina concordando em fugir com os filhos para Cuba. O tom melancólico proposto pela trilha musical extra diegética torna aquele momento uma pré-despedida. d) Encontro com o mentor Durante o filme, fica evidente a participação de alguns grandes mentores na vida de Lamarca. O primeiro deles seria seu próprio pai. Na cena em que ele participa mais no filme – o momento em que o filho retorna do Canal de Suez – é possível observar o quanto Lamarca o respeita e como lhe tem como cúmplice para dialogar a respeito dos assuntos mais difíceis. É preciso esclarecer que seu pai não aparece como um mentor da sua jornada de aventuras, mas, sim, de sua jornada da vida. Já com a idade mais avançada, ele apresenta posições um pouco mais moderadas e reticentes sobre as possibilidades de mudança do Brasil, tão idealizadas e defendidas pelo filho. Apesar disso, há uma possibilidade de se entender o pai de Lamarca como um mentor a partir do exemplo de homem de bom caráter, honesto e trabalhador que havia dado, anteriormente, ao filho. Pensando mais especificamente na jornada de aventuras deste herói, outro mentor seria aquele que apenas é rapidamente mencionado no início do filme: o sargento Denis Rocha. Como ele era declaradamente comunista e, ao mesmo tempo, muito íntimo de Lamarca, pode-se imaginar que teria tentado, algumas vezes, aproximar o companheiro das causas revolucionárias. Entretanto, isso é uma hipótese advinda apena da frase que cita o sargento no relatório inicial sobre 156 Lamarca. A possível relação de mentor entre Denis Rocha e Lamarca não é tratada em qualquer cena no filme. Um segundo mentor de Lamarca, em sua jornada de aventura, é o personagem Fio. Durante a narrativa, não há a representação fílmica de quando ou como teria sido o primeiro encontro entre estes dois militantes revolucionários. Muito fiel ao companheiro e à causa, ele é uma espécie de organizador/produtor das ações e da infraestrutura utilizadas para esconder ou transportar Lamarca. Normalmente, é ele quem provê o companheiro enclausurado de tudo que necessita, inclusive da comunicação (ou tentativas de) com sua mulher e seus filhos em Cuba. Como figura impulsionadora de reflexão, Fio debate com o líder revolucionário, diversas vezes, os rumos da organização, a segurança de Lamarca e Clara. Entretanto, apesar dos sábios conselhos deste mentor, sugerindo a saída de Lamarca do país para reorganizar o movimento no exterior, o herói é demasiadamente idealista e valente para assumir esta fuga para o estrangeiro. Em uma das últimas cenas de Fio, ele tenta de todas as maneiras abrir os olhos do amigo para a realidade à sua volta e fazer com que ele desista daquela ideia, considerada por ele falida, de guerrilha no campo. Fio: -“Você ficar é uma loucura. Pensa na situação que nós estamos, Cirilo. Nós somos seis, desarmados. Meia dúzia de revólveres. É assim que a gente vai enfrentar o exército?” Lamarca: -“Não! É com determinação”. Como é facilmente notado no filme, Lamarca não segue os conselhos deste amigo mentor. Muitas vezes, a esperança idealista, porém, ingênua de ganhar a causa revolucionária, independente de qualquer barreira ou força contrária, faz com que ele não queira ouvir ou ver os diversos fatores negativos ao seu redor naquele momento. Um terceiro personagem que usa a máscara de mentor na trajetória de aventuras de Lamarca é Zequinha. Ele vai auxiliar Lamarca exatamente na parte rural do filme, quando o herói passa dos esconderijos urbanos para um tipo de confinamento ao ar livre, em meio à caatinga do sítio do pai de Zequinha. Seria ali, na opinião de Lamarca, que se daria o início de uma forte resistência, a partir da guerrilha no campo. Naquele novo ambiente de clausura, cabe a Zequinha a 157 missão de levar alimento e também um mínimo de comunicação interpessoal para Lamarca. Como se discutirá mais adiante, neste esconderijo a céu aberto, o herói está totalmente dependente deste mentor para sobreviver. O ex-capitão teria conhecido Zequinha ainda antes de entrar definitivamente para o movimento revolucionário. A partir de um pequeno flashback, inserido pela montagem exatamente no momento em que eles se cumprimentam, durante a chegada de Kid e Lamarca ao ponto de encontro com Zequinha. No flashback, Lamarca é visto ainda do lado do Exército Brasileiro, acompanhando o cerco militar a uma manifestação de operários em uma fábrica. Naquela situação, Zequinha é o líder do movimento e, com muita disposição e coragem, ameaça explodir o lugar se a tropa militar o invadir. Dentro das suas lembranças é possível notar Lamarca olhando para aquele jovem com certa admiração, embora estivesse no lado aposto ao dele. Mesmo sem saber, o futuro iria reservar para Lamarca o crescimento de uma amizade forte e fiel daquele rapaz para consigo. e) Travessia do primeiro limiar: No filme, a sequência que mais representa a travessia do primeiro limiar seria o roubo dos 70 fuzis do quartel do exército, feita por Lamarca. Nesta interpretação, a porta secreta a ser violada já é bastante conhecida para Lamarca: trata-se dos portões de acesso ao seu próprio quartel. Contudo, nessa história, os guardiões deste primeiro limiar não cerram a entrada, mas, sim, a saída do herói. A sequência que explicita essa travessia acontece logo depois de Lamarca contar à sua mulher a decisão de deixar de vez o Exército Brasileiro. Assim, depois de conseguir a adesão de sua esposa – em prol da segurança dos filhos, ele está mais forte para tomar a atitude derradeira. Conforme o próprio filme mostra, ele já teria feito outros desvios de armas e munições, às escondidas. Contudo, agora seria diferente: seria a grande ação que culminaria na sua saída permanente daquele exército e na sua inclusão definitiva no movimento revolucionário. A sequência é iniciada com um plano detalhe de um caixote de armas sendo vedado. No plano seguinte, médio fechado, percebe-se que é Lamarca, 158 devidamente fardado, quem está fechando aquele caixote que será carregado por seu auxiliares até uma Kombi. Na parte inferior do enquadramento, há uma moldura fechando a composição a partir de vários outros caixotes (Fotograma 4). Assim, pode-se imaginar que o então capitão deseja transportar um carregamento bem maior. Fotograma 4: Momento de relativa tensão na saída com as armas do quartel: o salto de fé de Lamarca. Os militares que auxiliam Lamarca o alertam sobre a aproximação repentina de outro militar que é visto, ao longe, por dentro da Kombi, sair de um caminhão do Exército Brasileiro e começar a vir em direção ao grupo. A trilha musical extra diegética e over promove um suspense para aquele momento. Enquanto os dois auxiliares carregam a caixa com fuzis, Lamarca os orienta para que não falem nada. Ao ser questionado pelo outro militar sobre o grande carregamento de armas, Lamarca, muito sério e compenetrado na sua missão, usa sua astúcia, convidando-o para o suposto treinamento que irão fazer fora do quartel. Satisfeito com a resposta, ele não aceita o falso convite e ainda elogia Lamarca, dizendo: -“A companhia não precisa de dois campeões de tiro. Basta o capitão”. Logo depois que o outro oficial dá meia volta, Lamarca entra na Kombi com aquilo que eles haviam conseguido carregar até aquele momento. A sequência continua com um sargento abrindo os portões do quartel para a Kombi passar. Ele 159 olha com certa desconfiança para aquele quarteto saindo com várias caixas naquele veículo, mas apenas bate continência para seu capitão e anota em uma prancheta o horário de saída do mesmo. Atrás dele, uma fileira de soldados apenas faz a teatralidade da reverência ao superior, sem sequer perceber ou mesmo questionar nada. Logo depois que a Kombi passa, eles rapidamente se sentam e riem, como se tivessem acabado de ouvir uma piada. As forças que guardam aquela porta secreta parecem pouco ameaçadoras no filme. O definitivo salto de fé do herói é dado sem grande dificuldade ou qualquer tipo de confronto direto, muito menos armado – como alguns poderiam esperar de uma ação ousada como aquela. Com o roubo dessa grande quantidade de fuzis, Lamarca evidencia sua integralidade ao movimento. O agora total revolucionário e ex-capitão Lamarca teria tido tamanho êxito fácil por conta do seu passado de glórias e dedicação àquela instituição. Muitos, no Exército Brasileiro, tinham nele um exemplo de militar. Esse é o caso do seu antigo comandante que, em outro flashback, explicita para Lamarca toda sua admiração e até mesmo complacência a atos possivelmente duvidosos que teriam chegado ao seu conhecimento, relacionados ao militar exemplar. Comandante do quartel: -“Lamarca, recebi uma denúncia contra você, garantindo seu envolvimento em atividades subversivas. Sabe que providências tomei? Rasguei o papel. Sei que isso foi coisa de futriqueiro. Muitos te invejam Lamarca. Mas eu te admiro! Considero você um soldado exemplar, um soldado que honra a farda que veste. Acho que seu futuro no exército será brilhante, capitão”. Lamarca: -“Tenente, meu coronel”. Comandante do quartel: -“Eu tô me antecipando. Mandei a lista de promoções para o Ministério. Seu nome em primeiro lugar. Capitão, meus parabéns!” Para aumentar ainda mais a contradição existente nesta cena, Lamarca vê, a partir do basculante aberto da sala de seu comandante, a bandeira brasileira sendo hasteada no mastro do lado de fora, no pátio do quartel. Esta ação solene é mostrada para o espectador por intermédio da visão subjetiva do próprio Lamarca e acontece exatamente no momento em que o coronel anuncia sua promoção. O som diegético da corneta tocada por conta do hasteamento da 160 bandeira ganha volume também naquele ambiente interno, promovendo uma situação de incômodo para Lamarca que já não se sente merecedor daquela confiança e nem mesmo defensor dos princípios formadores daquele exército. f) Testes, aliados e inimigos: Na maior parte do filme, Lamarca já está no mundo especial. Como já dito, o espectador somente vai conhecer uma parte bem reduzida do mundo comum deste herói por intermédio de flashbacks. Em alguma medida, pode-se pensar que o mundo especial de Lamarca também possui algumas das características que o aproximam de seu mundo comum. Tanto no primeiro como no segundo, ele lida com armamentos, trabalha em equipe, continua incorporado em um tipo de exército, reflete e coloca em prática técnicas de guerra, vive dentro de um sistema com hierarquias, entre outros fatores menores. O que mais vai diferenciar um espaço de ação do outro são os ideais, os porquês de se estar ali, a crença na possibilidade de mudança social e não mais na manutenção de um status quo. Entretanto, apesar dessas aparentes linhas de aproximação, o mundo especial é muito mais tenso para Lamarca. Como líder do grupo revolucionário apresentado no filme, ele é obrigado a distanciar-se de sua família e viver escondido, enclausurado. A restrita liberdade que ele possuía como militar se finda a partir do momento em que rouba os 70 fuzis e se torna um dos revolucionários mais procurados do país. Ele e seus companheiros de luta se mostram acuados, o tempo todo, por conta das perseguições promovidas pela ditadura militar. Conforme eles próprios verbalizam no filme, durante uma reunião de dirigentes do comando central, a fuga constante era um processo moroso, demasiadamente caro para a organização e extremamente perigoso para Lamarca. Contudo, ele se mantém inabalável na sua posição e idealismo revolucionário. Lamarca: -“Não sô deputado para passear no exterior. Somo a VPR, Vanguarda Popular Revolucionária e eu não me submeto à ditadura”. Revolucionário A: -“Ficar significa a morte!” 161 Lamarca: -“Mariguela morreu. Che Guevara morreu. Ivan... Tantos outros companheiros... Vocês tão com medo de morrer? [...] Eu sigo na luta”. Aquele Lamarca sorridente e brincalhão no ambiente familiar dá lugar a um indivíduo mais sério, preocupado e, a cada dia, mais abatido. Constantemente, ele está sendo testado, tanto pelo militares, quanto pelos próprios companheiros. Exemplo deste teste duplo acontece na sequência em que o grupo revolucionário decide sobre o futuro do embaixador suíço. Tal sequência é ambientada anteriormente, logo no início do filme, com o próprio sequestro do embaixador, que não é visto, mas sugerido a partir de sons diegéticos off da ação. Enquanto o espectador vê a parte final dos longos (embora merecidos) créditos de abertura, vai escutando e imaginando, visualmente, a ação do rápido sequestro. A sequência propriamente do cativeiro do embaixador se apresenta somente depois da apresentação do longo relatório sobre Lamarca, durante uma reunião da cúpula do Exército Brasileiro. Logo depois que o general afirma, categoricamente, que não irá aceitar as exigências dos revolucionários para trocar o embaixador, há um corte direto para um plano detalhe em que se vê a capa de um exemplar do Jornal do Brasil, no qual se lê “Governo veta 9 e troca 8 na lista do sequestro”. Estava ali um teste para verificar a reação de Lamarca e seus companheiros. Sons diegéticos off de trovões quebram o silêncio daquele cativeiro. Em um plano médio, observa-se um homem pegando aquele mesmo jornal e se abanando por conta do calor. Ele tem a camisa social com alguns botões desabotoados e está apreensivo. Ao fundo deste enquadramento, se percebe outro homem encapuzado observando-o. Logo se conclui que aquele seria o embaixador sequestrado. A iluminação do local é baixa e se alterna a partir da sugestão visual da claridade advinda de relâmpagos em ambiente externo próximo. O clima tempestuoso externo sugere um mecanismo de espelhamento, tanto do conflito que estava vivendo o embaixador como também os revolucionários naquele momento. Ao fundo do quadro, se vê a troca da sentinela do embaixador. A montagem leva o espectador para outro cômodo daquele cativeiro. Em outro plano detalhe, em plongée, vê-se uma bacia colocada no chão. Dentro dela, pinga água, provavelmente advinda da chuva e de algum buraco no telhado 162 daquele lugar. Ao lado da bacia, há vários tocos de cigarro apontando para a ideia de tempo transcorrido e da tensão daquelas pessoas naquele lugar. Um pé masculino pisa sobre a bacia. A partir de uma panorâmica vertical (tilting), a câmera faz o trajeto daquele mesmo pé até a cabeça do jovem revolucionário, Ivan. Ele olha para aquela goteira. Simbolicamente, os pingos de água naquela bacia também podem ser associados à ideia de contagem de tempo e à fragilidade daquele lugar e do próprio resultado da ação. Neste caso, ao colocar os pés sobre o local onde a água pinga, Ivan sugere sua inquietação com tudo aquilo. A partir de uma câmera na mão e um plano-sequência, observa-se a sentinela encapuzada que estava com o embaixador adentrando aquele cômodo. Ele e outros revolucionários são mostrados de pé. Logo se percebe que o encapuzado é Lamarca. Ele terá que defender novamente suas ideias e sua liderança junto ao grupo. Durante esta defesa, ele encara seus companheiros, de frente, em alguns momentos e, em outros, fala mirando um ponto abstrato. Olha para seus pensamentos, para suas propostas ideológicas, para seu interior. A câmera permanece na mão do operador, se movimentando para acompanhar aquele personagem que toma para si a palavra e, ao mesmo tempo, reflete a tensão daquelas pessoas (Fotograma 5). Fotograma 5: Lamarca: o herói dos monólogos interiores. 163 Ivan: -“A ditadura não cede. Por que nós vamos ceder? A minha posição é a mesma do comando nacional: justiçar o embaixador já”. Lamarca: -“Um guerrilheiro tem coragem de morrer, tem que ter coragem de matar. Precisa saber a hora certa de fazer as duas coisas”. Ivan: -“A hora chegou. Estamos sendo desmoralizados”. Revolucionária A: -“É tudo ou nada. Não podemos recuar”. Ivan: -“Exatamente!” Lamarca: -“É isso que a repressão quer. Nos jogar contra a massa. Espalhar que somos assassinos de um homem inocente”. Ivan: -“Não é essa a posição do comando nacional e nem da maioria dos companheiros que está aqui participando da ação”. Lamarca: -“Mas é minha!” Ivan: -“Tu leste O pequeno burguês, companheiro?” Lamarca: -“Uma decisão política...” Ivan: -“Logo você...” Lamarca: -“E militar. Como comandante da operação, eu decido, mesmo contra a vontade da maioria. Nós vamo fazê uma nova lista de prisioneiro, substituir os que a ditadura não quer trocar. 70 companheiros vão escapar da tortura. Vão sair do país vivos. O embaixador vai ser devolvido...vivo.” A partir desse fragmento é possível visualizar o espírito de liderança e o pulso forte do herói nesses momentos de difíceis testes, tanto externos como internos ao seu grupo. Apesar do seu pensamento libertário, ele precisa da autoridade de líder para defender sua postura humanista. Além da habilidade de estrategista, nesta sequência, o guerrilheiro demonstra o cuidado na defesa e preservação de todas as vidas envolvidas, inclusive a do embaixador. Nota-se que, diferente do jovem Ivan, Lamarca não deseja vencer a disputa com os representantes da ditadura a qualquer preço. Para ele, tanto a vida dos possíveis companheiros que deverão ser libertos quanto a vida do embaixador são muito importantes. Esse posicionamento demonstra muito sobre o caráter de Lamarca. Durante sua trajetória, migrando de um esconderijo para outro, a fim de escapar de seus perseguidores, Lamarca encontrará um teste do qual terá um pouco mais de dificuldade para resistir. A partir de uma decisão do comando central, ele passa a dividir os esconderijos com uma jovem militante, fingindo que formam um casal, no intuito de despistar as forças opressivas da ditadura. O grande problema é que a mesma jovem, Clara, que também é chamada de Iara é muito bonita e usa todo seu charme para conquistar aquele herói, há muito solitário. Neste novo tipo de teste, agora valendo a fidelidade à sua esposa, Lamarca tenta bravamente resistir, contudo, no filme, a charmosa Clara é 164 apresentada dentro de uma máscara camaleônica que dá um pequeno suspense a este fragmento da história. Representando um tipo de femme fatale, nesta primeira instância do relacionamento construído pelos dois, ela age como uma grande tentação para Lamarca. A partir de um flashback, observa-se uma sequência que é iniciada com um plano detalhe da tela de uma TV que exibe imagens ainda em preto-e-branco. Vê- se a superfície lunar. Lamarca vai logo dizendo que os russos também irão lá. Essa defesa dos astronautas daquele país e a referência temporal da narrativa sugerem que eles estejam assistindo à chegada do homem à lua (ao final da década de 1960). É possível ouvir, com um volume bem baixo, o som diegético off daquela transmissão feita da Lua para a Terra. O ambiente tem uma iluminação que simula ser apenas aquela projetada pelo aparelho, iluminando somente Lamarca e Clara que estão sentados no sofá. A partir de um dolly in, a câmera vai se aproximando, lentamente, dos dois e deixando o ambiente ainda mais intimista. Enquanto discorda de Lamarca, dizendo que ele está sendo mesquinho com o grande feito norte-americano, Clara se ajeita no sofá, aproximando-se mais de Lamarca e colocando um dos braços atrás de seus ombros. Ela está sorridente, animada com aquela descoberta a que assiste pela TV e, ao mesmo tempo, pensativa. Lamarca logo sai do sofá e do quadro. A câmera continua em Clara e depois há um corte para uma imagem subjetiva daquilo a que ela assiste na TV. Clara: -“Eu queria tá lá”. Lamarca: -“Não se faz revolução no deserto”. Clara: -“Eu queria era fazer amor nessa superfície deserta!” Lamarca: -“É bom, por motivos de segurança, que os vizinhos pensem que nós somos um casal. Mas entre nós a coisa tem que ficar bem clara: minha mulher tá em Cuba, eu sou casado”. Clara: -“Eu também fui”. Lamarca: -“Eu tenho dois filhos”. Clara: -“Isso eu ainda não consegui ter...” Durante este curto diálogo, a câmera vai variando de acordo com o personagem que está falando. Entretanto, durante a segunda fala de Lamarca, a imagem sai do herói e vai para Clara, que se deita no sofá. A montagem chama a atenção do espectador para o corpo da revolucionária. Ela está com um vestido azul, bem colado ao seu corpo e que deixa boa parte das pernas à mostra 165 (Fotograma 6). Enquanto Lamarca tenta fugir daquela tentação à sua frente, mantendo em sua fala e na expressão facial o tom sério e de comprometimento com sua missão, Clara exibe seu corpo para ele e coloca mais melodia nas palavras que saem da sua boca. Logo após essa última fala da moça, a câmera mostra Lamarca, em primeiro plano, fumando, tenso, e já reparando nas curvas do corpo de Clara. Para exaltar ainda mais o desejo do herói, a câmera passeia lentamente, também em plano-detalhe, através de uma panorâmica, pelas pernas até o rosto da moça que sorri, graciosamente, para ele. Aqui, a fotografia catalisa e demarca o poder de sedução de Clara sobre o protagonista. Fotograma 6: A irresistível sensualidade da companheira Clara Apesar de o filme mostrar Clara incorporada neste tipo femme fatale, no início da sua relação com Lamarca, logo depois, ela ganha outra perspectiva, como uma importante parceira do herói, suprindo parte da carência afetiva que ele tinha em relação à esposa. Sua importância é tamanha que, por duas vezes, Lamarca aceita que ela continue junto dele, mesmo em situações que arriscam tanto sua segurança, como o andamento de ações do próprio movimento. Além da sequência analisada de aproximação dos amantes, outras duas sequências marcam o conflito do herói entre o desejo por essa linda mulher e a total prioridade à VPR. A primeira delas acontece durante o trajeto que eles fazem de Kombi em direção a Salvador. A sequência começa com um plano detalhe na 166 cabeça de um peixe, ainda vivo, que teria acabado de ser fisgado pelo militante que dirigia a Kombi. Fora da água e com boa parte suja de terra, este animal é mostrado respirando com dificuldade. Ele pode sugerir uma relação de espelhamento com o próprio Lamarca que é mostrado observando-o, atentamente, no plano posterior. Ambos seriam peixes fora d‟água, ou seja, seres desprovidos de ambientação própria e necessária para sua sobrevivência. Retornando a penar a respeito de Clara, ainda nesta sequência, Lamarca discute com a mesma sobre o improvável futuro dos dois. Como herói de perfil solitário, ele termina a relação entre os dois, alegando que ela é uma mulher jovem e bonita, que aquela relação seria um grande sacrifício para ela e que tal situação estaria gerando sofrimento para ele. Apesar de ela não concordar, respeita a posição dele enquanto líder do movimento. Os dois voltam para a Kombi. Enquanto Lamarca dirige, já durante a noite, se veem as laterais da estrada em chamas. A iluminação é construída basicamente a partir da luz advinda daquelas chamas. A câmera está à frente da Kombi – ambos em movimento. A composição do enquadramento recorta o veículo de maneira frontal, deixando o espectador sem conseguir observar a parte baixa da Kombi e o trecho da estrada na qual suas rodas tocam (Fotograma 7). Há a sugestão interpretativa de que os personagens estão andando sobre o desconhecido, o obscuro. Lateralmente, a Kombi está cercada pelas chamas e, tanto para cima como para baixo, não há espaço no quadro, sugerindo o aprisionamento dos mesmos. A captação do plano também é feita com a câmera na mão e em uma perspectiva de câmera nervosa, aumentando ainda mais este momento de tensão naquele caminho e no próprio pensamento de Lamarca. A trilha musical extra diegética e over contribui muito com o clima mencionado descrito. A partir de um sutil e rápido fade out, a imagem da Kombi é fundida a um plano detalhe no qual se vê um cigarro inteiro sendo aceso por um toco de cigarro (Fotograma 8). O mesmo toco de cigarro é jogado dentro de um copo de vidro repleto de outros tocos de cigarro. Abre-se o enquadramento para um plano inteiro, no qual se vê Lamarca fumando no fundo do quadro e, em primeiro plano, Clara dormindo, deitada em uma cama de casal. Ela está vestida com uma saia curta. A iluminação deste quarto é bem baixa, simulando que apenas algum tipo 167 de abajur está acesso. Contudo, a maior área de incidência de luz é exatamente sobre as pernas de Clara, sugerindo a sensualidade daquela mulher rejeitada pelo amante (Fotograma 9). Aqui a montagem pode sugerir que aquele fogo e tensão da estrada, que atormentaram o herói por aqueles caminhos, teriam transpassado o ambiente externo e continuariam impregnados na cabeça de Lamarca, não o deixando dormir durante todo o longo tempo necessário para fumar tantos cigarros. Complementando essa perspectiva da tensão interna existente nos pensamentos deste protagonista, a trilha musical extra diegética over utilizada na estrada se mantém contínua também nessa nova ambientação, que parece um tipo de hotel de beira de estrada. Com uma das mãos na cabeça, tenso e inquieto, Lamarca deixa um copo cair dentro da pia do quarto e acaba acordando Clara. Sem hesitar, ele se declara por completo: -“Lembra o que eu disse ontem? Esquece. Joga no lixo, tá? Eu não abro mão de você de jeito nenhum. Eu te amo! Eu te amo muito! Desculpa. Você me desculpa? Foi um mecanismo maluco que eu encontrei para não sofrer mais”. Fotogramas 7, 8 e 9: Base da sequência que retrata, visualmente, o conflito interno travado por Lamarca a respeito de sua relação com a companheira Clara. 168 No início da fala de Lamarca, Clara continua deitada e virada de costas para ele. Contudo, após ouvir a expressão “eu te amo” do protagonista, ela se senta, rapidamente, na cama e se põe em total atenção. Pela reação tão positiva da moça, a cena parece retratar a primeira vez que Lamarca teria afirmado esse sentimento de maneira tão objetiva para ela. A segunda sequência na qual a posição afetiva de Lamarca com relação a Clara é explicitada por este herói ocorre durante os treinamentos de guerrilha no campo. Como ela possui tal aproximação com Lamarca, é a única mulher a participar das pesadas atividades táticas. Contudo, rapidamente demonstra sua fragilidade naquele ambiente. Em mais um flashback, vários revolucionários uniformizados marcham por entre a selva. Suja e demonstrando exaustão, a única companheira do grupo cai, sentindo dores. Lamarca vai rapidamente socorrê-la, oferecendo água. Em plano próximo, ele olha preocupado para Clara e, cabisbaixo, reflete sobre aquela situação. Ele se levanta, enquanto Clara se retorce de dor no chão. A montagem corta direto para um plano no qual se vê o revolucionário Dênis ao fundo do quadro, segurando seu fuzil nos braços, como se mantivesse o estado de prontidão daquele treinamento. Ele olha para um ponto fora do enquadramento, enquanto conversa com Lamarca, no primeiro plano desta composição. Denis: -“A moça tá mal, né?” Lamarca: -“Ela supera isso”. Denis: -“Num dá. Prá que forçá a mão?” Lamarca: -“A presença dela é importante”. Denis: -“Importante para você, ruim para a organização e péssimo para a revolução... Todo mundo deixou família e filhos. Por que que só você ia ter regalia em ficar casado aqui?” Lamarca: -“Eu não admito esse tom, Denis”. Denis: -“Tudo bem. Nós somos amigos. Você é o comandante, mas eu sou sincero: um guerrilheiro não pode ter amantes e muito menos Carlos Lamarca”. Lamarca: -“Eu tentei evitar, tentei sufocar, mas toda minha disciplina, todo meu esforço foi inútil”. A partir deste diálogo é possível identificar o conflito vivido por Lamarca para administrar a paixão arrebatadora por essa mulher e suas funções como líder daquele movimento revolucionário. Diferentemente da história de Maria Bonita e Lampião, neste caso, o casal revolucionário não consegue continuar 169 convivendo junto em meio ao bando. A combatente Clara será mais útil ao movimento retornando para o meio urbano. É importante ressaltar que Clara é um dos poucos personagens que faz Lamarca romper sua postura séria, combatente e de constante liderança para se mostrar mais humano e também possuidor de inúmeros conflitos internos. Externamente, o que aflige o herói é a perseguição implacável de dois principais inimigos: o delegado Flores e o Major (cujo nome não é dado no filme por motivos já comentados). O primeiro deles é o responsável pela morte e/ou tortura de vários de seus amigos revolucionários. Ele possui um gosto sadista por esse tipo de prática. Na cena em que Kid está preso, os dois se juntam para torturá-lo. Observa-se o delegado Flores em plano próximo, porém, de costas para câmera. Ele está de arma em punho. Ao fundo da composição, mira-se Kid, sentado e muito apreensivo, em contraluz. Atrás dele, está o Major, torturando psicologicamente o prisioneiro. A câmera começa a fazer um movimento em travelling no qual, gradativamente, o delegado Flores é visto frontalmente, olhando sério para a parede. Com o decorrer da conversa, o Major vai perguntando a Kid se ele sabe quem teria matado determinados líderes da revolução. Todos os questionamentos têm a mesma resposta de Kid: o autor seria o delegado Flores. O torturado ainda não sabe quem estaria sentado ali à sua frente. Durante esta ação, a fotografia coloca Kid emoldurado pelo corpo do delegado, promovendo a ideia de um segundo enclausuramento (Fotograma 10). Com um corte abrupto, a montagem conduz o espectador para uma composição que rompe o eixo anteriormente trabalhado. Nesse plano próximo, o delegado Flores arma rapidamente sua pistola, tira do paletó sua identificação e faz questão de entregá-la a Kid. -“Lê meu filho. Pode lê”, ironiza o torturador. No contraplano, Kid segura a carteira de identificação da cor vermelha, como aqueles cartões que os juízes de futebol usam quando querem expulsar algum jogador, e olha fixamente para ela, sem conseguir esboçar qualquer reação. Estaria ali, na sua frente, o mais temido nome da polícia política do regime militar brasileiro. Depois dessa apresentação funesta, basta o delegado perguntar por Lamarca uma única vez que Kid vai logo dizendo, sem nem mesmo passar por qualquer tortura física. Contudo, mesmo depois de ouvir o que deseja, o delegado aponta a arma para a cabeça de Kid e puxa o gatilho. Ele ainda deseja chegar ao êxtase do seu prazer 170 sadista, agradecendo aquela informação e sorrindo sarcasticamente do temor que Kid demonstra naquele momento. Tal cena e comportamento do delegado Flores podem dar uma ideia do que Lamarca estava enfrentando. Fotograma 10: A caçada: junção dos dois maiores inimigos de Lamarca, Major e delegado Flores No caso do Major, a grande inquietação para com Lamarca se manifesta porque ele considerava que este último teria traído, de forma vergonhosa, o Exército Brasileiro – do qual faz parte e se sente orgulhoso. Referindo-se ao protagonista, o Major demonstra seu ódio: -“O que me deixa louco é lembrar que ele foi um dos nossos. Andou no meio da gente, fez os mesmos cursos, os mesmos treinamentos, os mesmos quartéis. Sentou na nossa mesa e tramou contra nós. Ele vai ter que pagar por isso. Vai ter que pagar pela traição”. Apesar de fazer uma espécie de trégua com o delegado Flores na caça a Lamarca – uma vez que ambos não se entendiam –, não concorda com seus métodos. Ele acredita que a caça de um militar só pode ser bem feita por outro militar e, neste caso, ele próprio toma as dores do Exército Brasileiro e se elege para esta vingança. g) Aproximação da caverna oculta: Pode-se pensar que o filme aqui analisado apresenta uma espécie de inversão no que tange à aproximação que ocorre neste estágio da jornada. 171 Conforme explica Christopher Vogler, normalmente, é o herói que vai, gradativamente, se aproximando da caverna oculta. Contudo, aqui, são os perseguidores do herói, investidos da máscara de sombras, que se aproximam de Lamarca. O caminho deste protagonista em direção ao elixir, que pode ser pensado como o sucesso da revolução, é fortemente desviado por essa forte onda repressora. As ações revolucionárias de que Lamarca participara anteriormente passam a representar somente pontos não lineares de sua memória, fragmentos evidenciados ao espectador somente a partir de flashbacks sem qualquer ordem cronológica, lembranças que vão e vem no pensamento humano. No imaginário do líder revolucionário, a guerrilha no campo realmente poderia ser uma boa estratégia para vencer a ditadura. Contudo, suas muitas leituras sobre a arte da guerra não foram suficientes para fazer-lhe perceber alguns problemas específicos daquele movimento de reivindicação de mudanças sociais feito por ele e seus seguidores. Dentro do seu caminho em direção à caverna oculta, ele, como vários outros líderes revolucionários do Brasil, se ocuparam muito com as ações revolucionárias de base e acabaram não conseguindo aproximar-se do povo – coletivo de sujeitos que efetivamente mais necessitava da revolução. Aos poucos, Lamarca vai se dando conta de que boa parte desse povo sequer conhecia os ideais revolucionários, que dirá se desprender de qualquer coisa de sua vida miserável e, teoricamente livre, para participar desta luta. Um fragmento do filme ilustra bem essa situação. Na busca implacável por Lamarca, o Major vai até uma pequena vila e oferece 1000 cruzeiros para quem lhe der informações do paradeiro de Lamarca ou Zequinha. Enquanto seus homens, fortemente armados, caminham entre aquelas pessoas humildes que mal têm coragem de olhar diretamente para o Major, ele prega cartazes na parede da venda e faz uma apresentação sumária do ex-capitão, considerando o mesmo seu arqui-rival: -“Alguém já viu esse cara por aqui? O nome dele é Lamarca, Paulista ou Cirilo. Esse homem é o demônio. É um assassino, terrorista, comunista. Tem muitas caras, muitos nomes, mas o objetivo dele é um só: desgraçar com a vida de gente honesta. Esse homem é um cão”. 172 Como demonstrado no filme, os representantes da ditadura militar brasileira usaram tanto a repressão violenta e armada, como a própria falta de informação de parte do povo (em geral) para manter, durante anos, seu processo de dominação. De volta à sequência, logo após a saída do grupo perseguidor de Lamarca, a câmera mostra, em plano médio fechado, três homens daquela região, representando o povo imaginado pelo diretor. Homem 1: -“Parece o esquadrão da morte”. Homem 2: -“Ele falou em comunista? Que diabo é isso?” Homem 3: -“É um bicho que vale 1000 cruzeiro. Dá pra comprar uma mula boa”. Antes de finalizar a cena, os outros dois homens balançam afirmativamente a cabeça, concordando com o amigo. Pelo curto diálogo é possível afirmar que esses três homens não sabiam e nem se mostravam tão interessados em saber qualquer informação sobre Lamarca e muito menos sobre uma proposta social revolucionária. O interesse de cada um dos componentes daquele coletivo era puramente individual, do ganho rápido dos tais 1000 cruzeiros para conseguir alguma vantagem na sua vida sem perspectiva. Evitando qualquer tipo de generalização ou estereótipo, tanto no filme, como nos dias atuais, ainda são encontrados muitos integrantes do povo brasileiro com este tipo de mentalidade. Para sua infelicidade, Lamarca não contava com esse aspecto. Ele fora demasiadamente otimista na participação ativa de mais membros desse povo dentro do movimento revolucionário. Ainda sem saber da morte de Clara, ele escreve para ela, já relatando algumas dessas constatações: -“Quatro de julho. Neguinha, a luta armada no campo não é possível a curto prazo. Condições físicas e de segurança impedem que a gente se veja. Nunca terei mobilidade. Minha mobilidade será dada pelas minhas forças debaixo de aviões e helicópteros. Não me iludo mais. Minha prática me exige sacrifícios para os quais não espero compreensão paternalista nem comiseração. A revolução me exige isso e eu quero fazer a revolução”. Esse fragmento do diário de Lamarca é ouvido pelo espectador como um som diegético a partir de voice over. Durante a verbalização do pensamento deste 173 protagonista, são vistas imagens que registram a típica vegetação da caatinga. A câmera, que está na mão do operador, faz movimentos oscilatórios sem um sentido muito claro. Observa-se, em plano detalhe, parte de galhos secos e retorcidos. A câmera está entre eles, no meio deles. Aqueles galhos que estão mais próximos à objetiva se encontram sem nitidez. Os movimentos, a falta de foco em parte da imagem e o tipo de composição colocada em quadro dialogam bem com a postura cansada de Lamarca. Para encerrar a cena, a câmera sai dos galhos secos e retorcidos e vai descendo, a partir de uma panorâmica, até chegar à imagem do líder revolucionário, sem camisa, suado, sentado no chão, apoiando seu corpo naquela vegetação pouco fértil (Fotograma11). A ideia cristã do sacrifício do líder é constantemente retomada pela narrativa. Fotograma 11: a natureza como prisão Desde o momento de sua chegada nesse espaço rural, Lamarca já demonstra o impacto que sofre naquele novo universo. Ainda na primeira trilha com Zequinha, ele pede: -“Devagar, Zequinha. Quase dois anos trancado em aparelho. Isso acaba com o preparo físico da gente”. Através deste fragmento da fala de Lamarca, pode-se pensar que, apesar de seu treinamento militar, os preparativos para uma efetiva guerrilha no campo não teriam sido suficientes para aquela nova e grandiosa empreitada. Havia um enorme diferencial: normalmente, tanto no Exército Brasileiro, como no campo de treinamento revolucionário, ele 174 podia contar com a ajuda de vários outros combatentes treinados e de infraestrutura. Neste novo esconderijo, ele é obrigado a permanecer em silêncio praticamente dia e noite. Precisa reaprender a viver ao relento e, ao mesmo tempo, passar despercebido. A solidão reflete claramente em seu comportamento. Ouvindo outro de seus pensamentos a partir de voice over, o espectador descobre que, apesar de ele não desejar fazer um diário, tem a necessidade cotidiana de “falar” com Clara, ou seja, buscar alternativas de se comunicar ou, no mínimo, expor seus sentimentos para alguém, a fim de não enlouquecer naquele lugar isolado de tudo e de todos. Apesar de este tipo de ação de sobrevivência em meio à natureza não ser uma atividade desconhecida pelo ex-capitão, essa nova etapa de sua trajetória de aventuras vai reservar-lhe momentos muito mais desafiadores do que aqueles que ele havia vivido anteriormente. Contudo, mesmo naquele ambiente hostil, ele procura enfrentar seus medos de maneira sensata e também continua muito preocupado com os outros. Tais qualidades podem ser vistas na cena em que Zequinha propõe eliminar o professor, em virtude da possibilidade de ele poder acabar dedurando o movimento. Em um tom muito reflexivo, Lamarca responde a Zequinha com várias perguntas: Lamarca: -“Então, é assim que nós vamos fazer a revolução? Como justiça? Descartando um companheiro na primeira falha?” Zequinha: -“O que você propõe?” Lamarca: -“O óbvio. Fazer com ele um trabalho político e humano. O professor se engajou conosco. Se ele não consegue levar a luta adiante, o fracasso não vai ser só dele. Vai ser nosso também. O esforço tem que ser dele e nosso, coletivo”. Ele busca resolver esse conflito da mesma maneira que solucionara o sequestro do embaixador suíço, ou seja, com uma postura humanista a partir da qual sempre tenta preservar a vida de todos envolvidos. Apesar do esforço pela manutenção da paz naquele lugar, Lamarca sabe que o cerco está se fechando. Depois da prisão de Kid, seu fiel mentor, Fio, sai do Rio de Janeiro somente para avisá-lo sobre o perigo. Ele reitera sua preocupação com o líder e com a repressão ao movimento por mais de uma vez: 175 -“Se a gente desmobiliza a área é alguma coisa de razoável. Se a repressão é quem desmobiliza, os nossos prejuízos podem ser grandes, inclusive de vida de companheiros.”. Desejando manter o exemplo de combatente destemido para os outros revolucionários, Lamarca decide ficar, peregrinando por vários locais naquelas redondezas, a fim de conseguir sobreviver à perseguição das forças da ditadura. Mesmo muito isolado, praticamente desarmado e com apenas cinco homens no seu novo exército rural, Lamarca busca maneiras para dificultar o trabalho de seus perseguidores. Nessas novas trilhas, ele vai poder contar apenas com a ajuda do fiel Zequinha. O trajeto, sem destino certo, parece cansativo e exaustivo, principalmente para Lamarca. Em um dos planos que registram esses deslocamentos, são vistas as silhuetas de Zequinha e do líder revolucionário caminhando, em contraluz, com um bonito e castigante sol ao fundo do quadro. Ambos andam em um ritmo já bastante lento e cambaleante, demonstrando a escassez de suas energias. Em uma pequena parada para descanso, Lamarca começa a tossir, demonstrando a fragilidade da sua saúde, após permanecer tantos dias vivendo a céu aberto. Vários dos enquadramentos mostram os personagens exatamente em meio à vegetação e com inúmeros galhos retorcidos cerceando seu caminho, inclusive entre eles e a câmera. Um dos momentos mais comoventes é a sequência na qual Zequinha fica sabendo das barbaridades que a repressão teria feito à sua família. A partir da visão subjetiva de Lamarca, a câmera mostra Zequinha e um morador conversando em enquadramento um pouco mais aberto que inteiro e com muitos galhos retorcidos e desfocados entre os dois e a objetiva. Não se escuta a fala dos dois, somente sons diegéticos daquela região. Zequinha soca, por duas vezes, um toco de amarrar animais, tira seu chapéu e bate o mesmo com força na perna. Há um corte para Lamarca abaixando a cabeça. Ele e o espectador logo percebem que as notícias não seriam boas. Zequinha corre para desabafar com Lamarca: -“Capitão, mataram Antoniel! Arrebentaram o Derico de tiro! O professor também tá morto e o velho tá apanhando feito um bicho! Filhos de uma égua! Eu vou matar um por um! Eu juro, capitão! Vâmo matá eles? Só você pode. Só você!”. 176 Na fala de Zequinha é fácil notar o respeito e admiração que ele tem por Lamarca. Como alguns outros revolucionários da VPR, ele vê no ex-capitão a figura de um imbatível herói, mesmo nos momentos mais desoladores. Durante sua fala, Zequinha bate forte seu facão por aquela vegetação seca e expressa um misto de raiva, desabafo e sofrimento. Já em plano próximo, a reação de Lamarca não é apenas do herói idealizado por Zequinha, mas, muito mais, de um ser humano sensível e próximo: ele não diz uma palavra; apenas olha para seu companheiro e o acolhe em seus braços de maneira fraternal. Conforme dito antes, de forma invertida, a caverna oculta vem se aproximando cada vez mais de Lamarca e, desta vez, teria conseguido praticamente absorver quase todo seu frágil exército revolucionário de apenas cinco pessoas. A partir deste ponto, a narrativa fica ainda mais dramática para o herói. Agora, os testes principais não serão mais apenas sobreviver aos intemperismos, à fome e às forças da natureza. Agrega-se a esse coletivo de flagelos uma nova perseguição ainda mais implacável que será realizada pelo Major. Após dizimar o núcleo de revolucionários daquele lugar, o delegado Flores decide voltar para o Rio de Janeiro. A narrativa fílmica continua sua crítica à falta de conhecimento do povo, quando mostra um daqueles três homens que disseram não saber “que bicho” seria Lamarca indo dedurar o líder revolucionário. Para piorar esta situação, ele ainda é primo de Zequinha. Assim, pode-se pensar que, para esse povo evidenciado, as ideologias, a revolução social e até mesmo a fidelidade familiar teriam pouca importância quando comparada ao poder do dinheiro. Mais uma vez, o aspecto da mínima vantagem individual suplanta o coletivo e a mudança social. O próximo estágio de provação de Lamarca é o momento mais dramático de sua jornada heróica. Ainda na sequência em que o delegado Flores e o Major, sempre incorporados no arquétipo de sombra, discutem sobre suas diferenças nas formas de caçar o revolucionário, este último já deixa subentendido o tratamento que pretende dar ao ex-capitão: Delegado Flores: -“Amanhã quero todos seus homens participando comigo da busca”. Major: -“Meus homens não pode ser. Eles só trabalham sobre o meu comando”. 177 Delegado Flores: -“Qual o problema, Major?” Major: -“Seus métodos. Não vão dar certo. Pra caçar um guerrilheiro tem que se agir como eles: simplicidade e silêncio”. Delegado Flores: -“Ahahahah... Esses baianos...” Major: -“Eu sou alagoano. E já lhe disse: pra cassar um militar, só outro militar. Prá andar pelo sertão, só sendo sertanejo”. Delegado Flores: -“Já entendi: você quer ficar com a glória de pegar o Cirilo sozinho”. Major: -“Pegar?” A partir das falas do Major é fácil perceber o ódio literalmente mortal que ele alimenta com relação ao protagonista da narrativa. Como ele próprio diz, em outra parte da história, enquanto Lamarca sonha em fazer a revolução, ele é o “verdadeiro pesadelo” constituído para este herói. h) Provação: Sem o núcleo revolucionário apoiador, sem um esconderijo apropriado, sem nem mesmo a possibilidade de descansar com segurança, Lamarca é obrigado a continuar sua trajetória, agora transformada muito mais em fuga desesperada e a pé, para algum lugar indefinido por entre aquela vegetação retorcida. Não há muitas opções. Durante a sequência desta fuga de Lamarca e Zequinha, após terem sido dedurados pelo próprio primo deste último por uma quantia que, segundo ele, “pode-se comprar uma mula boa”, a fotografia destaca o aumento da dificuldade que a dupla passa a enfrentar. A partir de uma panorâmica vertical, o espectador vê, em plano detalhe, um galho repleto de espinhos. Enquanto a câmera movimenta-se suavemente para a direita, o foco vai mudando desses espinhos, mostrados em primeiro plano, para dois pontos que se mexem por entre uma parte de vegetação fechada da caatinga. Aos poucos – e também a partir da voz dos diálogos –, percebe-se que são Zequinha e Lamarca abrindo uma trilha no meio dos inúmeros galhos retorcidos. Após o término do movimento da sutil panorâmica, a câmera registra a dupla de uma maneira que sugere um aprisionamento: nas laterais há uma moldura natural desfocada e formada por dois grossos galhos retorcidos (Fotograma 12). Fotograma 12 – A fotografia aponta que o cerco contra Lamarca apertou ainda mais 178 A vegetação cobre toda a frente e o fundo do plano. Uma possível interpretação deste fotograma é de que não haveria lugar para onde esses personagens pudessem correr, porque estão cercados por todos os lados. Continuando pela trilha improvisada, observa-se outro plano no qual a câmera está em ângulo de plongée e há o destaque para uma carcaça de boi magro se decompondo ao relento. Ao fundo desta composição, observa-se Zequinha e Lamarca, vistos apenas da cintura para baixo, caminhando devagar. Eles saem do plano e a câmera continua estática naquela carcaça. Este plano leva toda a atenção do espectador para as terríveis dificuldades pelas quais a dupla está passando. Depois de muito tempo andando sob o sol e sem se alimentar direito, Lamarca acaba adoecendo. Muito magro e debilitado, o herói sequer consegue caminhar sozinho. Agora, apenas arrasta as pernas, enquanto Zequinha o puxa. Ao sair para tentar arrumar ajuda médica para o líder, o companheiro acaba sabendo da morte de Clara e informa o acontecido a Lamarca. O filme deixa implícito que Zequinha também tivera um relacionamento amoroso com Clara, antes de seu líder e que ele ainda mantém sentimentos por ela. Contudo, sua admiração e respeito por Lamarca, fazem com que minimize sua dor interna e dê mais atenção à dor daquele seu ídolo já muito debilitado. Lamarca recebe a notícia em pleno entardecer, o que pode sugerir, além da chegada da noite na ação diegética, também a chegada de um período de sombras e escuridão. O 179 acontecido parece realmente abalar a frágil estrutura de Lamarca naquele momento. Sem se conformar, ele dá vários socos no chão de areia onde está sentado. Mesmo passando por diversas situações de perigo e tensão, este é o único momento do filme em que se vê o herói, momentaneamente, se descontrolar. Normalmente, ele se mostra extremamente racional e objetivo nos momentos de tensão. Entretanto, Clara parece ter realmente ocupado um lugar demasiadamente importante no coração deste herói. Depois de extravasar a raiva e dor iniciais, ele olha o horizonte e demonstra dificuldades para respirar. Lamarca: -“Zeca... Amigo... Vá embora!” Zequinha: -“Como?” Lamarca: -“Vai embora sozinho”. Zequinha: -“A cidade tá cheia de macaco. Te pegam em duas horas”. Lamarca: -“Eu perdi as forças, Zequinha. Acabou. A luta, para mim, acabou, Zequinha”. Zequinha: -“Te abandonar? Tá pensando o que de mim, capitão? Eu não sou covarde. Isso não!” Lamarca: -“Acabô!” Zequinha: -“Você vai me desculpar, capitão, mas você tá agindo de forma errada, até egoísta. A guerra num acabô, e nós vâmo vencê!” Parece que o exemplo que Lamarca dera a Zequinha antes, quando defendera um trabalho de conscientização do revolucionário conhecido como Professor, em vez de abandoná-lo ou “justiçá-lo”, teriam também conscientizado Zequinha. Sua fidelidade ao líder e à causa não o deixam fugir sozinho. O diálogo é fechado, visualmente, com um fade out, continuando a possível ideia da chegada da escuridão ou, neste caso, do momento de sua provação. Aqui, o diretor opta por fechar esta cena e abrir a próxima com um elemento da banda sonora ainda pouco explorado na obra: o silêncio. Essa ligação entre as duas cenas a partir do silêncio desperta a imaginação do espectador sobre aquilo que está por vir, uma sugestão de suspense sobre qual será o destino de Lamarca e seu fiel companheiro Zequinha. Do fundo sólido preto, a tela se abre, em corte seco, diretamente na cor branca de uma grande área arenosa, sugerindo a perspectiva de um deserto. Bem ao fundo, em plano de conjunto, se vê Zequinha puxando Lamarca e se aproximando da câmera. O herói possui um livro em uma das mãos: Guerra e 180 Paz, de Liev Tolstói. O plano de conjunto, evidenciando esta grande área deserta, pode sugerir a pequenez de Lamarca e seu companheiro diante da imensidão do sertão baiano e também uma reflexão sobre a própria desigualdade de forças envolvidas naquela batalha ideológica. Novamente, sublinham-se as enormes dificuldades enfrentadas pelas ideias revolucionárias. A postura frágil da dupla demonstra uma quase impossibilidade de qualquer luta. Muito cansados, os dois caem sentados naquela areia. Em um ângulo plongée, Lamarca está falando e lendo, sem parar, alguns fragmentos do livro, como se já estivesse delirando. Observando o agravamento da situação de seu líder, Zequinha, literalmente, o coloca nas costas e tenta continuar seu caminho, de maneira muito mais difícil e lenta a partir deste momento (Fotograma 13). Lamarca acaba esquecendo o livro naquela areia branca. Fotograma 13 – Guerra e paz: o herói carregado A partir de um movimento de travelling, a câmera acompanha o lento caminhar da dupla. Lamarca tem seus olhos fixos. Parece olhar diretamente para seu interior, para suas lembranças. Fala de sua eterna fidelidade ao povo brasileiro, de seus filhos e suas mulheres. Segundo sua fala, seu maior medo, naquele momento, seria não reconhecer mais seus filhos, se pudessem se reencontrar. Zequinha está olhando para o céu, como se estivesse imaginando ou refletindo sobre aquilo que o ídolo debilitado está lhe dizendo. O delírio de 181 Lamarca piora: -“Há uma luz, Zequinha... Depois de um túnel. Há um túnel depois da luz”. Lentamente, os dois saem de quadro. O corte direciona o espectador para um enquadramento no qual se vê, em primeiro plano e centralizado, o livro que Lamarca estava lendo caído na areia. Curiosamente, o mesmo exemplar está disposto de uma maneira na qual há grande facilidade de visualização do título da obra. Ao fundo do plano, gradativamente, vai aparecendo o Major e sua equipe de caça. Com a câmera em contra-plongée, quanto mais eles se aproximam do livro, mais têm suas figuras exaltadas, engrandecidas. Depois de pegar o mesmo exemplar, o Major trava um diálogo com seu principal assistente, promovendo uma aproximação bem sugestiva entre Lamarca e Jesus Cristo. Major: -“Agora tá nos presenteando com um livro? É bem coisa de comunista. Você não percebe, Caio, que a vaidade humana não tem limites? Agora se sente um deus, imortal”. Caio: -“Tá mais pra Jesus, pregando no deserto. Aliás, Major, ele tem 33 anos: a idade de Cristo”. Major: -“É... quando foi morto!” A mesma aproximação entre o protagonista desta história e Jesus Cristo também é visualmente retomada no desfecho da última sequência do filme. Nela, vê-se Zequinha, já no limite de suas forças e ainda carregando Lamarca em suas costas. Ao longe, ele observa uma frondosa e alta árvore coberta de folhas verdes. No meio daquela vegetação seca, rapidamente a árvore se destaca. Cambaleando, ele caminha com Lamarca até a sombra projetada pela árvore e coloca, de forma cuidadosa, o líder revolucionário deitado com a cabeça apoiada em um pedaço de outro tronco de árvore caído ao chão. A partir de uma câmera subjetiva, o espectador observa a visão de Lamarca, da copa daquela árvore, variando entre área com nitidez e área fora de foco. Tal alternância gera a sensação de vertigem ou quase desmaio. Desde o início deste árduo trajeto, no qual Zequinha carregara Lamarca, a banda sonora trabalhara apenas com os poucos sons diegéticos in, promovendo certo silêncio inquietante e um tom de suspense para o que virá a seguir. Neste momento da narrativa, ouve-se a fraca respiração de Lamarca, em meio àquela atmosfera falsamente tranquila. Sem forças, ele permanece deitado abaixo daquela árvore (Fotograma 14). 182 Fotograma 14: A aproximação visual de Lamarca a Jesus Cristo A partir de um plano médio, em plongée, observa-se o herói deitado de uma maneira que, visualmente, pode ser aproximado à figura de Jesus Cristo pregado na cruz. Para deixar essa sugestão ainda mais evidente, o herói ajusta seu corpo, a fim de conseguir uma melhor posição de descanso, e acaba ficando de braços abertos naquele pedaço de tronco de madeira. Após este reposicionamento dos braços, a tentativa de aproximação desses dois mitos torna-se ainda mais ostensiva. Esse paralelo também pode sugerir um caminho da transposição do humano para o divino, encarnando, naquele corpo magro e machucado, a própria revolução. Completamente exaustos, ele e Zequinha adormecem. A partir de uma câmera subjetiva, mais afastada, e tendo como moldura natural a cerca daquela propriedade, alguém está a observar a dupla. No plano seguinte, o observador misterioso é evidenciado. Vê-se, novamente em contra-plogée, o Major e sua equipe, fortemente armados, adentrando aquela cerca. Ao perceber a aproximação, a partir do som diegético in da metralhadora do Major sendo armada, Zequinha tenta avisar Lamarca, mas já não há mais tempo para reagir. O Major tem sede de vingar o Exército Brasileiro e não dá qualquer chance para o “traidor” Lamarca sequer se render. Subitamente, ele é metralhado, enquanto Zequinha corre alguns poucos passos antes de levar um tiro à queima roupa. Mesmo ferido, talvez como uma forma de homenagem aquele herói morto e 183 também de defesa dos seus ideais, Zequinha não se rende e esbraveja, antes de morrer: -“Viva a revolução!”. Como se pode prever nesta situação, ele é acertado por mais dois tiros. Na visão do Major e de sua equipe, a boca deste homem não pode servir de eco para as ideias revolucionárias de Lamarca. Assim, neste filme, a própria caverna oculta ou boa parte do quartel general do vilão vem até o herói moribundo e dá fim à sua jornada de aventuras. Depois de todos os sofrimentos, a morte chega de maneira ríspida e impetuosa para Lamarca. O período de quase morte deste herói já havia ficado para trás. Na obra, não há nenhum tipo de embate apoteótico entre o bem e o mal, mas o massacre de dois revolucionários que mal conseguiam se por de pé. Lamarca, visto como um tipo de Cristo moderno, é devorado pela repressão da ditadura militar e acaba se tornando mito e símbolo conflituoso para um povo que, mais uma vez, teria renegado a luta revolucionária, sem ao menos conhecê-la. i) Recompensa (Apanhando a espada): Neste filme, o elixir ou recompensa pode ser pensado de várias maneiras. Continuando a sugestão fílmica da aproximação entre Lamarca e Jesus Cristo, dentro da perspectiva do sacrifício cristão, seria possível pensar que todo esse martírio que ele passa durante sua trajetória heróica poderia conduzi-lo a uma recompensa em outra vida ou outro plano espiritual. Contudo, a sugestão fílmica não chega a tanto. Outro possível eixo de pensamento a respeito da recompensa deste herói estaria relacionado a um auto-exame no qual o herói é submetido durante seus últimos anos de vida e, especialmente, no esconderijo a céu aberto. Aos poucos, ele vai percebendo suas próprias falhas, ampliando sua consciência e promovendo uma verdadeira e profunda reavaliação de sua própria vida. Tal aspecto pode ser visto, na obra, quando Lamarca diz ter errado na sua previsão a respeito da guerrilha no campo para aquele momento histórico. Entretanto, talvez o fator que mais se aproxime de um elixir ou um tipo de recompensa para este líder revolucionário tenha sido sua relativa aproximação para com o povo a partir da sua morte. Dizendo isso de outra maneira, durante toda sua trajetória de aventura, Lamarca defendera, ardorosamente, o povo 184 brasileiro, buscando combater as injustiças sociais. Contudo, se vira obrigado, por conta da repressão, a estar longe deste mesmo povo que, como o próprio filme demonstra, algumas vezes, nem mesmo sabia nada sobre ele ou seus ideais revolucionários. Nesse sentido, a destruição do corpo físico de Lamarca (e sua consecutiva morte) origina uma vitória mítica sobre o esquecimento da causa. A partir do instante em que morre, Lamarca se torna um mito ainda mais conhecido e de memória imortalizada. Dessa maneira, o elixir conquistado também pode ser relacionado à consciência ou, pelo menos, ao conhecimento por parte de uma parcela bem maior desse povo a respeito dos ideais revolucionários e sobre este abnegado líder. A partir da mitificação de sua história e crença na possibilidade de mudar o Brasil, este personagem pôde se popularizar e, em última medida, se aproximar mais desse povo sofrido, oferecendo a ele a noção transformadora que tentara em vida. j) Caminho de volta, ressurreição e retorno com o o elixir: Desde que Lamarca decide roubar os 70 fuzis do quartel onde trabalhava como capitão do Exército Brasileiro, ele já sabia que, dificilmente, haveria volta. Contudo, é pela força destrutiva do Major e sua equipe que ele se vê preso para sempre ao mundo especial. Pelo filme, o espectador constata as dificuldades de se colocar os ideais revolucionários em prática e acaba refletindo sobre o porquê daquele fim trágico, o porquê daquele tipo de repressão tão brutal a pessoas como Lamarca – que somente desejavam um país com mais igualdade social –, o porquê da pouca adesão do próprio povo ao movimento. Como expressado antes, um possível elixir pode ser idealizado a partir da transformação do guerrilheiro Lamarca em mártir revolucionário. Analisando seu comportamento e postura durante toda a narrativa, é possível crer que Lamarca entenderia a sua própria morte enquanto um mecanismo que poderia contribuir com os ideais revolucionários, a partir da transmissão dessas informações e do seu exemplo na luta, a um número ainda maior de pessoas. Essa chave interpretativa pode ser sugerida a partir da última expressão visualizada no rosto de Lamarca. Depois de matarem o líder revolucionário, todo o grupo chefiado pelo Major se aproxima e cerca o corpo de Lamarca. Eles são vistos de longe, em plano de 185 conjunto, ao redor daquela grande árvore. Felizes por terem conseguido assassinar aquelas duas pessoas, atiram para alto, a fim de comemorar o feito fatídico. A fotografia mostra todos eles ainda na área de luz. Somente Lamarca está caído morto na área de sombras da copa daquela árvore. Há um corte diretamente para um dolly in que vai se aproximando, bem lentamente, do corpo de Lamarca. Seu olhar está fixo e levemente para o alto. A câmera vai se aproximando dele até parar, deixando o rosto do herói no centro da tela. Por esse ângulo, ele olha diretamente para o público (Fotograma 15). Sua expressão facial fixa e congelada torna-se um tipo interrogante a respeito da luta revolucionária. Mesmo metralhado e morto, ele parece indagar o que cada espectador, cada membro do povo brasileiro faria a respeito desta história, a respeito da luta por um país mais justo. Uma eterna interpelação do passado para o presente concernente ao futuro. Fotograma 15: Lamarca em preto e branco: o mito cristalizado O filme finaliza com a imagem dessa expressão interrogativa de Lamarca, em primeiro plano, perdendo suas cores, ou seja, a imagem torna-se preto-e- branco, sugerindo a possível interpretação de transformação daquele momento em passado, em memória. Ouve-se uma trilha musical extra diegética over que também contribui com esta perspectiva, da criação do mito a partir da sua morte em martírio. No canto direito da tela, surge um intertítulo para delimitar o espaço e 186 o tempo histórico que encerram a luta revolucionária de Lamarca: -“Sertão da Bahia – 17 Setembro 1971”. 5.1.5 – Panorama, pontos de vistas e revelações da análise fílmica para além da trajetória de aventuras do herói a) Sentido narrativo: No filme Lamarca, quem conta a história é o próprio protagonista, ou seja, o ex-capitão que decidira tornar-se líder revolucionário. Assim, a narrativa é contada em primeira pessoa, a partir deste narrador personagem que tem relações íntimas com outros personagens e demais elementos. Essa proximidade do herói com o mundo narrado cria uma atmosfera com características subjetivas e emocionais. Como relatado antes, em muitos momentos da obra, principalmente durante os vários flashbacks realizados, há a utilização explícita de uma narração em voice over que, ora explicita o pensamento, o interior deste personagem ora promove uma leitura do seu diário de campo, escrito para Clara ou para sua esposa e filhos, durante a jornada de aventuras. De forma geral, este narrador sabe tanto como os personagens. Ele não tem, por exemplo, a onisciência para saber qual será destino da luta revolucionária ou mesmo da sua relação com Clara ou com Marina. Contudo, como o filme é contado através de muitos flashbacks, este narrador protagonista possui um diferencial que é o de falar sobre suas memórias, ou seja, ele sabe muito mais de alguns fatos que vai relatando ao espectador, exatamente porque eles fazem parte do seu passado, das suas lembranças. Os diálogos apresentados entre os personagens são diretos, imediatos e pessoais. O tempo da narrativa é linear; contudo, a história não é contada de forma contínua e homogênea. Ao contrário, a partir do uso dos inúmeros flashbacks, possui característica de narrativa fraturada, ou seja, não vetorial. Entretanto, a demarcação do tempo histórico parece ser uma preocupação do diretor. O filme é aberto e encerrado com o uso de demarcadores desse mesmo tempo, a partir de intertítulos que apresentam, acima de uma imagem de fundo, informações sobre 187 qual seria aquele determinado local e seu respectivo tempo histórico. No caso do início da obra, há a demarcação da cidade do Rio de Janeiro e do mês de dezembro de 1970. Já na última imagem do filme, como explicitado antes, os caracteres apontam para “Sertão da Bahia – 17 Setembro 1971”. Contudo, é importante recapitular que o recorte temporal do filme não retrata apenas este curto período de menos de um ano. Com o uso dos flashbacks, esse demarcatório de recorte temporal inicial se amplia bastante, chegando, inclusive, aos tempos em que Lamarca ainda não teria decidido entrar totalmente na luta revolucionária. Um período no qual ele ainda estava dividido entre a revolução e seu posto de capitão no Exército Brasileiro. Já o tempo psicológico da obra, demarcado pelo próprio protagonista, varia bastante, de acordo com o fragmento de sua memória que ele coloca em evidência a partir dos inúmeros flashbacks. O herói está em um tempo presente; contudo, o confinamento o faz reviver internamente e constantemente seu passado. É importante salientar que, normalmente, a memória humana não produz lembranças lineares do passado. Muitas vezes, ele vai se apresentar fragmentado, desordenado e colocado em uma disposição de continuidade diferente daquela maneira como determinado fato ocorreu. É exatamente assim o tempo psicológico das lembranças expostas por Lamarca. Os flashbacks apresentados não entram em uma ordem linear e cronológica da sua vida, mas, sim, em uma ordem interna, pessoal, conforme aquilo que deseja rememorar em determinado momento. Ainda pensando o tempo dentro do filme, é interessante evidenciar o jogo de tortura que o delegado Flores faz com um revolucionário preso a partir do conceito de variação do tempo cronológico. Durante as ações de tortura, enquanto o militante Jairo está desacordado, o delegado altera a posição os ponteiros do relógio de parede presente naquele ambiente macabro, a fim de fazer com que o mesmo prisioneiro pense que já está sofrendo há muito mais tempo. Assim, este falso tempo cronológico geraria dúvidas e incertezas no tempo psicológico do preso. b) Sentido dos significantes visuais e sonoros na dinâmica narrativa de herói: 188 O espaço narrativo pode ser enquadrado como espaço temporalizado, uma vez que procura registrar claramente um determinado período da história brasileira. Há, ainda, uma divisão bastante clara no filme: o espaço urbano e o espaço rural. Este último teria sido o palco de uma falha de estratégia de Lamarca. Sua alta expectativa na guerrilha no campo não se concretiza em virtude de vários fatores, como o próprio desconhecimento da luta revolucionária e dos ideais de mudança por parte do povo brasileiro. Tanto no espaço urbano como no espaço rural, Lamarca vive em esconderijos e precisa fugir, constantemente, de seus perseguidores. A diferença se dá unicamente em que tipo de cenário lhe imputa este enclausuramento. No primeiro caso, são pequenos apartamentos e casas que a VPR aluga por meses e ele pode usar apenas por dias. Eles são chamados pelos revolucionários de “aparelhos”. Tais ambientes são registrados com enquadramentos mais fechados, baixa profundidade de campo e uma constante fumaça de cigarro. Todos esses fatores sugerem a sensação de certo sufocamento e tensão. O segundo tipo de cárcere é imputado pela própria natureza e vegetação retorcida e seca do sertão nordestino. O ambiente ao ar livre não é motivo de conquistas. Lamarca se vê desprovido de qualquer abrigo. Vive ao relento, sob sol ardente e castigante do agreste. Os enquadramentos que são utilizados não demonstram a sensação de liberdade ou arejamento, mas, sim, de uma luta ideológica demasiadamente desigual de um homem solitário contra forças de uma imensidão descomunal. Neste filme, a fuga de Lamarca para o sertão também pode ser entendida como um signo do próprio isolamento das vanguardas. Na paisagem árida da caatinga, seria ainda mais difícil um movimento revolucionário brotar ou ainda florescer. Assim, este líder estaria, literalmente, pregando no deserto – como é, inclusive verbalmente, explicitado por Caio, o assistente do Major. Conforme demonstrado, a partir da análise de várias cenas e sequências, a fotografia do filme também comunica muito nesta narrativa. Na parte urbana, normalmente, Lamarca está enclausurado, preso dentro dos chamados aparelhos – espaços fechados e pequenos que, ao mesmo tempo, abrigam e também deixam acuados os militantes revolucionários. Com a delimitação tão restrita de 189 espaço, não há a possibilidade do uso de planos gerais ou grandes planos. Dessa forma, a base da obra é constituída por planos dramáticos e psicológicos. Na parte rural do filme, há o uso de alguns planos mais abertos, como plano geral e plano de conjunto, inclusive para demarcar aquele novo tipo de prisão: a própria natureza. O uso de muitos quadros parados pode sugerir a inquietação do próprio protagonista – uma pessoa acostumada à ação constante, no Exército Brasileiro, que, agora, se obrigada a viver em regime de enclausuramento. Em vários pontos de tensão do filme, a câmera sai da estabilidade do tripé e vai para a mão do operador, catalisando ainda mais essas emoções. Algumas autoridades, como o Major, possuem ângulos de exaltação (contra-plongée), ao passo que Lamarca, em mais de um momento de seu martírio, é mostrado em plongée, ou seja, ângulo no qual ele é minimizado, inferiorizado. Nos momentos de maior ação, a câmera também ganha mobilidade, correndo junto com determinados personagens. Uma das cenas que chama bastante atenção pela forma como foi captada é aquela que registra o momento no qual Lamarca e Clara são avisados por Fio que Jairo teria sido preso e, assim, os personagens decidem abandonar, rapidamente aquele esconderijo. A cena interna acontece em mais de um cômodo do apartamento que a dupla usa de esconderijo. Cada um dos três realiza uma atividade, simultaneamente, e toda a ação é filmada em plano-sequência. Inicialmente, a fotografia trabalha a partir da variação de qual personagem entra em foco, com baixa ou alta profundidade de campo e, depois, acompanha os movimentos de um ou mais destes personagens, sem sair do próprio eixo, ou seja, mantendo-se na mesma posição de origem, em cima de um tripé. É importante ressaltar que, apesar de parecer simples, a realização da cena, da maneira como foi concebida, exige um afinado trabalho de equipe, tanto entre os atores, como deles para com a fotografia e vice-versa. A escolha da posição acertada da colocação da câmera no início da cena também foi fundamental para que a filmagem fosse possível. A cena termina com um plano detalhe das mãos de Fio segurando vários papéis que queimam. Outro aspecto importante, na mesma cena, além da forma como ela foi rodada, é o equilíbrio demonstrado por Lamarca – o que ocorre também em diversas outras situações. Contudo, nesta cena, enquanto ele está sob a pressão 190 de ter que desocupar, rapidamente, o aparelho, ainda consegue ter o cuidado de lembrar-se dos filhos que estão em Cuba, pedindo a Fio para enviar-lhes algumas bolinhas que ele mesmo cunhara, a fim de que possam jogam botão e se lembrar do pai. O uso de diversos planos detalhe durante a narrativa também é outro diferencial desta fotografia. Alguns deles são utilizados apenas para facilitar o indicativo de mudança de ambientação a partir do raccord; já outros, como o toco de cigarro que Lamarca usa para acender outro cigarro, quando está refletindo sobre seu relacionamento com Clara, promove relações mais profundas, como a sugestão de continuidade da tensão interna do herói, vivida desde o momento em que o espectador presencia a estrada em chamas. Ainda tratando do uso dos planos detalhes, pode-se perceber a opção do diretor em mostrar, de maneira bastante ostensiva, o pênis de um revolucionário em uma das cenas de tortura cometida pelo delegado Flores e sua equipe. Analisando a interpretação facial e corporal dos atores envolvidos, a caracterização do cenário, a fotografia e a iluminação, é pertinente pensar que já havia uma boa carga dramática na cena e que somente a sugestão desta ação de eletro-choque já seria uma boa opção de registro. O mesmo mecanismo de apenas sugerir a ação foi utilizado em outros trechos importantes do filme, como, por exemplo, no flashback em que Lamarca lembra a ação que teria feito no Vale da Ribeira. Neste retorno ao passado, há a ilustração de um momento de duro combate apenas a partir da sugestão advinda de dois planos do líder revolucionário atirando com um fuzil, enquanto, ao fundo, há uma grande chama acesa, simulando algum tipo de explosão que poderia ter acontecido ali. Praticamente todo o conflito é idealizado ou construído na mente do espectador apenas a partir dos sons desses tiros, da expressão facial de Lamarca e de mais um plano detalhe do fuzil disparando tiros. Pode-se pensar que este recurso foi bem utilizado na perspectiva de manter a postura de herói humanista, apontada a Lamarca durante toda a narrativa. Assim, ele faz a ação de guerrilha, dispara vários tiros contra os inimigos; contudo, visualmente, não se mostra qualquer morto do exército contrário. A base da iluminação é a luz natural, mesmo em alguns dos ambientes internos. A ambientação da casa de Lamarca e Marina é iluminada de uma forma 191 que o mesmo espaço possa sugerir leveza, tranquilidade e harmonia naquele ambiente familiar. No lado oposto, os espaços de tortura são iluminados com grandes áreas de sombras para parecerem ainda mais sombrios e amedrontadores. Praticamente todo o filme é apresentado em cores. Somente algumas fotografias, utilizadas na reunião militar inicial, para a apresentação de Lamarca, e o último plano detalhe do rosto do líder revolucionário, olhando diretamente para câmera, são vistos em preto-e-branco. Inicialmente, este último plano também é visto colorido e, logo depois, quando a imagem é congelada, ele passa para o preto-e-branco, sugerindo uma possível cristalização dessa memória. Conforme analisado, o filme utiliza alguns intertítulos para a demarcação do tempo histórico. Contudo, há, na obra, outro mecanismo visual informativo que desperta curiosidade nesse sentido. Trata-se da forma como é apresentado o título do filme. A palavra Lamarca está toda em caixa alta e é construída a partir da imagem da bandeira brasileira. Assim, em cada uma das letras, se visualiza uma parte da mesma bandeira. Uma sugestão interpretativa direta que coloca este herói nacional como representante da própria identidade deste país. O fundo preto colocado neste título faz com que toda a atenção do espectador se volte para ele. Além disso, o mesmo título aparece, por duas vezes, no início do filme. O roteiro procura explicar muito as ações a partir do verbal, das falas dos personagens. Como visto, normalmente, os diálogos apresentados são diretos, sem intermediários e de pessoa para pessoa. Curiosamente, no caso de Lamarca, essas características mudam em algumas partes da obra. Em determinadas cenas, ele fala para si mesmo, como se estivesse dialogando com seu interior ou com seus ideais ou ainda com suas memórias (ou mesmo com o espectador). Os ruídos são muito evidenciados nas cenas de conflito armado, envolvendo sons de tiros e de bombas. Contudo, talvez por conta da técnica utilizada naquele período, em algumas das cenas deste tipo de conflito armado, a montagem não apresenta uma relação tão sincrônica ou mesmo verossímil no casamento entre imagem e som. Dois exemplos disso acontecem na sequência em que a colega guerrilheira de Ivan dispara contra um soldado do Exército 192 Brasileiro que os detém em uma blitz ou ainda na cena em que Clara se mata, temendo ser feita prisioneira pelo delegado Flores. Em uma obra cujo tema trabalha um personagem de ação como este, pode-se pensar que um dos momentos mais significativos da banda sonora seria exatamente propiciado pela contradição originada no uso do silêncio, nos instantes anteriores à morte de Lamarca. Tal código sonoro, iniciado quando Zequinha se aproxima daquela frondosa árvore, tendo Lamarca às costas, origina a sugestão de suspense e inquietação a respeito do futuro do herói. Outro momento que chama atenção para a banda sonora é o próprio início da película, no qual o espectador apenas pode escutar a cena. Assim, enquanto são vistos alguns dos grandes caracteres que explicitam os profissionais e funções da equipe de criação principal do filme, sob o fundo sólido preto, se escuta toda a ação do grupo revolucionário sequestrando o embaixador suíço. Pode-se tomar como positiva essa utilização, no sentido de suscitar no espectador o aspecto imagético e a possibilidade de ele próprio criar as imagens em seu imaginário. A intervenção musical no filme, a partir de trilha extra diegética over acontece por muitas vezes no filme. Em algumas cenas, a trilha musical parece relativamente excessiva ou mesmo redundante, ao pontuar sentimentos já bem expressos pela imagem ou ainda pela interpretação dos atores. Um exemplo de tal uso em excesso pode ser visto no final da cena em que Lamarca explicita a Marina sua decisão de sair do Exército Brasileiro. Entretanto, também há outros momentos nos quais a trilha musical e sua correlação com as imagens exibidas propõem possibilidades reflexivas mais profundas. Este é o caso da cena na qual Ivan e sua companheira revolucionária são parados pelos soldados do Exército Brasileiro. Os dois estão ouvindo no som do carro a música Para Lennon e McCartney34, na voz Milton Nascimento. Aqui, este som diegético off apresenta um lugar referencial em diálogo profundo com as ideias daqueles dois e do próprio movimento. Em alguns momentos, a narrativa promove antecipações ou prolongamentos tanto da fala de alguns personagens como da trilha musical ou ainda dos ruídos empregados. Dessa maneira, pode-se dizer que a última etapa 34 Canção composta, no final da década de 1960, por Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges. 193 da montagem, conhecida como etapa artística, foi trabalhada com profundidade, buscando promover inúmeras associações dramáticas ligando cenas e sequências. Esse fenômeno pode ser visto várias vezes nos flashbacks advindos das lembranças de Lamarca. Apesar de ser um filme que registra alguns conflitos armados, a base apresenta um ritmo relativamente lento e reflexivo, uma vez que o herói se vê enclausurado na maior parte da narrativa. São os flashbacks que possibilitam certo tipo de oxigenação do espaço fílmico e também uma forma de dinâmica rítmica. c) Sentido ideológico: A mensagem fílmica, explicitada a partir do ponto de vista do revolucionário Lamarca, aponta para uma posição contrária às principais instituições dominantes do Brasil, durante o período da ditadura militar. Em praticamente toda a obra, o herói é visto em uma constante perseguição dessas forças, representadas principalmente pelo Exército Brasileiro e pela polícia política da ditadura. Além destas duas forças de repressão, em uma das cenas, o protagonista também estabelece uma crítica direta à Igreja. A ação se dá no momento em que, tendo apenas um pequeno pedaço de rapadura para dividir com Lamarca, Zequinha brinca, simulando o milagre da multiplicação daquele alimento. A brincadeira desperta mais um momento de reflexão em Lamarca: -“Se a igreja levasse ao pé da letra o Evangelho, entrava na nossa luta. Cristo tava do lado dos pobres”, afirma o líder. Em outros momentos, o filme critica a falta de engajamento e até mesmo de conhecimento do povo a respeito da causa revolucionária. Para a surpresa de Lamarca, os camponeses brasileiros são muito diferentes dos vietcongs ou dos cubanos que tanto o inspiravam. A película mostra um coletivo nacional passivo e inerte que possui somente preocupações dentro do âmbito individual. Tal crítica ideológica é percebida na cena em que Lamarca, Clara e Kid, viajando de Kombi, aproximam-se de um caminhão repleto de boias-frias na carroceria. Na cena, o mesmo caminhão trafega lento pela rodovia. A câmera mostra, a partir de uma visão subjetiva de Kid, aquele amontoado de pessoas humildes de pé na carroceria. Há um corte para um plano médio fechado, no qual Lamarca e Clara 194 observam atentamente aqueles trabalhadores rurais, com suas enxadas nas mãos, camisas sujas e arregaçadas e semblante triste e cabisbaixo. Lamarca: -“País de escravos! Aqui ainda não chegou o milagre brasileiro”. Clara: -“O único milagre possível é fazer a revolução!” Durante a fala de Clara, um dos homens que está de pé na carroceria do caminhão olha diretamente para a câmera – para o espectador – e depois volta a baixar seu olhar. A montagem apresenta um plano próximo de Lamarca, olhando de forma atenciosa para eles. Em seguida, observa-se a Kombi ultrapassando o caminhão, enquanto o mesmo trabalhador olha, atentamente, os integrantes da Kombi. Povo e revolucionários não estabelecem um diálogo concreto entre si. Ainda tratando desta questão, em outro momento do filme, Lamarca questiona, de maneira mais direta, o grande desconhecimento e, em sua consequência, o baixo engajamento do povo brasileiro aos ideais revolucionários. -“Se o povo tivesse consciência da condição desesperadora que vive, acabava pegando em armas e lutando do nosso lado”, desabafa o herói. No filme Lamarca, a função do herói é buscar a mudança social para o Brasil e a utilização deste signo faz com que o espectador questione, após a morte do mesmo, o que efetivamente mudou, o que falta mudar, e como seria possível alcançar tais mudanças. 195 5.2 – Análise do filme Central do Brasil 5.2.1 – Informações fílmicas de base Título original: Central do Brasil Sinopse: Dora escreve cartas para analfabetos na Central do Brasil (RJ). Nos relatos que ela ouve e transcreve, surge um Brasil desconhecido e fascinante, um verdadeiro panorama da população migrante que tenta manter os laços com os parentes. Uma das clientes de Dora é Ana, que vem escrever uma carta com seu filho, Josué, um garoto de nove anos, que sonha encontrar o pai que nunca conhecera. Na saída da estação, Ana é atropelada e Josué fica abandonado. Mesmo a contragosto, Dora acaba acolhendo o menino, envolvendo-se com seu problema e termina por levar Josué para o interior do Nordeste, à procura do pai. À medida que vão adentrando o país, estes dois personagens, tão diferentes, vão se aproximando. Começa, então, uma viagem fascinante ao coração do Brasil, à procura do pai desaparecido; uma viagem profundamente emotiva ao coração de cada um dos personagens do filme.35 Tema/subtema(s) do filme: a busca obstinada de um menino pelo pai que, para ele, é símbolo da própria família; a possibilidade de reencontrar valores íntimos e pessoais que, algumas vezes, se perdem pela difícil jornada da vida. Gênero: drama. Ano de lançamento: 1998. Duração: 111 minutos. Faixa etária: Livre. Quadro de personagens, arquétipos e ações principais desenvolvidas: PERSONAGEM MÁSCARA / ARQUÉTIPO AÇÃO PRINCIPAL ATOR/ATRIZ Dora heroína Ajudar Josué a encontrar seu idealizado pai Fernanda Montenegro 35 Texto extraído da capa do DVD do filme Central do Brasil. 196 Irene (amiga de Dora) mentora Dar uma perspectiva de família para a heroína: humanização; Ouvir os desabafos da heroína: ser sua confidente; Dar conselhos e orientação; Provedora de instrumentos ou serviços necessários para a heroína. Marília Pera Josué arauto, aliado, mentor, sombra Chamar à mudança, motivar, promover a consciência do herói; Ajudar a sobreviver no sertão; Questionar a heroína e sua postura; Dar conselhos. Vinícius de Oliveira Ana (mãe de Josué) arauto Chamar à mudança; Trazer suspense à história Sônia Lira Cézar aliado, mentor Provedor de instrumentos ou serviços necessários para a heroína; Traz suspense à história, a partir de sua aproximação com Dora Othon Bastos Pedrão sombra É exemplo para Dora de que se pode fazer qualquer coisa por dinheiro; Faz com que Dora colabore com a venda de Josué para os comerciantes de crianças; Representa obstáculo e oposição para que Dora retorne à sua vida normal, no Rio de Janeiro; Perseguir e combater a heroína e seus aliados; Desafiar a heroína e seus aliados Otávio Augusto Yolanda sombra É exemplo para Dora de que se pode fazer qualquer coisa por dinheiro; Representa obstáculo e oposição para que Dora retorne à sua vida normal, no Rio de Janeiro; Perseguir e combater a heroína e seus aliados; Desafiar a heroína e seus aliados Stella Freitas Isaías (irmão de Josué) aliado Provedor de instrumentos ou serviços necessários para a heroína; Ajudar a heroína a concluir sua missão Matheus Nachtergaele Moisés (irmão de Josué) aliado Provedor de instrumentos ou serviços necessários para a heroína; Ajudar a heroína a concluir sua missão Caio Junqueira 197 Quadro do núcleo da equipe de criação: EQUIPE DE CRIAÇÃO PRINCIPAL EM CENTRAL DO BRASIL FUNÇÃO EXERCIDA NO FILME PROFISSIONAL Direção Walter Salles Roteiro João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein Produção Elisa Tolomelli Fotografia Walter Carvalho Direção de Arte Cássio Amarante e Carla Caffé Montagem Isabelle Rathery e Felipe Lacerda Som Jean Caude Brisson Música Antonio Pinto e Jaques Morelenbaum Quadro com dados de investimento e distribuição da película36 RELAÇÃO ENTRE ORÇAMENTO E INSERÇÃO NO MERCADO DE CENTRAL DO BRASIL Produtora executiva Videofilmes Produções Artísticas Cidade sede da produtora Rio de Janeiro Orçamento R$ 2.900.000,00 Distribuidora(s) Grupo Severiano Ribeiro, RioFilme, Europa Filmes Público oficial alcançado nas salas de cinema 3.174.643 espectadores Renda oficial a partir das salas de cinema R$ 19.915.933,00 Nº de salas alcançadas: 245 5.2.2 – A configuração/construção do herói Central do Brasil traz para as telas a força da mulher brasileira. Apesar da discussão de gênero não ser um dos objetivos desta pesquisa, parece importante demarcar que a maioria dos filmes da cinematografia nacional que trabalham sobre a perspectiva do herói não tem a figura feminina como eixo central deste arquétipo. Esse fato seria devido a um suspeito número menor de histórias 36 Dados conseguidos a partir de tabelas e demonstrativos disponibilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, disponíveis no site www.ancine.gov.br 198 envolvendo mulheres com essas características? Seria por conta da falta de vontade para colocar a mulher em primeiro plano nas narrativas filmadas por uma maioria de cineastas homens? Haveria, ainda hoje, o desejo de continuidade da exaltação da figura masculina enquanto personagem heroico central? Independentemente das respostas a essas questões (que não serão aprofundadas aqui), o fato é que se presencia um número extremamente maior de homens exercendo o arquétipo de herói dentro da cinematografia brasileira (e também estrangeira) do período aqui analisado. Tal fator contribuiu para que esta pesquisa apresentasse um tipo de espelhamento desta realidade de produção, evidenciando um corpus de três filmes, no qual, somente um deles apresenta a mulher como heroína e personagem central da trama. Dora é a protagonista de Central do Brasil. O personagem ganha vida e alma a partir da interpretação da experiente atriz Fernanda Montenegro que arrematou uma série de premiações com este filme37. O protagonismo de Dora não é tão simples de ser delimitado. O personagem divide essa árdua tarefa de forma muito próxima com o garoto Josué. Em determinado momento da narrativa, os dois se juntam de uma maneira quase simbiótica, apresentando uma forma demasiadamente íntima de inter-relação ou proto-cooperação. Contudo, aqui, Josué será entendido como um personagem catalisador, ou seja, aquele que contribui, estimula a ação da protagonista. No próprio making of do filme, a atriz Fernanda Montenegro defende a participação fundamental de Josué para catalisar a ação e a mudança de Dora. “No meu ponto de vista, o menino não sofre uma transformação. O menino sabe o que quer. O menino está indo à procura da sua família, de suas origens, de seu espaço. Ela é quem sofre a grande mudança, a epopéia do herói, vamos dizer assim. Porque ela sofre uma transformação. O menino é o anjo transformador dessa mulher. [...] É como se ele fizesse o milagre de pegar essa pobre figura pela mão, a levasse pelo país, e trouxesse para ela uma sensibilização que tinha sido massacrada pela vida miserável que sempre viveu”.38 37 Como melhor atriz, Fernanda Montenegro ganhou o Urso de Prata em Berlim, o Nacional Board of Review e o Festival de Havana, ambos em 1998. Além disso, ela também foi indicada à premiação do Oscar na mesma categoria. 38 Trecho da entrevista de Fernanda Montenegro, contido no making of de Central do Brasil. 199 Dora é uma senhora experiente que, devido a inúmeras desilusões que a vida lhe trouxe, já não possui muitas perspectivas. Com o passar dos anos, deixou de se preocupar com sua feminilidade. Ela se veste de maneira pouco atrativa aos homens e não usa qualquer tipo de maquiagem. O cabelo, sem cuidado específico, também sugere o abandono do aspecto visual. Apesar da idade, ela ainda precisa lutar, diariamente, por sua sobrevivência. Ex-professora, agora dedica boa parte do seu tempo a escrever cartas para pessoas analfabetas na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. O personagem não faz isso porque gosta de ajudar aqueles que precisam. Sua principal motivação é o dinheiro pago por cada pessoa, tanto pela escrita, como para colocar a carta nos Correios, o que ela normalmente não faz. Aqui, talvez, esteja o ponto de maior fragilidade moral da protagonista: a defesa da sobrevivência, custe o que custar. Apesar de receber o dinheiro para essas duas ações, muitas das cartas não são enviadas por Dora. Ela trai a confiança de dezenas de pessoas que, diariamente, lhe depositam confidências, esperanças e os desejos mais íntimos na expectativa de que suas mensagens sejam devidamente redigidas e entregues. “Ela é de uma defesa pragmática. „A vida me fez assim e, dentro do meu pobre mundo, eu vou ter poder‟. E ela tem poder. Ela tem poder de comunicação ou não comunicação. Ela pode mandar ou não mandar. Ela avalia se a carta tem razões reais para chegar ao seu endereço ou não. Ela não vai deixar de ganhar o seu dinheiro para enviar aquela „bobajada‟. [...] Então, é uma barra de vida que baseou uma existência pragmática, descarnada e defendida na famosa malandragem. A boa e sadia malandragem brasileira”.39 Mesmo convivendo e dialogando com muita gente, em função da sua atividade na Central do Brasil, Dora não possui tantas pessoas próximas. Sua maior amiga e confidente é Irene (interpretada por Marília Pêra). Ela é vizinha de Dora, em um conjunto de pequenos apartamentos no subúrbio carioca, bem ao lado da linha férrea. Juntas, elas julgam aquelas cartas que devem ou não ser efetivamente enviadas. 39 Trecho da entrevista da atriz Fernanda Montenegro, no making of do filme Central do Brasil. 200 Psicologicamente, Dora é um personagem muito marcado de maneira negativa. Durante sua jornada, ela relata a Josué os traumas sofridos por conta de seu pai que sempre bebia muito e desrespeitava a sua mãe e a ela de diversas maneiras. Em seu passado, parece não ser possível visualizar momentos de grande prazer. Talvez, em virtude disso, ela tenha se tornado uma pessoa tão séria, seca, amarga e forte. Apenas três ações parecem agradar Dora: conversar com a amiga confidente, julgar as cartas do dia, e assistir à nova TV comprada com o dinheiro ganho de maneira nada ética. Durante boa parte do percurso de Central do Brasil, especialmente no início da obra, Dora não pode ser inclusa na denominação de heroína. Pelo contrário. Em muitas ações e posicionamentos, ela se encontra em um caminho oposto. Contudo, depois da morte da mãe de Josué, ela vai, de forma bem gradativa e quase sem perceber efetivamente, assumindo esta posição, esta função. O fato de ela optar por ajudar o menino na busca pelo pai, arriscando a própria vida, faz com que se aproxime do conceito de herói aqui trabalhado. A partir de seus pequenos golpes e falcatruas para ganhar dinheiro, ela pode ser incluída na categoria de heroína malandra, delimitada por Roberto da Matta (1997). Óbvio que, neste caso, Dora não vai apresentar o glamour da felicidade ostensiva e contagiante, daqueles que vivem na glória do Carnaval, conforme apresentado por Da Matta na mesma categorização. Ela é heroína e é malandra, sem ser necessariamente alegre, feliz. Decidindo ajudar Josué, mesmo sem saber, Dora estará também decidindo ir contra um conflito maior ainda, que não tem relação com a falta de dinheiro ou com as pequenas mentiras que comete para sobrevier. Pode-se verificar que, além da difícil jornada pela busca do pai da criança, Dora estará buscando a si própria, a sua identidade, ao seu eu perdido há tanto tempo dentro das lembranças ruins. Assim, o conflito principal é travado internamente, consigo mesma. Além de resolver a situação de Josué, ela precisa superar seus traumas internos e buscar se reencontrar. Mesmo com todas as dificuldades e sofrimentos, a luta diária pela sobrevivência faz com que seja possível aproximar o personagem Dora à boa parte dos brasileiros que, em sua grande maioria, precisam trabalhar muito para conseguir seu sustento diário. O fato de ela ser uma ex-professora primária que 201 ainda precisa trabalhar para garantir um rendimento um pouco melhor diz muito das condições financeiras e da jornada de aventuras nas quais os mestres da nação verde-amarela são submetidos. Cada um desses bravos guerreiros da educação precisa ter uma identidade heróica para suportar as condições precárias, o salário indigno, as salas abarrotadas, o cumprimento de metas... Contudo, Central do Brasil não se propõe a dar maior riqueza de detalhes sobre essa questão específica – que está registrada com maior profundidade e mecanismos críticos bem mais contundentes em outras propostas fílmicas. 5.2.3 – A narrativa audiovisual a partir dos 12 estágios da Jornada do Herói a) Mundo Comum: O mundo comum de Dora parece ser bastante limitador. Durante o dia, ela trabalha na Central do Brasil, desde muito cedo até o final da tarde. Isso é evidenciado quando, em uma das cenas, se vê Dora fazendo seu café da manhã em uma das lanchonetes da Central, enquanto o menino Josué ainda dorme deitado no chão e, em outra cena, quando ela termina o trabalho, entra em um dos trens e chega a sua casa somente na parte da noite. Tanto no espaço do trabalho, como no espaço de sua casa não há regalias, luxo. Ela escreve suas cartas em uma mesa de madeira simples, bem velha, desgastada e colocada de maneira improvisada no meio e entre as pessoas que transitam pela Central do Brasil. Seu pequeno apartamento, em um subúrbio da cidade, é relativamente escuro, tem muito barulho externo e, em alguma medida, também claustrofóbico. O ambiente é repleto de objetos e móveis antigos e de um passado latente que irá fantasmagorizar difíceis lembranças para Dora. A luz e o barulho dos trens adentram sua moradia, demonstrando tanto a proximidade física para com a linha férrea quanto apontam para a condição financeira desfavorável de Dora. A partir de um plano conjunto, o espectador observa o abandono e a sujeira do hall de entrada do conjunto habitacional onde Dora vive. Além das conversas com sua amiga Irene, que reside no mesmo 202 conjunto de velhos e pequenos apartamentos, ela parece não fazer tantas outras atividades fora do trabalho, especialmente atividades lúdicas e de recreação. Conforme dito, apesar de a protagonista mencionar a antiga profissão de professora, o roteiro não se aprofunda nesta questão. Parece apenas que, por necessidade financeira, Dora teve que complementar seu rendimento com a confecção das cartas. Além deste fator e da situação de conflito para com seu pai, o espectador sabe pouco da sua história pregressa. Pode-se pensar que a principal incompletude de Dora esteja ligada exatamente à relação ruim e mal resolvida com seu pai que, de alguma maneira, também foi espelhada nos companheiros que o filme sugere que ela teve um dia. Contudo, a maior incompletude de Dora diz respeito à dificuldade da construção de sua própria identidade enquanto mulher. Em boa parte do início do filme, ela não possui objetivos muito claros. Deseja apenas sobreviver dentro do emaranhado de dificuldades que a vida lhe impôs. Contudo, com o decorrer da narrativa, seu posicionamento vai sendo gradualmente alterado. Mesmo com diversas falhas – como qualquer ser humano –, ela vai se apropriando de novos desejos e objetivos. b) Chamado à aventura: O chamado à aventura chega para Dora a partir do momento em que a mãe de Josué é atropelada, bem em frente à Central do Brasil. Antes desta ação trágica propriamente dita, o filme dá ao espectador uma sequência com alguns simbolismos importantes para o chamado de Dora. A mesma se inicia quando Ana, juntamente com seu filho Josué, caminham em direção a Dora. Enquanto eles estão chegando, Dora está terminando o atendimento a um senhor negro que questiona o atraso das cartas de maneira bastante amigável e passiva: Sérgio: -“Faz tempo que eu não recebo notícias lá de casa. Eu acho que eles não recebem as cartas que mando!” Dora: -“O senhor sabe que não dá pra confiar na porcaria de correio que a gente tem, né? Eles também podem ter se mudado...” Sérgio: -“A senhora acha mesmo?” Dora: -“Um real, seu Sérgio!” 203 No início deste diálogo, não se vê Sérgio. O diretor faz a opção por deixar a fala em off, também misturada com a trilha musical e alguns sons diegéticos, como passos e um emaranhado de falas de outras pessoas ao fundo, sem uma determinação precisa daquilo que dizem. Nesse sentido, a banda sonora sugere movimento, trânsito, ir e vir de pessoas, a Central do Brasil ouvida como um local de deslocamento e não de parada. A partir do diálogo entre Sérgio e Dora, é possível apreender o lado egoísta e, ao mesmo tempo, malandro de Dora. Em momento algum, ela se mostra realmente preocupada com o problema de Sérgio. Ela apenas joga a culpa em uma instituição fora do seu alcance e responsabilidade – como é muito frequente no Brasil – e cobra o valor que deseja receber. Logo depois que, ingenuamente, Sérgio paga e sai, senta-se Ana, com o filho ao lado, à frente de Dora. Essa é a segunda vez que o espectador testemunha um encontro desses personagens. A partir de uma fotografia simples, em plano médio fechado – plano e contraplano –, Ana pede que Dora não envie a carta ditada e paga anteriormente. A imagem possui baixa profundidade de campo e apresenta o fundo bastante desfocado. Percebem-se apenas vultos de pessoas que caminham de forma apressada. Fingindo procurar a mesma entre o coletivo de cartas sobre sua mesa, Dora rapidamente pega uma delas e a rasga. A fotografia evidencia esta ação em plano detalhe, ressaltando que, efetivamente, Dora pega qualquer carta, escrita em outro dia e para outra pessoa, talvez, e, simplesmente, rasga mais uma delas, sem qualquer receio, pena ou culpa. Enquanto Ana dita parte da nova carta para Dora, Josué começa a brincar com um peão, batendo o mesmo na mesa de Dora. A fotografia chama atenção para o objeto, mostrando-o em plano detalhe. Dora toma o pião de Josué e o coloca em outro lado da mesa, a fim de que ele pare com as batidas. O menino olha sério para a escrevente. No final do diálogo, Ana vai pegar uma fotografia de Josué na carteira, para que Dora coloque junto da carta e acaba deixando seu lenço sobre a mesa. Novamente, observa-se um plano detalhe. Desta vez, do lenço esquecido. Agora, o diretor chama a atenção do espectador para a importância deste outro objeto. De certa maneira, a fotografia ganha função de elemento antecipador da situação que está por vir. Com os planos detalhes, inclusive utilizados duas vezes para o peão e duas para o lenço, demarca-se a importância dos dois objetos. 204 Quando Ana vai pagar pelo envio da nova carta, Josué se mostra desconfiado com a escrevente, questionando se ela realmente iria mandar a correspondência. Como fizera com Sérgio, mais uma vez, Dora parece não se importar com os questionamentos. Vai logo chamando pelo próximo da fila. Para ela, o que vale é o dinheiro em suas mãos. A sequência continua com a câmera acompanhando o menino e sua mãe saindo da Central do Brasil. Novamente, vê-se, em plano detalhe, o menino dando corda em seu pião. Outro plano detalhe mostra um semáforo. Os dois vão cruzar a avenida. Demonstrando cuidado e atenção para com o filho, Ana pede para que Josué lhe dê a mão para atravessar. Além das imagens, a trilha musical extra diegética instrumental e over também é usada para ressaltar a atenção da mãe para com o menino. Apesar da tentativa de prevenção, Josué acaba esbarrando em um homem e deixando cair seu pião. Enquanto o menino vai pegar o objeto, sua mãe fica no meio da rua, chamando-o. Tudo pronto para o arauto aparecer. Neste caso, esse arquétipo irá surgir a partir da tragédia anunciada: um ônibus lotado atropela e mata Ana, bem na frente de seu filho. Em poucos instantes, uma grande multidão se amontoa para ver o corpo daquela mulher. Dora, do lado de dentro da Central do Brasil, observa de longe a movimentação, conversando com Pedrão, uma espécie de chefe da equipe de segurança não oficial existente naquele espaço. Ambos parecem não se importar com a morte da desconhecida. Seria apenas mais um atropelamento, entre os incontáveis que ocorrem quase todos os dias no centro do Rio de Janeiro – a metrópole também pode se mostrar bastante opressora. Metaforicamente, um súbito vento neste recinto empurra o lenço deixado por Ana da mesa para o chão. Sutilmente, é estabelecida uma forte relação entre o corpo daquela mãe e aquele frágil pedaço de tecido – ambos, agora, ao chão. Mais uma vez, a fotografia também ressalta esta última ação através do plano detalhe. Mesmo sem dar a devida atenção ao acidente, pode-se pensar que Dora tem, neste momento, um anúncio de forma implícita, porém bastante sensível, de sua jornada à aventura. Inicialmente, não há exatamente alguém corporificado assumindo esta função. Contudo, logo depois, é possível afirmar que o próprio Josué acaba colocando a máscara de arauto por um período da história. 205 c) Recusa do chamado: Antes de colocar a máscara de arauto, a fotografia evidencia um primeiro plano muito significativo da situação do menino. Ele é visto sentado em um dos bancos da Central do Brasil. Está chorando de forma ostensiva, enquanto uma multidão de vultos desfocados passa tanto à sua frente como às suas costas. A profundidade de campo é baixíssima, ressaltando ainda mais esta instabilidade, ausência de lugar, imprecisão e falta de alguém para se apoiar. As pessoas que passam por Josué caminham rápido, sem prestar atenção a seu sofrimento. Neste enquadramento, a parte superior do corpo das pessoas está recortada, fora de quadro, favorecendo ainda mais a ideia de uma multidão sem rosto, individualista e sem tempo ou abertura para os problemas alheios. Os poucos atores sociais a olharem para o menino já são mostrados em planos próprios e apresentados como possíveis perigos naquele espaço hostil. A trilha musical não diegética e over, juntamente com o som diegético dos passos rápidos das pessoas contribuem para este momento de preocupação, tanto de Josué como do espectador que já se identificara com seu drama, e também de um relativo suspense sobre o que acontecerá com o garoto naquele lugar. Ele decide procurar novamente Dora, pedindo para ela escrever uma carta a seu pai comunicando o que havia acontecido. Aqui, a voz do arauto ganha corporificação. Apesar da expressão de sofrimento e das grossas lágrimas estampadas no rosto da criança, a escrevente insiste em questioná-lo, por duas vezes, se ele tem ou não dinheiro para pagar seu trabalho. Percebe-se ainda na protagonista uma grande distância daquele conceito anteriormente atribuído, aqui, de herói. Eis que o jovem arauto não desiste à primeira vista. Há uma cena muito simbólica desta sua posição. Pode-se observar Dora, já dentro de um dos trens da Central do Brasil, prestes a sair, em plano médio fechado. Josué entra no quadro e se detém, de costas, no canto do mesmo. Dora percebe que está sendo observada pelo menino. No contraplano desta ação, o espectador observa Josué olhando fixamente para Dora. Muitas pessoas caminham ao seu redor; porém, ele mantém a expressão cerrada e o olhar fixo e inquisidor para Dora. Mesmo sem dizer uma palavra, deseja dela uma participação maior nesta aventura que se 206 anuncia em sua vida. A baixa profundidade de campo do plano médio fechado no menino, a trilha sonora que mescla música não diegética e over, falas desordenadas ao fundo e os ruídos de pessoas caminhando rapidamente originam um forte catalisador do drama exposto a partir da troca de olhares entre os dois personagens. Vê-se Dora desviar seu olhar do menino, enquanto as portas do trem se fecham. Os sons diegéticos da batida das portas se fechando e os preparativos da composição para entrar em movimento demarcam a separação entre os dois mundos. Novamente, ela recusa o chamado, que continua a reverberar a partir da visão daquele menino que não lhe tira os olhos. Do lado de dentro do trem, já com as portas fechadas, observa-se um plano no qual a interrogação proposta pelo menino é ainda mais ressaltada. Ele é visto entrecortado, por entre a fresta de vidro existente (Fotograma 16). Como as portas estão cerradas, produzindo um grande espaço sem iluminação no plano, toda a atenção do espectador se volta para o clamor silencioso e revoltado de Josué. Fotograma 16: O “grito silencioso” de Josué pela ajuda da heroína Dora O trem parte. Josué tenta acompanhar seu ritmo. A partir de um travelling externo ao trem, observa-se o menino, primeiro caminhando e, depois, correndo o quanto pode na tentativa de continuar em frente à janela do vagão onde está Dora. Por dentro do trem, a câmera toma o lugar de Dora. Em uma visão subjetiva, acompanha-se o esforço de Josué que, agora, mira diretamente Dora 207 ou, em última instância, o próprio espectador, interrogando-o, até onde consegue acompanhar a velocidade do trem. Dora somente começa a se sentir tocada pela situação de Josué quando, ao tomar seu café da manhã em uma das lanchonetes da Central do Brasil, visualiza o garoto deitado no chão. Ela vai até ele e oferece o resto do seu sanduíche que é recusado por Josué. Ele parece não aceitar a ajuda dela somente para esta necessidade imediata, ou seja, apenas este fragmento irrisório da aventura anunciada. Deseja que ela realmente assuma sua jornada heróica e o ajude de uma maneira bem mais abrangente. A partir da iniciativa de oferecer ao menino um pedaço de pão, ela faz a primeira transgressão de sua própria base de pensamento, dando um pequeno passo em direção ao início da sua jornada de aventuras. Como presenciado antes, a partir da maioria das cenas envolvendo os objetos cartas e sua escritura, Dora parece não se importar e nem querer se envolver com os problemas que estão ao seu redor. Em seu modo de pensar, individualmente já possui problemas demais para se meter em problemas de outras pessoas. No caso específico de Josué, este receio de se aproximar dos conflitos vividos pelo menino pode ser interpretado como um medo ainda maior: o de se aproximar dos seus próprios grandes problemas, como a questão da maternidade, da constituição de uma família, da sua feminilidade e, em uma primeira instância, de sua própria identidade. d) Encontro com o mentor: Em Central do Brasil, pode-se perceber que Dora possui três mentores mais evidentes ao longo de sua trajetória. O primeiro deles e o mais próximo dela é sua amiga e confidente Irene. Alguns momentos da narrativa deixam clara a participação de Irene como alguém que tenta ser fonte de sabedoria ou, no mínimo, de reflexão para Dora. Em uma das conversas entre as duas, Irene discute com Dora, marcando sua posição contrária às praticas que esta última faz com as cartas que escreve para outras pessoas. Normalmente, ela não parece colocar as cartas nos Correios, embora tenha combinado e recebido para fazer esta ação. Dora as lê, junto da amiga, faz uma espécie de seleção, segundo os seus critérios de julgamento das histórias, as rasga ou as guarda, por tempo 208 indeterminado, em uma gaveta da sala – a qual Irene denomina de “purgatório” (Fotograma 17). Apesar de insistir com Dora para dar o destino devido às cartas, a amiga também gosta da brincadeira. Fotograma 17: A fiel mentora Irene tenta dar consciência à amiga Dora, em vários momentos do filme. Irene irá ganhar força, na máscara de mentora, a partir do momento que discute com Dora sobre o destino de Josué. A protagonista teria ajudado na negociação do menino para um casal que faz contrabando de crianças para o exterior. Mais uma vez, a escrevente está longe do conceito geral delimitado como herói para esta pesquisa. Contudo, é exatamente esta sequência que tem um papel fundamental no início da transformação de Dora e de ela assumir, definitivamente, seu papel de heroína. Em uma das visitas cotidianas de Irene ao apartamento de Dora, a amiga da escrevente se surpreende com a aquisição de uma nova TV, de controle remoto, por Dora. Estranhando a compra repentina do aparelho considerado sofisticado e caro para o poder aquisitivo das duas, Irene questiona Dora sobre como ela teria conseguido tamanha quantia em dinheiro. Dora usa a visualização da própria TV para tentar se esquivar; contudo, Irene insiste na questão. Conhecendo bem as malandragens de Dora para ganhar dinheiro, a amiga logo relaciona a entrega de Josué para a Instituição Padre Jesuíno Vidal de Pelotas – conforme alega Dora – à chegada do novo aparelho de TV. Enquanto arruma o 209 controle remoto da TV para Dora, já desconfiada de sua história, tenta alertar a amiga sobre os perigos que aquele menino pode estar correndo. Irene: -“De onde que você tirou dinheiro para comprar isso?” Dora: -“De um anel de ouro que eu vendi... Faz tempo”. Irene: -“Cê tá mentindo. Você nunca ia dar satisfações da sua vida se você não estivesse mentindo”. Dora: -“Tá bom, Irene. Eu tô mentindo e você sabe tudo da minha vida. Agora, vamos assistir à televisão”. Irene: -“De onde você tirou dinheiro pra comprar isso, Dora. Conta a verdade, por favor”. Dora: -“Um amigo meu lá da Central conhece pessoas que levam essas crianças lá pra famílias do exterior”. Irene: -“Não acredito que você fez isso”. Dora: -“É melhor pra ele. Melhor do que ficar aqui e acabar numa dessas Funabem da vida”. Irene: -“Você não lê jornal não, criatura? Não é adoção coisa nenhuma. Eles matam as crianças para vender os órgãos”. Dora: -“Quê isso! Eu estive lá”. Irene: -“Ele já está grandinho demais pra ser adotado, Dora”. Dora: -“Chega, Irene. Que saco! Não se fala mais nisso, hein!” Irene: -“Tudo tem limite, Dora”. A partir deste diálogo, é possível perceber claramente a posição de Irene contrária ao que Dora está fazendo com Josué. Com medo de iniciar sua aventura ao lado do menino, ela teria não apenas o deixado de lado, como também repassado para outras pessoas aquilo que ela poderia considerar um problema, a partir de uma quantia em dinheiro. Mentora e futura heroína têm seu momento de conflito. Irene prefere deixar Dora sozinha para refletir sobre o que fizera. Aqui, se dá o grande momento de decisão de Dora em realmente entrar na aventura (o que será discutido no próximo estágio: a travessia do primeiro limiar). Além de Irene, podem ser evidenciados outros dois mentores no percurso de Dora. O primeiro deles seria o próprio menino Josué, que vai oferecer para Dora a entrada no mundo especial que, no caso deles, não será mágico, fantasioso ou colorido. Ao contrário, levará Dora até o sertão brasileiro, quente e ainda mais pobre do que o ambiente em que ela circula no Rio de Janeiro. Josué tanto é o menino frágil e desamparado que precisa de ajuda da heroína, como também é uma espécie de mentor que irá estimular Dora a superar seus traumas passados e renovar-se a partir do (re)encontro de parte da sua identidade por ela esquecida. Enquanto Irene tenta dar consciência à Dora de suas imprudências 210 realizadas, Josué oferece um retorno às memórias afetivas e à própria construção da sua personalidade e da confiança da heroína. O terceiro personagem que também atua sob a máscara de mentor é Cézar, um simpático e solícito caminhoneiro que viaja pelo Brasil entregando diversas mercadorias e que também dá carona e alimentação para Dora e Josué, durante boa parte do percurso deles. Assim, sua maior função é oferecer essas provisões necessárias para a heroína Dora e equipá-la com o transporte rápido e dotado de um clima bastante intimista e quase familiar (sua relação com Cézar será trabalhada de forma mais aprofundada no estágio testes, aliados e inimigos). e) Travessia do primeiro limiar: Depois que Irene discute com Dora sobre o destino de Josué e decide ir embora, a escrevente de cartas não consegue dormir. Os pensamentos e falas da mentora e amiga Irene não saem de sua cabeça. Cinematograficamente, isso é ressaltado a partir de uma banda sonora que mescla uma trilha musical extra diegética e over aos ruídos dos trens da Central que passam ao lado de seu apartamento e, mais uma vez, adentram, pelas paredes do imóvel. Além de mostrá-la, em plano médio fechado, literalmente revirando-se na cama, a fotografia abre espaço para um plano subjetivo de Dora olhando para o teto do quarto. Agora, são as sombras e luzes produzidas a partir do movimento de um dos trens, passando no terreno ao lado de sua casa, que a atormentam ainda mais. Banda sonora e fotografia catalisam a ordem de reflexão dada pela mentora Irene. Enfim, Dora dá o passo realmente decisivo em direção à jornada de heroína. Tudo o que teria feito antes, mesmo que parecesse querer entrar no mundo mágico, teria sido falso; somente pretexto para dar mais um de seus golpes. Contudo, a partir deste momento, ela faz uma ação mais radical de travessia do seu primeiro limiar. Logo cedo, ela decide voltar ao apartamento de Yolanda, a mulher com a qual teria negociado o menino. Dora leva consigo algumas fotos de outras crianças obtidas a partir de outras cartas também indevidamente abertas por ela. Pode-se relacionar a porta física do apartamento do casal que comercializa 211 crianças à própria porta secreta que conduz ao primeiro limiar, à primeira ação realmente heróica. Dora teria superado, em alguma medida, suas dúvidas e medos de aproximação real para com aquele menino e teria, enfim, decidido realmente ajudá-lo. Para entrar no apartamento, ela usa toda sua malandragem costumeira, oferecendo à negociadora de crianças as fotos dos outros possíveis meninos e meninas a serem comercializados. Enquanto Yolanda vai conversar com seu “sócio” no quarto, Dora aproveita para acabar de abrir a porta secreta, deixada entreaberta e adentrar naquele apartamento já conhecido; porém, nesta nova configuração, já transformado na entrada do seu mundo especial ou de aventuras. A partir do uso de uma steadycam, a câmera vai atrás de Dora, acompanhando a mesma na procura do quarto onde estaria o menino. Não há trilha musical. O relativo silêncio quebrado apenas pelo som dos passos de Dora e pelo abrir de algumas portas dá ainda mais suspense à cena. A fotografia é trabalhada apenas com luz natural, vinda de algumas poucas janelas que estariam descortinadas. Há grandes áreas de pouca luz ou muita sombra na imagem, sugerindo ainda mais o suspense para o espectador. A câmera, sempre se movimentando a partir de steadycam, varia entre mostrar Dora caminhando pelo apartamento à procura do menino e também visões subjetivas da mesma. Em um desses planos subjetivos é possível observar algumas malas arrumadas e dispostas verticalmente em um dos quartos, sugerindo que já estão prontas para uma possível viagem. O tempo estaria correndo contra a heroína. Dora precisa ser ainda mais rápida. Assim que ela abre a porta do quarto onde Josué está dormindo, inicia-se uma trilha musical extra diegética over que anuncia o perigo daquele momento. A ação de Dora ganha um ritmo mais agitado. Agora, é preciso sair rápido daquele lugar. O grande problema é que Josué não quer ir embora. Depois de ser acordado por Dora, ele afirma que não vai porque não confia mais nela. Afinal, ela teria traído tanto a confiança de sua mãe, não enviando as duas cartas que a mesma havia lhe confiado, como a dele, quando lhe vendera para Yolanda. Como não há tempo para discussões ou explicações, Dora agarra o menino e sai puxando-o em direção à saída. Ouvindo a movimentação, Yolanda corre para tentar impedir a saída dos dois. Usando de toda sua experiência na malandragem, Dora tira a chave da porta do apartamento e tranca Yolanda dentro 212 pelo lado de fora. Ela e seu comparsa ficam aos berros, intimidando e ameaçando Dora de morte. As forças que guardam este primeiro limiar querem, a todo custo, impedir a continuidade da nova trajetória da agora heroína. Mesmo depois de sair do apartamento, o suspense se mantém porque Dora não consegue arrumar um transporte para fugir daquele lugar. Enquanto a fotografia a mostra, já em uma avenida movimentada, acenando para os motoristas sem qualquer êxito, escuta-se os berros ameaçadores de Yolanda e seu comparsa em off. A câmera é posicionada do outro lado da avenida, fazendo com que Dora e Josué, vistos em plano inteiro, pareçam ainda mais perdidos em meio àquele ir e vir de veículos cujos condutores não dão atenção para seu pedido desesperado. Depois de conseguir um táxi, com a camisa rasgada por causa do contato físico com Yolanda durante a fuga, Dora reflete sobre as consequências da sua ação: -“Tô esperando, casca dura!”. Aqui, o espectador vê que, claramente, Dora tomara coragem, entrando, de maneira definitiva, em contato de enfrentamento com os guardiões de seu primeiro limiar. Assim, ela faz seu ato irrevogável ou salto de fé em direção à aventura de ajudar aquele menino em um mundo especial. f) Testes, aliados e inimigos: Boa parte do mundo especial de Dora é vista em movimento. Afinal, é uma longa viagem do Rio de Janeiro até o sertão nordestino onde moraria o pai de Josué. Durante o percurso, a história adota características de um filme de estrada ou road movie40, atravessando diversas cidades, apresentando perspectivas bem distintas de relevo e vegetação da região sudeste do Brasil, de onde eles saíram. Depois de resgatar Josué da dupla que faz comércio de crianças, o grande desafio de Dora é reconquistar a confiança do menino que se apresenta demasiadamente arredio e incrédulo a ela. Dora dá alguns passos para esta direção, a partir de ações, como insistir em ir com ele, mesmo contra a vontade de Josué e pagar uma camisa nova para o menino se preparar para o encontro 40 Segundo a pesquisadora Mariana Mol Gonçalves: “Filme de estrada é uma tradução para o termo que designa o gênero cinematográfico estadunidense Road movie. Nesta modalidade dramática, a ação e os conflitos se desenvolvem durante uma viagem, uma jornada, ao longo de uma estrada, muitas vezes, transformando internamente os personagens envolvidos.” (GONÇALVES, 2014, p. 19). 213 com seu pai. Contudo, ela tropeça em outras medidas, como na cena em que acaba contribuindo, involuntariamente, para que Josué fique embriagado de vinho. Esta sequência é iniciada quando Dora pede para Josué ir para o ônibus, enquanto ela vai comprar algo em uma das paradas. Inicialmente, não se sabe o que ela adquire. Talvez, para buscar forças no enfrentamento da nova jornada, ela compra uma garrafa de vinho e começa a tomá-lo ainda dentro do ônibus, ao lado de Josué. Com o passar da viagem, aos poucos, ele vai se abrindo mais, puxando assunto com Dora que chega, inclusive, a comentar com ele sobre o pai dela e a relação conflituosa que ele tinha com sua mãe. Mais uma vez, aos olhos do menino, usa o gole na garrafa de vinho para aliviar o sofrimento causado pela lembrança ruim. Provavelmente, por associar exatamente o sofrimento e a dor com o uso do vinho, Josué acaba seguindo o exemplo de Dora. Na continuação da sequência, a fotografia mostra um plano geral externo ao ônibus, no qual se evidencia a estrada asfaltada no meio do nordeste brasileiro, enquanto o veículo continua para dentro da tela, diminuindo seu tamanho no quadro. O plano é usado na montagem como mecanismo de passagem de tempo. No próximo plano, já é noite. Observa-se o curioso Josué, em plano médio fechado, retirando, cuidadosamente, a garrafa de vinho do colo de Dora, enquanto a mesma dorme. Ele toma seus primeiros goles. A partir daí, uma pequena confusão está formada. Quando Dora acorda, a câmera mostra, em uma visão subjetiva dela, a garrafa de vinho vazia no banco onde estava Josué. Há um corte de áudio mais abrupto para chamar a atenção do espectador. Uma senhora grita com Josué para que ele volte ao seu lugar. Neste momento, o garoto, bêbado, já está sentado ao fundo do ônibus, incomodando alguns passageiros. Em plano meio conjunto, várias pessoas do ônibus estão observando Josué. Mesmo tendo grande parcela de culpa pelo ocorrido, Dora não pensa duas vezes e vai logo auxiliar Josué, discutindo com todos, inclusive com ele, enquanto o arrasta de volta ao banco. Ocorre, então, um diálogo relevante em que a protagonista defende, mais uma vez, sua função para com o menino: Senhora 1: -“Volta pro teu lugar, menino!” 214 Josué: -“Meu nome é Josué Fontineli de Paiva. Paiva de pai, Fontineli de mãe, tá!?” Homem 1: -“Aí, pessoal! O garoto tá cheio da cachaça”. Dora: -“Palhaço! Tá rindo do quê?” Senhora 2: -“Sua bêbada!” Dora: -“Bruaca! Tá rindo do quê?” Homem 1: -“A velha também”. Dora: -“Puta merda, Josué. Se eu fosse sua mãe, ia te encher de porrada”. Josué: -“Mas você não é minha mãe. Você não é nada meu”. Dora: -“Vai acabar bêbado, que nem teu pai”. Josué: -“Que nem você. Pra quê que você veio comigo?” Dora: -“Eu vim pra te ajudar. Tá entendendo? Pra te ajudar!” Nessa situação, Dora é testada como protetora da criança. Apesar da defesa da mesma logo que percebe o perigo, não teria sido capaz de antever que sua ação, ao tomar o vinho em frente ao menino, poderia de alguma maneira, servir de exemplo ou modelo a ser seguido por Josué. Ela ainda está aprendendo a lidar com esta convivência tão próxima a uma criança. Mesmo buscando ajudá- lo, ainda não sabe exatamente como agir. Depois de passada a confusão, já na manhã do dia seguinte, Dora, novamente, tem uma recaída a respeito da sua continuação nesta jornada de auxílio a Josué. Com o menino dormindo, ela aproveita a parada do ônibus para tentar, mais uma vez, repassar aquele problema a outra pessoa. Agora, a negociação se dá com o motorista do veículo, no sentido de o mesmo acompanhar o menino até a cidade de Bom Jesus. Assim, ela decide abandonar o menino e voltar para o Rio de Janeiro. Depois de comprar uma passagem para a capital fluminense, restando-lhe pouquíssimo dinheiro, Dora toma uma cerveja dentro do bar de estrada, enquanto observa o ônibus que vai saindo em direção à estrada, continuando seu destino. A bebida poderia indicar o relaxamento (ou culpa), depois de abandonar aquele garoto ainda visto como um problema em sua vida. A partir de uma câmera subjetiva de Dora, o espectador acompanha o ônibus sair de quadro. A sequência continua, cortando para um plano no qual ainda se observa Dora mover a cabeça, terminando este movimento de acompanhar o trajeto do ônibus. Contudo, ao final desta rotação, ela mira para um dos lados do bar que não havia observado antes. Ela tem uma surpresa inicialmente indesejada: vê Josué triste, cabisbaixo, debruçado em uma das 215 mesas no canto do estabelecimento e olhando para o horizonte sem qualquer perspectiva. Ela se aproxima, senta-se à mesma mesa em que ele está e questiona o que ele estaria fazendo ali: -“Por que você agora não quer largar de mim, moleque?”. Como Josué não responde verbalmente, preferindo dar a ela o silêncio como um tipo de resposta de indignação ao que ela teria feito, Dora vai para outra mesa. A câmera enquadra Josué em primeiro plano e Dora em segundo, observando o menino. Não há mais clientes no bar de estrada, evidenciando o quão isolado poderia ser aquele lugar. Logo, Dora o questiona sobre a sua mochila, na qual ela teria colocado o dinheiro para as despesas de Josué durante o restante da viagem até a casa de seu pai. O menino se dá conta que havia deixado a mesma dentro do ônibus. Sabendo disso, o desespero toma conta da heroína. Ao correr para o lado de fora do estabelecimento comercial, em uma tentativa já fracassada de parar aquele ônibus, ela logo desiste. Em plano de conjunto, porém com grande profundidade de campo, a câmera mostra Dora de costas, bem no canto esquerdo da tela. Pelo menos dois terços do quadro é tomado pela paisagem. Neste plano, o enquadramento ressalta a força deste ambiente desconhecido e inóspito, como mais um grande oponente que terá de ser vencido por Dora. À frente, o que ela vê é o grande estacionamento do bar de estrada – totalmente vazio – e uma imensidão de espaço quase desértico, no semiárido nordestino. Não há casas ou cidades no horizonte, somente uma cadeia isolada de montanhas (Fotograma 18). Promovendo um tipo de reflexo da situação na qual Dora vivencia naquele momento, o céu se mostra muito nublado, fechado. Nuvens escuras e densas cobrem todo o horizonte. Sem perspectiva, a protagonista sai do quadro, deixando o espectador sozinho com este novo ambiente que mostra toda sua força. Do plano geral da paisagem corta-se para um plano bem mais fechado no qual Dora está se sentando em um pedaço de madeira à frente de uma desgastada e suja parede do que parece ser uma borracharia daquela parada de beira estrada. A partir do uso de um zoom-in a imagem vai se aproximando ainda mais do rosto e do desespero de Dora. A câmera está colocada no chão, em um nível bem mais baixo que a normalidade encontrada no filme. Quanto mais o 216 espectador se aproxima de Dora, mais percebe sua fragilidade para lidar com aquela situação. Sua inseparável bolsa está jogada ao chão. Ela está cabisbaixa e com as mãos sobre sua cabeça. Demonstra clara dificuldade para respirar. Analisando a relação do personagem para com o seu enquadramento, esta situação ainda é mais acentuada. Observa-se Dora encurralada por todos os lados. Começando pela parede de fundo, suja e desgastada, não há como fugir daquilo. Seus pés estão cortados, originando a interpretação da ausência de uma base ou área para caminhar. Acima e lateralmente, há também pouquíssimo espaço de movimentação do personagem no enquadramento (Fotograma 19). A trilha musical extra diegética e over acentua o momento de desilusão e fraqueza de Dora. Apesar de ser um plano externo, a junção desses fatores gera certa claustrofobia para a heroína. A partir de uma visão subjetiva do personagem, a câmera mostra um plano que representa outro tipo de espelhamento da situação de Dora. Observa-se, naquele pátio de terra batida e poeira, alguns animais soltos. Um deles é um grande porco que está farejando comida pelo chão. Contudo, o animal que mais chama atenção é uma cabra que parece estar com algum problema nas patas dianteiras. Para locomover-se, ela necessita se arrastar de maneira penosa por aquele espaço. A dificuldade daquele animal parece se aproximar à dificuldade vivida por Dora, simbolizando sua impotência e a necessidade de seguir em frente (Fotograma 20), mesmo diante dos problemas. Fotogramas 18, 19 e 20: Principais imagens da sequência que aponta a dimensão macro do espaço como barreira complexificadora, além da exposição da fragilidade da heroína para enfrentar os desafios impostos em sua trajetória de aventuras. 217 Há um corte direto para um plano detalhe de um ventilador velho, empoeirado, desgastado pelo tempo, porém, em funcionamento. No plano seguinte, observa-se Dora prostrada sobre uma das mesas do bar. O calor daquela região e a incapacidade de resolver tantos problemas teriam contribuído para aquela postura. Porém, como aquele ventilador velho, o bar de beira de estrada também está em movimento. Novas pessoas vão entrar e sair daquele lugar quase perdido no mapa. Com tanta dificuldade por enfrentar, a heroína precisa de um novo aliado. Assim, entra em cena outro tipo de mentor: Cézar. Sem dinheiro, a protagonista e Josué observam o caminhoneiro comer. Ele está almoçando no balcão. Boa praça e brincalhão, ele vai logo oferecendo dividir sua comida com os dois. Além da alimentação, Cézar irá ajudar a heroína com o transporte. Seu caminhão diz muito da sua personalidade. A partir de uma câmera baixa, mostrando a traseira do caminhão em movimento e parte da estrada que vai ficando para trás, evidencia-se um para-choque com o dizer: “Tudo é força, só Deus é poder”. Por intermédio da fotografia, começa-se a marcar a postura de vida e princípios adotados por Cézar. Durante o longo percurso de estrada, os três personagens vão conversando e se conhecendo mais. Na boleia do caminhão, vê-se um trio que, em alguns momentos, sugere ao espectador uma aproximação à “família tradicional”, tida por pai, mãe e filho (Fotograma 21). O próprio Josué dá o ensejo para esta ligação, quando pergunta ao caminhoneiro sobre sua esposa. Como, 218 desde muito pequeno, ele deveria escutar sempre sua mãe falando em reunir novamente a família, para ele, a família tradicional é quase uma obsessão. Pergunta a todos em idade adulta sobre seus respectivos cônjuges. Contudo, neste caso, sua insistência com o assunto também é utilizada para demarcar a sugestão de um clima inesperado ou de uma possível aproximação amorosa futura entre a heroína e este novo mentor. Dora: -“O menino faz essa pergunta pra todo mundo. Que que há, menino?” Cézar: -“A minha mulher é a estrada. Eu não tenho família”. Josué: -“Então, você é que nem ela”. Em uma das paradas, Josué acompanha Cézar que está descarregando encomendas em uma mercearia e acaba furtando alguns produtos para comer, colocando-os dentro do short. Ao ficar sabendo disso, ele é logo repreendido por Dora. Contudo, a heroína malandra volta à mercearia, fingindo que vai devolver os produtos e, logo pega outros, escondendo-os em sua bolsa. Em uma situação embaraçosa, mais uma vez, o mentor Cézar precisa ajudá-la, usando toda sua diplomacia com o dono do estabelecimento, a fim de liberar a saída dela do mesmo. A princípio, ele acredita na inocência de Dora. Ao voltar para a cabine do caminhão, a heroína malandra finge que teria comprado os produtos, desejando oferecer um bom – e falso – exemplo a Josué. Sempre desconfiado de Dora, o garoto logo contesta. Os papéis se invertem: cabe à criança questionar, de maneira verdadeira, o mau comportamento do adulto, na tentativa de fazê-la, no futuro, uma pessoa melhor. Dora: -“Nunca mais... Você nunca mais faça isso. Era só tê me pedido. Olha aqui quanta coisa eu comprei com o dinheiro que eu tinha... E ainda deu pra comprar mais uma coisinha”. Josué: -“Hummm!” Dora: -“Que que é?” Josué: -“Você não tinha mais dinheiro”. Dora: -“Eu tinha. Tinha sim, um dinheirinho. Olha aqui... vai comendo”. Josué: -“Mentira. Você foi lá não comprou nada e ainda roubou mais”. Dora: -“Mais respeito, menino. Olha aqui, eu podia ser tua mãe”. Josué: -“Minha mãe não ia roubá que nem você. Tem mais: minha mãe não ia encher a cara que nem você”. 219 Durante a discussão dos dois, Cézar retorna à cabine de seu caminhão e presencia Dora e Josué comendo alguns dos produtos furtados. Ali, ele entende o que realmente teria acontecido. Apesar dos seus bons modos costumeiros, o caminhoneiro não reprime a atitude dos dois. Chega até a pedir desculpas pelo senhor Bené, dono da mercearia, dizendo que ele é boa gente, mas muito desconfiado. Os dois adultos sorriem como cúmplices, enquanto Josué parece não entender muito bem o que se passa. g) Aproximação da caverna oculta: Conforme sugere Christopher Vogler (2006), o estágio de aproximação da caverna oculta daria ao herói a oportunidade e o tempo para fazer planos inclusive de uma possibilidade amorosa. Poderia ser o momento de começar, desenvolver ou idealizar um pequeno romance, conforme acontece nesta obra analisada. A cumplicidade entre Dora e Cézar parece aumentar vertiginosamente. O espectador acompanha, novamente, a incidência do símbolo da família tradicional. Durante o novo trajeto da viagem, a fotografia mostra detalhes do caminhão, como um adesivo colado na parte superior do para-brisa com os dizeres “Com Deus sigo o meu destino” e outro, na parte central do para-brisa, representando Jesus Cristo. Mais uma vez, são reforçadas algumas das características morais e das crenças de Cézar. Em um dos diálogos, em plano americano, dentro da boleia do caminhão, Dora revela a ele que o sonho de Josué é ser caminhoneiro e, com um jeitinho especial, pede para que ele deixe o menino dirigir um pouco no seu colo. Um pedido dela não é negado por este mentor. Tanto os diálogos como a ação são filmados com a câmera lateralmente aos personagens e, mostrando os três ao mesmo tempo. Esse procedimento da fotografia facilita ainda mais a representação desejada de núcleo quase familiar. A imagem de Josué brincando de dirigir ao volante, no colo de Cézar que o instrui, rindo, e ao lado de Dora, observando atenta a relação dos dois, aproxima muito esses três personagens da conhecida ideia de “família tradicional” (Fotograma 21). Estaria ali evidenciada uma possibilidade de um novo desdobramento para Cézar dentro daquela trajetória. 220 Fotograma 21: A imagem da “família tradicional”, tão idealizada por Josué, é formada na boleia do caminhão do aliado e mentor Cézar. O clima romântico entre Dora e Cézar se apresenta com potencialidade em uma cena noturna, iluminada diegeticamente por lampião, na qual os dois conversam sentados ao redor do caminhão, de forma mais íntima, sobre as amizades feitas a partir da estrada. Como Dora sente frio, o também cavalheiro Cézar a cobre com uma manta. Apesar de ambos parecerem ter muito para falar um ao outro, o menino Josué interfere nesta aproximação, gritando várias vezes para que Dora venha ficar com ele na boleia do caminhão. Estaria evidenciado nesta postura do menino aquele típico ciúme de filho para com sua mãe ou, em outra chave interpretativa, do próprio mentor mirim lembrando à heroína que ela tem uma missão importante a cumprir e que não há tempo para este tipo de aproximação. Neste último sentido, a missão de Dora seria a de cuidar dele. Nas duas interpretações, há incluso o aspecto da maternidade e da proteção. Como resultado disso, ela se despede de Cézar e volta para a boleia do caminhão. A partir deste instante, o mundo especial de Dora ganha também possibilidades de uma revisão da sua vida e da sua própria identidade como mulher. Os olhares trocados por esses dois personagens exteriorizam parte do seu pensamento no sentido do desejo de uma maior aproximação. Esse tipo de olhar trocado ainda é mais marcante durante o amanhecer, quando Dora, de 221 dentro do caminhão, observa Cézar lavando seu rosto em uma reserva natural de água. Durante a continuação da viagem de caminhão, uma pequena sequência quebra a sensação de romantismo explicitada de maneira sutil pelos dois personagens adultos e chama a atenção de Dora para a aproximação da caverna oculta e da região de grandes problemas e perigos. Do lado de dentro do caminhão, em uma visão subjetiva que parece ser a de Josué, por conta da centralidade da imagem do para-brisa, observa-se, em plano conjunto, algumas pessoas caminhando na beirada da estrada em sentido contrário aquele que o caminhão está indo de forma veloz. São moradores do sertão. Alguns deles a pé, outros montados em mulas e outros ainda em carroças improvisadas. Carregam junto de si bolsas e pertences. Parecem estar largando para trás aquela terra desolada, fugindo de algum tipo de flagelo que os assolava. Uma possível interpretação seria a de que aquele lugar no qual Josué insiste em chegar e que Dora teima em acompanhá-lo seria um local para se voltar e não para ir. A visão subjetiva é cortada para outro plano que ressalta uma visão desde a traseira do caminhão. A partir dele, o espectador vê aquelas pessoas se distanciando cada vez mais da sua posição. Outra vez, a imensidão daquele ambiente árido é reafirmada. A trilha musical extra diegética e over também contribui para essa interpretação. O ponto alto desta possível nova relação entre Dora e Cézar é evidenciado a partir de uma sequência marcante para a protagonista. Os três param em um restaurante de beira de estrada. O caminhoneiro vai fazer sua refeição principal do dia. Quando ele e Josué vão ao banheiro masculino, o menino, astuto e ciumento, tenta amedrontá-lo a respeito da aproximação com Dora. -“Cê sabia que lá no Rio de Janeiro todas as mulheres transam antes de se casar? Todinhas”. O motorista, um pouco apreensivo, volta para o salão do restaurante. Há uma arquitetura de disposição dos personagens à mesa na qual Dora e Cézar ficam um em frente ao outro, como um casal, enquanto Josué se posiciona, literalmente, no meio deles. Mais uma vez, Cézar coloca a máscara de mentor para prover Dora e Josué. Quando a atendente vem verificar o pedido deles, as próprias bebidas solicitadas podem dizer muito dos personagens naquele momento. Enquanto Cézar, mais centrado e sério, pede água, Dora busca tornar 222 o ambiente mais descontraído e próximo a partir do pedido de uma cerveja e Josué pede uma Coca-Cola. Nesta chave interpretativa, tal bebida poderia ajudá- lo a se manter bem desperto e atento para vigiar sua heroína e protetora. Enquanto esperam o pedido, Cézar tenta saber mais sobre Dora. Josué procura romper o diálogo direto entre os dois, sempre buscando complementar ou dar a sua versão para o que Dora diz. A professora aposentada manda o garoto ir jogar totó, a fim de conversar a sós com Cézar. Logo que Josué sai, as bebidas chegam. Dora vai logo enchendo o copo dele com cerveja. Agora, a câmera está posicionada na cadeira onde Josué estava sentado, bem no meio dos dois. O diálogo e a ação travados na sequência explicitam bem o posicionamento diferente de cada um deles sobre os preceitos religiosos e suas formas de vida. Primeiramente, Cézar diz que não quer tomar porque é evangélico. Contudo, logo depois de Dora afirmar ter certeza de que “Ele lá em cima” não estaria olhando, o caminhoneiro decide beber. Toma primeiro um pequeno gole e, em seguida, vira todo o copo, como se estivesse tomando também coragem para fazer alguma ação da qual ainda teme. Dora se declara para ele, dizendo que estaria muito feliz de ter perdido o dinheiro e em consequência tê-lo conhecido. Além disso, de maneira bastante ostensiva e direta, coloca uma de suas mãos sobre a mão do caminhoneiro. Como ele reage de certa maneira apreensiva, olhando para Josué, ela logo coloca a segunda mão sobre a outra mão livre do caminhoneiro. Marca claramente sua posição e já não precisa dizer nada mais a ele – a declaração daquele desejo fora explicitada. Dora sai da mesa, dizendo, em tom intimista, que volta em um instante. Cézar olha fixamente para ela saindo. Está sério, reflexivo e suando bastante – uma postura diferente das sequências anteriores. Com a saída de Dora, ele volta a mirar Josué. A sequência continua no banheiro feminino, com Dora lavando, cuidadosamente, seu rosto. Ao perceber a presença de outra senhora, que está se maquiando, Dora vai logo pedindo emprestado o batom. A senhora acaba dando o batom para ela. A partir de um movimento de dolly in, a câmera vai se aproximando do rosto de Dora e também de seu próprio lado psicológico, interior (Fotograma 22). Na parede do banheiro, percebe-se a palavra “mulher” refletida no espelho. 223 Fotograma 22: O reviver da feminilidade: Dora reencontra fragmentos anteriormente perdidos de sua própria identidade. Dora está passando o batom e se olhando, cuidadosamente, no espelho do banheiro. Parece fazer muito tempo que ela não se sentia tão feminina, tão mulher. Ao fundo, a trilha musical chama atenção. Trata-se do som diegético e fora de campo, de um hino religioso que exalta quão grande é Jesus. Existe, aqui, a presença de um conflito simbólico muito forte para Cézar. De um lado, estaria a carne, a vontade, o desejo por aquela mulher conhecida de maneira tão inusitada, e, do outro, o aspecto moral, as diferenças de costumes, a busca por um lado espiritual condizente a determinadas crenças religiosas. Neste conflito alegórico, o idealismo do céu vence a tentação e quando Dora volta à mesa, não encontra mais Cézar. Ela corre para o basculante do restaurante e, a partir de uma visão subjetiva, olha o caminhão saindo em disparada. A câmera se muda para o lado de fora do restaurante. Agora, Dora é mostrada em plano próximo. Atrás do basculante, ela acompanha a saída rápida de Cézar, enquanto vai encostando sua cabeça no vidro e cerrando seus olhos. No enquadramento, não há espaço em qualquer direção. O fundo do quadro é totalmente escuro e sem perspectiva. Visivelmente abatida, Dora é visualizada como se estivesse encarcerada, dentro de uma prisão que é física, mas também que representa sua própria identidade. Quando ela, depois de muito tempo, começa, finalmente, a se sentir e a se reapresentar enquanto mulher sensível aos cuidados com a aparência para atrair alguém, novamente é rechaçada. Nesta etapa, fica evidenciado um tipo de 224 caverna oculta psicológica ou emocional de Dora, relacionada à sua própria identidade, feminilidade e, em última instância, conforme sempre insiste Josué, à ausência de uma família (tradicional) para esta protagonista. Sem a ajuda do mentor Cézar, a heroína precisa novamente arrumar outros meios para continuar sua jornada a fim de ajudar Josué. Ela decide, então, trocar seu relógio pelo transporte dela e do menino até Bom Jesus. Ambos viajam na carroceria de um pequeno caminhão, ao lado de dezenas de peregrinos que cantam e rezam durante o trajeto. Neste trecho do filme, o espectador encontra a tão esperada segunda caverna oculta de Dora e Josué. Ela possui forma física e concreta: é um sítio em meio ao sertão nordestino. Contudo, no referido espaço, não há vilões a derrotar, mas apenas a entrega de um filho, em segurança, para um pai muito amado, porém, demasiadamente omisso. O maior problema é que a caverna oculta seria falsa. Como no decorrer de todo o filme, Dora não faz nenhum preparativo para enfrentar este momento. Normalmente, ela improvisa reações durante os próprios acontecimentos. Neste momento, é Josué quem assume esta postura de preparar-se para o desconhecido desejado. No seu caso, quer estar mais bonito e apresentável para conhecer seu pai. Dora está relativamente tranquila. Provavelmente, o pensamento do personagem seria o de que sua missão estaria praticamente cumprida e seu sofrimento quase acabado. Alguns fatores também contribuem para isso, como é o caso da fotografia. A sequência da chegada de Dora e Josué à fazenda é filmada ao entardecer, com uma bela luz natural que confere leveza e poesia àquela paisagem pobre e seca do sertão. Inicialmente, a partir de uma panorâmica horizontal, acompanha-se a chegada da dupla à porteira de acesso ao sítio. A mesma é pintada de uma cor azul bem clara, quase branca. Mais uma vez, o tom leve é buscado no cenário. Os dois personagens param à porta da caverna oculta. Eles ainda são mostrados, em plano conjunto, pelo lado de fora daquele espaço. Neste momento, não há demonstração de medo ou receio daquilo que está por vir. Contudo, Josué olha para aquele novo espaço e vira-se para Dora, como se estivesse pedindo seu consentimento. Confiante, ela vai logo dizendo para o menino entrar. Enquanto ele abre a porteira e corre pela estrada de terra até onde acredita viver seu pai e seus irmãos, a câmera vai abrindo o 225 enquadramento, a partir de um movimento ascendente em grua, e acompanhando a distância física que começa a ser criada entre Dora e o menino que corre em disparada. A trilha musical extra diegética e over também contribui para a dramaticidade da cena. A partir dela, há sugestões de alegria, paz e um possível final feliz. Contudo, pouco tempo depois, o espectador vai notar que não haverá desfecho positivo nesta caverna. A própria natureza antecipa a reviravolta na história. Enquanto espera, já dentro da casa simples do sítio, Josué olha a paisagem externa pela janela. Está ansioso. De forma inesperada, surge um forte vento que balança algumas roupas no varal e também parte da vegetação retorcida daquele lugar. A partir de uma câmera subjetiva de Josué, avista-se um homem que caminha em direção àquela casa sertaneja. Por conta do vento, da poeira e dos diversos objetos em movimento naquele cenário, não é possível observar direito o rosto do homem. Os sons diegéticos provocados pelo vento podem sugerir uma atmosfera misteriosa e enigmática. Aqui, estaria o elemento de antecipação da narrativa: o equívoco na própria identidade daquele pai e, a partir deste aspecto, também seu paradeiro. Sentindo que o homem poderia ser seu desejado pai, o garoto respira fundo e enche os olhos de brilho e o rosto de esperança. A fotografia catalisa essa expressividade a partir de um zoom-in em Josué. Este é um dos momentos do filme em que Josué se apresenta de maneira muito profunda e, em determinada medida, comovente. Na casa do sítio, ele não fala qualquer palavra. Ali, seus olhos e expressões faciais refletem todas as suas emoções. E é exatamente isso que acontece quando ele fica sabendo que aquele homem que está à sua frente não é Jesus (nome do pai de Josué), mas, sim, Jessé (outro nome bíblico utilizado na narrativa). Rapidamente, o brilho de seus olhos se transforma em sofridas e marcadas lágrimas. Para piorar a situação, ele escuta Jessé dizendo, em tom de segredo a Dora, que Jesus teria “bebido a casa nova todinha na venda”. A desilusão de não encontrar o pai, acrescida a esta informação, castiga demais o jovem que já não tem mais forças para permanecer ali. Muito cabisbaixo e chorando, ele vira-se de costas e sai da casa. A partir de uma pequena panorâmica, a câmera mostra Josué, gradativamente, se afastando da casa e, ao mesmo tempo, vai sendo colocado em um dos lados da tela, 226 enquanto que, do outro, observa-se quase a metade da tela com um pedaço da parede da casa em contraluz. A partir da ausência de iluminação em um dos lados do quadro, a imagem sugere que Josué ainda tem um caminho muito longo a ser percorrido e com muitas sombras. Uma chave interpretativa que pode sugerir muitos momentos obscuros, desconhecidos, misteriosos e sem grandes perspectivas. h) Provação: Provavelmente, este seja o pior momento para Dora e Josué dentro da trajetória de aventuras desta heroína. Fazendo um balanço da vida dela desde que conhecera Josué, rememora-se que ela teria perdido seu ponto de trabalho na Central do Brasil (uma vez que voltara atrás na venda do menino, intermediada por Pedrão), não poderia voltar para seu apartamento porque os contrabandistas de crianças estariam no seu encalço, teria gasto boa parte de suas economias com esta viagem até agora fracassada e, no aspecto pessoal, também teria perdido o possível amor de Cézar. Para piorar ainda mais a situação, ao ligar para Irene, descobre que a amiga havia enviado o dinheiro pedido como empréstimo para outra cidade também com o nome de Bom Jesus, ou seja, uma cidade diferente daquela onde eles estavam. Eis aqui a grande provação: a heroína está sem dinheiro, sem destino certo, em uma região totalmente desconhecida e com uma criança para zelar e tentar entregar a seu pai – uma figura que todos acusam das mais variadas tonterias por conta de bebida. Em consequência desses fatores, ocorre uma sequência no filme que simboliza bem este momento de desespero e provação no qual vive Dora. A sequência começa com um plano de conjunto de um aglomerado de pessoas em volta de uma imagem religiosa. Eles cantam hinos religiosos. No centro do enquadramento, observa-se a imagem da santa venerada. Logo depois de um corte seco, a imagem dos fieis em vigília e oração dá lugar ao caminhar rápido e tempestivo de Dora. O espectador acompanha a heroína, seguida de Josué, a partir de um movimento de travelling através da escura rua de chão batido. A câmera é posicionada atrás de alguns veículos velhos parados na mesma via, parecendo dar mais espaço e liberdade para Dora expressar o que 227 está sentido para Josué. O som diegético e off dos hinos religiosos e orações continuam durante o diálogo entre os dois. Entretanto, agora, as várias limitações impostas acabam fazendo com que Dora perca a cabeça e esqueça, por um curto tempo, o real motivo que a levara até aquele local. Mesmo já tendo demonstrado grande bravura ao resgatar o menino e conduzi-lo até o local onde estaria o suposto pai dele, neste momento, como uma heroína muito humana e pouco fantasiosa, também se mostra frágil e confusa: Dora: -“Não consegui a merda de um caminhão que me tirasse do diabo dessa romaria”. Josué: -“Pra onde a gente vamo agora?” Dora: -“Vamo a pé, tenta uma carona na estrada.” Josué: -“A pé?” Dora: -“É, a pé. Meu Deus, meu Deus... Eu não sei o que fiz a Deus para merecer isso, eu não sei. Você é um castigo na minha vida!” Josué: -“Eu tô com fome”. Dora: -“E eu? Eu não tenho fome? Eu não tenho fome. Só você. Não tem comida, não tem mais dinheiro, acabô. Se é isso que você quer saber, acabô!” Josué: -“O que que a gente vamo fazê agora?” Dora: -“Sei lá... Sei lá... Seu pai e sua mãe te puseram no mundo e não deviam tê posto porque agora eu aqui que te aguente. Desgraça. Você é uma desgraça. Você é uma desgraça. Puta que pariu!” Josué se entristece com as duras palavras de Dora e sai correndo entre a multidão. Ao perceber o que acabara de fazer, ela vai logo atrás dele. Os dois adentram aquele labirinto humano constituído pelos peregrinos em oração que são vistos em um plano geral. As centenas de velas empunhadas por aquela gente sofrida é a principal fonte de luz da sequência externa e noturna. Elas também colaboram com a criação de um clima especial ao ambiente. A partir de agora, os sons diegéticos (in e off) das preces e hinos começam a ganhar força na banda sonora. Os gritos de Dora, chamando Josué, são rapidamente sufocados pelo coro formado pelas inúmeras vozes daqueles devotos. Com um travelling bem rápido, a câmera acompanha tanto Josué como Dora correndo por entre a multidão. Em consequência da baixa profundidade de campo, durante estas corridas – dele e dela –, pode ser observada uma sugestiva área sem nitidez na imagem (Fotograma 23). Neste ponto já se evidencia o início de uma 228 relação entre áreas com foco e sem foco, que será resgatada e amplificada em pouco tempo. Fotograma 23: Dora se desespera procurando Josué em meio à multidão de peregrinos. As pessoas daquela multidão parecem não ver ou ouvir o desespero de Dora. Estão muito concentrados em suas orações para prestar atenção naquele pequeno conflito individual. A montagem oferece um rompimento na corrida da heroína para evidenciar, agora bem mais de perto, em planos médios fechados e primeiros planos, alguns exemplos de fiéis fazendo suas preces. Em um desses planos, a câmera se posiciona ao nível do chão. O objetivo é colocar em evidencia o sacrifício de alguns fiéis, como duas senhoras que são vistas de costas e ajoelhadas no chão de terra ou um rapaz muito suado, de olhos fechados e que tem uma grande pedra apoiada sobre sua cabeça. Enquanto os gritos de Dora vão perdendo força até não serem mais ouvidos, as preces desses fiéis vão sendo destacadas pela banda sonora. Algumas vezes, se apresentam como som diegético in e outras como off. A partir dessas variações entre o lugar de dentro ou fora de quadro das fontes sonoras e sua devida relação com os demais elementos da imagem constituintes desses referidos planos, tem-se uma aproximação com aquele mecanismo usado anteriormente, na mesma sequência, entre áreas com ou sem nitidez na imagem, ou seja, ambos os fatores começam a sugerir um efeito de perda de consciência e, em alguma medida, psicodélico, de transe. 229 Procurando Josué e, em plongée, Dora acaba entrando em uma pequena construção conhecida como Casa dos Milagres. O ambiente tem todas as paredes recobertas de imagens, cartas, velas e réplicas de partes do corpo humano em parafina. Todos esses elementos estariam relacionados a possíveis milagres alcançados através da fé naquela santa de devoção. Lá dentro, muitas pessoas estão viradas para essas paredes e imagens, orando e exteriorizando seu efervescente lado espiritual. O que se escuta é uma confusa junção de falas na qual não se consegue entender bem o que cada pessoa diz. A mistura dessas orações vai ficando cada vez mais forte à medida que Dora avança por aquele lugar místico. Parece haver, também, um pequeno acréscimo de ruídos extra diegéticos usados para complementar a mesma ideia de um ambiente de quase transe. Os cômodos do lugar têm uma iluminação fraca e com tom muito amarelado. A partir do suor e da expressão facial, Dora já mostra claros sinais de extremo cansaço, além do desespero. Ela caminha se apoiando nas paredes e móveis. Todas aquelas vozes de orações e preces externas e internas naquele lugar começam a se fundir e se misturar. Além disso, pode-se imaginar o quão quente estaria aquele ambiente fechado em pleno sertão nordestino, com tantas pessoas e ainda repleto de velas acesas. A soma desses fatores começa a provocar consequências em Dora. A partir de alguns planos que apresentam a visão sua subjetiva, é possível perceber que ela já não consegue enxergar alguns objetos que lhe estão muito próximos – como é o caso do momento em que a câmera passa esbarrando em algumas fotografias totalmente sem foco ou, então, quando todo campo de visão mostrado fica sem nitidez por alguns segundos. A montagem alternada apresenta o ponto forte dessa provação junto ao exato momento em que, externamente, o espectador pode observar uma grande roda de fogos de artifício girando, enquanto queima bem no meio da multidão. Os giros dos fogos externos são estrategicamente cortados para giros internos da própria câmera, simulando a aproximação com o movimento e a visão subjetiva e desfocada de Dora. Através de um mecanismo de paralelismo, o espectador acompanha os dois giros se fundindo, ganhando velocidade, tornando a imagem cada vez menos nítida até o inevitável momento em que a câmera (ainda subjetiva) começa a cair, seguida pela rápida mudança de plano no qual se 230 observa Dora terminando a queda e batendo forte a cabeça no chão. Esta queda é casada de forma sincronizada pela montagem com o momento exato em que são acesos outros fogos externos no mastro que guarda a imagem da santa. Este mesmo instante é acompanhado por aplausos e gritos delirantes dos fiéis. Depois da chegada de Josué próximo a Dora, a sequência termina com um fade out preto, saindo da imagem da santa rodeada de fogos para o escuro total. Estaria aqui o momento de quase morte apresentado – uma das sequências de montagem mais elaborada da obra (Fotograma 24). Fotograma 24: O plongée que ressalta o momento de quase morte de Dora. i) Recompensa (Apanhando a espada): O tempo de suspense a respeito do que teria acontecido a Dora não dura muito. Do fundo preto, logo é feito um fade in em um plano no qual se vê a heroína deitada no colo de Josué em uma das ruas de terra daquele pequeno vilarejo. Ainda de longe, já se percebe que ela está respirando, a partir de seus movimentos no abdômen. Para alívio dos espectadores identificados de forma aprofundada com Dora, a heroína teria sobrevivido ao seu momento de quase morte! 231 Fotograma 25: A Pietà invertida. Agora, os dois personagens vivenciam um dos primeiros momentos de trocas de carinhos mais efetivos. Afinal, o relacionamento entre eles fora, até então, marcado por um misto de atração e repulsa. Quando estão juntos, desejam se separar; quando se separam, buscam um ao outro. Nesta cena, não há falas. Os olhares afetuosos compartilhados e os gestos cuidadosos de ambos já dizem muito sobre o crescimento da relação de amizade e carinho entre os dois. Sentindo a fragilidade de sua heroína, o menino Josué novamente vai incorporar a máscara de mentor e conseguir uma maneira para que os dois possam juntar dinheiro, a fim de renovarem suas forças para prosseguir na jornada. De maneira bem astuta, ele percebe que há uma boa oportunidade casada às fotografias tiradas pelos peregrinos com São João, pois muitos destes que faziam este tipo de registro eram analfabetos, mas demonstravam o desejo de mandar algum tipo de mensagem para o santo. Assim, Josué começa a fazer uma divulgação improvisada, pela rua, enquanto Dora volta ao trabalho de escrevente de cartas. Diferente do início do filme, agora, a fotografia mostra que o dinheiro de cada cliente não passa pelas mãos de Dora, mas vai sendo arrecadado pelo menino. Ele está sentado entre Dora e os clientes. A montagem vai apresentando fragmentos de histórias ditadas por pessoas diferentes alternadas (Fotograma 26). 232 Fotograma 26: Um dos típicos personagens que ditam cartas para Dora: aproximação estética entre ficção e documentário. Neste momento da obra, mais uma vez, o diretor mescla sua bagagem documental ao processo construtor da ficção. Como no início do filme, também durante a festa religiosa, ele incorpora à história fragmentos de entrevistas de pessoas que cruzaram com a equipe ao longo da filmagem. Não há como ter certeza de quais daqueles personagens que ditam cartas, em uma estética documental, seriam atores ou não-atores. Ocorre um tipo de mistura quase indissociável, na qual depoimentos escritos se fundem com falas espontâneas. Com o passar do dia e o desenrolar de uma boa arrecadação, vista a partir do montante de notas nas mãos de Josué, origina-se um clima de grande otimismo entre os dois personagens. A ingenuidade do menino se mostra quando, segurando o largo bolo de notas de um real, ele afirma que “dá até pra comer.” Antes de terminar a sequência, eles não deixam de agradecer à figura de São João. Como os demais, também fazem seu registro fotográfico ao lado da imagem que, de alguma maneira, teria “ajudado” naquele momento de prosperidade. A cumplicidade e o carinho entre os dois, agora, são percebidos de forma mais ostensiva. Comemorando a reviravolta da situação de penúria anterior, eles brincam, enquanto caminham por entre algumas barracas de uma pequena feira noturna. A heroína ri e se diverte com o menino de forma como nunca havia ainda demonstrado em todo o filme. Agora, é Josué quem presenteia Dora com um 233 vestido novo. Ele quer que ela fique mais bonita. A trilha musical extra diegética e over também contribui para este clima de alegria e comemoração entre os dois. Quando Dora e Josué entram no quarto simples do hotel daquele vilarejo, a trilha musical é retirada. Uma situação mais séria passa a ser evidenciada. Ela está exausta. Enquanto cochila no sofá, Josué abre a sacola de cartas e começa a jogá-las em um cesto de lixo. O menino teria aprendido com Dora tanto como ganhar dinheiro como também a postura de não assumir suas responsabilidades diante dos compromissos assumidos. Com esta atitude, ele demonstra estar seguindo fielmente o exemplo e a malandragem de Dora. A fotografia chama atenção para as cartas a partir de um plano detalhe, em plongée, das mesmas, enquanto Josué joga a primeira leva. O som diegético das primeiras cartas caindo dentro do cesto faz com que Dora desperte. Em primeiro plano, ela observa cuidadosamente o que Josué está fazendo e, de súbito, interfere e manda que ele pare com aquela ação. De forma ingênua, Josué pergunta a ela se deveria ter rasgado antes. Ela apenas responde que vai ver o que fazer com as cartas depois. A resolução para este impasse somente acontece no dia seguinte. Uma nova sequência, tanto do filme como da vida de Dora, é iniciada. A partir de um plano de conjunto, pode-se ver um ponto de parada de ônibus bastante peculiar. Soltas por este local, algumas galinhas ciscam restos de comida, enquanto Dora, Josué e algumas outras pessoas esperam pelo veículo que irá conduzi-los até a possível nova moradia de Jesus (pai de Josué). Vistos mais de perto, em plano americano, Josué se mostra novamente ansioso com a continuação da aventura. Porém, algo toma toda a atenção de Dora. Ela olha fixamente para um ponto fora do enquadramento e do lado contrário ao que está Josué, despertando a curiosidade do espectador. Em um plano rápido da visão subjetiva de Dora, vê-se uma agência de Correios. Apresenta-se, ali, o dilema de anos a ser resolvido. Com uma atitude rápida, ela pega a sacola de cartas. O espectador agora observa uma mescla entre a visão subjetiva de Josué, mirando Dora se aproximar da agência de Correios, como também a imagem do próprio menino, olhando aqueles novos passos de sua heroína. Em primeiro plano, ele se mostra muito atento. Aos poucos, sua expressão facial mais séria ganha um leve tom de admiração e orgulho. Ao decidir entrar naquela diminuta agência dos Correios e 234 entregar aquelas cartas, Dora também estaria demonstrando o aprendizado que ganhara durante a jornada – e logo após o seu momento de quase morte. Seria a demonstração de um autoexame interior, da percepção de algumas de suas falhas, de um novo entendimento dos seus compromissos e, por fim, de uma consciência ampliada enquanto ser humano. A partir de um tipo de mecanismo cíclico, ao descer do ônibus, já na outra cidade, uma das primeiras pessoas que informa a Dora e Josué sobre a localização da rua que eles desejam chegar é Isaías – coincidentemente, um dos irmãos do menino. Contudo, como nenhum dos três sabe disto (e nem o espectador), o contato é feito apenas para dar-lhes a indicação pedida. Um pouco depois eles irão se reencontrar de outra maneira. Ainda no primeiro encontro, Dora e Josué estão na rua, ao lado do ônibus recém-chegado. A partir de um movimento realizado em grua, o espectador conhece Isaías que está trabalhando no telhado de uma daquelas casas. Ele está em uma pequena parte do enquadramento que prioriza o ambiente. Enquanto a câmera vai ganhando altura, é possível perceber o imenso número de casas muito parecidas ao fundo do plano. Tal imagem poderia suscitar a ideia do labirinto e das dificuldades pelas quais a dupla ainda teria de enfrentar. Durante o caminho até o endereço procurado, Dora e Josué conversam sobre memórias e esquecimentos. Ela quase antecipa um possível momento de despedida dos dois. Durante o diálogo, a heroína defende a importância do objeto fotografia para reviver lembranças, pessoas e sentimentos. O resgate desta defesa iniciada neste ponto por Dora será importante durante a finalização da obra fílmica. O grande número de casas iguais, conforme ressalta também Josué, torna- se quase um tipo de espelhamento de problemas anteriormente já enfrentados por eles. Depois de chegarem ao endereço indicado por Jessé (morador do sítio onde vivia o pai de Josué), o homem que os atende conta-lhes que o pai do menino já não mora mais por ali, que teria sumido no mundo e que ninguém sabia mais de seu paradeiro. Quase instantaneamente, Josué se mostra muito decepcionado. Diferentemente de toda a trajetória anterior, agora, ele não questiona ou busca qualquer nova maneira de ir atrás do pai. Cabisbaixo e triste, ele se vira e começa a caminhar pelo meio da estreita rua asfaltada. Através do 235 uso de uma steadycam, a câmera segue Josué que caminha solitário, agora em contraluz. Rapidamente, Dora corre até ele. Inicialmente, o menino diz que vai ficar naquele lugar esperando pelo pai; contudo, Dora propõe que ele vá morar com ela, no Rio de Janeiro. Os dois são vistos no centro do enquadramento, em plano americano, se cumprimentando, como se estivessem fechando algum tipo de aliança ou acordo. A partir da grande profundidade de campo, é possível observar, atrás da dupla, uma comprida linha vertical, proposta pelo traçado da rua. Tal composição pode sugerir a possibilidade de continuação de um longo caminho juntos. j) Caminho de volta: Após ter aceitado o convite da amiga, Josué e Dora se dirigem novamente para o ponto do ônibus no qual chegaram àquela pequena cidade. De mãos dadas, os dois começam a caminhar para frente, para dentro da tela. A câmera se mantém parada, enquanto a dupla vai se distanciando daquele ponto, buscando o horizonte, as novas possibilidades... Entre os descobrimentos advindos do mundo especial está o lado protetor e até materno de Dora. Sensibilizada com a situação do menino, ela liga para Irene e pede à amiga que venda tudo em seu apartamento, pois precisaria do dinheiro para construir uma nova vida ao lado de Josué. Aqui, se percebe uma grande mudança em seu comportamento. Aquela pessoa que fazia qualquer coisa pelo dinheiro, havia se metamorfoseado em alguém que estaria abdicando de tudo que tem em termos materiais, para dedicar sua vida a um menino conhecido há pouco tempo. Agora, já não lhe importa o apartamento, o dinheiro ou até mesmo a nova televisão. Ela parece ter ganhado algo muito mais valioso. Contudo, o caminho de volta para o mundo comum não é tão simples assim. Ainda há provações por vir. Fora dos novos planos da dupla, a arquitetura do roteiro cria alguns obstáculos e situações não imaginadas pelos personagens. O primeiro entrave aparece quando Dora descobre que não há ônibus para sair do pequeno vilarejo perdido naquele sertão. Logo depois, o espectador presencia o filho daquele homem que havia atendido Dora e Josué terminando uma conversa com Isaías. Em off, se escuta a fala de Dora, comprando duas passagens para o primeiro ônibus do dia seguinte. 236 Com uma trilha musical extra diegética e over, Isaías se aproxima da dupla e se apresenta como filho de Jesus – surpresa para todos, inclusive para o espectador. Josué se mostra temeroso. Em um primeiro plano, recortado de Dora, no qual boa parte do rosto dela fica de fora, a fotografia do filme coloca em evidência o comportamento diferenciado de Josué. Parece estar com medo de Isaías. Logo, se segura em um dos braços de Dora e, depois, se esconde atrás dela. Pensando que Dora seria amiga de seu pai, Isaías insiste para que a dupla vá com ele até sua casa tomar um café. Josué se mostra tão arredio que até inventa um novo nome (Geraldo), para se apresentar àquele desconhecido. Durante o caminho, Isaías dá pistas de ser um homem com espírito jovial, brincalhão e alegre. Primeiramente, ele caminha se equilibrando na beirada do meio fio. Um pouco mais à frente, chama Josué para brincar, repetindo um trava- línguas. Josué muda de posição com Dora, ficando, agora, entre ela e Isaías. A partir da brincadeira e da dificuldade do menino em repetir aquelas frases, Josué começa a se aproximar daquele irmão desconhecido. Ao entrar em casa, Isaías vai logo gritando por seu irmão Moisés. Quer apresentar os amigos do pai deles. A partir de um primeiro plano em Moisés, o espectador percebe que, logo após cumprimentar as visitas, ele faz um gesto que é típico também de Josué: abaixar a cabeça com uma expressão triste. Em vários momentos do filme, o garoto já tinha demonstrado uma forma de expressividade muito próxima da que é evidenciada por Moisés. A montagem corta de Moisés diretamente para Josué. Ele demonstra reconhecer o gesto e, praticamente, o repete também naquele momento. Entretanto, ao virar para uma das paredes, visualiza a pintura de um casal. A mulher retratada é sua mãe, também facilmente reconhecida pelo espectador. A fotografia chama atenção de Josué com um zoom-in lento até a pintura. Com um perfil um pouco mais sério e fechado, Moisés se aproxima de Josué, a partir de seu conhecimento prático na marcenaria. Em uma visita neste local de trabalho de Moisés, Dora percebe o início da aproximação daqueles três jovens. Em plano médio fechado, a câmera mostra o cuidado de Moisés para com Josué, enquanto lhe ensina as primeiras técnicas daquele ofício. Novamente, a relação circular é utilizada pelo diretor. Nessa cena, a primeira peça produzida na marcenaria por Josué e seu irmão é exatamente um pião, como aquele que teria 237 sido o “motivo” da morte da mãe de Josué. Estaria aqui a renovação deste símbolo e, a partir dele, da própria vida do garoto. Pouco depois, o trio já está jogando futebol na rua. Os irmãos maiores demonstram pouca habilidade e Josué já „tira sarro‟ deles na brincadeira: -“Eu jogo mais ou menos, eles que são „ruim‟ de bola”. Dizendo esta última frase para Dora, ele demonstra a gradativa constituição de intimidade com a parte encontrada daquela família tão desejada. Ao entrar novamente na casa, o clima de brincadeira dá lugar a uma perspectiva mais séria. Os irmãos mais velhos de Josué mostram uma carta reveladora que o pai deles teria escrito para Ana Fonteneli (sua mãe), depois de sumir no mundo, há cerca de seis meses daquele momento. Moisés é reticente com este assunto. Afirma não querer mais saber do pai ou de qualquer coisa relacionada a ele. Já Isaías, defende o pai da mesma maneira que Josué. Ele insiste em mostrar para Dora a carta. Neste momento, o espectador descobre que os dois são analfabetos, por isto teriam guardado há tanto tempo aquela mensagem sem saber seu conteúdo. Quando Dora aceita o pedido de fazer a leitura da carta, Josué, Moisés e Isaías se mostram ansiosos. Durante a leitura, Dora lê, mas também coloca, além da sua interpretação, alguns pequenos e importantes detalhes de acréscimo. Pela leitura de Dora, haveria duas vezes a afirmação de Jesus dizendo que eles poderiam esperar por ele. O mesmo daria a certeza de sua volta. O trecho mais emocionante da leitura é quando este pai teria dito que, com a sua volta: -“vai ficar todo mundo junto: eu, você, Isaías, Moisés...”. Neste fragmento da leitura, a heroína malandra usa toda malícia das pausas interpretativas e observa a tristeza de Josué, ao não ser citado até aquele momento. De forma rápida e improvisada, Dora retoma a leitura: “...e Josué...e Josué, que eu quero tanto conhecer!”. Estaria ali explicitada a declaração de amor tão desejada por aquele filho mais novo. Ao ouvir essas palavras mágicas, o menino logo levanta seu rosto e encara com um terno sorriso seu irmão Isaías que retribui o olhar, de maneira reflexiva. A sequência termina com os três irmãos opinando, de forma diversificada, sobre quando o pai voltaria. Chorando de emoção, Isaías afirma que o pai voltará. Moisés, que ainda está magoado com o sumiço do pai, diz que ele nunca voltaria. Contudo, agora há uma terceira opinião logo expressa. Josué, como em praticamente toda a narrativa, segue crendo no encontro com este pai tão idealizado e querido, mesmo que tão 238 proporcionalmente ausente. Neste cabo de guerra, parece que o lado da crença no pai teria ganhado uma grande energia a partir daquele momento. Mais tarde, Dora e Josué vão apreciar o bonito céu estrelado daquele lugar. Em plano médio fechado, eles são vistos sentados na calçada, em frente à casa de Isaías e Moisés. A posição dos dois no enquadramento chama a atenção. Cada um deles está em uma das extremidades horizontais do quadro, ou seja, há uma expressiva distância entre eles. Em tom reflexivo, Josué pergunta a Dora se seu pai teria realmente escrito aquela parte sobre ele na carta. A amiga vai logo confirmando. Contudo, conhecendo bem Dora e todas suas malandragens anteriores, Josué duvida. Os dois se olham, demonstrando que já se conhecem bem. Dora não diz nada, apenas olha fixamente para ele. Estaria ali implícita uma quase confissão por aquela leitura que se pode pensar como um ato de justa inclusão, caso isto tenha acontecido. A cena termina com Isaías entrando no plano, no meio entre Josué e Dora, chamando os dois para entrar. A posição que ele ocupa no enquadramento também é bastante significativa para aquele momento. Espelhando a aproximação gradativa ocorrida naquele dia, neste plano, o irmão, há pouco conhecido, acaba ganhando um lugar mais próximo do menino, quando comparado a Dora. k) Ressurreição: Diferentemente de alguns filmes em que, próximo do desfecho, o herói ou heroína tem que travar uma última grande batalha com algum ser contrário ao seu retorno, em Central do Brasil, o grande vilão é a própria consciência de Dora. Apesar de ter aprendido a amar e a proteger com todas as forças aquele menino, ela sabe que o que ele mais desejava está exatamente ali, bem perto dele, naquele momento. A partir desta constatação, como uma verdadeira heroína – agindo em prol do outro –, ela precisa refletir e tomar uma decisão sobre o que seria melhor para Josué e não para ela. Sua grande provação neste momento da narrativa, talvez, seja perceber que sua jornada de aventuras teria chegado ao fim; que o objetivo, mesmo de maneira tortuosa, teria sido alcançado. A noite que passa na casa de Isaías e Moisés parece ter um sentido muito especial para Dora. No meio da madrugada, enquanto a maioria das pessoas daquela casa dorme, o espectador presencia um plano em que se vê uma cama 239 vazia. Alguém não estaria conseguindo ficar deitado. A montagem promove um corte seco desse plano diretamente para outro, no qual se observa Dora, de pé, abrindo um pacote. No enquadramento, a cabeça do personagem é cortada de maneira proposital. Aqui, há ênfase total para o que ela está fazendo: a ação de abrir o pacote com o vestido novo comprado por Josué depois do sucesso das cartas para São João. O fato de não se mostrar a cabeça de Dora pode sugerir diversas interpretações. Uma delas seria a indicação da mudança de pensamento deste personagem, do seu câmbio de idéias sobre si mesma. A partir de uma elipse, o espectador já presencia Dora caminhando pela casa, depois de ter colocado o vestido azul. A iluminação apresenta muitas áreas de sombra e penumbra. Ao fundo, se escuta o som diegético off do vento noturno que estaria soprando por aquelas ruas do agreste. Além de ser um tipo de som característico daquele local, o ruído do vento também pode ser interpretado como um símbolo da própria memória de Dora, resquícios de suas lembranças, parte do seu próprio eu, anteriormente perdido e que, agora, estaria eclodindo novamente. De uma maneira quase ritualista, ela acende duas velas em frente ao espelho daquela casa. Quer mirar-se nele, quer continuar esta importante transformação, este resgate de si. Em plano médio fechado, Dora olha fixamente para seu reflexo no espelho. De forma sutil, ergue sua cabeça, como se desejasse olhar de outra maneira para si mesma, se ver com outra postura: uma mulher (e um ser humano) mais bonita(o). Gostando daquilo que começa a visualizar no espelho, ela balança a cabeça de maneira afirmativa e com um leve sorriso no rosto. Parece estar renovada, revigorada. Lentamente, ela começa a passar na boca aquele batom ganhado em um restaurante de beira de estrada. Seus olhos estão fixos no espelho. Admiram cada detalhe daquela metamorfose. Neste ponto, a fotografia dá ênfase à ação de Dora com um zoom-in em seu rosto, aproximando ainda mais o espectador do lado psicológico deste personagem. Ela parece emocionada com sua decisão, chegando a colocar uma das mãos sobre o peito, como se demonstrasse orgulho por aquele momento, por aquele reencontro com este aspecto de sua feminilidade há tanto tempo desaparecido de sua vida. Evitando fazer barulho, ela abre a porta do quarto onde dormem Isaías, Moisés e Josué. Este último já está dormindo no meio dos outros dois. Durante alguns segundos, Dora admira aqueles três jovens dormindo num clima tão 240 familiar. Ela sabe que, vivendo ali, Josué estaria amparado e protegido e teria, em parte, aquilo que ele mais desejava: uma família. Seu dever de heroína, enfim, teria sido cumprido. Apesar de desejar muito ficar neste mundo especial, com aquele menino muito especial, Dora sabe que seu lugar não é ali. l) Retorno com o elixir: Depois de mirar cuidadosamente Josué, Dora decide ir embora. Antes de sair da casa, ela coloca, cuidadosamente, outro envelope ao lado daquele que havia lido aos três, bem abaixo da pintura que retrata o casal Jesus e Ana. Poderia tanto ser aquela antiga carta ditada, em partes, pela mãe de Josué, antes de morrer, como uma nova versão, escrita naquela noite pela própria Dora. Esse detalhe intrigante deve ser complementado pelo espectador e sua forma de ler o filme. De uma maneira ou de outra, Dora deixa ali, naquele lugar de destaque da casa, uma espécie de prova de que Josué seria filho daquele casal da pintura e irmão daqueles rapazes. A fotografia chama atenção para os dois envelopes dispostos em pé, um ao lado do outro. Há um ponto específico de iluminação direcionado para eles. Além disso, a partir de um dolly in, a câmera se aproxima, lentamente, dos envelopes sujos, realçando ainda mais a importância dos mesmos – através da carta, ela se coloca “ao lado” da mãe. Já do lado de fora da casa, é possível observar Dora cabisbaixa e triste, por ter decidido deixar Josué para trás. O menino se tornara muito importante para ela. Contudo, ela respira fundo, ergue a cabeça, quase sugerindo algum tipo de automotivação e começa a caminhar em meio à penumbra daquela pequena cidade onde ainda não amanhecera. Com a câmera baixa e um sutil contra- plongée, Dora é visualizada em plano de conjunto, caminhando, de forma decidida, bem no meio daquela rua. Gradativamente, ela vai se afastando e seguindo a direção do horizonte que começa a se iluminar pelo sol nascente. Simbolicamente, ela caminha em direção à luz – que pode sugerir uma grande mudança em sua vida. Logo depois, talvez por conta de algum tipo de mecanismo sensitivo, Josué desperta e vai logo procurar por Dora, enquanto os irmãos continuam dormindo. Como não a encontra no quarto, vai para o lado de fora procurá-la. A partir do uso de uma grua, o menino é visto de cima, em plano conjunto e plongée. Neste caso, 241 tal recurso não parece querer inferiorizar ou minimizar o jovem. Como ele começa a correr, a câmera posicionada no alto da grua facilita seu acompanhamento e também dá possibilidade para a constituição de um plano geral daquele labirinto de casas parecidas. A partir de um movimento de travelling, Josué é visto correndo para a direção da câmera que apresenta um deslocamento em velocidade bem maior. Através deste plano, a fotografia ressalta a dificuldade que o menino teria para chegar a tempo de impedir a partida de Dora ou se despedir. Há um corte para o interior do ônibus, de onde se vê Dora novamente a escrever uma carta. Contudo, desta vez, ela não escreve sobre a vida de outras pessoas, mas sobre a sua. É uma carta de relato emocionado no qual se dirige a Josué, mas também promove um resgate de lembranças e sentimentos marcantes de outras épocas da sua vida – voice over de Dora relatando o conteúdo da carta escrita para Josué: -“Josué, Faz muito tempo que eu não mando uma carta para alguém. Agora eu tô mandando esta carta pra você. Você tem razão. O seu pai ainda vai aparecer. Com certeza, ele é tudo aquilo que você diz que ele é. Eu lembro do meu pai me levando na locomotiva que ele dirigia. Ele deixou eu, uma menininha, dar o apito do trem a viagem inteira. Quando você estiver cruzando as estradas no seu caminhão enorme, eu espero que você lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer botar a mão num volante. Também vai ser melhor pra você ficar aí com seus irmãos. Você merece muito, muito mais do que o que eu tenho pra te dar. No dia em que você quiser lembrar de mim, dá uma olhada naquele retratinho que a gente tirou junto. Eu digo isso porque tenho medo que um dia você também me esqueça. Tenho saudade do meu pai. Tenho saudade de tudo. Dora.” Enquanto escreve esse texto, que parece de tradição bastante oral, seu pensamento e o conteúdo da carta são transmitidos para o espectador a partir de um tipo de leitura interior, apresentado para o espectador a partir de voice over. No momento em que Dora fala sobre o pai a Josué, ela defende a possibilidade do encontro entre os dois como nunca havia feito: com esperança e crença de que seja algo realmente especial. Esta defesa vem recheada de suas memórias e sentimentos para com seu próprio pai que, apesar de todos os defeitos que ela mesma apontava, também parece ainda ser muito amado por ela, mesmo depois de morto. O fragmento da carta que pede para que ele continue acreditando em 242 seu pai e na sua volta parece também sintetizar um desejo dela mesma – ainda que irrealizável para ela. A montagem trabalha esta cena a partir de paralelismo, evidenciando também a aproximação de Josué e o afastamento do ônibus. Enquanto Dora escreve, dentro do ônibus em movimento, Josué corre por aquelas ruas, levantando poeira até o local de onde o veículo velho teria partido. Quanto mais a escrita e consecutiva leitura da carta se encaminham para o final, mais o ônibus é visto à distância, em planos gerais que sugerem o retorno de Dora para seu lugar de origem ou seu mundo comum. No desfecho do filme, esse paralelismo da ação dos personagens, proposto pela montagem alternada, oferece um ponto onde esses dois lados, mesmo já distantes fisicamente (como ressaltam os planos gerais que acompanham o movimento do ônibus por aquela estrada, em meio ao isolado sertão brasileiro), se entrelaçam a partir do monóculo a que cada um dos personagens recorre, de maneira sincronizada pela montagem, como instrumento materializador de memória. Vale ressaltar que os dois objetos de memórias, carta e monóculos, são ressaltados pela fotografia através da constituição de planos detalhes nos mesmos. Diferentemente da relação construída entre os pais de Josué e ele ou dos pais de Dora e ela, no caso da relação entre a dupla Dora e Josué, haveria, além das profundas lembranças, uma fotografia para eternizar aquelas memórias e servir de objeto cristalizador, de materialidade efetiva, ou seja, de um registro palpável daquela amizade e cumplicidade. Apesar do choro e da tristeza da separação, ao mesmo tempo, o sorriso terno e profundo de ambos, depois de visualizarem suas cópias daquela mesma fotografia de monóculo – que mostra a dupla de mãos dadas com a imagem de São João –, sugere ao espectador que a decisão de Dora teria sido uma ação acertada (Fotogramas 26 e 27). Fotogramas 27 e 28: Amizade e memórias cristalizadas a partir da fotografia dos monóculos. 243 Em Central do Brasil, é importante perceber que existem dois tipos de elixir. Um primeiro seria a alegria de Josué, traduzida a partir do restabelecimento do menino ao ceio da sua família, algo que sempre se mostrara tão importante para ele. Neste caso, o elixir é sabiamente repartido pela heroína, sendo doado e confiado aos irmãos Isaías e Moisés. Ao encontrar seus irmãos, Josué ganha também um espaço de inserção, um fragmento vivo da sua história, que tenta explicar quem ele é e de onde ele veio – em última instância, um passado breve da sua identidade ainda em pleno desenvolvimento. Outro tipo de elixir é aquele interno, o qual Dora foi ganhando durante a sua jornada. Ajudando aquele garoto a procurar o pai, ela também foi crescendo, ganhando novas qualidades e resgatando outras. Este elixir estaria ligado ao ato de olhar para si, reencontrar sua própria identidade, anteriormente perdida. A partir da sua jornada de aventuras, Dora se reapropria de seu lado feminino, da esperança anteriormente perdida, de sua humanidade. Dessa maneira, também reencontra parte da sua própria identidade adormecida. Tanto a ex-professora como Josué teriam aprendido muitas lições durante esta jornada. A partir do momento em que decidiu, efetivamente, tomar conta e ajudar Josué na busca por seu pai, Dora também começou a buscar uma parte si mesma. Assim, depois de reencontrar essa fração importante da sua identidade, ela precisa fazer o caminho de volta ao seu mundo comum. Contudo, pode-se pensar que ele já não deve ser tão comum assim, uma vez que, se retornar ao Rio de Janeiro, ela terá de enfrentar Pedrão e a dupla que faz tráfico de crianças, não terá mais disponível a banca para a escrita de cartas na Central do Brasil, terá que comprar outros móveis e eletrodomésticos, uma vez que pedira para a 244 amiga Irene vender tudo o que tinha em seu pequeno apartamento. Além disso, terá de reaprender a lidar com esse fragmento da sua identidade que há pouco fora reencontrado. Assim, o caminho de volta e o retorno com este elixir parecem reservar muitas novas aventuras para esta heroína, sugerindo ao espectador um final não totalmente fechado, mas com abertura para inúmeras incertezas na vida da protagonista. 5.2.4 – Panorama, pontos de vistas e revelações da análise fílmica para além da trajetória de aventuras da heroína a) Sentido narrativo: No filme Central do Brasil, o foco narrativo da história se divide entre a protagonista, ou seja, a ex-professora primária Dora e o jovem Josué. Contudo, esta primeira se sobressai por intermédio da função dramática que assume. A história é contada em terceira pessoa, com o auxílio da câmera/fotografia. Apesar de esta obra acompanhar a trajetória de Dora, há uma visão limitada de determinados fatos e o espectador vai fazendo suas descobertas ao longo da história. Este personagem não tem, por exemplo, a onisciência para saber que o pai de Josué não mora mais no sítio referido pela mãe do menino ou de todas as transformações que irá ocorrer em seu íntimo. A protagonista sabe tanto quanto os outros personagens. Os pequenos offs existentes no filme se tratam apenas de trechos da leitura ou do momento de construção de algumas cartas escritas por Dora. O tempo da narrativa é linear, ou seja, o ponto de término é diferente do ponto de partida, e a história é contada de forma contínua e homogênea. A demarcação do tempo histórico parece não ser uma grande preocupação do diretor. Durante o filme, não há referências específicas de qual seria aquele tempo histórico retratado. Entretanto, o espectador encontra indícios da época na qual a obra se passa, a partir dos figurinos utilizados pelos personagens, pela euforia de Dora e Irene com a chegada da nova TV, ainda em preto-e-branco, com controle remoto, e pelo programa que está sendo exibido na mesma: Topa tudo por dinheiro, do SBT. Neste caso, é importante salientar que este mesmo 245 programa televisivo se manteve na grade da emissora durante vários anos.41 Detendo-se nesta pequena referência, pode-se pensar em uma possível contextualização do tempo histórico da narrativa. Contudo, aqui, verifica-se que a referência ao programa Topa Tudo por Dinheiro é utilizada propositalmente para sugerir uma ironia ao comportamento de Dora, ou seja, uma forma de ressaltar a maneira pouco ética do personagem para sobreviver. Em relação ao tempo cronológico, a história apresenta uma mudança rítmica ostensiva e bem evidente. Em uma primeira parte da obra, filmada principalmente na estação Central do Brasil, pode ser observado um ritmo acelerado das ações e pessoas e também sugerido pela paisagem sonora. Naquele ambiente de passagem, há um constante e quase interminável trânsito de pessoas que entram e saem apressadas de seus trens. A partir do momento em que Dora decide ajudar o menino, acompanhando-o na busca por seu pai, a película ganha ares de road movie e o ritmo rápido imposto pelo ir e vir interminável das pessoas na Central do Brasil vai sendo deixado de lado, propiciando à heroína, a Josué e ao espectador um olhar mais cuidadoso sobre as paisagens e o novo ambiente que começa a se descortinar ao seu redor. É importante ressaltar que, mesmo acontecendo esta mudança ostensiva na maneira de ver as paisagens e cenários, todo o filme é uma grande narrativa em trânsito. Assim, verifica-se sempre algum tipo de deslocamento ou mudança, seja dos próprios personagens à procura de algo, como, por exemplo, o deslocamento de Dora, Josué, do caminhoneiro Cézar e dos vários peregrinos ou ainda o câmbio de comportamento destes personagens diante de determinado fato. Neste caso, o maior exemplo é a metamorfose que vai, gradativamente, acontecendo com a própria protagonista. O processo construtor da imagem e do som é reflexo desse tipo de metamorfose constante. No filme, se presencia uma duração aparente e não efetiva do tempo, ou seja, a narrativa apresenta diversas contrações temporais, especialmente durante os deslocamentos nas viagens de ônibus, caminhão ou caminhonete. Assim, são suprimidos os tempos mortos. O tempo psicológico da narrativa tem sua base no presente, contudo, sempre há referência a fatos, acontecimentos e comportamentos do passado. Um 41 Conforme informações do site da própria emissora, o programa de auditório Topa tudo por dinheiro, apresentado por Sílvio Santos, foi exibido, no canal SBT, entre 1991 e 2001. 246 bom exemplo disso são as lembranças e memórias que Dora vai expondo sobre seu pai a Josué e, ao mesmo tempo, estabelecendo um tipo de aproximação à imagem de pai idealizada pelo menino. Pode-se pensar que este mecanismo seja uma tentativa de protegê-lo de continuar a viver uma idealização exacerbada do pai e, logo depois, vê-la despedaçada, assim como acontecera com a protagonista. b) Sentido dos significantes visuais e sonoros na dinâmica narrativa de herói: O espaço narrativo é cuidadosamente trabalhado pela equipe de Central do Brasil. Conforme expresso no item anterior há uma divisão bem marcada entre dois grandes espaços narrativos. Observa-se, na obra, a delimitação de um espaço metropolitano, ambientado na cidade do Rio de Janeiro e de outro espaço interiorano, ambientado no sertão nordestino. O primeiro deles é caracterizado, principalmente, pela estação de trens Central do Brasil que dá nome à obra. Nele, como já dito, há um ritmo rápido das ações, um intenso dinamismo que é reflexo da metrópole fluminense, na qual boa parte das pessoas não tem tempo ou abertura para notar os problemas daqueles que, por um motivo ou outro, acabam indo parar fora deste sistema, como no caso de Josué, após a morte de sua mãe. A Estação é um espaço no qual o movimento é uma constante. Além disso, fica claro que as instituições que representam o poder público não se mostram muito presentes naquele local, uma vez que o personagem Pedrão – uma espécie de chefe de um serviço de vigilância informal é quem assegura uma pseudo-segurança naquele ambiente – e, a partir da ausência do Estado, promove todo tipo de atrocidade, como matar a sangue frio, durante o dia e, na visão de dezenas de testemunhas, um jovem que havia furtado um pequeno rádio de uma das bancas de ambulantes existentes no local. A Central do Brasil pode ser caracterizada como um espaço impessoal, desprovido de leveza, desorganizado, uma vez que podem ser visualizados muitos usuários entrando nos trens pelas janelas ou ainda sendo transportados do lado de fora das portas ou, literalmente, em cima dos vagões. É um retrato do caos urbano, especialmente para a população com baixo poder aquisitivo nas grandes metrópoles brasileiras. 247 Na Estação, boa parte dos planos são mais fechados, médios e próximos. Contudo, durante a narrativa, também é possível perceber a utilização de alguns planos detalhe que ampliam demasiadamente a carga dramática em determinadas cenas. Este é o caso, por exemplo, do plano detalhe do pião de Josué – mostrado desta forma três vezes – ou do lenço que sua mãe esquece sobre a mesa de Dora, instantes antes de morrer atropelada. Assim, há o predomínio dos personagens sobre o ambiente. Além disso, há o uso de vários planos com baixa profundidade de campo, fazendo com que o fundo da composição permaneça desfocado. Tal característica pode sugerir um tipo de opressão ou sufocamento do personagem que se mostra em quadro ou mesmo ressaltar mais a impessoalidade daquele lugar – despersonalizando os transeuntes efêmeros. Ainda na parte metropolitana da obra, o espaço fílmico ganha um tom muito relacionado à memória, a partir do momento em que o espectador entra no pequeno apartamento de Dora. Lá, paredes, cores e móveis dizem muito de sua relação com o tempo e com suas lembranças. Esse conjunto interno antigo e desgastado reflete também o lado interior do personagem, que se vê preso a um passado de decadência e lembranças ruins. Além disso, a gaveta da cômoda onde a protagonista guarda centenas de cartas escritas por ela e nunca enviadas pode ser interpretada, conforme diz sua amiga Irene, como uma espécie de “purgatório”, ou seja, um lugar no qual o tempo não transcorre, que se está paralisado no sofrimento e que, em última instância, também é reflexo do íntimo da própria protagonista. Segundo o próprio diretor do filme: “As locações exteriores (prédio e casa de Dora, de Irene e de Yolanda) são uma extensão da Central do Brasil. É como se não houvesse possibilidade para Dora de escapar deste círculo vicioso ou como se Josué não pudesse sobreviver a ele. Rimas visuais (vagão de trem / corredor de prédio de Dora e exterior de trem / prédio de Yolanda) reforçam esta impressão. Não há horizonte neste mundo. Não há céu, apenas a presença constante do concreto”.42 42 Trecho da entrevista de Walter Salles disponível no link Imagem e som do site oficial do filme Central do Brasil. 248 O segundo eixo espacial começa a ser mostrado a partir do instante em que Josué e Dora entram no ônibus em direção ao sertão nordestino. Ao adquirir características de road movie, o filme passa a registrar paisagens naturais e a vegetação retorcida e seca do sertão. Neste novo espaço, os planos que evidenciam ambientação e cenário também se apresentam. Pode-se observar a abertura tanto dos enquadramentos, como dos próprios personagens. Esse mecanismo de aproximação e reflexo entre espaço fílmico e personagens também é analisado pelo diretor Walter Salles: “O filme começa muito fechado, com teles, olhando só para os rostos dos personagens. A perda da identidade também é expressa pela pouca profundidade de foco. À medida que os personagens vão recuperando a identidade, vão se ressensibilizando, vão olhando pro mundo, o filme ganha profundidade de campo e você começa a ver tudo em volta. [...]. Eu queria que, à medida que os personagens fossem pegando a estrada e se defrontando com o desconhecido, eu queria que aquela geografia tivesse uma importância determinante. Os personagens, quando se confrontam com aquilo que eles não conhecem, eles mudam, como a gente muda”.43 Em Central do Brasil, a fotografia diz muito sobre a obra. Há uma grande variação entre tipos de planos e movimentos de câmera utilizados, contudo, é possível dizer que a base ainda se encontra nos planos dramáticos, ou seja, aqueles cuja prioridade refere-se aos personagens. Quase sempre, a câmera apresenta a estabilidade conseguida pelo uso do tripé. Ela sai desse mecanismo construtor estável e vai para as mãos do operador apenas como exceção e somente em momentos de grande tensão na narrativa, como o resgate de Josué no apartamento dos negociadores de crianças ou quando Dora tem um desfalecimento na Casa dos Milagres, na pequenina cidade de Bom Jesus. No primeiro caso, a câmera na mão é usada para imprimir suspense àquele momento dramático. Já no segundo, ela toma o lugar do próprio personagem, oferecendo ao espectador a visão subjetiva de Dora, enquanto a mesma perde os sentidos e cai no interior daquele lugar de devoção. 43 Trecho da fala de Walter Salles no making of do filme Central do Brasil. 249 Além disso, no espaço do sertão, há vários enquadramentos nos quais a fotografia é construída através do equipamento conhecido como grua. A partir dele, são captados planos gerais ou grandes planos gerais que podem sugerir, por exemplo, a dificuldade que Josué ainda irá enfrentar para encontrar seu pai, como, por exemplo, no momento em que o menino e Dora chegam ao lugarejo conhecido como Vila do João. A partir do movimento ascendente de câmera na grua, o espectador observa uma imensidão de casas iguais até praticamente o ponto no qual a visão se perde. Além do movimento de câmera feito em grua, há o uso de diversos travellings, principalmente para acompanhar trechos das falas dos personagens enquanto se movimentam pelos cenários. Tal prática aponta para a tentativa de conferir dinamismo à narrativa, evitando assim, em vários trechos da obra, o uso da fórmula mais convencional de plano e contraplano. Outro movimento muito utilizado é o dolly in, ou seja, a aproximação da câmera até um determinado objeto ou pessoa, a fim de evidenciá-lo com mais detalhes ou chamar a atenção do espectador para o mesmo. Conforme evidenciado, algumas molduras naturais também se destacam dentro da fotografia. Este é o caso da cena na qual o personagem Pedrão conversa com Dora atrás de um portão de ferro de cor preta com grandes círculos arredondados, podendo sugerir o espaço impreciso e obscuro no qual o garoto vai adentrar a partir daquele momento. Outra moldura natural muito significativa é expressa pelo basculante do restaurante de beira de estrada no qual Dora é abandonada pelo caminhoneiro Cézar, temendo aquela rápida aproximação entre os dois. Durante o filme, há um trabalho minucioso relacionado à variação da profundidade de campo usada e à área que se apresenta em foco dentro dos enquadramentos visualizados. Especialmente na primeira parte, construída na Central do Brasil, os diversos momentos em que o espectador observa áreas sem nitidez na composição servem para chamar sua atenção ao isolamento de determinado personagem em meio àquela multidão, especialmente nas cenas em que Josué está desamparado e sem perspectiva, após a morte de sua mãe. Em alguns desses planos, diversas pessoas passam, desfocadas, em frente e atrás do menino, sem dar atenção ao seu sofrimento. São vultos quase fantasmagóricos que transitam de um lado para o outro, sem face, sem 250 identidade. Urbanóides anônimos, sem tempo e sem atenção para aquilo que está fora dos seus interesses pessoais. No espaço narrativo do sertão, a variação da área em foco é evidenciada, principalmente, na cena do desfalecimento de Dora. Com o enfraquecimento do personagem e a câmera transitando entre as perspectivas objetiva e subjetiva, algumas áreas do enquadramento começam a ficar fora de foco, até o momento em que toda a imagem perde a nitidez. Contudo, em boa parte das outras sequências ambientadas no sertão, as perspectivas se ampliam, há grande profundidade de campo, exaltando a imensidão daquele espaço e, a partir disto, as dificuldades e os grandes obstáculos que ainda se impõem à dupla na procura do pai de Josué. Analisando a angulação dos planos apresentados na obra, pode- se afirmar que a maior parte deles se encontra no ângulo normal, ou seja, na mesma linha de altura entre câmera e sujeito agente. A base da iluminação é a luz natural, principalmente na ambientação do sertão. Na Estação, há cenas iluminadas naturalmente e outras, artificialmente, com o acréscimo de luz. Nessas últimas, normalmente, acontecem os principais diálogos desta ambientação. Já no apartamento de Dora, a iluminação artificial é dominante, uma vez que a maior parte das cenas neste espaço acontece durante o período da noite. A coloração bastante amarelada colabora com a ideia análoga de lugar de memórias e de um passado latente e visivelmente exacerbado. No caso do sertão, há uma sequência na qual a iluminação também se destaca. Trata-se do momento em que Josué corre entre a multidão de peregrinos que rezam no entorno da igreja e da Casa dos Milagres. Cada um deles carrega nas mãos uma vela acesa. O conjunto dessas velas dispostas ao longo da rua origina um tipo de iluminação diferenciada e quente que contribui para o efeito gradativo de perda dos sentidos de Dora e anuncia a calorosa aproximação dos dois. Refletindo sobre as cores utilizadas, pode-se defender que, de forma geral, o filme trabalha sua base a partir de tons pastéis, encontrados nos cenários e figurinos. A exceção a este direcionamento é o personagem Irene que se apresenta sempre mais maquiada, com figurinos mais coloridos e propondo reflexões para a protagonista. Nesse sentido, a carga maior de cores utilizada pelo personagem pode ser entendida também como sugestão de transformações, em múltiplas faces, para a amiga Dora. 251 “Certo monocromatismo (declinação de tons ocres, beges, cinzas ou marrons) marca esta parte [inicial] de Central do Brasil. À medida que o filme toma a estrada, as lentes se tornam paulatinamente mais abertas, a imagem respira, ganha horizonte e novas cores”.44 Em Central do Brasil, o aspecto da oralidade também é muito importante. A constituição do personagem que é o pai de Josué representa bem este posicionamento. Em diversos diálogos, ele é enunciado e evocado, tanto por Ana como por Josué e até por Dora. Dessa maneira, a partir das falas, tais personagens remetem a algo que está fora de si mesmo, a um mecanismo ideológico: um filho que sonha conhecer o pai e uma mulher que sonha resgatar aquele relacionamento. Em boa parte do filme, esta figura paterna é construída no imaginário do espectador a partir daquilo que esses três personagens falam sobre ele. Dentre esses discursos, o de Josué é aquele que mais idealiza e romantiza a figura desse amado pai, projetando nele inúmeras qualidades e suprimindo todos os possíveis defeitos que Dora insiste em apontar. Vale ressaltar que esse discurso da protagonista muda no final da trama. Tendo reencontrado um pouco de si, de sua identidade, Dora escreve uma carta que será enviada para Josué, na qual, todas as frases e pensamentos são ouvidos pelo espectador. Nela, a heroína exalta e enobrece a figura paterna, dando esperanças a Josué para um possível encontro com seu pai. Durante todo o filme, ele é construído no imaginário do espectador basicamente pela defesa que Josué faz de suas supostas qualidades, de uma imagem projetada desse pai e do desejo de conhecê-lo e, ao mesmo tempo, da visão contrariada e pessimista que Dora faz desta vontade do menino, nas primeiras etapas da história. É interessante também salientar que grande parte das pessoas que aparecem na estação Central do Brasil como solicitantes das cartas de Dora não são atores, mas, sim, usuários daquele espaço. São baianos, cearenses, pernambucanos, mineiros e tantos outros que formam um retrato de uma tradição discursiva que, historicamente, se mostra intimamente ligada à oralidade, também por conta do seu aspecto regional. Representam, genuinamente, a população 44 Trecho da entrevista de Walter Salles disponível no link Imagem e som do site oficial do filme Central do Brasil. 252 migrante do país que busca manter ou recuperar os laços com seus parentes, amigos e, em última medida, com seu passado e suas memórias. Conforme afirma o diretor Walter Salles, no making of da obra, 90% das cartas interpretadas no filme são verdadeiras. É importante salientar que, no início do filme, as primeiras cartas escritas por Dora demarcam uma perspectiva negativa, apontando para sentimentos, como desesperança, e relatando práticas, como traição. Contudo, à medida que a narrativa avança, as cartas ganham novas tonalidades, passando a apresentar aspectos positivos, como a declaração de amor de Jesus para Ana ou o pacto de amizade e fidelidade, expresso na carta final de Dora para Josué. Mesmo apresentando uma fotografia muito rica e minuciosamente construída, o filme ainda é bastante dialogado, ou seja, o roteiro procura explicar muito as ações a partir do aspecto verbal, ou seja, das falas dos personagens. Na maioria das vezes, os diálogos apresentados são diretos, sem intermediários e de pessoa para pessoa. Contudo, não é isso que acontece entre remetentes das cartas e destinatários. Neste caso, há uma tentativa de discurso indireto, uma vez que, para aquelas pessoas, há a necessidade que Dora participe do processo, a fim de conseguirem comunicar suas informações e emoções a outros. Entretanto, além de escrever o que as pessoas ditam, ela também altera e influencia na construção daquelas mensagens. Muitas delas podem ser entendidas bem mais como uma interpretação de Dora a respeito daquilo que vê e ouve. Assim, normalmente, ela não apenas relata o que pedem, mas escreve aquilo que deseja, a partir da sua análise – bastante pessoal – daquela história e daquele cliente à sua frente. Vários dos fragmentos de falas dessas pessoas são intimistas e repletos de emoção, contribuindo para que o espectador desperte também para a construção de uma possível visão de identidade do migrante brasileiro, especialmente aquele mais pobre, humilde, analfabeto. Walter Salles (1998) explica o Brasil que desejava revelar em Central do Brasil: “Acho que o filme aproxima-se do que Antônio da Nóbrega chama de „o país real‟, chocando-se com o que eu chamo de „o país do real‟, ou seja, das estatísticas oficiais. O país que está em Central do Brasil é mais simples que este outro país glorioso que é 253 sempre anunciado como „país do futuro‟. Este outro Brasil, no entanto, que é mais próximo da gente que me interessa mais. É um país onde existe maior compaixão, onde o humanismo ainda é possível”.45 Em toda a parte metropolitana da obra, os ruídos apresentam grande força dramática. Tal mecanismo sonoro exacerba o caminhar acelerado das pessoas pela Central do Brasil, bem como agrupa aquele grande coletivo de vozes, falando ao mesmo tempo, em um coro impessoal e extremamente individualizante. O que se escuta é uma paisagem sonora formada por sons superpostos e caóticos. Segundo Salles, “O som, acompanha o mesmo raciocínio da imagem. Da cacofonia da Central do Brasil e dos barulhos da cidade que invadem constantemente os ambientes de Dora, Irene, Yolanda, passa-se, lentamente, para um processo em que os sons se tornam cada vez mais individualizados e rarefeitos, à medida que estamos país adentro”.46 Como afirma o diretor, ao avançar pelo interior do país, o filme deixa sua banda sonora mais leve e menos poluída. Quanto mais Dora e Josué se aproximam daquele pai hipotético, mais o som também vai ficando puro. Nesse sentido, em algumas cenas, como, por exemplo, no momento em que Dora acorda na boleia do caminhão de Cézar, é possível ouvir pássaros e o singelo ruído do resquício da água na qual o caminhoneiro está a lavar o rosto. Nesta ambientação do sertão nordestino, há alguns momentos nos quais o uso do som diegético aumenta de maneira ostensiva a carga dramática da narrativa. Um primeiro momento pode ser percebido a partir da cena na qual Josué e Dora estão esperando o suposto pai do menino no sítio aonde a mãe dele havia endereçado a carta. Durante a espera, o espectador escuta sons de pintinhos piando e galinhas. Logo depois, ouve-se um forte vento que, tanto balança roupas e vegetação do lado de fora da casa, como pode representar também uma verdadeira reviravolta nas memórias de Josué. Dialogando com essa interpretação, a imagem não deixa visível o rosto do homem que caminha pelo 45 Trecho da entrevista de Walter Salles concedida ao Jornal do Comércio, em 02/02/1998. 46 Trecho da entrevista de Walter Salles disponível no link Imagem e som do site oficial do filme Central do Brasil. 254 terreiro durante aquela ventania. Nesse sentido, imagem e som dialogam para propiciar a sensação de suspense, tanto para o menino quanto para o espectador. Um segundo momento de uso ainda mais refinado do som diegético para aumentar a tensão dramática diz respeito à sequência na qual Dora corre atrás de Josué, em meio à multidão de peregrinos. Inicialmente, são ouvidas as vozes dessas pessoas cantando hinos de louvor. Tais hinos se misturam aos gritos de Dora chamando pelo menino. Aos poucos, vão sendo agregadas à banda sonora algumas outras vozes de pessoas que estão em um estado de oração mais profundo, íntimo e forte. A mistura e a oscilação desses gritos, hinos e orações, atrelada às imagens com pequena profundidade de campo e parte da área desfocada, além do movimento rápido de câmera em travelling, começam a sugerir um clima de tensão e provação extrema para Dora. A mesma sequência representa um dos momentos de maior destaque da banda sonora no filme – assim como para o personagem em sua quase morte. Já a intervenção musical, a partir da trilha extra diegética over, acontece muitas vezes na narrativa, especialmente com a repetição de fragmentos da música tema da referida obra. Para alguns autores, este uso constante e demasiado pode sugerir a aproximação ao gênero denominado melodrama. Toda a trilha musical é instrumental e não verbalizada. Central do Brasil tem uma montagem que busca trabalhar dentro de uma correspondência clássica, sincrônica e relativamente simples. O corte seco é aspecto técnico mais usual para se fazer as mudanças de plano. Há poucas exceções a esta regra construtora. Uma delas acontece no final da sequência em que Ana morre atropelada. A união desta referida sequência com a posterior é feita a partir do uso de um fade out. Neste caso, uma opção que pode ser defendida, uma vez que liga a imagem de Dora recolhendo o lenço de Ana, que está caído em frente à sua mesa de trabalho, a um momento de reflexão para o espectador a respeito do que seria feito com aquela criança. Assim, o fade out proporciona tanto a ideia de passagem de tempo, como de espaço para este suspense relativo ao futuro do menino e à possível ligação de Dora, evidenciada depois que ela recolhe e guarda, cuidadosamente, aquele adereço da mãe do garoto. A partir do fundo sólido preto há, na continuação da obra, um fade in no 255 qual o espectador começa a visualizar Josué cabisbaixo e chorando em um dos bancos da estação Central do Brasil, já no período da noite. Durante todo o filme, a relação de complementaridade entre imagem e som é uma constante, especialmente entre imagem e trilha musical. Apesar de, em vários momentos, alguns personagens se referirem ao passado e às suas memórias, na montagem não há o uso de qualquer flashback. Como foi dito antes a respeito do som, a sequência na qual Dora corre atrás de Josué entre a multidão de peregrinos também pode ser considerada o maior destaque apresentado pela montagem, especialmente no seu desfecho, no qual a câmera toma o lugar de Dora, apresentando ao espectador a visão subjetiva do personagem perdendo o sentido e desmaiando. Tal desfalecimento é minuciosamente apresentado a partir de uma montagem articulada em paralelismo a algumas ações tradicionais da festa religiosa. Sincronicamente, roda a cabeça e o pensamento de Dora, ao mesmo tempo em que alguns fogos de artifício são acesos e queimam, num movimento rápido e circular. Paralelamente, acelera-se o ritmo do rodopio dos fogos e também da cabeça de Dora. Quando o corpo da protagonista cai dentro daquela Casa dos Milagres, se assiste ao momento máximo da festa: o desvelamento da figura da santa no mastro de madeira, em meio à multidão que aplaude. A partir da subdivisão do filme em dois espaços narrativos principais, pode- se dizer que, no primeiro espaço, ou seja, da metrópole, predomina, na montagem e na encenação, um ritmo formal mais acelerado que é conseguido tanto pelo trânsito constante das pessoas, quanto pelo próprio tempo mais curto de exposição dos planos, orquestrado por um tipo de montagem mais seca. Já no sertão nordestino, apesar de o filme ganhar a aproximação ao road movie, mantendo os personagens também em constante movimento – na busca pelo pai de Josué –, o tempo de exposição dos planos é, de forma geral, mais longo e reflexivo, se comparado àquele primeiro espaço urbano. Assim, o ritmo torna-se consideravelmente mais calmo. Mais uma vez, a montagem dialoga claramente com a fotografia. Agora, passa a utilizar planos mais abertos, tanto para frear um pouco o ritmo, como para valorizar a ambientação externa do sertão – um tipo de valorização bem diferente daquela combativa e ideológica pregada pelo Cinema Novo Brasileiro. 256 “Não é um filme over. Quando se fala do sertão, você tem a impressão que já tem uma cavalhada, enfim, que você vai ver os espaços infinitos, a miséria infinita. Isso tudo se vê, mas não se vê como se fosse up, uma coisa histriônica. [...]. O filme não é partidário, não é engajado, não tem ideologias”.47 c) Sentido ideológico: A partir do trecho da entrevista de Fernanda Montenegro, explicitado acima, é possível perceber não apenas a interpretação da atriz sobre a obra, mas o posicionamento ideológico da equipe e do filme analisado. Formulado dentro das propostas advindas do cinema de Retomada, Central do Brasil mostra alguns dos problemas sociais pelos quais milhares de brasileiros enfrentam cotidianamente – como o analfabetismo, o transporte público de baixíssima qualidade, o tráfico de crianças ou a seca que, ainda hoje, obriga milhares de pessoas a migrarem de suas regiões. Esses problemas, no entanto, são evidenciados de uma forma bastante superficial ou evasiva. Mesmo a gravidade do tráfico de crianças ou as péssimas condições de trabalho dos professores são minimizadas. Na obra, tais problemas sociais apenas compõem os cenários nos quais a protagonista e o jovem Josué transitam. Desde o início do filme, não há a intenção de se aprofundar nessas questões mais polêmicas e combativas. Nesse sentido, o aspecto ideológico da obra mostra-se limitado. Entretanto, ainda que não abordados diretamente, essas questões e temas suscitados emergem da obra, constituindo uma base da realidade pragmática para a construção da trajetória da heroína. Enquanto um filme de caráter humanista e intimista, Central do Brasil, não busca tratar, em profundidade, os grandes nós sociais, mas, sim, duas situações particulares que se mostram intimamente entrelaçadas: a incansável procura de um menino pelo seu pai e a ressensibilização e recuperação de identidade daquela professora aposentada. Nesse sentido, como já dito, à medida que Dora decide efetivamente ajudar Josué a buscar seu pai, ela também é ajudada pelo menino a se reencontrar enquanto mulher e indivíduo – o garoto a torna heroína. A partir do exemplo desta heroína, o espectador pode refletir sobre o que ainda 47 Trecho da entrevista de Fernanda Montenegro no making of do filme Central do Brasil. 257 seria preciso mudar também em sua vida e o que seria necessário para que tais transformações possam acontecer. Aqui, o cinema abre mão da dimensão macro para trabalhar a reflexão a respeito daquilo que é micro, íntimo e pessoal. Ainda discorrendo a respeito das possíveis mensagens e ideias propostas pelo filme, torna-se pertinente relembrar um ciclo de nomes que desperta curiosidade na narrativa. Trata-se do idealizado pai de Josué, denominado Jesus, e de seus filhos Isaías, Moisés, além do próprio Josué. Claramente, faz-se uma associação de tais nomes a personagens bíblicos, do imaginário cristão. Analogamente, como Jesus, da Bíblica Sagrada, o personagem Jesus, do filme, é idolatrado, enunciado e evocado por Josué apenas pela influência daquilo que sua mãe dissera a respeito dele, ou seja, o menino constrói uma representação repleta de fé e esperança nas qualidades deste pai idealizado, confiando, permanentemente, em seu futuro encontro („Jesus voltará!‟). Todas essas características apresentadas por Josué também são encontradas nos cristãos que acreditam fielmente na existência de Jesus, conforme descrito na Bíblia Sagrada e no encontro com ele, a partir da instância conhecida como paraíso. Pode-se pensar que tais batismos de personagens não sejam um mero acaso, mas uma proposta realmente de construção análoga ao relato do principal livro cristão. Nessa medida, a procura advinda apenas da fé e da esperança daquele que crê poderia se relacionar à construção da sua própria identidade. 258 5.3 – Análise do filme Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro 5.3.1 – Informações fílmicas de base Título original: Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro. Sinopse: O destino da cidade do Rio de Janeiro e de Nascimento se cruzam em Tropa de Elite 2, quando suas obrigações de pai se chocam com as de policial. Mais maduro, estratégico e solitário, o agora Coronel Nascimento, faz o Bope crescer e coloca o tráfico de drogas de joelhos. Isto apenas para descobrir que na segurança pública do Rio de Janeiro, nada é o que parece. O sistema se reinventa e descobre como lucrar sem o intermédio do tráfico. Em perseguição ao caminho trilhado pelo sistema, Nascimento vai além dos limites do quartel, revelando as ligações da milícia com o Estado, e o preço por esta descoberta é alto: o inimigo agora é outro.48 Tema/subtema(s) do filme: a luta contra o sistema corrupto da segurança pública no Rio de Janeiro; a descoberta de novos criminosos dentro do corrupto sistema de segurança pública do Estado do Rio; a dificuldade para se combater os crimes dentro do corrupto sistema de segurança pública. Gêneros: ação, policial, drama. Ano de lançamento: 2010. Duração: 115 minutos. Faixa etária: 16 anos. Quadro de personagens, arquétipos e ações desenvolvidas: PERSONAGEM MÁSCARA / ARQUÉTIPO AÇÃO PRINCIPAL ATOR / ATRIZ Roberto Nascimento (Tenente Coronel da PM do RJ) herói Trabalhar pela segurança pública no Rio de Janeiro; Combater a criminalidade no Rio de Janeiro em várias instâncias; Wagner Moura 48 Retirada da capa do DVD do filme Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro. 259 André Matias (Capitão da PM) Mentor, arauto Dar conselhos e orientação ao herói; Chamar à mudança, motivar, promover a consciência do herói; André Ramiro Rosane (Ex-esposa) Mentora, aliada Ajudar o herói a manter sua relação com o filho; Promover humanização do herói, suavidade na narrativa Maria Ribeiro Rafael (Filho) Aliado Promover humanização do herói, suavidade na narrativa Pedro Van-Held Diogo Fraga (Deputado de esquerda) Camaleão, aliado Promover humanização do herói, suavidade na narrativa; Auxiliar o herói em uma mudança de pensamento; Oferecer espaço de fala para o herói; Chamar à mudança, motivar, promover a consciência do herói; Irandhir Santos Valmir Aliado Ajudar o herói em suas ações dentro da Secretaria de Segurança; Provedor de instrumentos ou serviços necessários para o herói Emílio Orciollo Neto Clara Vidal (jornalista investigativa) Aliada indireta Investigar e divulgar os crimes e atividades da milícia Tainá Muller Fortunato (Deputado estadual e apresentador de TV) Sombra Perseguir e combater o herói e seus aliados; Desafiar o herói e seus aliados André Mattos Fábio Barbosa (Coronel da PM) Camaleão Intrigar e confundir o herói Milhem Cortaz Rocha (Major da PM) Sombra Perseguir e combater o herói e seus aliados; Desafiar o herói e seus aliados Sandro Rocha Guaracy (Secretário de Segurança Pública do RJ) Sombra Perseguir e combater o herói e seus aliados; Desafiar o herói e seus aliados Adriano Garib Gelino (Governador do RJ) Camaleão Intrigar e confundir o herói Julião Adrião Beirada Sombra Combater o herói e seus aliados; Desafiar o herói e seus aliados Seu Jorge 260 Quadro do núcleo de criação: EQUIPE DE CRIAÇÃO PRINCIPAL EM TROPA DE ELITE 2 FUNÇÃO EXERCIDA NO FILME PROFISSIONAL Direção José Padilha Roteiro Bráulio Montovani, José Padilha Produção José Padilha, Marcos Prado Fotografia Lula Carvalho Direção de Arte Tiago Marques Montagem Daniel Rezende Som Alessandro Laroca, Eduardo Vermond Lima, Armando Torres Jr. Música Pedro Bromfman Quadro com dados de investimento e distribuição da película:49 RELAÇÃO ENTRE ORÇAMENTO E INSERÇÃO NO MERCADO DO FILME TROPA DE ELITE 2 Produtora executiva Zazen Produções Audiovisuais Cidade sede a produtora Rio de Janeiro Orçamento R$ 7.000.000,00 Distribuidora(s) Zazen Produções Audiovisuais Público oficial alcançado nas salas de cinema 11.146.723 espectadores Renda oficial a partir das salas de cinema R$ 103.461.153,7450 Nº de salas alcançadas: 763 5.3.2 – Introdução ao filme Tropa de Elite 2 O filósofo francês Jacques Rancière (1940-) é um dos defensores de que a arte e a política trabalham com a posição e o movimento dos corpos e com as funções da palavra. Ele argumenta que a arte não é política nem pelas 49 Dados conseguidos a partir de tabelas e demonstrativos disponibilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, disponíveis no site www.ancine.gov.br. 50 De acordo com relatórios do Observatório do Cinema e do Audiovisual da Ancine, Em 2010, o filme Tropa de Elite 2 conseguiu aglomerar 44% do público de filmes nacionais exibidos no país e 8% do público total das mesmas salas. Dados disponíveis em: www.oac.ancine.gov.br. 261 mensagens e sentimentos que transmite sobre a ordem do mundo, nem pelo seu modo de representar as estruturas da sociedade, seus conflitos e identidades. Todavia, “ela é política pela distância que toma em relação a essas funções, pelo tipo de tempo e de espaço que institui, pelo modo que recorta esse tempo e povoa esse espaço”. (RANCIÈRE, 2010, p. 20). Assim, a arte e a política não seriam realidades permanentes e separadas, mas estariam ligadas além de si mesmas, como mecanismos dos indivíduos em um espaço e um tempo. No caso deste estudo, o olhar se debruça sobre um objeto fílmico ou uma forma artística que, já em sua concepção, nasce para ser coletiva. Pensando especificamente em Tropa de Elite 2, vê-se uma obra que, previamente, foi idealizada para grande público ou para um cinema dito comercial – ainda mais depois do estrondoso sucesso de público do filme predecessor (Tropa de Elite, Brasil, 2007). Os seus mais de 11 milhões de espectadores, dentre aqueles oficialmente contabilizados, sugerem recordes de bilheteria nacional e diferenciais na forma de aproximação/sedução de público. Por que a história ficcional baseada na vida de um ex-comandante do Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro chamou tamanha atenção do público? Por que tantas pessoas se identificaram com o personagem do Coronel Nascimento? Buscando dialogar com Rancière (2005), verifica-se a crença do autor na separação entre ficção e mentira como mecanismo definidor da especificidade do regime representativo das artes. Assim, o real precisaria ser ficcionalizado para ser pensado. Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos historiadores e analistas da realidade social. (RANCIÈRE, 2005, p. 58). Nesse sentido, ele acredita que a política, a arte e os saberes constroem ficções ou rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre aquilo que se faz e o que se pode fazer. Rancière lembra que os enunciados 262 políticos fazem efeito no real, definindo modelos de palavras e de ação, como também regimes de intensidade e variações do sensível. Em 2010, houve uma extensa cobertura da mídia, especialmente a televisiva, a respeito de problemas relacionados à violência nos morros cariocas. Cabe ressaltar que a violência é, ainda hoje, uma das maiores preocupações indicadas nas pesquisas eleitorais do Brasil. Paralelo a esta cobertura midiática, acontecia o lançamento do filme Tropa de Elite 2 e sua enorme repercussão. Para o grande público, o Coronel Nascimento parecia incorporar uma espécie de voz disciplinadora que, há um bom tempo, já era desejada por muitos. A idolatria do personagem Nascimento começou ainda no primeiro filme e, mesmo o protagonista apresentando mudanças significativas com relação a determinados posicionamentos adotados em Tropa de Elite, o espectador que lotou as salas de cinema, se deixava levar pela figura daquele anti-herói trágico forte e implacável no combate ao “crime” e à violência. Não faltaram brinquedos, adereços e figurinos que exploraram comercialmente o personagem ou a simbologia opressora do Bope que, desde então, ganhou fama mundial. Quantas não foram as crianças que se vestiram de policiais do Bope para celebrar, contraditoriamente, com a fantasia que simulava um uniforme da instituição opressora, a festa mais popular e livre deste país: o carnaval... Para Rancière, polícia e política andam juntas e estão sempre em processo, ou seja, se metamorfoseando. E seria a partilha do sensível a responsável pelos limites entre um lado e outro. A polícia busca manter os lugares sociais pré-definidos e preencher os possíveis vazios da comunidade saturada. Neste ponto, a lei tenta dar conta da vida. Dessa maneira, todos aqueles que não se encaixam nas regras estabelecidas também não são contados dentro da ordem social e passam a ser conhecidos como a parte dos sem parte, representados por aqueles que não devem falar. Aqui, não se aponta para uma dicotomia entre ricos e pobres, mas, sim, àqueles que possuem ou não possuem lugar na política que rege sua própria vida. Em Tropa de Elite 2, o protagonista Coronel Nascimento recapitula, em uma de suas primeiras falas, como narrador em voice over, esta situação na prática de seu cotidiano: -“Eu dei muita porrada em viciado, esculachei muito policial corrupto, mandei um monte de vagabundo 263 pra vala, mas não foi nada pessoal. A sociedade me preparou para isso. E missão dada, parceiro, é missão cumprida”. A polícia, conceituada por Rancière, mantém a distância entre os mundos, delimitando o que pode ou não ser pensado e impedindo qualquer contestação contra o Estado ou as forças oficiais já estabelecidas. A ordem policial ainda prevê espaços de resistência e de participação controlada. Todas as ações policiais visam à segurança e ao consenso, ou seja, um quadro fixo de regras e interesses hegemônicos para impedir qualquer discussão. O consenso marca o confinamento de cada indivíduo no espaço a ele destinado, propondo assim um apagamento da política. Todos devem se perceber como iguais, incluídos. Não é simples analisar essa polícia explicada por Rancière através do filme Tropa de Elite 2. Na obra de José Padilha, a polícia apresentada é extremamente corrupta e representa muito mais um poder paralelo do que o poder do Estado. Grande parte dos seus representantes apenas se utiliza dos privilégios, informações e aberturas alimentados pelo cargo público para cometer todo tipo de crime e abuso de poder. Tudo em prol do acúmulo de capital e mordomias. A polícia do filme age de forma corporativa, não para defender os interesses do Estado, mas, sim, caprichos e desejos particulares. Com exceção de Capitão Matias e do Coronel Nascimento, praticamente os demais personagens do elenco principal que compõe a polícia querem lucrar a partir das “brechas” encontradas no órgão policial, constituindo outro “sistema”. Todavia, através da “política verdadeira” (diferente da maior parte das ações empregadas como tal no filme) encontra-se uma exceção a esta regra policial, que sugere a igualdade de todos. Nela, os sem parte ganhariam uma oportunidade de fala. A política é entendida por Rancière como uma verificação constante da justiça e da igualdade propostas. Há, assim, uma imprevisibilidade recorrente na qual os sujeitos estão sempre repensando seu modo de atuação. Vale lembrar que, em Tropa de Elite 2, é a força que representa a polícia que se reorganiza constantemente, a fim de manter seu lugar e privilégios dentro de um poder oficialmente constituído e, a partir desta lacuna, promover todo tipo de quebra das leis de direito. Na obra de José Padilha, os principais representantes do Estado e da polícia também estão no centro de um poder 264 paralelo que poderia ter sido iniciado em uma brecha permitida ou um espaço vazio e que, no presente fílmico, é evidenciado como grande mandatário do espaço carioca e das articulações criminosas. Nos estudos de Rancière, a política é o suplemento dos sem parte, forma de dissenso, comunidade de partilha. Ela é vista como cena de tratamento de um dano e demonstração da igualdade, que pretende a renovação dos atores e suas formas de ação. A política, de fato, não é o exercício do poder ou a luta pelo poder. É a configuração de um espaço específico, a partilha de uma esfera particular de experiência, de objetos colocados como comuns e originários de uma decisão comum, de sujeitos reconhecidos como capazes de designar esses objetos e argumentar a respeito deles. (RANCIÉRE, 2010, p. 20). Rancière tem no desentendimento o centro de sua teoria política. Analisando a mesma, Ângela Cristina Salgueiro Marques (2011) afirma que o diálogo político não pode se perder entre a racionalidade comunicativa e a violência irracional. A política precisa contemplar também a relação que se estabelece entre os interlocutores, além da configuração da própria situação de interlocução. [...] Interessa-lhe, assim, uma cena na qual se colocam em jogo a igualdade ou a desigualdade dos parceiros de conflito enquanto seres falantes. (MARQUES, 2011, p. 124). A luta política, para Rancière, seria a luta para que uma voz seja ouvida e reconhecida como a voz de um parceiro legítimo. Na opinião de Ângela Marques, a formação de uma comunidade política dissensual está associada à maneira como os indivíduos experimentam acontecimentos com potencial para explicar divisões e fronteiras e que ainda possam reconfigurar uma forma de partilha/divisão da realidade que seja limitadora da comunicação entre aqueles que estão excluídos do discurso. A comunidade política requer ações comunicativas, estéticas e políticas que permitam a constituição de situações enunciativas nas quais os sujeitos possam questionar uma forma dominante de 265 registro e imposição de um “comum” e, ao mesmo tempo, ter a possibilidade de opor um mundo comum a um outro. (MARQUES, 2011, p. 127). No desentendimento exposto por Rancière, a ordem guardada pela polícia é colocada em debate. O dissenso questiona o modo como vemos o mundo, o enquadramento em que somos arbitrariamente colocados e também provoca mudança de posicionamento e condicionamento dos corpos envolvidos. Ele procura identificar onde estariam os intervalos e brechas entre os universos particulares e, ao mesmo tempo, colocar estes diferentes comuns em contato. Dessa maneira, a política seria a constituição de um lugar comum – que pode não ser igual para todos. Na perspectiva de Rancière, a partilha do sensível propõe um rearranjo do visível, uma reconfiguração do comum. Pode-se perguntar: qual o pensamento deve ou pode ser pensado e quem pode fazê-lo? Difícil resposta a esta interrogativa. O conceito de partilha do sensível, exposto por Rancière, sugere um sistema de evidências que revela, de forma paralela, tanto um lado comum partilhado, quanto vários recortes que vão definir lugares e partes exclusivas. Para ele, a distribuição e redistribuição dos lugares e das identidades, bem como o corte e recorte dos espaços e dos tempos, de instâncias visíveis e invisíveis constituem a partilha do sensível. Esta última torna explícito quem pode tomar parte no comum, em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que esta atividade acontece. O mundo comum, nessa concepção, é sempre uma distribuição polêmica das maneiras de ser e das ocupações num espaço de possíveis. “Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha” (RANCIÈRE, 2005, p. 15). Dessa maneira, é possível relacionar o Tenente Coronel Nascimento ao artesão explicitado por Platão. Ambos não puderam/podem participar do comum porque não tem tempo para se dedicar a outra coisa que não seja o seu trabalho. Essa falta de tempo os impede de se tornar animais falantes e, em última 266 instância, animais políticos. Assim, a ideia de trabalho, para Rancière, refere-se a uma impossibilidade de fazer outra coisa, devido à ausência de tempo. O trabalho passa a ser visto como um encarceramento do trabalhador no espaço-tempo privado, promovendo a exclusão do indivíduo da participação ao comum. Esse homem só teria voz para indicar prazer e dor. Ranciére argumenta que o político é configurado na demanda por justiça. É exatamente a política que pode reconfigurar a partilha do sensível, que define o comum em uma comunidade. Em última instância, a política tem o poder de incluir nesta partilha novos sujeitos e objetos e tem a possibilidade de tornar visível àquilo que antes não era visto ou fazer ouvir palavras antes não percebidas. Neste ponto, o pensamento de Rancière pode tocar parte das ações desenvolvidas pelo Tenente Coronel Nascimento. Pensando nos minutos finais da trama, quando o personagem assume temporariamente a tribuna da fictícia Câmara Legislativa do Rio de Janeiro, pode- se mirá-lo não apenas como um homem que está dando um depoimento sobre inúmeros crimes cometidos pela força policial (conceito e não apenas instituição), mas também como um indivíduo que, antes, não possuía voz e que, agora, passa a ser ouvido. Ele se torna visível e propõe uma renovação de cena, uma desidentificação com parte dos nomes atribuídos e promove o aparecimento de uma nova voz. Suas palavras, antes opressoras, ganham uma nova função: libertadora da mensagem naquele novo momento decodificada e, em última instância, dele mesmo, enquanto indivíduo falante. Na cena anterior à Câmara Legislativa, o próprio personagem sugere isso quando se antecipa, dizendo que, a partir daquele instante, iria “continuar lutando, mas de um jeito diferente”. A partir do momento em que ele decide pelo uso da palavra em vez das costumeiras armas de fogo e ganha voz naquela tribuna, é possível acreditar que Nascimento chegue a constituir um mecanismo de dissenso, uma vez que, efetivamente, ele deixa de acreditar e defender a Polícia Militar do Rio de Janeiro, chegando, inclusive, a sugerir, na mesma tribuna, o fim da referida instituição. Além disso, expõe a grande mazela da corrupção existente também nas relações políticas dos mandatários daquele Rio de Janeiro ali representado. Assim, com o apoio do Deputado Diogo Fraga, ele sugere uma contestação ampla e profunda que toca o próprio processo de constituição política. 267 Contudo, na visão de Rancière, a política seria a tentativa de desestabilizar os modos de entendimento e percepção instituídos. A principal função da política seria a de reordenar e reformar o lugar da polícia. Pelo pensamento deste autor, a política é rara, difícil de acontecer, um momento de exceção. Para ela se manifestar, seria preciso que um grupo à margem se nomeasse como sujeito, se entendendo e constituindo como povo. No filme, apesar de se perceber que há um momento significativo de exceção na postura do Coronel Nascimento, ao propor uma luta pela palavra – prática até então distante do seu cotidiano de ação e enfrentamento direto pela força – pode-se afirmar que o personagem ainda não quer efetivamente fazer política. Seu real desejo é eliminar os sujeitos corruptores do sistema político vigente e contribuir para a manutenção do mesmo, com as devidas alterações necessárias. Contrariamente a esta posição, Rancière defende que a luta política não é apenas um debate de múltiplos interesses. A argumentação é pensada como a construção de um espaço paradoxal que coloca juntas realidades distintas. Ele alega que a política envolve a transformação do próprio sujeito. Pensando a partilha do sensível, Jacques Rancière propõe novas relações do visível, do lugar das coisas e da ordem do discurso, ou seja, dos lugares em que as pessoas ocupam na sociedade. Ele aponta em direção a algumas questões fundamentais, tais como: Quem define o que vira discurso? Quem enuncia os discursos? O autor defende que política se faz através de cenas, ou seja, perspectivas que rompem com o real, promovem a ficção, a máscara. Em Topa de Elite 2, encontram-se diversas máscaras que vão desde o policial corrupto até o governador do estado do Rio de Janeiro que representa o centro do poder instituído naquele estado e, ao mesmo tempo, corrompe a própria instituição, estabelecendo relações apenas para seu proveito próprio. Uma cena extremamente representativa desse tipo de máscara durante o filme mostra o então apresentador do programa de TV Mira Geral, Fortunato, defendendo a guerra contra os bandidos, enquanto o governador do Rio de Janeiro, Gelino e a equipe da Secretaria de Segurança Pública assistem ao referido programa pela TV, rindo e elogiando o trabalho do parceiro. A visualização do programa só é interrompida quando o governador é chamado para vistoriar o material de sua campanha política – sua maior prioridade. 268 No filme, a posição evidenciada como majoritária refere-se à interpretação das cenas e ações oferecida pela mídia. Dentro dos jogos de cena das autoridades, a instituição mais temida é a imprensa. Observa-se isso em vários fragmentos, especialmente na cena na qual o Tenente Coronel Nascimento é tratado como herói no restaurante por parte da população inclusa na pólis. Em contrapartida, outra cena que também chama a atenção pela interferência da mídia nas máscaras sociais é aquela que retrata o capitão Matias sendo transferido para um batalhão de policiais corruptos e, ao se sentir injustiçado, resolve ir contra o Estado/poder instituído, relatando problemas do mesmo para uma jornalista. Com a participação da imprensa promovendo esta cobertura, o resultado não é dos melhores para o militar insatisfeito: Matias ganha 30 dias de cadeia para relembrar a prática do consenso policial. Além de Jacques Rancière, outro pensador que oferece subsídios de aproximação com este objeto é Giorgio Agamben. No texto “Meios sem fim” (2000), este autor define aquilo que ele denomina de soberano como aquele indivíduo que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Ele seria o exemplar humano que, estando dentro da lei, poderia sair dela e determinar a exceção. Nesse sentido, haveria uma lei em potência, ou seja, uma suspensão da lei que leva à exceção, todavia inclusa dentro da lei. Aqui, o estado de direito e o estado de natureza perdem seus limites e ficam indiscerníveis. Reapropriando esta ideia de soberano e empregando-a em uma aproximação ao filme Tropa de Elite 2, pode-se pensar que personagens, como o governador do Rio de Janeiro e o major Rocha, retratem fragmentos desta conceituação em esferas mais delimitadas de espaço. Ambos fazem parte do regime instituído e mantenedor das regras e da “distância entre os mundos” e, ao mesmo tempo, participam de um sistema fora da lei, para benefício próprio. Diferentemente do soberano tratado por Agamben, em Tropa de Elite 2, esses personagens não precisam de uma situação inusitada para determinar a exceção e sair da lei. Tal prática é vista como uma constante no seu cotidiano. Eles se denominam verdadeiros “donos” de determinados espaços públicos ou privados de seus interesses e promovem qualquer tipo de ação para conseguir o que desejam. 269 O desfecho do filme de Padilha remete à ideia de gesto, também exposta por Giorgio Agamben. Por este conceito, o autor entende como “a esfera não de um fim em si, mas de uma medialidade pura e sem fim que se comunica aos homens. [...] O que caracterizaria o gesto seria o fato de que nele não se produz, nem se age, mas se assume e suporta.” (AGAMBEN, 2008, pp. 13 e 12). Essa “finalidade sem fim” representa a potência do gesto que o interrompe no seu próprio meio. Assim, na sua essência, o gesto é sempre gag, ou seja, aquilo que não pode ser dito. Nesse sentido, pode-se relacionar o pensamento de Agamben à última narração em voice over feita por Nascimento, na qual ele questiona o próprio espectador sobre a manutenção do “sistema” de valores da polícia (trabalhada por Rancière) e a dificuldade de se agir sobre o mesmo. -“Agora me responde uma coisa: quem você acha que sustenta tudo isso? É, e custa caro, muito caro. O sistema é muito maior do que eu pensava. Não é à toa que os traficantes, policiais e milicianos matam tanta gente nas favelas. Não é à toa que existem as favelas. Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília, que entra governo, sai governo e a corrupção continua. Pra mudar as coisas, vai demorar muito tempo. O sistema é foda. Ainda vai morrer muito inocente”. No filme, esta última fala de Nascimento é apresentada com uma fotografia que promove um sobrevoo, em plano geral, da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e, aos poucos, vai se aproximando da edificação que abriga a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Quanto mais próximo dos prédios, o ritmo da batida imposta pela trilha musical de fundo vai diminuído e, ao mesmo tempo, a velocidade desse sobrevoo também declina, podendo sugerir a lentidão, morosidade que seria qualquer ação contra este poder instituído. Dessa maneira, dialogando com o gesto conceituado por Agamben, a situação exposta na cena descrita pode ser entendida como um caminho sem fim, uma ação que nunca será concretizada porque, no seu íntimo, é apenas potencialidade de um dia ser a ação aspirada. Entretanto, é importante ressaltar que, apesar das muitas aproximações tratadas entre o mundo da polícia e da política no filme, o diretor José Padilha defende que sua obra tem como temática principal outra questão: a violência urbana. 270 “Eu fiz três filmes sobre violência urbana. O primeiro foi Ônibus 174, que fala sobre a vida de Sandro Nascimento, que era o sequestrador do ônibus. Este primeiro filme é o Estado criando criminosos violentos. O segundo filme, Tropa (Tropa de Elite 1), é o Estado criando policiais corruptos e violentos. O terceiro filme, o Tropa 2, fala sobre porque isso acontece. Porque o Estado é tão mal administrado a ponto de fazer as duas coisas”.51 5.3.3 – A configuração/construção do herói O Tenente Coronel Carlos Nascimento (interpretado por Wagner Moura) é protagonista do filme Tropa de Elite 2. No início da obra, ele é o Comandante do Bope – Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro. Contudo, após comandar a invasão da penitenciária Laércio da Costa – conhecida como Bangu 1 –, resultando em vários detentos mortos, acaba sendo transferido de setor e cargo de trabalho, tornando-se subsecretário de inteligência da Secretária de Segurança Pública do Rio de Janeiro (este episódio na penitenciária será discutido posteriormente). Doze anos depois da temporalidade registrada no primeiro filme, Tropa de Elite, Nascimento já começa apresentar algumas marcas dos seus anos de vida, como os cabelos grisalhos. Na nova trama, ele tem cerca de 40 anos de idade. Fisicamente, ainda se mostra um homem forte, bastante ativo e tecnicamente habilidoso nas artes de defesa pessoal. Tais características podem ser observadas tanto no treino de judô com o filho Rafael, como na sequência na qual ele dá uma surra no então deputado corrupto Guaracy. Socialmente, Nascimento é uma pessoa extremamente reservada e de pouquíssimos amigos. Depois do término do seu casamento com Rosane, seu ciclo de pessoas próximas se tornara ainda mais restrito. No ambiente militar, uma das poucas pessoas que ele demonstra confiança é o Capitão Matias. Contudo, após a ação de Bangu 1, Matias é tomado como bode expiatório do Governo, sendo expulso do Bope e indo parar em um quartel de corruptos. 51 Trecho da entrevista do diretor José Padilha no making of do filme Tropa de Elite 2. 271 Sabendo da promoção de Nascimento para Subsecretário de Inteligência, Matias acaba se afastando dele. Fora do ambiente de trabalho, Nascimento tem conversas esporádicas e pouco afetuosas apenas com sua ex-mulher, em lugares públicos, como cafés bastante impessoais. Apesar de não demonstrar ostensivamente seus sentimentos, ele deixa algumas pistas de que ainda gosta dela. Em um desses poucos encontros, ela chega a alertar Nascimento sobre seu distanciamento com seu filho Rafael, alegando que poderá perder a amizade dele para sempre. A relação de pai e filho se encontra muito abalada, uma vez que Rosane teria um novo relacionamento com o intelectual de esquerda Diogo Fraga. Dessa forma, os ideais defendidos pelo padrasto Fraga confrontam diretamente o modo de vida profissional de Nascimento. Curiosamente, no filme, não há qualquer cena na qual Nascimento seja mostrado em um momento de satisfação pessoal. E é exatamente assim que ele parece ter vivido boa parte dos 21 anos dedicados à Polícia Militar do Rio de Janeiro. Uma de suas poucas alegrias demonstradas no filme também se refere ao lado profissional: uma grande ampliação do Bope que transformara o Batalhão em uma máquina de guerra. O tempo todo ele demonstra ser um militar extremamente fiel ao Bope que, pare ele, é símbolo de integridade, honestidade e justiça. Mesmo sem usar farda, na maior parte do filme, seu modo de agir continua intenso e, muitas vezes, ambíguo. O Tenente Coronel Nascimento é visto como um homem sério, autoritário, que combate o crime organizado de maneira implacável. Na maioria das vezes, sua missão sempre é mais importante do que seus problemas pessoais. Ele mesmo chega a relatar esse posicionamento, em voice over, a respeito da sua relação com as três pessoas que lhe são mais próximas e queridas. -“Meu filho tinha medo de mim, a Rosane me achava um fascista, o Matias me considerava um traidor. Eu tinha que ficar deprimido, parceiro. Só que eu não fiquei. A minha missão era mais importante do que os meus problemas pessoais”. A única exceção a esta regra de conduta, que prioriza sempre o lado profissional, se apresenta quando o seu filho se torna alvo do sistema. Psicologicamente, Nascimento é afetado pela solidão vivida, principalmente, no seu escuro e frio apartamento. Nunca há ninguém com ele 272 neste ambiente. Assim, é possível pensar que as lembranças e memórias, tanto da ex-esposa, como do filho, devem ecoar de maneira vertiginosa naquele lugar. Além disso, durante a narrativa, há três grandes fatores que vão mexer significativamente com o Tenente Coronel. O primeiro deles é a morte do companheiro de sua confiança, o Capitão Matias. O segundo fator refere-se ao momento em que ele consegue montar as peças que faltavam do quebra-cabeças do crime organizado no Rio de Janeiro, entendendo que, tanto a Polícia Militar, como o próprio Governo estavam diretamente envolvidos. Contudo, é o terceiro fator que vai abalar definitivamente Nascimento: a internação de seu filho em estado grave, após ter tomado um tiro, em uma tentativa de assassinato do deputado estadual Diogo Fraga. A cena em que Rafael está desacordado na cama do fictício hospital Beneditino é o único momento de toda a trajetória de Nascimento em que o espectador o vê chorando em prantos, por conta da situação do filho. O conflito principal do herói acontece no âmbito profissional. Ele pode ser visto a partir do momento em que Nascimento descobre (tardiamente) que tudo aquilo que pensava e acreditava a respeito da Polícia Militar e da segurança pública no Rio de Janeiro estava errado. Ao divisar que praticamente todas as instituições de poder constituído também estavam ligadas ao crime organizado, ele perde boa parte da sua base de crenças e valores. Dessa forma, precisa, muito rapidamente, buscar outras maneiras de combate. Nascimento também enfrenta conflitos de cunho pessoal. A partir de uma de suas primeiras falas em voice over, o espectador descobre que sua grande incompletude é de origem externa, porém, com reflexos profundos no seu lado interior. Trata-se do rompimento do seu matrimônio com Rosane, por conta de sua dedicação abnegada ao Batalhão e ao combate ao crime. O fim do casamento com Rosane também teria contribuído para que ele se distanciasse do seu filho Rafael, por quem demonstra grande amor no trecho final da película. Para piorar essa incompletude de Nascimento, a ex-esposa acaba se casando novamente com um intelectual de esquerda que vive combatendo ideologicamente o comportamento do militar. Formado a partir de uma visão militar muito rígida, Nascimento, inicialmente, pode parecer um personagem plano, ou seja, com poucas 273 mudanças. Contudo, nesta investigação, defende-se a complexidade e evolução ou significativa transformação deste personagem em Tropa de Elite 2. Ele precisa rever boa parte dos seus conceitos, tanto a respeito da vida profissional, como da pessoal. Aqui está seu principal ponto de superação: a quebra desses paradigmas, antes tão defendidos e tomados como base por ele. Nesta trajetória a caminho da revisão, ele apresenta muitas falhas, as quais vão torná-lo bastante humanizado e também facilitar sua identificação com o grande público alcançado pela obra. É preciso salientar que sua complexidade também pode ser interpretada no sentido que, nesta obra, Nascimento não representa um bem puro, idealizado. Na verdade, ele é uma grande mistura na qual se encontra uma proposta moral que busca sempre fazer o “bem”, no sentido de promover a segurança pública e a paz social, mas que acaba por também praticar atos de violência e uso excessivo da força. Como o próprio diretor José Padilha afirma, em algumas entrevistas, o código de ética de Nascimento é “torto”. Nele, não há condescendência com a desonestidade, mas se admite a tortura. Em uma reportagem para a revista Veja, o professor de história da Universidade Federal de São Carlos, Marco Antonio Vila, defende que, “como o Estado falha na segurança, nós, que somos vítimas, temos a tendência de buscar soluções personalizadas, individuais. Nascimento dá vazão a essa ânsia por soluções imediatas. Ele é um justiceiro do século XXI brasileiro”.52 Ainda refletindo sobre o significado social do Tenente Coronel Nascimento, no filme Tropa de Elite 2, o verdadeiro comandante do Bope, Tenente Coronel Paulo Henrique Moraes também acredita na complexidade e perigosa dualidade existente dentro do mesmo personagem. Para ele, Nascimento: “Significa o ideal de justiça do povo. Ele quer pessoas que trabalhem obstinadamente. O Nascimento é paradoxal e exagera em seus comportamentos, mas é, acima de tudo, um idealista. E isso atrai a simpatia da população. Ele deixa a vida pessoal e os problemas familiares de lado, se dedica e se expõe a risco para enfrentar um sistema corrompido”.53 52 Trecho da entrevista de Marco Antonio Vila contido na reportagem retirada da Revista Veja, Edição 2190, publicada em 10 de novembro de 2010. 53 Trecho da entrevista de Paulo Henrique Moraes contido na reportagem retirada da Revista Veja, Edição 2190, publicada em 10 de novembro de 2010. 274 Nascimento não luta apenas por uma pessoa. Diariamente, ele se dedica, integralmente, a combater o crime organizado. Apesar de ser um homem de guerra, conforme ele mesmo se define, trabalha na busca da paz e de uma real segurança pública – mesmo que descubra o quão utópico possa ser este conceito em determinados lócus. Ele trava uma verdadeira batalha contra quase todos ao seu redor, na tentativa de defender a população do Rio de Janeiro. Entre os poucos amigos próximos a Nascimento, pode-se reconhecer o Capitão Matias como seu maior mentor. Na trama, o discípulo de antes (no primeiro filme) começa a ensinar ao mestre. Neste caso, o principal ensinamento de Matias será a desconfiança a respeito do novo ciclo profissional em que Nascimento estará entrando. Além disso, ele demonstra uma grande indignação para com o comportamento de abandono do Governo em relação ao Bope e aos policiais que estão na linha de frente contra o crime organizado. Do ponto de vista pessoal, a ex-esposa Rosane também chega a atuar como mentora, orientando Nascimento a se reaproximar de seu filho. Como dito, o Tenente Coronel Nascimento tem poucos amigos. Entretanto, os 21 anos de carreira como policial militar fizeram com que ele constituísse uma lista enorme de inimigos. Em Tropa de Elite 2, essa lista parece ter aumentado significativamente, sendo até difícil determinar qual seria o pior deles. Contudo, é possível acreditar que o mais temido e violento deles seja o Major da Polícia Militar, Rocha, que, na verdade, tem essa profissão apenas como fachada para manter sua principal fonte de renda como chefe da milícia que controla a parte oeste da cidade do Rio de Janeiro. Além deles, entram na lista de inimigos de Nascimento: o apresentador de TV e Deputado, Fortunato; o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Guaracy; o Coronel da PM, Fábio Barbosa; o Governador do Rio de Janeiro, Gelino; o Deputado Diogo Fraga; o traficante Beirada. Curiosamente, para o grande público – que lotou as salas de cinema de todo país, fazendo do filme o grande recordista de bilheteria da cinematografia brasileira –, este protagonista se tornou muito especial. Contudo, a torcida ou identificação para com este personagem não significa que essas pessoas endossem todos os seus atos. Sua aclamação pelo público pode ser vista como 275 reflexo (preocupante) do grave problema de insegurança e descrédito na justiça pelo qual vive a sociedade brasileira. Atualmente, em boa parte do Brasil, este tema é motivo de preocupação e medo – e, por vezes, delírio, levando, inclusive, muitos cidadãos ditos “de bem” a cometerem crimes, como linchamentos. Para os jornalistas e críticos de cinema Bruno Meier e Jerônimo Teixeira (2010), que fizeram uma grande reportagem sobre o filme, apresentando Nascimento como um questionável “super-herói brasileiro”, em uma das revistas de maior circulação do país, “a aclamação a Nascimento vem, em grande parte, de um legítimo anseio comum aos brasileiros de bem, de qualquer região ou classe social: todos querem circular pelas ruas de sua cidade sem medo do assédio da bandidagem, e desejam que essa segurança seja garantida por uma polícia impecavelmente honesta, gerida por homens públicos probos. Nascimento é irredutível em seu repúdio à corrupção, seja ela praticada pelo soldado da PM ou pelo Secretário de Segurança do Estado. E essa pureza brutal faz dele um verdadeiro herói nacional. [...] Tropa de Elite 2 consagra o tenente-coronel Nascimento, como o exemplo de policial honrado que todos os brasileiros gostariam de contar”.54 Aqui, parece importante salientar que a imprensa, a partir da divulgação excessiva e incisiva de inúmeros e macabros acontecimentos relacionados ao crime e à violência, também possui sua parcela de culpa nesta terrível mazela social. Contudo, de volta ao protagonista em estudo, ao contrário do herói clássico benévolo, Nascimento se apresenta como um tipo de herói extremamente pragmático, pós-romântico e moderno, assumindo suas fraquezas, apresentando diversos conflitos interiores e também se mostrando em crise com o meio social no qual está inserido. Todas essas características fazem com que ele possa ser considerado um anti-herói. Conforme delimita Christopher Vogler (2006), o anti-herói não designa o oposto do herói, mas um tipo especial de herói que pode apresentar-se como “marginal” ou “vilão” do ponto de vista da sociedade. Na concepção de Vogler, haveria dois tipos de anti-heróis. No primeiro, os personagens se comportam de modo muito semelhante aos heróis convencionais; porém, apresentando um forte 54 Trecho da reportagem retirada da Revista Veja, Edição 2190, publicada em 10 de novembro de 2010. 276 cinismo ou algum tipo de ferida. Muitas vezes, são homens honrados que se retiraram da corrupção da sociedade e, agora, atuam à sombra da lei. Já no segundo tipo de anti-herói, os personagens são figuras centrais da trama e nem sempre são admirados ou despertam amor. Alguns deles podem promover ações que o espectador chega a deplorar. De uma forma geral, este segundo tipo de anti-herói se aproxima mais da ideia clássica do herói trágico, ou seja, heróis com defeitos, que nunca conseguem ultrapassar seus demônios íntimos, e que são derrotados ou destruídos por eles. Analisando essas características, é possível fazer uma clara aproximação do Tenente Coronel Nascimento a este segundo tipo de anti-herói delimitado por Vogler, ou seja, ao herói trágico. Assim, durante este estudo, todas as vezes que Nascimento for referido como herói se reportará exatamente a esta tipologia agora explicitada, ou seja, anti-herói ou mesmo herói trágico. O próprio ator Wagner Moura, que interpreta o Tenente Coronel Nascimento, compreende o personagem, defendendo-o sob tal perspectiva: “Nascimento é um herói trágico. Nos dois filmes, ele caminha, inexoravelmente, para um destino trágico. Neste segundo, ele vai se transformando ao longo do filme. [...] Nascimento, neste filme, é um personagem muito mais consciente do que o que ele era no primeiro filme. Ele sendo narrador do filme... se o narrador do filme é mais consciente, consequentemente o espectador vai receber uma mensagem mais profunda do que ele tinha, do que ele recebeu no primeiro filme. Eu acho que, agora, a gente tem um personagem mais maduro”.55 Apesar de ser muito autoritário – até mesmo com os amigos, como o capitão Matias – e usar de qualquer artifício na sua luta implacável contra os bandidos e os políticos corruptos, este anti-herói acabou conquistando o grande público brasileiro. Pode-se pensar que um dos inúmeros motivos a ajudar nesta grande identificação para com o espectador tenha sido o fato de uma parcela significativa da população ter visto em Nascimento não um “super-herói” com incríveis poderes, mas, sim, uma pessoa próxima de si, um tipo comum, com inúmeros problemas e incongruências; porém, conseguindo fazer o que sempre 55 Trecho da entrevista de Wagner Moura retirada do making of do filme Tropa de Elite 2. 277 desejaram: dar uma grande lição em bandidos ou corruptos que assolam o país – infelizmente, independente da força ou dos meios usados para isto. De uma maneira muito pessoal, Nascimento demonstra o desejo de conquistar a confiança e amizade de seu filho. Em alguns instantes em que a narrativa trata de seus problemas pessoais, ele parece bastante frágil e humanizado. Mesmo que seu discurso seja outro, a necessidade de algum tipo de estrutura familiar parece também atormentar o Tenente Coronel – o que, neste sentido, o aproximaria do herói já analisado Lamarca. 5.3.4 – A narrativa audiovisual em Tropa de Elite 2, a partir dos 12 estágios da Jornada do Herói: a) Mundo Comum: Em Tropa de Elite 2, o protagonista Tenente Coronel Nascimento já é mostrado dentro do mundo especial, ou seja, dentro do espaço de aventuras. Cotidianamente, por dever do ofício que ele defende de forma abnegada, enfrenta o crime organizado do Rio de Janeiro. Durante o filme, não há qualquer menção sobre sua vida pregressa à Polícia Militar ou àquilo que ele fazia antes. Nem mesmo no filme antecessor, Tropa de Elite, há qualquer referência neste sentido. Contudo, para esta análise, o filme Tropa de Elite 2 foi dividido em duas partes. Assim, o mundo comum de Nascimento é entendido como aquele no qual ele vive antes de ir trabalhar na Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. Esta interpretação também encontra lugar na medida em que o Tenente Coronel estará enfrentando, conforme o próprio título da obra alerta, uma realidade e um tipo de inimigo até então bastante desconhecido ou ignorado por ele. Pensando dessa forma, o mundo comum de Nascimento, como comandante do Bope, é representado por um dia-a-dia de outros perigos. O comum, para ele, seria representado pelos enfrentamentos diretos a todo tipo de facção criminosa do Rio de Janeiro. Um cotidiano repleto de armas, tiros e conflitos. Um bom exemplo desse tipo de combate acontece durante o conflito em Bangu I. Contudo, diferentemente da primeira película, aqui, desde o início, o Tenente Coronel 278 Nascimento se mostra muito mais como o articulador da ação do Bope do que, propriamente, aquele policial que está na linha de frente com os bandidos. Em meio àquele cenário caótico dominado pelos presos, Nascimento troca as armas de grosso calibre pelo rádio ou telefone, com o qual busca orquestrar o trabalho de sua equipe tática. Nesse sentido, ele já antecipa ao espectador que, em Tropa de Elite 2, sua principal arma contra os bandidos deve ser outra: a comunicação. Nas mãos do protagonista, este tipo de aparelho comunicador concede a ele uma conotação de personagem menos violento (Fotograma 28). A partir daí, inicia-se o desvelamento de pistas referentes ao chamado de uma nova aventura. Fotograma 29: Nas mãos de Nascimento, o telefone celular substitui as armas. b) Chamado à aventura: Analisando o mundo comum de Nascimento sob a perspectiva apresentada, é possível dizer que seu chamado à aventura acontece depois, e também como resultado, da ação realizada na penitenciária Bangu I. Com a morte de vários presos e a ampla divulgação do caso, a partir da fala incisiva e também política de Diogo Fraga, nos diversos veículos midiáticos, o Governo do Estado do Rio de Janeiro decide punir os dois oficiais envolvidos, ou seja, o Tenente Coronel Nascimento e o Capitão André Matias. Contudo, a cúpula do Governo do Estado do Rio de Janeiro esquece um detalhe importante: a identificação de uma grande camada da população para com o Tenente Coronel, a partir do seu combate implacável ao crime. 279 Em uma sequência no Bope, Matias dialoga com Nascimento, afirmando que ele deseja assumir a culpa do ocorrido sozinho, mas o Tenente Coronel, de maneira muito corporativa, defende o subordinado, alegando que o comando é dele e, nesta medida, a culpa também. Matias, já antecipando sua função de mentor, ainda tenta convencer Nascimento a chamar a imprensa e relatar todos os desmandos e abandono do Bope por parte daquele governo. Entretanto, para Nascimento – um homem de ação direta –, colocar a imprensa no meio dessa briga seria “foder com o Batalhão.” Assim, ele mesmo decide assumir a culpa pelo que acontecera e vai sozinho enfrentar aqueles superiores hierárquicos que o estão evitando. A identificação dos cidadãos do filme, especialmente da classe média, para com o Tenente Coronel pode ser evidenciada na continuação da sequência na qual Nascimento chega, de surpresa, para conversar com o comandante geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Formoso, enquanto ele almoça com Guaracy e o publicitário do Governador do Estado. Antes mesmo de o espectador visualizar a chegada de Nascimento, ele já escuta, ainda na ambientação do Bope, o áudio em off de uma apresentadora de TV que está relatando o caso e a decisão do Governo do Rio de Janeiro sobre o mesmo. Em seguida, é possível observar, em um plano detalhe de dois aparelhos de TV, a continuação do referido áudio, agora sincronizado à imagem da apresentadora. No mesmo enquadramento, também é possível perceber algumas pessoas transitando pelo local e também sons diegéticos in e off de talheres e pratos. No plano seguinte, se vê a ambientação do restaurante classe média em que os três personagens almoçam e deliberam sobre a punição de Nascimento. Eles estão confortavelmente sentados, tomando seus respectivos uísques. Quando Nascimento adentra aquele espaço, se vê um plano de baixa profundidade de campo, no qual somente parte das costas e nuca deste protagonista está em foco. Todo o restante do restaurante encontra-se sem nitidez, podendo sugerir um pouco da visão distorcida do protagonista naquele momento. Afinal, ele está com raiva, por conta de seu superior não querer conversar sobre as providências que irão tomar a respeito da repercussão negativa da ação em Bangu I. Durante toda a sequência, a câmera está na mão 280 do operador. A instabilidade pode ser facilmente relacionada à instabilidade profissional vivida naquele momento também pelo protagonista. Apesar de a fala da apresentadora terminar ressaltando que Nascimento e Matias serão exonerados de seus cargos, ao caminhar em direção aos três, Nascimento é reconhecido pelas demais pessoas que também fazem sua refeição naquele restaurante. Logo, os mesmos se levantam e começam a bater palmas para Nascimento que não sabe exatamente como reagir àquele tipo de recepção. Ele se mostra desconcertado e confuso, apenas balança a cabeça de maneira suave e afirmativa, como se estivesse agradecendo às pessoas aquele tipo de manifestação a seu favor. A partir do som diegético em forma de voice over, ele, já como narrador, parece reconhecer na euforia daquelas pessoas a defesa de um posicionamento que alguns cientistas sociais vão denominar de fascista: -“O governador precisava de um bode expiatório. Colocou a morte do Beirada na minha conta. Só que pro povo, parceiro, „bandido bom é bandido morto‟!”. Observando a aclamação de Nascimento por grande parte daquelas pessoas à sua volta, os dois representantes da cúpula da segurança pública do Rio de Janeiro, orientados pelo assessor de imprensa, vão logo ao encontro do Tenente Coronel. Afinal, eles não podem perder aquela oportunidade de projeção. Usando toda sua falsidade manipuladora – do típico arquétipo camaleão –, Guaracy lhe dá um abraço apertado, dizendo-lhe que aquela surpresa é muito boa. A sequência termina com a antecipação do áudio da sequência posterior. Assim, ainda no restaurante, pode ser ouvido, como som diegético em off, um fragmento da vinheta de outro programa de TV. Trata-se da vinheta de um programa muito popular, denominado “Mira Geral” que acaba dando um tom irônico àquela situação vivida por Nascimento. De uma maneira ou de outra, a ovação ao Tenente Coronel no restaurante faz com que aquele trio repense a forma de puni-lo. Nesse sentido, aparece o chamado à aventura de Nascimento. Como o Governador insiste na retirada dele do Bope, a cúpula do governo acaba optando por colocá-lo como Subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro – um cargo bem distante da ação tática direta e, ao mesmo tempo, bem próximo dos olhos e ouvidos de Guaracy, o então Secretário e superior direto. 281 É interessante notar o quanto o figurino também pode ter um significado especial nesta parte obra. Após saber da decisão por parte do governo, Nascimento tem que se preparar para o primeiro novo dia de trabalho na parte administrativa da Secretaria de Segurança. A sequência deste momento preparatório começa com um plano detalhe em um espelho no qual se observa apenas duas mãos tentando fazer um nó em uma gravada. A partir de uma leve panorâmica vertical, vê-se o autor daquela ação. Trata-se de Nascimento que apresenta uma expressão demasiadamente séria e cerrada, parecendo não gostar daquilo que observa no espelho. Ao colocar o paletó e ajustar a gravata, já em plano próximo, se mostra extremamente incomodado. Chega a suspirar fundo. A ação é coberta por uma trilha musical extra diegética over e não verbalizada, o que aumenta ainda mais a sensação de sufocamento do protagonista que, agora, sequer consegue comentar a situação com o espectador, como faz em tantas outras cenas, a partir do seu poder e responsabilidade de narrador. Analisando este pequeno fragmento do filme, pode-se pensar que o incômodo de Nascimento não diz respeito apenas a vestir aquele terno, mas, sobretudo, a deixar de trabalhar com sua farda, ou seja, fora do Bope. Para muitas pessoas, como provavelmente seria para Nascimento, o uniforme, além de uma obrigação militar, também faz referência e caracteriza a classe de profissionais que tem (ou deveria ter) por dever e virtude o combate ao crime. Nesta visão, ir trabalhar sem a farda poderia ser o mesmo que um cavaleiro medieval ir para uma batalha sem sua armadura. Algo muito importante parece estar faltando naquele homem que sempre busca a retidão em seus atos. A discussão deste poder de identidade a partir do uso da roupa, ou melhor, da farda, será retomada na cena em que Matias se apresenta novamente como integrante do Bope. Depois de “cair para cima” e de adentrar ao seu novo local de trabalho, Nascimento começa a se dar conta de alguns desafios, como romper aquela redoma de vidro na qual ele estava sendo colocado apenas para cumprir formalidades administrativas como chefe de um determinado setor. Na cena de sua chegada, a câmera caminha atrás de Nascimento e Valmir pelos corredores da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. A sensação do descobrimento e a inquietação com aquilo que é desconhecido também é passada para o 282 espectador. A partir de sua narração em voice over, Nascimento demonstra que sabe claramente a jogada política feita por parte do governador ao colocá-lo naquele cargo meramente burocrático – uma vez que não havia condições ou equipamentos mínimos para o trabalho em sua sala. Contudo, ele também decide jogar com as novas armas disponíveis: -“Se o eleitor tava dizendo que eu era um herói, não era o Governador que ia dizer o contrário. [...]. No primeiro dia, eu fiquei meio perdido. Porra! Nem um computador eu tinha. Como é que eu podia ser Subsecretário de Inteligência? Como é que eu podia ficar responsável por todos os grampos do Rio de Janeiro? [...]. Ia ser difícil, mas eu tinha chegado aonde caveira nenhum chegou. Na Secretaria de Segurança, eu não ia lutar somente contra o tráfico. Eu ia enfrentar o sistema”. No filme, não há um chamado explícito à aventura, contudo, a partir da consciência de Nascimento, manifestada ao espectador a partir do seu voice over, ao adentrar o novo recinto de trabalho, é possível dizer que ele próprio assume, em alguma medida, o arquétipo de um auto-arauto, neste momento do filme. Embora tenha diversos defeitos, Nascimento já demonstra que, independentemente de cargo ou local de trabalho, vai manter-se incorruptível, doa a quem doer, seja seu subordinado ou superior. A partir dessa perspectiva, ele se propõe desafios enormes em uma luta na qual sabe que deverá combater até mesmo companheiros de instituição. Sua consciência o motiva e propõe mudanças para o esquema de trabalho daquela secretaria. c) Recusa do chamado: A partir desta interpretação de chamado à aventura, Nascimento não se apresenta em condições de recusar tal chamado. Ele sabe que o resultado da ação em Bangu I poderia ter causado problemas bem piores para ele, assim como acontecera com o Capitão Matias. Caso ele não assumisse logo aquele cargo, poderia ser transferido para um quartel de corruptos ou algo ainda pior. Destemido e corajoso, como em grande parte da narrativa, Nascimento não apresenta medos diante deste chamado à aventura. O que mais expressa é inquietação e vontade de começar logo a briga contra aquele sistema corrupto que ele parece tanto odiar. 283 d) Encontro com o mentor: Em Tropa de Elite 2, o personagem que mais se aproxima ao arquétipo de mentor é o Capitão Matias. Vale ressaltar que, aqui, há uma inversão de papéis. Antes, ainda em Tropa de Elite, fora o então Capitão Nascimento quem treinara Matias, atuando como seu mentor. Incorporado nesta função, Matias, primeiramente, tenta fazer com que o Tenente Coronel Nascimento aceite a ajuda ou participação da imprensa na briga contra o Governo do Estado que, na sua visão, teria abandonado o Bope há muito tempo. Conforme já dito, Nascimento praticamente não escuta a opinião de Matias. Enquanto Nascimento havia sido, em uma medida oficial, promovido, Matias acabara sendo o bode expiatório do governo para agradar a esquerda. Ele é transferido para um batalhão de corruptos e, depois disto, resolve dar vazão a seu plano de brigar com o Governador utilizando a imprensa. O resultado da matéria publicada pela jornalista é sua prisão por 30 dias. Como herói caxias que é, no sentido de cumpridor das normas e hierarquias, Nascimento busca interceder por Matias somente relatando a situação a seu superior. Depois da publicação da reportagem, Nascimento vai até a cadeia militar, a fim de visitar Matias. Naquele ambiente sujo, feio e muito abandonado, os dois travam um novo e forte diálogo a respeito do Bope, no qual Matias, mais uma vez, busca dar consciência ao herói, apresentando a ele algumas importantes inquietações sobre todas as mudanças acontecidas e os possíveis perigos que estão ao seu redor. Na cena, Nascimento e André são mostrados em pontos opostos da cela prisional, cada um deles de um lado, como se estivessem também representando pensamentos divergentes (Fotograma 29). Os próprios objetos que cada um deles segura nas mãos também dialogam com o embate de ideias vivido pelos personagens. De um dos lados, Matias, apoiado na porta do banheiro da cela, segura uma toalha de banho – possível símbolo relacionado à limpeza, como ele tanto prega que precisa ser feita no Governo do Estado. Do outro lado, Nascimento empunha o jornal no qual saíra a matéria na qual Matias acusa o Governador de abandonar o Bope. Neste caso, o jornal pode simbolizar a força e o poder da comunicação que o Tenente Coronel ainda precisa aprender a usar a 284 seu favor, conforme, mais uma vez, o então mentor Matias vai chamar sua atenção. O diálogo efusivo dos dois ajuda a sustentar essa possível interpretação e também o câmbio entre os arquétipos assumidos. Nascimento: -“Policial do Bope responsabiliza governador... Eu não sei que vontade é essa que você tem de fazer merda. Eu não vou entender...” Matias: -“Fazer merda, coronel? Quer dizer que falar a verdade, defender o Batalhão é fazer merda?” Nascimento: -“Baixa o tom, baixa o tom pra falar comigo!” Matias: -“Só tava falando a verdade, coronel”. Nascimento: -“Me respeite! Me respeite! Não venha você me falar em defender o Batalhão. Você defende o Batalhão fazendo o que eu ensinei você a fazer, não é dando entrevista pra jornal, não! Você tá preso, André. Vai defender o que aqui? Se tem alguém aqui neste quarto que pode defender o Batalhão, você me desculpe, mas não é você. Eu posso defender o Batalhão na CSI. Matias: -“Coronel...” Nascimento: -“Eu posso fazer pelo Batalhão o que nunca ninguém fez pelo nosso Batalhão... Eu posso fazer...”. Fotograma 30: Capitão André Matias: o aprendiz que se torna mentor. Até este ponto do diálogo, que mais parece um monólogo, Nascimento demonstra ao espectador algumas de suas características recorrentes como anti- herói, como a arrogância e o autoritarismo. Visando deixar clara a hierarquia de fala, além de interceptar verbalmente Matias, ele também usa o gesto de apontar o dedo indicador em direção a Matias, como um mecanismo intimidador. É importante salientar que tal extensão natural do corpo, neste caso, pode sugerir aproximações interpretativas à dominadora arma de fogo. Neste caso, quando Nascimento aponta o dedo, ele evidencia uma clara relação de poder: novamente 285 separados, tem-se, de um lado, aquele que aponta, demonstrando a força e o poder de submeter. Do outro lado, Matias, como aquele que se vê apontado e, no seu caso, acaba curvando-se – pelo menos, por alguns instantes. Vale ressaltar que esse tipo de apontamento ou uso de um gesto para calar o outro não é tática somente de Nascimento. Vários outros personagens se utilizam deste meio para subjulgar. Um exemplo ocorre na cena em que os então deputados estaduais, Diogo Fraga e Fortunato, discutem, de maneira muito acalorada, sobre a abertura de uma CPI, a fim de investigar diversos crimes nos quais este último estaria envolvido. Voltando à sequência na cela prisional, apesar do autoritarismo do Tenente Coronel, Matias assume, mais uma vez a máscara de mentor e tenta alertá-lo, no sentido de fazer despertar sua consciência frente aos perigos que estão ao seu redor na Secretaria de Segurança Pública. Em plano próximo, Matias joga a toalha para fora do quadro e caminha sério e lentamente até muito próximo de Nascimento, enquanto o mesmo está falando. Este caminhar é muito significativo em uma chave interpretativa na qual Matias tenta diminuir a distância entre os dois. Já a poucos centímetros do seu superior hierárquico, Matias mantém seu olhar fixo e sério para os olhos de Nascimento, mostrando toda sua determinação na defesa de seus ideais, como havia aprendido, anteriormente, com o próprio Nascimento. Diferentemente do Tenente Coronel, Matias não grita ou aponta para o rosto dele, preferindo falar baixo e de maneira pausada, em tom de aconselhamento: Matias: -“Coronel, com todo respeito... esses „filédaputa‟ aí que o senhor tá se metendo só qué saber de política. A única coisa que vai mudar com o senhor lá dentro da Secretaria é o senhor mesmo. Se é que já não mudou...”. Na continuação da cena, Matias olha fixamente para os olhos de Nascimento e, logo depois, sai de perto dele, caminhando para uma área fora de quadro. A câmera o acompanha. Ao deitar-se e sair do enquadramento, a câmera se mantém parada. A fotografia leva o espectador para uma composição extremamente simbólica. Vê-se, em plano detalhe, na parede do banheiro da cela, um espelho no qual é possível observar o reflexo de Nascimento. Aqui, o espectador pode se identificar com as inquietações que passam pela cabeça de 286 Matias. Quem é aquele novo Tenente Coronel Nascimento? Até que ponto o novo cargo estará subindo-lhe a cabeça? Será que ele vai esquecer-se de tudo aquilo que tanto defendia? O que ele próprio vê naquele espelho? Apesar do esforço de Matias, o período real de aprendizado de Nascimento começará apenas a partir da morte do ex-companheiro. e) Travessia do primeiro limiar: Em Tropa de Elite 2, pode-se pensar que a travessia do primeiro limiar acontece em paralelo e, ao mesmo tempo em que Nascimento recebe o chamado à aventura, ou seja, quando ele é obrigado a mudar de posto e adentra as instalações da Secretaria de Segurança Pública como Subsecretário de Inteligência. A partir desta interpretação, a porta secreta da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro é aberta para Nascimento, mesmo a contragosto do governo, na tentativa de se aproveitar da popularidade que ele havia conseguido entre a população fluminense. Nesta medida, não é necessário a violação desta porta secreta pelo herói. Ele literalmente é convidado, ou melhor, mandado entrar. Mais uma vez, Nascimento não demonstra qualquer medo. Sua obstinação pelo combate ao crime e, agora, ao sistema, faz com que ele se mantenha sempre determinado a cumprir este objetivo, independentemente de onde estiver. Suas incertezas dizem apenas à maneira pela qual ele poderá utilizar aquele novo equipamento de monitoramento de câmeras e interceptações telefônicas de todo o Estado a favor deste combate. Apesar de parecer demasiadamente fácil para o herói Nascimento adentrar por esta porta secreta, ele logo descobrirá que, naquele novo espaço, os guardiões do limiar são muitos, dissimulados e bastante perigosos – mesmo que, para a sociedade, se apresentem como os “bons moços”. f) Testes, aliados e inimigos: Inicialmente, este novo mundo especial de Nascimento se mostra muito diferente do seu cotidiano de treinamento militar e ações táticas. Entrando junto 287 com ele naquele espaço, a partir de um movimento de travelling, no qual a câmera o acompanha pelos corredores da Secretaria de Segurança, o espectador observa que, visualmente, aquele ambiente é muito parecido a boa parte das repartições públicas no Brasil: várias mesas de escritório conjugadas, repletas de papéis e pastas, alguns computadores antigos para o desenvolvimento do trabalho diário, muitas pessoas caminhando para todos os lados e alguns funcionários aproveitando para fazer mais um momento de pausa ao lado da mesa de cafezinho. O uso do som diegético in de telefones tocando, folhas de papéis sendo tocadas e o murmurinho daqueles profissionais falando entre si também é utilizado nesta caracterização. Como o próprio Nascimento diz, em voice over, naquele novo espaço, ele vai se dedicar ao máximo para enfrentar todo o sistema envolvido no crime organizado. Assim, o cerceamento na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro não o impede de ajudar seu Batalhão – o que ele considera um passo importante para conseguir seu grande objetivo, que é o de combater o sistema. Diferentemente do que a cúpula do governo estava pensando, colocar Nascimento na Secretaria de Segurança não o afasta do Bope. Entretanto, sua antiga “família” parece estar a cada dia mais distante dele. Duas cenas demonstram um pouco da dimensão deste distanciamento. Na primeira delas, Nascimento está acompanhando o filho em um campeonato de judô. Sentado na beirada da área de competição, ele grita, tentando orientar e estimular seu filho Rafael durante a luta. Enquanto isso, em voice over, o espectador escuta suas preocupações relacionadas ao distanciamento da “sua família”, por conta de Diogo Fraga. Para este anti-herói, o enfrentamento a Fraga não é uma tarefa fácil. Diferentemente dos bandidos e traficantes com quem Nascimento estava acostumado a brigar a tiros e „porrada‟, contra Fraga ele não sabe muito bem como agir. Afinal, além de combater ideologicamente o Tenente Coronel, ele teria assumido seu antigo lugar naquela família. A expressão “minha família”, utilizada por Nascimento no início do voice over desta sequência pode dar ao espectador uma pista dos seus sentimentos e desejos do ponto de vista pessoal. Voltando à luta de judô, Rafael demonstra fragilidade frente a seu oponente. Ao acompanhar o filho sofrer os primeiros golpes, Nascimento desabafa ao espectador, a partir do voice over: -“Eu não posso negar, eu gosto de 288 guerra. Pra mim, só vive em paz quem aprende a lutar. Eu só queria ensinar isso pro meu filho sem ter que me preocupar com a opinião dos outros”. Esse pequeno trecho diz muito do pensamento deste protagonista: a derrota do filho acaba também podendo refletir a própria derrota de Nascimento em seu mundo familiar. Como guerreiro que é, ele não gosta de ver o filho perder. Já, para Rafael, aquele tipo de luta passa a refletir uma característica típica daquele pai considerado por todos tão violento e que ele ainda conhece tão pouco. Dessa maneira, perder ou abrir mão de lutar com toda sua potencialidade acaba virando um tipo de mecanismo para negar suas aproximações como o próprio Nascimento. Após perder a luta, Rafael expõe sua nova forma de pensar a seu pai: Rafael: -“Eu não queria lutar”. Nascimento: -“Você não queria lutar? Você me encheu o saco o mês inteiro para vir lutar. Por que que você não quer lutar? Tamo aqui, vamo lutá pra ganhar agora. Não vamo perdê não. Lutá pra ganhá agora”. Rafael: -“Eu não sou igual a você de batê nas pessoas, não!” A cena termina com pai e filho se observando, com os olhos fixos um no outro (Fotograma 30). Não é preciso que nenhum deles diga mais nada para se perceber o distanciamento entre eles. Tal fator atinge determinadas proporções que Rosane e Nascimento marcam de se encontrar para conversarem a respeito. Esta é a segunda cena que trata diretamente as dificuldades enfrentadas pelo protagonista em seu relacionamento familiar. Fotograma 31: Os conflitos pessoais enfrentados pelo pai Nascimento. 289 O encontro com Rosane acontece em um café, dentro de uma livraria – um local neutro aos dois e, ao mesmo tempo, com diversos desconhecidos acompanhando. Durante a conversa sobre as causas do comportamento de Rafael, o corpo desses personagens pode dar informações importantes ao espectador mais cuidadoso. Sentado em frente à sua ex-mulher, ele coloca seu corpo bastante projetado em direção a ela. Tanto sua cabeça, como suas mãos, apoiadas na mesa apontam nesta direção. Já Rosane tem os braços cerrados e muito próximos do restante do seu corpo. A câmera está na mão do operador. Alguns planos próximos valorizam ainda mais o lado interior desses personagens. Os dois discutem, em tom muito moderado, a respeito da profissão de Nascimento e como Rafael está começando a entender o seu trabalho. Olhando fixamente para Rosane, ele apresenta um tipo de cacoete com os olhos – um sinal externo do seu nervosismo ao estar novamente perto daquela mulher que ele parece ainda amar. Rosane: -“Eu não vou ficar aqui discutindo com você a definição de assassinato. Só que eu não vou esconder a verdade do meu filho. Se você não quiser perder o Rafa...” Nascimento: -“É isso que você acha de mim? É esse o conceito que você tem de mim agora?” Rosane: -“Não importa o que eu acho. Acontece que se você quiser estar perto do Rafa, você vai ter que falar a verdade pra ele. Eu não vou mentir pro meu filho. Você vai ter que dar um jeito de explicar o que você faz da vida, Beto”. Neste fragmento de diálogo, pode-se notar a importância que Nascimento dá para a opinião de Rosane a seu respeito. Apesar disso, ela se mantém, o tempo todo, em uma posição defensiva e vai logo desconversando, voltando à objetividade daquela conversa. Visualmente, no final deste diálogo, os personagens são mostrados em perfil e em primeiríssimo plano ou super close. Além disso, há pouquíssima profundidade de campo, o que propicia o desfocamento de todo o fundo, aumentando ainda mais a carga dramática sobre as expressões faciais já exaltadas nos enquadramentos. Há, na fotografia, a busca extrema por apresentar elementos do interior daquele ex-casal. Nessas últimas falas, a câmera deriva de um para o outro, em panorâmica rápida, de acordo com quem está falando. Ao terminar a fala de Rosane, a atenção se volta, 290 novamente, para Nascimento, como que lhe imputando a questão colocada por sua antiga esposa. Relatar sucintamente estas duas cenas parece importante, uma vez que o anti-herói demonstra que as inquietações e problemas de nível pessoal sempre, em alguma medida, vão afetar seu aspecto profissional. Na sequência em que ele coordena uma das fortes ações táticas do Bope, inicialmente, chega a dizer o contrário disso, alegando que, apesar das dificuldades que vivencia em nível pessoal, as mesmas não o teriam afetado em sua dedicação para com o trabalho de melhoria e crescimento do Batalhão. -“O meu filho tinha medo de mim, a Rosane me achava um fascista, o Matias me considerava um traidor. Eu tinha que ficar deprimido, parceiro. A minha missão era mais importante do que os meus problemas pessoais. [...]. Eu meti a cara no trabalho, amigo. Exorcizei os meus demônios na Segurança Pública do Rio de Janeiro. Eu fiz o que eu disse pro Matias que eu ia fazer: transformei o Bope numa máquina de guerra. Comigo na Secretaria de Segurança, o Bope passou a ter 390 policiais e 16 equipes táticas. Antes, a gente tinha oito viaturas. Agora, a gente operava de blindado e helicóptero”. Desta vez, o Tenente Coronel não é visto no meio da tropa. Sem sua tradicional farda preta, ele fala aos soldados de terno e gravata. Enquanto o espectador escuta Nascimento, em voice over, observa os militares do Bope se preparando para sair em uma ação tática. Os muitos e variados movimentos de câmera, juntamente com o movimento dos militares em cena, acrescidos da trilha musical extra diegética, dão uma grande dinamicidade e perspectiva de ação durante este trecho de voice over de Nascimento. Em um dos fragmentos desta sequência, a montagem chega a usar um travelling horizontal da esquerda para direita e, na continuação, outro travelling no sentido oposto – característica pouco usual no cinema comercial. Tanto em um sentido como no outro, os planos mostram, no fundo, Nascimento e as demais autoridades relacionadas ao Bope e à Segurança Pública do Rio de Janeiro. Em primeiro plano, vê-se a parte detrás da cabeça de alguns dos vários militares que estão de costas para a câmera, enfileirados e desfocados. A área sem nitidez na tropa chama atenção para Nascimento que também é destacado por conta da altura que é colocado em relação à tropa. 291 Apesar de afirmar que sua missão é mais importante que seus problemas pessoais, na continuação da sequência – já durante a ação tática em uma das comunidades do Rio de Janeiro, a bordo do novo helicóptero do Bope –, Nascimento confessa, novamente em voice over, ao espectador: -“Pra certas pessoas, a guerra é a cura. A guerra funciona como uma válvula de escape. A pressão aumenta em casa, o pau canta na rua. Comigo foi sempre assim”. Após terminar esta fala, vê-se Nascimento coordenando, de dentro do helicóptero, uma ação do Bope em terra. Do alto, ele passa os comandos para sua equipe que adentra uma comunidade à “caça de bandidos”. Na ação, o poderio do Batalhão liderado por Nascimento contrasta com aquele ambiente pobre. Esse aspecto é logo evidenciado pela fotografia e pelo som. A entrada na comunidade começa com visões subjetivas de alguns dos garotos que jogam futebol em uma quadra no alto do morro. Ouvem-se sons diegéticos in típicos de uma partida de futebol. Contudo, o som diegético off das hélices do helicóptero chama a atenção de um dos peladeiros que interrompe sua atividade na partida para tentar identificar de onde estaria vindo aquele ruído. Em contra-plongée, o espectador observa o helicóptero se aproximar rapidamente daquela quadra. Em panorâmica, a câmera faz um movimento daquele menino negro e franzino para o helicóptero que interrompe a partida de futebol. Durante a continuação desta sequência, Nascimento e seus comandados parecem não terem subido aquela comunidade para prender criminosos, mas, sim, para eliminá-los. A partir de uma montagem que prioriza muitos movimentos de câmera (na mão do operador), um tempo de exibição curto para cada plano e a exacerbação dos sons diegéticos de tiros e bombas, cria-se uma atmosfera de uma verdadeira guerra naquele ambiente. Cirurgicamente, todos aqueles que foram apontados como criminosos são cercados e mortos a tiros pelo Bope. Aqui, mesmo sem notar, este anti-herói mostra íntima correlação entre seu universo do trabalho e seu universo interior, familiar. Nesse sentido, os problemas, dificuldades e incertezas do universo familiar promovem afetações diretas no do trabalho. Dentro do perfil contraditório de Nascimento, é possível se pensar que a ausência ou o afastamento dos membros de sua antiga família (Rosane e Rafael) pode ter contribuído também para que ele tenha se tornado ou continuado a ser esse agente tão implacável contra os criminosos. Assim, mesmo 292 sem perceber, Nascimento acaba promovendo uma junção daquilo que seria seu mundo comum com seu mundo especial. Na concepção deste anti-herói, uma ação como esta é analisada, apenas de maneira técnica, como muito positiva. Novamente, em voice over, ele divide com o espectador o seu plano: -“Depois que eu entrei na Secretaria de Segurança, a paz dos vagabundos acabou. A máquina de guerra que eu ajudei a montar quebrou o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Era só uma questão de tempo. Com o tráfico fora da jogada, a farra dos corruptos ia acabar. Finalmente, eu ia foder o sistema!”. Tal planejamento de Nascimento, contra o famigerado “sistema” acaba se tornando um grande teste para ele. Conforme o próprio anti-herói explica, também em voice over, o que foi pensado na teoria acabou se transformando em um equívoco na prática. Neste ponto do filme, Major Rocha começa a ser evidenciado como o futuro maior inimigo de Nascimento. Em uma das cenas, no quartel da Polícia Militar do Rio de Janeiro, ele demonstra toda sua sede de poder, desafiando seu superior hierárquico, o Coronel Fábio Barbosa. Nesta cena, a fotografia contribui para a exacerbação do personagem, mostrando-o em contra- plongée, enquanto Fábio é visto em plongée, observando, assustado, a postura de seu comandado Rocha. Logo após este último questionar de quem seria o comando, ouve-se uma pontuação sonora extra diegética que também marca o desejo sem limites de Rocha. Ele vai usar o trabalho do Bope, expulsando os traficantes das favelas cariocas para, logo em seguida, dominar estas regiões a partir da constituição de uma milícia – um tipo de organização que cobra determinadas taxas dos moradores para garantir a eles uma pseudoproteção, além de outros serviços, como “gato net”, gás de cozinha e empréstimos financeiros. Quem pensa em não participar deste sistema é logo expulso daquele ambiente. Uma demonstração dessa força impiedosa é o tratamento que Rocha e sua milícia aplicam ao dono de uma van de transporte público alternativo que diz não poder colaborar. Em uma rua movimentada da favela, em pleno dia, ele primeiro 293 apanha violentamente e, depois, é arrastado pela rua e recebe vários tiros a queima roupa: uma clara ameaça a qualquer opositor. Nesse sentido, durante a primeira fase de teste, Nascimento acaba cometendo um equívoco, conforme ele mesmo confessa, em voice over. Sua “máquina de guerra” não apenas combate os traficantes, mas, sem querer, acaba ajudando o crescimento do poder dos milicianos, formados por membros corruptos da própria Polícia Militar. Contraditoriamente, a única pessoa que também teria percebido este fato seria seu rival no amor da sua antiga esposa, o deputado estadual Diogo Fraga. Juntando documentos e dados, este último personagem faz um dossiê sobre as milícias e, nesta medida, vai acabar se tornando um aliado de Nascimento no combate a este tipo de crime organizado. Uma sequência do filme ressalta o poder da milícia de Rocha dentro do próprio Governo do Estado do Rio de Janeiro: o retorno de Matias ao Bope. Nela, se vê Matias e Fábio em uma pequena lanchonete de rua, na entrada de uma favela. As próprias bebidas consumidas já informam bastante sobre eles: Fábio toma cerveja e Matias água de côco, mantendo sua atenção sempre alerta. Logo se aproximam Rocha e alguns de seus milicianos. Matias se mostra desconfiado com o cumprimento amistoso destes últimos. Contudo, o diálogo entre eles é bastante direto e aponta para um poder paralelo que até mesmo o Coronel Fábio desconhecia – mostrando-se ostensivamente espantado. Rocha: -“Beleza, querido?” Matias: -“Que que cê qué comigo?” Rocha: -“Quero contigo a simplicidade. Dá uma olhada na comunidade, parceiro: mãe pode andar com filho tranquilamente. Olha o PM ali. Ninguém precisa esconder mais carteira para trabalhar, não. Mas não foi sempre assim, não. Isso aqui era um salseiro do caralho, parceiro”. Fábio: -“E agora é roubo zero”. Miliciano: -“Favela tá bom de morar pra caralho”. Matias: -“Beleza, e eu com isso?” Rocha: -“Fiquei sabendo que a polícia vai fazer uma mega operação no tanque. Se a PM invadir, fica fácil pra gente ocupar, parceiro. E eu não conheço pessoa melhor pra tomar conta, pra manter aquilo lá como você...” Matias: -“Eu?” Rocha: -“Cavera, porra. Gente que vagabundo tem medo, porra. Tu não é cavera? Então, tu vai entender o que eu tô te falando... [começa a falar ao celular]”. Rocha: -“Padrinho, tá na escuta?” 294 Padrinho (voz em off): -“Pode falar, Rocha!” Rocha: -“Padrinho, é o seguinte: como é que a gente faz para devolver o amigo para o BOPE, ajudar ele?” Padrinho (voz em off): -“É firmeza? Eu posso confiar?” Rocha: -“Mais que firmeza, 100%. É o melhor caveira que a gente tem. Vai ajudar a gente no projeto lá”. Padrinho (voz em off): -“Pega o RG dele aí e manda ele se apresentar segunda-feira”. Rocha: -“E aí, Matias, vai voltar pro BOPE ou não vai?”. O grande espanto do Coronel Fábio é compreensível. Instantaneamente, Matias ganha a chance de retornar a um dos batalhões de polícia militar mais difícil para se conseguir entrar do Brasil. Enquanto Nascimento havia feito esforços burocráticos, conversando, pessoalmente, com o Secretário de Segurança Pública, a fim de que o mesmo interviesse junto ao Governador, para o miliciano Rocha, bastou fazer uma simples e rápida chamada telefônica. Estava ali a grande oportunidade de Matias voltar ao Batalhão pelo qual tanto se dedicara. O silêncio de Matias, depois da proposta de Rocha, aponta novamente sua desconfiança em relação àquele poder paralelo. Contudo, para um apaixonado pelo Bope, como ele, seria muito difícil recusar esse retorno e continuar organizando aquelas intermináveis pilhas de documentos velhos no quartel comandado pelo Coronel Fábio. O vilão acaba fazendo deste mentor uma espécie de aliado para seus planos. O retorno de Matias ao Bope se mostra como uma grande surpresa a Nascimento. Ao chegar atrasado numa reunião sobre a invasão do bairro Tanque, ele se surpreende com Matias usando, novamente, o uniforme preto e olhando sério e fixamente para ele, como se estivesse demonstrando toda sua indignação pelo tempo que ficara no batalhão de corruptos, enquanto Nascimento teria sido promovido para a Secretaria de Segurança Pública. O anti-herói confessa ao espectador, em voice over, que teria ficado mudo ao ver Matias novamente como integrante do Bope naquele momento. Depois da rápida reunião, na qual o Secretário de Segurança acaba decidindo pelo que já havia sido acordado no sistema, ou seja, a invasão do bairro Tanque, Nascimento vai em direção a Matias, a fim de saber como ele teria conseguido voltar para o Bope. A fotografia apresenta um contraplano de Nascimento que chama a atenção do espectador: no enquadramento, vê-se parte dos ombros e cabeça de Nascimento que está de 295 costas, encobrindo a metade do rosto de Matias que é visto de frente. Questionado sobre seu retorno, Matias responde, de maneira seca e bastante séria, marcando verbalmente sua indignação ao abandono de Nascimento: -“Se o senhor não sabe é porque, com certeza, não foi o senhor quem me ajudou”. Logo depois dessa resposta de Matias, a câmera muda de posição e mostra um contraplano no qual Nascimento é observado de frente. Ele olha fixamente para os olhos de Matias. Além da desconfiança sobre como Matias estaria de volta ao cargo, parece demonstrar um tipo de tristeza por não ter conseguido ajudá-lo. Ele dá permissão para Matias ir embora, agora, diferentemente da última conversa que tiveram, usa um tom bastante reflexivo, falando baixo e chamando-o, inclusive, de André, o que demonstra sua proximidade para com ele. g) Aproximação da caverna oculta: Na sequência da festa na favela (Fotograma 31), o espectador percebe, de maneira muito ostensiva, a partir das imagens e sons, todas as relações escusas e desonestas que estão por trás do famigerado sistema. No filme, apesar de a favela ser mostrada como cenário de confronto e tiroteio, não representa a caverna oculta do herói Nascimento. A partir da ação dos milicianos comandados pelo Major Rocha, a favela teria se transformado em um grande local de comércio, onde tudo é vendido: da autoproteção, conforme afirma o deputado estadual Guaracy ao voto para as próximas eleições. Fotograma 32: O jogo de interesses e dominação apresentado durante a festa na favela. 296 Durante a festa na favela, mais uma vez, o poder do sistema fica evidenciado ao espectador. Se havia alguma dúvida a respeito dos envolvidos nessa trama de corrupção, a partir desta sequência, os principais agentes participantes do esquema são apresentados, inclusive nominalmente. A sequência começa com um fragmento de áudio – som diegético off da festa – sendo antecipado ainda no cenário antecessor, no apartamento do Deputado Diogo Fraga. O conflito no apartamento vai dando lugar ao clima de festa e churrasco na rua da favela. A partir de um movimento de dolly in, o Governador Gelino, o Deputado Fortunato e o Secretário de Segurança Guaracy apresentam seu apoio para a liderança daquela comunidade: o major e chefe de milícia Rocha. Ele se comporta como o mandatário daquele lugar. Para chamar a atenção de todos participantes da festa, não hesita em dar alguns tiros para o alto. Pelo som diegético escutado em off, parece ter acertado a lâmpada de um poste. Rindo do susto dado naquelas pessoas, ele brinca, em tom de deboche: - “Calma gente, hoje é numa boa. Hoje é numa boa!”. De forma contraditória, o povo ali presente responde a tal demonstração arbitrária de poder e vandalismo ao bem público apenas com palmas e risos – que são ouvidos enquanto sons diegéticos off. Depois de apresentar os seus fechamentos políticos, Rocha manda todos os presentes entrarem no samba. Assim, tal festa na rua pode ser interpretada como um tipo de mecanismo que cega aquele povo ali representado. Os problemas são esquecidos ao gosto da cerveja gelada e do animado som diegético da trilha musical tocada por um grupo de samba. Além disso, a fotografia também contribui para ressaltar alguns dos atrativos dentro deste tipo de divertimento que pode ser associado em contrapartida das vistas grossas feitas pelo povo aos mandos e desmandos daquelas ditas autoridades. Para isso, a câmera, na mão do operador, se coloca no meio das pessoas que apenas sambam e se divertem. A sensação dada ao espectador é de grande proximidade para com aquele povo retratado. Além disso, nesta parte do filme há a exaltação de alguns elementos costumeiros, dentro do senso comum (como a música, a bebida alcoólica e a dança) para se ressaltar a ambientação de alegria e comemoração. Ambos são evidenciados a partir de planos próximos: um dos instrumentos musicais em uso naquele momento (simbolizando o samba – música 297 típica do país), um copo de cerveja (simbolizando uma das bebidas alcoólicas mais consumidas no Brasil) e, por último, as nádegas de uma jovem negra que samba sorridente (simbolizando também a beleza e a sensualidade da mulher brasileira). Tais elementos constitutivos desta festa de rua orquestrada pelo líder da milícia e por alguns políticos parecem desejar que todos aqueles moradores do morro se esqueçam do terrível processo de dominação que sofrem em seu cotidiano. Neste sentido, outro aspecto que chama atenção na sequência é o som diegético do grupo de samba, usado como trilha musical. A letra da música tocada faz referência a um novo líder, um novo mandatário do morro. O próprio Nascimento reflete sobre a relação íntima entre política e favela, a partir de mais uma voice over: -“Lembra o que eu te disse antes? Na favela, a grana rola, negócios são fechados, o sistema arrecada CPMF. Pois é. Faltou eu dizer uma coisa, parceiro: no Brasil, a eleição é negócio e o voto é a mercadoria mais valiosa da favela. Não demorou muito pro Guaracy, pro Fortunado e pro Genino perceberem que a milícia montava a base eleitoral da favela. Quanto mais favelas a milícia dominava, mais votos eles tinham”. Nascimento ainda não sabe, mas a caverna oculta está muito mais perto do que ele imagina. Pode-se pensar que a concretude deste espaço se dê na própria Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro – o seu local de trabalho e também o coração do sistema. Contudo, dentro da sua procura e aproximação do mesmo espaço, ele sofre uma perda que o abala significativamente: o assassinato de Matias, a mando de Rocha. Depois de saber da morte de Matias, Nascimento entra no seu apartamento, em plano inteiro. Ele não acende as luzes. Caminha por aquela sala escura até sua cozinha, também em penumbra. A quantidade de sombras daquele ambiente pode ser entendida também como um reflexo do interior deste herói trágico. A câmera se mantém distante, apenas observando Nascimento naquele obscuro espaço. Ele caminha, cabisbaixo e lentamente, em direção à geladeira. Após tirar um vidro de água do eletrodoméstico, acaba esquecendo-o aberto, como um possível sinal de estar com seu pensamento voltado para outro lugar: a trágica notícia sobre Matias. Além disso, seu abatimento se mostra 298 evidente quando apóia todo seu corpo com os dois braços sobre um móvel da cozinha, pendendo a cabeça pesadamente (Fotograma 32) – apenas uma silhueta enegrecida e diminuída naquele ambiente lúgubre que ajuda a expressar o interior do protagonista abatido pela dor e a revolta. 299 Fotograma 33: O apartamento de Nascimento como reflexo da sua própria alma. A tristeza de Nascimento dá lugar ao desejo de buscar respostas ao porque daquele crime. Como ocorre em outros trechos do filme, antes mesmo da cena no apartamento terminar, o áudio da próxima sequência é antecipado, fazendo com que o espectador escute Nascimento cobrando uma investigação rigorosa por parte do então Secretário de Segurança Pública, Tenente Coronel Formoso, obtendo como resposta a evasiva que tal fatalidade “pode acontecer com qualquer um”. Descontente com a resposta, Nascimento o deixa sozinho e se aproxima do caixão onde está o corpo de Matias, afirmando com veemência que o amigo não era qualquer um. Ainda no final do enterro de Matias, Nascimento vai buscar explicações do Coronel Fábio que também nega saber qualquer informação sobre o caso. Na mesma cena, Rocha utiliza a máscara de camaleão, para passar-se por “bom militar” e oferecer os pêsames a Nascimento. Mais uma vez, Nascimento demonstra grande disposição e coragem para enfrentar aquilo que, para ele, ainda faz parte de um grande inimigo desconhecido e sem rosto. h) Provação: Depois da ameaça de Nascimento de uma investigação aprofundada sobre a morte de Matias, o Coronel Fábio decide que vai passar a cobrar a “taxa do eu sei” de Rocha, ou seja, para manter as informações sobre o assassinato de Matias em segredo, vai extorquir dinheiro do próprio comparsa no crime. Assim, eles começam a não se entender mais. 300 O espectador observa que Nascimento está praticamente só na investigação da morte de Matias. Apesar de muito discreto no filme, o único que se mantém como um aliado fiel dentro da Secretaria de Segurança é o coordenador da subsecretaria, Valmir. Em uma cena dentro da Secretaria de Segurança Pública, o secretário Formoso informa a ele que as escutas no bairro Tanque não serão renovadas. Junto a essas imagens ouve-se Nascimento, a partir de voice over, analisando aquela situação de impotência: -“Eu demorei muito para perceber que meu trabalho no governo não tinha nada a ver com segurança pública. Era tudo estratégia para ganhar voto. Pra eles, a morte do Matias não significava nada. Na mídia, a operação tinha sido um sucesso. Era só isso que importava”. Em um novo encontro com sua ex-mulher, Nascimento se mostra extremamente abatido devido à morte de André. Ele está cabisbaixo, olhando para a mesa onde apóia seus braços. A cena começa com um close no rosto de Nascimento que sequer consegue olhar para Rosane. Enquanto conversam sobre a morte de André, a fotografia mostra os dois em primeiro plano, com baixa profundidade de campo, originando um fundo totalmente desfocado, perspectiva que dialoga bem com o momento dramático vivido por Nascimento. A câmera está na mão do operador, promovendo mais uma aproximação com a ideia de momento de instabilidade do protagonista. Os dois falam baixo, evitando que outras pessoas os ouçam. O som das vozes e atividades das demais pessoas presentes naquele local é suprimido, a fim de dar maior carga dramática às falas de Nascimento e Rosane. Durante a conversa, com um semblante bastante triste, o herói trágico mostra-se arrependido por não ter acreditado antes nos alertas e conselhos do amigo morto. Apesar de separada de Nascimento, Rosane demonstra ainda se importar com ele. Dessa maneira, aproveita a conversa e veste-se na máscara de mentora para aconselhá-lo a respeito de sua relação com Rafael. Na contagem de tempo do filme, alguns anos já haviam se passado desde o último encontro mostrado entre Nascimento e Rafael. Agora, ele já é um adolescente. Rosane diz: 301 -“Beto, eu quero saber do Rafa. Eu tô triste por causa do André, mas eu quero que você ligue pro seu filho. Você afasta as pessoas de você, Beto. Não faz isso com seu filho. Ele só tava defendendo a amiga dele. Você devia ter orgulho. Não deixa o tempo passar, fica esperando ele querer conversar com você. Chama o Rafa pra conversar.” Mesmo sem saber, o conselho de Rosane acaba sendo fundamental para que Nascimento possa não apenas revisar suas relações com o filho deles, como também se revela um momento chave para que o herói consiga unir algumas peças desse quebra-cabeças relacionado ao sistema investigado. A cena no café é cortada diretamente para outra na qual são vistas partes dos corpos de dois homens em um tipo de luta marcial. Aos poucos, a câmera mostra o rosto de ambos. Trata-se de Nascimento e Rafael se enfrentando em um treino de judô. Enfim, aquele pai teria arrumado uma estratégia, à sua maneira, de “conversar” com seu filho. Contudo, inicialmente, é uma conversa com poucas falas. Durante vários segundos, o que se escuta e vê são golpes de judô. O treino só é interrompido quando Rafael não consegue mais respirar (Fotograma 33). Fotograma 34: Da inusitada tentativa de reaproximação com o filho à resolução do caso sistema. Sem luta, pai e filho se olham, buscando se aproximarem. Meio sem jeito, Nascimento toma a iniciativa. A grande dúvida que o aflige é o fato de Rafael o reconhecer como legítimo pai. Depois de perguntar três vezes e ouvir as várias confirmações do filho, ele se dá por satisfeito e, dentro da sua forma de comemorar, dá o braço para o filho aplicar-lhe um golpe. Agora, ambos 302 apresentam os semblantes mais abertos e voltam a treinar até que o telefone celular de Nascimento toca. Apesar de ter apenas iniciado um pequeno momento de aproximação com seu filho, a perspectiva profissional, anunciada pela chamada no celular, ainda é mais forte para este contraditório anti-herói. Somente pelas falas de Nascimento, o espectador entende que, do outro lado da linha, Valmir avisa-o sobre a decisão do Secretário de Segurança e que, apesar da negativa do mesmo sobre a interceptação das ligações no bairro Tanque, ele irá continuar cumprindo a solicitação de Nascimento. Essa tomada de posição faz com que Valmir saia do âmbito de apenas mais um colega de trabalho para passar ao seletíssimo grupo de aliados de Nascimento. Depois de falar com Valmir, Nascimento decide terminar o treino. Quando pai e filho começam a caminhar em direção à saída daquele espaço, Rafael o questiona se o que estava dialogando ao celular teria relação com os milicianos que roubaram as armas. Surpreso com o que o filho acabara de dizer, Nascimento para e volta-se para Rafael, perguntando quem teria dito aquilo a ele. Um fragmento de som extra diegético também auxilia esta pontuação do assombro de Nascimento. A montagem corta a sequência exatamente neste momento, deixando o espectador unir as peças apresentadas. A informação que Rafael vai passar a seu pai fica subentendida para o espectador. Sem querer, o jovem vai acabar auxiliando o Tenente Coronel nas suas investigações sobre o sistema. Entendendo o perigo que corre a jornalista Clara Vidal e o deputado Fraga, Nascimento solicita que Valmir grampeie o celular do deputado. Depois de ouvir os últimos minutos de Clara ao telefone com o deputado, antes da milícia surpreendê-la, o Tenente Coronel junta as últimas peças deste quebra-cabeças. A partir daquela quantidade enorme de cartazes e banners do governador, de Guaracy e Fortunato, no quartel general da milícia, ele entende que o sistema é muito mais poderoso do que imaginava. Rapidamente, pega com Valmir o gravador contendo o arquivo com essa gravação de áudio. Aquele pequeno arquivo pode ser interpretado como o primeiro elixir para Nascimento. Na sua sala, também resgata sua arma da gaveta e a recoloca na cintura. A eminência do perigo está ao seu redor, como ele mesmo relata, em voice over para o 303 espectador, enquanto caminha apressado em direção à saída da Secretaria de Segurança. -“Foi como se eu tivesse levado um soco. Numa tacada só, eu tinha descoberto que não era só a milícia que tava por trás do roubo das armas, do sumiço da Clara, do assassinato do André. A milícia não ia fazer campanha pro governador e pro Guaracy de graça. O buraco era muito mais embaixo. Eu tava cercado de inimigos. Os inimigos verdadeiros. A Secretaria de Segurança era o coração do sistema. A segurança pública do estado do Rio de Janeiro estava nas mãos de bandidos e eu não podia confiar em ninguém. O roubo das armas e a morte de Matias não significavam muita coisa pro sistema. O sistema é pautado pela política e a política só respeita a mídia. Só que, dessa vez, o sistema tinha matado uma jornalista. O sistema ia ter que correr atrás”. Enquanto se escuta a parte final da narração, a câmera acompanha a saída Nascimento a partir de um movimento de travelling, mostrando-o de frente até passar pelo Secretário de Segurança Formoso. Nascimento ignora o cumprimento deste e continua seu caminho. Ele se mostra muito sério e desconfiado de todos aqueles que estão ao seu redor. Nascimento sabe que, agora, depois de dar sumiço à jornalista, o sistema vai acertar as contas com Fraga. Assim, sua ex-mulher e seu filho também correm perigo. Ainda no seu carro, ele tenta falar com Rosane diversas vezes pelo celular. Todas as tentativas são fracassadas. Mesmo depois de ela sair do cinema com Fraga e Rafael, não responde às chamadas de Nascimento. A fotografia enfatiza as tentativas de Nascimento a partir de um plano detalhe no aparelho celular de Rosane, apontando para as chamadas não atendidas do ex-marido. Ele decide, então, ficar esperando por eles, sentado no passeio de entrada do apartamento de Fraga. Ele ainda não sabe, mas aquele será o cenário que irá originar o seu maior medo: a possibilidade de perda do seu filho. A sequência de provação para Nascimento começa quando o carro de Fraga se aproxima do prédio. Nascimento ainda está sentado em um dos degraus da escada, imóvel e, ao mesmo tempo, atento a todo movimento no seu entorno. A trilha musical extra diegética propõe um clima de suspense. Do lado de dentro do carro, a câmera mostra Nascimento acenando para eles, enquanto Rafael avisa sua mãe sobre a presença do pai. Quebrando a imobilidade, Nascimento 304 rapidamente se coloca de pé e caminha em direção ao carro que ainda está em movimento. Os anos de profissão fazem com que ele permaneça sempre alerta. Um som diegético off do motor de uma moto chama a atenção do Tenente Coronel. Olhando para os lados, ele percebe a aproximação inesperada da moto com dois homens, sendo que um deles saca uma arma. Mais uma vez, ele não tem tempo de se preparar: precisa agir rápido. Assim, não pensa duas vezes e vai logo tirando também seu revólver e correndo ao encontro da perigosa dupla. A troca de tiros naquela rua escura é iminente. Ele consegue defender a única testemunha do envolvimento da milícia no sumiço da jornalista Clara Vidal, acertando o atirador, enquanto o piloto da moto foge em disparada. Contudo, esse mesmo atirador teria conseguido efetuar alguns disparos antes de morrer. Enquanto corre perseguindo o comparsa fugitivo, Nascimento escuta os gritos de Rosane e Fraga, como sons diegéticos em off. Logo percebe que Rafael fora atingido. Desesperado, ele corre até o carro e Fraga sai rapidamente para um hospital mais próximo. Toda esta ação é mostrada a partir de planos bem rápidos e feitos com a câmera na mão do operador, com o intuito de propiciar ainda mais dinâmica e ação a este fragmento da narrativa. Já no hospital, Nascimento caminha, apressadamente, pelo corredor em direção à sua ex-esposa. Tem na camisa social uma grande mancha de sangue que sugere a gravidade da situação de seu filho. Diferentemente da sua postura normal, ele se mostra extremamente fragilizado com o que acabara de acontecer. Ao relatar que a cirurgia do filho deve demorar cerca de oito horas, ele sequer consegue olhar para o rosto de Rosane. Está muito cabisbaixo, como se estive se cobrando tanto como policial quanto como pai por não ter conseguido proteger devidamente seu filho (Fotograma 34). Em plano próximo, Nascimento e Rosane se abraçam de maneira carinhosa, tentando minimizar aquela tristeza. Este é o único momento do filme em que os dois personagens se tocam. Nas demais cenas em que aparecem juntos havia uma clara barreira imaginária que os distanciava. 305 Fotograma 35: O herói fragilizado Ao tentar falar sobre a cirurgia, Nascimento começa a gaguejar de nervoso. Nos braços do ex-marido, Rosane começa a chorar de maneira compulsiva. Mais uma vez, Nascimento não consegue encarar sua ex-esposa aos prantos. Evita olhar para o rosto dela, como uma possível tentativa de tentar manter-se firme, apesar de seu corpo dar diversos sinais da dor e inquietude pelo que está passando. A trilha musical extra diegética e over também pontua esta perspectiva de sofrimento e imprevisibilidade. Nascimento acaba optando por deixar a única cópia da gravação da conversa entre a jornalista Clara Vidal e Diogo Fraga com este último. Estaria ali demarcada uma trégua entre os dois e, ao mesmo tempo, um pedido de ajuda para este novo aliado no combate ao sistema. Emocionado e sem conseguir pronunciar qualquer palavra a Fraga, Nascimento apenas faz sinal com a mão para que ele se aproxime e o entrega o gravador com o arquivo daquela conversa demasiadamente reveladora. Ele aperta o aparelho, por duas vezes, junto ao peito do deputado, como se estivesse indicando a importância daquele tipo de elixir. Como homem de ação que sempre foi, este herói decide não ficar no hospital esperando o resultado da cirurgia do filho. Necessita colocar para fora um pouco daquele terrível sentimento que carrega consigo. Para o espectador, ele confessa o tamanho da dor que está sentido, em voice over: -“Mesmo sem querer, o sistema acaba machucando a gente onde mais dói. Eu vivi a minha vida inteira acreditando que a polícia podia fazer a coisa certa. E, de uma hora pra outra, toda aquela certeza tinha ido embora. Eu não tinha mais alternativa. Eu tinha que bater de frente com o sistema”. 306 Baleando Rafael, as sombras dos vilões conseguem afetar violentamente o anti-herói. A partir deste fragmento de fala de Nascimento, é possível dizer que ele estava sofrendo de forma dupla: tanto devido ao tiro levado pelo filho, como em função de que boa parte das instituições e normas que ele acreditava terem se mostrado corrompidas e diretamente associadas àquele sistema que ele tanto buscara combater. Assim, boa parte daquilo que ele acreditava precisa ser revisado de uma forma quase instantânea. Rafael acaba se tornando um importante personagem para impulsionar Nascimento em uma metamorfose da sua forma de pensar. Contudo, antes disso, ele vive um momento no qual o policial incorruptível se une ao pai demasiadamente fragilizado. Ambos os lados do mesmo personagem precisam demonstrar coragem neste momento dramático. A conseqüência é o confronto direto com o sistema, iniciando com o ex-secretário de Segurança Pública, Guaracy. Essa sequência de enfrentamento é iniciada ainda com as palavras finais em voice over de Nascimento. A partir de uma câmera estável, observa-se Guaracy, no banco de trás do seu luxuoso carro com motorista. Em plano médio, vê-se Guaracy olhando mensagens no celular. Em off, seu motorista o avisa sobre uma possível blitz à frente. O candidato a deputado federal não hesita em dizer que vai “enquadrar” os responsáveis. Daquele banco detrás do seu carro, ele não se atenta para alguns detalhes importantes: o emblema da caveira no veículo militar e o uniforme preto dos policiais. Ambos são partilhados com o espectador a partir de alguns planos externos. A câmera passa para as mãos do operador, incitando a ação que está por vir. Não se trata de uma blitz costumeira dos policiais corruptos da polícia militar carioca, mas, sim, de uma operação do Bope. Depois que seu motorista para o veículo, Guaracy vai logo ordenando que os policiais baixem as armas, buscando saber quem é o encarregado daquela operação. Para sua surpresa, Nascimento abre rapidamente a porta do carro, puxando-o para fora, afirmando que ele é o responsável. Sem dar o menor tempo de reação a Guaracy, o anti-herói dá uma verdadeira surra no ex-secretário. Diferentemente do momento em que estivera no hospital, ao lado de Rosane, agora, ele faz questão de olhar nos olhos de Guaracy e ordena que ele faça o 307 mesmo. Aqui, a raiva e o rancor lhe dão coragem e força para falar tudo o que deseja a Guaracy, inclusive ameaçá-lo de morte, caso alguma coisa a mais aconteça com sua família. Nesta sequência, o policial e o pai se misturam. Ambos desejam justiça e não querem esperar os meios legais para se fazerem ouvidos. O antigo comandante do Bope aflora novamente a partir deste enfrentamento direto. Um dado diferencial é que, apesar do uso excessivo da força de mãos e pés, Nascimento não utiliza qualquer arma de fogo neste enfrentamento. Basta seu treinamento de judô para dar uma forte lição àquele homem público mandatário de crimes. Para uma parcela significativa dos espectadores brasileiros do filme, esta cena pode ter representado uma espécie de catarse, como uma ação que muitos poderiam desejar fazer tanto aos mandantes daquele crime, como também aos inúmeros políticos corruptos do nosso país. Nesse sentido, o alívio de Nascimento ao encarar e surrar Guaracy também é partilhado com este espectador. A fotografia mostra o candidato a deputado apanhando em planos bem fechados, ressaltando não apenas a ação em si, mas também o lado psicológico dos dois personagens: medo e apatia de um lado, e raiva e fúria do outro (Fotograma 35). Neste tipo de plano, o sangue do rosto de Guaracy é facilmente evidenciado na lataria branca de seu carro. Mesmo muito abalado com o tiro levado pelo filho, Nascimento não demonstra medo para enfrentar, mais uma vez, aquele dito sistema que agora começa a ser desmistificado. Fotograma 36: O pai vingador luta contra qualquer instância ou inimigo para defender “sua” família 308 i) Recompensa (Apanhando a espada): Como interpretado no tópico anterior, a provação de Nascimento se dá a partir do sofrimento físico imposto a seu filho Rafael por conta da milícia. Nesta parte da narrativa, uma possível primeira recompensa ou elixir de Nascimento teria sido o acesso ao gravador contendo o arquivo com informações comprometedoras da milícia e de todo o sistema. Assim, com a ajuda do Deputado Fraga, ele poderia denunciar toda aquela rede de corrupção. Contudo, pode-se pensar que, em Tropa de Elite 2, há também outro tipo de elixir ou recompensa para este herói: a mudança de pensamento a respeito das suas prioridades e da importância de sua família. Novamente no hospital, ele deixa cair sua roupagem de policial forte e guerreiro e adentra no perfil de pai sentimental. Em primeiro plano, ele chora, copiosamente, ao lado de seu filho inerte na cama de hospital. Pela primeira vez no filme, faz carinho em seu filho. Apesar de trágico, aquele episódio teria contribuído para que ele tivesse a oportunidade de refletir sobre como estava levando sua vida, especialmente no âmbito pessoal. Assim, a família volta a ganhar importância na vida do Tenente Coronel tão abnegado pela profissão militar e suas normas. Além disso, a partir do que acontece com seu filho, Nascimento também começa a perceber não somente as grandes imperfeições daquelas instituições que tanto defendia, como também inicia uma reflexão mais aprofundada de suas próprias falhas internas – aspecto fundamental para efetuar uma mudança substancial na sua forma de pensar e combater o crime. Dessa maneira, o tiro levado por Rafael dá a Nascimento uma oportunidade para que ele se permita fazer um autoexame de sua vida. Vendo seu filho naquela condição de inércia, Nascimento se mostra bem mais humanizado. j) Caminho de volta: Pensando o ambiente da Secretaria de Segurança Pública como o mundo especial de Nascimento dentro desta narrativa, não há um caminho de volta para o herói no seu aspecto profissional. Após a publicação da denúncia do sistema nos jornais e a abertura da CPI contra os diversos políticos envolvidos, o Tenente 309 Coronel é afastado do cargo e vê aberto um processo para sua expulsão da Polícia Militar. Além disso, ele torna-se uma das pessoas marcadas para morrer na agenda da milícia. Conforme dialogado no item anterior, outra possibilidade de ver o caminho de volta também se dá a partir da reaproximação de Nascimento com sua antiga família e verdadeiros amigos. Esta perspectiva trata do aspecto pessoal deste anti-herói. k) Ressurreição: A provação final deste anti-herói se dá logo após uma de suas visitas a Rafael, ainda internado em estado grave, no hospital Beneditino. A mesma sequência é mostrada duas vezes ao espectador. Na primeira vez, ela é apresentada logo no início do filme, apenas em partes. Está recortada de uma maneira bem mais enxuta e é usada para abrir o filme com um chamariz de ação e também para provocar suspense sobre o que aconteceria a Nascimento a partir daquela situação explicitada. Assim, não são mostrados alguns detalhes substanciais para a compreensão de tudo o que acontece. A primeira versão busca apenas chamar a atenção do espectador. Na versão completa da provação final de Nascimento se consegue identificar todos os envolvidos e o porquê deste momento de quase morte. A partir de uma montagem alternada, o espectador começa a ver tanto Nascimento no hospital, ao lado de seu filho, como acompanhar os preparativos da milícia para dar fim ao Tenente Coronel. Neste momento da narrativa, são usados vários planos detalhe de cartuchos de armas sendo carregados, pistolas e fuzis sendo preparados. No comando da ação aparece o mais violento de todas as sombras de Nascimento: o Major Rocha. Os milicianos estão em uma base dentro de um depósito de gás de uma das favelas dominadas. Fortemente armados e equipados com dois carros pretos com vidros em fumê, para evitar a identificação, eles passam em frente ao hospital e fazem contato com um comparsa que está em um bar, vigiando a saída de Nascimento. O plano é simples: cercá-lo sozinho, saindo do hospital, e eliminá-lo à queima roupa. Naquele momento, Rocha está temeroso de que possa ter problemas advindos do depoimento do Tenente Coronel na CPI das milícias. 310 A câmera passa a acompanhar a saída de Nascimento do hospital. Ouve- se ao fundo uma trilha musical extra diegética e over que dá o tom de suspense àquele momento. A partir de um movimento de travelling, observa-se Nascimento de costas, caminhando desfocado em segundo plano, enquanto um homem desconhecido, também de costas, vai caminhando atrás dele, em primeiro plano e focado, avisando alguém, pelo celular, daquela atividade de Nascimento. Ele continua a caminhar, sendo filmado ainda de costas, em planos mais próximos, se mantendo em primeiro plano, enquanto todo o restante do cenário se apresenta desfocado. Antes de entrar no seu carro, Nascimento olha para os lados, buscando certificar-se de que aquele local está seguro. Do lado de fora do hospital, o espectador vê duas movimentações suspeitas. Na primeira delas, logo que o carro de Nascimento sai do estacionamento do hospital, ao fundo do enquadramento e desfocado, se observam dois homens, cujos rostos não são evidenciados, entrando em outro carro. Fica subentendido que eles vão atrás do anti-herói. A segunda movimentação suspeita é ainda mais evidente ao espectador: o comparsa de Rocha avisa ao bando pelo rádio que Nascimento teria saído. Tem início o fragmento de maior ação de Nascimento no filme. Durante o pequeno percurso, a câmera está junto com ele dentro de seu carro. O tempo de exibição dos planos passa a ser ainda mais curto e a sequência ganha um ritmo mais acelerado. Em pouco tempo, a milícia fecha a rua com os dois veículos pretos. Rapidamente, Nascimento manobra seu carro, virando-o alguns metros antes do contato com os mesmos. Os milicianos vão logo descarregando suas armas sobre o carro de Nascimento. Um dos tiros acerta o vidro de carona e a câmera aproveita este exato momento para adentrar novamente o veículo, enquanto Nascimento se joga para fora do mesmo. Cercado e sendo alvo de diversos disparos, Nascimento parece realmente não ter escapatória. Contudo, nesta segunda apresentação da sequência, há um elemento surpresa para Rocha e sua milícia. Nascimento não está só. Aqueles desconhecidos que foram vistos entrando em um carro num dos planos anteriores são amigos dele que vieram apoiá-lo neste momento, de maneira extraoficial. Como Nascimento, seus parceiros também não possuem medo do enfrentamento direto e saem logo dos carros para defendê-lo (Fotograma 36). A partir deste fogo 311 cruzado, um dos amigos de Nascimento é baleado e vários milicianos são mortos. Não aguentando a pressão dos caveiras, Rocha decide fugir com os poucos comparsas que sobraram. Fotograma 37: Nascimento é ajudado pelos seus “verdadeiros amigos” e surpreende os milicianos No final da ação, além dos incontáveis tiros dos mais diversos calibres, dos vidros quebrados e da trilha musical extra diegética over, ouve-se também o som de batidas de um coração que pode ser associado a Nascimento. O mesmo efeito sonoro foi utilizado também na sequência em que Matias é morto por Marreco, a mando de Rocha. Essa referência auditiva pode ser interpretada tanto como um efeito produzido a partir do esforço físico e da tensão daquele momento, como também enquanto uma reação de entusiasmo com o retorno ao confronto direto contra o crime organizado. Dialogando com o espectador, em voice over, Nascimento faz um balanço positivo de tudo aquilo: -“A minha sorte foi que eu descobri os meus verdadeiros amigos a tempo. Quando eles vieram, eu não estava sozinho. [...] O filho da puta [Rocha] escapou, mas a minha guerra contra o sistema tava só começando. Agora era pessoal. Eu ia continuar lutando, só que de um jeito diferente”. Neste momento de ressurreição, a partir deste fragmento de voice over, nota-se que Nascimento começa a aprender uma grande lição sobre o valor dos verdadeiros amigos, aqueles que, no seu caso, arriscam o emprego e a própria vida para defendê-lo. 312 l) Retorno com o elixir: Depois de subjugar e fazer correr seu mais violento inimigo, Nascimento ainda precisa vencer outros desafios. Um deles é o momento de seu depoimento na Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro. Nesta sequência, Nascimento vai aprender a lutar com outra arma: a palavra. Apoiado nas inúmeras informações e provas através da Secretaria de Segurança Pública, ele denuncia amplamente todos os envolvidos no sistema. Há muito tempo ele deseja que o elixir da justiça fosse efetivado. A sequência na Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro é iniciada mostrando Nascimento parado e em silêncio. Ele está se preparando e esperando o início de um novo tipo de guerra. Contudo, o plano seguinte evidencia que ele possui um novo aliado: o Deputado Diogo Fraga que também luta contra as milícias. Nascimento é visto ao lado e no mesmo nível deste presidente da CPI. Logo no início da sequência, o deputado e apresentador de TV, Fortunato, busca chamar a atenção de todos e impedir que a CPI seja aberta. Depois de Fortunato ter o som de seu microfone cortado, Nascimento pode, enfim, começar a falar (Fotograma 37). Em seu discurso, ele faz uma revisão profissional, assumindo seus erros e, literalmente, pedindo o fim da Polícia Militar do Rio. Mantendo seu espírito corajoso também a partir das palavras proferidas naquele recinto, ele denuncia todos os envolvidos em diversos crimes, indo do ex-secretário de Segurança Pública Guaracy, passando por alguns dos próprios deputados ali presentes, como é o caso de Fortunato até chegar ao Governador do Rio. Para o idealista Nascimento, todos merecem o mesmo tratamento: a justiça. Fotograma 38: O herói trágico toma posse de outra arma: a palavra. 313 Durante a sequência, a fotografia faz uso, várias vezes, de panorâmicas em diagonal que fazem um caminho de Nascimento para os deputados em plenário e vice-versa. A proposta é conseguir registrar ação e reação daqueles personagens a partir da mesma câmera, na mão no operador, pontuando as formas de interação entre os envolvidos naquele relato. Quanto mais as denúncias se agravam, mais Fortunado se vê ameaçado, até que decide ir embora daquele plenário. A partir de um dolly out, a câmera vai se afastando de Nascimento e mostrando a câmara de deputados de forma mais ampla e geral. No centro inferior da tela, o espectador acompanha Fortunato saindo rapidamente do recinto e fazendo sua última piada ao jogar beijos para todos ali presentes. No caso de Fortunado, Nascimento consegue aplicar-lhe o desejado elixir da justiça. Na continuação do filme, é possível vê-lo, a partir de câmeras de segurança, entrando, como prisioneiro, em uma cadeia. Contudo, esse procedimento não será a regra, mas, sim, a exceção dentro daqueles denunciados pelo herói. Tanto o Governador Gelino como o Deputado Guaracy são vistos comemorando suas vitórias na política. No caso deste último, de forma bastante contraditória, ele acaba ainda sendo eleito “democraticamente” para ser presidente do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Conforme o próprio protagonista analisa, o sistema promove uma série de rearticulações para manter seu poder. Nas suas últimas falas, em voice over, Nascimento questiona um sistema que não está apenas circunscrito ao Rio de Janeiro. As imagens aéreas de Brasília ajudam a enfatizar sua crítica ao mesmo dentro de uma amplitude nacional. A narrativa ainda sugere mais um elixir para Nascimento. Desta vez, no âmbito pessoal. Após terminar seu último fragmento em voice over, dizendo ao espectador que ainda vão morrer muitos inocentes por conta deste famigerado sistema, a montagem corta direto para a expressão sofrida dele mesmo, no quarto de hospital, ao observar seu filho Rafael que continua internado, sem qualquer melhora. A câmera vai se movendo lentamente, saindo do pai entristecido para mostrar o filho imóvel. Contudo, de maneira contrastante à voice over que Nascimento acabara de pronunciar, Rafael não estará dentro da terrível 314 estatística dos inocentes mortos pelo sistema. Lentamente, ele começa a demonstrar pequenas reações, a partir de movimentos com os olhos. Tal ação pode sugerir uma interpretação que aponta a recuperação de Rafael como outro tipo de elixir conseguido por Nascimento e, neste sentido, representaria também a possibilidade de continuação da trama em um futuro próximo filme. Vale ressaltar que, como os outros elixires conseguidos por Nascimento anteriormente (gravador com arquivo para denunciar a milícia e a própria justiça feita a alguns dos denunciados), a recuperação de Rafael também é entendida como uma recompensa para um coletivo e não para o indivíduo Nascimento. Assim, além de Nascimento, a reação de Rafael afetaria diretamente o próprio jovem, a sua mãe Rosane, seu padrasto Diogo Fraga, bem como os colegas de trabalho de Rafael. 5.3.5. – Panorama, pontos de vistas e revelações da análise fílmica para além da trajetória de aventuras do herói a) Sentido narrativo: No filme Tropa de Elite 2, quem conta a história é o próprio protagonista, ou seja, o Tenente Coronel da Polícia Militar Fluminense, Roberto Nascimento. Assim, praticamente toda a história é contada em primeira pessoa, a partir deste narrador personagem que tem diversas relações com outros personagens e elementos da narrativa. Tamanha proximidade deste herói trágico ou anti-herói com o mundo narrado origina uma atmosfera com características subjetivas e emocionais. Quase toda a narrativa está contida dentro de um grande flashback. Antes dele, são observados apenas uma espécie de clipping resumidor do filme anterior, Tropa de Elite, e um pequeno fragmento recortado da sequência que retrata a saída de Nascimento do hospital Beneditino, no qual está internado seu filho. Durante praticamente toda a obra, Nascimento vai comentando todas as ações, a partir de voice over, explicitando seu modo de ver e entender diversos fatos, ações e personagens. Assim, este narrador apresenta uma omnisciência ingerente, sabendo mais que os outros personagens, uma vez que fala a partir de 315 um tempo futuro, ou seja, comenta fatos que já estão no seu passado, podendo imprimir uma releitura detalhada e bastante pessoal dos mesmos. Assim, a utilização de voice over contribui para que o espectador conheça as memórias e a forma de pensar do então Tenente Coronel e Subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Os diálogos que compõem o filme são imediatos, diretos e pessoais. O tempo da narrativa é linear, porém, como a história também é contada a partir de flashback, possui característica de narrativa fraturada, ou seja, não vetorial. Em alguns momentos, o tempo da trama se mostra extremamente condensado, suprindo diversos tempos mortos da ação. A demarcação de tempo histórico não parece ser uma grande preocupação do diretor e sua equipe. Os intertítulos utilizados para demarcar temporalidade apenas a apresentam de uma maneira muito geral, como: -“Rio de Janeiro – dias de hoje” ou “Bangu I – 4 anos antes”. É preciso ressaltar que, em relação ao tempo psicológico da narrativa ainda há outro diferencial: a narração em voice over de Nascimento, normalmente, apresenta uma temporalidade posterior às ações e imagens que estão sendo mostradas. A partir deste mecanismo, ele pode apresentar ao espectador um tipo de texto advindo de suas lembranças. Neste caso, a partir da entrada do flashback, que constitui grande parte da narrativa, Nascimento apresenta suas memórias em uma perspectiva quase linear, indo das causas para os efeitos de suas ações. Em última instância, o recorte temporal da película sugere o retrato de um momento muito próximo ao ano de lançamento da obra, ou seja, 2010, acrescido de ações que também teriam sido realizadas quatro anos antes, conforme explicita um dos intertítulos disponibilizados. b) Sentido dos significantes visuais e sonoros na dinâmica narrativa de herói: Caso seja considerado o intertítulo “Rio de Janeiro – dias de hoje” e, nesta medida, o ano de lançamento do filme, 2010, também se pode incluir, de maneira mais geral, o espaço fílmico na categoria de espaço temporalizado, ou seja, que demarca esta primeira década do segundo milênio na capital fluminense. 316 Do ponto de vista espacial, Tropa de Elite 2 é bastante diversificado. São muitas as ambientações criadas. Contudo, um dos espaços que merece destaque é o apartamento do protagonista. As duas vezes em que este espaço aparece é visto demasiadamente escuro. As luzes utilizadas pretendem dar a impressão de que todo o ambiente está iluminado apenas a partir da lâmpada da geladeira, da televisão ou ainda dos pequenos raios de luz natural que poderiam entrar pela cozinha. Sempre o protagonista é visto na penumbra ou apenas como uma silhueta, um vulto. Tal uso de áreas com pouca iluminação pode sugerir um diálogo com o lado psicológico deste personagem, com aquilo que ele está vivenciando e com seus pensamentos e reflexões. Nas duas cenas em que Nascimento está em seu apartamento, ele se mostra preocupado, tenso (repercussão do massacre em Bangu I) ou ainda triste, solitário e fragilizado (logo após a morte de Matias). De forma geral, seu apartamento remete à solidão, à perda da família, à tristeza interna do protagonista. Outro espaço fílmico que também deve ser analisado trata-se do ambiente das favelas. Inicialmente, tais lugares são vistos como palco não só da maior parte das sequências de ação do filme, como também de alguns dos principais massacres feitos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, em especial pelo Bope. Em uma das sequências de ação, o próprio Tenente Coronel Nascimento confessa ao espectador, em voice over, que, quando tem algum tipo de pressão em nível pessoal, busca descontar sua raiva a partir do enfrentamento com aqueles que são considerados “bandidos”. Por mais de uma vez no filme, os policiais exterminam vários jovens envolvidos com o tráfico de drogas naquele ambiente. Entretanto, é preciso ressaltar que a favela também é vista como cenário de festa e animação. Isso acontece quando as ditas autoridades constituídas se juntam à liderança extraoficial da milícia no intuito de comprar o voto daqueles eleitores residentes na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Como apontado, os tiros disparados, agora, são feitos “numa boa” – conforme afirma o chefe da milícia. Assim, este espaço se rende ao samba, ao churrasco de rua e à cerveja. Com tais atrativos, dominantes e dominados parecem viver em um tipo de harmonia falsa. 317 A fotografia é muito marcante e cuidadosa, em Tropa de Elite 2. Grande parte das imagens é filmada com a câmera nas mãos do operador, muitas vezes, em uma perspectiva de câmera nervosa que caminha ou se movimenta bastante. Este procedimento, que confere instabilidade à imagem, propicia ideias, como tensão, ação, dinamismo, desconforto e incerteza. Dentro de um filme que trabalha conflitos tão ostensivos como os apresentados, esta pode ser considerada uma opção eficaz. Há uma variação muito grande dos tipos de planos utilizados, de acordo com o objetivo de determinada cena ou sequência. Na trama, são poucos os quadros totalmente parados. Quase sempre há algum tipo de movimento do aparelho câmera. São muitos travellings, panorâmicas, dollys. Tudo para buscar uma obra mais dinâmica e atrativa ao espectador que gosta de filmes de ação. Aqui, é importante pontuar que, durante alguns fragmentos das sequências de troca de tiros entre os policiais do Bope e os traficantes, a câmera oferece imagens muito próximas daquelas já conhecidas nos videogames de ação. Assim, o espectador é colocado entre os soldados do Bope, dentro do famoso veículo caveirão ou ainda ao lado de Nascimento, no helicóptero de combate. Durante a narrativa é possível notar diversas quebras de eixo, feitas de maneira proposital, como, por exemplo, na cena em que Matias e sua patrulha torturam o “dono do morro”. Evidencia-se também o uso de várias imagens em câmera subjetiva, como na cena em que vários garotos jogam futebol na quadra do alto da favela ou na cena em que o presidente da Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro observa as fotos do dossiê das milícias ou ainda quando o delegado do bairro Tanque é jogado ao chão e observa os invasores da delegacia roubando as armas, em uma imagem filmada com a câmera em uma posição diagonal, simulando a posição de sua cabeça. Além disso, em vários planos é possível observar uma profundidade de campo criteriosamente marcada, fazendo com que um determinado sujeito fique em foco e, consequentemente, em destaque, enquanto todo o restante da composição permanece sem nitidez, podendo originar sugestões interpretativas de tensão e instabilidade psicológica do Tenente Coronel Nascimento. Uma das imagens parece apresentar um significado bastante especial na obra. Trata-se do plano em que o reflexo de Nascimento é visto em um pequeno 318 espelho do banheiro da cadeia militar na qual Matias cumpre seus 30 dias de detenção, após ter denunciado o abandono do Bope por parte do governo do Rio de Janeiro. Tal imagem parece ter sido cuidadosamente planejada para dialogar com o que Matias acabara de questionar a Nascimento, ou seja, sua provável mudança de postura depois que entrara na Secretaria de Segurança Publica. A partir do momento em que a câmera acompanha o movimento de Matias e que o mesmo sai de quadro, resta ao espectador a imagem refletida de Nascimento, o que sugere um tipo de refrão ou retorno inquietante do questionamento feito por Matias. Nesse sentido, a dúvida também é colocada para o espectador, a fim de que possa buscar responder a essa questão durante o decorrer da narrativa. A base da iluminação é a luz natural. Mesmo quando há o acréscimo de luz no ambiente, como nas cenas noturnas, observa-se a tentativa de deixar a ambientação com alterações feitas pela equipe minimamente percebidas. Refletindo sobre as cores utilizadas no filme é possível separar dois tipos de ambientes: quentes e frios. Esse primeiro tipo de ambientação seria representado, por exemplo, pela sequência de Bangu I e pelas favelas invadidas. Nesta interpretação, os tons mais quentes são usados para aqueles momentos nos quais acontecem algumas das cenas de maior ação. Já as cores frias são usadas para ambientes, como a Secretaria de Segurança Pública ou o apartamento de Nascimento, nos quais se apresentam questões ainda sem solução para o Tenente Coronel, problemas que apenas o confronto direto já não é capaz de resolver. Outro aspecto que precisa ser frisado com relação ao processo de captação das imagens, trata-se do uso de merchandising em alguns pontos do filme. Parte das empresas patrocinadoras da película também recebe um lugar dentro da própria narrativa. Boa parte das inserções ocorre de maneira muito sutil e, em alguma medida, até “natural” para o tipo de cena ou sequência na qual são inseridas, como é o caso das garrafas da cerveja Brahma, durante o churrasco na favela ou na mesa de bar, ou ainda a pequena placa remetendo a um posto autorizado para créditos da empresa de telefonia Claro, no barzinho da entrada da favela. O merchandising que parece um pouco mais agressivo ao espectador é o da Unimed, por conta da utilização da grande ambulância que está manobrando no hospital, enquanto o protagonista caminha até o seu carro. 319 Como dito, o filme utiliza alguns intertítulos sobre determinadas imagens. Ao todo, são cinco intervenções a partir de intertítulos. Alguns deles buscam explicitar a denominação ou localização dos ambientes mostrados nas imagens de fundo, como, por exemplo: “Delegacia de polícia – bairro Tanque” ou “Congresso Nacional – DF – Brasília”. No caso deste último, parece ter sido claramente pensado para o público estrangeiro, visando ressaltar a ligação entre os locais que tanto a imagem como os diálogos já haviam apontado. Outros intertítulos utilizados apenas demarcam uma temporalidade bastante geral, como, por exemplo: “Dias de hoje”. Como as imagens, os códigos sonoros também são trabalhados de maneira muito diversificada e com grande detalhamento, em Tropa de Elite 2. Iniciando a reflexão acerca da banda sonora a partir dos diálogos é possível notar que vários deles acabam se transformando em off, ou seja, são iniciados de maneira sincronizada com os personagens que falam e, logo depois – ou mesmo antes – passam a ser ouvidos juntamente com imagens referentes àquilo que estão relatando. Um exemplo desse procedimento é quando Diogo Fraga está proferindo uma palestra sobre a criminalidade no Brasil. Os ruídos destacam-se, especialmente, nas cenas de confronto direto. Há incontáveis exemplos, tais como: a fechadura da porta que o Capitão Matias abre durante o conflito de presos em Bangu I ou ainda o tiro de fuzil que ele mesmo dá em Beirada. Neste caso, ambos os ruídos reforçam a tensão, incerteza e conferem suspense à trama. A trilha musical também é bastante explorada com uma base constituída como som extra diegético over, ou seja, criado fora da ambientação fílmica. Neste caso, um dos fragmentos que mais chama atenção é aquele atribuído ao sobrevoo sobre o jardim do Congresso Nacional, em Brasília. Tal trilha musical possui um mecanismo de frequência cujo ritmo vai diminuindo gradativamente até quase parar – no momento exato em que Nascimento diz, em voice over, que muitos inocentes ainda vão morrer por conta do sistema. Assim, trilha musical, ritmo e voice over dialogam na construção de sentido que será complementado e modificado a partir da sequência posterior a esta. 320 Contudo, além das trilhas criadas externamente ao filme, há uma sequência de trilha musical diegética que também merece destaque: a da festa de rua na favela. Em vários planos, um grupo de samba é visto e ouvido animando a festividade. Curiosamente, enquanto Rocha demonstra todo seu poder de mando naquela micro-região, o grupo verbaliza a música “Zé do Caroço”, do grupo Revelação. O fragmento musical apresentado no filme destaca a seguinte mensagem: -“Está nascendo um novo líder, no morro do Pau da Bandeira...”. Esta é uma mensagem extremamente clara a respeito do desejo de poder do líder de milícia Rocha. Apesar de pouco usado do ponto de vista quantitativo, o silêncio marca uma das cenas que pode ser interpretada como o momento de maior aproximação entre pai e filho. Trata-se da sequência na qual Nascimento treina judô com Rafael, na tentativa de uma reaproximação com o jovem. Este é um dos poucos – se não o único – fragmento do filme no qual há um relativo espaço para a contemplação, para a sutileza dos olhares, para as longas pausas na fala entre os dois. Ainda analisando a banda sonora, é necessário colocar em evidência a narração em voice over do Tenente Coronel Nascimento. A partir deste instrumento, tal narrador autodiegético busca cativar o espectador e, em última medida, aproximá-lo da sua maneira de enxergar aquilo que está ao seu redor, uma vez que este se torna confidente e, até mesmo “cúmplice” do protagonista. Tal discurso acabou produzindo grande empatia ou identificação com o personagem entre uma grande parcela do público. A voice over de Nascimento produz enunciados posteriores às ações mostradas. Muitas vezes, ratifica ou justifica as decisões do Tenente Coronel ou ainda busca esclarecer meandros complexos da organização do famigerado sistema. É importante ressaltar que o protagonista não possui uma visão objetiva ou isenta a respeito das sequências que são mostradas ao espectador junto de sua narração. Pelo contrário, acaba buscando convergir todas aquelas outras vozes e discursos para sua ideia a respeito dos mesmos. Talvez, por esse motivo tantos críticos tenham apontando o filme como “fascista” e não apenas o Tenente Coronel. Neste ponto, é pertinente buscar esclarecer que a afinidade entre quem faz a obra e este protagonista não é, necessariamente, de concordância ou 321 igualdade. Como oposição ao posicionamento de Nascimento, talvez um dos mais significativos personagens seja o intelectual de esquerda Diogo Fraga, no sentido de colocar em xeque a forma de pensar do Tenente Coronel. Caminhando um pouco mais na obra, vê-se o próprio protagonista abrindo mão do confronto direto ou da violência e utilizando a arma da palavra na Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro. O processo de montagem de Tropa de Elite 2 é extremamente minucioso e possui substancial aproximação com a estética publicitária. As imagens são pormenorizadamente trabalhadas, criando uma aparente representação da realidade, por vezes, extrapolando-a: há a presença de imagens congeladas no enfrentamento entre Matias e Beirada, em Bangu I; o congelamento do fogo que sai da pistola de Rocha ao disparar contra o traficante Marcinho. O primeiro exemplo cria uma forma explícita e forte de suspense para o espectador. Afinal, no momento do disparo, tanto Matias como Nascimento são mostrados, congelados, olhando no sentido de Beirada. Assim, a atenção do público é totalmente direcionada para a última imagem, também congelada, que mostra Beirada segurando Fraga como refém. Após canalizar toda a atenção do espectador para este último plano, a imagem ganha novamente movimento e é possível acompanhar o momento exato em que a bala de fuzil abre um grande buraco na cabeça do preso. Até mesmo o próprio Tenente Coronel Nascimento se mostra abalado com a imagem que vê pelo circuito interno da penitenciária – que dirá o espectador mais sensível? Na montagem do filme também se encontram diversas antecipações ou prolongamentos na banda sonora, tanto das falas dos personagens como das trilhas musicais entre uma determinada sequência e a posterior ou anterior. Essa medida promove diversas associações dramáticas, como, por exemplo, suspense ou incerteza. Um exemplo pode ser visto quando o Coronel Fábio, a bordo do iate de Rocha, pergunta a ele o que está acontecendo naquele momento que irá mudar suas vidas. Com a última parte da sua pergunta transformada em off, surgem imagens de um grupo de homens armados dominando a delegacia do bairro Tanque. De forma geral, o tempo de permanência dos planos é bem curto. Entre os procedimentos técnicos de transição entre os planos, o mais usual é o corte seco. 322 Ambos os fatores sugerem um ritmo mais acelerado em boa parte da narrativa. Entretanto, também há espaço para outros tipos de transição, tais como a varredura (na entrada da sequência na qual os militares do Bope estão se apresentando para o Secretário de Segurança Pública); ou a fusão (momento que sai do fogo congelado da arma de Rocha para um plano no qual se vê um técnico instalando mais ligações clandestinas em um poste da favela). A montagem narrativa também se destaca pela forma na qual consegue expor e explicar o ponto inicial de surgimento da milícia, relacionando-o ao forte combate feito pelo Bope aos traficantes. Assim, o mesmo fragmento do filme é mostrado de duas maneiras diferentes. Uma versão é ordenada praticamente logo após a outra. Na primeira delas, o espectador vê aquilo que Nascimento havia pensado que iria acontecer na relação entre traficantes e corruptos. Já na segunda, se observa o que de fato acontece: descontente com o “arrego” magro, Rocha decide matar os traficantes e tomar para si o domínio da favela, a partir da constituição da milícia que passa a vender não apenas proteção, como diversos outros serviços ilegais naquele lugar. É interessante verificar que, em ambas as versões, o pequeno traficante é morto, ou seja, no que de fato teria ocorrido ou no pensamento de Nascimento, aquele sujeito já estaria marcado para morrer pelos dois representantes da lei. Ainda dialogando com o ambiente da favela, é possível perceber um tipo de montagem por contraste no raccor entre a sequência da discussão de Rosane e Fraga no apartamento deste último e a sequência em que se inicia o churrasco de rua na favela. Ainda no ambiente onde este casal se desentendera é possível ouvir a trilha musical diegética em off do grupo que toca na favela. Assim, tensão e samba se mesclam, antecipando o clima festivo e pouco reflexivo daquela comunidade. Em outro momento, a montagem também propicia uma forma de ligação diferenciada entre dois personagens. Trata-se do raccor entre a cena na qual o Deputado Fraga entrega uma cópia do dossiê das milícias para a jornalista Clara Vidal e a cena posterior na qual Nascimento solicita que Valmir faça um “grampo” no celular do deputado. De forma muito precisa, Fraga termina sua fala, na sequência anterior, à direita do enquadramento, com os dois braços debruçados sobre a mesa e as mãos próximas ao rosto. Logo após o corte seco, vê-se 323 Nascimento, em uma posição muito similar àquela em que estava Fraga, porém, ele está no canto esquerdo da tela. Assim, colocando os dois personagens, um após o outro, a montagem origina a ideia de uma possível união entre esses dois pólos distintos. Como ambos estão a tratar do assunto milícia, também é possível afirmar que este assunto seja o ponto que vai unir os dois personagens ou pólos. Outro recurso utilizado pela montagem é o fundo sólido de cor preta durante determinados fragmentos de falas ou de silêncio, provocando sensações, como suspense e incerteza. Um bom exemplo é encontrado na sequência em que a jornalista Clara Vidal é surpreendida por Rocha e seu bando de milicianos. Após um deles ordenar a Clara que tire a roupa, com uma arma em punho, a jornalista grita de medo e pavor. Logo se vê o fundo sólido preto. Assim, cabe ao espectador, neste momento, imaginar as atrocidades que este miliciano teria feito com aquela jovem. Como explicitado, grande parte do filme se encontra dentro de um flashback que promove um retorno de quatro anos nos acontecimentos relacionados ao protagonista. Contudo, ainda antes disso, juntamente com os títulos e créditos iniciais, também é apresentado ao espectador um tipo de clip resumidor do filme anterior Tropa de Elite. Assim, de alguma maneira, parte daquelas características dos personagens principais e da própria história de Nascimento ainda é carregada para esta nova obra. c) Sentido ideológico: Este pode ser considerado um dos pontos mais controversos para se analisar nesta obra. Como dito, a partir do uso da voice over do Tenente Coronel Nascimento, o filme cria uma forte identificação deste personagem para com uma grande parcela do público que lotou as salas de cinema no Brasil para assisti-lo. Contudo, este narrador autodiegético acabou provocando longos e exacerbados debates. Alguns espectadores e críticos não conseguiram separar o discurso empregado por Nascimento do discurso objetivado pela própria obra. Mais uma vez é preciso esclarecer que Tropa de Elite 2, como obra cinematográfica que é, possui uma grande e variada gama de elementos construtores de discurso. Assim, a mensagem do filme, enquanto obra, não pode ser restrita apenas às palavras de um único personagem, mesmo que ele tenha a seu favor o 324 instrumento da voice over. Neste caso, sabendo que Nascimento propõe ao espectador uma narração bastante pessoal e pouco confiável, é necessário também abrir olhos e ouvidos para tudo aquilo que está ao seu redor, no decorrer da narrativa. O filme desenvolve um discurso sério e reflexivo a respeito da corrupção, tanto no ambiente político, como na polícia. Mesmo com um recorte espacial bastante definido – o estado do Rio de Janeiro – amplia-se a discussão dos problemas relacionados a essas duas instâncias temáticas para todo o país. A participação do personagem Diogo Fraga pode ser considerada como fundamental para apresentar um contraponto às ideias fascistas de Nascimento e, ao mesmo tempo, questionar, de forma mais reflexiva e menos violenta que o protagonista, todo o sistema que ele tanto combate. Assim, os dois personagens complementares acabam unindo forças para continuar lutando. Uma possível interpretação da mensagem final proposta pela obra estaria relacionada a algum tipo de esperança, mesmo que tardia ou improvável. Em outras palavras, a partir da sugestão sutil da possibilidade de restabelecimento de Rafael, se ganha um mínimo de esperança para que, também em outros cenários, como na política e na polícia, possam acontecer mudanças significativas em algum ponto do futuro. Neste caminho de câmbios, o próprio protagonista apresenta mudanças substanciais durante a narrativa. Ele tenta se aproximar do filho e do conceito de família que lhe restou e aprende, de forma contraditória, com seu rival no amor de Rosane, a lutar com um novo tipo de arma – a palavra. Nesse sentido, a sequência em que Nascimento faz seu depoimento na CPI das milícias é um ponto marcante da metamorfose que começa a apresentar este personagem. Pode-se imaginar o quanto estaria sendo difícil, para ele – um homem que sempre fora afeito ao confronto direto, a partir das armas de fogo – combater o sistema daquela nova maneira. Em Tropa de Elite 2, o espectador tem reservado para si um lugar bastante especial. Ele tem acesso à mente e aos pensamentos e reflexões do protagonista. Como narrador, Nascimento ganha poderes de onisciência e onipresença. A voice over apresentada é uma espécie de excedente da sua visão posterior aos 325 acontecimentos que transcorrem na tela. Dessa forma, é possível identificar duas tendências discursivas: a do protagonista no tempo da diegese e aquela utilizada pelo narrador Nascimento em um tempo posterior. Em muitos momentos, o Tenente Coronel dialoga com o espectador, em voice over, como se estivesse falando para um velho amigo. O protagonista emprega a expressão “parceiro” para se referir ao espectador, ampliando ainda mais a possibilidade de identificação e cumplicidade para com ele. Neste ponto, é preciso lembrar que, dentro da trama, ele não possui tantos amigos assim... Dessa maneira, possuir um contato tão próximo e íntimo com este personagem acabou causando variados tipos de reação, desde a empatia por grande parte do público até sua rejeição por outra parcela. 326 ANTES DOS CRÉDITOS FINAIS... Fazer cinema no Brasil é uma aventura de risco. O perfil predominante do cineasta brasileiro, longe da falsa imagem do negociante astuto que uma certa imprensa espalha, é o de alguém que perdeu suas propriedades ou sacrificou economias de família por um cinema no qual acredita. São artistas que empenharam anos fazendo filmes que, muitas vezes, são expulsos das salas após uma semana de exibição. São criadores obstinados, dentre os quais alguns morreram no ato de filmar, como Amylton de Almeida, Denoy de Oliveira e David Neves. São, enfim, histórias de vidas inteiras de dedicação a uma atividade frequentemente inglória. (NAGIB, 2002, p. 15). Como relata Lucia Nagib, no fragmento acima, um dos principais fatores que estimularam o planejamento e execução desta pesquisa foi o acompanhamento, durante anos, do trabalho de alguns abnegados realizadores do cinema brasileiro. Afinal, eles também são possuidores de todas as principais características que, nos capítulos anteriores, delimitou-se enquanto o conceito de herói. São muitas as histórias de sacrifício e de entrega total a esta arte e forma de expressão. Revisitando o problema base desta pesquisa, que questiona sobre quais elementos simbólicos estão sendo utilizados para a constituição do mito do herói, após a Retomada no cinema brasileiro, buscou-se aproximar tal interrogativa, primeiro, a um estudo definidor ou delimitador daquele tipo de sujeito agente que se identifica enquanto herói na cinematografia produzida nas últimas décadas no Brasil. Para tal atividade, foram utilizadas as três categorias de heróis nacionais sugeridas pelo antropólogo Roberto da Matta (caxias, malandro e renunciador). Conjuntamente ao estudo do perfil construtor dos protagonistas em cada película, a partir da aproximação com essas categorias, também se utilizou as 12 etapas da Jornada do Herói, indicadas por Christopher Vogler, na busca de uma interpretação da narrativa fílmica a partir do estudo daqueles referidos heróis apresentados e de suas respectivas ações. Pensando que, em alguma medida, tais heróis podem representar fragmentos e características da própria identidade constitutiva do povo brasileiro, refletiu-se sobre os círculos de influência na criação desta identidade, sugeridos 327 por Sergio Buarque de Holanda, aproximando-os às obras escolhidas. Neste ordenamento, tentou-se também descobrir o que essas obras fílmicas revelam tanto dos seus protagonistas heróis, como também do próprio país, como objeto ou cenário de narrativa, lembrança e mesmo testemunho histórico. A partir das características apontadas por Holanda, pode-se afirmar que o aspecto da grandiosidade da natureza está presente em duas das obras analisadas. Em Central do Brasil, a natureza da região do nordeste é tida como vertente positiva da brasilidade, atuando como um contraponto à vida demasiadamente dinâmica da metrópole Rio de Janeiro. Assim, os cenários formados pelo sertão, pelo interior, suscitam um tipo de abertura para contemplar aquilo que, nos grandes centros urbanos, não há tempo. Já no filme Lamarca, este aspecto da grandiosidade da natureza também é utilizado, mas possui uma função distinta. Na obra, a vegetação retorcida do sertão serve como um tipo de prisão natural para Lamarca. Mesmo os planos mais abertos da fotografia não oxigenam a situação conflituosa vivida por este herói. Eles apenas demonstram o contraste de forças entre o debilitado líder revolucionário e aquela quente, imensa e praticamente intransponível clausura a céu aberto. Conforme também aponta Holanda, no Brasil, a família é vista como um dos maiores círculos de influência na criação de identidade. Ela é trabalhada nos três filmes com nuanças diferentes. Em Central do Brasil, o personagem Josué busca, com todas as forças, encontrar seu amado e idealizado pai. Nesta trajetória, ele interroga todas as pessoas em idade adulta sobre seus possíveis cônjuges, com um tipo de crença na qual todos deveriam ter uma família tradicional. Mesmo a protagonista Dora, que se mostra muito pessimista com relação ao tema e à própria relação entre pais e filhos, muda de posição ao final da obra, e estimula Josué a manter a fé no encontro com seu pai, a fim de formarem a família tão almejada pelo menino. No caso do filme Lamarca, o protagonista vive uma relação harmoniosa com sua esposa e filhos, constituindo uma família tradicional, até o momento em que a luta revolucionária torna a convivência deles uma situação de perigo de vida. Assim, ele se vê obrigado a enviá-los para Cuba. Esta lacuna aberta no coração do herói, então, é logo ocupada por Clara – a linda companheira do movimento revolucionário. Já em Tropa de Elite 2, acompanha-se um relação familiar extremamente desgastada. O 328 protagonista, Tenente Coronel Nascimento, teria dedicado anos de sua vida ao Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, deixando de lado esposa e filho. A consequência disso foi que Rosana teria terminado o relacionamento com Nascimento e, para sua infelicidade, iniciado uma relação com o intelectual de esquerda Diogo Fraga – seu rival ideológico. Nesse sentido, a relação entre pai e filho também teria sido demasiadamente prejudicada. O aspecto da religiosidade é ressaltado no filme Central do Brasil, a partir da postura do caminhoneiro Cézar. O mesmo personagem corporifica a íntima relação do brasileiro com a questão religiosa, iniciada ainda na colonização portuguesa, com a imposição do catolicismo. Cézar não é católico, mas um crente de grande fé e bastante temente aos preceitos de sua doutrina. Por toda parte de seu caminhão, há algum tipo de adesivo que aponte para as temáticas da fé e da religiosidade. Além disso, também adota uma postura de vida conforme aquilo que acredita dentro de seus ensinamentos religiosos. É exatamente por conta desta crença desmedida que ele decide abandonar Dora, fugindo daquela mulher que estaria levando-o para um caminho contrário à doutrina e ensinamentos que segue. No mesmo filme, também é vista uma grande multidão que se reúne para professar sua fé em uma festa religiosa bem no interior do nordeste – um dos ambientes de maior exacerbação da fé deste país. Já no filme Lamarca, o personagem que mais utiliza o aspecto da cordialidade é Zequinha, talvez, pela grande admiração que sente por aquele líder revolucionário a quem tem a oportunidade de conhecer mais profundamente e ajudar. Nenhuma das três obras nega os conflitos existentes no Brasil. Pelo contrário, apontam para eles. Assim, não há qualquer homogeneidade nas narrativas apresentadas. Contudo, há perceptíveis variações de força com a qual tais conflitos são apontados. Pode-se pensar que, dos três, Tropa de Elite 2 seja o filme que trate com mais vigor determinados contrastes e problemas sociais, como é o caso da violência e da corrupção. O filme Lamarca também caminha neste sentido, quando enfatiza a temática da justiça social e a própria tentativa de revolução. Já o filme Central do Brasil, apesar de mostrar alguns conflitos sociais, deseja trabalhar uma perspectiva de um conflito muito mais interno e pessoal, no qual a busca de um pai, de uma família, leva à busca da própria identidade. Nesse sentido, vários problemas sociais são parcialmente visualizados, mas, por 329 opção da narrativa, não trabalhados em profundidade, embora estejam ali colocados como base para a trajetória dos personagens. O Brasil mestiço aparece de forma mais ostensiva somente em Tropa de Elite 2. Neste caso, os representantes negros e mulatos, que apontam para o hibridismo desta população, são vistos tanto no lado da polícia, a partir dos personagens Matias, Bocão e Marreco, como também entre os traficantes da favela que são massacrados pelo Bope em uma de suas ações táticas. Dessa forma, a obra apresenta o hibridismo também como sinônimo de identidade cultural do país. Em Central do Brasil, a participação de negros ou mulatos se restringe basicamente aos remetentes das cartas ditadas à Dora ou ainda ao elenco de apoio que ela e Josué vão encontrando durante sua trajetória de aventuras. Já em Lamarca, presencia-se a raça branca como a grande matriz do elenco. A busca pelo trabalho leve e pela satisfação pessoal é vista tanto em Central do Brasil como em Tropa de Elite 2. Na primeira obra, Dora é uma pessoa que, no início da narrativa, faz qualquer coisa para ganhar dinheiro. Assim, em sua malandragem diária, ela recebe para escrever cartas para analfabetos, com a promessa de colocá-las nos correios. Contudo, isso praticamente nunca acontece. Dessa maneira, a heroína malandra acaba arrecadando dinheiro fácil e de forma irresponsável, buscando somente sua satisfação pessoal. Além disso, ela vende Josué para uma dupla de negociadores de crianças. Já em Tropa de Elite 2, essa característica é quase uma febre. Em outras palavras, observa-se um grande emaranhado de relações nas quais o mundo do trabalho, enquanto servidor público, especialmente daqueles ligados à polícia ou à política, é visto apenas como uma oportunidade para todo tipo de ilegalidade que visa também o ganho associado à personalidade individual. Nestas duas vertentes – polícia e política –, a imposição da postura “sabe quem está falando?” é tida como regra por parte das autoridades constituídas – sejam elas oficiais ou extraoficiais. Nessas três obras os elementos artísticos, estéticos, técnicos e de conteúdo se conjugam entre si, de diversas maneiras, para a construção do perfil heroico dos personagens protagonistas: ora isto se dá pela fotografia ora pelo som, pela montagem ou mesmo pelos diálogos, interpretações e voice over. Aqui, é importante salientar que esses heróis brasileiros não são figuras normalmente 330 idealizadas. Mesmo o revolucionário Lamarca, o mais idealizado dos três, apresenta muitas limitações e extrema dificuldade no seu percurso de mito. Dora e o Tenente Coronel Nascimento já são vistos como personagens ainda muito mais complexos e com mudanças bem mais profundas durante suas jornadas de aventuras. Suas grandes contradições fazem deles personagens inesquecíveis. O nível de complexidade deste último é tamanho que ele pode ser tipificado como um anti-herói. Com relação aos procedimentos relacionados à análise fílmica, a adoção de um modelo pragmático deveu-se, principalmente, à busca da arquitetura de uma pesquisa qualitativa, aberta às novas possibilidades e alternativas que estariam surgindo durante o processo. Até a entrega definitiva desta obra científica foram feitas incontáveis mudanças, revisões e adaptações. Apesar da opção pelo modelo pragmático, também se efetivou a mescla daquelas características de análise que foram consideradas pertinentes e aplicáveis a esta pesquisa, advindas dos demais modelos estudados. Assim, constituiu-se um modelo de análise próprio, porém, observando e respeitando um arcabouço teórico conceitual que estabeleceu as balizas iniciais para alicerçar toda esta construção. Os filmes foram pensados, especialmente, a partir de sua estrutura narrativa e do seu protagonista herói. Tais reflexões se tornaram o princípio básico das análises fílmicas apresentadas. Nessas últimas linhas é importante reafirmar que esta pesquisa não tem o desejo de produzir qualquer tipo de conhecimento totalizador. Ao contrário, deseja contribuir para o surgimento de novas pesquisas e pesquisadores que também busquem analisar os heróis registrados pelas produções cinematográficas do Brasil. Afinal, há uma infinidade de subcategorias de heróis nacionais que não se conseguiu contemplar neste estudo, em função tanto do recorte temporal adotado ou das barreiras impostas pela narrativa do gênero ficcional ou, ainda, pelo limite de tempo disponível dentro de um curso de Doutorado. Nesse sentido, ainda há muito por se pesquisar, por se debater. Outras categorias de heróis como a do negro ou da heroína criança, como dito, precisam também ganhar espaço neste tipo de análise. Refletindo sobre esses personagens e suas narrativas, pode-se, em última medida, construir importantes reflexões sobre a própria identidade do que se convencionou a chamar de brasileiro. 331 Vida longa aos verdadeiros heróis, vida longa ao cinema brasileiro!!! REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido A. de Almeida. R. Janeiro: Jorge Zahar, 2006. AGAMBEN, Giorgio. Means without end: Notes on Politics. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 2000. pp. 49-60: Notes on Gesture; pp. 109-118: Notes on Politics. AGAMBEN, Giorgio. “Notas sobre o gesto”. In: Revista Artefilosofia. Ouro Preto, nº. 4, pp. 09-14, 2008. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ALVES, Rael Lopes. Os arquétipos dos mitos históricos negros no cinema nacional. 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