UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA A “Chancela de Paisagem Cultural Brasileira” e sua contextualização no Vale do Jequitinhonha: a constituição identitário-regional da emergência quilombola e o patrimônio vivido do sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois Ludimila de Miranda Rodrigues Silva Belo Horizonte – MG Abril - 2019 ii Ludimila de Miranda Rodrigues Silva A “Chancela de Paisagem Cultural Brasileira” e sua contextualização no Vale do Jequitinhonha: a constituição identitário-regional da emergência quilombola e o patrimônio vivido do sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Geografia, do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Geografia. Área de concentração: Organização do Espaço Orientador: Prof. Dr. José Antônio Souza de Deus Abril – 2019 iii iv Dedico este trabalho às comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha, e especialmente aos moradores das comunidades de Alto dos Bois, que me acolheram com tanto carinho, compartilhando comigo suas histórias de vida e sabedoria de uma geografia feita no cotidiano por saberes e tradições que trouxeram outras perspectivas de olhar e vivenciar as geograficidades que se constituem sobre a superfície da Terra. v AGRADECIMENTOS A Deus, que sempre esteve comigo me iluminando e abençoando meus caminhos, protegendo-me e propiciando-me discernimento e sabedoria a cada degrau alcançado nesta jornada. Aos meus pais, José Rodrigues e Terezinha Maria, que desde os meus primeiros passos neste mundo me apoiam em todas as minhas decisões, seja compreendendo minha ausência nos momentos de estudo ou me escutando e aconselhando nos momentos de angústia. Ao meu esposo, Ronan Petronilho, pela parceria, compreensão, carinho e cumplicidade nessa minha aventura, me acompanhando nos trabalhos de campo, me apoiando em minhas decisões no desenrolar da pesquisa, me ajudando nas transcrições das entrevistas, e estando ao meu lado até o último momento de revisão do trabalho; e o mais importante, me fornecendo o maior combustível da vida: o amor. Aos demais familiares (Rodrigues, Mirandas e Petronilhos) na compreensão de minhas ausências (e, inclusive, distanciamento nesses dois anos de realização deste sonho), apoiando-me incondicionalmente perante as dificuldades e também vitórias no decorrer desta trajetória. Ao meu orientador, Prof. José Antônio, que me acompanha desde a graduação, contribuindo para a minha formação e me instruindo em minha carreira profissional, me apoiando nos momentos de vitória e me alertando perante meus erros. Meu grande mestre, amigo e conselheiro, que me acompanhou em todas as etapas da construção deste trabalho até o último momento. Um muito obrigado é pouco para agradecer tamanho companheirismo e carinho. Aos docentes do Programa de Pós-graduação em Geografia e ao nosso coordenador Prof. Dr. Ricardo Alexandrino, que mesmo antes de minha chegada como membro efetivo do corpo discente, já me acolheram, aumentando ainda mais o meu desejo de fazer parte dessa equipe. Aos meus colegas e amigos do GECES – Grupo de Estudos Culturais e Etnogeográficos, que me apoiaram sempre na realização deste sonho, percorrendo muitos desses caminhos ao meu lado. Aos pesquisadores do Laboratório Terra & Sociedade: Maria Aparecida dos Santos Tubaldini e Lussandra Martins Gianasi, pelo impulso inicial durante minha graduação. Aos companheiros de Projeto de Pesquisa Zé Deus, Cláudio Henrique, Pedro, Mariana, Carla vi Duque, Henrique de Castro, pelos campos que realizamos juntos, e no auxílio na realização e copilação das entrevistas. Aos alunos/colegas da graduação em Geografia, em nossas construções teóricas e empíricas durante meus estágios docentes supervisionados e durante as disciplinas lecionadas enquanto professora substituta do Instituto de Geociências (IGC/UFMG). Aos professores membros da minha banca, por aceitarem o convite e contribuírem efetivamente para a consolidação dessa pesquisa: Oswaldo Amorim Filho, Weber Soares, Sônia de Souza Mendonça Menezes e Maria Augusta Mundim Vargas. Ao professor Oswaldo Amorim Filho, por ser uma grande inspiração de mestre e de pessoa, que em sua simplicidade, carrega uma sabedoria inóspita de muitos anos de dedicação por uma geografia mais humana, à qual, inclusive eu desejo seguir. Ao professor Weber Soares, que me acompanha desde minha graduação, mestrado e doutorando, contribuindo em meus processos avaliativos e inspirando-me com seu olhar diferenciado sobre a “Formação Territorial do Brasil”. A professora Sônia Menezes pela oportunidade inigualável de participar do Programa de Estímulo a Mobilidade e ao Aumento da Cooperação Acadêmica da Pós- Graduação em Instituições de Ensino Superior de Sergipe (Promob) – no âmbito do projeto intitulado: “Novos Usos de Territórios no Campo: Impactos e Renovação de Materialidades, Ressignificações e Emergência de Novas Ruralidades: Um Estudo Comparativo entre Sergipe, Goiás e Minas Gerais”, ora, em desenvolvimento, e envolvendo docentes e discentes das universidades federais de Sergipe, Goiás e Minas Gerais. Oportunidade ímpar e de extrema importância para minha formação acadêmica e interpessoal. Agradeço ainda pela atenção, zelo e carinho da professora e de seus alunos do GRUPAM - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais, em especial aos intercambistas: Débora, Hebert, Daniela e Patrícia, e minha parceira de intercâmbio Luciana Priscila, que se tornaram minha família no período do intercambio que realizamos em Aracajú (SE). A Professora Maria Augusta pela atenção concedida junto aos seus alunos do grupo de pesquisa Sociedade e Cultura, durante o PROMOB em Aracajú, concedendo-nos ainda a oportunidade de participar da organização do III Seminário Tempos e Espaços da Pesquisa Qualitativa. Aos professores e pesquisadores Rogata Soares e Raphael Diniz, que aceitaram a “delicada” situação de comporem os membros suplentes de minha banca, se comprometendo com sua presença e atenção em caso de algum tipo de imprevisto. vii Aos pesquisadores locais José Carlos Machado e Dêga Fernandes, que me forneceram uma série de bibliografias e informações cruciais para a concretização deste trabalho. E aos parceiros e amigos Nicinha (da Secretaria de Cultura de Angelândia), Professor José Soares e a Paulinho Pinheiro (Prefeito de Angelândia) que me apoiaram na realização dessa pesquisa, levando um pouco do trabalho para as escolas estaduais e para a população local por meio da minha participação no Festival Gastronômico. Aos “guardiões” do casarão de Alto dos Bois – D. Lia, Sr. Preto – e seus filhos: Edson, Eudirlei, Ezequiel, Ernani, Eugirlene, Eudinéia e Nicinha, que me concederam a honra de conhecer um pouco sobre a história da sua família, de seus antepassados, autorizando-me a realizar a pesquisa no casarão e nos documentos que a família guardava a sete chaves sobre todas as tradições e histórias inscritas na identidade cultural da região de Alto dos Bois. Vocês representam uma nova família que eu ganhei com este doutorado! As comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha e especialmente das comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão, que me acolheram de braços abertos durante minhas visitas à comunidade, recebendo-me com carinho e atenção em suas residências. Aos presidentes da associação quilombola – Gilson e D. Júlia, parceiros de pesquisa, que ajudaram muita na realização das reuniões com a comunidade. Aos meus informantes-chave: Sr. Tião, Tia Ota, Sr. Expedito, D. Orlinda (em memória), Sr. Júlio, Dona Benvinda, Dona Jacir, Sr. Dino, Dona Antônia e todos da comunidade que nos receberam com muito carinho. viii RESUMO Minas Gerais possui uma diversidade de Paisagens Culturais de grande relevância e significado no contexto nacional, dentre as quais se destacam as paisagens do Vale de Jequitinhonha, uma região que marca a própria formação histórico-cultural do território brasileiro. Vale ressaltar que suas paisagens mostram a diversidade e complexidade das relações que compõem o rico amálgama sociocultural regional e, que desde a sua formação, abrange comunidades indígenas, quilombolas, camponesas, de artesãos, dentre outros núcleos que constroem e propiciam a singularidade dessas paisagens. Muitas dessas complexidades se manifestam até os dias atuais em processos de construção e reconstrução da identidade cultural das comunidades, os quais, em sua maioria, são vinculados a dimensões de poder que se configuram aí, como acontece com as diversas comunidades quilombolas no recorte em questão. Posto isso, este trabalho teve como objetivo geral compreender como as concepções de paisagem cultural, nas diferentes escalas de análise, podem contribuir para o reconhecimento e valorização do Vale do Jequitinhonha enquanto uma Paisagem Cultural Brasileira. E a fim de investigar as construções e interações escalares dessas paisagens, privilegiamos o estudo do protagonismo das comunidades quilombolas no Vale, presentes, de forma destacada na microrregião de Capelinha. Fundamentando-nos no entendimento de que tais paisagens são concebidas no campo do espaço vivido, realizamos, em particular, uma investigação dessa construção da paisagem no sítio histórico-cultural de Alto dos Bois que, assim como o Vale do Jequitinhonha, carrega em sua formação diversos elementos socioculturais que o configuram como um lugar emblemático dessa paisagem cultural tão singular. Partimos do método etnogeográfico, para o qual a geografia deve dialogar com os saberes geográficos do cotidiano, científicos e da experiência/ percepção do meio. Para tal, realizamos como procedimentos metodológicos e levantamento bibliográfico, cartográfico e documental a respeito das Paisagens Culturais, teórica e empiricamente (no âmbito dos processos de chancelamento da paisagem já em desenvolvimento no contexto nacional); levantamentos toponímicos; encontros e entrevistas semiestruturadas; registros iconográficos; mapas mentais; relatos de vida e outras estratégias associadas ao mapeamento participativo, mais especificamente, da comunidade quilombola de Alto dos Bois. PALAVRAS-CHAVE: Paisagem Cultural; Vale do Jequitinhonha; Alto dos Bois; Etnogeografia; Espaço vivido. ix ABSTRACT Minas Gerais has a diversity of Cultural Landscapes of great relevance and significance in the national context, among which stand out the landscapes of the Jequitinhonha Valley, a region that marks the historical-cultural formation of the Brazilian territory. It is worth mentioning that its landscapes show the diversity and complexity of the relationships that make up a rich regional sociocultural amalgam and, since its formation, encompasses indigenous communities, quilombolas, peasants, and artisans, among other nuclei that build and provide the singularity of these landscapes. Many of these complexities are still present today in processes of construction and reconstruction of the cultural identity of communities, which are mostly linked to the dimensions of power that are configured there, as is the case with the various quilombola communities (maroons) in the cut in question . Thus, this work aims to understand how the conceptions of cultural landscape, at different scales of analysis, could contribute to the recognition and valorization of the Jequitinhonha Valley as a Brazilian Cultural Landscape. And in order to investigate the scalar constructions and interactions of these landscapes, we have privileged the study of the quilombola communities’ protagonism in the Valley, at the present, prominently in Capelinha micro-region. Based on the understanding that such landscapes are conceived in the field of lived space, we have carried out, in particular, an investigation of this construction of the landscape in the historical- cultural site of Alto dos Bois, which, like the Jequitinhonha Valley, carries in its formation diverse socio-cultural elements that make it an emblematic place of this unique cultural landscape. We have started from the ethnogeographical method, for which geography must dialogue with the geographical knowledge of everyday life, scientific and the experience / perception of the environment. For this, we have carried out as methodological tools: bibliographical, cartographic and documentary survey of the Cultural Landscapes, theoretically and empirically (within the framework of the processes of seal of the landscape already in progress in the national context); toponymic survey; semistructured meetings and interviews; iconographic records; mental maps; life reports and other strategies associated with participatory mapping, more specifically, in the quilombola community of Alto dos Bois. KEY-WORDS: Cultural Landscape; Jequitinhonha Valley; Alto dos Bois; Ethnogeography; Living space. x Lista de Ilustrações Figura 1: Mapa dos compartimentos geomorfológicos do Vale do Ribeira ........................................ 132 Figura 2: Página de navegação em imagem de satélite pelos territórios do circuito quilombola. ..... 142 Figura 3: Apresentação de Meninas de Sinhá na 69ª Reunião Anual da SBPC realizada em julho/2017 na Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte (MG) ..................................................... 159 Figura 4: Lavra abandonada na comunidade quilombola de Misericórdia (Chapada do Norte/MG) 204 Figura 5: Quilombola mostrando a bateia que utilizava no córrego Capivari (Chapada do Norte/MG) ............................................................................................................................................................. 204 Figura 6: Grupo de Curiango – Comunidade Quilombola de Moça Santa (2009) ............................... 206 Figura 7: Figura 8: Grupo de Curiango – Comunidade Quilombola de Moça Santa (2010) ................ 206 Figura 9: Folders de divulgação dos Três Encontros de Flautas do Jequitinhonha (2016, 2017 e 2018) ............................................................................................................................................................. 207 Figura 10: Chegada do Grupo de Marujada da Comunidade de Quaresma (Setubinha – MG) .......... 210 Figura 11: Encontro dos grupos “chegantes” com os grupos que já se apresentavam na Tenda ...... 210 Figura 12: Café da manhã no centro comunitário da Capela. ............................................................. 210 Figura 13: Oficina de fabricação de Flautas de PVC ............................................................................ 211 Figura 14: Visitas aos painéis da Exposição sobre o sítio Histórico e Geográfico de Alto dos Bois .... 211 Figura 15: A festa das Bandas de Taquara e Grupos Culturais............................................................ 212 Figura 16: Alimentos da agricultura familiar e artesanatos comercializados durante o evento. ....... 213 Figura 17: O horário do almoço .......................................................................................................... 214 Figura 18: Agradecimentos e comprometimento dos jovens e crianças na preservação da tradição 215 Figura 19: Despedida das Bandas de Taquaras e dos Grupos de Marujada ....................................... 216 Figura 20: Mesa de Debate no I Encontro de Mulheres Quilombolas do Vale do Jequitinhonha ...... 226 Figura 21: Quilombola de Arraial dos Crioulos – Araçuaí.................................................................... 226 Figura 22: Quilombola de Chapada do Norte ..................................................................................... 226 Figura 23: Quilombola de Diamantina (coletora de Flores Sempre-Vivas) ......................................... 226 Figura 24: Grupo de Trabalho: Políticas Públicas e Mulher Negra ...................................................... 226 Figura 25: Apresentação dos Resultados dos GTs ............................................................................... 227 xi Figura 26: Entrega dos Certificados de Participação do Encontro ...................................................... 227 Figura 27: Estrada de acesso à Fazenda Primavera ............................................................................ 253 Figura 28: Ruas de Café da Fazenda Primavera .................................................................................. 253 Figura 29: Paisagem ao chegar à sede municipal de Angelândia. ....................................................... 253 Figura 30: Placa de Boas Vidas na entrada da cidade. ........................................................................ 253 Figura 31: Fotografia da sede municipal de Angelândia ..................................................................... 254 Figura 32: Fumaça oriunda da torrefação da Fábrica de Café D. Iris .................................................. 254 Figura 33: Ruas de café na estrada para Alto dos Bois ....................................................................... 256 Figura 34: Florada do Café .................................................................................................................. 256 Figura 35: Paisagem vista da estrada para Alto dos Bois .................................................................... 256 Figura 36: Palmeira Catolé (ou Indaiá) ................................................................................................ 257 Figura 37: Uso da palha para cobertura de um forno de biscoito. ..................................................... 257 Figura 38: Uso da palha para cobertura de um viveiro de mudas. ..................................................... 257 Figura 39: Uso da palha para cobertura de uma tenda de beneficiamento de produtos alimentícios (cana, mandioca, coquinho Catolé, etc.) ............................................................................................. 257 Figura 40: Floresta de Eucaliptos nas proximidades de Alto dos Bois. ............................................... 258 Figura 41: Placa indicativa da Cachoeira do Alto dos Bois .................................................................. 258 Figura 42: Primeiras casas da comunidade de Alto dos Bois. ............................................................. 259 Figura 43: Usos do solo: chapadas e grotões. ..................................................................................... 259 Figura 44: Casarão de Alto dos Bois sobre a sombra da Paineira ....................................................... 260 Figura 45: Relação das Praças do Destacamento do Alto dos Bois (1815) ......................................... 287 Figura 46: Carimbo de Madeira pertencente a Pedro Roiz da Cunha ................................................. 303 Figura 47: Recibo de empréstimo concedido por Anna Gomes Leal aos netos Pedro e José Rodrigues da Cunha ............................................................................................................................................. 310 Figura 48: Filhos de Justiniano Roiz da Cunha .................................................................................... 311 Figura 49: Carta de 1912 – Falecimento de Justiniano Roiz da Cunha ............................................... 312 Figura 50: Carta de Justiniano Roiz da Cunha para Pedro Rodrigues – 11 de outubro de 1903. ....... 313 Figura 51: Carta do Senhor Lopes Ferreira à Justiniano Rodrigues da Cunha em 18 de julho de 1887. ............................................................................................................................................................. 313 xii Figura 52: Cemitério de Alto dos Bois (visão externa) ........................................................................ 314 Figura 53: Cemitério de Alto dos Bois (Visão Interna) ........................................................................ 315 Figura 54: Espacialidade dos Túmulos no Cemitério de Alto dos Bois ................................................ 318 Figura 55: Túmulo do Sr. Pedro Rodrigues Lopes ............................................................................... 318 Figura 56: Árvore Genealógica do Sr. Pedro Rodrigues Lopes ............................................................ 319 Figura 57: Sempre-lustrosa em uma lápide no Cemitério de Alto dos Bois. ...................................... 321 Figura 58: Jardim com “sempre-lustosas” e uma espécie de Bromélia. ............................................. 321 Figura 59: Túmulo de D. Terezinha (mãe de D. Lia) ............................................................................ 322 Figura 60: Túmulos dos irmãos José Soares (3) e Alexandre Soares (4). ............................................ 323 Figura 61: Túmulo do responsável pela construção do cemitério de Alto dos Bois ........................... 323 Figura 62: Túmulo 6 – não identificado .............................................................................................. 324 Figura 63: Túmulo 7 – não identificado .............................................................................................. 324 Figura 64: Cruzeiro e Oratório nas proximidades do Cemitério ......................................................... 324 Figura 65: Detalhe do Oratório construído com lajes quartzíticas. .................................................... 324 Figura 66: Pedras de penitência ao Pé do Cruzeiro ............................................................................ 326 Figura 67: Localização do Cruzeiro e Oratório em meio ao Eucaliptal. ............................................... 326 Figura 68: Oração para as almas ......................................................................................................... 327 Figura 69: Oração de Santa Cruz (Altos dos Bois – 08 de abril de 1888) ............................................ 329 Figura 70: Promessa de orações e trabalho. ....................................................................................... 331 Figura 71: Promessa de orações, doações e jejum. ............................................................................ 331 Figura 72: Carta do Festeiro de N. Sra da Graça (15 de julho de 1918) - Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois ............................................................................................................................................... 332 Figura 73: Procissão de Saída – estandarte e banda de Taquara de Sapé Timirim............................. 333 Figura 74: Saída da Igreja de N. Sra dos Anjos para o levantamento do Mastro (na praça) .............. 333 Figura 75: Levantamento do Mastro de São Vicente de Paula ........................................................... 334 Figura 76: Banda de Taquara tocando ao redor do Mastro de São Vicente de Paula ........................ 334 Figura 77: Mastro, Banda de Taquara à frente da Igreja de N. Senhora dos Anjos ............................ 334 Figura 78: Fogos à São Vicente de Paula ............................................................................................. 334 xiii Figura 79: Abertura dos festejos pela Banda de Taquara (abrindo os caminhos ao redor do Cruzeiro) ............................................................................................................................................................. 334 Figura 80: Abertura dos festejos pela Banda de Taquara (abrindo os caminhos na lateral da Igreja) 334 Figura 81: Abertura dos festejos pela Banda de Taquara (abrindo os caminhos ao redor das barracas) ............................................................................................................................................................. 334 Figura 82: Alimentos leiloados durante a Festa de São Vicente de Paula – Angelândia .................... 335 Figura 83: Árvore Genealógica de Pedro Roiz da Cunha ..................................................................... 337 Figura 84: Carta remetida a Pedro Roiz da Cunha (21 de julho de 1914) ........................................... 338 Figura 85: Carta remetida a Pedro Roiz da Cunha (04 de março de 1919) ......................................... 339 Figura 86: Panfleto de mercado em Malacacheta (24 de maio de 1920) ........................................... 340 Figura 87: Notinha de Mercado de Pedro Rodrigues da Cunha (2 de fevereiro de 1914) .................. 342 Figura 88: Caderneta de Fiado (19 de agosto de 1895) ...................................................................... 342 Figura 89: Forno de Farinha feito com a laje retirada da cachoeira de Alto dos Bois – Comunidade de Córrego de Engenho – “Casa de Farinha de D. Nora” ......................................................................... 343 Figura 90: Lajes quartzíticas encontradas nas proximidades da cachoeira de Alto dos Bois ............. 343 Figura 91: Carta remetida a Pedro Roiz tratando de compra de pedras (sem data – Década 1920) . 344 Figura 92: Carta a remetida a Maria Levina escrita por sua tia (02/12/1902). ................................... 345 Figura 93: Carta remetida a Maria Levina por sua “cumadre” Agostinha - (06/05/1916) .................. 346 Figura 94: Fotografias do Soldado Izaias ............................................................................................. 348 Figura 95: Árvore Genealógica de Izaias Rodrigues da Cunha ............................................................ 350 Figura 96: Genealogia da Família Camargo (Descendentes de negros escravizados na região). ....... 353 Figura 97: Mechas de cabelo dos netos de Maria Rodrigues da Cunha ............................................. 358 Figura 98: Genealogia da família de Maria Rodrigues da Cunha e Pedro Lopes da Silva ................... 359 Figura 99: Tereza de S. Gandra e Tibúrcio Celestino de Almeida ....................................................... 363 Figura 100: Recorte do Título de Eleitor do Sr. Tibúrcio (profissão: Professor) .................................. 366 Figura 101: Carta do Professor Tibúrcio cancelando escola de José Nascimento .............................. 367 Figura 102: Livro Manuscrito de José do Nascimento ........................................................................ 367 Figura 103: Caderno Manuscrito de Francisco Rodrigues da Cunha .................................................. 368 Figura 104: Caderno Manuscrito de palavras com as letras F, B, L, M, N e P. .................................... 368 xiv Figura 105: Caderno Manuscrito de palavras com as letras P, C, G e F. ............................................. 368 Figura 106: Caderno (escrito a lápis) com os números de 1 a 100 (pertencente a Nair Rodrigues Fernandes – 1960) ............................................................................................................................... 368 Figura 107: Manuscrito de Aula – Palavras Incomuns ........................................................................ 369 Figura 108: Manuscrito de aula: vozes dos animais............................................................................ 369 Figura 109: Manuscrito de aula: moeda ............................................................................................. 369 Figura 110: Manuscrito do Nome ....................................................................................................... 369 Figura 111: Lições de aula – Maria Barbosa (1920) ............................................................................ 369 Figura 112: Transcrição do Alfabeto do Arengueiro ........................................................................... 374 Figura 113: Recorte da Modinha – Moreninha, Moreninha (11/04/1889) ........................................ 375 Figura 114: Modinhas de Sinhá Barbosa ............................................................................................. 376 Figura 115: Modinha – sem autor. ...................................................................................................... 377 Figura 116: Discurso de Matrimônio ................................................................................................... 378 Figura 117: Árvore Genealógica de Francisco Rodrigues da Cunha .................................................... 380 Figura 118: Caderno do Primeiro Catecismo com anotações de Francisco Rodrigues da Cunha ....... 381 Figura 119: A Fé e devoção a Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa expressa na corporeidade dos sujeitos ............................................................................................................................................................. 382 Figura 120: Carta de Francisco Rodrigues da Cunha a Antônio José da Silva (18 de abril de 1909) ... 383 Figura 121: Carta de um dos filhos de Francisco (03/04/1959) .......................................................... 384 Figura 122: Sala de entrada do Casarão .............................................................................................. 387 Figura 123: Retrato Pintado de Sr. Preto, D. Carlota e D. Lia. ............................................................. 387 Figura 124: Engenho e o rancho (ao fundo). ....................................................................................... 389 Figura 125: Local onde localizava-se a casa de farinha. ...................................................................... 390 Figura 126: Croqui da Casa de Farinha da Faz. Alto dos Bois .............................................................. 390 Figura 127: D. Maria Roxa – batedeira de tacho. ................................................................................ 392 Figura 128: Muro de pedra da gangorra e algumas peças de madeira .............................................. 393 Figura 129: Candeeiro ......................................................................................................................... 393 Figura 130: Panela de Barro no cantinho da fornalha. ....................................................................... 396 xv Figura 131: Jornal de Tião de Vicente ................................................................................................. 397 Figura 132: Burro de tropa do Sr. Tião de Vicente .............................................................................. 398 Figura 133: Entrevista com Sr. Tião ..................................................................................................... 398 Figura 134: Árvore Genealógica de Gabriela Rodrigues da Cunha ..................................................... 399 Figura 135: Exposição Alto dos Bois: geografia e história das paisagens de um lugar da memória e de vivências comunitárias ........................................................................................................................ 411 Figura 136: D. Júlia com os produtos da comunidade a serem comercializados em frente ao painel de fotografias da comunidade ................................................................................................................. 411 Figura 137: Visita da população à exposição. ..................................................................................... 411 Figura 138: Membros da comunidade que foram prestigiar o evento. .............................................. 411 Figura 139: Cabo de Machado ............................................................................................................ 411 Figura 140: Artesanato de Crochê, tempero de alho, urucum e panelas de barro produzidos pela comunidade......................................................................................................................................... 411 Figura 141: Nova Sede da Associação da Comunidade Quilombola de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão .................................................................................................................. 415 Figura 142: Interior da nova sede da associação quilombola ............................................................. 415 Figura 143: Expansão dos Eucaliptos sobre a Mata Nativa ................................................................. 420 Figura 144: Fornos para queima e produção de carvão. .................................................................... 420 Figura 145: Calendário Agrícola dos plantios anuais .......................................................................... 424 Figura 146: Calendário Agrícola de colheitas anuais ........................................................................... 424 Figura 147: “Filho homem” dos proprietários do Casarão fazendo o Biscoito de Polvinho/Goma. ... 427 Figura 148: “Filha mulher” dos proprietários do Casarão preparando o Biscoito de Polvilho/Goma. 427 Figura 149: Pais e filha fechando o forno para assar o biscoito. ......................................................... 427 Figura 150: Mãe ensinando o filho a preparar o biscoito. .................................................................. 427 Figura 151: Reunião com a Comunidade Quilombola......................................................................... 428 Figura 152: Bolo de arroz .................................................................................................................... 428 Figura 153: Balaio de Biscoito de Goma .............................................................................................. 428 Figura 154: Cabo de Machado ............................................................................................................ 428 Figura 155: Requeijão moreno ............................................................................................................ 428 xvi Figura 156: Farofa de Andu ................................................................................................................. 429 Figura 157: Capela sendo preparada para o dia da Festa. .................................................................. 432 Figura 158: Preparação dos pães de cristo. ........................................................................................ 432 Figura 159: Homens assentados a frente do altar durante a realização do terço cantado ................ 432 Figura 160: Agradecimento individual da comunidade após o reza do terço. ................................... 432 Figura 161: Banda de Taquara tocando na porta da Capela ............................................................... 432 Figura 162: Banda de taquara iniciando o Leilão na casa de prendas. ............................................... 433 Figura 163: Prendas no interior da casa .............................................................................................. 433 Figura 164: Leiloeiro com um frango assado. ..................................................................................... 433 Figura 165: Galho de balas. ................................................................................................................. 433 Figura 166: Caminho da Banda de Taquara na casa do festeiro. ........................................................ 434 Figura 167: Agradecimento ao festeiro no interior da cozinha. ......................................................... 434 Figura 168: Festeiro oferecendo uma cachaça em agradecimento à presença da Banda ................. 434 Figura 169: Finalização da festa na casa de prendas. ......................................................................... 434 Figura 170: Mapa mental de um Quilombola de 12 anos ................................................................... 440 Figura 171: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos ................................................................. 440 Figura 172: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos ................................................................. 441 Figura 173: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos. ................................................................ 441 Figura 174: Mapa mental de uma quilombola de 13 anos. ................................................................ 441 Figura 175: Mapa mental de um quilombola de 11 anos. .................................................................. 441 Figura 176: Queda d’água, poço e mata na cachoeira de Alto dos Bois ............................................. 441 Figura 177: Piteira e Cacto Mandacaru (ao fundo) no alto da cachoeira de Alto dos Bois ................ 441 Figura 178: Cachoeira do Moinho ....................................................................................................... 443 Figura 179: Mapa mental de uma quilombola de 7 anos. .................................................................. 443 Figura 180: Mapa mental de um quilombola de 4 anos. .................................................................... 443 Figura 181: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos. ................................................................ 443 Figura 182: Mapa mental de uma quilombola de 8 anos ................................................................... 443 xvii Figura 183: Croqui do Casarão de Alto dos Bois ................................................................................. 444 Figura 184: Encaixe do eixo Principal com a terceira água do telhado (à leste). ................................ 445 Figura 185: Peça centra de Braúna entrecortada pelos galhos de amarelinho ou “gema de ovo” .... 445 Figura 186: O uso do cipó escravo para amarrar as madeiras. ........................................................... 446 Figura 187: Janela de Sentinela ........................................................................................................... 446 Figura 188: Janela de Sentinela ........................................................................................................... 446 Figura 189: Parede de Pau-a-pique ..................................................................................................... 447 Figura 190: Parede de Adobe e embasamento em pedra seca. ......................................................... 447 Figura 191: embasamento em pedra seca .......................................................................................... 447 Figura 192: Janela de madeira com dobradiça de encaixe. ................................................................ 447 Figura 193: Dobradiça de Ferro Fundido ............................................................................................ 447 Figura 194: Forro de tábuas justapostas sobre caibros. ..................................................................... 448 Figura 195: Forró de tábuas utilizado como sótão. ............................................................................ 448 Figura 196: Espelho com moldura de madeira trabalhada ................................................................. 448 Figura 197: Sala de entrada do Casarão .............................................................................................. 449 Figura 198: Imagens de animais da fazenda entalhadas em madeira ................................................ 449 Figura 199: Registro “RR” na porta de entrada. .................................................................................. 449 Figura 200: Detalhe da cama Catre com esteira de bambu. ............................................................... 449 Figura 201: Detalhe da inscrição de um Baú. ...................................................................................... 450 Figura 202: Baú antigo do D. Lia .......................................................................................................... 450 Figura 203: Outros Baús encontrados no casarão .............................................................................. 450 Figura 204: Corredor ........................................................................................................................... 451 Figura 205: “Varandona” ..................................................................................................................... 451 Figura 206: Sala de TV ......................................................................................................................... 451 Figura 207: Cozinha Principal de D. Lia ............................................................................................... 451 Figura 208: Escadinha de Lapas entre os cômodos 11 e 13. ............................................................... 452 Figura 209: Lajedos de quartzito. ........................................................................................................ 452 xviii Figura 210: Detalhe interno do Pilão, um formado para pilar cada produto. .................................... 452 Figura 211: Visitante socando café no Pilão de D. Lia. ........................................................................ 452 Figura 212: Pilãozinho de madeira ...................................................................................................... 452 Figura 213: Catre com esteira de bambu e piso de assoalho. ............................................................ 453 Figura 214: Muro com medida de 9 alqueires (para guardar o coco do café) .................................... 454 Figura 215: Caixa grande de madeira utilizada para guardar mantimentos. ...................................... 454 Figura 216: Balança de Metal .............................................................................................................. 454 Figura 217: “Pau de secar carne” ........................................................................................................ 454 Figura 218: Pedras de contrapeso (1 e 2Kg)........................................................................................ 454 Figura 219: Moinho Manual para tirar canjiquinha ............................................................................ 454 Figura 220: Encaixe do moinho manual .............................................................................................. 454 Figura 221: Coleção de Baús antigos. .................................................................................................. 455 Figura 222: Peneira com borda de couro ............................................................................................ 455 Figura 223: Forma de madeira utilizada para medidas de fubá ou farinha. ....................................... 455 Figura 224: Ferro de passar roupa (antigo) ......................................................................................... 455 Figura 225: Cuscuzeira de Barro. ......................................................................................................... 455 Figura 226: Sr. Preto mostrando um chifre de carneiro. .................................................................... 455 Figura 227: Gazão utilizado no garimpo.............................................................................................. 455 Figura 228: Candeeiro. ........................................................................................................................ 455 Figura 229: Candeia. ............................................................................................................................ 455 Figura 230: Instrumento utilizado para coleta de raízes medicinais. ................................................. 456 Figura 231: “Ferro de coar café”. ........................................................................................................ 456 Figura 232: “Buião” para colocar café coado. ..................................................................................... 456 Figura 233: Paiol em julho de 2015. .................................................................................................... 457 Figura 234: Paiol em março de 2016. .................................................................................................. 457 Figura 235: Arreios de cavalo .............................................................................................................. 457 Figura 236: Patrimônio Material – botes de barro e panelas de ferro batido .................................... 457 xix Figura 237: Sr. Preto apresentando com todo orgulhoso um bote de barro quebrado, mas que guarda com muito carinho para mostrar para os visitantes e familiares ....................................................... 457 Figura 238: Moega – peça do moinho d’água. .................................................................................... 458 Figura 239: Moenda ou mó de moinho do Engenho. ......................................................................... 458 Figura 240: Masseira de mandioca ..................................................................................................... 458 Figura 241: Arado de madeira. ............................................................................................................ 458 Figura 242: Representação do uso do arado de madeira a força animal ........................................... 458 Figura 243: Cozinha e forno de biscoito. ............................................................................................. 459 Figura 244: Biscoitos de goma sendo colocados no forno para assar. ............................................... 459 Figura 245: Canga de Boi e Roda do bulinete ..................................................................................... 459 Figura 246: Peça de girar o bulinete. .................................................................................................. 459 Figura 247: Mapa mental de um quilombola de 11 anos. .................................................................. 460 Figura 248: Mapa mental de um quilombola de 13 anos. .................................................................. 460 Figura 249: Mapa mental um quilombola de 11 anos. ....................................................................... 460 Figura 250: Mapa mental de um quilombola de 16 anos. .................................................................. 460 Figura 251: Mapa mental de um quilombola de 12 anos. .................................................................. 460 Figura 252: Mapa mental de uma quilombola de 8 anos. .................................................................. 460 Figura 253: Acesso à Toca do Índio. .................................................................................................... 462 Figura 254: Entrada da Toca do Índio. ................................................................................................ 462 Figura 255: Interior da Toca ................................................................................................................ 462 Figura 256: Travessia – área de transição entre Mata Atlântica e Cerrado ........................................ 463 Figura 257: “Pinguela sobre a nascente que deságua no Córrego Fanadinho. ................................... 464 Figura 258: Nascente mais seca ao pé da vertente para a gruta Toca do Índio. ................................ 464 Figura 259: Mata Ciliar ao redor no Córrego do Capão no trecho que percorre a comunidade de Alto dos Bois. .............................................................................................................................................. 464 Figura 260: Tijolos de adobe produzidos no quintal do Casarão ........................................................ 465 Figura 261: Casa de adobe de Sr. Tião ................................................................................................ 465 Figura 262: Sr. Lídio e sua casa de adobe na comunidade de Alto dos Bois ....................................... 466 xx Figura 263: “Escaroçador de cana” encontrado na propriedade de Sr. Lídio. .................................... 466 Figura 264: Escaroçador de Cana do Sr. Dino. .................................................................................... 467 Figura 265: Forno de Biscoito sobre cobertura de palha do Coqueiro Catolé (Alto dos Bois) ........... 467 Figura 266: Forno de Biscoito do Casarão de Alto dos Bois ................................................................ 467 Figura 267: Fogão a lenha de D. Margarida (Córrego do Lambu) ....................................................... 468 Figura 268: Conversa de “cumadres” na beirinha do fogão ............................................................... 468 Figura 269: Ludimila passando a tabatinga no fogão após o almoço ................................................. 468 Figura 270: Fogão a lenha de D. Lia (Casarão de Alto dos Bois) ......................................................... 468 Figura 271: Panelas de D. Margarida (Córrego do Lambu) ................................................................. 468 Figura 272: Panelas de D. Lia (Casarão de Alto dos Bois).................................................................... 468 Figura 273: Panelas “Velhas” de D. Margarida – Córrego do Lambu (Alto dos Bois). ........................ 469 Figura 274: Alambique vista da estrada de Alto dos Bois. .................................................................. 470 Figura 275: Maquinário do Alambique de Crislaine ............................................................................ 470 Figura 276: Forno de Barro pontudo. .................................................................................................. 470 Figura 277: Forno de barro arredondado. .......................................................................................... 470 Figura 278: Forno tampado com folha de bananeira.......................................................................... 472 Figura 279: Biscoitos assados sendo retirados do forno. .................................................................... 472 Figura 280: Conversa e degustação de biscoitos ao redor do forno de barro. ................................... 472 Figura 281: Pesquisador escrevendo biscoitos. .................................................................................. 472 Figura 282: Detalhe do biscoito de goma assado ............................................................................... 472 Figura 283: Balaio de biscoitos de goma ............................................................................................. 472 Figura 284: Biscoito de goma sendo colocado para assar. ................................................................. 472 Figura 285: Biscoito de goma assado, pronto para ser retirado do forno. ......................................... 472 Figura 286: Paisagem do sobrado de D. Nôra ..................................................................................... 474 Figura 287: Embasamento estrutural de pedra seca do Solar de D. Nôra .......................................... 474 Figura 288: Fornos de Farinha ............................................................................................................. 474 Figura 289: Gangorra na propriedade de D. Nôra .............................................................................. 474 xxi Figura 290: Peteca ............................................................................................................................... 474 Figura 291: Filhas de D. Nôra descascando mandioca para a produção de farinha ........................... 475 Figura 292: Filho de D. Nora retirando o miolo do coquinho da palmeira Catolé .............................. 475 Figura 293: D. Nora e suas filhas torrando a farinha .......................................................................... 476 Figura 294: Utilização da cabaça no transporte da farinha ................................................................ 476 Figura 295: Farinha sendo torrada em duas etapas............................................................................ 476 Figura 296: Beiju Doce (farinha e rapadura) ....................................................................................... 476 Figura 297: Filha de D. Nora preparando os Beijus. ............................................................................ 476 Figura 298: Farofa de Andu ................................................................................................................. 476 Figura 299: Visitantes participando do processo. ............................................................................... 477 Figura 300: A vivência e a experiência de se torrar a farinha. ............................................................ 477 Figura 301: Olhares e a alegria da troca de experiências na casa de D. Nora .................................... 477 Figura 302: Horta de D. Nôra .............................................................................................................. 478 Figura 303: Plantio de mudas de café. ................................................................................................ 478 Figura 304: Palmeira catolé preservada em área desmatada ............................................................. 478 Figura 305: Igreja de N. Sr. Bom Jesus (Barra do Capão) .................................................................... 481 Figura 306: Igrejas de São Sebastião (Capão) ..................................................................................... 481 Figura 307: Assembleia de Deus – Córrego do Algodão. .................................................................... 482 Figura 308: Igreja em construção – Córrego do Algodão .................................................................... 482 Figura 309: Igreja Evangélica na Barra do Capão ................................................................................ 482 Figura 310: Geossímbolos do córrego do algodão .............................................................................. 483 Figura 311: Folder de Divulgação da Reserva Ecológica e Patrimônio Cultural de Alto dos Bois ....... 484 Figura 312: Convite da Exposição Itinerante ....................................................................................... 490 Figura 313: Folder de Divulgação (parte externa e interna) ............................................................... 491 Figura 314: Exposição dos Painéis. ...................................................................................................... 492 Figura 315: Apreciação da Comunidade. ............................................................................................ 492 Figura 316: Grupo de Marujada lendo os painéis. .............................................................................. 492 xxii Figura 317: Ludimila, Dêga Fernandes (pesquisador local) e Letícia e Daniel (organizadores do evento). ............................................................................................................................................... 492 Figura 318: Apresentação dos painéis na Escola Estadual Augusto Barbosa ..................................... 493 Figura 319: Professor José Soares e seus alunos fazendo a leitura dos painéis ................................. 493 Figura 320: Ludimila apresentando os resultados da pesquisa. ......................................................... 493 Figura 321: Alunos tentando se localizar na genealogia da comunidade. .......................................... 493 Figura 322: Refeitório da Escola Iveta Gomes Santana ....................................................................... 494 Figura 323: Participação dos alunos .................................................................................................... 494 Figura 324: Apreciação dos painéis e perguntas para a pesquisadora ............................................... 494 Figura 325: Equipamento de som fornecido pela escola. ................................................................... 494 Figura 326: D. Lia e seus familiares assistindo o DVD da Festa de N. Sr. Bom Jesus da Lapa ............. 495 Figura 327: Apresentação dos Painéis no Casarão ............................................................................. 495 Figura 328: Apresentação do documentário “Quilombos do Jequitinhonha” .................................... 495 Figura 329: Sr. Preto, D. Lia e seus filhos lendo os painéis ................................................................. 495 Figura 330: Apresentação do documentário....................................................................................... 495 Figura 331: Foto Oficial de todos os presentes na reunião na Comunidade de Alto dos Bois ........... 495 Figura 332: Visita de Campo do Professor José Soares e seus alunos no Casarão de Alto dos Bois (Out/2018) ........................................................................................................................................... 497 Figura 333: Visita a Cachoeira de Alto dos Bois .................................................................................. 498 Figura 334: Visita ao Cemitério de Alto dos Bois ................................................................................ 498 Figura 335: Roda de conversa com Dêga Fernandes no Casarão de Alto dos Bois............................. 498 Figura 336: Visita a cachoeira do Moinho ........................................................................................... 498 xxiii Lista de Mapas Mapa 1: Municípios da Mesorregião do Jequitinhonha (MG) ............................................................ 150 Mapa 2: Conjuntos Geomorfológicos da Mesorregião do Jequitinhonha (MG) ................................. 154 Mapa 3: Unidades de Conservação e Remanescentes Vegetacionais no Vale do Jequitinhonha (MG) ............................................................................................................................................................. 157 Mapa 4: Municípios que apresentam produção representativa de artesanato de barro no Vale do Jequitinhonha/ MG ............................................................................................................................. 161 Mapa 5: Mapa Geohistórico das Frentes de Ocupação da Mesorregião do Jequitinhonha ............... 168 Mapa 6: Municípios com Ocorrência de Comunidades Quilombolas em Minas Gerais ..................... 198 Mapa 7: Recorte Territorial Investigado na Microrregião de Capelinha – Vale do Jequitinhonha (MG) ............................................................................................................................................................. 229 Mapa 8: Municípios da Chapada de Minas e dimensão de suas respectivas áreas plantadas com a lavoura café. ........................................................................................................................................ 251 Mapa 9: Município de Angelândia (MG): da Sede Municipal à região de Alto dos Bois ..................... 255 Mapa 10: “Mapa da Capitania de Minas Geraes” – José Joaquim da Rocha (1777) .......................... 263 Mapa 11: “Mapa da Capitania de Minas Geraes – com deviza de suas comarcas” – José Joaquim da Rocha (1778) ....................................................................................................................................... 265 Mapa 12: “Planta geográfica do continente, que corre da Bahia de Todos os Santos athe a Capitania do Espírito Santo, e da costa do mar athe o Rio Francisco” – Amador Veríssimo de Aleteia (1801) . 266 Mapa 13: “Capitania de Minas Gerais nos Fins da Era Colonial de José Ferreira Corrato (1822)....... 268 Mapa 14: Theil der neuen karte der Capitania von Minas Gerais, por Wilhelm Ludwig von Eschwege (1822) .................................................................................................................................................. 271 Mapa 15: Planta Geral da Capitania de Minas Geraes ........................................................................ 273 Mapa 16: Distribuição espacial dos grupos étnicos das famílias linguísticas Botocudo e Maxakali segundo Curt Nimuendaju (1942-44) e localização das Divisões Militares. ....................................... 276 Mapa 17: Carta Chorográfica da província de Minas Gerais ............................................................... 290 Mapa 18: Mapa Geral da Província do Espírito Santo: relativo as colônias e vias de comunicação .. 293 Mapa 19: Carta topográfica e administrativa da província de Minas Geraes ..................................... 295 Mapa 20: Carta Topográphica do Mucury .......................................................................................... 296 Mapa 21: Território Quilombola das Comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão – Angelândia/MG ..................................................................................................................... 416 xxiv Mapa 22: Comunidades Quilombolas e Povoados no Município de Angelândia - MG ...................... 417 Mapa 23: Mapa etnoambiental da comunidade quilombola de Alto dos Bois – Angelândia/MG ..... 439 Mapa 24: Mapa Etnoambiental da Comunidade Quilombola de Córrego do Engenho – Angelândia/MG ................................................................................................................................... 473 Mapa 25: Mapa etnoambiental da comunidade quilombola de Barra do Capão – Angelândia/MG . 480 xxv Lista de Tabelas Tabela 1: Amostragem das entrevistas realizadas no recorte territorial estudado.............................. 56 Tabela 2: Listagem dos trabalhos de campo desenvolvidos em Alto dos Bois entre 2011 e 2012 ....... 64 Tabela 3: Trabalhos de campo e atividades desenvolvidas no período de dedicação ao doutorado .. 65 Tabela 4: Situação das Terras Indígenas no Vale do Ribeira ............................................................... 137 Tabela 5: Plano de Gestão Integrada do Turismo de Base Comunitária ............................................. 140 Tabela 6: Diagnósticos e Planos de Desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha entre 1960 e 1980 ............................................................................................................................................................. 173 Tabela 7: Quadro Comparativo do número de comunidades quilombolas em Minas Gerais por Mesorregião nos anos de 2007, 2014 e 2017 ..................................................................................... 195 Tabela 8: Distribuição das Comunidades Quilombolas por Mesorregiões do Estado de Minas Gerais ............................................................................................................................................................. 197 Tabela 9: Distribuição das comunidades quilombolas nas microrregiões do Vale do Jequitinhonha 202 Tabela 10: Principais festividades dos municípios investigados ......................................................... 245 Tabela 11: Modos de Vida dos grupos indígenas que permanecem na vivência socioespacial nas Paisagens Culturais de Alto dos Bois ................................................................................................... 279 Tabela 12: Abreviaturas para o Sobrenome Rodrigues ...................................................................... 303 Tabela 13: Listagem das pessoas que foram enterradas no Cemitério de Alto dos Bois segundo a memória dos atuais moradores do Casarão (D. Lia e Sr. Preto) ......................................................... 317 Tabela 14: Transcrição da Oração de Santa Cruz (Alto dos Bois, 08 de Abril de 188 – Pertencente a Jacinta Santos Cunha) ......................................................................................................................... 329 Tabela 15: Cartas de Festeiros ............................................................................................................ 332 Tabela 16: Comunidades rurais onde há parentesco com as famílias da região de Alto dos Bois ...... 403 Tabela 17: Plantas medicinais e usos indicados pelos moradores de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão .................................................................................................................. 437 Tabela 18: Garrafadas produzidas no Alto dos Bois ............................................................................ 438 xxvi Lista de Gráficos Gráfico 1: Percepção da Sociedade Envolvente sobre entidades que contribuem com as comunidades afrodescendentes na região investigada. ........................................................................................... 233 Gráfico 2: Percepção dos Quilombolas sobre entidades que contribuem com as comunidades afrodescendentes na região investigada. ........................................................................................... 235 Gráfico 3: Percepção da Sociedade Envolvente sobre entidades que prejudicam os afrodescendentes na região. ............................................................................................................................................. 236 Gráfico 4: Percepção dos Quilombolas sobre entidades que prejudicam os afrodescendentes na região................................................................................................................................................... 236 Gráfico 5: Percepção dos Quilombolas sobre a presença da cultura negra na atualidade ................ 238 Gráfico 6: Percepção da Sociedade Envolvente em Angelândia sobre a presença da cultura negra na Atualidade ........................................................................................................................................... 239 Gráfico 7: Percepção da Sociedade Envolvente em Capelinha sobre a presença da cultura negra na Atualidade ........................................................................................................................................... 240 Gráfico 8: Percepção da Sociedade Envolvente em Turmalina sobre a presença da cultura negra na Atualidade ........................................................................................................................................... 241 Gráfico 9: Percepção da Sociedade Envolvente em Minas Novas sobre a presença da cultura negra na Atualidade ........................................................................................................................................... 242 Gráfico 10: Principais Atrativos Turísticos pontuados pela Sociedade Envolvente ............................ 246 Gráfico 11: Principais Atrativos Turísticos pontuados pelos Quilombolas ......................................... 247 Gráfico 12: Dinâmica mensal de plantios e colheitas nos núcleos quilombolas de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão. .............................................................................................. 423 xxvii Lista de Abreviaturas e Siglas ABA – Associação Brasileira de Antropologia AFPPRBC – Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Barra do Capão ALCEBAC – Associação Quilombola dos Pequenos Produtores Rurais das Comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão AMAJE – Associação dos Municípios da Microrregião do Alto Jequitinhonha AMAMEL – Associação de Monitores Ambientais de Eldorado APA – Área de Preservação Ambiental APM – Arquivo Público Mineiro ASA Brasil – Articulação do Semiárido Brasileiro ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural BDLB – Biblioteca Digital Luso-Brasileira BNB – Biblioteca Nacional do Brasil CCAVJ - do Centro Cultural e Artístico do Vale do Jequitinhonha CDFB – Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro CEBs – Comunidades Eclesiais de Base CEDEFES – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva CEMIG – Companhia Energética de Minas Gerais CICI – Comissão Internacional de Cooperação Intelectual CIMOS - Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNRC – Centro Nacional de Referência Cultural CODESEX – Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas CODEVALE – Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas CONSEMA – Conselho Estadual do Meio Ambiente COOPERQUIVALE – Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira COQUIVALE – Comissão das Comunidades Quilombolas do Médio Jequitinhonha CPT – Comissão da Pastoral da Terra DAP – Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar xxviii DGM – Dedicated Grant Mechanism (Fundo Internacional de apoio dedicado aos povos e comunidades tradicionais) DID – Departamento de Identificação e Documentação DRP – Diagnóstico Rápido/ Rural Participativo EAACONE – Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras do Vale do Ribeira EFMB – Estrada de Ferro Minas e Bahia EFOM – Estrada de Ferro Oeste Minas EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural FAMTUR - Visita de Familiarização Turística no Médio Jequitinhonha FAMTUR - Visita de Familiarização Turística no Médio Jequitinhonha FAPEMIG – Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais FECAJE – Federação das Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha FESTIVALE – Festival de Cultural Popular do Vale do Jequitinhonha FESTUR – Festival da Canção de Turmalina FETAEMG – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais FJP – Fundação João Pinheiro FUCAM – Fundação Educacional Caio Martins FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNARTE – Fundação Nacional da Arte FUNDAEPE – Fundação Diamantinense de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios IDENE – Instituto do Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais IFNMG – Instituto Federal do Norte de Minas Gerais IICI - Instituto Internacional de Cooperação Intelectual INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INRC - Inventário Nacional de Referências Culturais INSS – Instituto Nacional do Seguro Social IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ISA – Instituto Socioambiental ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo xxix ITR – Imposto Territorial Rural MINIPLAN – Ministério do Planejamento e Coordenação Geral MOAB – Movimento dos Ameaçados por Barragens MP – Ministério Público MPF – Ministério Público Federal MPMG – Ministério Público de Minas Gerais N’GOLO – Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais NAT – Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial OCI – Organização da Cooperação Intelectual OEA – Organização dos Estados Americanos OIT – Organização Internacional do Trabalho ONGs – Organizações não governamentais ONU – Organização das Nações Unidas OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público PAA – Programa de Aquisição de Alimentos PAE – Programa de Ação de Emergência PCH – Programa de Cidades Históricas PCPR – Programa de Combate a Pobreza Rural PLADI – Plano de Desenvolvimento Integrado PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar PNDA – Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato PNGATI – Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar REDE TURISOL – Redes de Turismo Rural na Agricultura Familiar e à Rede Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário REDETUR – Rede de Apoio Integrada ao Turismo no Médio Jequitinhonha RPPN – Reserva Particular do Patrimônio Natural RTC – Relatório Técnico-Científico SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SEC – Secretaria Estadual de Cultura SEDA – Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SENAR – Serviço Nacional de Aprendizagem Rural SEPIR – Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial xxx SESC – Serviço Social do Comércio SICG – Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão SMA – Secretaria do Meio Ambiente SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SUDELPA – Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista TIs – Terras Indígenas UCs – Unidades de Conservação UFVJM – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNIMONTES – Universidade Estadual de Montes Claros xxxi SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 33 CAPÍTULO 1 – ETNOGEOGRAFIAS: postulações e construções de um Método ................................ 41 1.1. METODOLOGIAS ETNOGEOGRÁFICAS: formas e concepções de uma investigação para e com os sujeitos .................................................................................................................................. 51 1.2. ENTRE VALES, GROTAS E CHAPADAS: caminhos e descaminhos da experiência vivida ....... 63 CAPÍTULO 2 – A Experiência da Paisagem: a etnogeografia das paisagens culturais ....................... 68 2.1. A construção teórico-metodológica da Paisagem na ciência Geográfica ............................. 70 2.2. Contribuições da abordagem fenomenológica aos estudos da paisagem na Nova Geografia Cultural .............................................................................................................................................. 79 2.3. Etnogeografias: o imaginário e a vivência das paisagens culturais ....................................... 89 CAPÍTULO 3 – A Chancela da Paisagem Cultural Brasileira: um novo olhar sobre a percepção e compreensão do patrimônio cultural ............................................................................................. 101 3.1. A Paisagem enquanto Patrimônio Cultural da Humanidade .............................................. 102 3.2. Paisagens Culturais Brasileiras: projetos e iniciativas de reconhecimento das paisagens culturais no contexto nacional ........................................................................................................ 116 3.3. A Paisagem Cultural do Vale do Ribeira .............................................................................. 127 CAPÍTULO 4 – Vale do Jequitinhonha: o reconhecimento de uma importante Paisagem Cultural Brasileira ........................................................................................................................................ 150 4.1. A construção geohistórica das Paisagens Culturais do “Jequi tem onha” .......................... 153 4.2. Paisagem e Região: A construção identitária do “ser do Vale” .......................................... 169 4.3. Passado – Presente – Futuro: um vale em movimento por meio da luta e articulação de seus agentes sociais ........................................................................................................................ 179 CAPÍTULO 5 - Paisagens Culturais Emergentes: a dinâmica sociocultural e etnopolítica das Comunidades Quilombolas do Vale ............................................................................................... 187 5.1. As Comunidades Quilombolas em Minas Gerais: contexto histórico e atual ..................... 188 5.2. O Protagonismo Sociocultural e Etnopolítica das Comunidades Quilombolas do Médio Vale do Jequitinhonha ............................................................................................................................. 201 5.3. Percepções regionais sobre a questão quilombola no Vale do Jequitinhonha .................. 228 xxxii CAPÍTULO 6 – O patrimônio vivido das Paisagens Culturais do Sítio Histórico-Geográfico de Alto dos Bois ................................................................................................................................................ 250 6.1. A aldeia, o aldeamento e o destacamento/quartel: conflitos e descobertas de uma paisagem em construção ................................................................................................................ 261 6.2. Do Quartel a Fazenda: o papel da tradição familiar na manutenção e preservação da memória das Paisagens Culturais de Alto dos Bois ......................................................................... 301 6.3. ALTO DOS BOIS: as vivências comunitárias na afirmação identitária quilombola e a resistência do patrimônio histórico e cultural ................................................................................ 402 Considerações Finais ...................................................................................................................... 500 Referências .................................................................................................................................... 506 APÊNDICE ....................................................................................................................................... 544 Apêndice 1: Entrevista Percepção da Questão Afrodescendente .................................................. 544 Apêndice 2: Roteiro de entrevista com a liderança Quilombola .................................................... 546 Apêndice 3: TLCE - Termo Livre de Consentimento Esclarecido para Participação na Pesquisa da Comunidade .................................................................................................................................... 547 Apêndice 4: Declaração de Anuência da Prefeitura de Angelândia ............................................... 550 Apêndice 5: Termos de autorização para utilização de imagens, acervos pessoais e entrevistas na pesquisa .......................................................................................................................................... 551 Apêndice 6: Painéis da Exposição Itinerante .................................................................................. 556 33 INTRODUÇÃO O Vale do Jequitinhonha, região localizada no nordeste de Minas Gerais, carrega no senso comum e, mesmo na visão de muitos estudiosos, o estigma do “Vale da Miséria”, do “Vale dos esquecidos”, o “Vale da Pobreza”. Todavia, ao visitar o Vale, a paisagem que se desvela ao outsider (seja ele turista, pesquisador, etc.) é caracterizada por uma riqueza cultural inestimável, práticas e modos de vida que destoam radicalmente do caótico e contraditório ambiente ou quadro cultural encontrado nos grandes centros urbanos, “desenvolvidos”. Os sentimentos de pertencimento e saudade, tanto dos que vão quando dos que ficam, alimenta, aliás, as idas e vindas dos protagonistas movimentos migratórios, que são hoje uma marca registrada da região. A fome que atinge muitas famílias nas grandes cidades, inclusive não abala esse “Vale da Miséria”, onde, mesmo na dificuldade, a solidariedade e a vivência comunitária não permitem que o alimento que chega à mesa de uma família, falte à mesa de seu vizinho. E nem mesmo a falta de oportunidades de estudo e trabalho, as dificuldades da seca e os conflitos fundiários apagam, por exemplo, o brilho de uma festa como a de Nossa Senhora do Rosário, onde tambores, batuques, flautas e saias floridas rodam e repicam nas cantigas o desejo de ali ficar. Onde está a miséria desse Vale? Essa foi a pergunta que atravessou minhas percepções quando nesta terra estive pela primeira vez no ano de 2008, em visita a algumas comunidades quilombolas nos municípios de Berilo, Chapada do Norte e Minas Novas. Dos teares artesanais à produção de doces tradicionais, eu não conseguia visualizar aquela pobreza que vivenciava nas periferias belo-horizontinas. Não há como negar a incidência de diversos problemas socioeconômicos nesse recorte regional mineiro, assim como a necessidade de desenvolvimento de políticas públicas que propiciem melhorias na qualidade de vida dessas pessoas, muitas das quais, ainda hoje, não possuem acesso à luz, água ou saneamento básico. Todavia, o amor a terra, a identificação das pessoas com esse “Vale”, a sabedoria delas em lidar com as dificuldades da vida no Jequitinhonha, a riqueza social, cultural e histórica dessa região, onde as Minas e os Gerais se encontram, preservam e mantém nessa terra paisagens culturais que, por estes e outros aspectos, como buscaremos destacar neste trabalho, assumem uma importância fundamental como parte integrante do patrimônio cultural brasileiro. Depois de dez anos de pesquisas, incursões e trabalhos de campo no Vale do Jequitinhonha, inebriando-me com suas riquezas culturais e realizando novas descobertas a cada amanhecer neste “Vale Encantado”, deparei-me ainda com outros questionamentos: 34 existe mesmo uma identidade cultural regional no Vale? E como essas paisagens culturais se construíram, se reconstroem e se mantém vívidas frente às pressões cada vez mais intensas do grande capital (mineradoras, monoculturas, hidrelétricas) que marcam a região desde o início da sua ocupação? Ao buscar respostas para tais questionamentos, no levantamento bibliográfico dos materiais já produzidos sobre o Jequitinhonha (por pesquisadores e agentes sociais sensíveis, que, por lá também estiveram e estão) percebi que, a muito mais tempo do que minha própria existência, estes personagens se fizeram e ainda se fazem os mesmos questionamentos e indagações. A “curiosidade” e o “fascínio”, todavia, não é pelo exótico ou diferente, é por algo que, de alguma forma, mesmo quem não é “de lá”, se sente incorporado àquela cultura, àquela paisagem. E por mais duro, positivista ou racional que seja aquele que se dispõe a percorrer quilômetros e quilômetros de chapadas e grotas, ao se deparar com a sapiência dos agricultores, das lavadeiras, dos canoeiros, dos quilombolas, indígenas, raizeiros, geraizeiros e todos os sujeitos integrantes dos povos e comunidades tradicionais que ocupam e constituem essas paisagens, não tem como não se despir de uma rigidez científica e se reconstruir para a consolidação de uma ciência verdadeiramente humana, desenvolvida para e com aqueles que, há muito tempo, ainda resistem e se colocam como guardiões da verdadeira sabedoria do mundo vivido. Enquanto geógrafa, devo ressaltar que muito me intrigava como tais relações homem-meio e material-imaterial se manifestavam naquele espaço tão singular, no qual lugares, territórios, regiões e paisagens tramavam, a toda tentativa de compreensão, uma teia indissociável de relações/interações, predominantemente direcionadas pela dimensão histórico-cultural. E entre os teóricos clássicos e as novas correntes epistemológicas da geografia, fui descobrindo que, aos meus questionamentos, indagações e curiosidades vinculados à realidade do Vale, a categoria Paisagem Cultural me possibilitaria não apenas compreender tais relações de uma maneira integrada, como propor ações e formas de atuação nesse recorte regional, que pudessem dialogar mais proximamente com a verdadeira essência dessa realidade. Vale ressaltar que, desde 1972, esta perspectiva já vem sendo trabalhada pela própria Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) ao ser elaborada a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que se firmou, posteriormente, com a adoção, por essa organização internacional, da categoria “Paisagem Cultural” em 1992. E no Brasil, esse conceito foi incorporado recentemente pela Chancela de Paisagem Cultural Brasileira - Portaria IPHAN1 127/2009 (BRASIL, 2009), com 1 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 35 o objetivo de reconhecer e proteger as paisagens culturais, relacionadas, principalmente, à diversidade cultural de regiões tradicionais do território nacional, como o Vale do Ribeira (SP), a Serra da Bodoquena (MS), o Vale do Itajaí (SC) e Canudos (BA), as quais estão em processo de reconhecimento. Levando em consideração esse novo quadro que se configura institucionalmente em torno das paisagens culturais e, partindo das concepções teórico-conceituais da Geografia Cultural e das Etnogeografias, bem como compartilhando com a vivência e as geografias imaginárias das comunidades tradicionais que configuram o Vale do Jequitinhonha, é que levanto como hipótese deste trabalho que a Paisagem Cultural Brasileira do Vale do Jequitinhonha se edifica a partir do movimento de resistência da cultura popular à opressão/marginalização impostos pela cultura dominante em distintas escalas. E é sugestivo notar que o diálogo/conexão entre os sujeitos configura a construção sociocultural da região a partir dos traços identitários das relações de confiança, cooperação e vivências que convergem para um mito fundador comum da resistência, pautado num modo de vida singular e no desejo de um destino comum partilhado. Nesse sentido, acredito que a interação de diferentes contribuições dos estudos geográficos para o entendimento da paisagem, a dinâmica emergente de valorização dos povos e comunidades tradicionais e os recentes avanços institucionais das políticas de Patrimônio, podem construir fatores que confluem/convergem para a construção de novas políticas públicas que dialoguem mais proximamente com a realidade vivida na região. É relevante refletir, contudo se a Chancela constituiria um instrumento realmente funcional para lidar com toda a diversidade cultural desse “Vale, que são muitos”. Nessa perspectiva, é preciso ressaltar que, historicamente, o processo de regionalização brasileira criou uma série de subdivisões do Espaço a partir de critérios naturais, geoeconômicos, funcionais ou de planejamento que não se aproximou, contudo, das realidades vividas e das dinâmicas socioculturais que efetivamente configuram e/ou configuraram essas regiões. Nesse sentido, postulamos que o Vale do Jequitinhonha, para ser reconhecido enquanto uma Paisagem Cultural Brasileira, deve ser compreendido sob a perspectiva de uma “orquestra sinfônica”, cuja unidade (a identificação regional) seria composta por diversos instrumentos (vivências, paisagens e sujeitos), e cujos distintos timbres e sonoridades poderiam compor uma harmonia musical, e a qual seria norteada por um objetivo comum da resistência sociocultural, que compõem essa sintonia identitária do “ser do Vale”. Posto isso, acreditamos que o conceito de Paisagem Cultural pode colocar em evidência essa unidade regional a 36 partir da compreensão de suas singularidades internas ao identificar, por meio dos aspectos histórico-culturais, determinados recortes regionais que configuram uma identidade cultural, a qual, vinculada aos signos da paisagem, representa um eixo fundamental da rede de interações sociais que permanentemente constrói a dinâmica sociocultural aí desenvolvida. Este trabalho teve como objetivo geral tentar identificar quais são as dinâmicas sociais que fazem esse exercício de conexões espaço-temporais em rede, nas diferentes escalas de análise, e nas quais os sujeitos emergem enquanto protagonistas de uma resistência sociocultural coletiva – de continuar sendo do Vale. E é no intuito de pensar como essas distintas culturas dialogam entre si e como cada um dos sujeitos que as vivenciam percebem essas paisagens culturais emergentes, que possuem elementos singularizantes, mas que, em sua essência, se articulam em prol de uma identidade regional “universal”, que configuramos nossos estudos a partir de três escalas principais: a constituição identitário-regional da mesorregião do Vale do Jequitinhonha; o protagonismo das comunidades quilombolas no Vale, presentes, de forma destacada na microrregião de Capelinha e a investigação da construção da paisagem cultural no sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois que, assim como o Vale do Jequitinhonha, carrega em sua formação diversos elementos socioculturais que o caracterizam como um lugar emblemático dessas paisagens culturais tão singulares. Considerando que Alto dos Bois já foi uma aldeia indígena (até o século XVII), um pequeno aldeamento (1729), um destacamento militar (1814), uma região que abrangeria a cabeceira do rio Fanado (século XX), e atualmente se identifica enquanto uma comunidade quilombola (reconhecida pela Fundação Palmares em 2010), buscamos, nesse sentido, compreender a participação dessa comunidade na sinfonia da identidade regional do Vale do Jequitinhonha, procurando identificar as singularidades e traços de universalidade – formas identitárias locais e regionais –, presentes nesse movimento de tão emblemática melodia. E para tal, buscamos atingir os seguintes objetivos específicos:  Construir um diálogo entre as concepções teóricas e metodológicas da Geografia e aquelas dos instrumentos institucionais de proteção ao patrimônio cultural de povos e comunidades tradicionais;  Realizar uma análise crítica dos projetos de Chancela da Paisagem Cultural Brasileira, desenvolvidos pelo IPHAN até o momento, a exemplo do processo realizado no Vale do Ribeira, que apresenta convergências/ similaridades com o recorte regional que investigamos; 37  Destacar a emergência do protagonismo político-cultural das comunidades quilombolas da microrregião de Capelinha;  Compreender a percepção desse protagonismo pelas próprias comunidades que se encontram em processo de autoreconhecimento, bem como da sociedade envolvente aqui entendida como o conjunto de habitantes dos principais centros urbanos localizados nesse recorte microrregional;  Reconstruir, a partir das histórias, genealogia e vivências comunitárias a geo- história desse emblemático sítio histórico-cultural (signo importante da identidade cultural do Vale, que atualmente passa por um processo de auto identificação enquanto comunidade quilombola já formalmente reconhecida pela Fundação Palmares);  Contribuir para conscientização patrimonial da importância histórico-cultural do Casarão de Alto dos Bois, articulando no processo de concepção desse projeto proprietários do imóvel, moradores da comunidade, munícipes e poder público de Angelândia. Considerando a grandiosidade espacial e sociocultural dos sujeitos que configuram essas paisagens, optamos2 por realizar uma análise multiescalar a partir do protagonismo etnopolítico das comunidades quilombolas. Todavia, vale ressaltar, que não desconsideramos a emergência e a luta dos demais povos e comunidades tradicionais, que também são de grande relevância e importância para a consolidação da identidade cultural do Vale do Jequitinhonha. Esse estudo se justifica pela relevância acadêmico-científica assumida pelas discussões hoje, em curso, em torno do conceito de Paisagem Cultural, e pela propriedade/ conveniência em se tentar estabelecer uma interlocução entre o aparato teórico-metodológico acadêmico e as estratégias operacionais governamentais, partindo-se de uma demanda local no sentido de promover a região, na perspectiva do reconhecimento de sua importância histórica, cultural, ambiental e social (ao vinculá-la ao conceito de “Paisagem Cultural 2 Faz-se necessário destacar neste momento que esta pesquisa, e as convivências no e com o Vale do Jequitinhonha, vêm sendo construídas e vivenciadas juntamente com o professor orientador desde 2009, quando iniciamos nossas pesquisas no âmbito do Laboratório Terra e & Sociedade. Apesar de muitas percepções particulares que trago dessa experiência vivida em trabalhos de campo realizados nessa emblemática paisagem, muitas das escolhas, análises e compreensões foram realizadas conjuntamente com meu parceiro – José Antônio Souza de Deus. Por esse motivo, procurando evitar uma abordagem impessoal do tema, a escrita deste texto, assim como as análises e compreensões, se constroem a partir do diálogo entre o (eu) e o nós (orientador, parceiros de pesquisa, comunidades envolvidas e pesquisadores) com os quais tive a oportunidade, em algum momento dessa trajetória, de dialogar e construir coletivamente tais concepções. 38 Brasileira”). Este trabalho empenhou-se ainda no intuito de proporcionar às comunidades quilombolas do Vale uma melhor compreensão desse emergente processo de reafirmação identitária e articulação etnopolítica, das quais elas próprias são protagonistas, que configura o cenário atual deste recorte socioespacial. No âmbito das investigações sobre o sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois, este estudo, a partir da reconstrução geohistórica das temporalidades e espacialidades que configuram suas paisagens culturais, buscou construir uma compreensão e/ou narrativa mais aproximada do cotidiano e da realidade das vivências e experiências socioespaciais daqueles que a habitam ou habitaram. Vale ressaltar que essa proposta foi desenvolvida no âmbito das atividades de pesquisa vinculadas ao projeto “ETNOGEOGRAFIA, PAISAGENS CULTURAIS E GESTÃO DO TERRITÓRIO EM COMUNIDADES TRADICIONAIS DO VALE DO JEQUITINHONHA/ MG” 3, a partir do qual pudemos compreender a importância sociocultural dessa região, e principalmente da Fazenda Alto dos Bois como uma área emblemática e representativa da constituição e configuração da paisagem cultural (local e regional). Para tal, iniciamos este trabalho refletindo a respeito do método proposto – Etnogeográfico, levantando perspectivas e práticas de investigação que tem o intuito de valorizar o protagonismo dos sujeitos com os quais estamos construindo esta pesquisa. No segundo capítulo realizamos um levantamento das contribuições geográficas no âmbito dos estudos da paisagem e as novas perspectivas que buscam construir sua concepção a partir da sua vivência e experiência. Perspectivas essas que contribuíram substancialmente para as concepções e práticas utilizadas pelo IPHAN na aplicação da categoria em contextos similares ao Vale do Jequitinhonha, como o Vale do Ribeira e do Rio São Francisco, regiões que já estão de alguma forma sendo estudadas sob o viés das paisagens culturais, das quais tratamos no terceiro capítulo da tese. O quarto capítulo, seguindo a proposição de reconhecer o Vale do Jequitinhonha enquanto uma Paisagem Cultural Brasileira, teve por finalidade elencar os argumentos e elementos que evidenciam as singularidades e potencialidades do histórico de formação às identidades emergentes dos seres que constroem e reconstroem as paisagens culturais do Jequitinhonha. Reconhecendo a diversidade de povos e comunidades tradicionais que configuram as paisagens culturais desse rico recorte regional brasileiro, defendemos no quinto capítulo (que consolida a segunda escala de análise da tese) que este exercício de reconhecimento seja feito a partir dos processos atuais de reafirmação e articulação de tais comunidades, e para tal, 3 Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG (2014-2015) e coordenado pelo professor José Antônio Souza de Deus. 39 enfatizamos o fenômeno de emergência das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha, ressaltando seu histórico de formação e sua recente afirmação identitária, assim como a reação e percepção da sociedade regional frente a este fenômeno, que se manifesta ainda através da organização de comissões, articulações locais e regionais, além de eventos direcionados às mulheres e jovens quilombolas como abordaremos nos respectivos capítulos. E por fim, a terceira parte do estudo que tem como foco principal de análise o sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois, importante referência na história de formação dos sujeitos do Vale do Jequitinhonha e, ainda dos núcleos de resistência à escravidão, seja ela indígena e/ou quilombola no recorte regional onde atualmente se concentram grande parte dessas comunidades em processo de autoreconhecimento. Essa comunidade, reconhecida pela Fundação Palmares em 2010, passa por um processo de valorização e busca de suas oralidades, que, por meio do método Etnogeográfico, acreditamos que as concepções de paisagem cultural, compreendendo as materialidades e imaterialidades de sua história em seu contexto vivido, possam contribuir consideravelmente para essa retomada de suas tradições e histórias de seus antepassados sublimadas pelas próprias dinâmicas socioespaciais oriundas do processo de modernização do campo e da própria dinâmica migratória do Vale do Jequitinhonha. Desse modo, a Paisagem Cultural defendida deste trabalho perpassa pela concepção de que não adianta apenas reconhecer a mesorregião do Vale do Jequitinhonha enquanto uma Paisagem Cultural Brasileira para salvaguardar esse patrimônio cultural resguardado pelos povos e comunidades tradicionais que vivem nesse recorte. É preciso ainda reconhecer as novas dinâmicas sociais que se estabelecem neste contexto, como a emergência das comunidades quilombolas, por exemplo, ressaltando ainda os diferentes estágios de consolidação dessas paisagens nessa região compreendida a partir de distintos espaços de vivência. E assim, destacar como a concepção de Paisagem Cultural, no âmbito do patrimônio, poderá contribuir para a estruturação de locais como o sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois, onde as comunidades quilombolas, frente à política de reconhecimento de seus direitos pelo Estado, buscam e se mobilizam na reconstrução de uma identidade até então marginalizada e escondida pelas memórias negativas vinculadas a ela. Esperamos que, nessa perspectiva dialógica, ter alcançado uma sistematização de um conhecimento geográfico verdadeiramente humano, construído a partir das Etnogeografias, que compõem o escopo científico pelo qual abrimos nossos sentidos, 40 colocamos nossas botas e saímos ao encontro do mundo vivido, onde acreditamos que as paisagens culturais às quais nos remetemos sejam efetivamente gestadas e concebidas. No intuito de problematizar sobre a pertinência e importância dessa busca, seguiremos com conceituações, reflexões e escolhas metodológicas realizadas para a construção dessa pesquisa. 41 CAPÍTULO 1 – ETNOGEOGRAFIAS: postulações e construções de um Método “A vocação geográfica se fundamenta em observar e pensar sobre o que há na paisagem, no que foi chamado tecnicamente o conteúdo da superfície terrestre. Por isso, não nos limitamos ao que é visualmente observável, mas procuramos registrar o detalhe e a composição da cena, fazendo perguntas, confirmações, itens ou elementos que são novos ou que desaparecem” (SAUER, 2000, p.140). O que é a Geografia? Quando iniciamos a escalada de um novo degrau nas opções intelectuais, direcionando-nos ao estudo ou aprofundamento da investigação de um tema de pesquisa numa carreira científica, pautamos nossa jornada na busca por respostas concretas, pela busca da veracidade científica, e da definição precisa dos conceitos – e isto já ocorre nas primeiras aulas que temos na Academia. Partimos, contudo, de uma concepção cientificista embasada apenas nas teorias, categorizações, modelagens e sistematizações que, muitas vezes, nos levam a esquecer das “geografias cotidianas” que produzimos e das quais fazemos parte. Pois é relevante assinalar que a todo o momento nos projetamos espacialmente no mundo por meio de uma “consciência geográfica” (TUAN, 1985, p.146), ou de “geografias pessoais” (LOWENTHAL, 1985, p.117) ou, ainda, “imaginações geográficas” e “geografias vernaculares4” (CLAVAL, 2002, p.23; p.27). É nesse sentido que, como destaca Claval (2015, p.8), para além de uma geografia apenas científica podemos verificar que: [...] a geografia é na verdade uma coisa bem diferente. Para entender isso, é preciso se mostrar modesto. Ao lado das obras didáticas ou enciclopédicas que chamam a atenção, a geografia está presente nas práticas, nas habilidades, nos conhecimentos que todos sempre mobilizamos em nossa vida diária [...]. Muito antes de se tornar ciência, a geografia já produzia discursos ao estruturar habilidade e conhecimentos empíricos, os quais ela colocava em ordem. Para entender o que é a geografia e a quais necessidades ela responde, é importante partir do conjunto dessas realidades (grifos nossos). Aliás, em uma de suas mais recentes obras, Claval (2015) explicita três maneiras de se conceber a Geografia: como prática, experiência e ciência. A geografia como prática estaria, na perspectiva do autor, associada às habilidades e saberes empíricos que os grupos populacionais adquirem e consolidam para se orientar (fixar ou deslocar) no Espaço; os conhecimentos adquiridos na relação com a Natureza (lugares de plantio, o uso da biodiversidade, diferenciações de clima, solo, relevo e vegetação, etc.); o discernimento para a 4 “A expressão ‘saber vernacular’ se difunde a partir de 1990, em substituição à expressão ‘sabedoria popular’ e se contrapõe ao ‘saber científico’” (CLAVAL, 2015, p.24). 42 estruturação social do Espaço (divisão do trabalho, formas de interação, troca, transporte e comunicação) assim como a própria sapiência de se fazer a guerra. Uma segunda geografia reconhecida pelo autor é aquela da experiência do espaço e dos lugares, pautada nas reações/percepções que as pessoas adquirem por meio da vivência nos lugares de morada, de passagem e de visita (subjetividades do cotidiano). E como uma terceira via, a própria geografia científica, concebida desde sua origem, segundo o autor, a partir dessa interação da prática, da experiência e da sistematização e compreensão das expertises dessa “experiência na vida sobre a Terra” (CLAVAL, 2011b, p.85). Diante do desafio de se buscar compreender a complexidade das paisagens culturais que configuram a rica dinâmica sociocultural do Vale do Jequitinhonha, acreditamos que – dentre tantas maneiras de se conceber e fazer Geografia –, é preciso se dedicar a tais realidades de forma a não apenas, explicar ou interpretar o que vemos ou mapeamos, mas também a compreender como essas geografias vernaculares se construíram a partir da vivência e experiências dos próprios sujeitos. Nessa perspectiva, acreditamos que o Método Etnogeográfico nos possibilitará alcançar as geografias que compõem “a vida dos homens e os conduzem a interiorizar ao mesmo tempo o que seu entorno lhes ensina, e o que a experiência lhes traz” (CLAVAL, 2003a, p.20-21). Para Almeida (2008, p.332), pesquisadora goiana que vem desenvolvendo uma série de pesquisas etnogeográficas no contexto brasileiro, a propósito: Com os estudos etnogeográficos, a ênfase é dada na diversidade de organizações espaciais delimitadas pelos padrões culturais. Compreende-se que a diversidade de normas que presidem a organização do espaço é bem maior do que deixam supor os modelos dominantes na geografia econômica e na geografia política. Assim, a etnogeografia busca penetrar na intimidade dos grupos culturais, o vivido pelos homens, concretizado em crenças, valores e visão de mundo. Esta cultura vivida é, ademais o objeto de estudo da etnogeografia e motivos desse ensaio no que concerne a buscar explicar a diversidade de organização no sertão brasileiro. Mas como já questionava Claval (1999) “Porque se interessar pelas etnogeografias?”. Para o autor, há duas razões para isto: a primeira vincular-se-á constatação de que “o mundo que nós estudamos é moldado pela ação dos homens e se encontra marcado por seus saberes, seus desejos e suas aspirações”; e a segunda, estaria associada à “geografia que praticamos e acreditamos científica, ou seja, independente de qualquer valor particular e de toda referência étnica, não é tão universal como nós imaginávamos” (CLAVAL, 1999, p.70). E tal interesse, segundo Robic (2004, p.581, tradução nossa) estaria também associado à aproximação de geógrafos, etnólogos e sociólogos, principalmente na década de 1980, quando diversos pesquisadores dessas áreas do conhecimento científico “aspiram a um novo 43 questionamento sobre as práticas e representações do espaço e dos lugares, e uma ‘antropologia do espaço’”. Para esta etnóloga francesa, a aproximação entre as ciências não ressalta apenas a interlocução dos estudos geográficos com as temáticas tradicionais da etnologia; tratar-se-ia, ainda, de uma busca pela compreensão do homem moderno por inteiro, considerando suas diferenças étnico-culturais, tradições folclóricas e religiosas, e toda a gama de dimensões que configuram suas percepções e inserções cognitivas no mundo. Perspectiva também reconhecida por Carson (2002, p.779, tradução nossa) ao pontuar que “o objetivo do etnogeógrafo é compreender os aspectos cognitivos e comportamentais” dos grupos culturais, de forma que “as percepções de eventos, e não apenas os próprios eventos, devem ser os elementos constitutivos da evidência de qualquer interpretação etnogeográfica”. E, como ressaltou ainda Sion (1938, p.461, tradução nossa) o interesse às etnogeografias pautou-se ainda na compreensão de que “não é o homo economicus que transformou a terra para viver; mas é o homem inteiro, com seus desejos de bem-estar, mas também com tudo o que ele possuía de social e religioso”. Outro diálogo entre as ciências destacado por Robic (2004), e que reconhecemos como uma importante despertar para a etnogeografia, ocorreu quando, no início do século XX, a geografia humana vidaliana e a sociologia durkheimiana passaram a ter alguns interesses e preocupações em comum, como, por exemplo, a padronização ou o desaparecimento das práticas tradicionais de populações mais frágeis oriundos dos processos de colonização e globalização vigentes naquele período. Fato este que, segundo Brunhes (1913, p. 39) desencadeou no desenvolvimento de uma “etnologia da emergência”, a partir da qual diversas pesquisas foram desenvolvidas no intuito de representar a imagem real do cotidiano das comunidades, tais como cenas do trabalho agrícola, mostrando as ferramentas, as plantas cultivadas, os gestos, as maneiras de se vestir, além de práticas que revelavam as posturas cotidianas da vida coletiva de tais populações. E ainda hoje encontramos no âmbito da geografia brasileira estudos com este viés de salvaguarda da memória cultural de grupos ameaçados de desaparecimento, embora, venham se fortalecendo cada vez mais trabalhos que ressaltam uma dinâmica emergente dessas comunidades tradicionais, das quais muitas já não se encontram ameaçadas, pois passam a se revelar como verdadeiras fontes de “saberes e conhecimentos-chave para interrogarmos nossas geografias”, configurando-se assim como “práticas discursivas alternativas emergentes” que abrem “outras janelas” do conhecimento, enriquecendo os diálogos com e dos geógrafos para a construção das etnogeografias (ALMEIDA, 2013, p.49). 44 E quando voltamos nosso olhar às paisagens etnogeográficas que configuram a cultura do Vale do Jequitinhonha, identificamos atores emergentes como os artesãos, os raizeiros, os tamborzeiros, as paneleiras, o boiadeiro, o lavrador, dentre outros sujeitos que constituem grandes mestres, e que, assim como modelam o barro, o couro ou a terra, torneiam um modo de vida muito singular e próprio. É por isso que muitos pesquisadores voltam seus olhares, e seu interesse, às “utopias que definem as estruturas que os homens sonham e traduzem suas preferências por outro tipo de relação social em um ou outro ambiente” (CLAVAL, 1999, p.71). E buscam nas Etnogeografias pretéritas, “compreender as normas que presidiram as organizações passadas em nosso espaço”, a partir dos princípios que tinham aqueles que o construíram (CLAVAL, 1999, p.71). Posto isso, “o método etnogeográfico reconstitui primeiramente a percepção que os homens têm do mundo, aprofunda aquilo que pode explorar nos valores que norteiam a sua a ação” (CLAVAL, 1999, p.73). Corroborando as postulações de Claval, Almeida (2018, p.51) confirma que “esse método envolve várias formas de explorar e conhecer a realidade”, o que também é refutado por Oliveira (2014, p.1) em seus estudos etnogeográficos sobre os espaços negros na região metropolitana de Goiânia, no qual o autor afirma que: A etnogeografia tem possibilitado uma base teórico-conceitual e metodológico- instrumental que vem permitindo que o pesquisador amplie suas perspectivas de apreensão das realidades estudadas quando procura conhecer junto aos sujeitos pesquisados as dimensões simbólicas e afetivas de suas espacialidades. Outra pesquisa recente que buscou em suas análises avançar na conceituação e compreensão dos princípios da etnogeografia foi a tese de doutorado de Paladim Junior (2010, p.177), na qual o pesquisador buscou compreender a educação escolar, especialização e territorialidade do povo Xakriabá no norte de Minas Gerais, a partir da concepção etnogeográfica, explicitando que: Este é o entendimento que proponho e que intitulo de Etnogeografia, a dialogicidade entre o saber popular e a ciência, por se tratar de esfera em que o diálogo seja levado em sua essência, discorre daí que não exista relação de uma suplantar o outro, desta feita, sabedoria e conhecimento popular caminham juntos. Esse caminhar, no entanto, dever ser entendido como solidário, porém, em ser destituído de divergências. Quando a ciência for impositiva e mostrar ser um núcleo duro, deve ser amolecida e convertida à objetividade que não se constituía de isolamento e congelamento do movimento da realidade, quando a sabedoria beirar ou se encharcar de senso comum, o envolvimento com a ciência pode demonstrar que existem saídas ou novas buscas. Apesar de ser uma terminologia recentemente desenvolvida no âmbito da Geografia Cultural brasileira, a Etnogeografia possui fundamentos teóricos e metodológicos 45 que se consolidaram a partir das obras de autores clássicos5 como Vidal de La Blache (1985, p.40) o qual, já em 1913, dizia que “a geografia é solicitada para as realidades”. Na tradução de sua obra apresentada no livro de Christofoletti –“Perspectivas da Geografia”, La Blache já apontava (guardadas as devidas proporções e limitações) alguns dos princípios sobre os quais também compreendemos que se assente o método etnogeográfico, tais como:  Unidade terrestre: “não se pode isolar nenhuma parte, pois cada parte age sobre sua vizinha” (LA BLACHE, 1985, p.38). Quando propomos o estudo das paisagens culturais, compreendemos também que estas devem ser contextualizadas/aproximadas de um todo maior que aquele recorte pré- estabelecido pelo sujeito;  A combinação dos fenômenos: a Terra é um “campo quase inesgotável de observação e experiências”, nesse sentido é preciso por meio da descrição analisar os elementos e o estudo de suas relações/combinações, para assim construir uma explicação/interpretação da realidade (LA BLACHE, 1985, p.39);  Abordagem multidimensional: “A descrição geográfica deve ser maleável e variada, como seu próprio objeto”, considerando-se, sempre que possível, a associação entre a observação direta e elementos iconográficos, assim como a própria “terminologia popular” (LA BLACHE, 1985, p. 46);  Geografia e História: apesar de considerar a Geografia como a ciência dos lugares e a História dos homens, La Blache (1985, p. 47) faz uma ponderação que já revela a importância que os aspectos historiográficos assumem no âmbito da Etnogeografia, uma vez que ela “se interessa pelos acontecimentos da História à medida que acentuam e esclarecem, nas regiões onde eles se produzem, as propriedades, as virtualidades que sem eles permaneceriam latentes”. Outro autor clássico, com o qual também estabelecemos alguns diálogos a respeito do método é Carl O. Sauer, que em 1956 publicara nos Anais da Associação de Geógrafos Americanos um artigo intitulado “A educação de um geógrafo” 6, no qual ao problematizar sobre a investigação geográfica ressaltava que: 5 Compreende-se como autores clássicos aqueles que desenvolveram seus estudos no âmbito da Geografia Tradicional (pré-1950). 6 Traduzido por Werther Holzer na Revista GEOgraphia, Ano. II, No 4, 2000. 46 [...] a geografia é primeiramente todo conhecimento que se obtém por meio da observação, aquele que é ordenado pela reflexão e por um novo exame das coisas que as pessoas têm visto, e aquele que a pessoa experimentou a partir do seu contato pessoal e a partir da comparação e da síntese (SAUER, 2000, p.146). Apesar de suas perspectivas serem ainda pautadas em uma “descrição cartográfica”, a obra de Sauer elenca uma série de postulações com as quais podemos dialogar no âmbito da etnogeografia, tais como: a observação lenta com paradas demoradas em pontos panorâmicos estratégicos, que ensejem questões para o diálogo; a observação da paisagem em todas as estações; a atenção às cenas circundantes; o voo solitário e a própria construção dos mapas, cujos “símbolos são traduzidos em imagens, e estes convergem para imagens mentais formando associações significativas de terra e vida” (SAUER, 2000, p. 139). No escopo cartográfico, Sauer (2000, p.141) ressalta, em particular, a importância do estudo da toponímia, que “além de nomear categorias geográficas, físicas e culturais, a partir da fala popular, possui conhecimento retrospectivo de condições passadas através do estudo dos nomes próprios geográficos”. Estes constituíram, segundo o autor o “substrato particular de aprendizagem”, o qual nos permitiria obter a “identificação de variações do fenômeno”, “visões culturais alternativas”, que nos aproximariam ainda mais das relações de afetividade dos sujeitos para com a terra (SAUER, 2000, p.141-142). É sugestivo observar que apesar de, inicialmente, fundamentar-se, principalmente, sobre a enumeração e catalogação dos topônimos, atualmente estes estudos são desenvolvidos também no âmbito da antropologia linguística, da etnolinguística e da Geografia, articulando as bases culturais (fatos, crenças e valores) aos remanescentes históricos dos lugares, no intuito de reconstruir uma espécie de crônica toponímica. É nesse sentido que, passado e presente se conectam para narrar as “marcas da história social”, a “formação étnica, os processos migratórios, o sistema de povoamento de uma região”, “a vegetação, a hidrografia, a geomorfologia, a fauna” e toda uma gama de simbologias “que permanecem mesmo quando não se tem mais a motivação que levou o dominador a nomear um lugar” (SEABRA, 2010, p.83). E é nessa perspectiva que a toponímia, no âmbito da etnogeografia revela-se como uma ferramenta fundamental, uma vez que, se remete não apenas à identificação de uma história pretérita, mas sim, a um elo fundamental da interação dos homens com o meio, de suas formas de ocupação, uso e do estabelecimento da própria relação em seus espaços de vivência, configurando-se, nesse sentido, inclusive, como um patrimônio cultural importante dessas populações. Como ressalta ainda Maria Cândida Seabra (2010, p.95): De fato, o homem escreve sua história ao denominar os lugares em que vivencia suas experiências e essa história só se perpetuará e se manterá armazenada na 47 memória de seu povo, se o topônimo passar a ser visto e preservado como um patrimônio cultural, ou um patrimônio linguístico-cultural de uma sociedade. Acreditamos que este é o compromisso da Toponímia com a linguagem: o nome do lugar é voz, ferramenta e fundamento da experiência humana já que é um signo linguístico que transmite informações e reflete a história dos povos. No Vale do Jequitinhonha essa relevância dos nomes dos lugares é, aliás, ressaltada não apenas no cotidiano das comunidades, como na própria expressão artística, como músicas e poesias, e inclusive na alimentação, evidenciando, principalmente, o significado e a importância dos nomes das cidades, rios e povoados. Segundo Deus (2015) os topônimos vinculados à produção, consumo e alimentação tradicionais, são uma categoria de destaque na região do Jequitinhonha e Vale do Mucuri, onde, a partir do levantamento cartográfico o autor ressalta a presença dos seguintes registros: [...] nos vales do Jequitinhonha e Mucuri poderíamos citaras seguintes localidades: Abóboras (Diamantina/ MG); Amendoim (Diamantina); Buriti Quebrado; Cachoeira do Surubim; Campo de Buriti; Caldeirão (fazenda e córrego homônimos); Córrego e Ponte do Gravatá; córregos da Baunilha, Carambola, Grota das Batatas; Jabuticaba, Mandiocaçu, Manga, Piabanha, Taioba, Couves, Traíras, do Almoço, Araçá, Bagre, Brejo do Cacau, Buriti, Café, Caju, Cará, Coco, Feijão, Lambari, Leite, Maracujá, Omelete, Peixe e dos Ovos; Córrego Seco das Banhas; Cova de Mandioca; fazendas da Carambola, Jabuticaba, Lagoa do Arroz, Piabanha, das Favas, das Traíras, do Ananás, Café Roxo, Feijão Bebido, Forno de Bolo, Inhame, Jatobá e Lambari; Gordura (e córrego homônimo); Ilha do Pão; Jenipapo de Minas (córrego e fazenda homônimos); lagoas da Jabuticaba, do Beiju, do Buriti e do Peixe; Limão (e Córrego do Limão); Mamão; Marmelada; Palmito (e córrego homônimo); Panela (e córrego homônimo); Pedra do Bolo; Peixe (Cemitério, Ribeirão e Rio do Peixe), Peixe Branco e Peixe Cru; Pimentas (e córrego homônimo); Pintado (e córrego homônimo); Quebra Coco; ribeirões do Buriti, do Jenipapo e do Surubim; Rio do Peixe Bravo (e Barra do Rio do Peixe Bravo); Santo Antônio do Surubim; Serra do Feijão Preto; Sítio das Favas e Trigo (DEUS, 2015, p.14). Tanto La Blache quanto Sauer são grandes expoentes da Geografia, que já no início do século XX, destacavam a descrição como uma metodologia de extrema importância. Apoiados ainda nos aspectos, principalmente, materiais e objetivos, eles já sinalizavam alguns elementos que se revelariam como de extrema relevância para uma renovação do método geográfico, que adicionaria às análises geográficas aspectos também da imaterialidade e subjetividade do mundo vivido. A geografia tradicional, por muito tempo, foi sendo criticada por suas monografias essencialmente descritivas e empiristas. Todavia, apesar de não considerarem as dimensões subjetivas, foi a partir da aproximação e imersão de muitos desses geógrafos nas realidades cotidianas de grupos e povos ainda desconhecidos, que muitos trabalhos posteriormente passaram a associar a essas descrições os aspectos da experiência. 48 É válido apontar que essa mudança epistemológica da Geografia, assim como de outras ciências sociais e humanas, se deu a partir de um movimento fenomenológico iniciado pela filosofia de Husserl (1859-1939), cujos desdobramentos desencadearam uma série de novas perspectivas de se conceber o pensamento científico. Na medida em que se aceita que os homens agem movidos por suas consciências (sem negar toda a carga de determinações histórico-sociais presente nessa ação), a questão da subjetividade emerge com importância na explicação do movimento das sociedades. A produção da história, poder-se-ia dizer, passa pelas formas pelas quais os homens se veem no mundo, pelos seus valores, suas crenças e concepções. Enfim, também pelo fluido mundo das representações. O fluir da história se manifesta enquanto cotidianidade para seus agentes concretos. [...] O homem é, dessa forma, uma manifestação de seu tempo e da sua sociedade, porém recria seu tempo e sociedade em seu próprio cotidiano (MORAES, 1984, p.106). Dessa forma as influências da concepção fenomenológica retomam uma forte característica da geografia clássica – a descrição –, que remonta não apenas às materialidades, como aos fenômenos da experiência. Segundo Relph (1979, p.4), para realizar a descrição, sob as bases fenomenológicas da Geografia, faz-se necessário, a propósito, eximir-se das pré- concepções e preconceitos, assumindo uma atitude “aberta” e atenta acompanhando “imaginativamente os atos e atitudes dos outros”. A descrição, segundo este autor, torna-se um procedimento inicial para aqueles que se inspiram nessa outra concepção de ciência, sendo acompanhada da identificação dos símbolos que configuram a experiência/vivência; da interpretação dos significados dos fenômenos e por fim a análise dos caminhos tomados pelas estruturas da experiência (como elas se formaram? Como se desenvolveram? Como e porque se transformaram?). Gostaríamos de ressaltar que a importância da fenomenologia para a renovação da ciência geográfica é, por nós, compreendida, não como um novo paradigma a se sobrepor aos demais modos de se fazer Geografia, mas como uma corrente filosófica que possibilitou um retorno às geografias imaginárias, a uma consciência espacial pré-científica, ou seja, ao “valor da ligação do homem com o mundo anterior às abstrações e significados objetivos estabelecidos pela ciência geográfica” (ENTRIKIN, 1980, p.16). Vale ressaltar que: [...] assim, o objetivo da fenomenologia é reconstruir os mundos dos indivíduos, nos quais os fenômenos estão presentes como repositórios de significados. Isto conduz à compreensão do comportamento nesses mundos, o que é diferente da explicação positivista, na medida que a última é um construto imposto pelo analista, enquanto uma compreensão (fenomenológica) usa os termos e conceitos do ator (AMORIM FILHO, 1999, p.77). No âmbito da geografia brasileira, tais influências foram absorvidas por diversos ramos originários no movimento de renovação epistemológica em meados do século XX, 49 desenvolvidos, principalmente, após a tradução e publicação no Boletim de Geografia Teorética (Rio Claro) e no livro, já mencionado, de Antônio Christofoletti, de obras de grande alcance na geografia internacional. E assim, nomes como Yi-Fu Tuan, Anne Buttimer, Lowenthal, Dardel, dentre outros passaram a compor o escopo teórico da literatura brasileira, mais efetivamente, a partir da década de 1980/90. É interessante destacar ainda que apesar de uma ligação direta entre muitas dessas influências à Geografia Humanista/ “Humanística”, muitos trabalhos desenvolvidos posteriormente, em diversos outros “segmentos” da ciência geográfica, também apresentam uma série de concepções oriundas desses autores. A despeito da tentativa de demarcações/delimitações conceituais por umas ou outras subdivisões, é preciso ressaltar, contudo, que as contribuições dessa nova corrente filosófica na Geografia vão muito além do surgimento dessas “novas geografias”, como também ressalta Eduardo Marandola no prefácio da recente publicação da tese de doutorado do professor Werther Holzer: O que nos mostra o trabalho de Holzer, e nisso ele continua sendo completo e eloquente, é que esse movimento resgatou elementos tradicionais dos estudos de geografia histórica e da geografia cultural e, além de trazer a fenomenologia, a hermenêutica e o existencialismo para os estudos geográficos, preparou o terreno para a própria renovação de toda a geografia. Serviu de motivação para renovar a geografia cultural, nítida no Brasil a partir dos anos 1990, sendo a base para a formação de um horizonte de investigação novo na geografia do século XX: o horizonte humanista, cultural e hermenêutico (MARANDOLA Jr, 2016, p.9). E como já destacava Frémont (1980, p.92), “o método geográfico tem de ser desprovido das suas ambiguidades”. E é necessário compreender tais contribuições sob o viés da “combinação geográfica”, na qual obras clássicas e contemporâneas se associam em prol da compreensão da cada vez mais complexa sociedade pós-moderna. A “velha herança, deve permitir responder às actuais exigências de redefinição epistemológica” e ainda propiciar que a “multiplicidade dos meios de investigação a que os geógrafos têm acesso por hábito antigo, abra naturalmente a via para novas fronteiras e explorações” (FREMÓNT, 1980, p.93). Um importante marco para as novas perspectivas da geografia é o que Claval (2011a, p.21) denomina de “virada cultural”, uma evolução do quadro epistemológico no qual há: a inclusão da subjetividade humana, da dimensão simbólica e imaterial; a compreensão da cultura também como um instrumento de dominação; a importância dos sentidos (olhar, ouvir, cheirar e tocar), “a explicação da construção dos indivíduos, sociedades, espaço e sistemas normativos”, “a compreensão dos conflitos sociais” e a própria análise das “agendas das populações”. E, apesar de o autor destacar tais perspectivas apenas para a Geografia Cultural, é preciso salientar que muitas dessas abordagens podem ser 50 observadas em diversos “ramos” da ciência geográfica, voltadas, principalmente, às abordagens culturais. Assim, como assinala Claval (2002, p.20): O objetivo da abordagem cultural é entender a experiência dos homens no meio ambiente e social, compreender a significação que estes impõem ao meio ambiente e o sentido dado às suas vidas. A abordagem cultural integra as representações mentais e as reações subjetivas no campo da pesquisa geográfica. Posto isso, observamos que diversas concepções e associações que vêm sendo construídas têm contribuído substancialmente para a concepção do método etnogeográfico. A importância cada vez mais evidente atribuída às representações – a maneira em que o real é percebido e interpretado, sobre a orientação da ação –, acentuou, aliás, novas potencialidades nos pesquisadores, além de aproximações ou reaproximações a outros campos disciplinares, como a história, filosofia, psicologia, literatura e artes (PALADIM JUNIOR, 2010). Neste cenário, novos “elementos epistemológicos” passaram a ser apropriados pelos estudos geográficos, a fim de se aproximar dos sentidos, da linguagem, da vivência, da “busca pela existência vinculada à sua referência espacial” (MARANDOLA Jr, 2005, p.57). E é no intuito de compreender as etnogeografias dos sujeitos, que o método etnogeográfico ressalta a importância da investigação da experiência na composição do mundo vivido, a qual deve considerar as interações/interligações entre as dimensões do tempo e do espaço, da subjetividade e da objetividade, da história e das estórias (memória vivida), do indivíduo e da sociedade/comunidade. E, para se alcançar a experiência (consciente ou inconsciente) dos sujeitos, a memória afetiva, olfativa, sensitiva, vivida por aqueles que buscam um retorno do tempo-espaço a fim de compartilhá-los com o outro (seja a própria comunidade ou o pesquisador) é preciso diferenciar outros conceitos que integram a sua concepção, tais como: percepção, atitude e comportamento. Segundo Schiff (1973) a experiência seria o primeiro ato da relação do sujeito com o meio, na sua mais pura relação; o qual, seguido de um registro consciente, passa a configurar-se como uma percepção, construída por uma intencionalidade do sujeito; a qual acarretará uma atitude – momento em que o sujeito se posiciona (aprova ou desaprova) em relação à situação percebida; e dependendo da atitude, está acarretará ainda um comportamento, uma ação para a sociedade ver. A busca pela experiência, todavia, não é um caminho tão fácil a se percorrer, uma vez que depende da conexão a ser estabelecida entre aquele que pesquisa e o sujeito que se permite, ou não, a participar daquela construção. Diferentes sujeitos propiciam perspectivas de investigação distintas. Enquanto em determinadas situações você é visto como “de casa”, em outras, você sempre será a pesquisadora da UFMG, ou seja, um “outsider”. É preciso, 51 nesse sentido, não apenas compreender as profundidades que se pode alcançar, como também respeitar os limites, os quais, aqueles que nos recebem, nos impõem. Essa é a característica principal da etnogeografia, compreender as espacialidades vivenciadas pelos sujeitos até onde eles nos permitam. A troca, o olhar, a sensibilidade de saber o momento de chegar e de ir embora devem ser os aportes principais daqueles que se interessam por essa maneira de fazer Geografia. 1.1. METODOLOGIAS ETNOGEOGRÁFICAS: formas e concepções de uma investigação para e com os sujeitos As paisagens culturais do Vale do Jequitinhonha representam a diversidade e a complexidade das relações que compõem o rico amálgama sociocultural regional e, que desde a sua formação, vinculam-se à presença, aí, de comunidades indígenas, quilombolas, camponesas, dentre outros segmentos sociais que compõem as singularidades dessa região. Muitas dessas complexidades se manifestam em processos de construção e reconstrução da identidade cultural das comunidades. Considerando a vasta extensão regional do Vale e a histórica diversidade de sua formação, construímos nossa pesquisa a partir da análise e (re)interpretação de três vertentes de sua dinâmica cultural, as quais tanto interagem como admitem toda uma trama interna de relações que contribuem para a constituição de paisagens particulares. Nossa pesquisa pautou-se, predominantemente, sob uma abordagem qualitativa, que no âmbito dos estudos geográficos tem sido compreendida como aquela nos “permite compreender a relação tempo/espaço porque a realidade é subjetiva e múltipla, construída de modo diferente por cada pessoa” (PESSÔA, 2018, p.9). Oliveira (2016, 37) também parte dessa compreensão da abordagem qualitativa como “um processo de reflexão e análise da realidade” utilizada para a “compreensão detalhada do objeto de estudo em seu contexto histórico e/ou segundo sua estruturação”. Nesse sentido, a autora aponta ainda que “em pesquisas de abordagem qualitativa, todos os fatos e fenômenos são significativos e relevantes, e são trabalhados através das principais técnicas: entrevistas, observações, análise de conteúdo, estudo de caso e estudos etnográficos” (OLIVEIRA, 2016, p.38). E é sob tais perspectivas que discorremos a seguir, a respeito das metodologias etnogeográficas, que além da abordagem qualitativa, congregam a este olhar a importância de se fazer a pesquisa para e com os sujeitos em análise. 52 Assim, pautamos nosso olhar etnogeográfico sob as concepções da observação participante da vida cotidiana dos atores investigados, tentando estabelecer com eles uma relação menos formal e buscando resgatar as essências dos signos e significados que compõem seus espaços de vivência os quais se materializam nas paisagens culturais. Oliveira (2016, p.80-81), destaca que as observações “visam buscar os fundamentos na análise do meio onde vivem os atores sociais”, compreendendo as múltiplas dimensões da realidade enquanto “fenômenos, que se manifestam de diferentes formas e que precisam ser percebidos além das aparências. Vai-se à essência do objeto em estudo”. Logo, como pesquisadores, participantes e observadores, procuramos interagir com o grupo de forma que eles reconhecessem essa relação sem desconsiderar esta função específica do pesquisador, a fim de que nos fosse possível alcançar uma melhor compreensão da influência e da dinâmica dos diversos elementos determinantes da evolução cultural, uma vez que tal interação se fundamentou na investigação da vida cotidiana e dos significados e símbolos presentes na realidade dos sujeitos pesquisados. Nessa concepção, para Brandão (1987, p.13), a pesquisa torna-se participativa e o outro, o “sujeito vivo”, torna-se “o companheiro” na trajetória da pesquisa, o que também “obriga o pesquisador a repensar não só a aposição de sua pesquisa, mas também a de sua própria pessoa”, além de “ver e compreender tais classes, seus sujeitos e seus mundos, tanto através de suas pessoas nominadas, quanto a partir de um trabalho social e político de classe que, constituindo a razão da prática, constitui igualmente a razão da pesquisa”. Assim, Oliveira (2016, p.81-82), a partir das sete fases da observação de Flick (2009, 223), define três momentos distintos da observação participante:  Inicialmente, há uma observação descritiva, cuja função é fornecer ao pesquisador uma orientação para o campo em estudo. Essa descrição não específica serve para que se apreenda, na medida do possível, a complexidade do campo, e, ao mesmo tempo, para que se formulem questões da pesquisa e linhas de visão mais concretas.  Em seguida, ocorre a observação focal, cuja perspectiva restringe progressivamente os processos e problemas que forem os mais essenciais para a questão e pesquisa.  Finalmente, dá-se a observação seletiva. Essa ocorre próximo ao fim da coleta de dados e concentra-se, até certo ponto, nas evidências e exemplos colhidos na segunda etapa. Durante a realização do nosso percurso metodológico nos deparamos com a necessidade de buscar novos maneiras de compreender a complexidade das realidades observadas e experienciadas, a partir do olhar dos sujeitos em análise, de suas vivências e marcas identitárias na construção das paisagens. Tais evidências, materiais ou imateriais, foram, inclusive, a nós apresentadas nesses momentos participativos, fossem eles o próprio cotidiano da comunidade ou em reuniões, encontros e festividades. 53 Assim, uma prática que foi de extrema importância para a compreensão dessas paisagens culturais foi a participação em eventos regionais/locais, nos quais os próprios sujeitos locais, em diálogo com entidades públicas ou organizações não governamentais (ONGs) discutiam e refletiam sobre os principais problemas e perspectivas de futuro para suas comunidades. Seja em encontros como o I Encontro de Mulheres Quilombolas do Vale do Jequitinhonha ou nas festas de padroeiros das comunidades rurais (como as de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa – em Alto dos Bois), esses momentos nos possibilitaram um riquíssimo e mais próximo diálogo com as comunidades, nos quais a voz dos indivíduos se confundia com a voz da comunidade em interação constante com o seu passado, presente em construção e prospecções para o futuro. Durante todos esses anos de pesquisa no Vale do Jequitinhonha buscamos sempre nos inserir nos espaços de convivência com as comunidades estudadas sob esta perspectiva da observação participante, respeitando os tempos dos sujeitos, estabelecendo nossos diálogos a partir da participação do seu cotidiano, entrevistas feitas durante a preparação do almoço, do qual participávamos no preparo e no consumo, assim como encontros culturais, feiras, encontros de mulheres, reuniões das associações e diversos momentos que nos permitissem fazer essa construção da pesquisa vivenciando com eles suas realidades. Adotamos também como procedimentos metodológicos iniciais a pesquisa bibliográfica, cartográfica e documental. Como ressalta Oliveira (2016, p.69), a pesquisa bibliográfica “leva o pesquisador(a) a entrar em contato direto com obras, artigos ou documentos [de domínio científico] que tratem do tema em estudo”, sob o olhar de outro cientista, obtendo-se assim, dados secundários, que podem ainda ser cruzados com demais informações oriundas de uma pesquisa documental, na qual as fontes primárias, permitem ao pesquisador uma leitura e interpretação sua daquele contexto específico, que pode ser caracterizado ainda pela interlocução da pesquisa cartográfica, que nos fornece, além de informações espaciais dos fenômenos, uma série de discursos e conteúdos agregados aos elementos cartográficos. Vale ressaltar que tais procedimentos permearam todas as etapas da pesquisa. Assim sendo, no intuito de compreender e defender o Vale do Jequitinhonha enquanto uma Paisagem Cultural Brasileira, buscamos neste levantamento identificar os principais pesquisadores e atores sociais que vêm desenvolvendo pesquisas e ações ao longo do processo de consolidação desse recorte regional enquanto foco de uma identidade cultural. Para tal compreensão, consideramos, nessa busca, os processos de formação histórico- 54 cultural, conflitos e movimentos sociais de resistência. No intuito, ainda, de dialogar com a perspectiva institucional, realizamos uma investigação a respeito dos processos em desenvolvimento, no IPHAN, que buscam o reconhecimento de determinados recortes regionais enquanto Paisagens Culturais Brasileiras, procurando apontar os limites e possibilidades dessa nova ótica patrimonial. Essa conexão entre a paisagem e a região é delimitada por Costa (2016, p.129) como “a marca espacial da cultura local”, concepção que reforça a importância da compreensão dos processos socioculturais que se consolidam em diferentes escalas na construção da paisagem cultural. Ressaltamos ainda que a análise dos aspectos culturais da área em foco deve estar permeada pelas formas de percepção da cultura pela própria comunidade. Logo, no intuito de dialogar com o princípio da alteridade, partimos de concepções metodológicas qualitativas que possibilitaram a identificação dessas paisagens a partir da percepção e vivência dos atores sociais aí domiciliados. Cabe destacar também a importância de tais procedimentos em possibilitar uma interação maior entre a percepção do pesquisador e aquela das sociedades locais, uma vez que não há conhecimento neutro, e a percepção do pesquisador em alguns momentos pode acabar mistificando uma realidade, a partir do acionamento de concepções filosóficas e político-ideológicas pré-estabelecidas. Nesse sentido, é que realizamos alguns encontros7 com pesquisadores e agentes sociais do Vale a fim de consolidar uma percepção que mais se aproximasse das realidades investigadas. De acordo com a atuação e disponibilidade de cada entrevistado, buscamos conhecer um pouco da percepção de cada um deles sobre a diversidade cultural regional, a emergência identitária dos povos e comunidades tradicionais (principalmente, quilombolas) e a própria atuação de entidades, prefeituras e demais instituições junto a essa população. Muitos desses diálogos contribuíram significativamente para a compreensão da experiência sociocultural, ambiental e etnopolítica desses homens e mulheres do Vale. À vista destas percepções e aprofundamentos histórico-geográficos sobre o Jequitinhonha é que chegamos à nossa segunda escala de análise de suas paisagens culturais, por meio da qual observamos, em particular, a importância sociocultural assumida pela região de Minas Novas no processo de configuração sociocultural do Vale, uma vez que, como ressalta Souza (2010, p.25): 7 Ao utilizarmos a terminologia “encontros” buscamos evidenciar que não formulamos nenhum roteiro de entrevista específico. Assim, queremos destacar que muitos desses encontros decorreram de nossa presença em determinados espaços e tempos, que nos possibilitou, ocasionalmente, esse diálogo sobre as questões de pesquisa, ou ainda, situações em que conseguimos agendar uma conversa, a qual fluiu sem delimitações pré- estabelecidas. 55 A região remanescente do antigo termo de Minas Novas, da Comarca de Serro Frio, foi o ponto de encontro entre duas grandes frentes de ocupação do território nacional: a mineração e a pecuária. Essas atividades imprimiram marcas na configuração sociocultural da região, de tal modo que, ainda hoje, mesmo em caráter residual em algumas áreas, são elas que definem o modos vivendi da maior parte da população local. Partindo, pois, desta constatação de que o termo de Minas Novas abrigou esse encontro das frentes de ocupação, e que corresponde atualmente a uma dinâmica sociocultural eminentemente relacionada à maior concentração de comunidades quilombolas no Jequitinhonha (identificadas pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva - CEDEFES8), compreendemos que neste recorte regional (que atualmente corresponde à microrregião de Capelinha) configura-se uma importante paisagem cultural emergente que vem se consolidando enquanto tal a partir da vivência e do recente protagonismo etnopolítico desses grupos que vai desde o seu autoreconhecimento à mobilização para encontros regionais. Nesse sentido, buscamos ainda destacar a importância da Comissão das Comunidades Quilombolas do Médio Jequitinhonha (COQUIVALE) neste processo, uma vez que é por meio da mesma que as comunidades quilombolas do médio Jequitinhonha vem atuando a fim de propor políticas públicas que dialoguem mais proximamente com suas demandas e com as realidades locais. Para tal, realizamos algumas entrevistas com lideranças, pesquisadores regionais e com o presidente da COQUIVALE, além da leitura e análise dos documentos de criação da comissão, dos projetos de organizações não governamentais que auxiliaram essa construção e reafirmação identitária e ainda uma análise de conteúdo das postagens realizadas pela comissão em sua rede social. A despeito da análise de conteúdo partimos das concepções clássicas de Laurence Bardin (1977, p.42), segundo a qual, esta corresponde a: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/percepção (variáveis inferidas) destas mensagens. Para Bardin (1977) a análise de conteúdo pode ser estruturada em três fases: i) a primeira da pré-análise, na qual o pesquisador irá sistematizar ou estabelecer os documentos 8 Organização não governamental que tem tido ativa presença, nas últimas décadas, nas principais articulações e frentes de luta em prol dos excluídos do campo em Minas Gerais, como as lutas dos atingidos por barragens, os movimentos pela reforma agrária, as iniciativas tomadas no campo da agricultura familiar, as lutas das comunidades quilombolas, etc. O CEDEFES, entidade de caráter científico, cultural e comunitário, de âmbito estadual, fundada em 1985, tem por missão contribuir para a inserção social e política na sociedade brasileira das populações marginalizadas por meio da valorização da sua “memória social e da construção de cidadania, desenvolvendo, para tanto, ações voltadas para a documentação, a pesquisa, a divulgação e a formação cultural e política” (CEDEFES, 2008, p.7). 56 da coleta de dados, tabular, transcrever e organizar as fontes de informação; ii) a segunda referente à criação de categorias de análise, o agrupamento das informações em temas, expressões, características comuns apresentadas nos conteúdos; iii) e por fim a terceira fase na qual é realizado o tratamento das informações, inferências, interpretações e uma análise reflexiva e crítica do conteúdo, na qual, faz-se necessário, ainda, o diálogo com as concepções e marcos teóricos da pesquisa. Assim, a análise do conteúdo foi utilizada em nossa pesquisa em três momentos distintos: na análise das postagens da COQUIVALE no facebook; na análise das entrevistas de percepção sobre a questão quilombola para a comunidade quilombola e a sociedade envolvente; e ainda na análise documental dos arquivos de família dos proprietários do casarão de Alto dos Bois. No intuito de compreender a percepção da população local sobre esse processo de emergência das comunidades quilombolas na microrregião de Capelinha, realizamos, no âmbito do projeto de pesquisa anteriormente mencionado, 465 entrevistas semi-estruturadas na zona rural e urbana dos municípios de Minas Novas, Capelinha, Turmalina e Angelândia. Tabela 1: Amostragem das entrevistas realizadas no recorte territorial estudado Entrevistas por município (rural e urbano) Angelândia Minas Novas Capelinha Turmalina Rural Urbano Rural Urbano Rural9 Urbano Rural Urbano 6 88 11 116 0 117 12 115 As entrevistas semi-estruturadas foram teoricamente fundamentadas na perspectiva de Quivy e Campenhout (2008, p.192), que denominam essa metodologia como semi-diretiva ou semi-dirigida, “no sentido em que não é inteiramente aberta nem encaminhada por um grande número de perguntas precisas”. Os autores destacam alguns objetivos para os quais esta metodologia é especialmente adequada:  A análise do sentido que os atores dão às suas práticas e aos acontecimentos com os quais se veem confrontados: os seus sistemas de valores, as suas referências normativas, as suas interpretações de situações conflituosas ou não, as leituras que fazem das próprias experiências, etc.  A análise de um problema específico: os dados do problema, os pontos de vista presentes, o que está em jogo, os sistemas de relações, o funcionamento de uma organização, etc.  A reconstituição de um processo de ação, de experiências ou de acontecimentos do passado (QUIVY E CAMPENHOUDT, 2008, p. 193). 9 No município de Capelinha, por questões operacionais, não foi possível realizar entrevistas na zona rural. 57 Compartilhando ainda de tais pressupostos, Matos & Pessoa (2009, p.288), ressaltam ainda que: Esse tipo de entrevista é recomendado, porque possibilita a obtenção de mais informações além das previstas. O questionamento de uma pergunta pode abrir um leque para o entrevistado falar ou completar informações relacionadas à pesquisa, isto é, a resposta de uma pergunta dá abertura para a indagação sobre outras informações. Assim, as entrevistas semi-estruturadas constituíram um importante e considerável recurso metodológico no esforço de apreensão dos sentidos e significados das percepções e/ou realidades locais, “visando à compreensão das perspectivas que as pessoas entrevistadas têm sobre sua vida, suas experiências, sobre as instituições a que pertencem e sobre suas realizações, expressas em sua linguagem própria” (MACEDO, 2010, p. 105). Ao realizar as entrevistas em dois contextos distintos – o primeiro, nas praças, sedes municipais, feiras ou povoados próximos à cidade e o segundo na própria comunidade quilombola de Alto dos Bois, visitando as casas dos moradores, obtivemos dois perfis de entrevistas semi- estruturadas. As primeiras, em sua maioria, foram realizadas no período de 10 a 15 minutos, no qual apenas alguns entrevistados aprofundaram em algumas colocações que se sentiam mais a vontade. Já as entrevistas realizadas na comunidade, foram realizadas em um período maior, sendo algumas adensadas, inclusive, com outras metodologias que sobre as quais discorreremos adiante. A análise dos resultados das entrevistas semi-estruturadas foi apresentada no capítulo 5 (o qual consiste na segunda escala de análise do trabalho) convergindo, em certa medida, com percepções que já observávamos no próprio cotidiano dessas localidades. Nossa vivência de pesquisas nesse recorte específico do Vale, desde 2008, nos proporcionou ainda a obtenção de uma série de observações e constatações que foram também abordadas neste trabalho. É por meio também dessa nossa inserção na região, oriunda de outros projetos de pesquisa, que chegamos à terceira escala de análise da nossa pesquisa, na qual buscamos compreender a importância do sitio histórico-geográfico de Alto dos Bois no âmbito local, municipal e regional, uma vez que em diversos contextos ele foi mencionado como parte fundamental da história de formação do Termo de Minas Novas. A importância geohistórica de Alto dos Bois está associada ao processo de ocupação do Jequitinhonha. Uma medida que gerou impactos significativos na organização do deste espaço regional foi a criação dos destacamentos militares que, além de “defender a propriedade real” e garantir segurança aos colonos contra os indígenas, configuraram-se ainda como uma “importante rota de ocupação regional”, e, inclusive, “em torno dos quais 58 emergiram importantes aldeamentos urbanos” (SOUZA, 2010, p. 33). E um dos poucos destacamentos que ainda mantém muito de sua história, vívida, é justamente o de Alto dos Bois, localizado no município de Angelândia, correspondendo a um sítio histórico-geográfico singular e emblemático (e por isso mesmo, objeto de estudo da terceira parte do texto), onde passado e presente se confundem na constituição da paisagem como um espaço vivido. De um casarão antigo (datado de 1729), de um cemitério de portugueses, da beleza cênica de uma cachoeira, a paisagem, num primeiro momento, se revela apenas pela obviedade da materialidade da história que ainda sobrevive às intempéries do tempo, e que é predominantemente associada às perspectivas turísticas do lugar e à funcionalidade paisagística do lazer. Todavia, acredita-se que é no interior e a partir das janelas dessa materialidade que se alcança o verdadeiro sentido/significado dessa paisagem rural. Em cada signo dessas paisagens há um objeto ou uma história, através do qual, se revela mais um nó de uma rede de relações do passado com o presente. Participando de alguns eventos e encontros na comunidade, observamos que há sobre o “Casarão de Alto dos Bois” uma série de “estórias” que criam um conjunto de lendas sobre o passado dos escravos e dos antigos moradores da região. Elementos que despertam desde o interesse e curiosidade dos mais jovens ao silêncio dos mais velhos, que preferem não falar sobre “esses assuntos”. Nesse sentido, buscamos por meio das pesquisas bibliográficas, documentais e de uma análise minuciosa da cartografia histórica da região estabelecer esta conexão histórica e geográfica, a qual emana, inclusive, nos discursos locais sobre a importância desse lugar. Valores estes que buscamos investigar por meio da realização das entrevistas semi- estruturadas, travessias, construção da genealogia e relatos de história de vida, sobre os quais discorremos a seguir. Ao realizar a pesquisa bibliográfica e documental sobre Alto dos Bois, identificamos algumas lacunas na contextualização histórica deste lugar, cujas respostas foram, contudo, localizadas nas pesquisas autônomas de pesquisadores locais, ou ainda, na própria prática cotidiana e na história de vida dos sujeitos desta e de outras comunidades do entorno. Assim, buscamos, a partir das visitas agendadas para realização das entrevistas, realizar, após a aplicação do mesmo, um levantamento da árvore genealógica da comunidade o que, concomitantemente, ocorreu aos relatos e narrativas da história de vida desses sujeitos nesse lugar – Alto dos Bois. A construção da árvore genealógica da comunidade se deu, principalmente, a partir da reconstituição individual/coletiva da estruturação familiar dos sujeitos entrevistados. 59 E vale ressaltar que a partir dessa reconstrução genealógica emergiram uma série de relatos e histórias de vida que complementaram a compreensão das geograficidades das comunidades quilombolas do sítio histórico-cultural de Alto dos Bois. A genealogia, além de revelar o elevado grau de parentesco entre os membros das três comunidades10 que configuram este núcleo quilombola, elucidou uma série de questões e informações históricas sobre o início da ocupação do sítio por índios, negros e portugueses. A construção da árvore genealógica da coletividade explicitou não apenas as ligações familiares da região, mas, também as histórias de vida, sucessões e memórias que se reconstroem num exercício de reafirmações de paisagens, heranças e tradições familiares. Como ressaltam Bahia & Andrade (2009, p 68), “a genealogia dedica-se ao estudo de famílias, sua origem, sua evolução, descrevendo as gerações em cadeia e traçando sempre que possível, a história de vida dos seus membros e dos sujeitos a elas pertencentes”. Entre muitas Maria(s) e José(s), em algumas situações, foram mantidos os apelidos, ou ainda, apenas a representação quantitativa de filhos ou filhas sem o nome, pois depois de muitas gerações, a memória dos entrevistados já não alcançava mais estes parentes mais distantes. No intuito de desvelar essa espacialidade genealógica do grupo buscou-se ainda identificar as pessoas que moram nas comunidades, os falecidos e aqueles que saíram, indicando, inclusive, quando possível, para onde foram. Tais indicações evidenciaram a interação parental entre as comunidades do entorno e a mobilidade de seus integrantes. Sob o olhar do pesquisador, “refazer a genealogia de uma comunidade leva a várias e diversas direções, sejam de suportes teóricos, que permitem um enquadre epistemológico de entendimento, sejam daqueles provenientes da própria realidade empírica” (BAHIA; ANDRADE, 2009, p. 67). Nesse sentido, desdobram-se caminhos e perspectivas teóricas e empíricas que são, a todo tempo, legitimadas, principalmente, pelas falas dos sujeitos que se reconhecem, a todo o momento, neste exercício de sua “geograficidade histórica/existencial” (SAHR et al., 2011, p.38). Nesse sentido, constatando a importância de se reconstruir a genealogia das comunidades quilombolas de Alto dos Bois, realizamos três entrevistas-chave com moradores mais antigos da região, buscando resgatar a memória da(s) comunidade(s). Outras entrevistas 10 Apesar de todos se reconhecerem como pertencentes à região e/ou comunidade de Alto dos Bois, cada grota ou fundo de vale, recebe uma nomenclatura local, à qual se vinculam as comunidades ali constituídas. Nesse sentido, fazem parte ainda do núcleo quilombola de Alto dos Bois as comunidades de Córrego do Engenho e Barra do Capão, as quais foram, inclusive, conjuntamente reconhecidas como quilombolas pela Fundação Palmares. Tais vínculos familiares foram ainda confirmados pela reconstrução da árvore genealógica da comunidade. 60 foram feitas também com filhos desses moradores mais antigos, no intuito de realizar a complementação e justaposição desses fragmentos e “reminiscências”, coletados de casa em casa. Vale ressaltar, que na maioria das entrevistas, os moradores, principalmente cônjuges, partilhavam da memória do outro para essa reconstituição familiar. E nestes momentos, de horas e horas de conversas e lembranças, entre discordâncias e silêncios, alguns “causos” e contos, a identidade quilombola se desvelava em meio às recordações da comunidade. Memórias essas que foram se apresentando também sob a forma de cadernetas antigas, anotações em papéis antigos e uma gama de correspondências que narram, nas suas entrelinhas, histórias de personagens importantes do modo de vida do Alto dos Bois; elementos, que nos possibilitaram, aliás, compreender, de maneira ainda mais clara, a magnitude dessas paisagens, que assim como o Vale do Jequitinhonha, não se revelam apenas como uma realidade local, mas como uma “região, espaço vivido” (FRÉMONT, 1980), na qual se configura uma identidade cultural singular. A partir da leitura e catalogação das cartas e documentos antigos buscamos reconstruir, junto à comunidade, uma história ainda não contada, associando à mesma, elementos a que tivemos acesso em arquivos públicos locais e estaduais. Posto isso, acreditamos que a compreensão da história de vida e do espaço vivido desses atores, na recomposição de sua memória, testemunho, bem como os valores sociais e culturais impressos em signos nas paisagens (inclusive nos registros toponímicos locais/ regionais, nas práticas de etnobotânica/ etnoambientalismo, vivência de espacialidades festivas, etc.) revelou-se como um elemento crucial para o entendimento das etnogeografias. Para Paulilo (1999, p.137), “através da história de vida pode-se captar o que acontece na intersecção do individual com o social, assim como pode permitir que elementos do presente fundem-se a evocações passadas”. Considerando a característica mais “fechada” dessa comunidade, nossas interlocuções já há alguns anos, nos possibilitaram, durante essas entrevistas abertas sobre a história daquelas pessoas - naquele lugar, que muitas histórias pouco ditas nos fossem reveladas, mediante, inclusive, o próprio reconhecimento desses sujeitos sobre a importância dessas narrativas para o reconhecimento histórico e cultural de sua comunidade. Esse processo de subjetivação do passado para um projeção de futuro é destacado ainda por Amado (2009) e Becker (1994), no sentido de que, para esse autores, os narradores atribuem formas e conteúdos às suas histórias de vida à medida que interpretam suas próprias experiências passadas e presentes que se constituem em seu mundo-vivido. Paulilo (1999) destaca ainda a importância de agregar a estes relatos outras fontes e coletas de 61 dados que estejam associados aos mesmos, tais como documentos pessoais, diários, cartas, fotografias, objetos pessoais, dentre outros. Processo este que nos ocorreu durante a realização das entrevistas e após, quando retornarmos à comunidade ou ainda por meio do contato que continuamos estabelecendo com nossos interlocutores a partir do facebook ou whats app. Para aprofundar ainda mais essa compreensão das narrativas das paisagens culturais de Alto dos Bois, as ferramentas, técnicas e metodologias desta pesquisa foram baseadas também na proposta do Diagnóstico Rápido/ Rural Participativo – DRP – (CHAMBERS, 1994; CHAMBERS & GUIJT, 1995; FARIA & FERREIRA NETO, 2006), o qual tem sido considerado como um conjunto variado de abordagens e métodos que possibilitam às comunidades investigadas expressar, valorizar, compartilhar e analisar seus conhecimentos de vida, criando, assim, condições para planejar e agir sobre seus espaços (CHAMBERS, 1994). Embasados na perspectiva do Mapeamento Participativo, realizamos algumas interpretações acerca da construção espacial das paisagens culturais dos sujeitos pesquisados concebida por meio dos conhecimentos que estes indivíduos têm do ambiente onde vivem. Para tal, inserimos perguntas-chave nas entrevistas, relacionadas aos elos afetivos estabelecidos pelas pessoas com as paisagens da comunidade, buscando resgatar experiências de vida das pessoas que se relacionassem à valorização de elementos naturais (afloramentos de rochas, quedas d’água, elementos da flora e fauna locais, etc.) e imateriais (como festas, encontros) e que pudessem caracterizar o que existe de mais importante nesses recortes regionais. Tal mapeamento da paisagem cultural quilombola propiciou a produção de mapas etnoambientais das comunidades, nos quais se buscou identificar onde se localizam as fontes de recursos naturais mais importantes para a construção e manutenção da identidade quilombola e sítios paisagísticos de grande beleza cênica, bem como aqueles com significado mítico-afetivo, simbólico e/ou ecológico para a coletividade. E para auxiliar na identificação dessas espacialidades recorreu-se ainda ao uso de outras metodologias do DRP – a travessia e os mapas mentais. As Travessias consistem em atividades nas quais os pesquisadores, junto a “informantes-chave” das comunidades (CHAMBERS, 1994; CHAMBERS & GUIJT, 1995), percorrem alguns trechos do sítio objetivando conhecer os diversos componentes e paisagens desenhados, bem como obter explicações sobre os mesmos. Em nossas travessias pela comunidade foi possível realizar além do mapeamento georreferenciado dos elementos indicados por nosso informante-chave, um reconhecimento das espacialidades, toponímia, geossímbolos, representações religiosas (espaços sagrados e profanos), plantas medicinais 62 (dos quintais e do cerrado), enfim, das geograficidades oriundas do cotidiano em Alto dos Bois. No intuito ainda de compreender como essas paisagens se configuravam no imaginário desses sujeitos, realizamos uma investigação da percepção das crianças sobre o casarão de Alto dos Bois, um dos símbolos mais destacados na percepção da paisagem desta comunidade, por meio da elaboração de mapas mentais. Partindo dos pressupostos teóricos e metodológicos da “Metodologia Kozel” (1999; 2007; 2009; 2010; 2018) os mapas mentais consistem em representações, construções mentais e imagens concebidas a partir das observações sensíveis, da experiência humana nos lugares, daquilo que é percebido, sentido, representado e vivido pelas pessoas, estando, pois, repletos de recordações, significados e experiências. Para a autora, os mapas mentais consistem uma “forma de linguagem referendada no sistema de relações onde são imbricados valores, sentimentos, atitudes e vivencias”, as quais são externalizados através dos signos/símbolos que são representados nos mapas. Desse modo, buscamos realizar a interpretação desses mapas a fim de compreender quais são os signos dessa paisagem que a faz ser tão valorizada por aqueles que a vivenciam. Foram realizados 30 mapas mentais, sendo 15 com representações da Fazenda de Alto dos Bois e 15 com o desenho da casa e do seu espaço de morada. Esta perspectiva do olhar da comunidade é um dos pressupostos defendidos pela pesquisa etnogeográfica, que parte dos princípios de enxergar, perceber, compreender e, acima de tudo, descrever o mundo a partir da observação que o outro faz das paisagens nele inseridas, das vivências de morada e trabalho, do contexto regional que se materializa em relações políticas, sociais e culturais. O geógrafo culturalista francês Paul Claval, a propósito, ressalta: O mundo que os homens que constroem, transformam e organizam depende da imagem que eles têm do meio, das técnicas que permitem ter domínio sobre ele e os modelos ideais que eles gostariam de impor. O mundo que os homens desenham coloca em jogo deuses, espíritos e forças cósmicas: sua topografia mistura espaços profanos e espaços sagrados (CLAVAL, 1999, p. 71). Singh (2010, p.1, tradução nossa) também ressalta que “o propósito da etnogeografia é compreender e interpretar um lugar e seu ambiente da perspectiva dos habitantes desse lugar”. E para que pudéssemos compreender o mundo através do(s) olhar(es) com que os sujeitos da pesquisa o percebem, fez-se necessário o uso de ferramentas, técnicas e métodos de pesquisa mais flexíveis, despojados e dialógicos, fundamentados em metodologias que são adjetivadas pelo seu caráter “étnico”, ou seja, etnometodologias. Julgamos adequado propor a pesquisa de campo como um momento de diálogo e participação 63 com os sujeitos investigados, os quais tiveram condições de nos mostrar e relatar como percebem o mundo onde vivem (e que os circunda), suas crenças e tradições, seus anseios e suas angústias. É sugestivo observar que as metodologias etnogeográficas se apresentam como o método mais adequado às proposições deste trabalho, pois parte não apenas das convicções, valores e aspirações traduzidas diretamente no espaço, mas também da “percepção que os homens têm do mundo”, e da “vida social” (CLAVAL, 1999, p.72-73). E como ressalta Almeida (2008, p.332): “a etnogeografia busca penetrar na intimidade dos grupos culturais, o vivido pelos homens, concretizado em crenças, valores e visão de mundo. Esta cultura vivida é, ademais, o objeto de estudo da etnogeografia”. 1.2. ENTRE VALES, GROTAS E CHAPADAS: caminhos e descaminhos da experiência vivida No meu caso, precisei sair do Vale para problematizar a minha “sersência” do Vale, mas conheci pessoas que precisaram estar no Vale para se sentir do Vale, mesmo sem ter nascido em uma das cidades localizadas na região. Acho que me descobri Ser do Jequitinhonha, estando com outros retirantes do Vale em terra alheia, mas do que se estivesse em algumas cidades da região (Entrevista de um jovem jequitinhonhense, 2014 – fornecida a JESUS, 2014, p.52) Em alguns momentos me deparo que os seguintes questionamentos: Por que optei como área-foco de investigação pelo Vale do Jequitinhonha? O que afinal me levou a percorrer caminhos que me conduziram a paisagens tão distantes do meu “belo horizonte”? Desde pequena, quando ouvia as histórias que minha mãe contava de seus avós, as memórias de minha avó sobre a “vida na roça”, me encantava a cada causo por aquele modo de vida simples, com tantas dificuldades, mas também tão puro, tão verdadeiro e sincero. E quando comecei a desenvolver minhas pesquisas e investigações na geografia científica, primeiramente, com os camponeses de Senhora dos Remédios (2008), na microrregião de Barbacena onde conheci os mutirões das lavouras comunitárias, fui descobrindo a força que a cultura/tradição na constituição do modo de viver das pessoas. Já como pesquisadora de iniciação científica (2009/2011) no Vale do Jequitinhonha, a cada comunidade quilombola visitada, um tambor, um artesanato, um batuque, uma cantiga e estórias de “mulas sem cabeça” se revelavam como uma colcha de retalhos, onde cada parte só fazia sentido quando avaliado pela complexidade do todo. Foram muitas horas aprendendo a dirigir pelas chapadas dominadas pelo “deserto verde” dos eucaliptais, onde a vontade de 64 retornar às grotas, junto à verdadeira essência do Vale, fazia desaparecer todo o cansaço de horas e horas de estrada. Mesmo tendo desenvolvido minha pesquisa de mestrado junto aos índios Krenak, no Vale do Rio Doce (com os quais aprendi ainda mais a importância da família e da tradição, das raízes culturais que nos configura enquanto comunidade), a todo o momento, essa gama de revelações me levavam a compreender muitas das tramas que configuravam “aquele Vale”. Durante o período do mestrado, paralelamente, realizamos uma série de trabalhos de campo no Jequitinhonha, e mais especificamente na comunidade de Alto dos Bois (no âmbito das disciplinas ministradas pelo professor José Antônio Souza de Deus). Tais incursões fortaleceram, a cada atividade de campo, ainda mais minha ligação com este Vale e com esta comunidade, à qual fui apresentada no final de 2010, quando finalizávamos nossas pesquisas de iniciação científica durante minha graduação. Abaixo apresentamos uma discriminação dos campos realizados em Alto dos Bois no âmbito das disciplinas ministradas pelo professor orientador. Tabela 2: Listagem dos trabalhos de campo desenvolvidos em Alto dos Bois entre 2011 e 2012 Período Público Atividades desenvolvidas 03 a 06/11/2011 Turma da Pós-graduação em Geografia - Tópicos Especiais IV– Etnogeografia, Etnoambientalismo e Identidade Cultural de Comunidades Tradicionais Visita ao Casarão de Alto dos Bois e à comunidade Quilombola de Quilombo (Minas Novas) 07 a 10/06/2012 Turma de graduação em Turismo Visita ao Casarão de Alto dos Bois – realização de entrevistas sobre a perspectiva do turismo na região 09 a 12/12/2012 Turma da Pós-graduação em Geografia - Tópicos Especiais IV– Geografia Cultural Avançada Visita ao Casarão e desenvolvimento de travessias, entrevistas e início da construção da genealogia. Durante esses trabalhos, e diante de alguns “nãos” que recebemos também fomos construindo uma relação de respeito e atenção com os moradores do casarão, que frente às experiências negativas vivenciadas com “outsiders” anteriores à nossa chegada, num primeiro momento colocaram-se resistentes à nossa presença. Após três anos distante do Vale, retornei a Alto dos Bois com uma enorme alegria de ser lembrada por aqueles que deixaram tantas memórias e saudades em meu coração – já no âmbito do doutorado e do projeto de pesquisa financiado pela FAPEMIG. Esta foi, então, a porta de entrada para o encontro de um “outro Alto dos Bois”, que até aquele momento não havia ainda se revelado para nós. E foi a partir 65 dessa relação de amizade e cumplicidade com os habitantes locais que desenvolvemos os demais trabalhos de campo no período de 2015-2018 (tabela abaixo). Tabela 3: Trabalhos de campo e atividades desenvolvidas no período de dedicação ao doutorado Período Municípios Atividades desenvolvidas 18 a 22/04/2015 Angelândia - Visita ao Casarão de Alto dos Bois; - Desenvolvimento de entrevistas nas comunidades quilombolas de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão e demais comunidades rurais do município de Angelândia; - Produção de mapas mentais com as crianças de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão; - Entrevistas-chave com os moradores mais velhos para construção da Genealogia da comunidade; - Coleta de pontos de GPS nas comunidades. 14 a 21/07/2015 Angelândia e Minas Novas - Visita ao casarão, travessia e realização de entrevistas; - Coleta de pontos de GPS nas comunidades. - Visita agendada na principal fazenda produtora de Café da região – limítrofe com a comunidade quilombola (Angelândia/Capelinha); - Visita à Feira Livre de Minas Novas - Realização de entrevistas com moradores de Minas Novas - Entrevista com agente cultural do Vale - Visita ao grupo de artesãs de Coqueiro Campo/Campo Buriti (Minas Novas/Turmalina) - Participação na festa de São Joaquim – comunidade quilombola de Macuco 03 a 07/08/2015 Angelândia - Visita ao casarão, travessia e aplicação de entrevistas semi- estruturadas; - Acompanhamento do preparo do biscoito de polvilho para festa; - Coleta de pontos de GPS nas comunidades; - Participação na Festa de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa na comunidade de Barra do Capão. 20 a 25/03/2016 Minas Novas e Angelândia - Entrevista com pesquisadores e historiadores regionais; - Entrevista semi-estruturada com antigos moradores de Alto dos Bois, residentes em Capelinha; - Consulta ao acervo bibliográfico do Centro Cultural de Capelinha; - Registro fotográfico das antigas correspondências e documentos fornecidos pelos moradores do Casarão de Alto dos Bois; - Visita ao Casarão de Alto dos Bois (acesso a novos documentos antigos). 23/11 a 02/12/2016 Diamantina, Berilo e Araçuaí - Entrevista com pesquisadora e agente de mobilização social do Vale; - Participação na “Semana de Turismo de Diamantina – Políticas públicas, cultura e gestão do território”; - Participação do “I Encontro de Mulheres Quilombolas do Vale do Jequitinhonha” (Comunidade quilombola de Santo Isidoro - Berilo); - Entrevista pesquisadora indigenista do Jequitinhonha (Araçuaí) e consulta ao acervo pessoal; - Visita à Terra Indígena Cinta Vermelha Jundiba e a localidade de Itira (antiga Barra do Pontal, onde os rios Jequitinhonha e 66 Araçuaí se encontram); - Minicurso MPMG (Diamantina): Os povos e comunidades tradicionais – marco legal e parâmetros de atuação. 22/09 a 30/09/2018 Angelândia e Capelinha - Participação da Festa de São Vicente de Paula (na sede municipal, com realização de leilão, bingo e apresentação da banda de Taquara de Sapé Timirim); - Participação no III Encontro de Flautas do Jequitinhonha realizado na comunidade de Santo Antônio do Fanado (Capelinha), no qual apresentamos pela primeira vez a exposição itinerante - “ALTO DOS BOIS: geografia e história das paisagens de um lugar da memória e de vivências comunitárias”; - Reunião com Secretário de Cultura de Angelândia; - Reunião com a comunidade de Alto dos Bois para apresentação de alguns resultados prévios da pesquisa, dispostos em três banners e folders produzidos para a exposição itinerante já mencionada; e ainda apresentação do documentário “Berilo – Ser Quilombola”, produzido pela Rede Minas, levantando a discussão sobre o que representa para eles ser quilombola em Alto dos Bois; - Entrega de um DVD produzido a partir dos nossos registros de campo da “Festa de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa” para todas as famílias da comunidade; - Realização de palestras por meio da exposição itinerante em duas escolas estaduais na sede municipal de Angelândia; - Entrevista com moradores mais antigos da comunidade de Alto dos Bois e demais localidades do entorno; - Visita a Cachoeira do Moinho, ponto turístico importante e que vem passando por melhorias constantes e aumento significativo do fluxo de usuários; - Visita na Casa de Farinha da comunidade de Córrego do Engenho – registro audiovisual da produção da farinha de mandioca e do beiju; - Entrevista com a professora mais velha do município, filha de um dos professores que ensinava na Fazenda de Alto dos Bois; - Visita ao Mercado Municipal de Angelândia e identificação dos produtos tradicionais vendidos na feira; - Participação no “Arte e Sabor – Festival Gastronômico de Angelândia” durante dois dias, juntamente com a comunidade de Alto dos Bois, apresentando a exposição e os produtos tradicionais produzidos pela comunidade, os quais foram comercializados durante o festival. Vale salientar que, em 2016, já havíamos definido que nos próximos anos me dedicaria à análise dos dados e elaboração da tese, no entanto, meu envolvimento com a comunidade, diálogos por meio das redes sociais, depois de muitos convites para retornar, me levaram de volta no intuito de realizar um trabalho de campo de retorno, no qual eu pude, para além da realização da pesquisa, explicitar à comunidade alguns resultados de nossas longas conversas à beira do fogão a lenha. Nesta ocasião, meu diálogo sobre a importância das paisagens culturais de Alto dos Bois estendeu-se ainda para as escolas estaduais e para um 67 festival gastronômico realizado na sede municipal. Não há como descrever a sensação que tive nos olhares e falas dos comunitários de Alto dos Bois quando identificaram suas história de vida, paisagens, memórias e fotografias nos painéis que produzi. Algo, que pra mim, era o mínimo que eu deveria (e pude), fazer, mas que para eles representou algo grandioso, fazendo reflorescer entre eles o sentido de comunidade, de ser Alto dos Bois. Assim como a gratidão dos professores, estudantes e moradores de Angelândia que, apesar de reconhecerem a importância desse lugar, foi por meio desse olhar do outsider que voltaram suas atenções e inquietações sobre as atuais condições desse patrimônio histórico, cultural e social, o qual é, inclusive, permeado por muitas das histórias de suas famílias, que hoje moram na sede municipal, mas cujos avós ou pais vieram dessa região. Assim, os momentos em campo, além da coleta de dados e informações, me proporcionaram, fundamentalmente, um aprendizado que vai além das escritas deste texto. O meu encontro com o desabrochar do rio Araçuaí (cujos córregos afluentes Fanadinho, Capivari, Misericórdia, constituíram minha porta de entrada para o Vale) nas águas do Jequitinhonha, representou um encontro de Marets11, cuja benção espero levar nas páginas deste trabalho. As dificuldades encontradas pelos caminhos percorridos, os mata-burros estragados, as estradas esburacadas e a aventura de realizar o trecho Berilo – Araçuaí – Diamantina – Belo Horizonte, na companhia unicamente de meus pensamentos e memórias de momentos incríveis que vivenciei em campo foram também elementos cruciais para a construção deste trabalho. A busca pela formação das paisagens culturais do Vale, das comunidades quilombolas do médio Jequitinhonha e da comunidade de Alto dos Bois me proporcionou encontrar minhas próprias paisagens e convicções da geógrafa que desejo ser. E foi entre tantas idas e vindas, que também problematizo essa minha “sersência” do Vale, que, mesmo não sendo de lá, ao sair do meu lugar, me senti acolhida por essa gente, que pela força da tradição permanece lutando pela manutenção e valorização de seus saberes e de sua identidade cultural. E é por eles, e com eles, que acredito na força e no potencial do reconhecimento da importância desse “vale encantado” enquanto uma Paisagem Cultural Brasileira. 11 Espíritos encantados que protegem e guiam os índios Krenak. 68 CAPÍTULO 2 – A Experiência da Paisagem: a etnogeografia das paisagens culturais Paisagem/paisagens Sentido dos sentidos, paisagens surgem de uma única paisagem. Sonhos ecoam num só espaço; acordam realidades: complexas, ambivalentes, ambíguas. Realidades que desvelam não só as inúmeras faces da paisagem, mas a busca do olho por um significado, por uma leitura, ordem, sentido, valor, identidade. Paisagens são perspectivas! São espelhos que refletem nossos sentimentos e pensamentos, anseios e medos. Nossa individualidade na individualidade do entorno. Armazenadas na memória e na alma... antes de serem efêmeras, paisagens são duradouras... antes de comporem apenas quadros e cartões portais, são “substâncias” que integram e animam nossas vidas. (CABRAL, 2000, p.43-44) Ao assumirmos o desafio de situarmos as conceituações do termo “Paisagem” numa perspectiva etnogeográfica alguns questionamentos nos vem à mente: seriam realmente estes os sentidos da palavra “paisagem”: um “lance de vista”, um “desenho”, um “gênero literário”, um “sítio campestre”; o que tais definições atribuídas ao termo “paisagem” realmente despertam naqueles que a utilizam? Você já parou para pensar quando utiliza esse conceito? O que a paisagem desperta em você quando se depara com ela? O que é a paisagem? Aquilo que a vista alcança? Podemos nos deter apenas nessa concepção do “retrato” e do “enquadramento estético da paisagem”? Percebemos a paisagem somente pela visão? E a brisa suave que assanha os pelos do braço; e os sons dos motores e buzinas dos carros; e o cheiro adocicado da “dama da noite”, estes também não são elementos que compõem a paisagem? Pois nossas lembranças e sentidos não retornam, de alguma maneira, à imagem, ao som, ao cheiro e aos sabores destas paisagens? Nossas experiências de mundo são, a todo o momento, tomadas pelas lembranças, vivências e experiências das paisagens, em suas mais distintas temporalidades e espacialidades. A paisagem, na verdade, nos desvela uma relação/interação do(s) indivíduo/grupo com o meio (incluindo todas as suas complexidades materiais, imateriais, naturais, culturais, históricas, míticas, etc.). Pois, de fato: A paisagem só existe a partir do indivíduo que a organiza, combina e promove arranjos do conteúdo e forma dos elementos e processos, num jogo de mosaicos. Esses mosaicos, como puzzles, são representações do existente ou do ansiado para 69 determinado espaço, apreendidos segundo determinada perspectiva (GOMES, 2001, p.56). Seja no cotidiano ou na experiência acadêmica, a concepção de paisagem, foi, e ainda é, por diversas vezes, “mutilada” pela dependência exacerbada ao seu valor estético, determinada por um “regime ocularcêntrico da modernidade” (AZEVEDO, 2008, p.55). Perspectiva esta, que, segundo a pesquisadora portuguesa Ana Francisca Azevedo (2008), associada às inovações técnicas, à “racionalização do campo da visão” e ao próprio avanço da fotografia (cujo “aparato mecânico não levanta dúvidas”), propiciou a consolidação de uma racionalidade científica pautada na “observação dos fenômenos”, por meio de uma “inspeção do mundo físico”, que “passava assim a ser encarado meramente como objecto observável na lógica de uma ordem visual dominante” (AZEVEDO, 2008, p.61). E é justamente essa “estetização da paisagem enfatizada pelas mais diversas técnicas de representação” que nos afasta, muitas vezes, do verdadeiro sentido que as paisagens agregam às nossas percepções (AZEVEDO, 2008, p.63). No contexto atual, a facilidade de se realizar e publicizar registros de imagens, ao mesmo tempo em que viabiliza a divulgação e o conhecimento de paisagens, muitas vezes distintas da realidade vivida; afasta- nos da verdadeira essência daquelas imagens, posto que, continuamos, de certa maneira, impedindo nossos demais sentidos e sensibilidade de atentar aos detalhes, contextos e relações que configuram aquela paisagem. A partir de tais reflexões e inquietações, destacamos que para se compreender o verdadeiro sentido das paisagens, faz-se necessário compreendê-la primeiramente como um texto, a ser lido, interpretado e experienciado através da interação estabelecida para com o meio desde o momento em que voltamos nossos sentidos a ele, promovendo, dessa forma uma construção espaço-temporal interativa do verdadeiro significado da paisagem. Assim, é necessário ressaltar tanto as marcas, os signos e as materialidades, quando as narrativas, as simbologias e as imaterialidades dessas paisagens. A Geografia, ao longo da sua consolidação como disciplina, vem desenvolvendo uma série de contribuições para o estudo das paisagens. Desde os naturalistas, a morfologia das paisagens de Sauer, aos gêneros de vida de La Blache, diversos foram os subsídios desenvolvidos no âmbito da ciência geográfica que contribuíram não apenas para sua delimitação em termos científicos, mas também para a compreensão cotidiana e governamental da categoria – Paisagem. 70 Vale ressaltar ainda, que tais concepções vêm sendo cada vez mais elaboradas pela Nova Geografia Cultural, que, conjuntamente ao regate das abordagens clássicas do início da disciplina, vem agregando concepções mais humanistas e cada vez mais voltadas às geografias imaginárias e ao mundo vivido, onde as experiências de paisagem são verdadeiramente construídas pelos sujeitos. No intuito de compreender como se desenvolveram tais esforços de compreensão da paisagem no âmbito da Geografia, problematizaremos a seguir sobre os percursos conceituais e as principais abordagens que fundamentam as concepções dessa categoria de análise adotadas neste trabalho. 2.1. A construção teórico-metodológica da Paisagem na ciência Geográfica A noção de “paisagem”, como, predominantemente, a concebemos ainda está diretamente ligada à dimensão da arte. Este vocábulo surgiu no século XV (landship) nos Países Baixos, para denominar as pinturas que expressavam um “pedaço da natureza” visto a partir de um enquadramento (como o de uma janela, por exemplo). À paisagem, eram atribuídos, a princípio, significados e sentidos relacionados, principalmente, com a estética e funcionalidade. A partir do vocábulo landship (holandês) criaram-se os neologismos: Landschaft (alemão), Landscape (inglês) e o termo paysage (francês) que surge como uma extensão da noção de pays (pátria, lugar de nascença) correspondendo basicamente à vista de um conjunto expressivo de determinada extensão do espaço (CLAVAL, 2004). E o conceito de paysage que surge na França, em 1551, “se difunde por outros países da Europa nos séculos seguintes como ‘paesaggio’ na Itália do século XVII; ‘paisaje’, na Espanha em 1708; e ‘paisagem’ em Portugal, pelas mãos de Luís Mendes de Vasconcelos, em 1608” (HOLZER, 1999, p. 153). É relevante assinalar que o início da Geografia enquanto disciplina acadêmica, sugestivamente acabou se viabilizando através da adoção da concepção da paisagem como objeto de estudo. Para Roberto Lobato Corrêa, a razão pela qual a paisagem é considerada uma “categoria-chave” para esse campo do conhecimento está precisamente no seu “papel de integrar a geografia, articulando o saber sobre a natureza com o saber sobre o homem” (CORRÊA, 1995, p.3). Corrêa & Rosendhal (1998, p. 7) destacam, a propósito, que, o 71 conceito é “capaz de fornecer unidade e identidade à geografia”, sendo assim, de grande relevância para a evolução histórica do pensamento geográfico. As paisagens foram, aliás, sendo apreendidas particularmente por geógrafos e viajantes que, ao descreverem a natureza das regiões que percorriam, utilizavam-se do olhar geográfico. Para os pioneiros da disciplina, a paisagem correspondia a “porções do espaço relativamente amplas, que se destacavam visivelmente por possuírem características físicas e culturais suficientemente homogêneas para assumir uma individualidade” (HOLZER, 1999, p.151). E nessa perspectiva a paisagem assumia uma “visibilidade” associada aos aparatos técnicos da trigonometria e geometria descritiva e sua visibilidade partia da identificação de áreas nas cartas geográficas associadas à própria observação do geógrafo em campo. Até meados do século XVIII as descrições das paisagens abstinham-se da utilização de termos técnicos e universais para falar da estrutura e das formas do relevo, agregando ainda (nas escolas alemãs) as observações pessoais dos geógrafos influenciadas pela filosofia da contemplação da natureza - o que se observa, por exemplo, nas obras de Alexandre Von Humboldt. Este pesquisador desenvolvia uma análise “holística” da paisagem, associando os diversos elementos da natureza e da ação humana e desenvolvendo a partir daí uma sistematização da ciência geográfica. Tal prática de transformação dos relatos de viagem em conhecimento sistematizado advém, aliás, do Renascimento e da época de emergência do Iluminismo, períodos históricos em que se desenvolveu uma geografia cosmográfica na Alemanha e na Suíça – e cuja influência se observa, por exemplo, no próprio título atribuído à obra-prima de Humboldt: “O Cosmos” (SCHIER, 2003). Os geógrafos, até o século XIX, procuravam descrever, de forma precisa, as paisagens através da observação/ análise das interfaces entre atmosfera, litosfera e hidrosfera. Contudo, entre 1880 e 1890 abre-se uma frente de estudos a partir das “relações complexas que se desenvolvem entre os homens e os ambientes onde eles vivem”, associada à perspectiva da ecologia, que repercutiu fortemente na França e Alemanha através da obra de Ratzel, delimitando-se, aí, um novo campo da geografia: a Antropogeografia ou Geografia Humana, concebida na interface entre “natureza e fatos sociais” ou da “natureza e cultura”. Nesse contexto, as interrogações se colocavam majoritariamente “sobre a influência que o meio exerce sobre os indivíduos e grupos”; e reciprocamente, sobre “as transformações que a atividade humana desencadeia no meio ambiente” (CLAVAL, 2004, p.21). Contudo, com a inserção das dinâmicas culturais e fatos sociais na análise da paisagem natural, fez-se necessário modificar o ângulo de observação, emergindo, nesse 72 contexto, uma visão vertical da realidade que buscava alcançar e compreender elementos ainda negligenciados na paisagem pelo olhar (até então) horizontalizado e resultante de vários pontos de vista sucessivos dos viajantes - que, ressalta-se, eram ainda muito próximos da concepção de paisagem dos pintores. E é, a partir da adoção dessa nova perspectiva que a visão geográfica sobre a paisagem deixa, efetivamente, de ser apenas horizontal ou oblíqua, e torna-se também vertical, incorporando o cruzamento de informações como “o desenho das parcelas de terras, as estradas, o plano das aldeias e das cidades” materializado, principalmente, através do mapeamento das paisagens, o que corresponde a um procedimento de grande relevância e significado para o desenvolvimento de novos referenciais para o estabelecimento de estudos de paisagens (CLAVAL, 2004). Essa especificação dos traços comuns de determinadas paisagens, leva também a uma qualificação das mesmas, como é o caso das paisagens agrárias, “expressão que designa as obras do homem na superfície do solo para a produção agrícola” (FÉNELON12, 1970, p. 484 apud CLAVAL, 2004, p.24). Vale ressaltar que tal fundamentação e requalificação da paisagem partem da utilização de novos procedimentos além da prática da observação direta, como o uso de fotografias aéreas, mapas temáticos, consulta de planos cadastrais, entrevistas junto aos atores sociais, dentre outros. Contudo, é preciso notar que a diversificação de metodologias e a verticalização do olhar geográfico podem levar também a simplificações e à perda de percepção da realidade como um todo. O olhar do geógrafo, consequentemente, deve ser ativo; precisa multiplicar os pontos de vista; observar a realidade a partir de vários ângulos (como fazia Humboldt); associar à visão horizontal/ oblíqua, a dimensão vertical; compreender a estrutura vertical ou interna das massas florestais, de um agrupamento populacional, etc. “O bom geógrafo é aquele que aprende a combinar todos esses olhares para analisar uma paisagem” como aponta, magistralmente, Claval (2004, p.29). Na década de 1970 o estudo das paisagens, numa nova perspectiva da Geografia Cultural, esteve concentrado, principalmente, nos Estados Unidos e Europa. E é relevante assinalar a propósito que nas abordagens da escola anglo-saxônica da Geografia Cultural contemporânea há uma diversidade de concepções teórico-conceituais que incluem tanto vertentes ligadas ao marxismo cultural quanto outras, que fazem uma releitura dos estudos clássicos da Escola de Berkeley, de Carl Sauer. Os primeiros postularam uma abordagem “renovada” e “radical” da Geografia Humana, criticando o “determinismo cultural” dos enfoques clássicos (vertente que inclui autores como Don Mitchel, Raimund Willians, Denis 12 FÉNELON, Paul. Vocabulaire de Géographie Agraire. Gap: Louis Jean, 1970. 691p. 73 Cosgrove, Nancy Duncan e Peter Jackson). Já os seguidores de Carl Sauer (a exemplo de Marvin Mikesell) demonstraram ter uma visão relativamente crítica, tanto dos autores clássicos, como dos marxistas, pois para eles a maior parte do que foi escrito por geógrafos culturais do estilo radical propriamente dito, pelos novos geógrafos culturais ou por geógrafos socioculturais “é superficial ou, pior ainda, uma desconstrução sem apoio de textos” (MIKESEL, 2000, p. 96). Contudo, os enfoques de Denis Cosgrove, embora imbricados com o Marxismo Cultural, podem ser considerados mais “heterodoxos” e, inclusive, observa-se que o autor é caracterizado por Hoefle (1999) como um pesquisador “bastante consistente filosoficamente através dos anos na sua migração intelectual do Marxismo Cultural ao Pós- Modernismo”. Na Europa as investigações apoiadas na categoria de análise Paisagem foram desenvolvidas, principalmente, pelas geografias alemã e francesa. Mas, enquanto na Alemanha o conceito esteve originalmente ligado ao positivismo, concebido sob uma forma mais estática, focalizando os fatores geográficos e agrupando-os em unidades espaciais; na França, o mesmo foi concebido de uma forma mais dinâmica e processual (SCHIER, 2003). Diante da importância assumida pelas escolas francesa e alemã para a construção teórica deste conceito na geografia, daremos continuidade à discussão aqui desenvolvida, enfocando como se deu o processo de introdução dos estudos culturais nas análises da categoria conceitual em questão. Assim, a primeira vez em que a perspectiva cultural apareceu na geografia alemã foi na obra de Friedrich Ratzel, em 1880, sobre a geografia dos Estados Unidos: “Culturgeographie de Vereinigten Staaten von Nord-Amerika unter besonderer Berücksichtigung der wirtschaftlichen Verhältnisse”13. A seguir, em 1882, esse autor clássico investiu na postulação de que os grupos humanos dependiam do ambiente onde viviam, o que marca o início das abordagens culturais na geografia alemã (por meio de sua obra: Antropogegrafia). Ressalta-se que, apesar de não abordar diretamente a perspectiva cultural em sua obra, de alcance essencialmente político, Ratzel, ao problematizar algumas questões sobre a relação do homem com o meio, proporcionava discussões/interpretações de cunho fundamentalmente cultural (CLAVAL, 2007, p.20-23). Mas os geógrafos alemães da segunda metade do século XX encontravam-se ainda muito atrelados a uma visão positivista da paisagem como um objeto a ser analisado a partir de uma metodologia objetiva de “unidades de paisagem” definidas por meio de 13 A geografia cultural dos Estados Unidos da América do Norte com ênfase especialmente voltada para as suas condições econômicas. 74 determinantes físicos como a latitude da área investigada; a produção agrícola; sua maior ou menor continentalidade; a vegetação, etc. Pois, nesse momento a influência do darwinismo e do positivismo, determinava a consolidação de estudos voltados quase que exclusivamente aos aspectos físicos da paisagem, como os utensílios e as técnicas utilizadas para se dominar o meio. Há geógrafos alemães que não adotavam, contudo, esta linha interpretativa, pois acreditavam que era preciso ir além da “história do povoamento apresentada em um quadro geral naturalista”, e sentiam a necessidade de compreender a paisagem “como a obra de um sujeito, o povo, que persegue seu destino e marca o espaço segundo modalidades que variam com sua divisão em grandes linhagens, como os diversos status de seus membros e com as oposições sociais e políticas que ali se desenvolveram” (SCHMITHÜSEN14, 1954, p.538 apud CLAVAL, 2004, p. 46). Dentre os geógrafos culturais franceses do final do século XIX e início do século XX destaca-se, por sua vez outro estudioso clássico, Vidal de La Blache, que mesmo não utilizando diretamente o termo cultura em seus estudos, buscou compreender a relação entre o homem e o meio na análise das paisagens, direcionando-se à perspectiva dos “gêneros de vida”, que abrangendo técnicas de produção, de transporte e hábitos pertencia à esfera cultural. Apesar da forte influência nele exercida pelas escolas alemãs, ao compreender a cultura como “aquilo que se interpõe entre o homem e o meio” através de instrumentos que as sociedades utilizam e das paisagens que as modelam, La Blache considerava que a compreensão desses elementos somente se daria por meio dos gêneros de vida, assimilando hábitos de vida, a organização social do trabalho, enfim, “as dimensões sociais ideológicas que estão indissociavelmente ligadas a seu aspecto ecológico” (CLAVAL, 2007, p.35). O próprio termo “paysage”, que tem sua origem no radical pays (que na Idade Média francesa significava, simultaneamente, “habitante” e “território”), refletia a análise explicitada acima. Vale ressaltar ainda que a apropriação do termo paysage pela geografia francesa se destituiu do sentido renascentista das pinturas, aproximando-se da perspectiva mais ampla das escolas alemãs (HOLZER, 1999). A partir desse novo direcionamento, um de seus alunos, Albert Demangeon ampliou, inclusive, os estudos sobre a paisagem, tornando-a um “objeto a ser descrito, analisado e explicado” e, não apenas um “meio para descobrir a organização do espaço” (CLAVAL, 2003b). 14 SCHMITHÜSEN, Josef. “Dans Geistige Gehalt in der Kulturlandschaft”. Berichte zur Deutschen Landeskunde, v. 12, n 2, 1954, pp- 185-8. Republicado in: Werner STORKEBAUM (org.). Zum Gegenstand und zur Methode der Geographie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchegesellschaft, 1967, pp. 533-8. 75 Jean Brunhes, um dos primeiros alunos de La Blache, defendia que o estudo das paisagens (rurais) começasse pela análise do solo e do funcionamento das fazendas, sempre buscando os fatores históricos e etnográficos que pudessem explicar grande parte das formas observadas. Este geógrafo francês buscava representar cartograficamente as sensibilidades de alguns aspectos da paisagem, “os marcos e sinais visíveis sobre o território”, como as pequenas igrejas e capelas, as cruzes ao longo dos caminhos, as imagens da Virgem em regiões católicas, cuja presença repetida configurava um “sinal de pertencimento, de reconhecimento, de confirmação de identidades” (CLAVAL, 2004, p.40-41). Um dos diferenciais desse autor foi o princípio da atividade (de que fatores humanos e naturais estão em constante transformação/movimento) e o princípio da conexidade (segundo o qual tudo, seja de natureza social ou natural, está em íntima e recíproca relação, e não pode ser estudado isoladamente). Vários dos discípulos de La Blache, ao longo do tempo, passaram a desenvolver esta abordagem funcional associada à visão vertical das paisagens, e destacando cada vez mais, mesmo que indiretamente, as dimensões culturais. Contudo suas abordagens nunca se dissociavam da tradição vidaliana, recusando-se eles, a analisar os processos mentais e o papel das ideias - o que só foi desenvolvido, posteriormente, pelas correntes da Fenomenologia/ Percepção. No século XX, a partir da análise dos gêneros de vida expressos nas paisagens, principalmente rurais, muitos estudos da Geografia Cultural (e, não apenas da escola francesa), se direcionaram à compreensão das paisagens culturais das sociedades tradicionais, também em territórios inexplorados, como pode ser observado nos estudos de Jean Gallais15 (CLAVAL, 2007). Com o avanço dos processos de modernização e urbanização no pós II Guerra Mundial, houve um processo de uniformização dos utensílios e artefatos e uma mudança no ambiente e nas estruturas agrárias, advindas, inclusive do deslocamento crescente da população camponesa aos setores secundário e terciário. Nesse novo contexto histórico, alguns autores franceses começam a apontar as limitações, e até mesmo, a sugerir a superação das pesquisas em Geografia Cultural, diante dos indicativos de que os “métodos de descrição apurados pela geografia francesa, e que convêm tão bem à apreensão das realidades culturais, não são feitos para a sociedade modernizada” dos países europeus, sendo essas possivelmente aplicáveis apenas “nos países (tropicais) onde as células do mundo rural não foram atingidas 15 GALLAIS, Jean. Le Delta intérieur Du Niger. Étude de geographie régionale, Dakar, IFAN, 2 vol. 1967. 76 pelo progresso” (CLAVAL, 2007, p.49). Contudo, o desaparecimento da Geografia Cultural não se evidenciou; pelo contrário, com a uniformização das técnicas e da vida material, as representações, até então negligenciadas, a partir da década de 1970 passam a ser o foco das análises geográficas. Além disso, a dimensão imaterial da cultura passa a ser agregada e compreendida na paisagem cultural (o que, de certa forma, se intensifica, - vale ressaltar -, a partir do olhar cultural da Escola de Berkeley). A geografia norte-americana teve suas origens ligadas primordialmente às ciências naturais, principalmente a Geologia, que neste período gozava de grande prestígio “e se afirmava como uma ciência voltada para o levantamento sistemático de recursos do subsolo, em fase de industrialização crescente”. Em seguida, a ciência geográfica norte- americana se viu influenciada também pela Antropogeografia alemã e pela Economia por estar “interessada na ampliação do comércio internacional norte-americano”. Tal realidade se refletiu na própria constituição do corpo docente de geógrafos nesse período, que eram, na verdade, geólogos de formação e em termos de prática profissional. É interessante notar que já devido a tais influências, ambas atreladas ao pragmatismo e ao darwinismo social, que a geografia norte-americana inicialmente se difundiu gerando uma visão determinística e evolucionista marcada pela ideia de competição, dominação e sucessão (CLAVAL, 2007). No período compreendido entre 1915 a 1920 desenvolveu-se, contudo, uma forte crítica ao determinismo ambiental. Na década de 1920 emergem três vertentes que negariam o determinismo. A primeira, sob uma perspectiva da ecologia humana, cujos objetivos eram “examinar as respostas humanas ao meio físico”, ganhou força com a criação do periódico Economic Geography, em 1925. As outras duas perspectivas emergiram, por sua vez, das proposições de Carl Sauer, em “The Morphology of Landscape”, de que derivam os estudos corológicos e a Geografia Cultural, mais desenvolvida posteriormente junto à Escola de Berkeley. Carl Ortwin Sauer (1889-1975) formou-se na Universidade de Chicago, onde apreendeu algumas metodologias geográficas, às quais agregou aspectos das ciências naturais. Com sua chegada em Berkeley em 1922, o pesquisador, sob influência da antropologia, passaria a direcionar suas investigações às sociedades indígenas do sudeste dos Estados Unidos e do México16, apoiando-se principalmente na materialidade da paisagem, naquilo que é legível na superfície da Terra. E devido à influência alemã, a paisagem para o autor, exprimia a importância que tem determinado sítio para o homem, e as interferências que este 16 Nesse contexto regional domiciliam-se populações autóctones importantes da América do Norte em termos histórico-culturais como os Apaches, Nevahos (Nevajos), Pueblos (Hopi, Zuni...), Pimas, etc. 77 exerce sobre ele. Apesar de considerar os aspectos culturais dos grupos humanos mapeáveis (e principalmente em termos da difusão de técnicas ou práticas semelhantes entre os grupos), Sauer não considerava, contudo, suas dimensões sociais e psicológicas. E sendo assim, o pensamento deste autor esteve associado, principalmente, à dimensão morfológica da paisagem, ou seja, ao conjunto de formas criadas pela natureza e pela ação humana, que apresentam uma relação entre si (perspectiva funcional). Tal perspectiva refletida na magistral obra “The morphology of landscape” contribuiu para sua rejeição ao determinismo ambiental predominante na escola norte-americana desde o final do século XIX (CLAVAL, 2007). Para Sauer, a paisagem consistiria em “uma área composta por associação distinta de formas, ao mesmo tempo físicas e culturais”, possuindo “uma identidade que é baseada na constituição reconhecível de limites e relações genéricas com outras paisagens que constituem um sistema geral” (SAUER, 1998, p.23). Tal sistema geral estaria relacionado às dimensões físicas e culturais da paisagem, ou seja, às paisagens naturais e culturais. Mas apesar dessa distinção, inclusive metodológica, o autor destacava que “o conteúdo da paisagem é encontrado, portanto, nas qualidades físicas da área que são importantes para o homem e nas formas do seu uso da área, em fatos de base física e fatos da cultura humana” (SAUER, 1998, p.29). Para o autor, as paisagens não poderiam ser definidas apenas como uma cena vista por um observador, pois se tratavam de “generalizações derivadas da observação de cenas individuais”, e a individualidade da paisagem apenas seria percebida quando comparada com outras (HOLZER, 1999). Sauer foi o expoente máximo da Escola de Berkeley e formou grandes gerações de geógrafos, os quais contribuíram fortemente para o avanço da disciplina. A Escola de Berkeley, entre 1925 e 1975, caracterizou a Geografia Cultural norte- americana. Marvin Mikesell e Philip Wagner, discípulos de Sauer, privilegiavam, a propósito, cinco temas principais de pesquisa: cultura, área cultural, paisagem cultural, história da cultura e ecologia cultural (CORRÊA, 2001). Postulava-se então que esses temas apresentar- se-iam associados entre si e a inúmeros objetos empíricos. Para esses autores, a cultura era entendida como uma “chave” para a compreensão das diferenças e semelhanças entre os homens, considerando-os não como indivíduos isolados, mas como comunidades de pessoas sediadas num determinado espaço, amplo e contínuo, destacando suas inúmeras características de crenças, comportamentos, etc. Sendo assim, a cultura resultaria “da capacidade de os seres humanos se comunicarem entre si por meio de símbolos” (WAGNER & MIKESELL, 2000, p.114). Dentre esses símbolos de comunicação destacar-se-ía o papel da linguagem, reconhecida como a capacidade de 78 transmitir o “significado de algo”, pelas palavras, exclamações, gestos, expressões, pinturas, músicas, fotos, dentre outros. E dessa forma, ao realizar-se uma análise cultural, seria preciso buscar e interagir com toda essa simbologia, estudando sua distribuição no tempo e no espaço, para compreender suas singularidades e potencialidades. Já a área cultural17 estaria associada à distribuição espaço-temporal de características da cultura, que podem indicar seu processo de difusão ou de regressão, diante da análise do mapeamento dessas distribuições. Sob a perspectiva geográfica, “a área cultural também é sempre uma ‘paisagem cultural’” (WAGNER & MIKESELL, 2000, p.131). A paisagem cultural corresponderia, nesse contexto, a um “conteúdo geográfico de uma determinada área ou um complexo geográfico, no qual são manifestadas as escolhas feitas e as mudanças realizadas pelos membros de uma comunidade cultural”, esclarecendo aspectos da cultura local de determinadas comunidades (WAGNER & MIKESSELL, 2000, p.133). E na busca da história cultural de determinado recorte espacial o uso de indicadores como documentos, topônimos, relatos de viajantes e referência da história local consistiriam, para esses pesquisadores, importantes fontes de indicadores de áreas e paisagens culturais. E, por fim, a ecologia cultural que, interagindo com as paisagens culturais e seus atores, auxiliaria no rastreamento dos processos envolvidos nas transformações socioambientais de uma paisagem, examinando os manejos da terra, os sistemas culturais e sociais, as condições de vida e outros aspectos que passam a esclarecer como determinados eventos ocorreram naquele contexto. A partir da década de 1970, foram inúmeras as críticas formuladas à Escola de Berkeley. Os geógrafos teórico-quantitativos destacaram a limitação/restrição dos seus estudos às sociedades tradicionais, voltados apenas para o passado, desenvolvendo temas restritos aos interesses acadêmicos, e distanciando-se da sensibilidade social dessas sociedades tradicionais. Outras críticas a essa escola foram direcionadas à sua preocupação em descrever o mundo ao invés de compreendê-lo, limitando seus estudos aos aspectos estéticos das paisagens (CLAVAL, 2001). Dentre as críticas internas, destacam-se as de Duncan (1980), um importante geógrafo norte-americano da nova geografia cultural marxista, segundo o qual os geógrafos culturais, e mais especificamente os da escola saueriana, admitiriam um conceito de cultura 17 No Brasil, o conceito de área cultural poderia ser exemplificada pela definição das 11 áreas culturais indígenas no país: Norte-Amazônica, Juruá/Purus, Tapajós/Madeira, Tocantins/Xingu, Pindare/Gurupi, Guaporé, Alto Xingu, Nordeste, Paraná, Paraguai e Tietê-Uruguai (GALVÃO, 1960). 79 supra-orgânica, “atribuindo-lhe auto-direção e poder sobre os homens”, e sendo abordada sem uma visão crítica, com a adoção de uma visão generalista do conceito. É nesse sentido que Paul Claval, expoente da escola francesa da geografia cultural contemporânea, propõe, - inclusive - que o termo “cultura” deva ser utilizado com muita cautela, pois esta dimensão da realidade seria formada de elementos retransmitidos e reinterpretados permanentemente pelos grupos sociais, diante das transformações sociais, econômicas e territoriais, “o que quer dizer que cada um desenvolve sua própria cultura em função do meio ambiente onde vive, trabalha ou viaja, das dificuldades que encontra e da informação que recebe de fontes próximas ou distantes” (CLAVAL, 2001, p. 50). E é na busca da compreensão desses elementos simbólicos e imateriais que emerge, a propósito, a necessidade de se problematizar as abordagens fenomenológicas na Geografia Cultural – a qual procuraremos suprir a seguir. 2.2. Contribuições da abordagem fenomenológica aos estudos da paisagem na Nova Geografia Cultural A retomada cultural na geografia francesa (incorporando a releitura das concepções da representação, do simbólico e do imaterial) e na escola anglo-saxônica de Sauer (que, na década de 1970, passava por uma revisão de sua perspectiva cultural) é marcada por uma mudança filosófica muito importante e fecunda para os geógrafos, no início dos anos de 1960. Claval registra nesse sentido que: A transformação que começa a afetar os estudos culturais conduzidos pelos geógrafos a partir do início da década de 1970 repousa sobre uma mudança completa de atitudes e nasceu da constatação de que as realidades que refletem a organização social do mundo, a vida dos grupos humanos e suas atividades jamais são puramente materiais. São expressões de processos cognitivos, de atividades mentais, de trocas de informações e ideias. As relações dos homens com o meio ambiente e com o espaço têm uma dimensão psicológica. Nascem das sensações que as pessoas experimentam e das percepções a elas ligadas. Exprimem-se por meio de práticas e habilidades que não são completamente verbalizadas, mas que resultam de uma atividade mental; estruturam-se pelas preferências, conhecimentos e crenças que são o objeto de discursos e de uma reflexão sistemática (CLAVAL, 2001, p.39). Neste processo de mudança, segundo Claval (2004), é que a corrente fenomenológica inaugurou uma nova consciência das relações que interligam os aspectos físicos às relações sociais, contribuindo para as análises funcionais e simbólicas do percebido sem descartar que “o mundo que o indivíduo percebe jamais é objetivamente dado”. E então a abordagem do caráter coletivo dos aspectos culturais dá lugar para o estudo das atitudes e preferências, buscando compreender os fenômenos “através de uma descrição crítica e 80 minuciosa das sensações” e penetrando na verdadeira natureza dos processos. O autor, nessas linhas interpretativas da Geografia já indica, inclusive, algumas incitações sobre a análise da paisagem: “Não é este o momento de lembrar que a paisagem é criada pelo observador e que ele depende do ponto de vista que ele escolheu e do enquadramento que ele lhe dá? A liberdade que tem o geógrafo de se deslocar para multiplicar os ângulos não elimina essa dimensão subjetiva” (CLAVAL, 2004, p.48). E nessa perspectiva, o direcionamento que na Geografia Cultural Tradicional se estruturaria a partir da questão “Por que os lugares se diferem?”; na Nova Geografia Cultural corresponderia a: Por que os indivíduos e os grupos não vivem os lugares [e paisagens] do mesmo modo, não os percebem da mesma maneira, não recortam o real segundo as mesmas perspectivas e em função dos mesmos critérios, não descobrem nele as mesmas vantagens e os mesmo riscos, não associam a ele os mesmos sonhos e as mesmas aspirações, não investem nele os mesmo sentimentos e a mesma afetividade? (CLAVAL, 2001, p.40). Observa-se desse modo, que a influência da concepção fenomenológica nas abordagens culturais amplia os estudos geográficos para a investigação da “experiência do espaço”, concebida por meio dos “sentidos humanos”, das “geografias vividas” e da “maneira como as pessoas vivem sobre a Terra” e experienciam as paisagens culturais constituídas a partir de suas “imaginações geográficas” (CLAVAL, 2001, p.61). Uma vez que os objetos são percebidos pela consciência, é também necessário descobrir o seu significado por meio da forma como eles são vivenciados e percebidos. E é nesse sentido que as metodologias de cunho fenomenológico contribuem, consideravelmente, para a compreensão do significado que as paisagens assumem para os indivíduos, através da busca pela essência dos fenômenos. O filósofo alemão Edmund Husserl (1970) foi quem introduziu este pensamento nas ciências sociais, buscando integrar a ciência e a essência do conhecimento, através do sentido dos fenômenos, ou seja, da essência revelada pelos objetos. E outro autor de grande importância para a construção de uma geografia fenomenológica foi Eric Dardel (1899-1967) cuja obra, voltada às questões atualíssimas da existência, exerce ainda grande influência na ciência geográfica. Uma das grandes contribuições do autor foi a implementação do conceito de geograficidade, “o qual expressa a própria essência do ser-e-estar-no-mundo” (DARDEL, 2011, p.XII). É a partir dessa base conceitual que Dardel compreende a paisagem como a ligação existencial do homem com a Terra, como a “sua geograficidade original: a Terra como lugar, base e meio de sua realização” (DARDEL, 2011, p.31). De acordo com o autor: “a paisagem não é, em sua essência feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, 81 lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros, base de seu ser social” (DARDEL, 2011, p.32). E para chegar a essa essência dos processos, as abordagens fenomenológicas buscariam as variações imaginárias, “que consistem em, no pensamento, fazer variar as características de um objeto ou realidade até que se obtenha o que é invariável – a possibilidade de designação desse fenômeno, ou seja, sua própria essência”. Ressalta-se que a produção de significados das essências ocorreria através da percepção, do pensamento, da memória e da imaginação, dando a estas significações um caráter universal, intersubjetivo e absoluto (HOLZER, 1997). O processo de renovação e revalorização da geografia cultural, portanto, apoiou- se em várias concepções das escolas de Berkeley e de Vidal de La Blache associando-os, especialmente, à fenomenologia e à Geografia Social. Um dos expoentes desse projeto epistemológico renovador no âmbito da geografia cultural anglo-saxônica foi, por sua vez, David Lowenthal, seguidor da escola saueriana e um dos precursores da geografia cultural humanística e, que já na década de 60 (século XX), preconizava a integração das abordagens históricas aos estudos geográficos, com o objetivo de procurar uma “gênese do sentido” (sinn genesis), sem reduzi-la a uma simples análise cronológica, mas colocando em perspectiva o significado da percepção social sobre os fenômenos ou acontecimentos construída no passado (HOLZER, 2005). Para além da Geografia científica, Lowenthal (1985) ressalta, em um dos seus mais clássicos textos: “Geografia, experiência e imaginação: em direção a uma epistemologia geográfica”, a importância das “geografias pessoais”, ou seja, aquelas produzidas por “qualquer pessoa que examine o mundo ao seu redor”, pelas “visões de mundo” que constroem e reconstroem a todo o momento relações e ideias geográficas consolidadas por suas próprias experiências de mundo (percepção, memória, linguagem, lógica e fé). Segundo o autor, “todos nós somos artistas e arquitetos de paisagens, criando ordem e organizando espaços, tempo e casualidade, de acordo com nossas percepções e predileções” (LOWENTHAL, 1985, p.141). A paisagem seria, então, concebida por meio das “visões particulares do mundo”, sendo inspirada, editada e distorcida por influência dos sentimentos, histórias, costumes, arte e pessoas. Nesse novo contexto os aspectos subjetivos e imateriais das paisagens passaram a ter maior destaque, principalmente, através da fenomenologia e da simbologia dessas paisagens, sendo elas analisadas “por meio de obras literárias, pintura, música e cinema, 82 considerada sua representação a partir de diferentes grupos sociais” (MELO, 2001). A paisagem cultural passa então a ser compreendida como “um meio pictórico de representar ou simbolizar tudo o que circunda o ser humano” 18 revelando o seu significado social e simbólico. Paul Claval, ao analisar as abordagens da Nova Geografia Cultural, destaca que as relações entre os seres humanos e a natureza nunca são diretas, e sim, mediadas por uma dimensão cultural. E dessa forma: A cultura aparece como um conjunto de gestos, práticas, comportamentos, técnicas, know-how, conhecimentos, regras, normas e valores herdados dos pais e da vizinhança, e adaptados através da experiência a realidades sempre mutáveis. A cultura é herança e experiência. Ela é também projeção em direção ao futuro (CLAVAL, 2003b, p. 163). A este conjunto de práticas e comportamentos, os saberes e vetores distintos das sociedades, o autor associa, a propósito, a configuração de uma identidade cultural, construída pela experiência contínua e coletiva, que se realiza através da vivência socioespacial. Ademais, segundo Claval (2001), essa Nova Geografia Cultural seria construída sobre quatro pilares principais. O primeiro está associado à atenção especial que o pesquisador deve atribuir ao momento e à cultura local, buscando descrevê-los em profundidade a fim de apreender a sua verdadeira complexidade. O segundo pilar diz respeito à busca de uma renovação em um dos objetos centrais da geografia saueriana, o estudo das relações homem/ meio ambiente, inserindo a “maneira pela qual o homem e os grupos sociais se inscrevem na natureza (sendo o homem um dos componentes da natureza) e modelam seu meio ambiente (as paisagens)” - (CLAVAL, 2001, p. 43). Com o objetivo de compreender essa relação homem/natureza emerge o terceiro ponto da renovação, para o qual é preciso considerar os “sentidos da experiência humana, os recortes da realidade física e social” das pessoas, destacando a riqueza do seu imaginário e dando sentido às geografias mais diversas que compõem suas paisagens e espaço vivido. E, por fim, o quarto aspecto, que é uma consequência dos três primeiros: a multiplicidade dos pontos de vista, uma vez que a Geografia Cultural proporciona múltiplas abordagens associadas a algumas perspectivas de síntese de determinado fenômeno. Nessa concepção, as paisagens culturais constituiriam uma matriz cultural, expressa nos diversos aspectos culturais, representados pelas dimensões 18 COSGROVE, D. Biophysical control of plant cell growth. Annual Review of Plant Physiology, v.37, p. 377-405, 1987& COSGROVE, 1987 . 83 funcional e simbólica, e correspondendo a uma mediadora na transmissão dos conhecimentos, valores e atitudes de uma geração para outra (CLAVAL, 1992). Quanto às representações simbólicas do espaço geográfico, Isnard (1982, p.71) comenta que também pode ser verificado nas paisagens, “o simbolismo que traduz em sinais visíveis não só o projecto vital de toda a sociedade: subsistir, proteger-se, sobreviver, mas também as suas aspirações, crenças, o mais íntimo de sua cultura”. O autor destaca ainda a riqueza simbólica relacionada às sociedades tradicionais, cujos “atos são portadores de testemunhos”; aponta que a religião possui uma grande influência na organização do espaço; e demarca que “a casa, a aldeia, a cidade são um campo privilegiado de representações simbólicas”, pois “constituem uma linguagem sobre as concepções que uma sociedade faz da sua própria organização e da organização do mundo” (ISNARD, 1982, p.71). Pode-se destacar que a principal diferença de abordagens entre a geografia cultural tradicional e a renovada é que a primeira desenvolvia-se numa unidade temática, pensando todos os temas da geografia cultural em conjunto, através de um único método que desencadeava numa hegemonia cultural. Já as novas diretrizes da geografia cultural buscam um contexto de heterotopia epistemológica, de forma que não existe uma única definição para os conceitos ou um único método. E é assim que a paisagem passa a ser analisada através de uma diversidade de perspectivas, cujo objeto comum é a elucidação do processo cultural por meio do estudo das paisagens (DUNCAN, 2004). Outra contribuição na análise das paisagens culturais, na perspectiva da Nova Geografia Cultural, é a metáfora da cultura e da paisagem a ser lida como um texto. Essa analogia permite considerar os distintos sentidos que são atribuídos às paisagens, de forma que a cultura é apresentada como uma espécie de documento aberto a múltiplas interpretações. Segundo Duncan (2002), as paisagens devem ser analisadas num contexto de intertextualidade, no qual elas podem ser produzidas e lidas de diferentes modos. Assim, a paisagem “é um dos elementos centrais num sistema cultural, pois, como um conjunto ordenado de objetos, um texto, age como um sistema de criação de signos, através do qual um sistema social é transmitido, reproduzido, experimentado e explorado” (DUNCAN, 2002, p.106). Ainda segundo o autor, na análise das paisagens é preciso considerar três aspectos. O primeiro remete à forma como os atores sociais se envolvem com a paisagem, “que importância eles atribuem à paisagem e de que maneira suas leituras da paisagem contribuem para uma política de interpretação que naturaliza as relações sociais”, 84 considerando a temporalidade e as diferenças internas e externas desse grupo social (DUNCAN, 2002, p.106-107). O aspecto seguinte está relacionado à análise dada aos diferentes valores atribuídos à paisagem pelos intérpretes internos e externos a ela, uma vez que o outsider, por estar distante da paisagem, desenvolve um olhar mais crítico, diferentemente da percepção daqueles que a vivenciam. E assim, a justaposição dos escritos de ambos os intérpretes pode auxiliar na compreensão das ideologias dominantes, políticas e práticas sociais. E, por fim, o terceiro aspecto destaca a importância de se focalizar nas formas como a paisagem produz e reproduz os símbolos e significados das diversas dimensões culturais. Nesse sentido, os valores e significados que são atribuídos a uma determinada paisagem compreendem a sua relação com o indivíduo proveniente dos processos de percepção e cognição ambiental. E apesar das diferentes percepções dos indivíduos geralmente configuram-se alguns padrões perceptivos em relação à paisagem de uma cultura (RISSO, 2008). O amadurecimento dessa nova concepção fenomenológica propiciou um avanço nas análises das paisagens no âmbito da Geografia Cultural, incluindo, como destaca Claval (2001), a descrição em profundidade da cultura local, o estudo das relações homem/meio ambiente, a busca da compreensão dos sentidos da experiência humana e a compreensão de todos esses aspectos a partir de uma análise multifocal. Essa nova concepção da cultura como um texto a ser lido/interpretado nos abre, aliás, uma nova frente de estudos das paisagens que inclui desde a análise de significações, discursos, narrativas às relações de poder intrínsecas à constituição das paisagens culturais. A partir da problematização sobre o percurso epistemológico da categoria em questão, ressaltamos que seguindo as tendências atuais da nova geografia cultural, compreendemos que o homem é parte integrante e fundamental para a compreensão das paisagens culturais, que ressurgem, dessa forma, “como possibilidade de revisitação das práticas culturais e de campo de revelação das atitudes dos homens” (GOMES, 2001, p.55). Nesse sentido, ao mesmo tempo em que evoca significados a partir dos signos e valores atribuídos, ela desempenha um importante papel ao comunicar, reproduzir, experimentar e explorar o sistema social, político, econômico e cultural dos grupos, conectando, muitas vezes, passado, presente e futuro por meio dos sistemas de representação textuais e intertextuais de uma retórica da paisagem (CORRÊA; ROSENDAHL, 2004). 85 Para Augustin Berque (1998), a Geografia Cultural de fato deve, buscar a compreensão da relação entre a Sociedade e o Espaço, a qual é concretamente representada por meio da paisagem, que produz, reproduz e transforma as espacialidades dos sujeitos coletivos e individuais por meio de uma lógica, um sentido, que atribui a essas paisagens uma marca e uma matriz específica. E dessa forma, aprimorando as concepções da geografia cultural tradicional, a paisagem-marca, para o autor, expressa a materialidade cultural de um grupo, as práticas e signos passíveis de serem descritos, inventariados e quantificados a partir das percepções e experiências de mundo de determinada comunidade. No intuito de alcançar o sentido global dessas paisagens, Berque distingue ainda o que ele denomina de paisagem- matriz, que corresponde aos “esquemas de percepção, concepção e de ação – ou seja, da cultura – que canalizam em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza” (BERQUE, 1998, p.84-85). Posto isso, essa “geo-grafia em primeiro grau” – “a escrita da terra por uma sociedade” – representaria ainda, segundo o autor, uma “cadeia de processos físicos, mentais e sociais na qual a paisagem desempenha um papel perpétuo e simultâneo de marca e de matriz” (BERQUE, 1998, p.88). Metodologicamente, para alcançar esse discernimento da paisagem marca e matriz, Berque (1998, p.88-89), no âmbito do movimento de renovação da Geografia Cultural, elaborou um esquema com cinco procedimentos para o estudo da paisagem cultural: 1) Inventário eco-geográfico: compreender qual o grau de interação da sociedade para com a natureza; 2) Inventário das representações: investigar como a paisagem é percebida por aqueles que a vivenciam. “Como tal sociedade evoca e idealiza sua relação com a natureza (pintura da paisagem, literatura, jardins, etc.)”; 3) Inventário dos conceitos e valores: “Como tal sociedade concebe e julga o natural, o artificial, o sobrenatural, a natureza humana, a própria natureza”. Como essas percepções se projetam no espaço, na arquitetura, na organização socioterritorial dos grupos? 4) Inventário das políticas: “Como tal sociedade gera, efetivamente, seu patrimônio eco-geográfico? Que instituições cria para organizar seu ecúmeno e qual a eficácia destas instituições?” 5) Exame sintético: consiste na compreensão da interação dos quatro eixos anteriores na configuração da paisagem cultural, e na articulação que esta promove entre o imaginário e as “coisas do real”. 86 A análise das paisagens, nessa perspectiva, parte de uma compreensão das camadas de significados e seus códigos simbólicos para a leitura de “‘uma paisagem de mil folhas’ que exige a convivência de várias paisagens, ritmos, percepções, escalas e perspectivas” (BERQUE19, 1991, p.26-27 apud LUCHIARI, 2001, p.23). Assim, como ressalta Claval (2004, p.52), o “geógrafo não estuda mais apenas a paisagem como realidade objetiva. Preocupa-se com a maneira como a paisagem está carregada de sentido, investida de afetividade por aqueles que vivem nela ou que a descobrem”. E Matthew Gandy (2004, p.86), acrescenta que a “paisagem não pode mais ser definida como o objeto passivo da observação humana, mas antes como elemento constitutivo do desenvolvimento das sociedades”. Já no intuito de se adquirir a compreensão da paisagem como um texto, Duncan (2004, p.106) afirma que a paisagem “é um dos elementos centrais num sistema cultural” uma vez que age por meio da “significação da paisagem” e da “retórica da paisagem”. Na significação da paisagem o autor discrimina alguns pontos-chave a serem investigados no intuito de se compreender o verdadeiro sentido que alguns signos ou marcas da paisagem representam para as comunidades, tais como: “exame de relatos das pessoas locais sobre a natureza da paisagem, como ela lhes parece”; “que importância elas atribuem à paisagem e de que maneira suas leituras da paisagem contribuem para uma política de interpretação que naturaliza as relações sociais em uma sociedade ou as transforma”; “interpretação dos pesquisadores sobre o que a paisagem significa para aqueles que a produzem, a reproduzem ou a transformam”; e por fim, a importância das “crenças, mitos, mundo social e relatos locais” para a construção do discurso cultural (seja ele, diverso ou contestado), e tanto dos sujeitos locais como dos não-locais (DUNCAN, 2004, p.106-107). Partindo da compreensão de que as paisagens culturais sempre reproduzem códigos e significações presentes também em outros sistemas culturais, Duncan (2004, p.109) ressalta ainda que: A justaposição das leituras do “outsider” e do “insider” pode ajudar a desfamiliarizar a relação entre paisagens, ideologias dominantes e práticas políticas ou sociais. Isso pode esclarecer a maneira como ideologias dominantes, que são transmitidas por meio da paisagem, reproduzem práticas sociais e políticas. Posto isso, a retórica da paisagem parte para a compreensão dos processos que possibilitam a leitura da paisagem. Concebida cotidianamente como algo dado e objetivo, a paisagem esconde, muitas vezes, sob esse caráter estético do natural, a ideologia que contextualiza sua forma e conteúdo; ou seja, sua história, sua dinâmica interna de transmissão 19 BERQUE, Augustin. De paysage enoutre-pays. In:Le débat (65:04-13:1991). 87 e construção social e, até mesmo, sua própria essência cultural. “Logo, ela é tão inconscientemente lida quanto inconscientemente escrita” (DUNCAN, 2004, p.111). E nesse sentido, é preciso buscar tanto as textualidades quanto as intertextualidades das paisagens, nos mais diversos tipos de “textos”, intrínsecos às próprias práticas sociais dos grupos. Outra questão relevante a ser considerada para o autor é a diferenciação entre a tradicionalidade (inconscientemente adquirida) e a perspectiva tradicionalista, na qual há uma “aderência consciente a modelos históricos ou pretensamente históricos de comportamentos”, tendo em vista certas vantagens políticas, econômicas e/ou sociais que lhes compete (DUNCAN, 2004, p.121). No intuito de compreender tais intertextualidades das paisagens, um autor que se destaca é Denis Cosgrove (2012) - (um expoente da escola anglo-saxônica da Geografia Cultural), que propõe uma integração entre o materialismo dialético e os aspectos subjetivos da percepção da paisagem, ou seja, que sinaliza para uma análise das paisagens sob a perspectiva das formas visíveis e das representações de discursos e pensamentos associadas a elas. Para ele, a paisagem se colocaria como um lugar simbólico, que carrega um sistema de significações, compostas por meio das relações do seu espaço vivido. Mas o autor busca inter- relacionar os paradigmas da Geografia Cultural Humanista com a Geografia Social Marxista. Cosgrove adota um conceito de cultura intimamente ligado à manutenção e reprodução das relações de poder, postulando fundamentalmente que “um grupo dominante procurará impor sua experiência de mundo, suas próprias suposições tomadas como verdadeiras, como a objetiva e válida [...] para todas as pessoas” (COSGROVE, 1998, p.104- 105). E as relações de poder se concretizariam, ainda mais, em circunstâncias nas quais as suposições culturais do grupo dominante aparecem como senso comum, o que, o autor define como uma hegemonia cultural. É assim que, para o autor, se formariam as culturas dominantes, e as subdominantes ou alternativas, e ele incorpora nessa discussão, tanto aspectos políticos, como aqueles concernentes à etnicidade, sexo e idade. Sua proposta é “aplicar à paisagem humana algumas das habilidades interpretativas que dispomos ao estudar um romance, um poema, um filme ou um quadro, de tratá-la como uma expressão humana intencional composta de muitas camadas de significados” (COSGROVE, 1998, p. 97). O autor destaca ainda que as paisagens estão intimamente ligadas a uma nova maneira de conceber o mundo, agregando uma perspectiva ordenada, designada e harmoniosa de uma série de estruturas e mecanismos acessíveis aos olhos, e que agem como direcionamento para as ações dos seres humanos no sentido de alterar e aperfeiçoar o meio ambiente. O autor 88 destaca ainda que a construção cultural é estabelecida, constantemente, através das ações humanas, muitas das quais rotineiras, da vida cotidiana. Para identificar os significados citados pelo autor faz-se necessário “compreender as expressões impressas por uma cultura em sua paisagem” (COSGROVE, 1998, p.105), e em que a leitura/ interpretação da linguagem consiste em um instrumento fundamental. Como principal método para a leitura das paisagens, o autor propõe, sugestivamente, a execução de trabalhos de campo, a elaboração e interpretação de mapas e a busca de “evidências”, que, segundo ele, poderiam corresponder a “qualquer fonte que possa nos informar os significados contidos na paisagem” para os que a fizeram, alteraram-na, mantiveram-na, visitaram-na e, assim por diante (COSGROVE, 1998, p.109). O autor estabeleceu classicamente uma diferenciação entre paisagens culturais dominantes e alternativas. As primeiras refletem o domínio que um determinado grupo ou classe exerce sobre outro(s), através da dominação dos meios de vida, como terra, capital, matérias-primas e força de trabalho. Já as paisagens culturais alternativas seriam reproduzidas por grupos não-dominantes, sendo, por sua própria natureza, menos visíveis. Neste conjunto de paisagens alternativas o autor identifica três categorias de culturas subordinadas: as emergentes, as excluídas e as residuais. As paisagens emergentes, originadas de novos grupos e que podem ter caráter transitório, corresponderiam àquelas capazes de oferecer um desafio à cultura dominante, a partir de seu sistema geográfico e simbólico, concebendo uma nova perspectiva/ alternativa de reprodução sociocultural e, assumindo, inclusive, a forma de contra-projetos às culturas dominantes que têm se consolidado nas últimas décadas, principalmente entre os povos tradicionais (DEUS, 2011). Já as paisagens residuais poderiam, por sua vez, ser encontradas em lugares onde os elementos da paisagem carregam pouco ou nada de seu significado original, podendo configurar assim, o que muitos geógrafos denominam de “paisagens-relíquias” (CORRÊA, 1995). E as paisagens excluídas seriam gestadas por grupos minoritários e pouco integrados, como as minorias étnicas (índios, ciganos e pomeranos, por exemplo) ou religiosas (a exemplo dos amish); e ainda, a cultura feminina, a cultura dos grupos LGBT20, maçons, prostitutas, etc. Segundo Corrêa (1995, p. 291) tratar-se-íam “de paisagens próprias, muitas vezes imperceptíveis aos olhos da cultura dominante, mas rica de símbolos e significados para o grupo excluído”. 20 LGBT é o acrônimo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. 89 A distinção das diversas formas de vivência e representação dessas paisagens mostra a importância processual de sua construção, não apenas no âmbito cultural, mas também, em termos de sua própria essência histórica, econômica e social. Nesse sentido as paisagens culturais assumem ainda uma relevância em termos patrimoniais e identitárias da herança cultural de um povo, remetendo, inclusive, à própria vivência e imaginário de determinados segmentos da sociedade. 2.3. Etnogeografias: o imaginário e a vivência das paisagens culturais Como buscamos destacar ao longo do texto, a construção teórico-conceitual da categoria Paisagem foi aos poucos evidenciando a importância do papel da cultura na complexidade dos fenômenos geográficos. Segundo Claval (2011a, p.13), tal concepção foi fortemente evidenciada no âmbito da “virada cultural”, quando os saberes geográficos passaram a conceber a temporalidade e a espacialidade da dimensão cultural. Segundo o autor, tais evidências foram ainda precedidas por dois momentos fundamentais: a “virada espacial” (quando as ciências sociais evidenciam o papel da distância e da diversidade dos lugares) e a “virada linguística da história” (que passa então a destacar a diversidade das culturas no tempo e no espaço, analisando, predominantemente, as culturas subalternas – minorias étnicas, grupos excluídos ou marginalizados). A partir daí, a geografia passaria por uma reestruturação epistemológica, não apenas no âmbito da Geografia Cultural, mas de toda a disciplina. Claval (2011a) retoma alguns desses aspectos, que se referem, principalmente, à própria concepção de cultura para a perspectiva geográfica: 1) O conhecimento do mundo sempre se faz através das representações; 2) A cultura é construída a partir de elementos transmitidos ou inventados;  A cultura é o conjunto de práticas, conhecimentos, atitudes e crenças que não é inato: eles são adquiridos (...). Os lugares onde a transmissão ocorre têm também um papel estratégico na gênese dos indivíduos e na construção da cultura. Os lugares e as paisagens servem de suporte a uma das partes das mensagens transmitidas (CLAVAL, 2011a, p.16). 3) A cultura de um grupo se consolida por meio dos indivíduos, que a recebem e a modificam, e é nesse processo de transmissão que eles se configuram como indivíduos pertencentes ao grupo em questão, através de um processo contínuo, recíproco e concomitante de construção social; 4) O processo de estruturação da cultura é também um processo social, que é transmitido e consolidado por meio da consciência comum; 90  [...] o que é transmitido é feito de atitudes, de costumes, de representações, de valores que circulam num grupo e que lhe dão sua coerência (...) a transmissão é o que dá semelhança entre o ser social e os outros membros do grupo (a consciência comum) (CLAVAL, 2011a, p.17). 5) A construção do indivíduo como ser social se traduz pelo surgimento dos sentidos de identidade (seja ela individual ou coletiva), que se consolida através da experiência e da construção intelectual dos sujeitos através da cultura; 6) A construção da sociedade pela cultura acontece na junção dos diversos papéis que os indivíduos possuem no tempo e no espaço, cadenciados a partir de um calendário ou agenda sociocultural da comunidade; 7) A construção do espaço pela cultura mostra-se influente desde a própria organização espacial do grupo aos constrangimentos de natureza ecológica, social e dos próprios valores, aspirações e estratégias “concebidas em função das representações e de modelos que cada um é portador” (CLAVAL, 2011a, p.18); 8) A gênese dos sistemas de crenças e valores retoma, em grande medida, concepções, memórias e histórias de vida de um tempo imemorial, que é perpetuado em muitas sociedades pela oralidade e vivências imbuídas nas intertextualidades das paisagens culturais desses grupos; 9) A cultura se estrutura a partir das ideologias comunitárias, da estabilidade e da realidade múltipla e em perpétua evolução. “Os homens que partilham os mesmo valores e a mesma fé têm o sentimento de compartilhar elementos importantes” da sua dinâmica socioespacial (CLAVAL, 2011a, p.20). No horizonte das etnogeografias, compreendemos então a cultura como um “conjunto de valores e de costumes que dão ao grupo social a sua unidade”, que viabiliza por meio de suas paisagens (práticas sociais e simbólicas) a “construção de identidades coletivas” (CLAVAL, 2002, p.21). É nesse sentido, que ela é ainda “ao mesmo tempo, determinada por e determinante da consciência e das práticas humanas” (COSGROVE, 1998, p. 102). E assim, a identificação, o sentimento de pertencimento, a história, a memória e as práticas cotidianas viabilizam, por meio de uma trama visível-invisível, a composição de um contexto, de uma paisagem cultural, que fundamenta um projeto de organização comunitária e de afirmação e participação sociopolítica que emerge ressignificando e legitimando um modo de vida que reúne, na vivência atual, passado e futuro em prol da formação dos sujeitos coletivos. Vale ressaltar que: 91 Sujeitos não são indivíduos, mesmo considerando que são constituídos a partir de indivíduos. São o ator social coletivo pelo qual indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência. Neste caso, a construção da identidade consiste em um projeto de vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido da transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade (CASTELLS, 2013, p.26). A questão da identidade, que ressalta fortemente o sentido dos lugares, nessa concepção da Geografia Cultural, também evidencia o significado das paisagens, as “práticas simbólicas e discursivas”, as “relações de poder, de troca ou de confrontação, mais ou menos disputáveis e disputadas, que variam no tempo e no espaço”, assim como, os próprios “lugares de memória” que constituem elementos de extrema importância na compreensão das paisagens culturais (LE BOSSÉ, 2004, p.162-163). A reflexão teórica e metodológica sobre o conceito de identidade, além de ampla é destacada por diversos autores pela sua complexidade, ou seja, pela sua “grande ambiguidade teórica e política”, pois como destaca Hall (2012, p.104) a identidade “é um desses conceitos que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas, sem a qual, certas questões-chave não podem ser sequer pensadas”. Para Cruz (2007) a compreensão do fenômeno identitário parte da delimitação de cinco pressupostos teóricos principais. O primeiro é que “a identidade é uma construção histórica”; está sempre em formação, e sua construção parte da interação de uma série de processos dinâmicos, podendo, desse modo, ser múltipla, aberta e contingente. Nesse sentido, a identidade é a soma de quem somos (nossas raízes, heranças, passado e memória), e de quem podemos ou desejamos nos tornar (rotas, rumos, estratégias para o futuro). E assim, o processo atualmente identificado e conhecido como “resgate cultural”, nada mais é que o próprio processo de formação da identidade, como destaca Woodward (2008, p.12): “essa redescoberta do passado é parte do processo de construção da identidade que está ocorrendo neste exato momento e que, ao que parece, é caracterizada por conflito, contestação e uma possível crise”. Posto isso, a busca da origem em um passado histórico na construção das identidades além da preocupação na manutenção de certa correspondência cultural, evidencia, ainda, a “utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos” (HALL, 2012, p.109). A partir de tais premissas, a propósito, para este autor, “as identidades, são, pois, pontos de apego temporário às ‘posições-de-sujeito’ que as práticas discursivas constroem para nós. Elas são o resultado de uma bem-sucedida articulação ou ‘fixação’ do sujeito ao fluxo do discurso” 92 (HALL, 2012, p.112). Tais posições e práticas discursivas são, na verdade, o reflexo de uma vivência coletiva em determinado território, ou paisagem. O segundo aspecto levantado por Cruz (2007) é o caráter relacional e contrastivo da identidade, ou seja, a identidade é construída a partir da posição relacional e/ou contrastiva dos sujeitos, de suas valorizações e significados de reconhecimento e alteridade que estabelecem diálogo e/ou conflito entre os diferentes grupos. Ainda segundo este autor “nenhuma identidade é auto-suficiente, auto-referenciada em sua positividade, tendo seu significado definido no jogo da diferença” (CRUZ, 2007, p.98). Um terceiro pressuposto citado por Cruz (2007) é o caráter material e simbólico da identidade. A construção da identidade, apesar de se dar de forma subjetiva, partindo dos discursos e do sistema simbólico de um povo, tem também seus referenciais materiais, que completam o sentido/significado de suas representações simbólicas através da materialização dessas relações. Contudo, a construção de tais relações se dá não apenas no âmbito interno de um grupo, mas também pela diferença para com o outro. Para Woodward (2008, p.9-10) “a demarcação das questões identitárias está na construção dos próprios símbolos”. O quarto aspecto fundamental para a compreensão da identidade é a sua perspectiva estratégica e posicional. Além do caráter simbólico-cultural, as identidades carregam ainda uma característica determinante para sua r-existência no mundo atual: as suas relações políticas e de poder. Pois, a identidade é construída e organizada partindo não apenas de suas referências culturais e sociais, mas também de suas estratégias e posições políticas configuradas a partir de sua diferenciação para com os demais grupos. Vale ressaltar que a eficiência das estratégias identitárias e o seu poder de legitimação irão depender da “força do discurso performático”, construído pelo “corte”, “recorte” e “colagem” das palavras em um movimento de “repetição de enunciados, imagens e símbolos, para a identidade produzir o consenso, a ação e a mobilização” (CRUZ, 2007, p.100-101). Para Woodward (2012, p.34), a política da identidade é, aliás, construída, principalmente, em grupos oprimidos e/ou marginalizados com o objetivo de desenvolver uma “mobilização política”, “celebração da singularidade cultural (solidariedade política)” e uma “análise de sua opressão específica”. O quinto e último aspecto levantado por Cruz (2007) é o caráter hegemônico ou subalterno das identidades. Todo discurso político de uma sociedade reflete suas relações de poder hegemônico, o qual muitas vezes é usado não apenas para representá-la, como também para subvertê-la. Entre os discursos hegemônicos há sempre aqueles que são subjugados, mas 93 que em determinado momento, podem também deixar sua marginalidade para assumir sua representatividade perante o grupo. E é nesse jogo de discursos e poder, seja interno ou externo aos grupos sociais, que Castells (1999) define três tipos de identidades: identidade legitimadora; identidade de resistência e identidade de projeto. Para Castells (1999, p.23): A construção das identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço. Avento aqui a hipótese de que, em linhas gerais, quem constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem. Uma vez que a construção da identidade, sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder, proponho uma distinção entre três formas e origens de construção de identidades. A Identidade Legitimadora é aquela instituída por setores dominantes da sociedade, visando expandir e racionalizar o seu poder de dominação sobre os atores sociais. É constituída a partir de uma série de instituições, cada uma com suas singularidades, tais como: a(s) Igreja(s), sindicatos, partidos, cooperativas, entidades cívicas, etc., que atuam tanto no prolongamento da dinâmica controladora do Estado, como no próprio modo de vida das pessoas. Posto isso, a identidade legitimadora é formadora de uma sociedade civil, que corresponde a “um conjunto de organizações e instituições, bem como uma série de atores sociais estruturados e organizados, que, embora às vezes de modo conflitante, reproduzem a identidade que racionaliza as fontes de dominação estrutural” (CASTELLS, 1999, p.24). As Identidades de Resistência são criadas a partir dos grupos marginalizados ou que se encontram em situação de desvalorização, estigmatizadas pela lógica da dominação, com o propósito de construir “trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo, opostos a estes últimos” (CASTELLS, 1999, p.24). Ela dá origem a formas de resistência coletiva diante de uma opressão que, do contrário, não seria suportável, em geral com base em identidades que, aparentemente, foram definidas com clareza pela história, geografia ou biologia, facilitando assim a “essencialização” dos limites da resistência (CASTELLS, 1999, p.24). As Identidades de Projeto correspondem às construções identitárias de determinados grupos realizadas a partir de “qualquer tipo de material cultural ao seu alcance” e que são capazes de “redefinir sua posição social na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a 94 transformação de toda a estrutura social” (CASTELLS, 1999, p.24). O autor destaca ainda que mesmo nesse processo de criação das identidades de projeto, os sujeitos não são indivíduos. E constituem um ator social coletivo aquele, [...] pelo qual indivíduos atingem o significado histórico em sua experiência. Neste caso, a construção da identidade consiste em um projeto de vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido da transformação da sociedade com prolongamento desse projeto de identidade (CASTELLS, 1999, p.26). É relevante assinalar que tais sistemas classificatórios partem do estabelecimento de “fronteiras simbólicas entre o que está incluído e o que está excluído, definindo, assim, o que constitui uma prática culturalmente aceita ou não”, desencadeando em uma classificação demarcada por meio da afirmação das diferenças, “do que somos ou do que não somos”, daquilo a que “pertencemos ou do que estamos excluídos” (WOODWARD, 2012, p.49). A construção e a afirmação política das identidades demandam alguns aspectos de autenticação, os quais, muito frequentemente, são obtidos através de uma “reivindicação da história do grupo cultural”. Nesse sentido, os cinco pressupostos destacados por Cruz (2007) devem ser compreendidos com um todo, uma vez que uma construção histórica se dá em certa medida por meio de elementos relacionais e contrastivos, nos quais se incluem tanto conjuntos do sistema simbólico imaterial, quanto a própria materialidade da cultura de um povo. É preciso considerar ainda a pluralidade de histórias vividas por um grupo cultural em seu passado, presente e futuro, buscando compreender a sua identidade cultural, pois cada uma dessas experiências individuais, trás em si, a ênfase de determinada característica. Posto isso, a identidade cultural de um grupo é construída a partir da verdade sobre o seu passado na unicidade de uma história partilhada, composta pelas singularidades das representações dos indivíduos que compõem o todo cultural, capaz de reforçar e reafirmar a sua identidade. Essa fluidez da identidade deve ser compreendida como “uma questão tanto de ‘tornar-se’ quanto de ‘ser’” reconhecendo que “ao reivindicá-la, nós a reconstruímos e que, além disso, o passado sofre uma constante transformação” (WOODWARD, 2012, p.22). Segundo Hall (2012, p. 108), a identidade cultural remete à construção de um “eu coletivo” composto internamente por vários “eus” comuns entre um povo com uma história e uma ancestralidade partilhadas, a qual é ainda “capaz de estabilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultural a uma ‘unidade’ imutável que se sobrepõe a todas as outras diferenças – supostamente superficiais”. No processo de construção das identidades coletivas há ainda autores que buscam compreender as relações identitárias através das identidades territoriais, concebidas a partir 95 da junção entre o controle/apropriação físico do espaço e uma apropriação simbólica (subjetiva e de laços de identidade social), envolvendo sempre, e ao mesmo tempo, uma dimensão simbólica e outra mais concreta de caráter “político-disciplinar” de “apropriação e ordenamento do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos” (HAESBAERTH, 2001, p.121). Assim, segundo este autor, o território – que também corresponde a uma categoria conceitual de análise da Geografia Cultural, como a paisagem e o lugar, e com elas dialoga – possui uma dimensão funcional e outra simbólica. A relação entre elas se dá por meio de múltiplas interações, como por exemplo, entre o poder e a materialidade/funcionalidade dos territórios, os quais incitam os interesses políticos e econômicos, o ordenamento e o controle físico do espaço e a “dominação/disciplinarização” dos indivíduos. No plano simbólico há, por sua vez, um condicionamento específico do território à dimensão cultural, através da apropriação do vivido/percebido, da construção de laços de identidade e dos subjetivismos cultural-simbólicos. Posto isso, “o território enquanto processo se realiza por um sistema de classificação que é, ao mesmo tempo, funcional e simbólico, incluindo e excluindo, por suas fronteiras, (re)forçando as des-igualdades sociais e diferenças culturais entre os indivíduos ou grupos” (CRUZ, 2007, p.103). Para Haesbaert (2004) a identidade territorial é, assim, uma construção social fundamentada pela alusão ou referência de um grupo ao seu território, seja ele material ou simbólico. E é com base em tal concepção que Cruz (2007) define ainda que o processo de construção das identidades territoriais se dá a partir de dois elementos fundamentais: “o espaço de referência identitária” e a “consciência socioespacial de pertencimento”: a) O espaço de referência identitária: É o referente espacial no sentido concreto e simbólico onde se ancora a construção de uma determinada identidade social e cultural. Refere-se ao recorte espaço-temporal (os meios e os ritmos) onde se realiza a experiência social e cultural, é nele que são forjadas as práticas materiais (formas uso, organização e produção do espaço) e as representações espaciais (formas de significação, simbolização, imaginação e conceituação do espaço) que constroem o sentimento e o significado de pertencimento dos grupos ou indivíduos em relação a um território. b) A consciência socioespacial de pertencimento: É o sentido de pertença, os laços de solidariedade e de unidade que constituem os nossos sentimentos de pertencimento e de reconhecimento como indivíduos ou grupo em relação a uma comunidade, a um lugar, a um território. Não é algo natural ou essencial, é uma construção histórica, relacional/contrastiva e estratégica/posicional. No que diz respeito à consciência de pertencimento a um lugar, a um território, essa é construída a partir das práticas e das representações espaciais que envolvem ao mesmo tempo o domínio funcional-estratégico sobre um determinado espaço (finalidades) e a apropriação simbólico/expressiva do espaço (afinidades/afetividades) (CRUZ, 2007, p. 104-105). 96 As identidades territoriais – vale ressaltar – devem ser metodologicamente verificadas a partir da “contradição entre o domínio das estratégias-funcionais (concebido) e a apropriação simbólico-expressiva do espaço (vivido), verificando as condições temporais e formais que se dão entre os polos dominantes/hegemônicos e os subalternizados (em forma de resíduos ou resistências). Na perspectiva funcional o “domínio está ligado às representações do espaço concebido” e, na dimensão simbólica, “a apropriação está mais ligada às práticas espaciais e aos espaços de representação” (CRUZ, 2007, p.105). Posto isso, na construção das identidades territoriais, ora prevalece a dimensão político-funcional, ora a perspectiva simbólico-cultural, formando, assim, um contínuo de diferentes formas de identificação. Assim como a concepção de território se aproxima das questões da identidade, a categoria “Paisagem”, também estabelece fortes diálogos e interlocuções com a mesma, uma vez que ambas são construídas e percebidas a partir do exercício da alteridade. É no contato com o outro, com as diferenças e semelhanças que se configuram e se constroem as paisagens e identidade dos sujeitos. Nessa perspectiva compartilhamos das concepções de Cabral (2000, p.38) quando ressalta que a paisagem deve ser compreendida como um fenômeno, “um conjunto dinâmico no qual o sujeito vive, desloca-se e busca por significações que repercutem em todos os registros da experiência humana, e que fazem da paisagem um espelho da afetividade do sujeito”. Tais deslocamentos, significações e experiências podem, nesse sentido, ser direcionados pelas dinâmicas internas/externas de construção das identidades que influem diretamente na configuração das paisagens. A partir dos pressupostos teóricos que apresentamos anteriormente ressaltamos o caráter histórico, relacional, contrastivo, material, simbólico, estratégico e hegemônico ou subalterno das identidades. Estes, por sua vez, em seus processos de construção, permeiam uma série de transformações na paisagem cultural dos sujeitos, na sua experiência com o espaço de vivência e na própria maneira dele se relacionar nas diferentes escalas espaciais. Assim como a dinâmica das paisagens, sejam por aspectos naturais, sociais, políticos, econômicos e/ou culturais, também influi nos processos de estruturação das identidades. Quando buscamos compreender as narrativas das paisagens culturais de determinadas sociedades, para além de suas imbricações no âmbito local e/ou territorial, há uma pretensão de apreender como a dinâmica destas construções identitárias se consolida no espaço. Quais as consequências ou imbricações da construção de uma identidade legitimadora sobre a paisagem cultural de um determinado grupo subalternizado? Como a paisagem se transforma frente à transmutação de uma identidade de resistência para uma identidade de 97 projeto? De que forma as identidades coletivas ao reorganizarem seus significados, projetos culturais enraizados ou até mesmo sua visão de tempo-espaço propiciam transfigurações nas paisagens culturais? São questões como essas que tornam indissociáveis - paisagem e identidade - na compreensão das paisagens culturais dominantes e alternativas de Denis Cosgrove (1998), uma vez que, o que impulsiona essa transformação na paisagem dos sujeitos é a própria dinâmica identitária dos mesmos. As discussões que o autor articula em torno das paisagens culturais dominantes encontram-se diretamente vinculadas às delimitações de Castells (1999) quanto à identidade legitimadora, sendo estas paisagens, inclusive, uma apropriação desses setores dominantes da sociedade que conduzem a dominação estrutural dos “meios de vida, como terra, capital, matérias primas e força de trabalho” (COSGROVE, 1998, p.105). Assim, caberia neste diálogo entre os autores uma busca pelos elementos que configuram tais retóricas dessa identidade legitimadora, e de que maneira os mesmos confluem na consolidação dessas paisagens culturais dominantes. Da mesma forma há ainda de se associar as paisagens culturais alternativas às identidades de resistência e de projeto, uma vez que ambas vinculam-se, predominantemente, aos grupos marginalizados ou não-dominantes. Assim, seriam as paisagens residuais resultados de processos identitários oprimidos que não resistiram à conjuntura das paisagens culturais dominantes? Paisagens culturais excluídas (como das minorias étnicas, religiosas, LGBT, etc.) não poderiam carregar identidades de resistência ricas de significações, discursos, narrativas e relações de poder que resistem na condição de exclusão, mas já se condicionando/ gestando como uma identidade de projeto, estratégica e posicional? Não estariam as paisagens culturais emergentes, carregadas de identidades de resistência e de projeto, articulando, por meio de sua demarcação identitária, prospecções para a consolidação de uma identidade territorial forte, a partir de uma emergência identitária que se associa a contra-projetos sociais, políticos, econômicos e naturais de reconhecimento e respeito de sua cultura e que confrontam a inevitabilidade da imposição da cultura dominante? Compreendemos ainda que essas paisagens culturais, em frequente transformação, incluem não apenas tais dinâmicas e políticas da identidade dos sujeitos que as constroem, como também as distintas percepções que se configuram pelos insiders e outsiders, uma vez que, como ressalta Cabral (2000, p.42), “ao incluir aquilo que tem significância para os diferentes sujeitos, a paisagem deixa de ser o plano de fundo das atividades e acontecimentos e integra-se à existência humana”. 98 Outro diálogo interessante que se estabelece está associado à retórica das paisagens e das identidades, uma vez que ambas, encontram-se envoltas por ideologias e discursos que contextualizam suas formas, conteúdos, dinâmicas internas, e, inclusive, prospecções/projeções de futuro. Na leitura dos significados das paisagens e identidades não há como dissociar-se das perspectivas estratégicas e posicionais que elas assumem nos distintos contextos nos quais se configuram. A dinâmica das paisagens e das identidades revela a força e a importância da rigidez/consistência das tradições, crenças e mitos na sua construção, assim como a relevância da fluidez de seus significados frentes às novas leituras, interpretações e construções sociais e culturais para com os mesmos. E assim como a paisagem não é única, frente às distintas percepções dos sujeitos, suas identidades também não são absolutas, e cabe ainda, a nós, compreender essas diferenciações a fim de evitar homogeneizações inconsistentes de determinada realidade. Para tal, as identidades territoriais e as paisagens culturas devem ser concebidas a partir do “espaço de referência identitária” e da “consciência socioespacial de pertencimento”, as quais se configuram, inclusive, no âmbito dos processos de construção política, cultural, social e subjetiva dos sujeitos. O imaginário, a vivência e a memória, além de serem engrenagens triviais na construção e motivação das identidades coletivas, agregam ainda (por meio de mitos, lendas e lembranças) substancial importância à contextualização das paisagens. Nessa perspectiva, vale destacar a obra de Simon Schama – “Paisagem e Memória”, autor para o qual nossa percepção das paisagens é conectada a todo o momento a uma memória acumulada, oculta em nossos sentidos, que permanece viva e ativa sob os mais variados disfarces nos fascinando constantemente sem que nos demos conta disso. Como ressalta Schama (1996, p.17), “antes de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças, quanto de estratos de rochas”. Ao encontro das concepções de Schama (1996), Michel Collot (2013, p.18) compreende que a paisagem é um fenômeno constituído a partir da “interação entre o local, sua percepção e sua representação”, ou seja, “não é nem uma pura representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista”. Assim, para o autor: A paisagem aparece como uma manifestação exemplar da multidimensionalidade dos fenômenos humanos e sociais, da interdependência do tempo e do espaço e da interação da natureza e da cultura, do econômico e do simbólico, do indivíduo e da sociedade. A paisagem nos fornece um modelo para pensar a complexidade de uma 99 realidade que convida a articular os aportes das diferentes ciências do homem e da sociedade (COLLOT, 2013, p.15). Podemos observar que à medida que a paisagem vai se apropriando da vertente cultural, enquanto um fenômeno ou uma relação, agregando à dimensão unicamente estética, os demais sentidos e vivências da perspectiva humana, ela passa a representar uma categoria analítica, aproximando-se, inclusive, do que Collot (2013, p.11) denomina de “pensamento- paisagem”. Nessa perspectiva, a paisagem pode ser compreendida como aquela que provoca o pensar ou como um desdobramento do pensamento, ampliando “não somente nossas maneiras de fazer e de viver, mas nossa forma de pensar” (COLLOT, 2013, p.11-12). E esses pensamentos e ideias refletem as construções sociais, as expressões culturais e a própria relação dos sujeitos com e no espaço percebido. E assim, o que as linhas do horizonte limitavam na apreensão da paisagem, na perspectiva etnogeográfica, “as lacunas do olhar são preenchidas pelo trabalho da imaginação e pelo impulso do movimento” (COLLOT, 2013, p.51-52). Na paisagem, a distância se mede pelo ouvido e pelo olfato, conforme a intensidade dos ruídos, segundo a circulação dos fluídos aéreos e dos eflúvios, e a proximidade se experimenta na qualidade tátil de um contorno, no aveludado de uma luz, no sabor de um colorido. Todas as sensações comunicam-se entre si por sinestesia e suscitam emoções, despertam sentimentos e acordam lembranças, tal como o canto do melro do parque Montboissier e o perfume das flores caro a Obermann (COLLOT, 2013, p.51). Ao realizarmos esse resgate e reflexão sobre a evolução conceitual das concepções teóricas sobre a categoria paisagem na história do pensamento geográfico, buscamos ressaltar as contribuições das escolas francesa, alemã e norte-americana, para a compreensão e configuração do conceito na contemporaneidade, devido ao caráter dinâmico classicamente assumido pelos processos de elaboração e reelaboração das Ciências da Terra nestes contextos acadêmicos particulares. Destacamos que o estudo das paisagens (atualmente concebidas predominantemente como paisagens culturais) tem por objetivo a compreensão das formas visíveis e invisíveis dos discursos sociais das coletividades humanas, as quais atribuem ao seu espaço vivido um sistema de signos e significações construído a partir de relações culturais, sociais, políticas e econômicas construídas intersubjetivamente e vivenciadas no cotidiano. Posto isso, acreditamos que o olhar geográfico sob o viés das paisagens frente aos processos sociais remete a essa busca desafiadora pela compreensão das interpretações/percepções simbólicas que se configuram sobre a própria relação/interação entre o homem e a natureza, tão cara a esta ciência; e que, por sua riqueza e abrangência se 100 reveste, hoje, de um caráter estratégico e inovador, pois experimenta um processo eminentemente crítico e transformador de reelaboração e ressignificação. É sugestivo notar nesse sentido que, como ressalta Collot (2013), na contemporaneidade se observa um crescente interesse, cada vez maior, pela paisagem, seja na academia, no cotidiano ou nas políticas e gestões governamentais. E a experiência da paisagem ressurge como uma resposta às privações desse mundo vivido que o desenvolvimento técnico-científico desencadeou com o advento da sociedade da informação. O advento de uma sociedade da informação tende a nos fazer perder de vista a paisagem que nos rodeia. A fascinação pelas imagens nos faz perder o contato com este mundo que, no entanto, deveriam nos abrir. (...) Esse ciberespaço, que ocupa cada vez mais nossas vidas, está totalmente deslocalizado: é uma antipaisagem, não podemos habitá-la senão por máquinas interpostos. (...) Conscientes dos malefícios e dos perigos da “cultura sem solo”, nossas sociedades sentem a necessidade de pôr o pé na terra, para reencontrar um contato mais imediato com a natureza. Não se trata de “retornar à terra” ou a um estado de natureza mais ou menos mítico (...) A preocupação com a paisagem nos convida a considerar a relação entre o homem e a natureza, não mais no modo da fusão e da dependência, no da superação e da dominação, mas no de uma interação, ou mesmo de uma colaboração (COLLOT, 2013, p.44). E é a partir dessa argumentação, das significativas contribuições da geografia aos estudos da paisagem cultural, e do avanço intelectual da disciplina - das viradas culturais e da aproximação e retorno às geografias do cotidiano, associada à própria conexão homem-meio sobre o olhar das paisagens, que nos propomos a realizar uma leitura mais profunda e sistematizada dos fundamentos institucionais em âmbito nacional e internacional que permeiam a construção da paisagem a partir da concepção patrimonial. 101 CAPÍTULO 3 – A Chancela da Paisagem Cultural Brasileira: um novo olhar sobre a percepção e compreensão do patrimônio cultural O patrimônio, enquanto uma construção social, recorre a interpretações e narrativas distintas, que incluem sentidos e valores construídos e remodelados pela dinâmica sociocultural do mundo vivido, comportando desde as expressões culturais e identidades singulares à maneira de relacionar-se com a diversidade do outro. E a paisagem, por outro lado, se transforma em patrimônio por representar e testemunhar a riqueza da inteligência e da criatividade das relações humanas. Como ressalta Almeida (2012, p.163), o “patrimônio, de certo modo, constrói e forma as pessoas e o espaço, mas também resulta das relações, dos lugares, das paisagens e dos territórios”. Assim, a emergência de um patrimônio se dá a partir da possibilidade de atribuirmos a um fenômeno a capacidade de interconectar passado, presente e futuro. E seja na sua materialidade (enquanto suporte da memória), seja na imaterialidade (enquanto sustentáculo da identidade), o patrimônio se coloca como uma diretriz para o desenvolvimento sociocultural das comunidades. Segundo Cabral (2011, p.32) a emergência de um patrimônio se dá “quando um grupo produz algo para assegurar a sua sobrevivência física em resposta a um problema específico”; em seguida, “retira o objeto [ou fenômeno] de sua funcionalidade e gera uma tomada de consciência do sujeito” e, a partir dessa ressignificação, atribui-se uma identidade patrimonial, a qual irá exigir e corresponder uma “gestão coletiva”. É nessa perspectiva que a chancela de Paisagem Cultural Brasileira vem contribuir no intuito de compreender o patrimônio como um bem comum das comunidades, vivenciado, reconstruído diariamente e gerenciado pela dinâmica interna e externa da sua interação no espaço e no tempo. Todavia, a concepção patrimonial desde as suas origens, vem passando por uma série de transformações, em função de contextos políticos, econômicos e sociais que ressignificaram a maneira com a qual as pessoas interagem com esses bens. Seja no âmbito institucional, na ou academia ou na sociedade, o patrimônio vem se construindo e se aproximando cada vez mais daqueles que o concebem como tal, por meio, principalmente, de uma apropriação e conquista evidente do protagonismo sociopolítico de grupos, até então marginalizados, frente à cultura dominante. Posto isso, buscaremos discutir neste capítulo a construção da concepção patrimonial, seus desafios e perspectivas enquanto política e projeto de sociedade, cada vez 102 mais reivindicado pelos povos e comunidades tradicionais. Perspectiva essa que elenca, inclusive, a categoria de Paisagem Cultural como um elemento crucial para a conquista dos direitos e demandas sociais das comunidades. Acreditamos que, apesar das imposições das medidas patrimoniais, que nem sempre dialogam diretamente com as comunidades que produzem o patrimônio em questão, essa construção de um “outro olhar sobre o patrimônio” se dá também pelas respostas da sociedade e intelectuais às instrumentalizações estatais. E assim, apesar do desafio da emergência de novas formas de proteção e preservação do patrimônio, como é a chancela de Paisagem Cultural Brasileira, apresentaremos neste capítulo alguns estudos e dossiês que vem proporcionando aos técnicos, estudiosos e comunidades uma relação mais integrada com o seu patrimônio cultural. 3.1. A Paisagem enquanto Patrimônio Cultural da Humanidade A concepção de patrimônio começa a se estruturar no âmbito de sua dimensão pública no século XVIII, a partir da Revolução Francesa (1789-1799), quando os revolucionários vão para as ruas e decidem destruir tudo que representasse o absolutismo monárquico da nobreza europeia. Alguns intelectuais da época contra-argumentavam, contudo, que, sendo a revolução direcionada para a construção do conceito de cidadania – pautada nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade –, fazia-se necessária, não a destruição daquelas memórias (de propriedade pública), mas a sua incorporação na nova ideia de sociedade. É nesse processo, que o conceito de patrimônio começa a se consolidar no âmbito da preservação (mesmo que ainda, apenas, das materialidades), embora as decisões do que se preservar partissem dos funcionários do estado ou de intelectuais que decidiam em nome da nação, configurando um campo conflituoso, inclusive, pela própria disputa, aí desenvolvida, entre a apropriação, uso e especulação do espaço. Quando discorre sobre essa dimensão pública do patrimônio, em sua palestra magna “Memórias, lugares e identificação com o patrimônio cultural”, a professora Regina Abreu (2016, p.1) ressalta que muitas das transformações da compreensão do patrimônio processar-se-iam em “momentos da trajetória das sociedades humanas, que são muito emblemáticos e representam determinadas rupturas em relação aos modos de vida anteriores, de maneira muito sólida”. Nesse sentido, assim como na Revolução Francesa, no século XX os movimentos sociais de descolonização, de reivindicação contra as ditaduras e 103 totalitarismos, começaram também a argumentar que não bastaria o Estado definir em nome da nação, o que seria patrimônio ou não. As pessoas passaram, assim e cada vez mais, a reivindicar a sua presença, representação e participação também nos espaços museológicos, que além do patrimônio histórico (também de extrema importância), deveriam testemunhar o modo de vida das pessoas e do patrimônio cultural de um povo. Observamos, a partir da perspectiva histórica das instituições e órgãos envolvidos com o patrimônio cultural, que sociedade, intelectuais e gestores públicos, a todo o momento, se interceptam para a construção da concepção patrimonial. Cada vez mais, intencionalmente ou não, em diversos contextos nacionais e internacionais, Estado e Sociedade, seja por imposição ou reação à determinação, vêm construindo concepções e instituições que implicam nesse diálogo de forma a atender às demandas de ambos - e que em diversas situações, colocam-se, inclusive, bem distintas. Vale ressaltar que o patrimônio reconhecido pelos órgãos governamentais nem sempre reflete o patrimônio vivido e experienciado verdadeiramente pelas populações vinculadas a ele. Posto isso, buscaremos a seguir apresentar alguns momentos-chave que evidenciaram tais mudanças nas concepções e configurações institucionais do patrimônio. Após a I Guerra Mundial, em 1922 foi criada, em Genebra, a Comissão Internacional de Cooperação Intelectual (CICI) no intuito de promover a cooperação e consolidação de um sentimento internacional que proporcionasse a viabilização de um acordo de paz entre as nações. E em 1926, a partir de uma cooperação entre os governos francês e alemão, foi criado o Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI), que funcionaria como um braço executivo da CICI. De 1931 a 1945 a CICI e o IICI constituíram o núcleo oficialmente reconhecido como a Organização da Cooperação Intelectual (OCI), “antecessora direta, em vários aspectos, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), criada em 1946” (RESENDE, 2013, p.1). Segundo Cabral (2011, p.9), o surgimento da UNESCO consiste num importante marco para o uma patrimônio cultural, uma vez que se trata da “única agência da ONU com mandato específico para intervir na área de cultura, circunstância que a torna entidade de referência na definição de teorias e conceitos”. Além disso, a concretização do projeto de defesa da riqueza humana e da diversidade cultural da UNESCO incentivou a criação, no Brasil, em 1946, do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC) – vinculado ao Ministério das Relações Exteriores e da Comissão Nacional do Folclore (1947), os quais refletiam, em suas configurações, muitas das 104 influências oriundas do movimento modernista brasileiro, associado, principalmente às proposições do Anteprojeto de Mario de Andrade. A Semana da Arte Moderna de 1922 destaca-se como um importante marco para a configuração do conceito de patrimônio cultural brasileiro, rompendo com o enaltecimento exclusivo dos padrões europeus, resgatando a feição mestiça do brasileiro, valorizando e reconhecendo as culturas indígena, africana, cabocla e caipira que representavam essa síntese cultural das múltiplas faces da brasilidade e da modernidade. Participante ativo desse contexto, Mario de Andrade juntamente com ilustres artistas, poetas, intelectuais e escritores, tais como Oswald de Andrade, Tarcila do Amaral e Blaise Cendrars, já em 1924, após sua publicação “Arte Religiosa em Minas Gerais” (1919), “redescobrem o barroco como uma manifestação legítima de nossas mais caras raízes e matrizes”, reconhecendo “Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, como seu mais importante interprete” (IPHAN, 2015a, p.1). A partir de um convite de outro importante modernista, Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, Mario de Andrade inicia a construção do anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, e do próprio Decreto-Lei 25/1937 que dispõe sobre a figura de proteção do tombamento. Todavia, diversos autores ressaltam que a importância e contemporaneidade de suas colocações no início do século XX, contribuíram ainda na construção do texto constitucional (em 1988) e na própria forma de conceber conceituações voltadas ao patrimônio, políticas públicas e práticas institucionais. Mario de Andrade acreditava e difundia uma validade verdadeiramente funcional do patrimônio, acessível e apropriada por todas as camadas da sociedade, cuja condição de reconhecimento e, principalmente, divulgação caberia primordialmente ao Estado. A proximidade de Mario de Andrade com as “Minas Gerais” propiciou, inclusive, a declaração da cidade de Ouro Preto como Monumento Nacional em 1933 e o tombamento do perímetro histórico pelo SPHAN em 1938, por seu conjunto arquitetônico e urbanístico. No âmbito dos desdobramentos internacionais, vale ressaltar a “Convenção21 do Patrimônio Mundial da UNESCO”, elaborada na Conferência Geral da Organização das 21 A UNESCO dispõe de uma série de instrumentos regulatórios que muitas vezes desconhecemos as distinções, objetivos e propósitos dos mesmos. Por esses motivos, propomos nesse momento uma pausa no texto para evidenciar as diferenciações entre os três principais mecanismos mencionados.  Declarações: “compromissos unicamente morais ou políticos, ligando os Estados na base da boa fé” (CABRAL, 2011, p.68);  Recomendações: “textos dirigidos a um ou mais Estados convidando-os a adotar determinado comportamento ou agir de determinada forma, sendo desprovidos de obrigatoriedade” (CABRAL, 2011, p.68). 105 Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, realizada no ano de 1972 em Paris. Este tratado tinha o intuito de incentivar a proteção e preservação dos bens culturais, e também naturais, diante das ameaças cada vez mais intensas de destruição decorrentes não apenas pela degradação natural do tempo, como da própria dinâmica socioeconômica do mundo contemporâneo (UNESCO, 1972). É neste contexto de criação da UNESCO, do IBECC, da Comissão Nacional do Folclore e do SPHAN, que na década seguinte, por meio da articulação das comissões regionais dos estados e da promoção ampla do registro, estudo e difusão do folclore, que foi criada a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB) – primeiro órgão permanente dedicado a esse campo, subordinado ao Ministério de Estado de Educação e Cultura –, por meio do Decreto-Lei 43.178/1958. Mesmo vinculado, inicialmente, à concepção de folclore do século XIX, que associava o conceito ao “entendimento e a compreensão entre os povos”, foi nessa perspectiva patrimonial que os bens imateriais foram se apresentando no escopo das políticas públicas brasileiras (CAVALCANTI, 2008, p.14). E assim, em 1975 foi criado o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que vinculado ao SPHAN destinava-se a contemplar os bens culturais ainda não consagrados pelos critérios do próprio órgão, mas em muitas situações concebidos e identificados pelos grupos tradicionais como pertencentes ao seu patrimônio cultural. A valorização cada vez maior direcionada à cultura popular e suas manifestações folclóricas desencadeou na incorporação, em 1976, da CDFB à Fundação Nacional da Arte (FUNARTE) e da Fundação Nacional Pró-Memória que, entre 1976 e 1990, funcionou como um órgão executor, responsável por implementar as políticas de preservação da SPHAN, do CNRC e do Programa de Cidades Históricas (PCH), em desenvolvimento pelo Ministério do Planejamento e Coordenação Geral (MINIPLAN) desde o início da década de 1970. Sobre a importância do CNRC deve-se destacar a coordenação de Aluísio Magalhães, que vinculado à Universidade de Brasília, buscou construir, juntamente com uma equipe multidisciplinar, uma série de diretrizes, conceitos e metodologias que proporcionassem uma melhor análise da dinâmica cultural brasileira. Magalhães dedicou-se à construção de um sistema referencial básico que apresentasse as seguintes características:  Convenções: “sinônimo de tratados, que designam todos os acordos estabelecidos entre dois ou mais Estados, que supõem uma vontade comum das partes e geram compromissos jurídicos obrigatórios, devendo suas disposições ser transpostas para a legislação nacional dos Estados que dela se tornaram partes (CABRAL, 2011, p.68-69). 106 a) Adequação às condições específicas do contexto cultural do país; b) abrangência e flexibilidade na descrição dos fenômenos que se processam em tal contexto, e na vinculação dos mesmos às raízes culturais do Brasil; e c) explicitação do vínculo entre o embasamento cultural brasileiro e a prática das diferentes artes, ciências e tecnologias, objetivando a percepção e o estímulo nessas áreas, de adequadas alternativas regionais (IPHAN, 2015b, p.1). Na década de 1980, a partir da realização de seminários interestaduais e do reconhecimento da diversidade cultural brasileira, a perspectiva de Aluísio Magalhães proporcionou a “ampliação da visão da proteção do Estado em relação ao patrimônio não consagrado, vinculado à cultura popular e aos cultos afro-brasileiros” (CAVALCANTI, 2008,p.15). A política pública de cultura e o reconhecimento dos bens culturais passam a ser direcionados não apenas pelos “valores estéticos” ou “características eruditas”, mas, principalmente, pelos significados e valores a eles atribuídos pelas sociedades. O protagonismo do patrimônio passa então às mãos de seus detentores - “a comunidade é a principal guardiã do bem cultural”. O “saber-fazer” e a institucionalização da abordagem socioeconômica do cultural, pela valorização dos modos de produção artesanal, conhecimentos e alternativas de desenvolvimento local e o reconhecimento da cultura como processo e não apenas como produto, desencadeou numa outra forma de conceber o patrimônio cultural, que se instaurou, inclusive, na própria constituição brasileira e na consagração do patrimônio imaterial (IPHAN, 2015b). Os artigos 215 e 216 da constituição brasileira refletem todo esse processo de construção da concepção patrimonial brasileira desde as primeiras iniciativas da Semana de Arte Moderna, de Mário de Andrade e de Aluísio Magalhães, uma vez que, seguindo ainda recomendações e indicativos da UNESCO de salvaguarda da cultura tradicional e popular, eles garantem o direito e a expressão desta em sua diversidade. Frente a esse novo quadro internacional que se formava em torno da valorização do patrimônio cultural material, e principalmente, imaterial, a partir da década de 1990, a UNESCO passa, aliás, a publicar uma série de programas no intuito de promover o reconhecimento, a salvaguarda e o acesso aos patrimônios culturais de maneira mais adequada. Dentre eles estão o Programa Tesouros Humanos Vivos (1993) – que a partir da experiência oriental, passa a valorizar os mestres de artes e ofícios tradicionais; Programa Memória do Mundo (1996) – que visa promover a salvaguarda e o acesso a patrimônio documental (documentos, manuscritos, tradições orais, registros audiovisuais, sonoros e espólios bibliográficos e arquivísticos, etc.) que apresentassem um "valor universal" e o Programa Proclamação das Obras-primas do Patrimônio Oral e Imaterial da 107 Humanidade (1997) – a partir do qual a oralidade das manifestações culturais passa a ter, não só importância contemplativa, como valor documental. Ressalta-se que apesar de sua estrutura e institucionalização extremamente ocidental, foi a partir das experiências de patrimônio orientais, das demandas e inscrições de representações culturais ainda não concebidas no âmbito das categorizações da UNESCO, que as políticas estruturais foram se redirecionando para uma concepção do patrimônio, que muito além do material ou imaterial, cultural ou natural, nacional ou local volta-se, cada vez mais, ao seu sentido maior, à sua essência, aos verdadeiros valores transmitidos pelo patrimônio. Posto isso, frente a uma sociedade cada vez mais industrializada, e envolvida por ideais globalizados, tais compreensões foram desenvolvidas fortemente, num primeiro momento, juntamente com a própria emergência daqueles que concebiam, em seus cotidianos, esse patrimônio vivido. No Brasil, a partir da década de 1970, já existiam movimentos localizados que reconheciam as particularidades e singularidades das comunidades tradicionais, e a necessidade de se zelar por sua proteção e preservação cultural. O próprio SPHAN, em processo vinculado à mudança de orientação adotada posteriormente ao governo militar, procurou incentivar e aproximar-se das camadas populares, sob a indicação, inclusive, de Aluísio Magalhães, de reconhecer a participação ativa da comunidade local e das suas expressões/percepções culturais associadas ao bem material a ser protegido (SABINO, 2012). Apesar de a preferência patrimonial direcionar-se ainda aos bens de “pedra e cal”, observava-se, desde então, algumas tendências que se aproximavam das disposições inseridas na própria Constituição de 1988, na qual se define tanto a proteção das manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras (rompendo com a ideologia da preservação apenas do patrimônio europeu); quanto à própria concepção da imaterialidade desse patrimônio focada nas formas de expressão, modos de fazer e viver, criações científicas e artísticas, etc. Aliado à renovação de uma série de concepções patrimoniais, teve-se ainda o reconhecimento dos direitos e a busca de visibilidade dos povos tradicionais, que passaram, não apenas a serem reconhecidos como coletividades importantes na formação da sociedade brasileira, como também grupos que deveriam ter garantidos os seus direitos à posse dos seus territórios tradicionais. Posto isso, observa-se que se inaugurava, nesse sentido, uma nova dinâmica de concepção e compreensão do patrimônio, que partindo de concepções ainda muito arraigadas da materialidade do bem cultural, necessitou buscar, na década de 1990, novas formas e 108 instrumentos de se identificar e preservar patrimônios culturais de natureza diversificada, apreendendo desde sua materialidade à imaterialidade dos sentidos e significados a ele atribuídos. Como resultado de diversos encontros e seminários, e a partir da experiência adquirida por meio de processos de patrimonialização mundiais (como a candidatura da cidade de Diamantina à Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO), o Departamento de Identificação e Documentação (DID) elaborou, em 1999, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). A este novo instrumento de trabalho caberia, a partir daí, a identificação e documentação dos bens culturais (materiais e imateriais), além da apreensão dos sentidos e significados atribuídos ao patrimônio cultural pelos moradores de sítios tombados (CORSINO; LONDRES; ARANTES NETO, 2000). E, sendo eles, de natureza imaterial, segundo o Decreto 3.551 de 04 de outubro de 2000, que dispõe sobre o registro de bens culturais de natureza imaterial, deveriam ser catalogados nos seguintes livros de registro: Celebrações (festas, orações, etc....); Formas de Expressão (bailes, danças, literatura, terço cantado, capoeira, etc.); Ofícios e Modos de Fazer (manejos de roça, modo de fazer determinadas construções, ofício de artesão, etc.) e Lugares e Edificações (rios, casas de farinha, igrejas, etc.) (BRASIL, 2000). Nesse contexto, segundo Castro (2008, p.12): O conceito de patrimônio cultural imaterial é, portanto, amplo, dotado de forte viés antropológico, e abarca potencialmente expressões de todos os grupos e camadas sociais. Verifica-se no país a tendência ao seu entendimento e à sua aplicação aos ricos universos das culturas tradicionais populares e indígenas. E como também ressaltou o autor, as concepções do patrimônio cultural foram avançando teórica, epistemológica e metodologicamente ao associar-se às conquistas dos povos e comunidades tradicionais, buscando não apenas dialogar, como também subsidiar o desenvolvimento e viabilização das políticas de reconhecimento de seus direitos. Nesse sentido, vale ainda registrar dois marcos históricos importantes que convergem na consolidação do reconhecimento da importância dos povos e comunidades tradicionais: a Rio- 1992 e a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 1992, ao discutir as questões ambientais planetárias, foi ressaltada, no âmbito das políticas de preservação ambiental, a relevância da atuação desses grupos tradicionais que vivem em estreita relação com os recursos naturais de forma “sustentável”, contribuindo, intrinsecamente, na própria conservação da biodiversidade. Tais concepções foram ainda mais enfatizadas em 2004, quando a OIT documenta, na Convenção n.º 169, a definição/conceituação de direitos específicos e obrigações dos governos de proteger as culturas e territórios tradicionais, além de reconhecer o protagonismo e autonomia destes povos (CIMOS; MPMG, 2012). Gawora (2014, p.97) ressalta que este documento demarca 109 uma nova perspectiva de autodeterminação em “defesa do direito para construir o futuro em espaços do autocontrole”, oferecendo a estes povos algumas garantias fundamentais como: [...] a garantia plena pelos direitos humanos (art. 3,1) [...]; o direito da identidade cultural (art. 3,1) [...]; o direito da identidade cultural (art. 4, art. 5) [...]; o direito de serem consultados de qualquer projeto que afete os povos diretamente (art. 6) [...]; o direto da construção do próprio futuro (art. 7) [...]; o direito da terra (art. 13-19) [...]; direito da língua (art. 28) [...] (GAWORA, 2014, p.97-99). E o Brasil acaba se destacando nesse processo de adoção de políticas desenvolvidas em âmbito internacional, principalmente na perspectiva do patrimônio imaterial, que dialoga diretamente com as concepções de proteção dos povos e comunidades tradicionais. Desde a década de 1980, um grupo de estudiosos já vinha trabalhando nessa perspectiva do patrimônio imaterial (antes mesmo da Convenção de 200322 da UNESCO). Até hoje, é nas políticas brasileiras de patrimônio cultural que diversos países europeus se inspiram, principalmente no que tange à tradição, à política de salvaguarda e às oficinas, filmes, fotos, seminários e diálogos realizados no sentido de continuidade às práticas de patrimonialização. Ainda no escopo da legislação de bens imateriais, vale ressaltar, em particular, a relevância da legislação do estado de Minas Gerais, que introduz alguns novos elementos à legislação federal. O Decreto nº 42.505, de 15 de abril de 2002, que institui as formas de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível que constituem o Patrimônio Cultural de Minas Gerais, prevê, por exemplo, em seu artigo 9º a concessão de título de “Mestre das Artes de Minas Gerais” “personalidades cujo desempenho no campo do patrimônio imaterial seja notoriamente reconhecido por sua excelência criativa e exemplaridade” (CASTRO, 2008, p. 63). Essa valorização/reconhecimento dos saberes tradicionais, como ressalta Gawora (2014), tem como divisor de águas, o Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, elaborado no âmbito da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, criada em 2004. Para o autor, este decreto se destaca exatamente por consistir na primeira norma geral brasileira para as comunidades tradicionais, sendo ainda responsável por defini-la, assegurar a sua necessidade de um território delimitado, para elas constituído sob a ótica do “desenvolvimento sustentável” (BRASIL, 2007a) e (GAWORA, 2014). 22 A Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial é um marco das políticas patrimoniais, uma vez que após a “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural” (2001) e a “Declaração de Istambul” (2002) que marcam a necessidade de voltar-se a “importância do patrimônio cultural imaterial na formação da identidade cultural dos indivíduos e das comunidades”, regimentando, por meio da convenção, a salvaguarda, o respeito, a sensibilização e a cooperação em prol da dinâmica sociocultural dos mesmos. 110 Outro destaque da política patrimonial brasileira foi a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, também assinada em 2007, por meio do Decreto n.º 6.177, em 1º de agosto, que também evidencia a importância dos conhecimentos de povos e comunidades tradicionais para a preservação da biodiversidade e construção de um “desenvolvimento sustentável” 23, devendo-lhes ser consequentemente asseguradas a proteção de suas expressões culturais, a criação de condições para que suas práticas culturais continuem se reproduzindo dinamicamente, a conscientização do valor e relevância dessa diversidade cultural para o patrimônio histórico cultural nacional, além do próprio reconhecimento da “natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidade, valores e significados” (BRASIL, 2007b, p.2); (CIMOS; MPMG, 2012, p.24). Outro marco importante do processo de reconhecimento dos direitos dos povos e comunidades tradicionais que incide diretamente sobre as políticas de patrimônio cultural foi a Lei n.º 21.147 de 14 de janeiro de 2014, que institui a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais. Tramitando desde 2008, e retomado em 2013, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o projeto de lei foi mobilizado pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (Cimos) a partir da demanda de comunidades veredeiras do norte de Minas. Segundo o artigo 2º de tal instrumento legislativo: Para os fins desta Lei, consideram-se: I – povos e comunidades tradicionais os grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais e possuem formas próprias de organização social, ocupando territórios e utilizando recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica e aplicando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (MINAS GERAIS, 2014, p.1) Ao consolidar um conjunto de leis que visem a promoção do “desenvolvimento sustentável” dessas populações reconhecendo, fortalecendo e garantindo seus direitos territoriais, sociais, ambientais e econômicos, restitui-se a esses grupos, muitas vezes marginalizados, o respeito e o valor de sua identidade cultural, de seu patrimônio cultural, que passa a ter, também, o direito de se colocar enquanto instrumento de projeção para o futuro, assim como, seus modos de vida, organização e de relações de trabalho. 23 O conceito, embora considerado polêmico e ambíguo por determinados pesquisadores é amplamente utilizado e debatido por diferentes atores e em diferenciados fóruns (políticos, acadêmicos, etc.). 111 No âmbito das lutas estaduais, destaca-se a atuação da Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, que juntamente com membros de algumas secretarias estaduais e sociedade civil vem buscando desenvolver práticas que contemplem às necessidades dessas populações em nosso estado. Na esfera nacional, vale ressaltar também o Conselho Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituído a partir do Decreto n.º 8.750 de 9 de maio de 2016, que tem como propósito, por meio de instrumentalização dos povos e comunidades tradicionais: I - promover o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, com vistas a reconhecer, fortalecer e garantir os direitos destes povos e comunidades, inclusive os de natureza territorial, socioambiental, econômica, cultural, e seus usos, costumes, conhecimentos tradicionais, ancestrais, saberes e fazeres, suas formas de organização e suas instituições (BRASIL, 2016, p.1). Ao apresentar os avanços na legislação referente ao patrimônio cultural e dos direitos dos povos e comunidades tradicionais queremos ressaltar que tais desdobramentos só ocorreram e estão ocorrendo verdadeiramente, apesar das sanções e impedimentos muitas vezes sobrepostos pelo próprio Estado, por meio da mobilização e emergência etnopolítica e sociopolítica desses grupos no cenário nacional. Ressalta-se que a reivindicação pelo reconhecimento da alteridade e das identidades culturais se apresenta como a materialização mais visceral da luta pelo respeito e preservação do patrimônio cultural não apenas dos veredeiros, geraizeiros, quilombolas, ciganos, povos de terreiro, vazanteiros, indígenas, dentre outros, como da própria diversidade sociocultural brasileira. Quando se atribui ao Estado o dever da “proteção, fomento e promoção das identidades étnicas, culturais, religiosas e linguísticas minoritárias dentro de seus respectivos territórios” e às minorias “o direito a desfrutar de sua própria cultura, a professar e praticar a sua religião, e a utilizar o seu idioma, em privado ou em público; e que têm direito a participar ativamente nas decisões adotadas a nível nacional e regional” está se legitimando, por meio de uma declaração internacional24 um pacto de gestão compartilhada de um patrimônio cultural da humanidade – a sua sociobiodiversidade (CABRAL, 2011, p.53-54). E é nesse sentido de compreender o patrimônio em sua complexidade, a partir das relações/interações do: material/imaterial; natural/cultural; poder público/sociedade civil que o conceito de paisagem cultural emerge nas concepções patrimoniais viabilizando o 24 Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas (1992). 112 reconhecimento, a preservação, a revelação, a valorização e a própria descoberta/redescoberta dos elementos que constituem a dinâmica sociocultural de um povo. Anteriormente à institucionalização da UNESCO, as questões em torno da paisagem já haviam sido evidenciadas na Carta de Atenas (1931), ressaltando-se aí a visibilidade dos monumentos, e na Convenção de Washington (1940) os aspectos sobre paisagem natural e o belo. Em 1962, a Recomendação de Paris também destacava a importância das políticas e práticas de preservação ambiental, salvaguarda da beleza e caráter das paisagens e sítios, perspectiva também adotada pelo ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) na Carta de Veneza (em 1964). Com a elaboração das “Normas de Quito” pela Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1964, a paisagem passa a ser compreendida como “portadora de marcas e expressões do passado, testemunhos de uma tradição histórica de inestimável valor e o turismo como finalidade pragmática” (FIGUEIREDO, 2013, p.86). E vale ressaltar que tais implicações refletem os estudos que já vinham sendo desenvolvidos pela Escola de Berkeley, os quais serão inseridos, inclusive, na própria construção conceitual da definição de paisagens culturais da UNESCO. Destacar-se- ão também como contribuições para a construção do conceito a Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, organizada pela UNESCO (aprovada na reunião de Paris, em 1972); a Recomendação de Nairobi (pela UNESCO, em 1976); a Carta de Florença pelo ICOMOS, em 1981; e a Carta de Washington pelo ICOMOS, em 1986. E é na década de 1990, que, segundo Figueiredo (2013) começa a efetivamente se consolidar uma nova abordagem de preservação e proteção do patrimônio direcionada pela concepção das paisagens culturais. Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-1992, aliado às discussões sobre a conservação ambiental propiciada em diferentes recortes territoriais pela presença de povos e comunidades tradicionais (com suas práticas e modos de vida sustentáveis), o debate sobre a inclusão na lista do patrimônio mundial de bens que refletissem a valorização das relações entre o homem e o meio ambiente, entre o natural e o cultural, resultou na inclusão da categoria Paisagem Cultural na Lista do Patrimônio Mundial, definida como uma paisagem selecionada por seu valor universal, contemplando “todas as interações entre homem e meio ambiente, entre o natural e o cultural”, além de sua “representatividade em termos de uma região geocultural claramente definida e pela sua capacidade de ilustrar elementos culturais distintos dessa região” (SANTILLI, 2010, p.1). Tais paisagens foram ainda classificadas em três categorias 113 para fins de inscrição: a) claramente definidas – criadas intencionalmente, como os jardins e parques construídos por razões estéticas; b) paisagens evoluídas organicamente, que se subdividiriam em paisagens relíquia ou fósseis e paisagens contínuas ou vivas; e c) as paisagens culturais associativas, que possuem seu valor determinado a partir de associações feitas acerca delas por determinados grupos humanos. Outro marco importante nesse processo de compreensão do patrimônio na perspectiva da paisagem foi a Recomendação 95, elaborada pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa que propunha uma conservação que integrasse às áreas de paisagens culturais, políticas públicas paisagísticas. Para tal, recomendava-se uma atuação interdisciplinar que proporcionasse uma “ação integrada do planejamento e da gestão territoriais com as políticas ambientais e sociais, sobretudo em suas dimensões culturais e econômicas” tendo em vista a promoção de um “desenvolvimento sustentável” (FIGUEIREDO, 2013, p.87). Posteriormente, no ano 2000, foi assinada a Convenção Europeia da Paisagem, que rompeu com a dicotomia preconcebida de paisagem natural e cultural, e com a concepção de cultura como trabalho do homem, dando ênfase principalmente à noção de bem cultural. E vale ressaltar que o objetivo desse tratado foi o de incentivar a participação das populações locais nas decisões sobre as políticas das paisagens nas quais vivem, buscando elementos que subsidiassem, não apenas a proteção, como também a gestão dessas paisagens. Nessa perspectiva, como ressalta Ribeiro (2007, p.53): O conceito de paisagem adotado pela Convenção é o de que ela designa uma parte do território, tal como percebido pelas populações, na qual seu caráter resulta da ação de fatores naturais e/ou humanos e de suas in ter-relações. Ela afirma ainda que a paisagem é um patrimônio comum e um recurso partilhado. Outra postulação da Convenção Europeia da Paisagem é a relevância dos poderes públicos locais, regionais e nacionais consolidarem políticas e ações de gestão da paisagem que possam garantir não apenas a preservação dos bens culturais de interesse da população, como a própria qualidade e usufruto dos mesmos pelas coletividades que a reconhecem como tal. Tais concepções devem considerar não apenas o interesse local, mas o próprio significado e valor que determinado conjunto assume para a população, também num contexto nacional. Segundo Vasconcelos (2012, p.58): A Convenção Europeia não tem por objetivo impedir as mudanças naturais ou culturais das paisagens dos países signatários, mas acompanhá-las, permitindo a evolução destas paisagens sem perder os seus registros históricos. Outra preocupação é proporcionar o desenvolvimento sustentável dos meios de produção, permitindo o uso dos recursos naturais sem, contudo, esgotá-los. 114 Em 2009, a UNESCO reitera mais uma vez essa concepção de “sustentabilidade” da Convenção Europeia da Paisagem ressaltando, em uma publicação, “o valor da relação espiritual com a natureza e das culturas tradicionais para o uso sustentável da terra e a manutenção da biodiversidade” (FIGUEIREDO, 2013, p.106). As paisagens culturais frequentemente refletem técnicas específicas de utilização sustentável das terras, tomando em consideração as características e os limites do ambiente natural em que são estabelecidas, bem como uma relação espiritual específica com a natureza. A proteção das paisagens culturais pode contribuir para técnicas modernas de utilização sustentável das terras e para a manutenção dos valores naturais da paisagem. A existência continuada de formas tradicionais de utilização das terras mantém a diversidade biológica em muitas regiões do mundo. Daí que a proteção das paisagens culturais tradicionais seja útil para a manutenção da diversidade biológica (UNESCO, 2012, p.70). Apesar das discussões em torno da importância da paisagem cultural como instrumento legal de proteção do patrimônio já remontarem à década de 1990, foi a partir dos anos 2000, que o IPHAN começou a incorporar o conceito em algumas de suas atividades, enfocando-o, desde então, como o “elo entre os artefatos culturais e naturais”. A partir de 2007 o órgão passou, inclusive, a promover diversos encontros técnicos, em parceria com instituições de ensino superior, que debateram sobre o conceito e sua aplicabilidade no território nacional (VASCONCELOS, 2012, p.60). Influenciados pelas concepções da Convenção Europeia da Paisagem, um grupo de pesquisadores e estudiosos reunidos no Seminário Semana do Patrimônio – Cultura e Memória na Fronteira, na cidade de Bagé (RS), sobrescreveu uma carta, na qual se defendeu a perspectiva da paisagem cultural, a partir da proposição de 12 artigos que contemplam desde a definição do conceito até as formas de reconhecimento e preservação a ele concernentes. Em 30 de abril de 2009 o IPHAN, por meio da Portaria 127, estabelece a Chancela de Paisagem Cultural Brasileira, como um novo instrumento de proteção ao patrimônio cultural, a ser agregado aos procedimentos já existentes de tombamento e registro (BRASIL, 2009). Segundo o IPHAN (2009a, p.13): São exemplos da Paisagem Cultural as relações entre o sertanejo e a caatinga, o candango e o cerrado, o boiadeiro e o pantanal, o gaúcho e os pampas, o pescador e os contextos navais tradicionais, o seringueiro e a floresta amazônica, por exemplo. Como estes, outros tantos personagens e lugares formam o painel das riquezas culturais brasileiras, destacando a relação exemplar entre homem e natureza. Diante da singularidade das Paisagens Culturais Brasileiras, os resultados e ações propostas deveriam ser consolidados a partir dos fatores específicos concernentes à realidade específica de cada um desses lugares. Além disso, o IPHAN elencou ainda como ações 115 possíveis como decorrência da chancela, a criação de museus, centros de interpretação ou casas de cultura nesses recortes. Para Almeida (2012, p.154): Com a chancela da Paisagem Cultural, admite-se que a paisagem testemunha a aventura do homem na superfície da terra e qualquer marca por ele introduzida significa um diferente valor cultural. Técnicas, crenças religiosas e ideológicas perpassam cada paisagem, por isso, as paisagens possuem significados simbólicos e estão, também, carregadas de ideologias. São reconhecidas como testemunhas da criatividade, da diversidade cultural, dos cenários da vida e tornam-se objetos de interesse de políticas nacionais e internacionais. O papel da UNESCO, da Constituição Brasileira e do IPHAN para ressignificarem paisagens e patrimônios culturais materializa-se na formulação e implementação de políticas que tenham como finalidade enriquecer a relação da sociedade com seus bens culturais. Como um desdobramento dos estudos que já vinham sendo desenvolvidos no âmbito das paisagens culturais, em 2009, o Rio de Janeiro (“Paisagens Cariocas entre a Montanha e o Mar”) foi apresentado, pelo IPHAN, ao Comitê do Patrimônio Mundial como proposta de paisagem cultural a ser oficialmente reconhecida, sendo tal proposta aprovada em 2012. Ressalta-se que, apesar da predominância de sítios relacionados a áreas rurais, jardins e sistemas agrícolas tradicionais já classificados nessa categoria, a Paisagem Cultural do Rio de Janeiro, representou o primeiro perímetro urbano do mundo a receber esse título. Como bem ressalta Torelly (2012), além de “preservar, salvaguardar e acautelar bens e manifestações culturais da nossa gente” cabe ainda ao IPHAN “colaborar para constituição das diferentes identidades que compõem a diversidade cultural do país, do nosso sentido de nação e do que é ser brasileiro”. Assim como a identificação do Rio de Janeiro, enquanto paisagem cultural que reflete uma identificação patrimonial do brasileiro, o reconhecimento do complexo da Lagoa da Pampulha como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 2016, também representou um marco significativo na concepção patrimonial, uma vez que ele passa a ser incorporado pela população, a partir do seu reconhecimento, como um bem que deve ser vivenciado como tal. E esse, ainda segundo Torelly (2012) é o grande desafio da politização das políticas patrimoniais: ampliar a participação social, assegurando sua voz e manifestação em todas as etapas do reconhecimento, integrando ainda a esta política pública, as reais demandas reivindicadas pela sociedade. Apesar da vasta gama de possibilidades e da quebra de paradigmas teóricos e metodológicos que esta nova categoria de patrimônio introduz, há ainda uma série de questionamentos sobre a sua aplicabilidade, dentre os quais se ressalta a falta de interesse em sua instituição de parte do poder público e da população local; a pouca familiaridade dos técnicos do IPHAN com o instrumento e a própria ausência de delimitação dos documentos 116 necessários para solicitação do chancelamento, bem como do plano de gestão de uma paisagem cultural. Todavia, como ressalta Vasconcelos (2012), tais questões inibidoras já estão sendo sanadas com a própria incorporação da chancela nas práticas de preservação patrimonial. Pressupõe-se que à medida que os processos forem sendo desenvolvidos, os técnicos do IPHAN ficarão mais familiarizados e a própria população e prefeituras também ficarão mais motivadas com os resultados positivos de outros processos já bem caracterizados como as paisagens culturais dos imigrantes, paisagens religiosas, paisagens do patrimônio naval e o caso, que já se pode considerar “emblemático”, da Chancela de Paisagem Cultural do Vale do Ribeira, conjunto de processos sobre os quais problematizaremos a seguir. 3.2. Paisagens Culturais Brasileiras: projetos e iniciativas de reconhecimento das paisagens culturais no contexto nacional Os estudos sobre as paisagens culturais no território brasileiro foram iniciados antes mesmo da criação da chancela em 2009. Desde o início das discussões na Eco-1992, com a inclusão da categoria na Lista do Patrimônio Mundial, e mais especificamente, a partir da Convenção Europeia da Paisagem (2000) o IPHAN já inaugurava uma nova abordagem do patrimônio, muito influenciado, inclusive, pela nova dinâmica internacional de reconhecimento do patrimônio da humanidade, na qual diversos bens já catalogados foram readequados à categoria de paisagem. Dentre eles vale destacar o Parque Lushan, na China, inscrito como conjunto de bens culturais em 1996 (pela arquitetura, natureza monumental e significado religioso) e readequado à categoria de Paisagem Cultural em 2010 no intuito de incluir também na preservação, o ambiente natural, como meio para a prática espiritual (FIGUEIREDO, 2013). Outro caso emblemático destacado pela autora foi o parque Uluru-Kata Tjuta, na Austrália, inscrito como patrimônio natural (por seus valores ecológicos e no intuito de proteção da biodiversidade), e que em 1994 foi recategorizado como paisagem cultural, levando-se em consideração os “valores imateriais atribuídos ao sítio pelas comunidades locais, que, entre outras questões, não poderiam ser proibidas do acesso à área protegida e de suas práticas místicas no lugar” (FIGUEIREDO, 2013, p. 106). Nesse contexto verifica-se que, à medida que as concepções do patrimônio evoluem no intuito de romper com algumas dicotomias intrínsecas às políticas de reconhecimento e preservação, as comunidades visualizam novas maneiras e possibilidades de valorizar e reconhecer seus patrimônios, compreendidos, a partir de então, em toda sua 117 complexidade. E observa-se que tais inovações podem também ser destacadas em diversos projetos e dossiês desenvolvidos pelo IPHAN como iremos apresentar a seguir. O reconhecimento e a valorização de bens e manifestações culturais, desde sua origem, sempre estiveram associadas às demandas/ interesses de determinados grupos da sociedade, assim como a algumas situações de crise ou riscos, às quais o patrimônio pode estar exposto. Foi assim no Vale do Itajaí (Santa Catarina), onde uma grande enchente (em 1983) impactou uma série de edificações construídas pelos imigrantes alemães, italianos, poloneses, etc. O IPHAN, então, juntamente com a comunidade local, passou a desenvolver um inventário de importantes sítios arquitetônicos na região, verificando-se, ademais, nesse processo, a riqueza das paisagens rurais, de um “modo de viver” e um “saber fazer” muito específico dessas “ilhas culturais” de pequenas comunidades descendentes de imigrantes do século XIX. E nesse sentido, além de inventariar o patrimônio cultural material, foram ressaltados ainda patrimônios imateriais, como a técnica de enxaimel com vedação de tijolos aparentes; o modo de construir os ranchos de madeira; os bailes; as línguas e dialetos; as celebrações religiosas e profanas; a produção artesanal; a culinária; o trato com a terra (o modo de plantar); etc. Até 2006 foram catalogadas mais de mil propriedades pela Fundação Catarinense de Cultura e pelas prefeituras envolvidas. Em 2007, 63 desses bens foram tombados em âmbito federal. E neste mesmo ano, o conjunto rural dos municípios de Pomerode e Jaraguá do Sul foi proposto para o reconhecimento como paisagem cultural, configurando-se, desse modo, como a primeira proposta de proteção integrada entre as instâncias federal, estadual e municipal (WEISSEIMER, 2012). É interessante ressaltar que mesmo sem a consolidação de um instrumento específico para esse reconhecimento, as discussões no IPHAN, nesse sentido, já estavam em desenvolvimento há bastante tempo. Um exemplo expressivo desse processo, florescente principalmente no sul do Brasil, foi a elaboração da Carta de Bagé (no estado do Rio Grande do Sul) realizada durante um evento denominado “Paisagens Culturais: novos conceitos, novos desafios”, na qual se ressaltava a necessidade de um instrumento para o reconhecimento, preservação e gestão das paisagens culturais: a Chancela de Paisagem Cultural Brasileira – gestada no ano de 2009. Posto isso, a proposta embrionária de Santa Catarina foi retomada em 2011, e a Paisagem Cultural da Imigração foi reconhecida, sem passar pelo processo específico de instrução da chancela - em decorrência de uma série de ações que já vinham sendo desenvolvidas na região a partir do “Acordo de Cooperação” assinado, em 2007, pelo IPHAN, Ministério da Cultura, Ministério do Turismo, Ministério do 118 Desenvolvimento Agrário e do Governo do Estado (a partir das Secretarias da Cultura, do Turismo e da Agricultura). A fim de oficializar o projeto “Roteiros Nacionais da Imigração”, o acordo previa uma série de ações conjuntas, tais como:  a construção de “centros de referência e venda de produtos tradicionais, que serviriam de apoio aos visitantes interessados nos roteiros de cada cidade” (WEISSEIMER, 2012, p.6);  a “criação e implementação de leis municipais de produção do patrimônio cultural e de um fundo municipal para gestão do projeto” (WEISSEIMER, 2012, p.6);  a disponibilização de um “técnico por município para gestão do projeto” (WEISSEIMER, 2012, p.6);  a “inserção do projeto nos seus roteiros turísticos, com produção de guias e material de divulgação” atribuída ao estado de Santa Catarina (WEISSEIMER, 2012, p.6);  a manutenção do IPHAN como responsável pela “finalização dos estudos de tombamento e paisagem cultural, a alocação de recursos para a restauração de imóveis protegidos e a articulação institucional com os demais órgãos do governo federal” (WEISSEIMER, 2012, p.6). Assim, como em diversas outras áreas rurais no Brasil, destacam-se como principais problemas para a sobrevivência ou preservação dessas paisagens culturais da imigração: o “esvaziamento das áreas rurais”; a “desvalorização da produção tradicional”; sua “paulatina transformação em periferia urbana”; a “falência da pequena propriedade familiar policultora”; as “restrições legais impostas pelos órgãos de inspeção e vigilância sanitária”; o “crescimento das indústrias e das zonas urbanas” atraindo números cada vez maiores de jovens em busca de melhor remuneração e trabalhos menos árduos; etc. Todavia, apesar dessas situações de dificuldade, a ruralidade desses locais vem resistindo e demandando, cada vez mais, políticas que as protejam, de alguma forma, do avanço voraz da expansão urbana e das fronteiras agrícolas. Posto isso, o acordo de cooperação vem atuando em dois eixos principais: no planejamento urbano compatível e na manutenção econômica das áreas rurais; tudo isso no intuito de alcançar, respectivamente, o ordenamento da expansão urbana, das áreas periurbanas e rurais e a geração de renda complementar/alternativa à produção rural (como o artesanato, turismo, etc.). 119 A partir desse “registro de entendimentos, impressões e experiências profissionais desenvolvidas dentro do IPHAN” 25, Maria Regina Weisseimer (2012, p.2) ressalta que a grande inovação da Chancela da Paisagem Cultural Brasileira é a sua compreensão enquanto um “pacto”, um “compromisso”, um “instrumento de gestão territorial compartilhada”, um “mecanismo de preservação conjunta entre os diversos agentes que possuam algum tipo de interface com a paisagem cultural a ser chancelada”. Na concepção dos próprios técnicos do IPHAN, como ressaltam Araújo e Sabaté (2015), é preciso que a chancela atue como “uma política de convivência entre o patrimônio e o caráter dinâmico da cultura e da ação humana”, convivendo com as transformações oriundas do desenvolvimento econômico e social e incentivando iniciativas que amparem os contextos dessas paisagens (ARAÚJO; SABATÉ, 2015, p.15-16). Faz-se necessário, então, revalorizá- las “para defender a sua essência e aceitar a sua transformação, sempre que esta suponha a vontade de acomodar-se ao tempo de seus construtores, na tentativa de que isto proporcione uma vida com maior dignidade” (ARAÚJO; SABATÉ, 2015, p.16-17). A partir do depoimento de Adelina Araújo e Joaquín Sabaté, observamos que ao conceito de paisagem cultural vem sendo incorporada a concepção de cidadania por meio da organização e mobilização de diversos grupos populares em defesa do patrimônio cultural. Há nesse sentido, uma compreensão, cada vez maior, da paisagem com um elemento estrutural da própria concepção de identidade, como ressaltam os autores: A palavra cultura vem do latim colere e significa cultivar. Ação que historicamente possibilita a fixação do homem ao território, sua relação com o meio e o desenvolvimento das civilizações e das paisagens culturais. Dessa relação emanam as formas, materiais e imateriais, de um mundo humano e coletivo, carregadas de sentido e significados de experiência, que se maneira tão adaptada nos oferece uma sensação de harmonia e estética. É nessas formas que se apoiam as identidades, onde se estimula a criatividade, se explica a existência e se institui os modos de vida. São paisagens que constroem identidades (ARAÚJO; SABATÉ, 2015, p.20). Vanessa Figueiredo e Andrey Schlee (2015, p.24) também destacam esse “olhar dialogado” da chancela, na medida em que, cada vez mais, o Brasil tem se deparado com “ações inéditas de movimentos populares ou grupos sociais26 em defesa de determinados 25 Mediante as diversas iniciativas e projetos desenvolvidos pelo órgão em 2015 os técnicos do IPHAN realizaram a publicação de uma edição especial da Revista ID, na qual apresentam as diversas pesquisas, experiências e perspectivas sobre a implementação e implicação desse novo instrumento de preservação – a chancela da Paisagem Cultural Brasileira. 26 “Podemos citar a ação civil pública que solicitou a nulidade do ato do IPHAN que autorizava obras no Parque do Flamengo no Rio de Janeiro; o Movimento Ocupe Estelita, que reuniu um significativo número de cidadãos com apoio do Ministério Público Federal, solicitando o tombamento emergencial do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas de Recife (em Pernambuco), visando impedir a construção de 13 altas torres multiuso; o movimento em prol do Parque Augusta em São Paulo; o movimento pró-Paranapiacaba que resultou no tombamento, 120 valores culturais”, os quais questionam, principalmente a condução das políticas públicas e a própria eficácia das ações das instituições de patrimônio. E é em busca dessas porções peculiares do território brasileiro que representem as singularidades e expressividades do processo de interação do homem com o seu meio, que uma série de estudos vem sendo elaborados pelo IPHAN no intuito de propiciar a sobrevivência e preservação dessas paisagens tão ameaçadas pelo avanço dos processos econômicos incompatíveis com tais realidades. Dentre os principais projetos desenvolvidos pelo órgão, destacam-se: 1. Paisagem Cultural da imigração japonesa no Vale do Ribeira/ São Paulo – o trabalho e o cotidiano das comunidades (NASCIMENTO; SCIFONI, 2015); 2. Paisagem Cultural de Paranapiacaba – o patrimônio ferroviário de uma vila paulista (FIGUEIREDO, 2015); 3. Paisagem Cultural do caipira e do milho no Alto Vale do Paraíba (FERREIRA; SOUZA, 2015); 4. Paisagem Cultural da Imigração em Santa Catarina - “Roteiros Nacionais da Imigração” (WEISSHEIMER, 2015); 5. Paisagem Cultural do Sertão Brasileiro – a arte de produzir o carro de boi no Morro da Garça/Minas Gerais (JORGE, 2015) 6. Paisagens Culturais da Mineração – a importância dos Geoparques em projetos educacionais e de valorização do patrimônio cultural local na região do quadrilátero ferrífero/Minas Gerais (CARSALADE, 2015); 7. Paisagem Cultural do Serro/ Minas Gerais (CASTRIOTA, 2015); 8. Paisagens rurais em São Paulo – a multifuncionalidade dos sistemas territoriais integrados (FERRÃO, 2015); 9. Paisagem Cultural Urbana do Rio de Janeiro (RIBEIRO, 2015); 10. Paisagem Cultural das Missões Jesuíticas Guaranis (BRITO; GIANNECCHINI, 2015); 11. Paisagem Cultural de Pitimbú/ Paraíba – o patrimônio naval dos pescadores tradicionais (SILVA, 2015); 12. Paisagem Cultural dos Jardins Históricos Brasileiros (MONGELLI; SCHLEE, 2015); aquisição e gestão participativa da vila ferroviária em Santo André -SP; o movimento pró Fabrica São Luiz em Itu-SP, que salvou parte dos armazéns da primeira fábrica de tecidos de São Paulo da demolição autorizada pelos próprios órgãos de preservação do patrimônio, dentre outros” (FIGUEIREDO; SCHLEE, 2015, p.24). 121 13. Paisagem Cultural do Rio São Francisco (CÉSARI; CALDEIRA, 2014) (MONGELLI, 2015); 14. Paisagem Cultural do Vale do Ribeira/ São Paulo (NASCIMENTO; SCIFONI, 2010). Nos trabalhos mencionados acima ressaltamos a vinculação da grande maioria dessas paisagens à presença de populações tradicionais, as quais pelo seu modo de vida peculiar permitem uma interação e compreensão diferenciada com o meio. Ferreira e Souza (2015, p.81) ao retratarem a cultura caipira e as leituras dessa paisagem, a propósito, destacam que: É nesse recorte conceitual que paisagem se torna antes de tudo, um lugar carregado de sentido, em afinidade entre o ser do homem e o seu habitat. Assim poderá ser analisada a partir da relação entre todos os componentes ali existentes, em uma extensão espacial e temporal onde se manifesta o fenômeno da existência. Nessa concepção a paisagem cultural do caipira e do milho no Alto Vale do Paraíba é permeada por elementos como: a tradicionalidade da roça indígena; pelas relações de pertencimento ao lugar; pelo catolicismo caboclo (Festa do Divino Espírito Santo); pela materialidade e imaterialidades inerentes ao pilão, ao monjolo, à habitação rural caipira e outras singularidades que configuram o patrimônio cultural desses lugares, onde a vivência espacial das paisagens se materializa na multifuncionalidade rural experienciada e transformada de forma autêntica. É nesta perspectiva que os autores ressaltam a importância dos suportes visíveis da memória (casarões, utensílios, imagens, etc.), pois a: [...] ausência de suportes visíveis da memória coletiva intensifica a perda das relações da comunidade com o seu patrimônio que, na medida em que deixam de ser utilizados e referenciados, perdem importância no contexto cotidiano, levando rapidamente a sua degradação pela falta de cuidado e atenção da população local (FERREIRA; SOUZA, 2015, p.101). Outra característica predominante dos trabalhos de reconhecimento das paisagens culturais é a sua associação ao meio rural, aspecto presente nas paisagens culturais paulistas (relacionado muitas vezes à cultura do bandeirante) e nas paisagens culturais da imigração, do Sertão (na figura do carro de boi), do Serro, do Rio São Francisco e do Vale do Ribeira (imbricadas, muitas vezes, com a presença das populações tradicionais e/ou à agricultura familiar). As paisagens culturais da imigração configuram-se também fortemente nas “pequenas propriedades de base familiar, policultoras, espalhadas pelas centenas de estradas que serpenteiam os rios, cortando vales” (WEISSHEIMER, 2015, p.111). Nessas regiões um dos aspectos mais evidenciados pela presença do imigrante europeu no território brasileiro é a sua adaptação (de vida e modos de produção) “às condições naturais, geográficas e 122 econômicas da nova terra”, que “aliada ao convívio com os demais grupos resultou no desenvolvimento de soluções locais de ocupação (e uso) desse território” (WEISSHEIMER, 2015, p.109). Todavia, se nos pautarmos sob a perspectiva geohistórica, muitos imigrantes europeus chegaram também ao Brasil no intuito de desenvolver atividades estritamente voltadas à construção e manutenção das cidades, o que propiciou a presença dessas paisagens culturais da imigração também em alguns núcleos urbanos (aspectos similarmente encontrados ainda nos pequenos arraias e vilarejos formados ao longo do século XVIII e XIX, e que ainda hoje guardam em sua memória patrimônios associados à indústria, ferrovia, mineração, etc.). Sobre a paisagem cultural urbana, Rafael Winter Ribeiro (2015) destaca a forte tendência das políticas patrimoniais da UNESCO sobre uma tradição paisagística (predominantemente utilizada pela arquitetura) na qual o urbano é muitas vezes vinculado apenas aos jardins, conjuntos arquitetônicos e áreas planejadas, nas quais o viés é voltado estritamente a uma tipologia histórica. Para este autor, essa abordagem da Paisagem História Urbana engessa uma categoria que se apresenta cada vez mais poderosa como uma ferramenta para leitura de valores e gestão da paisagem. Embora, no âmbito da Paisagem Cultural do Rio de Janeiro (Patrimônio Mundial da Humanidade – “entre a Montanha e o Mar”), para Ribeiro (2015, p.252) “a paisagem cultural urbana tem a mostrar que a cidade como patrimônio pode ser algo muito mais diverso do que a abordagem histórica, ou a abordagem a partir dos centros históricos”. Outra dimensão vinculada à perspectiva da paisagem cultural, seja ela rural ou urbana, é a importância do plano de gestão/salvaguarda da paisagem (previsto, inclusive, na portaria do IPHAN nº 127, de 30 de abril de 2009, que estabelece a chancela da Paisagem Cultural Brasileira). Nesse sentido, é relevante destacar o plano para a salvaguarda da paisagem cultural do Serro (MG), elaborado a partir do reconhecimento dos saberes tradicionais. O Plano de Revitalização da Paisagem Cultural do Serro foi elaborado a partir de quatro programas: 1) salvaguarda das práticas, conhecimentos e técnicas tradicionais relativas ao cultivo, preparo e conservação dos alimentos e plantas medicinais; 2) reabilitação da paisagem; 3) fortalecimento econômico e 4) fortalecimento institucional. E segundo Castriota (2015, p.196), a partir desse plano foi possível: [...] oferecer para os moradores da cidade a oportunidade de perceber a paisagem como patrimônio a ser preservado, através justamente do resgate e preservação de um saber fazer tradicional [o queijo do Serro] que também lhes reverta em benefícios econômicos, garantindo assim a sua sustentabilidade. 123 Além dessa contribuição, o plano proporcionou um subproduto - a “Lei de Preservação da Paisagem Cultural” – que “incorpora desde diretrizes de uso e ocupação para área tratada, até um complexo programa de agricultura urbana, passando pela criação de um fundo rotativo para financiamento das atividades” (CASTRIOTA, 2015, p.197). E a partir dessa experiência podemos observar o quão importante é a participação da população local no processo de reconhecimento, levantamento e gestão das paisagens, que envolve, inclusive, em algumas situações, a própria mudança de atitude desses grupos frente à paisagem local. Ferrão (2015, p.231) ao abordar os sistemas territoriais integrados à paisagem cultural ressalta que, independentemente da tipologia do patrimônio a ser reconhecido, é preciso considerar que seus elementos estão intrinsecamente associados ao “desenvolvimento sustentável de uma região”. Nessa perspectiva, o autor reconhece que para se alcançar um sistema territorial integrado, a abordagem regional torna-se uma ferramenta interessante para o reconhecimento das paisagens. Segundo o autor, se considerarmos uma bacia, sub-bacia ou microbacia hidrográfica como uma região de incidência de uma paisagem cultural brasileira, teríamos, do ponto de vista ecológico, uma unidade de análise e/ou planejamento integrado. Assim como, “regiões dedicadas à produção de uma determinada commodity” ou ainda “regiões históricas”, as quais: [...] repletas de tradições culturais, ou dedicadas a produtos típicos fortemente vinculados ao território onde são produzidos, a ponto de caracterizarem sua paisagem e serem reconhecidos por ela, numa relação intrínseca entre processo produtivo e organização territorial, podem ser consideradas como unidades de análise e/ou planejamento integradas por suas características culturais (FERRÃO, 2015, p.214). É a partir dessa concepção que os estudos sobre a paisagem cultural do Rio São Francisco e do Vale do Ribeira foram estruturados no intuito de compreender o diverso patrimônio que constitui essas paisagens no contexto brasileiro. No caso do rio São Francisco – o rio da “integração nacional” –, a demanda social começou a mostrar sua voz em 2002, quando houve uma campanha de reconhecimento do “Velho Chico” como “Patrimônio Mundial da Humanidade”. Além de sua importância simbólica e do seu importante papel na formação territorial, social e econômica do Brasil, ele se destaca por um riquíssimo conjunto arquitetônico eclético e vernacular, além do patrimônio naval, paisagístico, rural, imaterial e ferroviário (MONGELLI, 2015). Em 2008, o IPHAN iniciou o primeiro inventário do patrimônio cultural das localidades ribeirinhas do rio São Francisco, por meio da metodologia SICG (Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão). E a partir da contratação das empresas especializadas foram inventariados sete trechos em Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, 124 Alagoas e Sergipe. A seleção dos sítios foi feita por amostragem, percorrendo 1.600 km do rio e aproximadamente 90 localidades (IPHAN, 2011a). Historicamente (sob a perspectiva do processo de interiorização no período colonial) o rio São Francisco pode ser subdividido em três regiões principais: o Alto São Francisco – “compreendido entre a nascente e a cidade de Pirapora”, na qual se desenvolveu pela ação dos bandeirantes, principalmente, a explotação de ouro e pedras preciosas; o Médio São Francisco – “entre Pirapora, em Minas Gerais, e Juazeiro, na Bahia”, que se caracteriza como uma “região onde a pecuária tomou conta, chegando a ser chamada de ‘Rio dos Currais’ no passado”; e o Baixo São Francisco – que “vai de Juazeiro à Foz”, constituindo-se como uma área de ocupação empreendida principalmente por missionários católicos (CÉSARI; CALDEIRA, 2014, p.7-8). Já no período imperial, as atividades comerciais internas e entre várias outras regiões do Brasil se intensificaram principalmente por meio da navegação e da implantação das estradas de ferro em grande parte do território. Intervenções às quais no período republicano foram acrescentadas a construção de hidrelétricas no médio São Francisco e projetos governamentais de aproveitamento das águas para fins agrícolas, agropecuários e agroindustriais (IPHAN, 2011a). Além da riqueza sociocultural dessa região constituída a partir de processos históricos tão importantes, o rio São Francisco se destaca ainda pela diversidade paisagística e ambiental, onde são encontrados, predominantemente, os biomas de Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, os quais são ainda intercalados com áreas de transição, florestas, campos de altitude e formações pioneiras (como mangues, vegetações litorâneas, etc.). Toda essa biodiversidade propicia assim a configuração de paisagens naturais importantes entremeadas por cachoeiras, matas, veredas, paredões rochosos, grutas e cavernas – indícios da necessidade de cuidado e preservação (IPHAN, 2011a). Partindo dos sete trechos selecionados, a partir de critérios históricos e culturais, foram discriminados, nos inventários, os principais patrimônios referentes a cada sub-região, ressaltando: as principais atividades econômicas ao longo dos séculos de formação do território; a tipologia da arquitetura evidenciada pelo patrimônio material ainda existente; patrimônios arqueológicos, espeleológicos, religiosos; áreas de preservação ambiental; centros de turismo ecológico, cultural e religioso; presença de populações tradicionais e suas manifestações culturais (desde festividades à confecção de artesanato local). A partir desse levantamento, apresentado pelas equipes de inventário em um evento organizado em Petrolina, entre os dias 14 e 15 de junho de 2011, a população local e 125 os órgãos governamentais constataram a importância do Rio São Francisco como um “extenso território cultural que integra diferentes identidades e diversas paisagens cuja relevância histórica e cultural abrange domínios nacionais” (CÉSARI; CALDEIRA, 2014, p.8). Nesse contexto, todo o patrimônio arqueológico, espeleológico e geológico (as províncias cársticas da Serra da Canastra, o Vale do Peruaçu e a gruta de Bom Jesus da Lapa e os Cânions do São Francisco no Xingó), juntamente com o patrimônio rural das fazendas e bens vinculados à Mineração no Alto São Francisco, o patrimônio natural das unidades de conservação, APAs e Veredas de Guimarães Rosa, o patrimônio arquitetônico colonial das Igrejas Missioneiras, o patrimônio dos conjuntos urbanos (art déco e eclético), o patrimônio naval, ferroviário e imaterial das manifestações culturais, festas religiosas, artesanato e patrimônio linguístico constituíram elementos, mais que suficientes, para a elaboração da “Carta da Declaração Nacional do Valor Cultural do Rio São Francisco”, encaminhada aos órgãos competentes pelo evento de apresentação do inventário. Foi apresentada ainda, em dezembro do mesmo ano, a portaria IPHAN nº 450/2011 que “dispões sobre a criação de grupos de trabalho para tratar do Patrimônio Cultural do Rio São Francisco” (IPHAN, 2011b, p.18). Foram estipulados quatro grupos de trabalho (1.Minas Gerais; 2.Bahia; 3. Pernambuco e 4.Sergipe e Alagoas) que deveriam desenvolver suas ações a partir de seis eixos principais: 1) “identificação e documentação do patrimônio cultural do Rio São Francisco”; 2) “ações de reconhecimento e acautelamento”; 3) “ações de preservação e salvaguarda”; 4) “proteção da paisagem natural, do ambiente, dos ecossistemas e das formações físicas do Rio São Francisco”; 5) “promoção, difusão do conhecimento e ações educativas” e 6) “incentivo às atividades turísticas e à sustentabilidade econômica dos bens culturais do Rio São Francisco” (IPHAN, 2011b, p.18). Podemos observar, a propósito, que as ações do IPHAN têm caminhado no intuito de realizar a preservação e a proteção desse patrimônio a partir do reconhecimento das comunidades local, regional e nacional, incentivando, inclusive a formação de uma rede de parceiros e gestores desse patrimônio. Vale ressaltar que na perspectiva local, como destacam Martins e Mongelli (2012, p.9) há uma “ligação afetiva dos moradores com o rio e a importância deste na formação da identidade do povo que ali reside”, com o modo de viver ribeirinho. E nesse sentido, seja às margens do “velho Chico” ou nas demais áreas que não são banhadas pelo rio, mas que compõem a bacia, as noções de significado, pertencimento e saberes locais completam o sentido histórico e patrimonial da região. E por fim, enquanto um patrimônio nacional, como ressaltam ainda Martins e Mongelli (2012, p.10), a referência do rio é incontestável, uma vez que a “ele foram dedicadas coleções de registros gráficos e 126 textuais, memórias de viagem, além de vídeos, músicas, histórias, lendas, anedotas, filmes, documentários, fotografias e outras tantas formas de expressão artística, jornalística ou da cultura popular”. Com a mobilização cada vez maior em torno das questões patrimoniais do rio São Francisco, o grupo de trabalho de Minas Gerais realizou em março de 2012 um seminário no município de Pirapora, no qual a partir da divulgação da “Carta de Pirapora”, defendeu-se o reconhecimento do rio como um patrimônio cultural da humanidade e estabeleceu-se um pacto para definição de ações e estratégias de preservação do extenso patrimônio cultural do Vale do São Francisco. E, em maio do mesmo ano, o grupo de trabalho de Sergipe e Alagoas também se reuniu na cidade de Penedo para discutir o patrimônio cultural e natural do baixo São Francisco, o que desencadeou na formulação da “Declaração sobre a Importância da Preservação da Paisagem Cultural e Natural do Baixo São Francisco, com validação coletiva para o requerimento da chancela de Paisagem Cultural” (MONGELLI, 2015, p.280). A partir de então, se iniciaram os trabalhos, em 2013, para a elaboração dos dossiês de reconhecimento dessas paisagens que configuram a dinâmica sociocultural do “velho Chico”: a “Paisagem Cultural da Foz do rio São Francisco” e a “Paisagem Cultural do Alto São Francisco”. Em grande parte dos dossiês de Paisagem Cultural do IPHAN fora utilizado o Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG) no intuito não apenas de inventariar ou levantar e classificar as referências culturais dessas paisagens, como também de construir coletivamente um plano de gestão/salvaguarda patrimonial. Nesse sentido, a paisagem é investigada sobre um viés holístico, ao qual cabe considerar tanto os aspectos culturais, quanto os naturais, sociais, econômicos, políticos, territoriais e históricos. Assim, como ressalta Mongelli (2015, p.294-295), cabe ao plano de gestão a identificação de “cada porção do território, quais seus principais atributos, os fatores de risco, as potencialidades, pressões e demandas, culminando em diretrizes de planejamento estratégico”. Quando analisamos esses processos de reconhecimento das Paisagens Culturais Brasileiras e a eles associamos as novas formas de se compreender e de se relacionar com o patrimônio que vem se desenvolvendo em nosso país, podemos dizer que estamos passando por uma mudança significativa no “paradigma patrimonial”. As pessoas têm, cada vez mais, se apropriado de seus bens culturais, reconhecendo-os como parte de sua identidade cultural. E a globalização e o movimento de mundialização das culturas tem propiciado, ao contrário do que se pensava anteriormente, um retorno cada vez maior dos “cidadãos mundiais”, para 127 suas raízes, suas origens históricas, aos verdadeiros sentidos de nossa memória coletiva. E é no intuito de discorrer sobre essas transformações que abordaremos a seguir o emblemático caso da Paisagem Cultural do Vale do Ribeira, onde se observa uma participação, cada vez mais ativa, da sociedade civil e comunidades tradicionais em projetos socioculturais e ambientais desse recorte regional. 3.3. A Paisagem Cultural do Vale do Ribeira O Vale do Ribeira corresponde a uma porção do território nacional com características peculiares, oriundas de um conjunto de relações que diferentes grupos sociais estabeleceram (e estabelecem) com o seu meio natural. Historicamente, essa região vivenciou um processo de formação social e territorial que reflete não apenas seu desenvolvimento regional, como também a própria estrutura econômica, cultural e social que se consolidou no território brasileiro. Essa paisagem cultural, em suas distintas temporalidades e espacialidades, testemunha na interação de suas materialidades e imaterialidades, momentos de grande relevância para a construção do patrimônio histórico cultural brasileiro. No intuito de compreender a constituição desse patrimônio, a paisagem precisa ser compreendida como uma herança atribuída tanto aos processos naturais milenares, quanto ao trabalho humano que produziu diversas formas de apropriação social da natureza, consolidando, dessa forma, “um patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunidades” (AB’SÁBER, 2007, p.9). Assim, ainda na perspectiva de Ab Saber (2007), essa paisagem-herança se configura a partir da interação entre as temporalidades na natureza e as temporalidades sociais, e a sua caracterização deve buscar “compreender de que forma os momentos do mundo a memória dos processos sociais se fixaram no espaço, sob a forma de marcas ou valores simbólicos” (IPHAN, 2009b, p.73). Na perspectiva de desenvolver o dossiê de paisagem cultural do Vale do Ribeira a equipe técnica buscou identificar assim “as relações estabelecidas, nos vários momentos históricos, entre as comunidades locais e a natureza”, considerando em cada tempo a produção dos objetos materiais (cidades, edificações, campos de cultivo) e as relações sociais e da vida imaterial (interações de sociabilidade, festividades, lendas, tradições, crenças, elementos simbólicos, memória coletiva, etc.) aí desenvolvida (IPHAN, 2009b). A partir da contextualização histórica do Vale do Ribeira foram identificados seis momentos da paisagem: a população canoeira (sambaquis); a mineração (XVII-XIX) com as 128 incursões para o sertão, seguindo o rio Ribeira de Iguape, em busca do ouro de aluvião; as lavouras de arroz (XX); as colônias japonesas (XIX); a estagnação econômica (em 1950) e a consequente conservação da biodiversidade em decorrência do abandono das áreas de plantio nessa região, onde não existiam condições ambientais favoráveis ao cultivo de café (produção em alta no período em questão). As primeiras formas de ocupação na paisagem do Ribeira possuem grande referência na cultura originária dos sambaquis costeiros (localizados nas baixadas e no litoral como canoeiros, caçadores e coletores de moluscos) e fluviais (concentrados principalmente no médio curso do rio dedicando-se, predominantemente, à caça de pequeno e médio porte). Grande parte da população da região ainda carrega importantes contribuições da tradição indígena na obtenção e preparo dos alimentos. O segundo momento de ocupação refere-se ao processo de povoamento europeu (iniciado no século XVI) a partir das boas condições portuárias rumo aos sertões, com diversas expedições em busca do ouro de aluvião. As longas expedições feitas ora pelo rio (com canoas de um tronco só), ora pelas trilhas (com as tropas de muares) foram propiciando a formação de pequenos aglomerados, como pontos de apoio às tropas, para obtenção de alimentos e pouso para os viajantes. Alguns elementos desses momentos/ movimentos ainda podem ser encontrados nas paisagens atuais, como na Casa de Fundição no município de Iguape e na região de Ivaporunduva, onde foram encontrados, na época, os maiores depósitos de ouro de aluvião do estado de São Paulo. A partir da descoberta do ouro nas “Minas Gerais”, a região passou por um período de estagnação econômica e de forte emigração da população para as terras mineiras, a qual diminuiu apenas no século XX quando foram descobertas minas de chumbo e prata na região de Iporanga. Muitas dessas usinas forneceram, inclusive, chumbo para os armamentos na Segunda Guerra Mundial, além de - vale ressaltar, causar grandes impactos ao meio ambiente e aos trabalhadores por contaminação. Atualmente, na região da Usina de Apiaí encontra-se um “calabouço”, que representa um importante sítio arqueológico, onde são encontrados grilhões, algemas e correntes enterradas, que indicam a presença aí de uma prisão de escravos no século XVIII. O cultivo de arroz que se instalara em algumas regiões do Brasil, desde meados do século XVIII, tais como Rio de Janeiro, Maranhão e Grão Pará, chegou às terras do Ribeira, pela primeira vez, a partir de 1800. O desenvolvimento dessa economia, para exportação, gerou a necessidade de investimento em transportes mais modernos e eficientes, propiciando, a partir da abertura de um canal artificial, a inserção dos primeiros barcos à 129 vapor na região, os quais, todavia, se depararam com as dificuldades de navegação nos pequenos trechos do rio. E com os impactos do assoreamento do porto, em decorrência das interferências ao longo do rio, grandes embarcações já não conseguiam chegar à região, o que contribuiu, juntamente com o avanço da cafeicultura, para o declínio da rizicultura no Vale do Ribeira. No final do século XIX a produção de café já tomava grande parte das terras paulistas, mas a região do Ribeira não se apresentava favorável ao desenvolvimento dessa cultura, que demanda terras férteis, fartas e desocupadas, além de um clima quente. Nesse período ocorre, então, certo esvaziamento da região, que se transforma, a partir de medidas governamentais, em um verdadeiro “laboratório de experiências de colonização”, uma vez que contava com alguns portos de expressão, grandes extensões de terras devolutas e propriedades consideravelmente desvalorizadas. E assim, a partir de iniciativas públicas e privadas, o governo imperial instalou na região uma série de colônias com imigrantes italianos, alemães, poloneses, austríacos e japoneses (estes com maior contingente). Todavia, uma série de fatores como o isolamento geográfico, a dificuldade de circulação e de acesso aos mercados, a heterogeneidade dos grupos (cujas diferenças culturais dificultavam a formação de comunidades) e os solos arenosos (que rapidamente se esgotaram sem o uso da adubação) decretaram o fracasso do projeto. No início do século XX é que o governo paulista, juntamente com uma empresa japonesa, passa a promover a imigração desses grupos, que já se instalavam no Vale do Ribeira como pequenos proprietários. Idealizando o retorno financeiro do cultivo de arroz nas áreas de várzea, próximas ao litoral, a empresa loteou, introduziu as colônias, prestou assistência técnica nos campos de experiência, construiu escolas, postos de saúde, igrejas, estradas vicinais e toda uma infraestrutura que propiciava a manutenção desses grupos na região. Em 1939, além do arroz, já existiam em torno de 42 fábricas de chás verde e preto no Ribeira, que atendiam desde o mercado local ao mercado internacional (principalmente no contexto da segunda guerra mundial). Desse modo, As iniciativas de colonização estrangeira na região do Vale do Ribeira deixaram inúmeras marcas e criaram uma paisagem típica que mistura elementos culturais tradicionais com os esforços de adaptação ao quadro local. Seja na arquitetura das habitações de antigos colonos, nas suas fábricas e armazéns que se encontram dispersos pela área rural, ou nos campos de cultivo, principalmente do chá e junco, nas celebrações como o Tooro Nagashi, e, ainda, no movimento das ruas, no rosto de seus moradores e no cotidiano das cidades (IPHAN, 2009b, p.63). 130 O quinto momento da paisagem cultural do Vale do Ribeira é marcado pela crise da monocultura do arroz, do chá e pelo fim da política de colonização (1950), configurando um forte período de estagnação, no qual, assim como no Vale do Jequitinhonha, a região ficou estigmatizada como um “vale da miséria”. Todavia, ele não estava abandonado; pois existia aí uma grande diversidade de pequenos agricultores e comunidades tradicionais que viviam entremeadas às grandes reservas de Mata Atlântica que resistiram na região. No entanto, a frágil condição frente à economia de um estado que se firmava como a locomotiva nacional, fez com que determinados modos de vida, resultado de relações históricas entre grupos sociais e natureza, pudessem se manter e se reproduzir. Assim como as populações de origem escrava que constituíram os quilombos nas antigas áreas de mineração, os agricultores familiares, dispersos em uma extensa área rural e os caiçaras no litoral, formam um conjunto da população, que apesar do final de um período de riqueza material, permaneceram na região desenvolvendo suas atividades tradicionais, que são produto de uma relação secular com a natureza e lhes permitiram um profundo conhecimento dos ciclos e das dinâmicas naturais (IPHAN, 2009b, p.68). Em decorrência dessa relação harmônica das comunidades com o meio ambiente preservado é que se consolida o sexto momento da paisagem do Vale do Ribeira – o da Conservação da Biodiversidade, quando as florestas ainda se encontram preservadas e protegidas pela legislação ambiental, embora, em algumas situações, acabe incidindo negativamente nos usos, até então “sustentáveis”, das comunidades tradicionais que vivem na região. A importância dessas unidades de conservação é tão expressiva, que as mesmas foram, inclusive, reconhecidas pela UNESCO como Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Representam ainda um significativo banco genético, reserva de água doce e de recursos pesqueiros e lugares de culturas múltiplas e diversas que testemunham os diferentes momentos históricos vivenciados pela paisagem e cujo reconhecimento faz-se necessário para a própria compreensão e planejamento do futuro. Todavia, as comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras que vivem na região lidam com conflitos ambientais e com a inexistência do título das terras, o que propicia a ocorrência de conflitos fundiárias e/ou imobiliários. Frente a essa riqueza e diversidade do patrimônio cultural da região, representadas por diferentes categorias de bens edificados; áreas naturais protegidas; sítios arqueológicos e manifestações de cultural imaterial, e ao reconhecimento da necessidade de uma visão de conjunto que integrasse todos esses elementos é que se consolidou a proposição da chancela de paisagem cultural do Vale do Ribeira. Para tal, fazendo-se necessário então: reconhecer a diversidade cultural da região; atribuir valor ao patrimônio cultural local; fomentar ações de salvaguarda e publicização do conhecimento produzido; fomentar o desenvolvimento social e 131 econômico e proporcionar melhorias nas condições socioambientais e socioeconômicas da região (IPHAN, 2009b). A construção do dossiê para a recomendação da chancela proporcionou, assim, o reconhecimento, por parte da população local e regional, de um patrimônio que não se encontrava ainda contemplado por políticas federais, nem por uma gestão compartilhada, em rede, que possibilitasse a compreensão de sua complexidade e peculiaridade regionais (e que lhe conferem uma unidade orgânica, oriunda de diferentes momentos históricos que se cristalizaram no espaço e, ao mesmo tempo, conferem dinamicidade a essa cultura regional). Nesse processo do reconhecimento da relevância histórica, e da diversidade de processos incidentes nesse amplo recorte regional, os técnicos do IPHAN buscaram delimitar um “fio condutor” que interligasse toda essa diversidade cultural, que foi identificado no próprio Rio Ribeira de Iguape; pois, como elemento estrutural na construção da história e identidade regional, o rio representa a trajetória de ocupação do território, sendo ele aglutinador de cidades, via de comunicação, fonte de recursos para economia regional e “elemento entorno do qual se funda a memória coletiva regional” (IPHAN, 2009b, p.13). E desse modo, a partir do seu papel preponderante no processo de povoamento do Vale, como um elemento geográfico articulador, que confere “unidade e identidade regional ao conjunto dos vários municípios”, o rio se apresenta como um “corredor cultural onde transitam e intercambiaram-se mercadorias, objetos e valores materiais, mas também, modos de vida, tradições, técnicas, conhecimento e informações”, ou seja, trata-se de “um corredor que conectou [e ainda conecta] fluxos imateriais e materiais indispensáveis à reprodução social” (IPHAN, 2009b, p.29). Nesse contexto, no intuito de compreender os elementos que configuram essas paisagens e como eles se articulam formando uma unidade orgânica, a partir dos processos históricos e naturais, os técnicos do IPHAN identificaram algumas partes essenciais, ou subunidades, representativas dessa unidade, mas “que não se explicam [apenas] em si mesmas, mas nas suas conexões com a totalidade” (IPHAN, 2009b, p.74). Desse modo, é que as paisagens culturais do Vale do Ribeira foram classificadas em “Terras Altas do Ribeira”, “Várzea do Ribeira” e “Lagamar”, seguindo, principalmente, os compartimentos geomorfológicos da região, associados ainda aos aspectos ambientais, sociais, históricos e culturais (como podemos visualizar na figura 1). 132 Figura 1: Mapa dos compartimentos geomorfológicos do Vale do Ribeira FONTE: (IPHAN, 2009b, p.119) As Terras Altas do Ribeira correspondem ao planalto atlântico (de rochas antigas, do escudo pré-cambriano e do embasamento cristalino), que se vinculam ao passado da mineração na região (ouro, prata e chumbo). Nessas paisagens são encontradas hoje ruínas de algumas usinas de extração de minerais, vilas de engenheiros e diversas galerias abertas em morros. A formação geológica, com faixas de rochas calcárias, proporcionou ainda a formação de um relevo cárstico com vales profundos, dolinas, cavernas, sumidouros e ressurgências, o que viabilizou a constituição de parques estaduais, sítios propícios para pesquisas espeleológicas e para o ecoturismo de base comunitária, gerando renda para a população local. Outra característica dessa subunidade é a presença de bairros rurais e territórios quilombolas, cujos assentamentos acompanham predominantemente os cursos d’água e base socioeconômica se estrutura, principalmente, sobre a agricultura de subsistência. A formação dos quilombos nessa região, em muitos casos nas proximidades das antigas áreas de garimpo, está relacionada a diferentes estratégias, tais como: refúgios nas matas, ocupação de terras abandonadas pelos senhores no declínio da exploração do ouro, concessão de terras por seus senhores e, até mesmo, sua aquisição pelos ex-escravos. Segundo dados do ITESP – Instituto Terras Altas do Ribeira Várzea do Ribeira Lagamar 133 de Terras do Estado de São Paulo, em 2015 a região contava com 32 comunidades reconhecidas pela Fundação Palmares, das quais apenas 6, foram tituladas pelo INCRA (Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Neste mesmo período constavam ainda: 3 comunidades em fase de reconhecimento cujos estudos estão finalizados, mas que aguardam a definição de área; 1 comunidade em fase de finalização dos estudos; 7 comunidades com os estudos antropológicos iniciados; 2 comunidades nas quais o Ministério Público está elaborando o Relatório Técnico-Científico (RTC); 10 comunidades apontadas para o reconhecimento e 3 que solicitaram o reconhecimento. Ressalta-se que de uma tradição de 300 anos de ocupação no Vale do Ribeira, essas quase 60 comunidades, localizadas principalmente entre Iporanga e Eldorado, mantiveram suas relações sociais, laços históricos de parentesco, relações econômicas com pequenos núcleos urbanos regionais, contato direto com a natureza extraindo dela meios para sua subsistência e reprodução social (o que lhes proporcionou um acúmulo de conhecimentos e práticas tradicionais de profunda relação com os ecossistemas da região), além de novas formas de acesso e uso dos recursos naturais incorporadas, muitas vezes, mais incentivadas pelos incentivos estatais (entre as décadas de 1950 e 1990) do que geradas pelas demandas da própria comunidade (ISA, 2008). Todavia, o reconhecimento dessa territorialidade quilombola nem sempre fora levado em consideração. Na década de 1970, o governo do estado realizou uma tentativa de regularização fundiária das posses rurais, cuja demarcação das terras e distribuição dos títulos desconsiderava a existência das terras comunais dos quilombos, que foram, então, inclusive, loteadas e distribuídas para pessoas de fora da comunidade. As pressões contra esses grupos continuaram ainda na década seguinte, quando a melhoria das estradas instigou o interesse de latifundiários e empresários pelas terras do Ribeira. Mas com a mobilização ascendente dos movimentos sociais e a definição dos direitos quilombolas pela Constituição federal, há a criação de uma série de políticas de desenvolvimento rural que apoiam as organizações e, inclusive, sanciona a criação de associações comunitárias para viabilizar o direito à posse das terras. E é nesse contexto (entre 1985-1990) que surge a Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE27), que apoiada pela Comissão da 27 Entidade jurídica, sem fins lucrativos, que atua no apoio às comunidades que se autoidentificam como quilombolas, auxiliando na recuperação de sua história e valores culturais, no encaminhamento de documentação corresponde aos órgãos públicos solicitando o reconhecimento e a titulação coletiva de suas terras, formando associações comunitárias que serão responsáveis pela gestão do território quilombola, lutando por políticas públicas e programas que propiciem a melhoria da qualidade de vida de suas populações (SILVA; BORGES, 2015). 134 Pastoral da Terra (CPT), passa a atuar, principalmente, Na organização etnopolítica e social das comunidades quilombolas do Vale (ISA, 2008). É interessante ressaltar que o processo de redemocratização no Brasil foi marcado fortemente pela luta e discussão dos povos e comunidades tradicionais, apoiados, muitas vezes, por atores da sociedade civil, acadêmicos e, até mesmo, políticos sensibilizados pela causa. Contudo, foi no âmbito das comunidades, por meio da politização de seus membros, que indígenas, quilombolas e diversos outros grupos conseguiram se organizar e efetivamente lutar pela manutenção de seus direitos, os quais, mesmo garantidos pela lei, foram em diversos momentos da história atacados por interesses privados (como os dos construtores de barragens, os interessados no avanço da fronteira agrícola, e até mesmo legislaturas ambientais que desconsideravam a tradição e o modo de vida dessas comunidades, excluindo- as muitas vezes de seus ambientes naturais e – os quais em grande parte, estruturam, inclusive, a cosmovisão desses grupos). Faz-se necessário ressaltar que um dos aspectos mais importantes e fundamentais para a sobrevivência dessas comunidades são suas redes de sociabilidade, as quais por meio de mutirões, festas religiosas (São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, etc.), práticas agrícolas (técnicas de cultivo, pilões, rodas de ralar, fornos de barro, tachos de cobre), expressões culturais (traçados de cipó, taquara, palha de milho e folha de bananeira) e culinárias (paçoca de amendoim, beiju de farinha, bolo de roda, etc.) estruturam um elo de união pela tradição, que colocando em diálogo passado, presente e futuro configuram as alteridades locais como designativos de uma identidade cultural (IPHAN, 2009b). Frente a esta diversidade sociocultural expressiva das Terras Altas do Ribeira, foram construídos quatro eixos principais de identificação das práticas, bens e saberes das populações aí domiciliadas: 1) modos de vida; 2) trabalho (ciclos econômicos); 3) fé e 4) brinquedo (descanso do trabalho). No primeiro encontram-se os “jeitos de ser e sentir baseados nessas identidades esmaecidas, consolidadas ou em transformação” – mineradores, quilombolas, comunidades rurais e núcleos urbanos. O segundo eixo está relacionado às “formas de criação, beneficiamento, distribuição, venda, fabricação e saberes”, tais como: a cultura da mineração, da produção de arroz, da produção de banana, da navegação, da produção familiar, da produção de cerâmicas, do trançado em fibras naturais e das formas de exploração e usos das cavernas e recursos naturais. Já no eixo da fé destacam-se duas manifestações extremamente importantes: a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e a Festa de Nossa Senhora do Livramento, sendo esta última, inclusive, um exemplo 135 clarividente da interligação entre os quatro eixos por meio do rio, pois é neste momento que se configura o trabalho em conjunto dos moradores, a montagem das embarcações, a presença das amarras de cipó e a preparação coletiva dos alimentos. No quarto eixo, concernente às formas de lazer, estão: os saberes das violas, das danças, das festas e do construir e tocar diversos instrumentos (violas, caixas, etc.) - (IPHAN, 2009b). Todas essas informações foram então sistematizadas a partir das características naturais da paisagem, a partir das quais foram associadas tais formas de apropriação social do espaço e os bens culturais a eles associados, propiciando, assim, uma compreensão integrada das unidades destacadas. A segunda subunidade é a Várzea do Ribeira, na qual a bacia sedimentar propicia a formação de uma extensa área de planície, com a presença de colinas suaves que separam os vales de fundo chato dos ribeirões entremeadas pelos morros testemunhos dos afloramentos cristalinos (apropriados como referenciais da paisagem), e em que a dinâmica natural dos meandros abandonados condiciona a formação de lagoas (que são verdadeiros berçários da biodiversidade) e de margens fluviais férteis (utilizadas para o plantio de arroz). A ocupação tradicional desse trecho é primordialmente oriunda das imigrações japonesas do século XX, observando-se aí campos e residências típicos da cultura japonesa (de casas suspensas, madeiramento encaixado, vedações de pau-a-pique com palha de arroz, etc.), que complementam o sentido estético e vivido dessa paisagem. Além das edificações típicas das casas, fábricas de chá e igrejas essa paisagem se singulariza mais ainda em decorrência do patrimônio imaterial relativo às festividades e celebrações da cultura japonesa, tais como as Festas de Odori e do Sushi, os toques dos tambores de Taikô, a celebração do Tooro Nagashi (com o lançamento de lanternas na água) e os modos de fazer o chá, o junco, as técnicas construtivas, etc. (IPHAN, 2009b). E por fim o complexo estuarino lagunar – Lagamar: misto de terras e águas doces do rio Ribeira de Iguape e salgadas do Mar Pequeno e do Oceano Atlântico. É composto de mangues, restingas, ilhas separadas por lagunas e morros isolados. Este “sertão do litoral”, que por muito tempo foi colocado à margem dos processos de valorização econômica, configura um dos mais produtivos ecossistemas costeiros do planeta (sendo, inclusive, incluído nas Reservas de Mata Atlântica do Brasil do Sudeste; e, desde 1999, considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO). O patrimônio cultural dessa região concentra-se, principalmente, nos municípios de Cananéia e Iguape, onde são encontradas importantes edificações históricas (como casas e sobrados construídos de pedra e cal), estruturas 136 portuárias (como estaleiros para construção de embarcações), a navegação de cabotagem28, uma arqueologia referente aos sítios dos sambaquis e o próprio modo de vida caiçara. É sugestivo notar que, apesar das limitações impostas pelas legislações ambientais, a cultura caiçara permanece vívida nas pequenas vilas de pescadores ao longo de toda a planície, onde a roça, o extrativismo e a pesca estruturam a vida das populações. A cultura caiçara é representada pelas casas de madeira cobertas com palha de guaricana29; quintais com pomares; canoas de um tronco só; casa de farinha (com ralador, prensa e forno de lenha); as festas dos santos; os bailes de fandango30 com violas e rabecas e tudo mais que configura a forma como os caiçaras concebem e se apropriam da terra, do mar e dos rios. Assim como as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, os caiçaras também têm desenvolvido um processo recente de revalorização cultural, no qual, por meio da organização dos jovens, estão sendo resgatados saberes importantes, como, por exemplo, os bailes de fandango – retomados a partir do projeto “Museu Vivo do Fandango”. Este projeto, implementado desde 2005, vem envolvendo a participação de cerca de 300 fandangueiros, cujo desdobramento foi a “constituição do museu comunitário a céu aberto, sob a forma de um circuito de visitação e troca de experiências em cinco municípios da região”, o qual repercutiu ainda, no registro desse bem enquanto Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro em 2013 (IPHAN, 2014b, p.1). Além disso, a cultura caiçara do Ribeira conta ainda com um Ponto de Cultura Caiçara e a publicação de duas importantes pesquisas: “Saberes Caiçaras: a cultura caiçara na história de Cananéia” de Kleber Rocha Chiquinho e a “Enciclopédia Caiçara” de Antônio Carlos Diegues (IPHAN, 2009b). Uma iniciativa relevante a ser registrada diz respeito à concomitante elaboração do “Inventário das Referências Culturais dos Guarani M’byá”31 em todo território nacional, embora no dossiê do Vale do Ribeira não tenha havido, surpreendentemente, um 28 Navegações de curtas distâncias, realizadas principalmente entre os portos da costa. 29 Palmeira de pequeno porte encontra ao longo da costa brasileira, abundante em planícies litorâneas, especialmente em ambientes brejosos (SILVA, 2008). 30 “O Fandango Caiçara é uma expressão musical-coreográfica-poética e festiva, cuja área de ocorrência abrange o litoral sul do Estado de São Paulo e o litoral norte do Estado do Paraná. Essa forma de expressão possui uma estrutura bastante complexa e se define em um conjunto de práticas que perpassam o trabalho, o divertimento, a religiosidade, a música e a dança, prestígios e rivalidades, saberes e fazeres. O Fandango Caiçara se classifica em batido e bailado ou valsado, cujas diferenças se definem pelos instrumentos utilizados, pela estrutura musical, pelos versos e toques” (IPHAN, 2014a, p.1). 31 “O território tradicional Guarani-Mbyá engloba a região de Misiones na Argentina, o leste paraguaio, o norte do Uruguai, os estados do sul do Brasil e o litoral, desde o Espírito Santo até o Rio Grande do Sul. Incluindo os que vivem na Bolívia, os Guarani somam pelo menos 225 mil pessoas. Divididos em três subgrupos no Brasil – Mbyá, Ñandeva e Kaiowá – formam uma das maiores populações indígenas do país, com mais de 53 mil pessoas” (HERRERO, 2016, p.8). 137 aprofundamento sobre essas populações indígenas aí domiciliadas. Postulamos, contudo, que elas são parte substancial dessa paisagem cultural. E que, assim como os quilombolas do Ribeira, vem passando por um processo importantíssimo de resgate e luta pelos seus territórios tradicionais. Tais comunidades vivem nas proximidades, ou no interior, das atuais unidades de conservação, totalizando em torno de 400 indígenas, que em decorrência da sobreposição de seus territórios às áreas de preservação e à falta de regularização fundiária na região, apresentam intensa mobilidade de aldeamentos. Embora as 15 aldeias das etnias Guarani-Mbyá e Nandeva do Litoral (hoje autoidentificados como Tupi-Guarani) possuírem atualmente apenas nove, de suas onze Terras Indígenas (TI), identificadas e demarcadas pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), (faltando apenas a TI de Pindoty-Araça Mirim, localizadas no município de Pariquera-Açu, cujos estudos para identificação e demarcação já foram aprovados, e que se encontra em fase de homologação do processo pelo órgão; e ainda a regularização fundiária da Aldeia de Guarani-Ñandeva, que ainda não possui seus estudos iniciados). Tabela 4: Situação das Terras Indígenas no Vale do Ribeira TERRA INDÍGENA (TI) ALDEIAS MUNICÍPIO SITUAÇÃO (FUNAI) I. Pintody-Araçá Mirim 1) Pindoty 2) Araçá-Mirim Pariquera- Açu Estudos de identificação e delimitação aprovados em janeiro de 2017. Aguardando homologação do processo. II. Ka’aguy Hovy 3) Itapuã 4) Itape 5) Jejyty Iguape Demarcada em 2017. III. Guaviraty 6) Guaviraty Iguape Demarcada em 2017. IV. Ambá Porã 7) Ambá Porã Miracatu Demarcada em 2016. V. Djaiko-aty 8) Djaiko-aty Miracatu Demarcada em 2016. VI. Ka’aguy Mirim 9) Uruity Miracatu Demarcada em 2016. VII. Pakurity 10) Pakurity 11) Takuarity Cananéia Demarcada em 2016. VIII. Tapyi ou Rio Branquinho 12) Tapyi Cananéia Demarcada em 2017. IX. Peguaoty 13) Peguaoty Sete Barras Demarcada em 2016. X. Itapu Mirim 14) Aldeia de Guarani- Ñandeva Sete Barras, Registro e Eldorado Sem estudos. XI. Takuari 15) Takuari Eldorado Demarcada – comprada pelo departamento de estradas como medida compensatória pela construção do Rodoanel. FONTE: ISA (2019). 138 Vale ressaltar, contudo, que além da abordagem teórica e metodológica inovadora no campo do patrimônio adotada, o dossiê da paisagem cultural do Vale do Ribeira explicita, ainda, toda a trajetória técnica para a promoção desses bens culturais por meio da realização de oficinas, encontros e reuniões com o intuito, inclusive, de selar o pacto de gestão desta forma de proteção do patrimônio entre o poder público e sociedade. E para tal, além de parceria com universidades e pesquisadores influentes no recorte em tela, a construção do plano de gestão contou ainda com o apoio da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) – Instituto Socioambiental/ ISA32, que aliás, desde 2008 já colocava em pauta e desenvolvia, junto às comunidades locais, a Agenda Socioambiental Quilombola do Vale do Ribeira33. E nota-se que tal parceria materializou-se no Planejamento Territorial Participativo (2010 e 2012) e no Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira (2013). A Agenda Socioambiental Quilombola do Vale do Ribeira foi, aliás, construída juntamente com a comunidade a partir de oficinas de capacitação dos agentes locais sobre os princípios da Agenda 21, elaboração e aplicação de entrevistas semi-estruturadas, mapeamento do uso e ocupação do solo (utilizando princípios básicos de cartografia e GPS). O segundo passo foi a construção do Diagnóstico Socioambiental Participativo junto à comunidade, o qual, ao final, foi apresentado e discutido com seus integrantes. Com as informações sistematizadas, e partir das demandas da comunidade, foram elaboradas três oficinas temáticas sobre: saneamento ambiental (manejo do lixo/ agrotóxicos), manejo dos recursos naturais, alternativas de geração de renda (manejo dos recursos florestais, confecção de artesanato quilombola e cultura material e imaterial) e legislação ambiental. O passo seguinte foi a realização de seminários para consolidação da agenda, nos quais as demandas foram divididas em quatro eixos: I) Cultura e Lazer; II) Atividades Produtivas (agrícolas e não agrícolas); III) Educação, saúde, saneamento, infraestrutura, moradia, comunicação e transporte e IV) Meio Ambiente e questão fundiária. Em cada eixo a comunidade deveria discutir a justificativa da temática, o grau de prioridade para solução do problema por comunidade, a ação necessária para solução e o calendário (de curto, médio e longo prazo) para realizar as ações apontadas nas discussões. Nesse contexto, a construção da 32 O Instituto Socioambiental (ISA) é uma organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, para propor soluções de forma integrada a questões sociais e ambientais com foco central na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. 33 As ações da “Agenda Social Quilombola” são definidas pelo decreto 6.261 de 20 de novembro de 2007, no qual o desenvolvimento, gestão e acompanhamento dos projetos são desenvolvidos no âmbito do Programa Brasil Quilombola a partir de quatro eixos de articulação: I. acesso à terra; II. Infraestrutura e qualidade de vida; III. inclusão produtiva e desenvolvimento local e IV. direitos e cidadania (BRASIL, 2007c). 139 agenda proporcionou: a mobilização social de 14 comunidades quilombolas; na formação e capacitação de agentes locais e futuras lideranças; um autoconhecimento mais profundo dos aspectos socioculturais e ambientais das comunidades; a formação de um “grupo de pesquisadores quilombolas”; a construção de mapas de uso e ocupação do solo e o conhecimento e percepção das comunidades sobre as populações tradicionais presentes na região e a sua importância para a preservação e conservação ambiental (ISA, 2008). Dando continuidade ao processo, foi desenvolvido também pelo ISA o “Planejamento Territorial Participativo” no intuito de buscar ações que atendessem as demandas apontadas na agenda socioambiental (ISA, 2013). Os debates realizados com as comunidades giraram em torno das seguintes questões: como pensar o futuro das roças (aspectos legal, cultural e ambiental); quais seriam as possibilidades de usos nas Áreas de Preservação Permanente (APPs); quais seriam os possíveis locais para reserva legal; como se amenizaria os impactos do afastamento dos jovens do território em busca da renda e trabalho e como se lidaria com a ocupação do território por terceiros. Amparados pelos suportes científicos e legais dos condutores do processo, as próprias comunidades, a partir do seu etnoconhecimento, da valorização dos seus saberes tradicionais e da participação ativa, foram encontrando respostas e ações possíveis para atuar junto às suas principais dificuldades (ISA, 2012a). Quando destacamos a importância desse processo, ressaltamos principalmente os efeitos que vêm proporcionando às comunidades quilombolas, que até então estavam à margem do processo de desenvolvimento econômico e social desse território. Pois, é relevante assinalar que, presentes principalmente na porção de Mata Atlântica do Vale (que atualmente representa em torno de 23% de todo esse bioma que ainda se encontra preservado no território nacional), essas comunidades, assim como os caiçaras e indígenas, representam a grande diversidade sociocultural do Ribeira (NASCIMENTO; SCIFONI, 2010). Todavia, grande parte de seus territórios encontram-se inseridos nos domínios territoriais de importantes unidades de conservação, o que gera conflitos fundiários de caráter institucional. Nesse contexto, a partir do planejamento territorial participativo, detectou-se a demanda de viabilização da manutenção de roças de manejo “sustentável” que estivessem incidindo em áreas de preservação ambiental. Tendo como pano de fundo, a área chancelada, conquistou- se, assim, (por meio da Resolução SMA-027 de 30 de março de 2010), a “autorização para supressão de vegetação nativa [...] para pequenos produtores rurais e populações tradicionais, 140 visando a agricultura sustentável nas áreas de regeneração inicial da Mata Atlântica” (SÃO PAULO, 2010, p.1). Compreendendo que todo esse processo ocorreu juntamente com o início dos trabalhos para o chancelamento da região como Paisagem Cultural Brasileira, os quais foram entremeados por diversas oficinas sobre patrimônio, cultura e turismo, o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira, consolidado em 2013, representou muito mais do que um simples levantamento dos bens culturais dessas comunidades. Ele materializou-se, na verdade, como um instrumento de reconhecimento, luta e de empoderamento dessas comunidades, as quais estão cada vez mais construindo um processo de emancipação política e social, na medida em que “seus objetivos e ideias encontram tradução em outras comunidades, ou seja, tais objetivos se tornam gerais” (ISA, 2012a, p.9). Esse panorama do patrimônio cultural quilombola, no qual são ressaltadas as celebrações, formas de expressão, ofícios e modos de fazer e lugares e edificações (conforme a classificação dos livros de registro do IPHAN), assim, instrumentalizou ainda mais, as comunidades para, inclusive, desenvolver outras atividades de complementação de renda como, por exemplo, a criação do “Circuito Quilombola do Vale do Ribeira”. As discussões sobre o turismo nas comunidades já vinham sendo, aliás, discutidas desde 2009, por meio de uma parceria34 estabelecida entre entidades públicas, organizações não governamentais e comunidades quilombolas para a elaboração de um inventário turístico, construído a partir de reuniões de planejamento participativo a fim de montar os circuitos, levantar potenciais, traçar mapas e discutir os principais problemas aí envolvidos. E se observa que, em 2011, foi estruturado pelas comunidades um Plano de Gestão Integrada do Turismo de Base Comunitária, com ações a curto, médio e longo prazo (como podem ser visualizadas na Tabela 5). Tabela 5: Plano de Gestão Integrada do Turismo de Base Comunitária Curto Prazo (2011-2012) Médio Prazo (2011-2014) Longo Prazo (2011-2016)  Planejamento Territorial, enquadramento legal e sistema de gestão;  Plano de manejo da APA dos Quilombos do Médio Ribeira (diretrizes de uso  Centro de visitantes de Ivaporunduva (empreendimento turístico recreativo, hospedagem, alimentação, recreação e entretenimento);  Aprimoramento da qualidade da experiência turística (profissionalização dos serviços e instrumentos turísticos);  Desenvolvimento de 34 Este projeto foi financiado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pela Secretaria do Estado de Agricultura Familiar; com apoio logístico do ISA, Eaacon, associações dos moradores das comunidades quilombolas e prefeituras locais; além da colaboração dos Ministérios do Turismo, Meio Ambiente, Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SPPIR), Fundação Palmares, Secretarias Estaduais do Meio Ambiente (Projeto Ecoturismo Mata Atlântica), Esporte, Turismo e do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP). 141 sustentável das zonas de amortecimento das UCs e zoneamento territorial);  Organização, regularização e consolidação de atividades que geram produtos e serviços de interesse para o circuito;  Conselhos Gestores de Turismo;  Conselhos gestores para fomentar o circuito.  Logomarca, produtos e serviços;  Expandir atividades turísticas recreativas  Fomentar novas oportunidades de trabalho para complementação de renda. materiais promocionais;  Melhorar as condições de acesso e circulação (rodovias, estradas vicinais e sinalização);  Ampliar e diversificar condições e conceitos de hospedagem;  Melhorar a qualidade da informação para o visitante;  Desenvolver produtos e lembrancinhas, bem como, embalagens alternativas. FONTE: http://www.circuitoquilombola.org.br/node/64 E podemos observar que muitas dessas ações estavam ocorrendo conjuntamente com os projetos desenvolvidos pelo ISA e pelo IPHAN, já mencionados anteriormente. Após o lançamento do circuito em abril de 2012, a segunda etapa do projeto viabilizou a organização do I Encontro Nacional de Turismo Quilombola, realizado entre os dias 7 e 10 de junho de 2012 e, no qual ocorreram diversas oficinas de capacitação para as comunidades. Atualmente, podemos dizer que grande parte dessas ações já foi, ou estão sendo alcançadas. É sugestivo observar que as comunidades quilombolas do Ribeira exercem significativo protagonismo social, econômico e cultural no âmbito do circuito, que abrange sete territórios quilombolas e que, aliás, vinculam-se à Associação de Monitores Ambientais de Eldorado (AMAMEL) e filiam-se às Redes de Turismo Rural na Agricultura Familiar e à Rede Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário (Rede Turisol). O objetivo do Circuito Quilombola é proporcionar ao turista, além da vivência de uma experiência de turismo solidário, o contato com a cultura quilombola, em seu cotidiano, com seus conhecimentos tradicionais, belezas naturais do seu território e suas histórias de luta, resistência e conquistas (ISA, 2012b). Nesse sentido, são apresentados aos turistas, desde as riquezas naturais de seus territórios ancestrais até a tradicionalidade de seu modo de vida, danças, culinária, espacialidades festivas e religiosidade. Ressaltamos, dessa maneira, que os núcleos quilombolas do vale do Ribeira, têm garantido não apenas a sua sobrevivência econômica, como têm obtido sua própria reafirmação identitária, o que contribui diretamente para sua manutenção no território ancestral e preservação de suas práticas culturais. Visando a autogestão desse circuito foi, inclusive, criada uma plataforma online, na qual são disponibilizadas todas as informações sobre cada comunidade, assim como, contatos para agendamento de visitas e até uma navegação por imagem de satélite pela bacia hidrográfica do Ribeira de Iguape (figura 2). Dessa forma a própria comunidade fica responsável pela 142 divulgação e viabilização de suas atividades por meio dos agentes comunitários e do grupo gestor. Figura 2: Página de navegação em imagem de satélite pelos territórios do circuito quilombola. FONTE: http://www.circuitoquilombola.org.br/ Em 21 de março de 2016 (Dia Internacional do Combate à Discriminação Racial), o governador de São Paulo, assinou decreto que instituiu o Circuito Quilombola Paulista, para estimular o turismo agroecológico e cultural nos territórios quilombolas do Vale do Ribeira. E para dar continuidade aos projetos, roteiros e produtos já existentes, foi estabelecido então um convênio entre a Secretaria de Turismo e o Instituto de Terras de São Paulo (ITESP) que previa desde a divulgação, capacitação e comercialização do Circuito, a orientações de gestão administrativa e financeira, elaboração de sinalização turística, qualificação profissional, etc. (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2016). Os resultados desse incentivo do poder público já podem ser observados em propostas de excursões que vêm sendo realizadas pelo Serviço Social do Comércio do Estado de São Paulo (SESC- SP), como se explicita a seguir: Que tal ter uma experiência diferente? Este roteiro não promete apenas trilhas e cachoeiras, mas sim uma experiência de vida com novas sensações. Neste roteiro, será possível conhecer histórias de luta e resistência das comunidades quilombolas que contribuem para a preservação das riquezas culturais e naturais de sua região, além de reconhecer o patrimônio histórico-cultural desses locais através da memória de seus habitantes e, a partir dessa interação, experimentar novas sensações (SESC – SP, 2016, p.1). Outra dinâmica de articulação e mobilização desses grupos que merece destaque é a organização de feiras de sementes quilombolas que acontecem anualmente, desde 2008, na cidade de Eldorado, e que representa um ato de resgate e preservação da agrobiodiversidade 143 desse sistema tradicional associado a um riquíssimo banco genético de sementes crioulas. No início, a participação e credibilidade dessas atividades ainda eram muito incipientes; no entanto, atualmente participam da feira em torno de 13 comunidades representadas por volta de 200 quilombolas. As feiras são precedidas por um seminário no qual a questão dos territórios quilombolas e da manutenção da agrobiodiversidade e assistência técnica e rural são temas de grande importância, discutidos entre as comunidades e técnicos do ISA, EMATER, ITESP, etc. São realizados também, nestes encontros, oficinas de trocas de experiências entre as diversas comunidades quilombolas, relacionadas à produção de artesanatos, quitandas, etc. Em um segundo momento do VIII Seminário, realizado em 2015, houve uma roda de conversa sobre a relevância do Sistema Tradicional Agrícola Quilombola e do seu reconhecimento como Patrimônio Cultural Brasileiro, uma vez que, além da manutenção da agrobiodiversidade, ele representa todo um modo de viver, se alimentar e morar de um grupo etnicamente diferenciado. Outra questão levantada nesse debate foi a importância do cooperativismo no fortalecimento das comunidades, na promoção da integração social, no acesso aos mercados (com a diversificação dos produtos, qualidade, certificação e inovação nas formas de produção), além da necessidade de políticas de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) mais fortalecidas e da necessidade de adequar- se às exigências da legislação ambiental e sanitária (ISA, 2015). No ano de 2015 foram encontrados na feira mais de 81 etnovariedades de espécies como arroz, milho, feijão e mandioca, dentre outros produtos da roça. E frente a importância que esse projeto assumiu entre os quilombolas do Ribeira, na 8ª edição do evento, foi lançado o “Paiol de Sementes Quilombolas”, no qual a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (COOPERQUIVALE) possui um local adequado em sua sede para a catalogação e armazenamento do banco das sementes que estão sendo cada vez mais resgatadas pela mobilização das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. A importância dessas feiras pode ser observada nas falas dos próprios quilombolas da região (ISA, 2016, p.2-3): Sempre trocaram sementes entre as comunidades (arroz, milho, cana, mandioca) e também animais. Com as feiras começaram a lembrar dessas trocas que os antigos faziam. É uma maneira diferente, mas é uma forma de continuar o processo que os ancestrais faziam (Quilombo Morro Seco – Iguape). [...] O que precisa para ter o sistema protegido é o território, e enquanto os terceiros jogarem veneno nos territórios, a roça está ameaçada (Quilombo Pedro Cubas de Cima). 144 No desenvolvimento das discussões e oficinas de autoreconhecimento com as comunidades, outra prática retomada pelos grupos foi a dos mutirões, que além de resgatar as roças coletivas, representam um exemplo de vida, trabalho e educação, uma manifestação de união e da resistência cultural quilombola. A retomada dos mutirões [referia-se ao mutirão da colheita de arroz realizado em 2015] ajuda a envolver mais as comunidades. Temos orgulho de produzir e consumir alimentos orgânicos. O registro do sistema pode melhorar a autoestima e valorizar o ser quilombola (Quilombo de Ivaporunduva) (ISA, 2016, p.3). E é nesse sentido que entre 2014 e 2017 os quilombos do Ribeira elaboraram (junto ao ISA) um dossiê reivindicando o reconhecimento do “Sistema Agrícola Quilombola do Vale do Ribeira” como patrimônio cultural imaterial, uma vez que, como ressalta um quilombola de São Pedro, “o registro é mais uma ferramenta contra as ameaças aos direitos quilombolas” (ISA, 2016, p.2). O documento encaminhado ao IPHAN obteve o deferimento em 20 de setembro de 2018, o que representou um importante marco para a luta quilombola, como ressalta uma representante de um dos quilombos do território do Vale do Ribeira: O reconhecimento é um incentivo a mais para cobrar do governo a implantação de políticas públicas em nossos territórios. Ter mais uma garantia para a nossa agricultura quilombola. Os municípios também vão valorizar mais a nossa produção, quem sabe comprar para a merenda escolar. Para as comunidades, sabemos que uma conquista a mais da nossa luta (ISA, 2018, p.1). Esse sistema agrícola agroflorestal ou itinerante constitui uma forma de cultivar em ambiente florestal que surgiu de forma independente em todas as florestas tropicais do mundo ao longo da evolução humana (Américas, África e Ásia). Configura-se como um dos melhores sistemas de plantio, uma vez que os insumos necessários são provenientes dos próprios processos ecológicos das matas. Encontra-se restrito às populações tradicionais, que, a partir do seu etnoconhecimento, definem uma série de critérios e processos para a escolha do terreno, o momento de abrir a mata, a queimada e o plantio. E é justamente quanto ao corte e às queimadas que algumas normas legais acabam dificultando a manutenção dessas práticas. Embora diversos especialistas já comprovassem que o fogo não altera a primeira camada do solo, pois as temperaturas que ele alcança atingem apenas 16% da biomassa, não ameaçando a microbiota e, muito menos, o banco de sementes, importante para a regeneração inicial da floresta. Esse sistema cultural da roça, além de manter a diversidade de sementes, caracteriza ainda uma agricultura tradicional de subsistência, a presença da mão de obra familiar ou da organização dos mutirões, o calendário religioso (muitas vezes acompanhado pelo calendário agrícola) e um modo de fazer e de perambular pelas roças em que se aprende 145 e se ensina os mais novos “a fazer, fazendo”. E apesar de diversas disposições favoráveis nas legislações ambientais35 ao uso sustentável das florestas pelas populações tradicionais e pequenos produtores rurais das áreas em estágio médio de vegetação, a licença de uso é anual e demanda uma série de documentações e autorizações, que quando são liberadas, muitas vezes já não se adéquam mais com o período apropriado de uso da terra. Além disso, muitas resoluções inviabilizam a abertura de novas áreas de roças em estágios avançados da floresta, as quais são, contudo, indispensáveis para a manutenção do sistema de pousio e que se remetem a práticas que vem sendo realizadas por essas populações a mais de 300 anos. Será que o “impacto” às florestas nativas é causado realmente pelo desenvolvimento destas práticas tradicionais? Se for o caso, o que explicaria a preservação de extensas áreas de Mata Atlântica no entorno dessas comunidades? No intuito de fortalecer essa luta, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira lançaram em outubro de 2018 a campanha “#TáNaHoradaRoça”, a qual obteve mais 7,5mil assinaturas da sociedade civil, para pressionar o governo do estado de São Paulo a emitir as licenças para a abertura das áreas das roças no prazo adequado. O documento foi entregue ao governo do estado em dezembro de 2018 no intuito de que as licenças de 2019 possam ser entregues aos produtores em tempo hábil para garantir a segurança alimentar, autonomia e fortalecimento cultural das famílias quilombolas do Vale do Ribeira (ISA, 2018). Vale salientar que, esse protagonismo e busca pelo reconhecimento de seus direitos e do respeito às suas práticas culturais também vem acontecendo com as populações caiçaras, ribeirinhas e indígenas da região. No caso dos Guarani Mbyá, por exemplo, vem sendo construída também uma “Agenda Socioambiental Guarani”, na qual além do resgate e registro de uma série de tradições, foram, e ainda são, realizadas uma série de oficinas, cursos e seminários, tais como: capacitação sobre práticas alimentares; resgate e valorização dos saberes das mulheres guarani; feiras de sementes crioulas; formação para a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (PNGATI), dentre outros. Muitos projetos, inclusive, são realizados a partir da troca de experiências entre essas populações, como: o Seminário Sobre Unidades de Conservação e Populações Tradicionais; Seminário Plano da Mata Atlântica; “Defensorando” – um projeto de atendimento e formação da Defensoria 35 Desde 2006, a Lei 11.428 admitia a hipótese de supressão da vegetação secundária em estágio inicial de regeneração para prática da agricultura sustentável com pousio e rodízio de terras pelos pequenos agricultores e populações tradicionais. Condição esta também ratificada no SNUC (2000), na Resolução SMA-027 do Estado de São Paulo de 2010 e pela Lei Federal 12.651 de 2012 que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa. Todavia, as condições de concessão nem sempre consideram as temporalidades e formas de apropriação social desses espaços, estabelecendo uma série de condições inviáveis ou destoantes da manutenção desses sistemas agrícolas florestais. 146 Pública Estadual de Registro (SP); Projeto Consumo Solidário dos Territórios Rurais; Seminário Regional de Segurança Alimentar; Curso de Viveirismo e Sementes Florestais, dentre outros. Um dos projetos de intercambio cultural mais expressivos e significativos da região foi o curso de “Formação de Agentes Socioambientais de Educação Ambiental” na agricultura familiar e implementação de projetos comunitários de educação ambiental, desenvolvido pelo ISA, entre 2014 e 2015, o qual proporcionou a formação de 67 jovens indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, assentados e agricultores familiares, que durante 10 meses de curso desenvolveram 31 projetos e 5 campanhas de educação ambiental. A partir dessa interação, além da troca de conhecimentos tradicionais realizada entre eles, o projeto propiciou também a formação de futuros protagonistas e lideranças comunitárias instrumentalizadas para buscarem recursos, projetos e campanhas que viabilizem a melhoria da qualidade de vida de suas comunidades. Segundo Silva e Borges (2015, p.5-6), representantes do Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial (NAT), um “importante ponto de apoio para o fortalecimento e reconhecimento dessas comunidades é a existência de mecanismos de defesa e união entre seus membros, por isso as associações os movimentos sociais são de grande importância histórica”. Dentre os movimentos e entidades que mais atuam na região o relatório do NAT destaca: a EAACONE; o ISA; o Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB); o ITESP e o Ministério Público (MP). Neste último os autores destacam ainda que: É de interesse do MP, enquanto órgão que atua na defesa da ordem jurídica e fiscaliza o cumprimento da lei no Brasil, buscar aproximação com a causa quilombola [e dos demais grupos de grupos tradicionais], uma vez que consiste em uma população que luta constantemente para conseguir a efetivação do direito a sua terra e às demais políticas públicas (SILVA; BORGES, 2015, p.7). Todavia, como destaca Carolina Todesco (2010) é preciso considerar que esse aumento das organizações do terceiro setor, acaba por descentralizar a produção de políticas públicas por parte do Estado, delegando a outros a incumbência de planejar o desenvolvimento regional e limitando sua atuação a apenas um ente financiador dos serviços. Para a autora, a atuação do Estado não deve ser desconsiderada, pois, “as organizações do terceiro setor, por natureza, representam determinados setores da sociedade, não abarcando os interesses de todos os sujeitos sociais que vivem” em determinada região (TODESCO, 2010, p.16-17). Nesse sentido: O Estado é essencial, portanto, para se compreender a produção do espaço e consequentemente as desigualdades regionais; é o Estado, em última instância, quem 147 legitima as formas de uso do território, sendo sua ação e “não-ação” contundentes nesse processo, que é social e histórico (TODESCO, 2010, p.4). Posto isso, no âmbito do Vale do Ribeira, Todesco (2010) realizou uma análise cronológica dessa “presença ausente” e “ausência presente” do Estado na produção do espaço para o turismo na região. O primeiro marco histórico desse processo teria sido a primeira experiência de planejamento para o estado de São Paulo, realizada no governo de Carvalho Pinto (1959-1962), quando foi elaborado um plano de ação que previa uma série de investimentos setoriais (voltados também para o fomento do turismo), no intuito de proporcionar o crescimento da economia, sem preocupar-se, contudo, com a desconcentração geográfica desse “desenvolvimento”, e desconsiderando, inclusive medidas específicas que contemplassem o recorte territorial do Vale do Ribeira. Tais propostas, entretanto, foram abandonadas com o fim do seu governo. No período seguinte, de 1963-1966, o governador Adhemar de Barros investiu na elaboração do “Plano de Desenvolvimento Integrado” (PLADI), o qual apresentava medidas específicas no âmbito do “Plano Global para o Desenvolvimento do Vale do Ribeira e Litoral Sul”. Tal proposta associava-se também à perspectiva turística, no intuito de realizar uma intervenção massiva em São Paulo, e inclusive, transformando o Vale do Ribeira em um dos destinos turísticos mais demandados no estado. Além de investir em infraestrutura básica, o propósito do Estado era, então, o de criar órgãos de cooperação intermunicipais (tendo em vista que grande parte dos municípios envolvidos era extremamente pobre e sem assistência); no intuito, portanto, de fortalecê-los internamente, e os apoiando ainda com a doação de áreas públicas, divulgação de roteiros, promoção de incentivos ao artesanato e projetos de arborização das sedes municipais. Em junho de 1966 o projeto foi interrompido em decorrência da cassação do mandando do governador pelo Regime Militar. No governo de Abreu Sodré (1967-1970) a proposição governamental vinculou-se à iniciativa privada para a região, o que foi realizado por meio da melhoria do acesso e iluminação da Caverna do Diabo, mas com intervenções que desconsideravam qualquer tipo de preservação ou proteção do patrimônio espeleológico da região. Em 1969, foi criada a Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista (SUDELPA), uma autarquia vinculada à Secretaria de Economia e Planejamento, cujo objetivo (por meio do Plano de Desenvolvimento do Litoral - PLADEL) era organizar e promover o desenvolvimento socioeconômico (através da adoção de metas, diretrizes e estratégias) para as três sub-regiões: 1) Litoral Norte; 2) Baixada Santista e 3) Vale do Ribeira (Litoral Sul). Todavia, antes da execução do PLADEL, a ação da SUDELPA direcionou-se ao Programa de Ação de 148 Emergência (PAE), no qual a Superintendência limitava-se a “mera executora de obras pontuais”, como aquelas relacionadas, principalmente, à infraestrutura viária (TODESCO, 2010, p.8). A fase entre 1971 e 1974, segundo Todesco (2010) pode ser considerado o momento áureo da SUDELPA, quando o órgão teve acesso a grandes orçamentos vinculados ao Programa Geral de Ação no Vale do Ribeira, o qual investiria primordialmente na “integração regional”, por meio de implementação de melhorias nas vias de circulação e infraestrutura básica, visando beneficiar os grupos privados que tinham interesse na exploração dos recursos naturais do Ribeira (tais como projetos hoteleiros, centros de informação turística, etc.). Tais investimentos desencadearam, em 1974, na publicação, pelo SUDELPA, do documento intitulado “Possibilidades Turísticas no Vale do Ribeira e Litoral Sul”, o qual além de definir quatro “zonas turísticas”36 para o desenvolvimento do segmento, aglutinou um “diagnóstico socioeconômico e um estudo de impacto”, que na realidade não apresentava diretrizes para um desenvolvimento ordenado na atividade na região. De 1975 a 1979, durante o governo de Paulo Egydio, finalizou-se o PLADEL, o qual, na realidade, não alterava o modo de atuar da SUDELPA, pontuando ações setoriais, sem explicitar quais eram as políticas ou estratégias norteadoras do desenvolvimento regional proposto. O governo seguinte (1979-1982), de Paulo Maluf, marca a decadência da autarquia e o início de um programa de auxílio às prefeituras de caráter totalmente clientelista. Já no processo de redemocratização (1983-1986) o governador Franco Montoro criaria o Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), cujas funções estavam relacionadas à proposição de uma Política Estadual do Meio Ambiente, à supervisão das atividades do Estado na área ambiental e à proposição de normas e implementação de Unidades de Conservação (UCs) no território paulista (o que implicou na homologação de nove UCs, somente na década de 1980, embora se desconsiderasse totalmente a presença das populações tradicionais nesse recorte regional). Segundo Todesco (2010, p.10) essa “presença ausente” do Estado, no período compreendido entre 1960 a 1980, desencadeou uma das questões mais paradigmática do Vale do Ribeira: a “batalha da população residente nas áreas cobertas por UCs para que seus direitos sejam considerados”. Como já registramos, os planos de desenvolvimento desse período desconsideraram completamente as populações locais, colocando em pauta apenas iniciativas que beneficiassem os setores agrícola e de mineração. A partir da década de 1990, 36 São elas: 1)Zona Lagunar de Cananéia e Iguape; 2)Zona das Grutas e Cavernas; 3)Zona dos Parques e Reservas Florestais e 4)Zona Histórica e Cultural. 149 ainda segundo a autora, a “ausência presente” do Estado no Vale do Ribeira se expressa por meio da proeminência da atuação das ONGs, que passam a executar a maioria dos projetos realizados na região (57%), acompanhadas de 16% de projetos vinculados a instituições públicas de pesquisa do estado de São Paulo; 8%, a órgãos municipais; e 6%, a associações comunitárias. A importância da atuação dessas organizações, principalmente no contexto da Agenda 21 – que fomentava o fortalecimento dessas entidades como parceiras das comunidades locais para o desenvolvimento sustentável –, é inquestionável, uma vez que este processo é um dos pilares fundamentais para a democracia participativa e o próprio protagonismo dessas populações. Todavia, o que Todesco (2010) questiona é: cabe ao Estado realmente apenas essa função de financiador dos projetos? Postulamos que na perspectiva da chancela de Paisagem Cultural Brasileira e do pacto de gestão e salvaguarda da paisagem, não cabe um Estado apenas financiador; é preciso que ocorra um processo de cooperação mútua das partes. Ao poder público, seja nos âmbitos federal, estadual ou municipal, cabe a mediação, colaboração e atuação conjunta aos distintos interesses das comunidades. E é nesse contexto de reestruturação dos papeis da política e da sociedade que a inclusão do conceito de paisagem cultural na legislação nacional se faz ainda mais prudente e necessária. Ao analisar os processos de desenvolvimento histórico, cultural, político e econômico desses diferentes recortes regionais, e a própria similaridade do processo de configuração sociocultural e político do Vale do Ribeira ao Vale do Jequitinhonha, enfatizamos a importância do reconhecimento e valorização também dessa região como uma Paisagem Cultural Brasileira, expressando a singularidade aí estabelecida, da relação do homem com o meio, como discutiremos a seguir. 150 CAPÍTULO 4 – Vale do Jequitinhonha: o reconhecimento de uma importante Paisagem Cultural Brasileira O Vale do Jequitinhonha é uma das regiões de identidade cultural mais marcante do estado de Minas Gerais. E como acontece com o Ribeira de Iguape, em São Paulo, o rio Jequitinhonha constitui o fio condutor para a compreensão das relações estabelecidas regionalmente entre os grupos sociais e a natureza. Localizada no nordeste do estado de Minas Gerais, a mesorregião do Jequitinhonha contém 51 municípios (mapa 1) com diversas paisagens locais que correspondem a “testemunhos preciosos da história da trajetória humana”, e ainda aos “vestígios da técnica, do trabalho, de diferentes modos de vida e da apropriação da natureza com a finalidade de reprodução social”, como postula a definição de Paisagens Culturais Brasileiras do IPHAN (2009b, p.18). Mapa 1: Municípios da Mesorregião do Jequitinhonha (MG) Observamos no Vale uma realidade social e cultural densa e contraditória, continuamente reelaborada pelos atores sociais locais, os quais vivenciam, aliás, processos muito complexos e dinâmicos de construção e reconstrução da identidade - que se manifestam 151 em diferentes recortes territoriais e admitem toda uma trama interna de relações com o espaço vivido. E esta vivência espacial dos atores sociais locais encontra-se, por sua vez, imbricada com a constituição aí, de paisagens culturais particulares. Para Nogueira et. al. (2006), o Jequitinhonha é uma região de contrastes, com um rico patrimônio histórico e cultural, mas com precárias condições de saúde, saneamento e educação (agravadas por impactos relacionados à disposição de rejeitos da mineração, resíduos sólidos urbanos, etc.). O CEDEFES assinala que há inúmeros problemas causados pela degradação ambiental, por exemplo, nos territórios quilombolas do Vale. De acordo com a organização não-governamental: “as atividades de monocultura, mineração, hidrelétricas e de pecuária no entorno e dentro dos territórios tradicionais quilombolas comprometem as práticas comuns” como a pesca, a caça, a coleta de raízes e frutos, entre outras, “que transitam nas esferas da cultura e da subsistência das comunidades” (SANTOS & CAMARGO, 2008, p. 82)37. O desenvolvimento dessas atividades econômicas é amplamente documentado na toponímia regional, como o indicam vários registros relacionados à mineração aí incidentes: Diamantina, Minas Novas, Turmalina, Datas, Carbonita, Rubelita, Ouro Fino, Pedra Azul, Berilo, Topázio, Morro do Ouro, Córrego do Ouro, Córrego do Diamante, Córrego da Prata, Lagoa da Prata, Chapada das Lavras, Córrego da Lavra; e também, à agropecuária: Terra Boa, Rancharia, Posses, Chácara, Granjas, Granjas do Norte, Roçinha, Engenho, Porteirinha, Curralinho, Curral de Dentro, Vacaria, Novilhona, Carneiros, Patos, Palmital, Alto dos Bois, Serra do Gado Bravo, Boqueirão dos Porcos, Ribeirão dos Patos, Lagoa dos Patos, Córrego do Boi, Córrego do Galinheiro, Córrego da Vaca Brava, Córrego do Cavalo, Córrego dos Cordeiros, Córrego dos Porcos, Córrego do Algodão, Córrego da Baunilha, Córrego da Fazendinha, Córrego do Lavrador, Córrego do Engenho, Córrego do Curral, Córrego do Curral Velho, Córrego do Curral Novo, Córrego do Roçadinho, Córrego da Roça Velha, Córrego da Roça de Dentro, Chapada da Roçinha, Posses, Chácara, Granjas, Granjas do Norte, Paiol, Baixa do Paiol, Cova de Mandioca, Queimada Velha (DEUS, 2012). Por vezes estigmatizada por visões científicas reducionistas, unidirecionais e “em especial através de representações socioespaciais presentes em diagnósticos governamentais e reportagens jornalísticas” (SERVILHA, 2015, p. 136), que focalizaram fundamentalmente, sua crítica situação ambiental e econômica (que se reflete nos baixos indicadores sociais), a região caracteriza-se, entretanto, por grande vitalidade cultural, como têm registrado alguns 37 Há, a propósito, referências na literatura científica a respeito do costume ancestral, que originalmente vigorava no Jequitinhonha, da posse em comum das terras de chapada, em contrapartida e complemento à posse privada das grotas ou veredas (MARTINS, 2009). 152 pesquisadores38. Para Geralda C. Soares, que conhece intimamente a realidade local, o Jequitinhonha é “um vale de muitas culturas”- com o protagonismo, aí exercido, por segmentos sociais que vão progressivamente forjando novas territorialidades e requalificando a dinâmica social regional (SOARES, 2000, p. 17). Vale ressaltar que ao direcionarmos nosso olhar ao Jequitinhonha sob a perspectiva patrimonial é inerente a assimilação do estudo de suas paisagens, uma vez que o território do Vale constitui um cenário de extrema importância para a configuração econômica e territorial brasileira desde o século XVI, tendo sido palco de interação/conflitos de nossas três matrizes culturais principais: a do “branco colonizador, a do negro escravizado e a dos nativos indígenas” que “associados às várias atividades aí desenvolvidas, fizeram de Minas Gerais um estado de extraordinária diversidade” (SOUZA, 2010, p.12). O retrato histórico do Vale é parte fundamental da formação territorial e identitárias brasileira. E parte significativa dessa herança encontra-se ainda hoje registrada em paisagens culturais residuais imbricadas à realidade sociocultural de cidades históricas como Diamantina, Serro, Minas Novas, Araçuaí, dentre outras, que apresentam em sua arquitetura signos e significados que vivem e sobrevivem na cultura popular do Vale (CASTRO; DEUS, 2009; LACERDA et al., 2011). Já suas paisagens alternativas emergentes são oriundas do exercício de protagonismo etnopolítico das comunidades tradicionais, no movimento de auto identificação, no qual buscam a continuidade da “soberania sobre seus territórios; manutenção de tradições culturais, religiosas e etnolinguísticas” (DEUS, 2012, p.41). E como ressalta ainda o autor: “essas comunidades tradicionais é que dão ao Vale a vitalidade cultural que o distingue no conjunto das macrorregiões mineiras” (DEUS, 2012, p.43). Esse modo de vida do “homem do vale”, representado em sua religiosidade, toponímia, culinária, artesanato, tradições e musicalidade, ainda hoje presentes – e vividos –, nessas comunidades, constituem, nesse contexto, representações do processo de interação do homem com o meio que imprimem e atribuem valor às suas paisagens. Paisagens que são marcadas, ainda, pela dinâmica do rio, que carrega em suas águas a vida desse vale, e materializam também: [...] o que a luta do homem plantou, o que o tempo não apagou e nem o abandono foi capaz de destruir, ainda bastam vivos e revelam-se na beleza das paisagens, na originalidade da cultura e na resistência criadora de quem acredita que do outro lado do Vale ainda corre um rio de riquezas e esperança (SANTOS, 2016, p.1). 38 Os pesquisadores em Geografia Agrária, Raphael Diniz & Maria Aparecida Tubaldini (2011, p. 128), por exemplo, destacam “a imensa riqueza biogeográfica e sociocultural do Vale, observada na manutenção das tradições guardadas a gerações pelas famílias quilombolas”. 153 É no intuito de compreender como essa realidade tão densa e diversa se configurou, se reelabora e se reestrutura ao longo do tempo e do espaço, que faremos a seguir um resgate geohistórico e cultural de formação desse recorte regional tão singular do estado de Minas Gerais. 4.1. A construção geohistórica das Paisagens Culturais do “Jequi tem onha” [...] a etimologia da palavra Jequitinhonha, a mais convincente das que vimos até o momento, decompõe o nome do rio desta forma: jiqui-itá-hy-nhonha. Onde jiqui é jequi, armadilha para pegar peixes, ou “covo afunilado tecido de taquaras, o qual, cheio de iscas se lança no rio com o fim de se apanhar peixes vivos”. O nome jequi, por sua vez, vem de i-que-i – “o que se entra”. Itá é partícula designativa de plural, que transforma jequi em jequis. Hy, que se pronuncia aspirado, mais para “ri” que para “i”, significa rio, e nhonha é sumir. Logo Jequitinhonha é o rio em que os jequis somem, por estarem pesados com os peixes capturados. Esse significado concorda com a etimologia popular que formou o híbrido no jequi tem onha, onde onha é peixe, logo, no jequi tem peixe (SANTIAGO, 2004, p.10). Em termos da sua formação histórica, geográfica e estrutural, o Vale do Jequitinhonha é caracterizado por diversidades. E tanto em termos dos seus aspectos físicos quanto humanos emerge uma pluralidade de representações do Vale que vão ao encontro de uma riqueza sociocultural e ambiental evidenciada por diversos pesquisadores. Podemos, inclusive, esboçar uma percepção de que o complexo processo de formação geológica e geomorfológica dessas paisagens, em certa medida, dialoga com a configuração dessas “culturas do Vale”. Nesse sentido, gostaríamos, de apresentar a estrutura geológica e geomorfológica fundamentais da região. Assim, como grande parte da estrutura geológica do Brasil, a região do rio Jequitinhonha é oriunda da Orogênese Brasiliana, evento tectônico do final do Pré- Cambriano (650-550 milhões de anos), à qual está associada, inclusive, a formação dos crátons (como do São Francisco) e de uma rede de faixas de dobramentos, nas quais se encontra inserida a bacia do Jequitinhonha (a faixa de Araçuaí – uma das mais significativas na margem oriental brasileira). O Complexo Jequitinhonha, como é denominado por Almeida e Litwinski (1984), apresenta, litologicamente, uma diversidade de gnaisses, quartzitos, xistos e intrusões granitoides (em parte transicionais com os gnaisses), oriunda não apenas dos diversos eventos tectônicos a ela associados, como também dos diferentes comportamentos 154 dos tipos litológicos frente a esses esforços, e posteriormente aos diversos processos de denudação do relevo. Segundo Andrade (2006) e Ferreira (2007) a geomorfologia de Minas Gerais compõe-se basicamente de planaltos, depressões e áreas dissecadas, as quais configuram, segundo os autores, dezoito compartimentos, dos quais quatro incidem no Vale: o planalto Jequitinhonha; a depressão do rio Jequitinhonha; Serra do Espinhaço e os Planaltos dissecados do Centro-Sul e Leste de Minas Gerais. Mapa 2: Conjuntos Geomorfológicos da Mesorregião do Jequitinhonha (MG) O Planalto Jequitinhonha corresponde à porção do médio Vale até a cidade de Jequitinhonha, sendo caracterizado por áreas aplainadas (as chapadas), limitadas por rebordos erosivos bem marcados que dão contornos aos, assim denominados regionalmente, grotões do vale. Esses planaltos variam entre 900m a 1000/1200m de altitude (ANDRADE, 2006, p.3). Grande parte dessas formações é predominantemente recoberta por materiais detríticos, provenientes de outras rochas (material heterogêneo) entalhadas pela própria rede 155 hidrográfica. E observa-se que enquanto na porção mais elevada do Vale as chapadas são mais preservadas e menos impactadas pela ação do intemperismo, as chapadas do médio Jequitinhonha já se encontram bastante entalhadas e integradas ao sistema. A depressão do Rio Jequitinhonha, bem demarcada ao longo das áreas rebaixadas às margens do grande rio, “apresenta altitudes que variam em torno de 400m, com um caimento gradativo para leste, atingindo 150m nas proximidades do município de Salto da Divisa”, já no baixo Jequitinhonha (ANDRADE, 2006, p.4). As porções correspondentes à Serra do Espinhaço, caracterizam uma das paisagens mais exuberantes da região, associadas, inclusive ao título atribuído de Patrimônio Cultural da Humanidade a cidade de Diamantina. Essa porção de desenvolvimento longitudinal significativo no território mineiro remete a “formas de dissecação em rochas do Supergrupo Espinhaço e restos de antigas superfícies de aplainamento”, que se alternam “com picos e cristas elaboradas em quartzitos, e com grandes escarpas geralmente orientadas por fraturas” (ANDRADE, 2006, p.4). Os quartzitos e conglomerados diamantíferos, de fraco intemperismo, formam solos rasos (litossolos), os quais, associados às elevadas altitudes e ao fator orográfico do clima (com maior ocorrência de chuvas ao longo do ano) contribuem para a incidência, aí, de uma biodiversidade endêmica, associada aos campos rupestres. Acrescenta-se que outro aspecto de fundamental importância dessa unidade geomorfológica é a sua associação a “importantes aquíferos fraturados, originando numerosas nascentes”, responsáveis pela drenagem e recarga de importantes rios e mananciais, como o próprio Jequitinhonha (ANDRADE, 2006, p.4). Por fim, os planaltos dissecados do Centro Sul e Leste de Minas englobam “parte do médio Vale do Jequitinhonha, as cabeceiras do Rio Mucuri e a maior parte da bacia do Rio Doce, onde é dividida pela depressão interplanáltica do Rio Doce” (ANDRADE, 2006, p.5). Trata-se de um importante divisor de águas ao qual está associado, inclusive, o processo de ocupação e domínio dos “Sertões do Leste” habitados, até meados do século XIX, por significativos contingentes populacionais indígenas. Sugestivamente, à essa configuração geomorfológica do Vale, Ribeiro e Galizoni (2000) associam uma organização socioespacial reconhecida como “sistema grota-chapada”, correspondendo as grotas (porções côncavas das encostas das chapadas) às áreas direcionadas à ocupação, sobrevivência e resistência das populações camponesas e tradicionais, além de formarem a base para a estruturação de suas unidades familiares; correspondendo, por sua vez, as chapadas às áreas de uso comunitário/coletivo para pastagens, extração de recursos 156 naturais (frutos, plantas medicinais e produtos típicos do cerrado), os quais no modelo atual de desenvolvimento (que discutiremos na sequência) já não são mais viabilizáveis em decorrência da ocupação dessas áreas por imensos “desertos verdes de eucaliptais”. Ressalta-se por outro lado que os domínios fitogeográficos do Vale estão fundamentalmente associados à presença do Cerrado, predominantemente na área de contato com florestas estacionais (remanescentes da Mata Atlântica), campos rupestres e Caatinga. Destacam-se, ainda, nessa região, importantes áreas naturais preservadas, aí implantadas no período histórico mais recente como unidades de conservação ambiental, parques ou unidades de usos “sustentáveis”, às quais, pela relação com comunidades tradicionais, convivem com uma série de dilemas e conflitos vinculados, primordialmente, a certa “rigidez” (controversa) da legislação ambiental. Hoje existem trinta e três unidades de conservação no Vale, incluindo uma área de proteção especial, dez de proteção integral e doze de uso sustentável (como podemos observar no mapa 3). Das áreas de proteção integral, duas são de instância federal (Reserva Biológica da Mata Escura e Parque Nacional Sempre Vivas); uma municipal (Parque Natural Municipal Biquinho) e as demais, de instância estadual (Estação Ecológica Acauã; Parque Estadual Biribiri; Parque Estadual do Rio Preto; Parque Estadual da Serra Negra; Estação Ecológica Mata dos Ausentes; Parque Estadual Alto Cariri e Refúgio da Vida Silvestre Mata dos Muriquis). Nota-se que das unidades de proteção integral destacam-se principalmente as de administração federal e estadual, correspondendo grande parte delas aos parques nacionais ou estaduais, cujo objetivo fundamental é a preservação dos ecossistemas naturais de relevância ecológica e beleza cênica em áreas de domínio público, e cuja visitação é ainda viabilizada a partir de regulamentações do Plano de Manejo da unidade. Dentre as unidades de conservação de uso sustentável predomina a gestão municipal (16 unidades), sendo todas classificadas na categoria de Área de Proteção Ambiental (APA), fato este relacionado, segundo a Fundação SOS Mata Atlântica (2017): à facilidade de sua criação por decreto ou lei municipal; à destinação de recursos financeiros vinculados ao critério de conservação da biodiversidade por meio de unidades de conservação e à possibilidade de incluir aí terras públicas e privadas. No estado de Minas Gerais, após a criação da Lei Robin Hood (em 1995), a quantidade de UCs quadruplicou. E dentre as principais motivações para criação de unidades de conservação municipais a Fundação SOS Mata Atlântica (2017, p.14) destacou em sua pesquisa a: (a) Proteção de remanescentes da vegetação nativa e da paisagem natural em geral, indicado por 84% dos municípios; (b) Uso público, com a promoção de lazer, 157 recreação, turismo e ecoturismo (55%); (c) Educação ambiental, proporcionando contato com a natureza e interpretação ambiental (53%); (d) Atividades de pesquisa sobre a biodiversidade e/ou aspectos socioeconômicos e ampliação do conhecimento (41%); (e) Proteção de espécies raras, endêmicas e ameaçadas da fauna e flora nativa (37%); e (f) Proteção de recursos hídricos como bacias, mananciais, rios e outros cursos d`água, principalmente para abastecimento das cidades (36%). Mapa 3: Unidades de Conservação e Remanescentes Vegetacionais no Vale do Jequitinhonha (MG) Um aspecto sobre o qual se faz necessário refletir é quanto a área ocupada por essas APAs, que apresentam, em grande parte, uma proporção significativa de sua extensão territorial já associadas à ocupação humana, sendo, inclusive, o uso social e cultural desses recortes territoriais o argumento fundamental para a criação dessas áreas (por representarem 158 uma oportunidade de lazer e educação ambiental). Outro fator importante ressaltado pela Fundação SOS Mata Atlântica (2017, p.20), é o fato de muitas dessas APAs estarem em zonas de amortecimento de outras unidades de conservação, viabilizando, assim, uma maior “conectividade da paisagem, proporcionando serviços ambientais extremamente importantes, como o fluxo e a quantidade de água doce, além de servirem como corredores para a fauna e flora”. No Vale do Jequitinhonha essas APAs estão localizadas principalmente nas áreas de contato entre o Cerrado e Mata Atlântica, além de outras tipologias endêmicas com campos rupestres no alto e médio Jequitinhonha, muitas delas em contato umas com as outras, exercendo a função de corredores ecológicos, ressaltada anteriormente. Outra categoria de unidades de conservação de uso sustentável que se encontra representada no Vale do Jequitinhonha é a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), que sob administração estadual e federal corresponde a 32% das áreas preservadas nesse recorte territorial. Juntamente com as APAs, essas unidades de uso sustentável representam no Vale em torno de 67% das áreas protegidas. Todavia, é dentro dos 33% dos hectares das áreas de proteção integral que incidem os maiores conflitos socioambientais da região, tal como: no Parque Estadual da Serra Negra; no Parque Nacional das Sempre Vivas e na Reserva Biológica da Mata Escura. Parte significativa desses conflitos gira em torno da demarcação impositiva do Estado, que desconsiderou a relação/subsistência de comunidades do entorno ou localizadas no interior dessas áreas com a biodiversidade local. E vale ressaltar que é pela manutenção dessas relações, que muitas dessas comunidades hoje, mediadas por ações/intervenções do Ministério Público, lutam por seus direitos (GESTA, 2010). É relevante assinalar, a propósito, que as áreas de contato fitogeográfico e de grande riqueza da biodiversidade regional, incidem em extensas porções de latossolos, cambissolos e argisolos, os quais, apesar de suas limitações naturais, configuram o substrato principal de uma agricultura de subsistência resiliente e de convivência com o semiárido (tipo climático que predomina em grande parte do Jequitinhonha) e estruturada durante os mais de 300 anos de ocupação do Vale. Faz-se necessário ressaltar que as interações dessas populações com o meio vão além de um simples processo adaptativo, pois há uma série de associações representativas e simbólicas que conectam o Homem aos signos dessas paisagens. Patrícia de Sá Machado (2004), em sua dissertação sobre os signos da paisagem do Vale do Jequitinhonha, já destacava a importância simbólica dos cursos d’água, não apenas como leitos para os quais convergem as águas da bacia, mas também como vestígios das diversas formas de interação do homem com o meio, e de suas funções econômicas, sociais e 159 culturais. Como ressalta a própria autora, “(...) não é somente o homem do Jequitinhonha que conta a história do seu rio, mas também o rio que narra a vida do seu povo” (MACHADO, 2004, p.42). Logo, o Rio, como principal agente de transformação dessa paisagem cultural constitui simultaneamente: um marco espacial; uma rota de transporte (via de acesso); abrigo de riquezas minerais; fonte de alimento e água para consumo e irrigação (fertilidade); fonte de energia elétrica; testemunho do uso do solo; meio de lazer; fonte de inspiração artística e elo de configuração de uma identidade regional. Identidade essa marcada pelas narrativas das lavadeiras do Jequitinhonha, que faziam daquela atividade cotidiana do lar, de lavar vasilhas e roupas, uma prática do encontro com outras mulheres, para contar casos, trocar saberes e fazeres em forma de receitas, histórias e cantigas que, até hoje, são entoadas por aquelas que resistem e (mesmo com água encanada), ainda vão para a beira do rio. Há também alguns grupos culturais que resgatam, aliás, essa tradição através da música como o “Coral Lavadeiras do Jequitinhonha” e o grupo “Meninas de Sinhá”, ambos formados por mulheres idosas que percorrem o Brasil e o mundo inteiro levando esse modo de ser do Vale em letras e melodias ancestrais. Como bem ressalta Déa Trancoso39 (2011): Meninas, eu vi rodando a saia, batendo tambor, falando de emoção, de encontro, distribuindo sorrisos, gargalhadas, moedas correntes de quem decide ser feliz. Cantando ancestrais sentimentos dos mundos, essas meninas são coisa da antiga, assim como a tina onde a vovó lavava a roupa, assim como a mãe preta que amamentava os seus e os de outrem porque tinha leite para dar. E na cartilha delas, quem tem pra dar, tem dar. Figura 3: Apresentação de Meninas de Sinhá na 69ª Reunião Anual da SBPC realizada em julho/2017 na Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte (MG) Foto: SILVA (2017) 39 Poema de Déa Trancoso em homenagem às Meninas de Sinhá presente no livreto do álbum “Na roda da vida” gravado em 2011. 160 Além do rio, e das formas do relevo já abordadas por nós neste trabalho, Machado (2004) ressalta ainda dois importantes signos dessas paisagens: “as marcas da aridez” e o “artesanato de barro”. O primeiro procedimento adotado pela autora foi a diferenciação entre a aridez e a seca. Pois, segundo ela, a aridez é configurada pelas elevadas temperaturas do ar, intensa radiação solar, baixa ocorrência de chuvas e intensa evapotranspiração, produzindo condições específicas e adaptadas a este meio, por meio da presença de uma vegetação xerófila (que resiste, assim como o povo, às limitações ambientais); da salinidade do solo (que possibilitou o desenvolvimento da pecuária, uma vez que nos períodos de estiagem os sais do solo nutrem os animais) e da distribuição sazonal da precipitação pluvial, que propicia a configuração de lavouras temporárias de subsistência cultivadas nos fundos dos vales e quintais (feijão, mandioca, milho, cana-de-açúcar) –, e que, em cujos períodos de estiagem, transformam-se em produtos beneficiados artesanalmente (como cachaça, rapadura, farinha de mandioca, óleos vegetais, etc.). É assim que “a sazonalidade do clima educa o povo do Vale a usufruir os recursos disponíveis em cada estação” (MACHADO, 2004, p.72). Já a seca, não representa uma “relação harmoniosa entre o clima árido e a vida humana, gerando problemas de ordem social e econômica”; e sua origem, inclusive, está vinculada, em grande medida, a “ineficientes políticas de superação da falta de água”, e cujas causas “ultrapassam o âmbito da meteorologia” (MACHADO, 2004, p.65). Ressalta-se que ao realizar essa distinção fundamental entre os dois conceitos, a autora dialoga fortemente com a perspectiva da “convivência com o semiárido”, uma concepção que emerge, aliás, em todo semiárido brasileiro por meio da articulação e mobilização da sociedade civil e dos movimentos populares na década de 1990, os quais vinculam as condições da aridez com a convivência e experiências de um povo, compartilhadas por meio de uma identidade comum, que os alinha, instintivamente, a um “um projeto coletivo que se funda no princípio da convivência com o semiárido e se materializa em processos locais de experimentação agroecológica articulados em redes de agricultoras e agricultores experimentadores” (FREIRE; FALCÃO, 2013, p.36). Tais iniciativas foram muitas vezes associadas à produção artesanal, ou seja, com o terceiro e último signo da paisagem do Jequitinhonha elencado por Patrícia de Sá Machado: o barro. 161 Mapa 4: Municípios que apresentam produção representativa de artesanato de barro no Vale do Jequitinhonha/ MG Ao considerar o “barro” como um importante signo da paisagem do Jequitinhonha, Machado (2004) se fundamenta na obra de Carolina Antunes (2000), na qual a autora defende a tese de que o artesanato do Vale representa a existência, o pertencimento, a tradição e os saberes passados por gerações que “se constituem como narrativas envolventes, compostas de outras narrativas que se caracterizam por formas, cores, tipos, personagens, situações, os mais diversos” (ANTUNES, 2000, p.13). Assim, observa-se, aliás, que a partir de uma função inicialmente utilitária (da fabricação de panelas, moringas e potes - oriunda das tradições indígenas), o artesanato do Vale passa a se configurar como importante símbolo da paisagem regional, na medida em que adquire uma função de representatividade de uma experiência do viver; da representação de uma dinâmica sociocultural específica desses lugares e mundos vividos de um vale de tantas riquezas, contempladas por suas grotas e chapadas. Tal importância, para além dos estudos desenvolvidos em torno da temática, foi 162 evidenciada ainda pela elaboração do Dossiê de Registro do IEPHA – “Artesanato em Barro do Vale do Jequitinhonha: saberes, ofício e expressões artísticas em Minas Gerais”, o qual desencadeou, em dezembro de 2018, no reconhecimento do artesanato em barro do Jequitinhonha como Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais. Este é o sétimo reconhecimento de bens culturais de natureza imaterial do estado, sendo o terceiro na diretamente vinculado à mesorregião do Vale do Jequitinhonha, juntamente com o “Modo Artesanal de Fazer o Queijo da Região do Serro” (2002) e a “Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte” (2013). Além desses, no Vale do Jequitinhonha ainda são encontradas manifestações das “Folias de Minas” e “Violas: o fazer e o tacar em Minas”, que estão sendo inventariadas desde 2017 (IEPHA, 2018a). O registro de todas essas manifestações do patrimônio imaterial do Vale reforça ainda mais sua importância enquanto uma Paisagem Cultural Brasileira, uma vez que toda essa riqueza cultural (seja ela material ou imaterial) reflete experiências, vivências e emoções vinculadas às paisagens culturais singulares que configuram esse amálgama regional marcante da identidade cultural mineira e brasileira. Todas essas manifestações são fruto dessa interação/conexão desses sujeitos em suas paisagens, representando, assim, toda a carga simbólica, natural, cultural, política e social que se encontra vinculada a ela. É relevante assinalar ainda que, através do desenvolvimento do artesanato (cerâmica, tecelagem, cestaria, esculturas em madeira, trabalhos em couro, bordados, etc.) – (RODRIGUES et al., 2012; MASCELANI & BEUQUE, 2008; NAME & YASSUDA, 2008), as comunidades locais exercem protagonismo nos contextos socioeconômico e cultural regionais. Pois, como ressalta Deus (2012, p.43): Assinala-se que o artesanato tem grande significado político e social, pois constitui contrapartida à massificação e uniformização dos produtos globalizados, promovendo o resgate cultural e a identidade regional. Trata-se de um setor econômico sustentável que promove melhoria da qualidade de vida das comunidades, ampliando a geração de renda e os postos de trabalho. Um significativo exemplo desse protagonismo foi a criação, em 1994, da associação de artesãs, nas localidades de Coqueiro Campo e Campo Buriti (respectivamente localizadas nos municípios de Minas Novas e Turmalina), e constituída por donas de casa que uniram suas forças para tentar aprimorar o artesanato local, até então pouco conhecido/ pouco desenvolvido, e que passaram a produzir artefatos de cerâmica (utilitários e ornamentais), como as famosas “bonecas de barro” do Vale, hoje mundialmente conhecidas/ valorizadas (DEUS, 2012; MASCELANI, 2008; NAME, YASSUDA, 2008; PICARELLI, 2012). É 163 interessante notar que desde 2000, a UFMG, em parceria com prefeituras e outras organizações vem promovendo no Campus Pampulha, a Feira de Artesanato do Vale do Jequitinhonha, a qual tem propiciado que os artesãos do Vale possam divulgar e vender seus produtos, sem a necessidade de intermediários (NOGUEIRA, 2008). A 18ª. edição do evento ocorreu em julho/ 2017, como parte da programação do SBPC Cultura, expondo e comercializando peças de cerâmica (bonecas, panelas, vasos e objetos decorativos em geral), esculturas em madeira, quadros, artigos de tecelagem, cestaria, dentre outros produtos artesanais40. Paralelamente, foi desenvolvido também, nas localidades de Campo Buriti e Coqueiro Campo, um programa de turismo solidário, o qual foi implantado a partir de iniciativa do governo estadual de Minas Gerais e parceiros (Ministério do Turismo, Instituto do Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais/ IDENE e Fundação Diamantinense de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão/ FUNDAEPE) com o objetivo de implementar a ordenação turística destas comunidades, que possuem rico patrimônio natural e cultural, mas que apresentam baixos índices de desenvolvimento humano. Diante do potencial turístico que as regiões do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas possuem (devido a seu rico patrimônio cultural), o programa se propôs a atuar como mola propulsora do “desenvolvimento sustentável” dessas regiões, na potencialização da geração de trabalho e renda para as comunidades locais. Maria Aparecida M. Silva que pesquisou a cerâmica do Vale (analisando as relações de Gênero no Mundo do Trabalho) ressaltou, a propósito que: “trata-se de uma atividade que une agricultura e indústria (no sentido de produção e transformação), através da existência de um saber transmitido de geração em geração. Pelo fato de ser, sobretudo, um trabalho exercido pelas mulheres (os homens trabalham, em geral, a madeira e o couro), são elas que detêm este saber” (SILVA, 2013, p. 170). É sugestivo observar que a conexão deste “modo ser e viver no Vale” com o meio é tão expressivo e significativo, que o próprio processo de ocupação de suas “Minas” e “Gerais” poderia estar, em certa medida, associado à constituição litológica de suas formações geológicas. Nesse sentido, o avanço das bandeiras no século XVIII em busca de ouro e diamantes do Supergrupo Espinhaço deu-se juntamente ao leito do “rio selvagem” de trechos encachoeirados e de escavação vertical das rochas quartzíticas na região de Serro e Diamantina. Já o caminho para as “Minas Novas” (região caracterizada pela presença de rochas do Grupo Macaúbas) se processou com a formação das novas figuras sociais dos 40 Como noticiou o portal SBPC na UFMG em 18 de julho de 2017. 164 faiscadores e garimpeiros, que, já em fins do século XVIII, “avançavam para jusante à procura de pedras preciosas deslocadas por via fluvial” (MAIA, 1936, p.46). O rio Jequitinhonha foi palco do movimento de interiorização dos colonizadores desde o século XVI. Em 1554, Francisco Bruza de Espinosa e Aspilcueta Navarro viajaram durante três anos explorando-o da foz, no atual município de Belmonte (BA), à nascente, na região do atual município do Serro/MG (RESENDE; VILLATA, 2007). Algumas décadas depois, em 1573 foi a vez de Sebastião Fernandes Tourinho descer o Jequitinhonha partindo da região do Serro até a foz do rio. Muitos outros expedicionários percorreram o Vale nos séculos XVI e XVII, onde se desenvolvia, então, uma ainda incipiente atividade pecuária nas porções norte e nordeste do estado de Minas Gerais, ficando, inclusive, impressas nessas paisagens, significativas marcas dessa importante atividade vinculada ao “abastecimento alimentar e fornecimento de matéria-prima para a fabricação de utensílios diversos nas áreas das minas”, e que viriam a florescer no início do século XVIII, com a descoberta de ouro e diamantes na comarca do Serro Frio (SOUZA, 2010, p.27). Com o avanço da mineração no Distrito Diamantino a partir de 1714, o Vale do Jequitinhonha passa, inclusive, a ser foco de movimentos migratórios diversos, que se redirecionavam, na busca incessante pelo ouro e diamantes dos caminhos da imponente Serra do Espinhaço (movimento que ainda hoje continua configurando a realidade de muitos lugarejos no Vale – principalmente no Alto Jequitinhonha). Todavia, o receio frente à possível desvalorização dos diamantes, caso esses se tornassem muito fartos no mercado, incentivou a criação de uma legislação muito restritiva, principalmente no leito do rio Jequitinhonha, onde se proibiu desde a mineração ao estabelecimento de assentamentos, e até mesmo, o trânsito de pessoas nas margens ou afluentes do rio (SANTIAGO, 2010). Em 1726 o sertanista Sebastião Leme do Prado chega à região do rio Fanado41, ao qual, num segundo momento, atribui-se também o topônimo “ufanista” de Bom Sucesso, pela “surpreendente quantidade de ouro” encontrada nos aluviões (SOUZA, 2010). E desde então, a região da Freguesia de São Pedro do Bom Sucesso das Minas Novas do Fanado passa a ser território de disputa entre os governos da Bahia e Minas Gerais e de intensa atração populacional, causando, inclusive o esvaziamento demográfico de outras regiões próximas. Minas Novas foi se tornando, então, um importante centro urbano e comercial no médio Jequitinhonha, e ao redor do qual, foram, inclusive, descobertas outras minas importantes 41 O registro toponímico “Fanado” se remete ao primeiro momento de contato, quando o rio ainda não apresentava a abundância de ouro como se imaginava, e o metal, aí, “era escasso, pobre em ouro” (SEABRA, 2010, p.85). 165 como: o arraial de Santa Cruz da Chapada (atual Chapada do Norte); a paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Água Suja (Berilo) e o arraial aurífero São Domingos (atual Virgem da Lapa) - (SOUZA, 2010). Vale ressaltar, ainda, que junto aos colonos que se dirigiam às Minas Novas, vieram muitos escravos, que como ressalta Saint-Hilaire, compunham a maior parte da população minasnovense: Seus habitantes são, na maioria, homens de cor, pouco abastados e sem educação. Tem algo da grosseira rusticidade que frequentemente caracteriza nossos campônios franceses; são, porém, bons, religiosos, submissos a seus superiores, afetuosos, hospitaleiros... (SAINT-HILAIRE, 1975, p.195). Apesar de a historiografia clássica indicar meados do século XVIII como o período do declínio da mineração nessa região, há estudos mais recentes que indicam que “a mineração continuou intensa até meados do século XIX, permitindo uma diversificação das atividades econômicas e aumentando significativamente o fluxo populacional para toda a região” (SOUZA, 2010, p.32). Sobre essa diversidade de culturas do Vale, Saint-Hilaire, em suas viagens pela região em 1817, já indicava que “em todo o Termo colhem-se milho, feijão, um pouco de trigo, batatas, bananas e cultiva-se especialmente a mandioca (...), a ocupação principal é a criação de gado” (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 194). Há ainda em outras passagens desse autor o destaque ao registro da produção de algodão (os melhores da Capitania) e a uma diversidade de gemas encontradas nos pequenos rios, como águas- marinhas, crisólitas, topázios brancos, etc. (SAINT-HILAIRE, 1975). Todavia, como ressalta ainda Souza (2010, p.31): A diminuição da produção, associadas ao contrabando, teria reforçado a Coroa a reforçar a fiscalização. A descoberta de diamantes fora da demarcação do Distrito Diamantino e que eram contrabandeados para a Bahia foi, certamente, o principal fator para a reincorporação do termo de Minas Novas à província de Minas. A redução do potencial das áreas de mineração desencadearia, na segunda metade do século XVIII, um avanço da população a leste da bacia, em busca de terras férteis, sem proprietários e com disponibilidade de riquezas naturais e mão de obra indígena. Esse movimento em direção ao médio e baixo Jequitinhonha, que se originou, predominantemente, à margem direita do grande rio, segundo Ribeiro (1996, p.18) bifurcou-se através de dois eixos principais: Um pela barra do rio Araçuaí, descendo o Jequitinhonha para ir povoando aquelas beiras de rio, famosas na época por serem sadias, além de muito férteis. Esse movimento migratório começou com o Século Dezenove e originou o primeiro povoamento do que chamamos hoje baixo Jequitinhonha: Itaobim, Jequitinhonha, Almenara, Salto. Outro caminho saía pelas cabeceiras dos rios Fanado e Setúbal, 166 pelo Alto dos Bois, na direção das nascentes do Mucuri. Este era mais perigoso, porque existiam índios mais bravos e o perigo constante das febres. Neste segundo caminho ressaltado por Ribeiro (1996) - com uma referência a Alto dos Bois -, emerge outra dinâmica importante na formação territorial do Vale, que foi o estabelecimento de destacamentos militares, com a finalidade de defender a província mineira, garantindo a segurança dos colonos contra as reações aguerridas de autodefesa dos indígenas. É sugestivo notar que tais rotas de ocupação regional ainda hoje se configuram como importantes centralidades urbanas, como é o caso do atual município de Araçuaí, que após a reabertura do rio Jequitinhonha à navegação, em 1804, e com o avanço da segunda fronteira de ocupação ligada, principalmente, à pecuária, configurou-se como significativo entreposto comercial que ligaria o alto-médio Jequitinhonha ao litoral baiano. Nesse contexto histórico, essa localidade ao centralizar a “distribuição de produtos em toda região”, propiciou o movimento de exportação de algodão, toucinho, carne e rapadura e de importação de sal, querosene e tecidos finos (SOUZA, 2010, p.44). Além disso, o lugar configurou-se, e ainda se configura, como um importante “ponto de encontro entre os canoeiros, vaqueiros e tropeiros do sertão”, figuras ainda hoje evidenciadas na dinâmica sociocultural do Vale (SOUZA, 2010, p.48). É importante salientar que esse encontro de culturas se deu intensamente no médio e baixo Jequitinhonha, onde diversos aldeamentos foram criados no intuito de tentar “civilizar”, principalmente, os grupos tribais que viviam em conflito com os Borun (os quais dominavam boa parte das duas margens do Jequitinhonha “nos lugares onde a floresta e as montanhas se misturam” - SANTIAGO, 2010, p.75). E apesar de cada vez mais “miscigenados” aos costumes portugueses, muitas de suas práticas e tradições foram preservadas, e ainda hoje se mantêm vivas no modo de vida tradicional das comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha. Já no século XIX, a ocupação do baixo Jequitinhonha se deu primordialmente à margem esquerda do rio, estando vinculada inicialmente aos migrantes do “rio dos currais” (Rio São Francisco), por conta da famosa “seca dos noventinha” (1890). Numa tentativa de domínio das áreas agricultáveis, os grupos escolhiam ainda dois caminhos, o dos “Gerais” (por Itira/ Araçuaí) ou das “matas” (por Pedra Azul e Itaobim) (RIBEIRO, 1996, p.19). Esse contingente populacional no baixo Jequitinhonha foi ainda incrementando por outra “migração de refugiados ambientais”, associados agora a outro evento de seca que ocorreu nos anos de 1930 na região da Bahia. No início do século XX, as terras disponíveis já se 167 mostravam, contudo, escassas, restando apenas a possibilidade de agregação dessas pessoas às fazendas e pequenos vilarejos já existentes. E é relevante assinalar que esta dinâmica de ocupação das grotas e chapadas, ao longo do alto, médio e baixo Jequitinhonha (que podem ser visualizadas no mapa 4) fez-se presente em todo território do Vale, configurando assim além de uma forma típica de ocupação ao longo do rio Jequitinhonha e dos pequenos córregos, um modo de vida peculiar que dialoga com as possibilidades de sobrevivência das pequenas grotas e córregos e a aridez das chapadas, reservas naturais onde a coleta de frutos se faz presente, entremeada às boiadas dispersas na Caatinga ou no Cerrado dos chapadões. 168 Mapa 5: Mapa Geohistórico das Frentes de Ocupação da Mesorregião do Jequitinhonha 169 Para compreender a riqueza e a dinâmica sociocultural oriunda desse complexo processo de formação da Paisagem Cultural do Vale do Jequitinhonha, que se desvela no “modo de ser” das pessoas é necessário ainda compreender a conexão que se estabelece entre os elementos do passado, do presente e os sonhos do futuro que se interconectam e convergem para a configuração de uma identidade cultural particular. Ressalta-se ainda que as transformações da paisagem durante todo esse processo de ocupação propiciaram ainda a estruturação de traços identitários ancestrais que permanecem inscritos nas peças de barro, nas casas de pau-a-pique, nas bandas de taquara, no preparo do fubá de moinho d’água e nas cantigas e lendas que contam a história de um povo, povo que conta e encanta com sua história. E é justamente sobre essa construção identitária dos “seres do Vale” que problematizaremos a seguir. 4.2. Paisagem e Região: A construção identitária do “ser do Vale” Para além da dinâmica de ocupação territorial do Vale do Jequitinhonha, a construção identitária, vincula-se ainda às concepções e construções socioculturais dos atores sociais quanto à sua vivência nas paisagens e as próprias estruturas que as associam às realidades regionais. É nesse sentido, que postulamos que a compreensão das paisagens culturais deve sempre buscar uma análise da configuração geohistórica de determinado território, desvelando as interações humanas com o meio, e considerando ainda a compreensão de suas regionalidades a partir da concepção da região enquanto espaço vivido: O espaço vivido, em toda a sua espessura e complexidade, aparece assim como o revelador das realidades regionais; estas têm certamente componentes administrativos, históricos, ecológicos, econômicos, mas também, e mais profundamente, psicológicos (FRÉMON, 1980, p.17). Para Frémont (1980, p.17) a região só se consolida efetivamente como tal a partir do momento em que ela é “vista, apreendida, sentida, anulada ou rejeitada, modelada pelos homens” a partir de suas percepções e construções imagéticas do espaço. “O espaço regional é também uma imagem”, elemento substancial da construção social e perceptiva dos seres, intrinsecamente vinculada aos aspectos psicossociais, sem os quais “a região seria apenas a adaptação de um grupo a um meio, ou um encontro de interesses num espaço dado” (FRÉMONT, 1980, p.109). Segundo o autor: 170 Nesta perspectiva, o estudo da paisagem deveria ser reabilitado por outros meios que não os das análises formais. Porque as suas formas constituem um universo de signos de criação coletiva, produto, mas também obra, imagem criada, recriada e recebida. Ela é, nas suas múltiplas facetas de reflexos infiéis, o espelho do mundo (FRÉMONT, 1980, p.110). É neste contexto que buscamos construir também um diálogo entre paisagem e região (a partir da experiência vivida), compreendendo as Paisagens Culturais do Vale do Jequitinhonha como fruto dessa conexão do tempo-espaço histórico com o tempo-espaço pessoal, e como um “espaço-movimento e um espaço-tempo vivido” (FRÉMONT, 1980, p.26). E é interessante destacar como os meios de investigação ressaltados na obra deste autor clássico contribuíram para a consolidação mais recente do método etnogeográfico, assumindo a premissa que, para se alcançar o verdadeiro sentido das paisagens culturais regionais (enquanto espaços vividos), é preciso se explorar as palavras e o olhar como métodos investigativos primários da composição do Conhecimento. Assim, como as biografias dos homens que configuram essas paisagens, os diversos olhares e compreensões que podem ser alcançados por meio da elaboração das entrevistas semi-estruturadas, a preciosidade dos documentos antigos (cartas, poesias, músicas, jornais e filmes) retratam, de alguma forma, as vivências e percepções de determinada realidade no contexto do espaço-tempo em que foram produzidos. É nesta perspectiva que, também para Bezzi (2004, p.250) a região se configura como foco de identidade cultural, definida pela autora como uma “apropriação simbólica de uma porção do espaço por um determinado grupo, o qual é também um elemento constitutivo da identidade regional”, sendo, portanto, necessário vivenciar essa região, para enfim compreender verdadeiramente os sentidos de suas paisagens. A autora ressalta que é precisamente a partir da obra de Frémont que esse novo paradigma regional se consolida fortemente ao se evidenciar, primordialmente, no âmbito das análises regionais, a dimensão cultural. De acordo com a autora: Assim, o espaço passa a ter a conotação de uma categoria cultural, ou uma representação coletiva. Existindo elementos comuns, estabelecidos coletivamente, vividos de formas diferentes e com escalas de valores distintos, serão eles os elementos constitutivos de uma prática comum entre os atores de uma determinada coletividade. Assim, quando essa prática está relacionada a um espaço específico, tem-se a configuração regional, da qual a coletividade passa a sentir parte ou apropriar-se dela. Assim, ela existe em um nível da representação de uma coletividade que tem e incorpora significado, é um elemento da organização social. Ela passa a ser concreta, pois é uma realidade vivida, independente da vontade de quem a observa, já que o espaço dá a identidade do grupo (BEZZI, 2004, p.210- 211). 171 E é justamente sob tal concepção que a mesorregião do Vale do Jequitinhonha se consolidaria enquanto uma paisagem cultural, sendo apropriada por uma coletividade que diz “ser do Vale”, exaltando todo o sentimento de pertencimento e orgulho de uma apropriação que perpassa pela resiliência aos períodos de estiagem, às alternâncias dos ciclos econômicos e aos contextos políticos e sociais que “oficializam” estigmas e “verdades” vinculadas a interesses outros, que não o desenvolvimento e melhoria da qualidade de vida de um povo que concebe este espaço uma auto representação sociocultural singular. É sugestivo observar que em meados do século XX uma nova dinâmica se apresentava no Vale, oriunda, como ressalta Nogueira (2006, p.6) de dois principais infortúnios: a) uma indústria de diagnósticos e planos de desenvolvimento que oficializava uma concepção, que ainda hoje, permeia grande parte da sociedade mineira, do “Vale da Miséria” e; b) uma série de “planos-programas-projetos de desenvolvimento regional vocacionados para o fracasso (...) recorrente”. Dinâmica esta que já se gestava na segunda metade do século XIX, quando a crise da mineração (entre 1870 e 1890) desencadeou a diferenciação dos setores econômicos no Alto Jequitinhonha e o desdobramento de interesses e mobilizações políticas e sociais, no âmbito das elites do Vale, ocasionando uma série de debates públicos sobre o desenvolvimento da região, vinculados, inclusive, ao surgimento de jornais e boletins locais sobre a questão (MARTINS, 2011). Segundo Carvalho (2005, p.66), a história de Minas Gerais é entoada por três tipos distintos de economia e sociedade, que “vocalizavam projetos regionais diferentes: as vozes do ouro, da terra e do ferro”. A primeira predominou entre o século XVIII e meados do XIX, quando os anseios pelo acúmulo de metais preciosos encontrados nas Minas é que legitimavam as ordens e desordens da Província. Já as vozes da terra, destacam-se entre a segunda metade do século XVIII e a primeira década do século XX, quando começam a emanar na região, entre as minas e os gerais, os valores da tradição, a distinção da família, a consolidação de uma ordem social estável, o paroquialismo e a própria supremacia do Estado. E a partir da década de 1940 que se consolidou a sinfonia do ferro, orquestrada pela busca intensiva do progresso e da modernização econômica. As vozes do ouro, segundo Martins (2011), eram no Jequitinhonha enunciadas por projetos liberais e industrialistas do Distrito Diamantino, envolvendo mineradores, bispos, empresários, políticos e jornalistas que apoiavam o processo de industrialização do Vale, o qual acarretou, inclusive, na fundação da Fábrica de Tecidos de Biribiri (1876), atual paisagem residual do município de Diamantina, localizada nos limites do Parque Estadual 172 homônimo, cuja memória de uma cultura industrial permanece apenas nas reminiscências de uma paisagem hoje vinculada ao circuito turístico da região. Já, às vozes da terra, o autor associa dois protagonistas regionais: os agropecuaristas e a Igreja Católica. Os primeiros previam o desenvolvimento vinculado ao avanço da agropecuária, à diversificação da produção primária e ao incremento da produtividade, que transformariam o médio Jequitinhonha no celeiro de abastecimento mineiro e baiano. Já a Diocese de Diamantina, juntamente com a promoção dessa modernização da agricultura, em 1899, incentivava a realização de práticas associativistas nas paróquias, bancos para empréstimos rurais e a “reforma da cultura popular em nome da ilustração teológica e do código do Direito Canônico”, viabilizando assim uma “moralização dos costumes” (MARTINS, 2011, p.93). Desse modo, ainda segundo este autor, o “clero diamantinense e os intelectuais do antigo Tejuco atuaram, portanto, como impulsionadores da recristianização de instituições leigas, defendendo a influência que a Igreja exercia sobre a sociedade regional e o Estado” (MARTINS, 2011, p.93). E, por fim, “as vozes do ferro” foram representadas pela busca do progresso e da modernização econômica, por meio das frentes de avanço dos eucaliptais e das mineradoras sobre as regiões de chapada. Tais práticas abriram portas para a inserção de atividades econômicas não sustentáveis e incongruentes com a realidade natural, social e cultural do Vale: as monoculturas de eucalipto e a cafeicultura, que aumentaram a concentração fundiária e ocuparam áreas tradicionalmente utilizadas pelos pequenos agricultores da região, gerando impactos ambientais significativos ao meio. Além disso, reduziram significativamente os postos de trabalho – em decorrência do processo de mecanização do campo –, incentivando a diáspora de muitas famílias da região, os “turmeiros”, que já em 1902, se deslocavam rumo a São Paulo, Rio de Janeiro e demais capitais brasileiras em busca de oportunidades de trabalho. E ainda hoje, é contra essa realidade, que muitas comunidades lutam tentando permanecer na terra, e mantendo a esperança de viver novamente no seio de uma família reunida. Muitos desses projetos desenvolvimentistas, já vislumbrados pela elite liberal e/ou progressista foram incorporados aos planos de desenvolvimento implementados pelo governo do estado, o qual realizou, em 1960, o “Estudo Geográfico do Vale do Médio Jequitinhonha”, concebido como uma das frentes do projeto nacional-desenvolvimentista, iniciado na década de 1930 e impulsionado entre 1950/1960. Tal proposta de modernização, urbanização, industrialização e integração nacional do Vale, segundo Servilha (2015) indicava a 173 necessidade de investimentos na construção de estradas e meios de comunicação; postos agropecuários; frigoríficos regionais; estações de tratamento de água; hidrelétricas e na disponibilização de crédito agropecuário. Posto isso, com o intuito de legitimar os projetos desenvolvimentistas e o discurso da “região plano”, “região problema” e “bolsão de pobreza” é que foi criada, em 1964, a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (CODEVALE). Em sua crítica sobre a CODEVALE, Mateus Servilha (2015, p.71) destaca que a criação da Comissão foi concebida como uma redenção pelo desenvolvimento e para a “superação de uma desigualdade regional”, ponderação também ressaltada por Martins (2012, p.156), na expressão muito utilizada pelo povo do Vale nesse período – “aqui, a CODEVALE não acode, nem vale”. Tais concepções convergiram ainda com a implementação da divisão das Microrregiões Homogêneas de Minas Gerais, lançada pelo IBGE em 1969, e formulada a partir das características geoeconômicas, fluxos e relações espaciais de produção/consumo e desenvolvimento socioeconômico. Tais concepções estavam voltadas a um conceito de região, construído como um espaço homogêneo e polarizado, no intuito de propiciar a consolidação de estudos estatísticos, descentralização da ação administrativa e vias de planejamento estratégico (DINIZ; BATELLA, 2005). Na Tabela 6 podemos verificar os principais projetos estruturados no âmbito dessas “indústrias de diagnósticos e planos de desenvolvimento” implantados a partir da década de 1960. Tabela 6: Diagnósticos e Planos de Desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha entre 1960 e 1980 Período Diagnóstico/Plano Principais Características 1967 Pré-diagnóstico do Vale do Jequitinhonha 1. Espaço Físico e realidade infraestrutural 2. Setores Básicos da Atividade Humana 3. Estudos Complementares - Aspectos da educação - Recursos minerais 1968 Estudo do Potencial Energético (CEMIG) Estudo de Mercado da Região Mineira do Vale do Jequitinhonha 1969 Relatório Preliminar do Projeto Rondon/3 – Vale do Jequitinhonha (Fundação João Pinheiro) Estudo realizado por estudantes universitários de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul ressaltando as “condições precárias”, “limitadas à simples sobrevivência”, “incrivelmente atrasada” (palavras dos estudantes). 174 1970 Série de Diagnósticos de “Estratégia para o desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha” Eixos Principais de atuação: 1. Fundo de Recuperação Econômica 2. Energia Elétrica 3. Estradas 4. Comunicação 5. Educação 6. Saúde 7. Saneamento Básico 8. Associativismo 9. Agricultura 10. Pecuária 11. Indústria 12. Artesanato 13. 1973 Estudo de Regionalização (Fundação João Pinheiro) Delimitação de nova organização regional a partir das potencialidades econômicas futuras (caráter institucional). Esta divisão concedeu ao Vale do Jequitinhonha o título de “Vale da Miséria” pela ONU em 1974. 1975 “Diagnóstico preliminar do Vale do Jequitinhonha” (FJP/ CODEVALE) “Levantamento da estrutura fundiária e agrária do Vale do Jequitinhonha” (CODEVALE) “Plano de emergência para o atendimento ao Vale do Jequitinhonha” (CODEVALE) Diagnósticos e planos estruturados a partir de medidas que vinculavam a “miséria” estritamente à questão climática. 1976 Programa integrado de desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha Instituições públicas atuando conjuntamente na região (41 federais e 33 estatais) 1979 Programa de Desenvolvimento Rural do Vale do Jequitinhonha (Planrural – Seplan) Políticas voltadas para o crédito rural. FONTE: Informações sistematizadas a partir de SERVILHA (2015) Ainda segundo Servilha (2015, p.123) tais diagnósticos, entre 1960 e 1970, tinham o objetivo de difundir a imagem da “miséria regional”, do “vale da fome”, que demandava, urgentemente, planos de desenvolvimento que explorassem as “potencialidades regionais” para o desenvolvimento, tendo destacado, entre 1970 e 1980, o Vale como a “região promessa”, e incentivado a “corrida para o vale” da “disponibilidade de terra e mão de obra” – perspectiva que foi atendida prontamente pelas grandes empresas reflorestadoras, que ainda hoje exercem, um forte domínio sobre as chapadas do Jequitinhonha. Todavia, as críticas a esse modelo de desenvolvimento e à própria CODEVALE já vinham se explicitando desde a década de 1970, tendo sido formuladas por defensores dos direitos humanos que, durante o período militar, ressaltavam que o problema do nordeste (seja do Brasil ou de Minas Gerais) não era de seca, mas de cerca, e já incitando as questões ainda hoje incidentes da estrutura fundiária brasileira (SERVILHA, 2015). 175 Ao realizar um estudo aprofundado de todos esses projetos, Servilha (2012) destaca a construção institucional de uma “região inventada” a partir de valorações negativas, tais como: 1. Uma região tipicamente rural, que sofre o estigma “urbano etnocêntrico” que a qualifica enquanto atrasada, atraso, resíduo a ser superado pelo desenvolvimento e progresso; 2. Uma região inserida (em parte) no semiárido nordestino brasileiro que recebe a valoração de “sertão”, estigmatizada socialmente negativamente (por uma característica natural) enquanto área a ser dominada, transformada e agregada; 3. Uma região interiorana, que sofre, simultaneamente, todas as valorações produzidas pelo processo de ocupação territorial brasileiro, que possui como uma de suas marcas centrais a litoralização do poder político em detrimento do interior do país [...]; 4. [...] O título “Vale da Miséria”, utilizado, ainda hoje, por muitos para caracterizar a região [...] (SERVILHA, 2012, p.39). E é diante deste contexto de fortalecimento de estigmas associados a este “ser do Vale da Miséria”, “do rural”, “do sertão” (denominado por alguns, inclusive, como “Etiópia Brasileira”) que emerge um movimento cultural, classificado por Servilha (2012; 2015) como articulações ou reações “contra-estigma” 42, e que se desenvolveram significativamente a partir das alteridades que produziram e potencializaram “um sentimento de pertencimento a esta região” (SERVILHA, 2015, p.167). Ressalta-se que este “jeito de ser” não retrata apenas uma identificação e aproximação natural dessas pessoas com seu espaço vivido; ele é fruto, inclusive, da reação e da resistência desse povo aos estigmas impostos pela cultura dominante. Reações estas que se estruturam fortemente a partir da consolidação do jornal “Gerais” - fruto da indignação de um grupo de estudantes universitários da capital belorizontina -, que, em abril de 1977, ao passar o feriado de semana santa com seus familiares no Vale, enfrentaram uma série de dificuldades para retornar a Belo Horizonte, por falta de ônibus suficientes para tantas pessoas (que faziam esse movimento de retorno à região nos períodos de feriado). Um desses estudantes, em seu relato “Gerais: uma história do Vale” ressalta que, durante essa longa viagem, ele e mais dois amigos chegaram à conclusão de que, para contribuir para o desenvolvimento do Vale, era “preciso criar uma forma de melhorar a comunicação entre as cidades, o que ajudaria a estabelecer instituições populares organizadas, como associações, sindicatos, e a reforçar o trabalho das poucas que já existiam” (MARTINS, 2012, p.149). Quatro meses depois essa necessidade transformou-se em uma ideia, que desencadeou ainda em uma série de viagens, 42 Para tal construção Servilha se apoia na conceituação de Bourdieu (2007, p.125), segundo a qual “o estigma produz a revolta contra o estigma [...]. É, com efeito, o estigma que dá à revolta regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes simbólicas, mas também o seus fundamentos econômicos e sociais, princípios da unificação do grupo e pontos de apoio objectivos da ação de mobilização”. 176 articulações locais e patrocinadores e, tendo sido lançada em março de 1978, a primeira edição, de um veículo que se consolidaria outra forma de se retratar a realidade e a riqueza sociocultural do Vale – o jornal GERAIS. Segundo Servilha (2015, p. 173): O GERAIS irá se tornar o principal fomentador de uma articulação e organização populares regional em busca de transformações sociais profundas, articulando objetivos políticos e sociais abrangentes (nacionais, continentais e/ou globais) a discursos, leituras e ações produzidas por e para produtores de uma emergente identidade regional. Nesse contexto, no qual o domínio da leitura não era ainda uma característica predominante dos “seres do Vale”, ler o jornal GERAIS na pracinha, transformou-se em evento social; era um ato de vida social comunitária em prol da construção de uma nova forma de se dialogar sobre e com os “filhos do Jequitinhonha em espaços e momentos regionais coletivos” (SERVILHA, 2015, p.201). E foi assim, que essa “articulação política identitária regional” se solidificou sobre a compreensão de que no Vale, “cultura e política seriam questões indissociáveis” (SERVILHA, 2015, p. 183). Para Martins (2012), o jornal subsidiou ainda a criação de sindicatos, associações de classe e entidades culturais. E é nesse sentido, que Servilha (2015, p.201) registra ainda, que associada à importância assumida pelo jornal, deve-se considerar que: [...] a emergência de uma identidade regional não pode ser entendida como um produto imediato da simples leitura do GERAIS por parte da população residente no Vale do Jequitinhonha, mas da articulação político-cultural, mediada pelo jornal (assim como pela promoção de diversos eventos de amplo alcance) entre a construção de uma representação coletiva regional (a compreensão do Vale do Jequitinhonha enquanto “realidade”) e a mobilização e organizações regionais (um movimento regional em formação). Tanto que, ainda em 1978, foi organizado o “I Concurso de Contos e Poesias do Vale do Jequitinhonha”, no qual canoeiros, tropeiros e lavradores, “vistos como folclóricos e/ou resquícios do passado, foram apresentados como alicerces históricos da região” (SERVILHA, 2015, p.184). Entre tais mobilizações regionais destacam-se ainda, em 1979, o “I Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha”, e, em 1980, o “I Festival da Canção Popular do Vale”, que deu origem ao tão reconhecido FESTIVALE (Festival de Cultural Popular do Vale do Jequitinhonha). Essa construção da identificação musical por meio dos festivais viabilizou por sua vez a “valorização da cultura popular de sua população em resposta a estigmas e explorações. O Vale torna-se dizível e visível através da música” e de toda a sua arte (SERVILHA, 2015, p.245). E a partir daí a música, a poesia e cultura do Vale passaram a evidenciar as “tradições 177 regionais”, “as riquezas que temos e queremos”, transformando-se em “elo de coesão, o elemento comum, entre os mais diferentes grupos sociais do Vale do Jequitinhonha na busca pela revalorização da região para além de suas limitações, mazelas e misérias” (SERVILHA, 2015, p.307). Nesse contexto, podemos destacar que a paisagem cultural do Vale do Jequitinhonha passa a se configurar a partir do que Duncan (2004, p.110) reconhece como uma “retórica da paisagem”, baseada nos discursos desses sujeitos que são partilhados e construídos socialmente em prol dessa construção identitária emergente. Para Henriques (2012), um dos fatores mais importantes na configuração dessa identidade regional é a própria cultura popular, cuja força maior está pautada na resistência. Para tal, o autor se fundamentou no fato de que, mesmo diante, da importância do jornal e de diversos outros eventos e movimentos sociais, eles, por influências diversas, deixaram de existir. Todavia, o espírito de resistência sempre possibilitou que a essência desses movimentos ressurgisse em outras manifestações, como foi o caso do Centro Cultural e Artístico do Vale do Jequitinhonha (CCAVJ), a Federação das Entidades Culturais do Vale do Jequitinhonha (Fecaje), que surgiram, respectivamente, em 1987 e 1990, após a edição do último número do GERAIS, em julho de 1985. Assim, ainda para o autor, essa identificação comum da população do Vale deve ser atribuída à cultura popular, associada ainda aos desdobramentos do jornal GERAIS (como uma carta de apresentação, divulgação e até mesmo sensibilização de adeptos às questões do Vale), ao FESTIVALE, às influências socioculturais e políticas de negros e índios, à religiosidade popular, aos fazeres artesanais, à produção familiar de subsistência e à sociabilidade comunal desse povo. Como sugestivamente ressalta Rubinho do Vale43 (2000 apud SERVILHA, 2015, p.307): Cultura não se fabrica, se conquista, se constrói com o tempo. Se semeia em pleno movimento. Se doa, se recebe, se troca. Cultura é a dinâmica da evolução do ser. É combustível para a vida e produtora de prazer. Estabelece relações, modifica padrões. Se modifica dentro dos princípios da espontaneidade. Cultura é consciência, ciência e sabedoria. É a essência do viver a plenitude da cidadania. E é a partir dessa construção que Servilha (2015, p.307) inclusive define sua compreensão de cultura popular (a qual referendamos): “enquanto um conjunto de práticas, representações e significações produzidas através de processos e diálogos horizontais marcados pela reciprocidade”. Embora, mesmo diante de todo o protagonismo sociocultural que se instituiu e se consolida a cada ano no Jequitinhonha, os efeitos da migração, do avanço 43 Conceito de cultura apresentado pelo compositor no encarte do disco “Viva o povo brasileiro” de 2000. 178 das monoculturas e da falta de oportunidades ainda perduram na realidade dessas pessoas. Para Martins (2012, p.167): [...] o desenvolvimento só pode ser conseguido se ele for puxado por uma corrente que tem quatro elos, e precisam estar dispostos em uma ordem lógica: conhecer, gostar, defender e divulgar. Precisamos fazer com que o povo do Vale conheça a região, a sua história, suas riquezas, suas potencialidades, suas lendas, seus mitos, seus valores, pois é só quem conhece que gosta. É preciso fazer com que o povo goste do Vale do Jequitinhonha, pois é só quem gosta que defende. Ao analisarmos essa fala de um dos protagonistas do movimento de articulação do Vale, por meio do jornal GERAIS, podemos observar que, nas entrelinhas, o autor destaca que, mesmo possuindo essa identificação regional com o Vale, muitas pessoas desconhecem a diversidade de suas singularidades e diferenciações internas (pois o Vale não é um só!). Assim como sua bacia hidrográfica, que é composta por diversos outros córregos e riachos que se conectam ao grande “Jequi tem onha”, os Jequis possuem muitas culturas, práticas, estruturas e manifestações que, em suas mais diversas tradicionalidades, configuram um rico amálgama sociocultural conhecido como Vale do Jequitinhonha. E desse modo, o que Martins (2012) ressalta é que o caminho para o desenvolvimento regional deve considerar as relações e interações das redes que configuram esse espaço. Redes estas que, segundo Soares (2008), são mais intensas quanto mais fortes e evidentes forem seus conteúdos e formas. As relações entre os atores de uma rede apresentam forma e conteúdo. O conteúdo é dado pela natureza dos laços (parentesco, amizade, poder, troca de bens simbólicos ou materiais, afetiva, etc.); e a forma da relação compreende dois aspectos básicos: i) a intensidade ou força do laço entre dois atores; e ii) a frequência e o grau de reciprocidade com que esse laço se manifesta (SOARES, 2008, p.51). O que compreendemos a partir do viés adotado por Soares (2008) é que a emergência regional identitária do Vale, se consolida a partir da construção de redes sociais que se estabelecem entre esses sujeitos, seja pelos festivais e encontros ou pelas feiras de alimentos típicos e artesanatos que se estruturam nesse espaço regional. São estas interações que realmente solidificam a identificação de ser do Vale, essa “tradicionalidade regional” que, por meio do reconhecimento, da afetividade, da proteção e da divulgação das identidades locais (técnicas, saberes e tradições) capta “as singularidades da história, do ambiente (especificidades geográficas), dos sistemas produtivos e da lógica específica de reprodução das famílias”, as quais possibilitam a edificação de uma concepção efetiva de desenvolvimento local (SOARES, 2008, p.74). Vale ressaltar que este desenvolvimento, todavia, não deve ser imposto, como vinha (e ainda vem) sendo feito em diversos contextos sociais; ele precisa ser consolidado a partir do reconhecimento dos “mecanismos de vivência” e das “atividades humanas baseadas em redes de relacionamentos, em certas formas de 179 solidariedade, de cooperação e reciprocidade que remetem às tradições locais” (SOARES, 2008, p.76). E é no intuito de ressaltar, valorizar, defender e resguardar estas tradicionalidades que postulamos que a Paisagem Cultural constitua um instrumento essencial na construção desse movimento, uma vez que ela evidencia, em suas diferenciadas abordagens, a riqueza sociocultural de uma região por meio da identificação desses traços identitários de confiança, cooperação e vivência que convergem, mesmo para populações tradicionais diversas, para um mito fundador comum, um modo de vida singular e o desejo e busca por um destino partilhado. Pois, como ressalta ainda Servilha (2015, p.313): Ser do Vale do Jequitinhonha significa, nesse caso, também pertencer a um movimento cultural de base regional, cuja centralidade permeia, não a “descoberta” de uma região ou de uma identidade regional, mas a consciência de possibilidade abertas concretas de desconstrução de identidade e significações herdadas, tais como o “ser do vale da miséria”, tanto quanto de construção de identidades, em movimento, associadas ao poder de redizer sua região para, assim, redizer-se e reposicionar-se socialmente na força de um coletivo. Ao associar o processo de formação geohistórica do Vale do Jequitinhonha, até o início do século XX, e os desdobramentos da construção identitária desse mito fundador comum, a partir de 1940, à dinâmica dos movimentos culturais do Vale, é que evidenciamos a importância dos sujeitos na compreensão dessa importante paisagem cultural brasileira. E é por meio desses atores, de suas falas, movimentos e ações que iremos a seguir desenvolver uma narrativa da paisagem por meio da conexão do passado, do presente e do futuro que se dá na construção das redes de convivência e solidariedade que hoje são evidenciadas nesse recorte regional. 4.3. Passado – Presente – Futuro: um vale em movimento por meio da luta e articulação de seus agentes sociais Sabemos que a nossa riqueza material e imaterial existe sem mesmo acontecer a participação do Estado. É por essa razão que o Jequitinhonha é imortal quando se fala de arte popular, de patrimônio cultural imaterial. Apenas solicitamos a atenção do Estado no que diz respeito às políticas de preservação do nosso patrimônio e da cultura de forma geral. Penso que elas têm de ser construídas conosco, lá no Vale, para que possam realmente surtir efeito positivo (SANTOS44, 2012, p.67). Ninguém melhor do que os próprios sujeitos que produzem e vivenciam sua cultura no Vale para falar do seu patrimônio. José Pereira Santos (citado no início deste 44 Relato de José Pereira Santos publicado no livro “Vale do Jequitinhonha: cultura e desenvolvimento” de 2012. 180 subcapítulo) é um militante cultural do município de Araçuaí que vem lutando pelo resgate e preservação do patrimônio histórico e cultural do Vale por meio da arte. Nas entrelinhas de sua fala, ele ressalta a importância do movimento cultural no processo de construção identitária do protagonismo dos sujeitos do Jequitinhonha na construção de outros Vales: o vale da religiosidade e da cultura popular; o vale da cultura indígena; o vale da cultura afro- brasileira; o vale das folias de reis, do congado, da viola, das benzedeiras e rezadeiras, das festas nas ruas e do artesanato (SERVILHA, 2012). Movimento que resiste e que se fortalece a cada pronunciamento de orgulho e resiliência como o de Ulisses Mendes, um “cronista da cerâmica”, produtor de esculturas que exprimem, a partir de uma leitura crítica, o cotidiano do Vale: Então a cultura do Vale é essa, a gente passou por muita dificuldade mesmo sobre criticar e conservar o Vale do Jequitinhonha. O Vale do Jequitinhonha hoje está desenvolvido, mas foi através da música, da poesia, do artesanato e muita luta mesmo da gente se reunindo pra fazer os movimentos culturais. Os poetas falando nas suas poesias e nós falando no barro, e os cantadores na música, e com isso estamos fazendo 30 anos de movimento cultural. Eu até me orgulho de eu mesmo estar resistindo a esse tanto de tempo (MENDES, 2012, p.97). Ressalta-se que essa emergência de novos sujeitos sociais vem sendo gestada também por meio dos movimentos sociais e das lutas populares que vêm se consolidando no Jequitinhonha desde 1980. Um primeiro processo que devemos considerar, segundo Ribeiro (2010), foi a formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) – movimento de fundamentação cristã, vinculado à Teologia da Libertação, cujo objetivo era atuar contra a opressão dos grupos marginalizados e subalternizados na América Latina. No âmbito das pastorais, padres, freiras e leigos passaram a desenvolver com essas comunidades, nesse contexto, a redescoberta da dignidade, a construção de uma identidade comunitária e a autoconfiança dos mesmos na capacidade de transformarem suas vidas e a sociedade na qual se encontram inseridos. No Jequitinhonha esse movimento se destacou principalmente na Diocese de Araçuaí, onde em 1977 já existiam 350 CEBs; e em 2010, 970 comunidades, sendo 125 urbanas e 845 rurais (RIBEIRO, 2010). É interessante destacar o papel que as CEBs têm proporcionado às coletividades, principalmente no meio rural, gestando uma nova forma de se colocar e articular com a sociedade, política e economicamente. Muitas lideranças comunitárias foram formadas nesse movimento, inicialmente auxiliando os religiosos, e hoje atuando autonomamente em prol das associações ou campanhas que venham a acontecer em suas comunidades. Outra dinâmica evidente desse “vale em movimento” foi o surgimento dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Criados inicialmente (na década de 1960) com certo 181 despreparo dos funcionários e, até mesmo, com um caráter puramente assistencialista, até finais da década de 1970 eles eram confundidos com agencias de previdência social, ou mesmo de assistência à saúde do trabalhador rural. Todavia, a partir da década de 1980, por meio da luta pela terra, nasceu o sindicalismo combativo: Novos sindicatos são organizados e a oposição vence as eleições em várias cidades, revelando um sindicalismo mais combativo nos anos 1980 e, apoiados pela Igreja Católica, também tiveram importância na resistência dos posseiros ameaçados de expulsão em diferentes municípios do Jequitinhonha (RIBEIRO, 2010, p.197). A mobilização dos trabalhadores rurais, por meio dos sindicatos, propiciou nesse contexto, a organização de lutas pelos direitos desses trabalhadores que já trabalhavam no cultivo de eucalipto e café no alto Jequitinhonha, o que não agradou às grandes empresas que se instalavam na região, as quais logo trataram de tentar enfraquecer a mobilização por meio do descrédito e ameaças de demissão. Um evento de destaque no âmbito das mobilizações sociais foi o “I Encontro dos Cortadores de Cana ou de Migrantes” realizado nos municípios de Araçuaí, Berilo e Minas Novas (entre 1984 e 1987). Sendo a migração sazonal uma realidade sistêmica neste recorte regional, o encontro organizado pela Diocese de Araçuaí, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG), visou discutir sobre a exploração da mão de obra oriunda do Vale, nos canaviais, no intuito, inclusive de propiciar maior visibilidade nacional para a questão, e de reivindicar a fiscalização mais eficiente da atividade. É relevante assinalar que o afastamento desses trabalhadores de suas comunidades de origem durante 4 a 9 meses, desencadeia nesses locais uma série de impactos, relacionados, principalmente à produção de alimentos, pela ausência dessa mão de obra familiar in loco. Nesse sentido, foram debatidas possibilidades de consolidação de campos de sementes e projetos produtivos que propiciassem a melhoria e manutenção de condições e qualidade de vida das comunidades atingidas. Outro importante resultado desses encontros foi o surgimento do Boletim “Cá e Lá”, cujo primeiro número foi lançado em abril de 1986 (com tiragem de 2 mil exemplares). E em 1995 a publicação mensal do jornal chegou a 7 mil exemplares. O migrante, nesse período, ficava muitas vezes, meses sem dar notícias para seus familiares. O acesso aos meios de comunicação, como telefone e até mesmo cartas, ainda eram muito restritos; sendo o primeiro muito caro, e o segundo, inviável para muitas dessas pessoas que não sabiam escrever e dependiam de outros para que suas mensagens fossem redigidas e recebidas. A falta de notícias de sua gente causava uma angústia muito grande nesses familiares, que ficavam sempre à espera de notícias por meio de alguém que se deslocasse de cá ou de lá. Por 182 isso, o jornal tornou-se um meio de comunicação contínuo e habitual, que reduzia um pouco a dor da saudade e do distanciamento gerado pelo trabalho sazonal. Não há como deixar de destacar a importância também da Pastoral dos Migrantes (fundada em 1983) a partir de visitas realizadas tanto às famílias dos migrantes nas comunidades, quanto aos alojamentos nas usinas e canaviais na região de Ribeirão Preto. Na perspectiva da mobilização desses atores, além de visitas, encontros e assembleias, a Pastoral atuava também na elaboração de cartas, cartilhas e dossiês que buscavam denunciar as precárias situações dos migrantes, solicitando ainda medidas que viabilizassem a garantia dos direitos desses trabalhadores. A partir desses materiais, foram ainda realizados diversos encontros e cursos de formação para lideranças comunitárias que se propusessem a manter a luta e resistência contra o trabalho escravo, ainda presente em algumas regiões de São Paulo e Paraná (principais destinos dos migrantes do Vale do Jequitinhonha). Todas essas articulações do passado propiciaram o fortalecimento das mobilizações comunitárias, e se refletiram no contexto atual por meio da presença, cada vez mais efetiva, da figura jurídica das Associações Comunitárias, que vêm se consolidando paralelamente a todos esses processos desde a década de 1980. Muitas vezes associaram-se às ONGs, as quais, em função da “preocupação com questões sociais, ambientais, culturais, de gênero, etc.”, passaram a apoiar e assessorar diferentes movimentos e organizações populares da região na perspectiva da construção de um programa de “desenvolvimento sustentável” para o Jequitinhonha (RIBEIRO, 2010, p.204). Além das associações de produtores rurais, surgiram ainda neste contexto, diversas entidades culturais e grupos de artesãos. Deve-se destacar que o artesanato do Vale do Jequitinhonha, conhecido mundialmente por sua beleza e singularidade, para além da arte, como ressalta Maria Tereza Franco Ribeiro (2012, p.77): [...] representa o cerne das identidades das relações e articulações políticas e dos diversos processos de socialização dos conhecimentos, dos saberes. Essas expressões de criatividade evidenciam as formas de se relacionar com a “natureza” e com o sagrado. Aliás, não há como falar dos movimentos sociais do Vale e deixar de lado esse elemento fundamental de sua estruturação sociocultural – fenômeno que perpassou também pelos impasses e imposições dos programas e projetos de desenvolvimento voltados especificamente para a comercialização dos seus produtos por meio do Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA) instituído pelo Decreto 80.098 de 08 de agosto de 1977 (NADDEO, 2012). Diversos foram os convênios, a propósito, estabelecidos entre a CODEVALE e as associações de artesãs no Vale do Jequitinhonha a fim de viabilizar, principalmente, a comercialização em âmbito nacional (e até internacional) desses produtos, 183 visualizando esta atividade como uma opção para o incremento do desenvolvimento regional. Vale ressaltar, contudo, que como ressalta Antunes (2000) o tempo de fazer, de coletar o barro, preparar a argila, extrair as cores da terra, modelar, pintar e queimar as peças; ou de produzir as linhas por meio do algodão in natura, tingir, passar no tear e dar as formas de tapetes, colchas ou almofadas é diferente do tempo de comercialização do mercado. O artesanato de algodão, por exemplo, entre as décadas de 1970 a 1990, viveu o auge da sua produção, tendo então ocorrida a transferência de muitas artesãs do meio rural para os centros urbanos, no intuito de ficarem mais próximas da associação e de conseguirem atender às demandas enviadas pela CODEVALE, e outras empresas que revendiam os produtos nas grandes capitais. Muitos desses produtos comprados a valores simbólicos nas mãos das artesãs eram, contudo, revendidos por verdadeiras fortunas em lojas renomadas dos centros urbanos. Em função da queda dos investimentos e demandas junto à CODEVALE, as associações de artesãs começaram, a seguir, a se mobilizar e comercializar seus produtos por meio de feiras locais e intermunicipais, e diversos outros eventos vinculados à cultura. A demanda diminuiu, mas assumindo-se como as próprias empreendedoras de suas mercadorias, essas mulheres do Vale conquistaram considerável autonomia. As artesãs do barro vêm vivenciando esse movimento de valorização de sua arte desde meados da década de 1980, quando as bonecas e noivinhas das “viúvas de maridos vivos” adquiriram visibilidade no cenário internacional e, posteriormente, nacional. A publicidade atribuída às artesãs do Vale se deu por meio de pesquisadores de outros países que ficaram impressionados com a riqueza de detalhes e narrativas do olhar dessas bonecas - que refletiam os olhares de suas mestras. Nos anos 2000, por meio de projetos de hospedagem solidária, essas mulheres se redescobriram num exercício de protagonismo sociopolítico que evidenciava o empoderamento feminino no Vale. Atualmente suas peças são vendidas através da internet e, também, em feiras regionais. E os seus trabalhos e saberes tradicionais enquanto processos criativos são valorizados e divulgados por meio de cursos e vivências, nos quais pessoas de toda parte passam uma semana nas comunidades observando e aprendendo a prática desse ofício secular. Acreditamos que tal protagonismo se tornará ainda mais evidente a partir do registro do artesanato de barro do Jequitinhonha como patrimônio imaterial de Minas Gerais (como já mencionamos anteriormente), valorizando e reconhecendo este saber fazer do Vale e evidenciando a importância do desenvolvimento de planos de salvaguarda e políticas públicas que viabilizem a manutenção dessa dinâmica 184 sociocultural, que retrata não apenas uma arte, mas a própria essência e vivência das famílias e das mulheres do Jequitinhonha. E como diria o fotógrafo Lori Figueiró, um artista também apaixonado pelas riquezas e belezas do Jequitinhonha, a “mulher é a força motriz do Vale” (FIGUEIRÓ, 2014). Permanecendo sozinhas por longos meses, nos quais seus esposos migram para o corte de cana, elas passaram a conduzir e “girar a roda da vida” em suas comunidades. Passaram a plantar, colher, manufaturar produtos, produzir artesanatos, vendendo-os nas feiras; e conseguindo, assim, na multifuncionalidade do rural brasileiro, manter e conduzir as gerações futuras nos saberes e fazeres desse ser do Vale. Sabedoria feminina que vem se consolidando desde 2011 com a realização do “Fórum da Mulher do Jequitinhonha”, movimento que começou com 150 participantes de 16 municípios; e que, em 2014, contou com 400 mulheres de 26 cidades. No primeiro encontro foi elaborada a “Carta da Mulher do Jequitinhonha”, na qual foi solicitada uma atuação mais participativa das mulheres do Vale na construção de políticas públicas direcionadas especificamente a elas. E, por meio de oficinas, debates e palestras realizadas nestes encontros, desde então, as mulheres do Vale vêm construindo um discurso político e social cada vez mais articulado e envolvido com o reconhecimento da importância da formação feminina para a cidadania, da criação dos conselhos dos direitos para as mulheres, da valorização das matriarcas nos grupos culturais, da participação dos homens nas campanhas de combate à violência contra a mulher, e diversas outras questões que permeiam o universo feminino, mas que anteriormente a tais mobilizações não podiam ser debatidas publicamente. Neste capítulo buscamos apresentar um pouco das articulações, no tempo e no espaço, que configuraram, por meio dos fluxos, movimentos e trajetórias de um rio, a história de um povo que entre passado, presente e futuro luta e busca inspiração em sua natureza, em sua gente e em sua arte para revelar “Jequitinhonhas Paisagens”, por meio de uma construção regional, que reage às imposições da cultura dominante fundamentalmente por meio da edificação de “uma região enquanto sujeito; um espaço região que sofre, que pulsa, e que conosco dialoga, se não pelas palavras, através da sua paisagem” (SERVILHA, 2015, p.264). Analisando os diversos trabalhos e obras que se dedicaram a compreender e estudar essa realidade instigante, “daquela gente que se mantinha forte, alegre, receptiva e solidária no enfrentamento de inúmeras dificuldades” (BELÍCIO, 2012, p.110) observamos que, seja pelos aspectos físicos do meio, seja pelas técnicas materiais e imateriais dos saberes e ofícios, ou pelas cantigas, poesias e artesanato, o Vale desperta, naqueles que para ele 185 voltam seus olhares e sentimentos, interesses e desejos que vão além da dinâmica cotidiana. E é nas entrelinhas de olhares, cheiros e sentidos que: Um rio representado por paisagens que nos revelariam seus caminhos, sua história, de remotos períodos; em sua espantosa força de transformar o espaço, e nele propiciar a vida dos homens, estaria sua riqueza maior. A poesia não nos revelaria, entretanto, somente farturas. Paisagens áridas denunciam a “morte de sede”, um “assassinado rei” [...]. O rio, representado enquanto rei, “não perderá sua majestade”; perpetuará ainda assim, enquanto um símbolo representativo do sentimento de liberdade (SERVILHA, 2015, p.267). Uma das obras sobre o Vale que mais ressaltei e com a qual busquei dialogar neste texto, foi o livro de Mateus Servilha (2015), que traz uma série de indagações e revelações que venho buscando durante toda a minha trajetória por entre as grotas e vales desse rio. Conhecendo, em imersões de campo, apenas parte dele (até o município de Araçuaí), me deparei com realidades e movimentos sociais, culturais e políticos que muito me instigavam e a cada viagem se configuravam como uma peça substancial de um grande quebra-cabeça, diverso e complexo em cada meandro e microbacia hidrográfica do Jequitinhonha. São muitas realidades que se conectam e, ao mesmo tempo, se distinguem, revelando, no entanto, em todos os contextos, um discurso de luta e resistência. Tais retóricas das paisagens e discursos simbólicos construídos em diferentes temporalidades e espacialidades do Vale do Jequitinhonha enfatizam, ainda mais, a compreensão de Duncan (2004) no que tange à leitura das paisagens como um texto. O Jequitinhonha emana em suas paisagens, que podem ser lidas pelo olhar, pela vivência, pelas histórias de vida, pelo artesanato, pela música, poemas e contos, construções simbólicas, que, segundo Azevedo (2008, p.75), nos “permitem compreender as suas manifestações como contextos para a identidade sócio-política dos grupos” e da própria região, enquanto este espaço vivido. A importância dessas paisagens do passado, presente e futuro (enquanto um patrimônio do povo brasileiro) se explicita desde a materialidade do patrimônio histórico, arquitetônico e cultural preservado nas cidades históricas, até o simples cotidiano rural dessas pessoas e às imaterialidades da arte, dos modos de ser, saber e fazer através dos quais também se preserva muito do patrimônio que consubstancia a própria identidade brasileira. As manifestações do sagrado, do Congado, das folias de reis, das benzedeiras e rezadeiras, dos mitos fundadores, das bandas de taquara remetem, por exemplo, não só a um patrimônio regional, como ao patrimônio originário de todos nós, brasileiros. Por isso, ao Vale e ao povo desses lugares devemos atribuir o título de guardiões de nossa identidade cultural, de nossas matrizes africanas, indígena e europeia, as quais se mostram vívidas e intensas no cotidiano dessas paisagens. 186 Todavia, num vale de tantas culturas seria preciso identificar quais são as dinâmicas sociais que fazem esse exercício de conexões espaço-temporais em rede, de sujeitos que lutam em prol de um objetivo comum. E é nesse sentido, do alto ao médio Jequitinhonha, entre as bordas do Araçuaí e do Jequitinhonha, percorrendo as estradas pelas chapadas de “desertos verdes” da monocultura do eucalipto, e alcançando os “grotões” de Minas Novas, Chapada do Norte, Capelinha, Angelândia, Turmalina e Berilo, que me deparei com uma força secular de resistência social, cultural, humana e política – a luta de resistência, preservação e autoreconhecimento das comunidades quilombolas do Vale, que assim como os quilombos do Ribeira, lutam pela preservação e manutenção de seu patrimônio vivido. E é nessa perspectiva que problematizaremos, a seguir, sobre o caráter emergente das paisagens culturais vinculadas à experiência vivenciada pelas Comunidades Quilombolas do Jequitinhonha. 187 CAPÍTULO 5 - Paisagens Culturais Emergentes: a dinâmica sociocultural e etnopolítica das Comunidades Quilombolas do Vale Eu sou de comunidade quilombola. Então quando eu assumi o grupo de Congado, e aí a gente começou a participar desse movimento quilombola, tudo que era referente a quilombola a gente tava fazendo apresentação. Aí foi onde começou...né.... Mas sempre a vida toda a gente sabia que tinha um negócio diferente na comunidade da gente. Eu sempre perguntei assim: por que aqui tem isso e em outro lugar não tem? (...) Por que aqui a maioria é negro e em outros lugar não é? (...) Né? A gente via avó contando as histórias do tempo da escravidão (...). Então a gente sempre achou que tinha um negócio diferente aqui... (Liderança Quilombola do Vale do Jequitinhonha, 28 anos, 2016). As problematizações aqui desenvolvidas apontam, em primeiro lugar, para a significativa contribuição que os estudos culturais podem proporcionar às investigações e práticas geográficas, viabilizando seu aprofundamento e avanço teórico-conceitual e metodológico; e colocando em diálogo e interlocução, áreas do Conhecimento como a Geografia Cultural, a Geografia Política, a Geografia Agrária, a Biogeografia, a Etnogeografia, a Geografia da Percepção (e a “Geografia das Representações”), propiciando assim, que se investigue e se explore as interações, conexões e interfaces entre estas diferentes linhas interpretativas das Ciências da Terra. Recentemente, as paisagens culturais das comunidades rurais negras têm, particularmente, sido associadas a características e práticas sociais e culturais muito particulares como: “laços de ancestralidade, uma cultura própria, tradições e costumes, ocupação coletiva da terra e formas de produção tradicionais, questões relativas à autonomia política e econômica, etc.” (ARRUTI, 2000, p. 118). Comerford (2005) remete-se, a propósito, às comunidades rurais (em geral) como aquelas que se organizam “a partir do parentesco, vizinhança, cooperação no trabalho, coparticipação nas atividades lúdico- religiosas, apontando para valores de harmonia e consenso” (COMERFORD, 2005, p. 112). É sugestivo notar que, de acordo com Paiva (2006, p. 244): [...] música, dança, religiosidade, comida, assim como práticas comerciais, conhecimento de técnicas artesanais e de receitas medicinais, além das representações culturais e das informações acumuladas sobre o comportamento humano, antes e agora, são campos fertilizadores de marcante atuação das camadas subalternas. Sahr et al. (2011, p. 52) registram, por sua vez, que: [...] os estudos sobre comunidades negras rurais do Brasil apontam, desde os finais dos anos 1970, para os laços solidários e de dependência mútua que formam seu 188 conjunto social e territorial. Assim as comunidades negras rurais estão inseridas em uma categoria mais geral das comunidades rurais brasileiras, que foram classicamente caracterizadas como possuindo regras próprias de controle de seus recursos básicos por meio de normas instituídas consensualmente entre seus membros organizados em grupos familiares. As pesquisas que realizamos no Vale nos permitiram observar, aliás, que a experiência em curso, de exercício de protagonismo45 das comunidades quilombolas, envolve processos coletivos e intersubjetivos de vivência de experiências de sociabilidade, reciprocidade e solidariedade no cotidiano46; a construção/ consolidação de elos topofílicos com o meio físico e social; a preservação e reelaboração de espacialidades festivas - incluindo a utilização de instrumentos musicais de origem afro (AUBRÉE, 2000); a manutenção de saberes tradicionais (“saber fazer local”) como práticas alimentares, etnoambientais, etnobotânicas47, a produção artesanal, etc. E é sugestivo notar, nesse sentido, que como aponta Simão (2001), “o passado e suas referências marcadas no território [e na paisagem], as manifestações culturais tradicionais, repassadas de geração em geração, as formas de fazer (objetos, alimentos, festas), voltam, na atualidade, a ser valorizadas”. Nesse sentido, e a fim de compreender como se dá esse protagonismo sociocultural e etnopolítico das paisagens culturais emergentes das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha, apresentaremos a seguir uma contextualização geohistórica dos processos de formação e consolidação desses grupos no cenário das “Minas” e dos “Gerais”. 5.1. As Comunidades Quilombolas em Minas Gerais: contexto histórico e atual Grandes e populosos quilombos surgiram “nas regiões mineradoras de Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, no século XVIII” (GOMES, 2005, p. 381). E como destaca 45 Noutros “rincões” da América Latina este protagonismo também se evidenciou. É o caso do Peru onde segundo Benavides, Torero & Valdivia (2006, p. 9, tradução nossa), “se estima que os afro-descendentes representem entre 1% e 9% da população...” e onde “... apesar desta condição de minoria há um consenso entre os especialistas de que os afro-descendentes tenham tido grande relevância e assumido um papel muito importante na vida econômica, social e cultural do país”. 46 Traçando-se um paralelo com os quilombolas goianos, vale ressaltar que Almeida (2010, p. 43) se remete a “uma convivialidade, uma espécie de relação social, política e simbólica que liga o homem à sua terra e, ao mesmo tempo, constrói sua identidade cultural”. 47 Há, inclusive, registros toponímicos que se remetem à presença, na região, de plantas medicinais como: Córrego da Poaia e Córrego da Carqueja. Esclareça-se que a poaia (Cephaelis ipecacuanha) é um fitoterápico com propriedades expectorantes e vermífugas. Já a carqueja (Baccharis trimera) é um tônico estomacal. É relevante assinalar, a propósito, que há plantas do Cerrado que apresentam, simultaneamente, propriedades medicinais, medicinais e ornamentais. E de acordo com Almeida (2010, p. 55) - vale ressaltar -, os Kalunga(s) de Goiás também “possuem um rico conhecimento tradicional de plantas do Cerrado”. 189 Paiva (2009, p. 67): “com a descoberta de ouro e de pedras preciosas no sertão a necessidade de braços escravos é abruptamente ampliada, resultando em novas e maciças importações de africanos”. Os quilombos48 constituíram, aliás, nas Minas Gerais do século XVIII, uma das mais completas e complexas formas de reação à escravidão (MOTTA, 2005). “Para que se tenha uma ideia da sua participação na dinâmica social, basta lembrar que para o período compreendido entre os anos de 1710 e 1798”, o acervo documental pesquisado permite confirmar “a descoberta e destruição de, pelo menos, 160 quilombos” na região (REIS, GOMES, 1996, p. 141). O historiador Carlos Magno Guimarães se refere aos quilombos como umas das mais completas e eficazes “formas de rebeldia” desenvolvidas, contra a escravidão, nas Minas Gerais do século XVIII (GUIMARÃES, 2007, p. 440). Fiabani (2005, p. 412) descreve a formação dos quilombos como um “fenômeno social e histórico objetivo”, que foi “alvo de diferentes interpretações ao longo do tempo”. Já o geógrafo Luís A. Bustamante Lourenço (2005) classifica como verdadeiras guerras, os conflitos que teriam sido travados com quilombolas, no período compreendido entre 1746 e 1767, nos sertões de Minas Gerais, à medida que se abria fronteiras para a mineração com a descoberta de novas jazidas auríferas na região. À época, simultaneamente se combatia as comunidades quilombolas e as sociedades indígenas (Cataguá, Kayapó do Sul, Borum, Xakriabá, Puri-Coroado e outros grupos étnicos do tronco Macro-Jê, domiciliados nas regiões de antiga mineração do Brasil como o Quadrilátero Ferrífero, o Vale do Jequitinhonha, Mato Grosso e Goiás - DEUS, FANTINEL, NOGUEIRA, 1998). Vale ressaltar que esses valorosos grupos tribais reagiram, com determinação, a esta expansão da economia aurífera sobre seus territórios, no hinterland brasileiro. Rafael Sanzio dos Anjos registra que o sítio geográfico dos antigos quilombos era “geralmente estratégico, ocupando regiões de topografia acidentada (chapadas e serras), e/ ou vales florestados e férteis com sistemas de vigilância nas áreas mais altas” (ANJOS, 2007, p. 213). Segundo Santos (2012, p. 651) para muitos escravos fugidos, os quilombos, de fato, “representavam a possibilidade de inserção num sistema de produção e repartição social mais igualitária, sendo, com isso, um modelo alternativo de sociedade que engendrava um confronto com o modelo escravista”. Inserindo-se na discussão sobre a desigualdade e a 48 Historicamente: “aldeamento de escravos fugidos” (LOPES, 2006, p. 137), que se refugiavam em florestas e regiões de difícil acesso, onde reconstituíam seu modo de vida, em liberdade (CALDART et al., 2012). A maior parte dos quilombos contava com algumas dezenas de indivíduos apenas. Mas no período colonial algumas dessas comunidades “chegaram a reunir milhares de habitantes” (MOTTA, 2005, p. 381) como, aliás, também acentua Lopes (2006). Nas Guianas e nas Antilhas os quilombolas são conhecidos como bush negroes ou maroons. 190 questão social em nosso continente e remetendo-se, em particular, à constituição dos quilombos no Brasil (e aldeamentos de ex-escravizados similares implantados nas Antilhas, Guianas, etc.). Wanderley (2011) registra que entre tantas alternativas de sobrevivência e enfrentamento à opressão desenvolvida pelos africanos e afro-descendentes no Brasil, a constituição dos quilombos constituiu uma das mais ousadas e bem articuladas ações que buscaram quebrar as imposições da administração colonial. O autor enfatiza que realmente “impressiona, na história latino-americana a formação de sistemas de organização social comunitária no campo, constituídos de milhares de fugitivos” (WANDERLEY, 2011, p. 99). No Brasil Colonial, a denominação quilombola passou a designar, assim, “homens e mulheres, africanos e afro-descendentes, que se rebelavam ante a sua situação de escravizados e fugiam das fazendas e outras unidades de produção, refugiando-se em florestas e regiões de difícil acesso, onde reconstituíam seu modo e viver em liberdade“, sendo “os termos: quilombo e quilombola utilizados para caracterizar os sujeitos e grupos sociais organizados em torno da contestação ao sistema hegemônico escravista” (FERREIRA, 2012, p. 645). Vale ressaltar que, em diferentes contextos, “constituiu-se uma integração socioeconômica dos quilombolas e outras formas de inserção das economias camponesas”. Hoje se sabe que os quilombolas “produziam excedentes, negociando e mantendo trocas mercantis” com outros agentes em seu entorno (MOTTA, 2005, p. 383) e, portanto, “em nenhuma parte do Brasil, os quilombos permaneceram isolados” da sociedade envolvente. Portanto, como salientam Schmitt, Turatti & Carvalho (2002, p. 6): Não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros tenham resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à margem da sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e assimetricamente com a sociedade brasileira, resistindo a várias formas de violência para permanecer em seus territórios ou, ao menos, em parte deles. Ratts (2003, p. 35), a propósito, registra que “os quilombos, conhecidos geralmente como redutos de escravos fugitivos, são associados às fugas para as matas, mas, na segunda metade do século XIX, se situavam igualmente no entorno das cidades” em múltiplas associações e “alianças com variados segmentos locais, regionais e nacionais” (RATTS, 2010, p. 318). Reis (2013, p. 319) não discorda das afirmações de Anjos (2007), mas referenda, sobretudo, os apontamentos de autores como Motta (2005) e Ratts (2003) ao remarcar que: [...] na sua maioria, os quilombos não existiam isolados, perdidos no alto das serras distantes da sociedade escravista. Embora em lugares protegidos, os quilombolas, amiúde, viviam próximos a engenhos, fazendas, lavras, vilas e cidades. Mantinham redes de apoio e de interesses que envolviam escravos, negros livres e mesmo 191 brancos, de quem recebiam informações sobre movimentos de tropas e outros assuntos estratégicos. Com essa gente, eles trabalhavam, se acoitavam, negociavam alimentos e outros produtos com escravos e libertos; [e] podiam [ainda] manter laços afetivos, e parentesco, de amizade. Romeiro & Botelho (2003, p. 245-246) assinalam também que o comércio clandestino que os quilombolas “praticavam com outros integrantes da sociedade escravista”, constitui um dos elos que nos permite entender aspectos importantes daquela realidade e momento históricos particulares. Já na atualidade, com a Constituinte, em 1988 e as discussões sobre o patrimônio cultural brasileiro, “o quilombo originado no seio da sociedade escravista, manifestação, sobretudo, do trabalhador escravizado, passou à proteção do Estado, ao se definir a titularização das terras de comunidades remanescentes de quilombos” (FIABANI, 2005, p. 421). Valter Cruz (2012, p. 595) acrescenta, nesse sentido, que: [...] no Brasil, com o processo de redemocratização e a ampliação do espaço político da sociedade civil na década de 1980, ganhou força a mobilização dos povos indígenas e de quilombolas em torno de reivindicações étnicas ante o Estado. Como resultado dessas lutas, importantes reivindicações territoriais e culturais foram incorporadas na Constituição Federal de 1988, fortalecendo juridicamente a situação fundiária e a identidade coletiva desses grupos. Em 2003, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) passou a considerar como quilombo toda comunidade rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais tenham forte vínculo com o passado como destacam, aliás, diferentes autores como: Caldart et al. (2012), Fiabani (2005), Leite (2000), Lopes (2006), Motta (2005), Munanga (2009), Silva (2003), Tubaldini & Silva (2009). Como demarcam Sahr et al. (2011, p. 49), no decorrer dos últimos vinte anos, vê- se uma substituição progressiva da definição de quilombo como sinônimo de “fuga- resistência” pela de comunidade “que compartilha de um mesmo território e de uma mesma cultura”. Pereira (2010, p. 38) visualiza esta inflexão no conceito de quilombo, da seguinte forma: “o quilombo, que constituiu no passado um lugar de ruptura com o regime escravista; na atualidade, se reorganiza como um lugar de mobilização das forças sociais ligadas às camadas mais carentes da população brasileira”. Para o geógrafo Alecsandro Ratts (2007) o conceito de quilombo vem sendo “ressemantizado”, ressaltando que isso tem, aliás, ocorrido a partir da mobilização de inúmeras comunidades afro-descendentes em defesa de seus direitos, “principalmente fundiários”. É relevante destacar, nesse sentido, que como assinala Battini (2009, p. 111), além de a cultura ser dinâmica, ela certamente constitui “um instrumento de coesão social”. E isto ocorre na medida em que ela “mantém os indivíduos unidos em torno de 192 determinados ideais que são socialmente constituídos”. De fato, evidenciamos hoje um processo que é vivenciado por uma diversidade de comunidades negras rurais que se auto definem como quilombolas “e que desenvolveram e partilham um modo de vida próprio” (RATTS, 2007, p. 265). Nei Lopes (2006, p. 139) define, nessa perspectiva, como quilombos contemporâneos “as comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos, vivendo da cultura de subsistência” e onde as manifestações culturais mantêm “forte vínculo com o passado”. Para Santos & Camargo (2008, p.37), que representam os pesquisadores da ONG CEDEFES: [...] comunidade quilombola é aquela que apresenta relações de parentesco entre os seus membros; descendência africana e vínculos históricos e culturais com determinado território, independentemente da época em que foi formada. A permanência de elementos de cultura africana pode ser observada ou não na atualidade; porém, referências a um passado relativamente próximo são mantidas. Tais comunidades, que vivenciaram uma prolongada história de exclusão (PORZECANSKI; SANTOS, 2006), surpreendentemente experimentam hoje, como registra Arruti (1997), um processo de etnogênese, entendido como a construção fraternal de uma autoconsciência e de uma identidade coletivas de base racial e/ ou histórica contra a ação de um Estado Nacional opressor, com o objetivo de obter ganhos políticos, entre os quais pode se encontrar alguma expectativa de autodeterminação. Trata-se de comunidades que se colocam hoje como protagonistas “na cena dos direitos insurgentes” (CHAGAS, 2001, p. 223) e cuja identidade encontra-se em processo de construção (FERREIRA, 2004). Ressalte- se, a propósito que na definição de “etnicidade” o que conta realmente são as condições nas quais certos traços culturais, e não outros, “são valorizados e transformados em critérios de inclusão e exclusão” (SILVEIRA, 2005, p. 42). A formação desse processo de emergência identitária49 ocorre por meio de uma politização dos costumes, viabilizada, por sua vez, por meio da construção de uma consciência costumeira do resgate e da ressignificação das identidades, “processo que, ao mesmo tempo as direciona para o passado, buscando nas tradições e na memória, sua força; e aponta para o futuro, sinalizando para projetos alternativos de produção e organização comunitária, bem como de afirmação e participação política” (CRUZ, 2007, p. 96). De fato, a identidade cultural de um grupo é construída coletivamente a partir da veracidade do seu 49 Processo similar é vivenciado hoje, em cenários como a região nordeste do país, pelos assim denominados povos indígenas “remanescentes”, “emergentes” ou “ressurgidos”. No próprio Vale do Jequitinhonha registra- se hoje, a presença de “índios ressurgidos” como os Aranã(s), presumivelmente descendentes de um segmento dos borun(s) e sediados nas zonas rural e urbana dos municípios de Araçuaí, Itinga e Coronel Murta (DEUS, 2012). O processo incide também na Amazônia como entre os Puruborá(s) de Rondônia, Baré(s) do Amazonas, Náwa e Apolima-Arara do Acre (DEUS, BARBOSA, TUBALDINI, 2011). 193 passado na unicidade de uma história partilhada, composta pelas singularidades das representações dos indivíduos, as quais configuram o Todo cultural capaz de reforçar e reafirmar sua identidade. É relevante assinalar, a propósito, que Moura (2005, p. 80) ao questionar o que seria uma identidade, prefere se reportar a identidades, ressaltando que “o que se pode observar e experimentar são identidades em interação, tanto em dinâmicas de consenso, como em dinâmicas de conflito”. E como sinalizam ainda Ramos & Almeida (2014, p. 219), em relação aos quilombolas do grupo kalunga50 (comunidade afro-descendente domiciliada em áreas de Cerrado relativamente bem preservadas no nordeste goiano e localizadas nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás): “os traços culturais mantidos por gerações são constituintes do arcabouço de elementos” que viabilizam “a manutenção da identidade e da memória” a qual está, por sua vez, “diretamente relacionada aos lugares de vivência” e paisagens. Vale ressaltar que a identidade é construída e organizada a partir, não apenas de suas referências culturais e sociais, mas também de suas estratégias e posições políticas configuradas (e ressignificadas) a partir de sua diferenciação em relação aos demais grupos e coletividades. Ferreira (2012, p. 649) assinala que “a afirmação étnica produz uma nova valorização da memória e das próprias histórias vividas”, remarcando, nessa perspectiva, que “a memória coletiva traz elementos que testemunham a pertença territorial dessas comunidades, como aqueles relacionados à sua ancestralidade e ao período da escravidão: às suas formas peculiares de linguagem presentes nas categorias nativas, aos seus saberes oriundos da observação, leitura e usos do ambiente; às suas práticas de cura: aos seus rituais religiosos e festivos; e às suas redes de parentesco, trocas e solidariedade”. Vale ressaltar, por outro lado, que “os Kalunga mantém o controle sobre suas próprias terras, seus recursos, sua organização social e sua cultura” (ALMEIDA, 2014, p. 210) e que os mais velhos da comunidade, em alguns casos, nunca deixaram o quilombo para conhecer as cidades do entorno (PEDRO, 2010). É relevante assinalar ainda que estes agentes vão consolidando, nesse processo, novas identidades, dinamizando e requalificando a dinâmica social regional (SOARES, 2000, p. 17). 50 O território kalunga situa-se “a 400 km de Brasília” (ALMEIDA, 2010, p. 37). Esse grupo quilombola têm núcleos espalhados pela região goiana da Chapada dos Veadeiros, totalizando aproximadamente 8 mil pessoas, distribuídas por vinte comunidades e que ali se domiciliam há mais de 300 anos. “O Sítio das Terras dos Kalunga constitui um legado cultural pela sua história e todo o conjunto de elementos simbólicos que ajudam a configurar a identidade cultural dos quilombolas naquele território no qual se acham legitimados socialmente” (ALMEIDA, 2010, p. 46). 194 No estado de Minas Gerais, até o início dos anos 2000, pouco se sabia a respeito das comunidades quilombolas – quantas elas eram, como viviam e onde se localizavam. Até então apenas 66 comunidades já eram reconhecidas pela Fundação Palmares, e só existiam informações sobre elas, concernentes unicamente ao nome e município onde se encontravam (SANTOS & CAMARGO, 2008). Com os eventos em comemoração aos 500 anos do “descobrimento do Brasil”, contudo, muitas questões étnicas e territoriais referentes aos povos originários e às comunidades quilombolas passaram a ser discutidas no contexto nacional. Em Minas Gerais, ao ser realizado o seminário “500 anos de Resistência Negra no Brasil: os Remanescentes de Quilombos e Outras Experiências”, uma solicitação foi feita ao CEDEFES pelos representantes do movimento negro, para que a entidade colaborasse na identificação e localização das comunidades quilombolas do estado, tendo em vista a precariedade das informações até então existentes sobre elas (SANTOS & CAMARGO, 2008). No mesmo ano da promulgação do Decreto nº. 4.887/200351, a entidade iniciou o projeto “Quilombos Gerais”52 voltado à identificação, promoção e mobilização política das comunidades quilombolas de Minas Gerais. O projeto, que se encontra em sua quinta proposta de desenvolvimento (com previsão de duração até fevereiro de 2020), tem como finalidade “dar, primordialmente, visibilidade às demandas sociais e políticas desses grupos sociais e apoio às suas lutas, de forma que tenham condições de atuarem politicamente, enquanto atores independentes, na defesa de seus interesses” (SANTOS & CAMARGO, 2008, p.11). Para tal: As atividades desenvolvidas pelo Projeto valorizam sua cultura etnicamente diferenciada e promovem a melhoria da autoestima dos quilombolas por meio do trabalho de pesquisa e divulgação, entre os próprios quilombolas e à sociedade em geral, de sua história, arte, religiosidade, tensões, conflitos e anseios (SANTOS & CAMARGO, 2008, p.11). Desde então, além da organização de eventos, participação em reuniões com o governo estadual, seminários e visitas/encontros promovidos nas comunidades nas mais diversas regiões do estado, a ONG vem produzindo materiais que possibilitam a divulgação de informações que vêm sendo consolidadas por meio da construção de um banco de dados em processo de frequente atualização. Em quatro anos de projeto foram identificadas 435 comunidades. E como podemos observar na Tabela 7, nos anos subsequentes à divulgação dos dados, o total de comunidades, que se auto reconheceram enquanto quilombolas, passou de 506 (em 2014) para 775 (em 2017). 51 Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (BRASIL, 2013, p.1). 52 Financiado pelo Misereor, entidade alemã de apoio internacional ligada à igreja católica. 195 Tabela 7: Quadro Comparativo do número de comunidades quilombolas em Minas Gerais por Mesorregião nos anos de 2007, 2014 e 2017 Mesorregião de Minas Gerais Nº de Comunidades Quilombolas 2007 2014 2017 Campo das Vertentes 5 7 9 Central Mineira 8 11 8 Jequitinhonha 105 115 162 Metropolitana de Belo Horizonte 54 81 121 Noroeste de Minas 15 14 21 Norte de Minas 153 167 218 Oeste de Minas 8 8 10 Sul/Sudoeste de Minas 7 7 9 Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba 10 10 17 Vale do Mucuri 19 26 49 Vale do Rio Doce 29 33 54 Zona da Mata 21 27 97 TOTAL 435 506 775 FONTE: SANTOS & CAMARGO (2008); Dados fornecidos pelo CEDEFES (2017). Elaboração da autora. O cadastro das comunidades vem sendo realizado a partir do preenchimento de um “formulário simplificado com informações básicas sobre cada comunidade, como localização, acesso, número de famílias, equipamentos de infraestrutura”, dentre outras informações de cunho sociocultural (SANTOS & CAMARGO, 2008, p.38). E para atingir toda extensão territorial de Minas Gerais, o CEDEFES conta com a parceria de representantes do poder público local, sindicatos dos trabalhadores rurais, igrejas, universidades, organizações não governamentais e lideranças políticas e sociais locais, além dos próprios quilombolas que se dispõem a construir, junto com a comunidade, a consolidação desses roteiros. A partir do levantamento inicial viabilizado por meio dos formulários, que os pesquisadores da entidade buscam se aprofundar nos conteúdos de cada realidade local a partir da pesquisa bibliográfica (teses, dissertações, relatórios de pesquisa, jornais, laudos antropológicos e outros documentos oficiais) e da realização de trabalhos de campo in loco. Na fase de realização dos trabalhos de campo são desenvolvidos roteiros de entrevista mais detalhados que buscam compreender a história e a vida das comunidades, manifestações culturais, possíveis conflitos, atendimentos à saúde e educação, fontes de renda e trabalho, condições ambientais, etc. Além do levantamento de dados e informações, tais incursões têm possibilitado ainda a consolidação de substancial acervo sobre tais comunidades, contendo: registros fotográficos, filmagens e entrevistas com a população local. A riqueza das 196 informações pode ser encontrada na publicação “Comunidades quilombolas de Minas Gerais no século XXI: história e resistência”, onde além de muitas das informações do contexto geral da questão quilombola no estado e da própria realização do projeto, constam ainda breves dossiês sobre algumas das comunidades visitadas em cada mesorregião do Estado. Para além do trabalho que vem sendo desenvolvido pelo CEDEFES, o crescimento do número de comunidades quilombolas identificadas revela ainda a importância das ações de conscientização e fortalecimento político-identitário que vêm sendo desenvolvidas pela ONG e pela N’Golo – Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais, criada em 2005, após o “I Encontro de Comunidades Negras e Quilombolas” promovido pelo CEDEFES em 2004, na cidade de Belo Horizonte. Segundo Campos (2013) a importância da Federação se materializa, primordialmente, no esforço de mobilização e conscientização política das comunidades, que desencadeou na configuração de lideranças, que foram se formando a partir da participação ativa junto ao movimento, multiplicando a relevância do reconhecimento, luta e defesa dos direitos dos núcleos afrodescendentes no estado de Minas Gerais. Tal realidade pode ser observada na declaração de João da Cruz Bispo (quilombo de Mumbuca – Vale do Jequitinhonha), em entrevista concedida à autora: Me sinto bem participando da Federação Quilombola porque estamos defendendo nosso povo. É preciso estar em uma Associação para enfrentar a questão quilombola e cobrar dos órgãos governamentais ações que garantam a plena cidadania de todos que vivem em comunidades tradicionais e que preservam as tradições de seus antepassados que vieram da África. Antes as pessoas achavam que para participar de Associações precisava ter um preparo que elas não tinham. Aos poucos a gente descobriu que o trabalho voluntário, com responsabilidade, persistência, coragem e firmeza faz diferença e nos preparamos nos trabalhos, nos enfrentamentos (CAMPOS, 2013, p.30). Localizadas, predominantemente, em áreas rurais, com pouco ou nenhum acesso à informação, a emergência dessas lideranças locais, além de viabilizar a conscientização política e social das comunidades, tem incentivado a formação de novos atores sociais que passam a atuar, no âmbito das associações quilombolas, na busca por melhorias sociais e econômicas em suas comunidades. Um exemplo que tem sido recorrente em algumas comunidades do nosso estado é o fornecimento de alimentos produzidos nas comunidades para as escolas públicas, por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), cujos editais favorecem a convocação de fornecedores oriundos das comunidades quilombolas. A relevância dessas lideranças tem sido observada também no âmbito dos quilombos urbanos, os quais foram constituídos, originalmente, nas regiões periurbanas dos grandes centros, e que, com o processo de urbanização/conurbação, acabaram sendo 197 incorporados à malha urbana, transformando toda a dinâmica sociocultural de seus territórios e provocando, aí, ainda, conflitos territoriais (em decorrência da especulação imobiliária) e culturais (oriundos do preconceito dos “novos vizinhos”). Na capital mineira podemos destacar a presença das comunidades de Luízes, Manzo Ngunzo Kaiango e Mangueiras que, infelizmente, passam por diversas dessas dificuldades já demarcadas. A partir da resistência a esses processos, e da demanda da comunidade junto aos órgãos municipais, no ano de 2017 as três comunidades conquistaram o reconhecimento enquanto patrimônio imaterial de Belo Horizonte, reforçando a importância da proteção histórica e cultural de seus territórios. Em continuidade às medidas de proteção ao seu território-tradicional, intensamente ameaçado pela especulação imobiliária, a comunidade de Manzo Ngunzo Kaiango abriu a solicitação do reconhecimento em âmbito estadual, e após a consolidação do respectivo dossiê, recebeu o registro pelo IEPHA em outubro de 2018 (IEPHA, 2018b). Assim, ressaltamos que em 15 anos de execução do “Projeto Quilombos Gerais” as iniciativas, formações e seminários desenvolvidos pelo CEDEFES têm se desdobrado em diversos avanços na perspectiva do reconhecimento das comunidades quilombolas no estado de Minas Gerais. No ano de 2017 o número de autoreconhecimentos chegou a 775 comunidades, distribuídas por mais de 226 municípios (Tabela 8). As mesorregiões com maior concentração de núcleos quilombolas são: o Norte de Minas, Jequitinhonha, Região Metropolitana de Belo Horizonte e Zona da Mata, com podemos verificar também no Mapa 6. Tabela 8: Distribuição das Comunidades Quilombolas por Mesorregiões do Estado de Minas Gerais Mesorregiões de Minas Gerais Nº de Comunidades Quilombolas Nº de Municípios com Comunidades Quilombolas Campo das Vertentes 9 5 Central Mineira 8 5 Jequitinhonha 162 27 Metropolitana de Belo Horizonte 121 43 Noroeste de Minas 21 7 Norte de Minas 217 45 Oeste de Minas 10 9 Sul/Sudoeste de Minas 9 5 Triângulo Mineiro/ Alto Paranaíba 17 12 Vale do Mucuri 49 13 Vale do Rio Doce 54 17 Zona da Mata 97 38 TOTAL 775 226 FONTE: Dados fornecidos pelo CEDEFES. Elaboração da autora. 198 Mapa 6: Municípios com Ocorrência de Comunidades Quilombolas em Minas Gerais No Norte de Minas, região com a maior concentração de comunidades quilombolas do estado (219), grande parte das comunidades encontra-se domiciliada nos vales dos rios Verde Grande e Gurutuba, à margem direita do Rio São Francisco. Destaca-se neste recorte territorial a presença do Território Gurutubano com aproximadamente 5.000 habitantes, sendo 650 famílias distribuídas em 30 comunidades (COSTA FILHO, 2008). Além disso, no norte de Minas muitas dessas comunidades se reconhecem ainda como geraizeiros, catingueiros, vazanteiros, chapadeiros e ribeirinhos, o que reforça a importância da cultura tradicional nesse importante recorte regional do estado. Vale ressaltar que a origem desses núcleos afrodescendentes está associada à sua resistência às recorrentes endemias de malária na região, o que também dificultava a permanência dos colonos portugueses, favorecendo, assim, a ocupação desses locais por escravos fugidos e algumas populações indígenas (SANTOS & CAMARGO, 2008). 199 A segunda região com a maior concentração de comunidades quilombolas em Minas Gerais é o Vale do Jequitinhonha, que abriga 161 comunidades, das quais 138 estão localizadas na sub-região do Médio Jequitinhonha. A presença desses núcleos neste recorte regional está vinculada a descoberta do ouro no atual município de Minas Novas, a qual deu origem ao processo de ocupação da região, demandando, assim, a vinda de muitos negros escravizados para o trabalho nas lavras na bacia dos rios Fanado e Araçuaí. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte é encontrado o terceiro maior contingente de comunidades quilombolas do estado. Segundo Santos & Camargo (2008), as grandes jazidas de ouro encontradas na região (no século XVIII), exigiram um grande contingente populacional de escravos, muitos dos quais, fortemente vinculados à dinâmica social dessas cidades coloniais, tais como Ouro Preto, Mariana e Sabará. Além dos quilombos rurais, os autores destacam ainda a forte presença dos quilombos urbanos neste recorte regional, localizados nas proximidades das principais vilas e cidades, e que estabeleciam muitas relações com esses espaços em decorrência da presença do “escravo de ganho” e das negras de tabuleiro que circulavam por estes centros. A Zona da Mata Mineira foi a região que apresentou um crescimento maior de reconhecimentos de 2014 a 2017, triplicando o número de comunidades que se auto reconheciam como quilombolas. Atualmente conta com 97 comunidades, grande parte delas, localizadas nas microrregiões de Viçosa, Ubá e Ponte Nova. Não há como desconsiderar o papel das pesquisas desenvolvidas no âmbito da Universidade Federal de Viçosa (UFV) neste recorte territorial, que acabaram contribuindo fortemente para o reconhecimento e valorização dessas comunidades. Segundo Santos & Camargo (2008), foi a tradição agrícola, vinculada às fazendas de café, que direcionou grande parte da população escravizada para esta região. Os autores destacam ainda que uma marca forte da tradição de matriz africana na constituição societária da Zona da Mata é a presença, marcante, aí, dos grupos de Congado. Em seguida, destaca-se o Vale do Rio Doce, com 54 comunidades quilombolas identificadas, sendo uma parte delas localizadas na porção do alto Vale (e sendo elas oriundas dos agrupamentos de negros fugidos, alforriados e livres da região mineradora do século XVIII); e outra parte, no baixo Vale, vinculadas, predominantemente, às fazendas de café que tiveram auge no século XIX. No Vale do Mucuri, até o momento, já foram identificadas 49 comunidades quilombolas. Tendo sido uma das últimas regiões de Minas Gerais a serem “desbravadas”, uma vez que a densa mata tropical, até o final do século XVIII, ainda era fortemente ocupada 200 por populações indígenas, e a presença do negro neste contexto regional se deu, predominantemente, na abertura das estradas ou implantação das fazendas realizada pelos colonos. Nos muitos aldeamentos que configuraram o histórico do Mucuri, também conviveram índios e negros fugidos ou alforriados, que buscavam refúgio na região em decorrência da sua condição de escravo e das condições de vida adversas às quais eram submetidos nas regiões áridas do Jequitinhonha, Bahia e Norte de Minas. Muitas comunidades deste recorte territorial ainda estão em processo de reconstrução histórica e social, se redescobrindo e se ressignificando enquanto núcleos quilombolas. Na mesorregião noroeste de Minas Gerais foram identificadas 21 comunidades em 7 municípios, sendo 4 deles localizados às margens do Rio São Francisco (onde se encontra a maior ocorrência de comunidades). Em decorrência da importância deste curso fluvial na abertura das fronteiras do interior do sertão mineiro, muitas dessas comunidades possuem sua origem vinculada à dinâmica pela busca pelo ouro no século XVIII. As regiões do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba obrigam 17 comunidades em 12 municípios destas mesorregiões, sendo a maior delas concentradas nas microrregiões de Uberlândia e Patrocínio. Segundo Santos & Camargo (2008), a partir da expansão da fronteira agrícola na década de 1970, grande parte dessas comunidades perdeu suas terras em decorrência da especulação e grilagem promovida pelos grandes empresários do agronegócio estabelecidos na região. Expulsos dos territórios que tradicionalmente ocupavam, atualmente, essas populações encontram-se, principalmente, nos grandes centros urbanos, constando apenas a comunidade de Teodoro, localizada em uma área rural do município de Capinópolis, ainda residindo em seu território tradicional. As regiões Sul/Sudoeste de Minas, Central e Campo das Vertentes apresentam poucas comunidades quilombolas reconhecidas e poucos estudos sobre as mesmas. No âmbito do projeto em desenvolvimento no CEDEFES encontramos poucas referências a atividades (seminários ou trabalhos de campo) que tenham sido desenvolvidos na região, o que ocasionou, inclusive, a decréscimo de 2 comunidades na Central Mineira em decorrência de informações incoerentes à respeito dos municípios nos quais elas encontravam-se localizadas. A análise desses dados reforça nossa compreensão de que a emergência etnopolítica e sociocultural desses grupos, assim como das demais comunidades tradicionais, em busca de reconhecimento e valorização de suas singularidades tem propiciado outro olhar sobre o passado, presente e futuro no interior dessas coletividades, assim como o olhar da sociedade envolvente para o seu protagonismo. E é no intuito de compreender como vem se 201 configurando esse fenômeno, especificamente no Vale do Jequitinhonha, que nos debruçaremos nas questões problematizadas nos segmentos subsequentes desse trabalho. 5.2. O Protagonismo Sociocultural e Etnopolítica das Comunidades Quilombolas do Médio Vale do Jequitinhonha Como já ressaltamos, ao tratar do Vale do Jequitinhonha como “um vale de muitas culturas” a historiadora Geralda C. Soares (2000, p. 17), destaca a importância de diferentes segmentos sociais no crescente protagonismo político na região, a exemplo das comunidades afro-descendentes aí domiciliadas, as quais, atualmente, se assumem (ou se ressignificam) como populações tradicionais e núcleos quilombolas. O antropólogo João Batista A. Costa, da UNIMONTES53 discrimina, a propósito, como populações tradicionais (e identidades territoriais) presentes no Cerrado norte-mineiro: os geraizeiros, os caatingueiros, os negros aquilombados e os indígenas (COSTA, 2005). No Vale do Jequitinhonha, em 2017, foram identificadas, pelo CEDEFES, 162 comunidades quilombolas localizadas em 27 municípios incluídos, principalmente, no médio Jequitinhonha - microrregiões de Capelinha (102) e Araçuaí (36) – (como pode ser observado no Mapa 3). 53 Universidade Estadual de Montes Claros (MG). 202 Mapa 3: Municípios Com Ocorrência de Comunidades Quilombolas no Vale do Jequitinhonha – MG E como podemos observar na Tabela 9, a microrregião de Capelinha possui dez municipalidades que apresentam comunidades quilombolas, das quais se destacam em número de comunidades: Berilo (25); Chapada do Norte (21) e Minas Novas (17). Essa concentração de comunidades quilombolas está diretamente relacionada às explorações do ouro e do diamante na região do Termo de Minas Novas, e ao longo de todo o vale, a partir do século XVIII. Tabela 9: Distribuição das comunidades quilombolas nas microrregiões do Vale do Jequitinhonha Microrregiões do Vale do Jequitinhonha Nº de Comunidades Quilombolas Nº de Municípios com Comunidades Quilombolas Almenara 12 6 Araçuaí 36 4 Capelinha 102 10 Diamantina 10 5 Pedra Azul 2 2 TOTAL 162 27 FONTE: Dados fornecidos pelo CEDEFES. Elaboração da autora. 203 Considerando o histórico de formação dessa porção do médio Jequitinhonha, podemos destacar que tais microrregiões com maior concentração de comunidades quilombolas no contexto atual, correspondem, precisamente, aos primeiros núcleos urbanos no período colonial desde recorte territorial (no século XVIII como sinalizado no mapa 4): Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Fanado de Minas Novas (atual, Minas Novas); Santa Cruz de Chapada (Chapada do Norte); Água Suja (Berilo); São Domingos (Virgem da Lapa) e Sucuriú (Francisco Badaró). Tal realidade revela ainda, juntamente com a arquitetura barroca presente em muitas Igrejas dessas regiões, a tradicionalidade da sociedade mineira, que se expressa, até hoje, nessas localidades por meio do povo e de suas festividades, tais como as Festas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos que acontecem nos municípios de Minas Novas e Chapada do Norte. Nestas manifestações predominam os tamborzeiros, congadeiros, reis e rainhas que celebram em todos os momentos a cultura dos reinados que herdamos de nossas matrizes africanas. A memória das lavras de maior importância no município de Chapada do Norte, com o avanço das bandeiras pelas margens do rio Araçuaí e Capivari, tais como Morro do Pilão, Córrego da Misericórdia, Gravatá/Quebra Bateia e Batatal ainda estão latentes na vivência e nas paisagens desses lugares, hoje reconhecidos como comunidades quilombolas. Na comunidade de Misericórdia, além das marcas na paisagem de antigas lavras abandonadas (Figura 4), ainda encontramos, em algumas residências, registros materiais e imateriais dessa vivência. Ao nos relatar sobre a importância do córrego Capivari que corta a comunidade, uma representante quilombola se lembrou dos tempos de bateia (Figura 5) no leito do curso fluvial, que hoje, assim como diversos córregos da região, encontra-se seco, servindo muitas vezes de caminho às crianças que vão para a escola. 204 Figura 4: Lavra abandonada na comunidade quilombola de Misericórdia (Chapada do Norte/MG) Figura 5: Quilombola mostrando a bateia que utilizava no córrego Capivari (Chapada do Norte/MG) Fotos da autora (2009) A importância da cultura afrodescendente nesse recorte regional é tão marcante que, dentre os municípios do Vale do Jequitinhonha, destacam-se Chapada do Norte e Berilo como as localidades com um maior percentual de pessoas que se autodeclaram negras, correspondendo, respectivamente, a 24% e 20% da população municipal (IBGE, 2010). E é na resistência e vivência dessas pessoas, na luta contra o preconceito e a exclusão, que as tradições e práticas culturais permanecem vívidas e pulsantes no Vale. E é a partir de detalhes ou “entrelinhas” que a geohistória dessas comunidades vai sendo recontada, seja pela memória dos mais velhos, em documentos antigos ou mesmo pelos registros da espacialidade dessas vivencias na toponímia regional, que, apesar de muito incipiente no que se refere às nomenclaturas de localidades de origem africana (uma vez que os nomes da maioria dos lugares foram posteriormente substituídos por outros de origem europeia), também permite a identificação de algumas localidades, cursos d’água, acidentes geográficos cujos topônimos estão associados à matriz africana. O inventário toponímico regional permitiu inclusive o rastreamento de alimentos tradicionais consumidos nos contextos local e regional, documentados por registros tais como: Carne Seca, Milho Verde, Jaca, Jaqueira, Gravatá, Maracujá, Bananal, Bananeira, Mangueira, Mangabeira, Cajazeira, Córrego do Arroz, Córrego do Angu54, Córrego do Mingau, Córrego do Pão Quente, Taioba, Córrego das Abóboras, Córrego da Mandiocaçu, Córrego do Maxixe, Córrego do Laranjal, Córrego das Laranjeiras, Córrego do Limoeiro, Córrego do Umbuzeiro, Córrego do Mamoeiro, Córrego da Manga, Córrego da Jabuticaba, Córrego da Carambola, 54 Angu é um termo de origem kikongo. 205 Córrego do Buriti, Córrego do Araçá, Córrego do Jatobá, Córrego do Murici, Córrego do Palmito, Córrego da Galinha, etc. O geógrafo Marcos N. S. Silva (2013), faz referência ainda (em artigo científico recentemente publicado por ele, sobre os Cerrados) à incidência, no Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha, de frutos nativos como o pequi, o araticum, a cagaita, a mangaba, a pitomba, o cajuzinho do Cerrado, o umbu, o buriti e os cocos macaúba e catolé55. Os vocábulos e termos de origem banto-angolana/ banto-congolesa56 (das línguas: kimbundu57 e kikongo58) marcam ainda hoje no cotidiano regional a identificação dos diferentes aspectos da cultura e identidade africana do Vale, seja na culinária; na corporeidade e na musicalidade aí vivenciadas (como por exemplo: congado, dança do curiango - prática cultural tradicional das mulheres da comunidade quilombola de Moça Santa, em Chapada do Norte – Figuras 6 e 7). Segundo Rodrigues (2010, p.84): A dança é uma das tradições mais fortes das comunidades quilombolas dessa região, nela se manifestam as práticas tradicionais de lidar com a roça, do modo de vida, os elementos da fauna e da flora local, e a relação desses sujeitos com esse meio ambiente, além de outros tantos signos expressos na forma de dançar, na maneira de cantar e na própria letra das músicas. O curiango, segundo a comunidade, corresponde a uma “herança de um pássaro do mato”, que foi resgatada a partir da criação da associação comunitária, uma vez que um dos princípios da mesma é esse resgate da cultura, da história e das práticas culturais tradicionais da comunidade, a fim de fortalecer a identidade cultural do grupo (RODRIGUES, 2010). 55 Araçá (Eugenia stipitata Mc Vaugh ), Araticum (Annona coriacea), Buriti (Mauritia flexuosa), Cagaita (Eugenia dysenterica), Cajá (Spondias mombin L.), Caju (Anacardium humile St. Hill.), Gravatá (Bromelia pinguan), Jabuticaba (Plinia trunciflora), Jatobá (H. courbaril), Juá (Ziziphus joazeiro Mart), Mangaba (Hancornia speciosa Gomes), Maracujá (Passiflora edulis), Murici (Byrsonima crassifólia), Pequi (Caryocar brasiliense) Pitomba (Talisia esculenta) e Umbu (Spondias tuberosa) são frutas nativas do Cerrado e da Mata Atlântica (SANTOS & MENEGAZ, 2008). 56 Nas comunidades de Ausente, no município do Serro; Mata do Tição, no município de Jaboticatubas; Quartel do Indaiá, em Diamantina; e Tabatinga, no município de Bom Despacho; foram encontrados léxicos lingüísticos de origem banto. Africanos de outras origens- vale ressaltar-, também foram trazidos para a região das Minas Gerais, sobretudo no século XIX, mas avalia-se que 70% dos escravos despachados da África para o Brasil tenham-se originado nos atuais Congo e Angola. 57 Língua africana, falada no noroeste de Angola, incluindo a província de Luanda. É uma das línguas do grande agrupamento banto (da África Central e Meridional), mais faladas no país, onde é uma das línguas nacionais. Com várias formas dialetais, constitui a língua nativa do segundo maior grupo étnico angolano- os ambundos-, o qual compreende 21 subgrupos principais, domiciliados ao norte do rio Cuanza (LOPES, 2006). É falada por cerca de três milhões de pessoas, como primeira ou segunda língua. O termo foi aportuguesado com a grafia: quimbundo. “Na África existem hoje mais de 500 línguas de origem banto. As que mais influenciaram o português falado no Brasil foram o quicongo (do Congo e do norte de Angola), o quimbundo (do centro de Angola) e o umbundo (do sul de Angola e da Zâmbia)” - (GRANATO, 2010, p. 126). 58 Língua africana falada pelo grupo étnico bakongo (LOPES, 2006), em Angola e no Congo. Possui vários dialetos. O termo é aportuguesado como quicongo. 206 Figura 6: Grupo de Curiango – Comunidade Quilombola de Moça Santa (2009) Figura 7: Figura 8: Grupo de Curiango – Comunidade Quilombola de Moça Santa (2010) Fotos da autora (2009) A musicalidade é um aspecto de extrema importância na cultura do Vale, e através dela as comunidades quilombolas também expressam seu protagonismo etnopolítico. Ao realizar seu estudo sobre os pífanos no Vale do Jequitinhonha, Daniel Magalhães (2010) desvelou que a mesma região onde encontramos a maior concentração de comunidades quilombolas auto-reconhecidas (conforme dados do CEDEFES), configura-se, para ele, como o “Território das Bandas de Taquara”: Capelinha, Minas Novas, Setubinha e Angelândia. Magalhães (2010) ressalta, em seu estudo, que o uso dos canudos, gaitas, pífanos ou flautas de taquara não é específico de grupos oriundos da cultura africana, pois esses instrumentos foram utilizados por diversos grupos (portugueses, indígenas, militares, afrodescendentes, escravos e libertos) em distintos contextos. Salientamos, no entanto, que para as comunidades quilombolas do recorte regional caracterizado pelo autor como “território das bandas de taquara”, essa musicalidade representa muito mais do que uma tradição musical, pois ela simboliza também uma ressignificação e apropriação política e social de uma cultura de resistência. Segundo Magalhães (2010, p.26), as Bandas de Taquara do Vale do Jequitinhonha e do Norte de Minas, até a pouco tempo atrás, eram reconhecidas como Pifeiros - “grupos responsáveis pela música cerimonial nas festas religiosas em que tomam parte, executando também repertório profano, ao gosto do público”. Todavia, a partir das discussões decorrentes da identificação de comunidades quilombolas no Vale - a partir, principalmente, da década de 1990 -, os pifeiros da região de Minas Novas, passaram a reconhecer algumas singularidades de sua musicalidade, vinculadas, primordialmente, ao histórico de formação das comunidades e à sua vinculação com a tradição quilombola, fazendo com que se ressignificassem, neste contexto, como Bandas de Taquara. A modificação na nomenclatura, segundo as 207 comunidades quilombolas, remete à sua própria história de formação, que se vincula a uma tradição indígena que teria sido repassada aos negros mais velhos que viviam nas matas dessas regiões. Posto isso, ressaltamos que o projeto que vem sendo desenvolvido por Daniel, no Vale do Jequitinhonha, e mais especificamente com as Bandas de Taquara, tem propiciado importante resgate e valorização dessa manifestação no recorte territorial em questão, principalmente em decorrência dos encontros que vêm sendo realizados desde 2016 nos municípios de Minas Novas (Comunidade de Quilombo – 2016), Angelândia (Comunidade dos Ramos – 2017) e Capelinha (Comunidade de Santo Antônio do Fanado – 2018). Figura 9: Folders de divulgação dos Três Encontros de Flautas do Jequitinhonha (2016, 2017 e 2018) Fonte: Página do Evento no Facebook: https://www.facebook.com/flautasdojequitinhonha/ Ao participar do último evento realizado na comunidade de Santo Antônio do Fanado (2018), tivemos a oportunidade de vivenciar a importância do encontro na promoção da sociabilidade e de trocas socioculturais, econômicas e políticas, estratégicas para essas populações. Constatamos que as bandas de taquara, representam, nesse sentido, para além de uma origem ancestral comum, um sentido comunitário que seus membros, ao compartilharem o mesmo território – Território das Bandas de Taquara –, fundamentam uma mesma memória coletiva, que possibilita uma coesão identitária consolidada por meio da trajetória histórica e cultural dos grupos, da vivência e dos códigos intrínsecos ao seu viver cotidiano. Modo de vida esse, que se comunga nas práticas de preservação e compreensão dessa importante manifestação cultural, em prol de um destino partilhado, o qual se consolida por meio da 208 construção de uma “identidade de projeto”, fundamentada na tradição das bandas de taquara, concebidas, neste contexto, como uma possibilidade de redefinir a posição desses grupos frente a sociedade, a partir do seu reconhecimento como importante símbolo de suas paisagens culturais. Essa importância é ressaltada pelos próprios quilombolas ao reconhecerem que as Bandas de Taquara (enquanto patrimônio cultural de Minas Gerais) devem, não apenas ser reconhecidas, como também valorizadas por meio de políticas públicas que promovam o seu resgate e manutenção, como pudemos observar na fala do presidente da Comissão das Comunidades Quilombolas de Minas de Gerais (COQUIVALE) ao se referir às bandas e ao trabalho realizado por Daniel Magalhães: [...] cê já ouviu falar de Bandas de Taquara? Bandas de Taquara só tem em uma região. Que é do Alto Jequitinhonha, ali de Minas Novas, Angelândia e Capelinha. Aí agora nós descobrimos uma Banda de Taquara em Setubinha. E descobrimos que tinha Banda de Taquara, e que pode resgatar, em Novo Cruzeiro. Aí só fica ali, naquele bolinho, assim... Aí eu peguei e conversei com a Michele Arroio e falei com ela, falei com ela assim, olha só, ceis tem um objeto para registro de patrimônio material, maravilhoso, antiguíssimo e vocês não sabem... que é as Banda de Taquara... aí ela falou assim, mas o que que é essas Banda de Taquara? É aquelas bandas de pífano que o Daniel apresentou pra vocês no livro. Pois é, mas aquilo tem que surgir o interesse da comunidade, tem que ser de vocês... é bom que vocês aponte pra gente, e a gente vá, porque se for pra gente sair daqui fazer pesquisa de tudo não tem condição. Aí, a Coquivale vai fazer um ofício e encaminhar, já com o trabalho do Daniel, como referência para que eles registrem as bandas de taquara do Alto Jequitinhonha como patrimônio material do Estado. A gente vai encaminhar, eu tô esperando fechar o ano primeiro, que aí a gente pega uma coisa mais tranquila, e o Daniel vai passar pra gente os relatórios todos, todos no computador, pra gente encaminhar uma coisa mais segura, porque ele já tem material. Eu falei com ela assim, o trabalho de pesquisa já tá feito. Agora é só um decreto aí... Os livros, áudios, vídeos, os DVDs tudo muito perfeito... o trabalho de pesquisa do Iepha pra fazer registro de patrimônio material não chega aos pés daquele trabalho dele.. Eu falei com Daniel assim, cê poderia ter feito isso, poderia ter levado essa proposta pro IEPHA, porque se eles registrar isso como patrimônio material, ele pelo menos vira um objeto aonde a política pública vai ser implementada. Se fizer a gente sabe que pode ir lá cobrar. Eu falava, oh oceis registraram como patrimônio material, agora oceis se vira, agora assim... fica até difícil... (Quilombola Presidente da COQUIVALE, Berilo, novembro de 2016). A fala apresentada acima nos leva a refletir sobre a importância dos trabalhos de pesquisa e projetos de extensão, que por meio de um olhar do outro sobre as dinâmicas socioculturais festivas ou cotidianas dos grupos, têm viabilizado um novo modo de se ver, da própria comunidade, sobre suas tradições ancestrais. A tradição das Bandas de Taquara, neste contexto, passa então a se configurar como um rico patrimônio material e imaterial que se manifesta na construção e vivência dessa Paisagem Cultural Festiva dos Encontros de Flautas do Jequitinhonha. Partindo da concepção de paisagem enquanto um fenômeno a ser vivido e experienciado, tentarei descrever, com auxílio das imagens, o que foi essa experiência de paisagem no III Encontro de Flautas do Jequitinhonha. 209 O encontro foi iniciado com o lançamento de uma campanha de financiamento coletivo, que se fez necessária mediante a escassez de recursos para eventos na área cultural no ano de 2018. Os organizadores chegaram, inclusive, a cogitar a possibilidade de não realizar o evento. Contudo, as próprias comunidades demandaram a sua realização, uma vez que as novas bandas de taquara mirins, que tinham surgido por meio de um movimento de valorização e renovação dos grupos (estimulado nos encontros anteriores), estavam na expectativa da sua concretização. Uma das práticas recorrentes nos encontros tem sido a preparação de uma tenda no local previsto para a sua realização, juntamente com a promoção de oficinas, nas comunidades que se dispõem a receber o encontro, para ensinar este “saber fazer” aos mais jovens, fabricando-se, na semana anterior, novos instrumentos a serem doados aos grupos convidados. E foi na expectativa desse momento de preparação, produção e reprodução da tradição que as comunidades demandaram a continuidade do projeto, o qual, por meio das parcerias estabelecidas no financiamento coletivo, conseguiu angariar fundos para a sua realização. Além das apresentações de dez bandas de taquara e quatro grupos culturais da região, estavam previstas outras atividades durante o evento, tais como: oficina de confecção de flautas de PVC; oficina de confecção de caretas (máscaras das bandas de taquara); feira de artesanato e agricultura familiar; exposição de fotos e mostra de vídeos; roda de conversa sobre artesanato em cerâmica com uma artesã da comunidade de Campo Buriti (que atualmente ocupa o cargo de coordenadora da Rede Setorial do Artesanato do Alto Jequitinhonha) e uma exposição de painéis sobre os trabalhos que desenvolvemos no sítio histórico geográfico de Alto dos Bois, por cujas produção e apresentação fiquei responsável durante o evento. Vale ressaltar, contudo, que o espaço festivo, do encontro, não se faz dentro das linearidades que às vezes se almeja. Apesar das placas indicativas do caminho e do mapa mental construído pela comunidade (e divulgado nas redes sociais do evento), diversos grupos vieram de longe, e muitas vezes a logística do transporte demanda se considerar algumas adversidades, como o atraso de pessoas, carros e caminhos desviados. No entanto, o mais interessante a se destacar é que, independente do horário, a chegada se faz sempre com muita alegria e festividade. Os grupos já desciam dos ônibus (em sua maioria, veículos escolares concedidos pelas prefeituras) com instrumentos a postos, tocando e rodando em comemoração à sua própria chegada ao encontro e dos demais. Os olhares se dividem então entre aqueles 210 que chegam e aqueles já tinham chegado, e estavam se apresentando na tenda principal. Tudo é festa! Tudo é a celebração da tradição! Figura 10: Chegada do Grupo de Marujada da Comunidade de Quaresma (Setubinha – MG) Figura 11: Encontro dos grupos “chegantes” com os grupos que já se apresentavam na Tenda Fotos da autora (2018) As sonoridades das caixas, reco-recos, flautas, sanfonas e pandeiros se misturam entre os olhares daqueles que não se viam desde o encontro do ano passado. A paisagem vai se fazendo, e os organizadores correm de um lado pro outro para montar os painéis, organizar os veículos, dividir as tarefas, preparar o café e convidar os chegantes ao encontro da mesa. Mas é o toque das caixas que eles querem! É o emaranhar das saias girando, das vozes cantando, é a celebração do encontro, a satisfação de estar com o outro que atraem todos para a tenda principal. Só por volta das 11h30min, é que algumas pessoas se deslocam para as proximidades da capela, onde a anfitriã da comunidade preparava um café tradicional, com comidas de quilombo: biscoito de goma, cabo de machado, broa de milho e um café bem docinho! Figura 12: Café da manhã no centro comunitário da Capela. Fotos da autora (2018) 211 E assim, no ritmo das comunidades, a programação se refaz, de forma que tudo acontece à mesma hora e ao mesmo tempo. As rodas de conversas vão se entremeando às apresentações musicais, cortejos e à fabricação de Flautas, sendo este um dos espaços mais disputados pelos jovens e crianças das comunidades. Todos se reúnem ao redor dos mestres das flautas para garantirem seu instrumento, aprendendo a fazê-lo na prática. Figura 13: Oficina de fabricação de Flautas de PVC Fotos da autora (2018) E enquanto aguardam sua vez, ou observam de longe a fabricação das flautas, muitos aproveitam para conhecer um pouco do histórico da região de Alto dos Bois, que, inclusive, os jovens de outras comunidades já conheciam, a partir das histórias dos mais velhos, que já trabalharam na fazenda ou que nasceram na região e se mudaram para outras comunidades, ou através ainda das aulas de história regional, nas quais a importância do Casarão, enquanto patrimônio histórico e cultural, já havia sido trabalhada pelos professores. E foi nesse espaço que os saberes das comunidades e das nossas pesquisas (pautadas em suas vivencias e experiências) estabeleceram e promoveram diálogos que, ao ativarem memórias coletivas, reforçam ainda mais a identidade cultural dessas comunidades. Figura 14: Visitas aos painéis da Exposição sobre o sítio Histórico e Geográfico de Alto dos Bois 212 Fotos da autora (2018) Na tenda principal, os grupos (cada qual com seu colete ou uniforme em cores distintas), sons, batuques e flautas compõem um emaranhado, que não se sabe onde termina ou começa. Enquanto a Banda de Taquara de Quilombo toca, o grupo de vilão da associação de mulheres de Capelinha dança, e outros participantes da festa se organizam para puxar um “nove”. E o encontro se faz, as apresentações transformam-se em participações, todos se entregam para a construção dessa paisagem que encanta e envolve os ousiders, que não conseguem ficar parados e acabam se entregando aos movimentos. A experiência desperta, por sua vez, nos insiders as lembranças da infância, dos pais e familiares nas festas nos terreiros de casa em dias de comemoração aos padroeiros; e o desejo de reviver as memórias se materializa também na entrega do corpo e da alma à roda das bandas de taquara. Os cânticos e batuques também são entoados e tocados em honra aos ancestrais, os quais se fazem presentes também na tradição das benzeções, que se desenvolve em um cantinho da tenda. Figura 15: A festa das Bandas de Taquara e Grupos Culturais Fotos da autora (2018) 213 A identidade se manifesta ainda na confecção de peneiras com tiras de taquara, nos alimentos tradicionais que são comercializados (dentre eles: frutas e legumes, mel, pequi, óleo de pequi e mamona, manteiga de garrafa, doce de leite) ou ainda na produção de panos de prato bordados e instrumentos rústicos (como violas, rabecas e bandolins), vendidos durante a festa. Sim, o encontro de Flautas é uma festa, uma comemoração da cultura que se mantém vívida nos grotões do Jequitinhonha, expressa nas apresentações das bandas que não cessam, nem na hora do almoço, até o cortejo ao local reservado para as refeições foi feito ao som das bandas e ao rodar das saias. Todos participam de tudo a todo o momento. Figura 16: Alimentos da agricultura familiar e artesanatos comercializados durante o evento. Fotos da autora (2018) A hora do almoço: quanta fartura, alegria e coletividade! Como pode ser “Vale da Miséria”? O carinho e cuidado no preparo e no servir aos demais é perceptível a todos os sentidos: no olhar atencioso, no cheiro gostoso, na “provinha” do alimento que é feita na fila mesmo e transmitida por meio das expressões faciais ou ainda por meio dos suspiros – “hum (...) que gostoso!”, no comprimento carinhoso, nos elogios e agradecimentos às cozinheiras, sempre solícitas no atendimento aos que chegam. Todos na fila, com seus pratinhos e copos, que foram distribuídos pelas crianças, aguardando a sua hora tão sagrada. Aqueles que já 214 almoçaram, naturalmente assumem as funções de servir aos demais. E as panelas cheias! Quanta comida: galinha, arroz, feijão tropeiro, salada, macarrão, carne cozida, sabores que só de lembrar dão água na boca! Figura 17: O horário do almoço Fotos da autora (2018) Os grupos se misturam: folias, vilões, noves e caboclos, danças e cantos tradicionais se entremeiam ao entoar das taquaras e violas. Até que após a pausa do almoço, já pelas 15 horas, abre-se espaço para o momento dos agradecimentos, da entrega dos instrumentos e da consolidação de uma cultura que é herança materializada pela presença maciça dos jovens e crianças em todas as dinâmicas da festa. Mestre Antônio, um grande mestre dos saberes das caixas fala sobre a importância de se cultivar e preservar desde os saberes da tradição das caixas e flautas do Jequitinhonha aos saberes de conviver com as matas que fornecem os insumos para a manutenção dessas práticas culturais, convocando a todos a se responsabilizarem por esse patrimônio que é cultural e natural. A responsabilidade é também reafirmada aos jovens e crianças, quando no momento de receber os novos instrumentos, são chamadas a assumir, frente a todos, o compromisso de tocá-los, levando por 215 onde forem a cultura e a tradições desse “Território das Bandas de Taquara”, dos grupos de Marujada, caboclinhos e violas do Jequi! Figura 18: Agradecimentos e comprometimento dos jovens e crianças na preservação da tradição Fotos da autora (2018) E assim como começou, terminou o encontro. Todos querendo se apresentar em despedida e agradecimento da partilha. Então cada grupo vai se apresentando em despedida e bênçãos, girando da tenda principal, onde a paisagem de fez e se faz, ao ônibus para a partida e chegada em suas comunidades onde o compartilhar desse momento constituirá, ainda mais, em mais uma “festa” do encontro, da partilha e do fortalecimento das tradições, que para além de uma manutenção do passado, representam as projeções para o futuro. 216 Figura 19: Despedida das Bandas de Taquaras e dos Grupos de Marujada Foto da autora (2018) Outro projeto de destaque desenvolvido com as comunidades quilombolas da microrregião de Capelinha foi a “Promoção e Desenvolvimento de Agentes Quilombolas Socioambientais no Médio Jequitinhonha”, apoiado pelo Programa Oi Novos Brasis (da empresa de telecomunicações Oi), que teve como objetivo “realizar formações de valorização do patrimônio cultural e natural; resgate da autoestima e de autoreconhecimento quilombola; cidadania participativa e atuação profissional de monitores de turismo local” (MOREIRA; CARMO, 2012, p.20). Este projeto foi realizado entre 2011 e 2013 nos municípios de Minas Novas, Chapada do Norte, Berilo e Araçuaí, com a participação de aproximadamente 80 jovens de 15 a 29 anos, oriundos de 17 comunidades distintas sediadas neste recorte territorial. Os eixos norteadores do projeto foram: a) “capacitação profissional de jovens quilombolas”; b) “a valorização patrimonial e ambiental” dos municípios envolvidos no projeto a partir da ação dos jovens já capacitados na orientação e desenvolvimento de ações voltadas ao patrimônio cultural do município e; c) o “desenvolvimento de valores éticos e promoção do acesso às leis e meios que garantam o acesso desses jovens ao mercado de trabalho e ensino superior” (MOREIRA; CARMO, 2012, p.20). Nesse sentido, a equipe técnica, a partir de metodologias participativas, tais como: Diagnóstico Rural Participativo (DRP); formação de grupos de trabalho; dinâmicas de grupo; visitas técnicas; travessias e mapas mentais realizou a construção coletiva do projeto de acordo com as demandas e situações cotidianas das comunidades. A capacitação dos agentes foi estruturada a partir de três módulos principais, contendo as seguintes atividades: módulo I (levantamento do plano de vida e carreira dos jovens envolvidos; discussões e debates sobre o histórico do negro no Brasil e aspectos da cultura quilombola); módulo II (discussões e visitas técnicas para o reconhecimento e valorização do patrimônio cultural e natural dos municípios e das comunidades, além das potencialidades da atividade turísticas locais); e o módulo III 217 (voltado principalmente para a atuação e formação dos monitores de turismo local e do papel do Agente Quilombola Socioambiental). Segundo as mobilizadoras do projeto, a participação dos jovens nas atividades e o envolvimento dos mesmos nas formações propiciou a eles uma nova forma de compreender suas próprias comunidades e o sentido do seu reconhecimento como comunidades quilombolas, o que para muitos ainda não era tão evidente. Em algumas comunidades foram compostas músicas que contavam a história das comunidades, resgatadas danças de roda e até construído um memorial na sede das associações para referenciar a história das comunidades (MOREIRA; CARMO, 2012). A valorização do patrimônio vivido e a esperança de realizar trabalhos locais no entorno de atividades voltadas ao turismo comunitário, fez com que nos anos seguintes fosse desenvolvido um segundo projeto na região, pelas mesmas mobilizadoras do CEDEFES, também apoiado pelo Programa Oi Novos Brasis, de formação da Rede de Apoio Integrada ao Turismo no Médio Jequitinhonha (REDETUR), que foi consolidada a partir de reuniões de articulação nos municípios envolvendo prefeituras, sindicados, movimentos sociais, comunidades quilombolas, redes de empreendedorismo, associações comerciais, setor hoteleiro, artesãos e artesãs e escolas municipais. A partir dessas Reuniões de Articulação foram traçadas as capacitações e visitas técnicas que seriam desenvolvidas com a finalidade de construir roteiros turísticos nessas comunidades. Nas capacitações dos Agentes Quilombolas foram discutidas: as formas de valorizar e comercializar as mercadorias e serviços produzidos nas comunidades; as formas de recepcionar o turista; cursos para novos monitores e promotores locais do turismo; o empreendedorismo e a gestão artesanal para grupos de mulheres artesãs e os impactos e possibilidades do turismo quilombola de base comunitária. Nessa perspectiva, foram realizadas visitas técnicas em 12 comunidades desses municípios a fim de reconhecer as potencialidades de cada uma na construção da, como foi denominada pelas gestoras do projeto Rota dos Quilombos. Um dos avanços desse segundo projeto, em relação ao primeiro, foi o fato de terem sido inseridos no processo membros da sociedade envolvente que muitas vezes desconheciam a riqueza sociocultural dessas comunidades, a sua importância para a história do município, e, inclusive, para o desenvolvimento de um turismo regional, importante para essas cidades. Nesse sentido, o projeto contemplou ainda a realização/ organização de eventos que promovessem essa compreensão como o “Seminário de Associativismo Rural no Médio Jequitinhonha” e a “Visita de Familiarização Turística no Médio Jequitinhonha” (FAMTUR). 218 Na FAMTUR, jornalistas de meios de comunicação importantes, pesquisadores, professores universitários, membros de ONGs, e outras pessoas envolvidas com o turismo de base comunitária puderam realizar alguns dos roteiros construídos para a Rota dos Quilombos. Essa experiência foi inclusive relatada em importantes organismos de mídia nacionais: revista O Globo – “Viagem ao Coração Quilombola” (15/11/2015); jornal Estado de Minas – “Entre que o Jequitinhonha é seu! Rota dos Quilombos” (17/11/2015); Folha de São Paulo – “Roteiro permite vivenciar cotidiano de quilombolas em Minas Gerais” (19/11/2015); Rede Minas – série “Quilombos do Jequitinhonha”, com cinco reportagens especiais: “ser do quilombola”, “racismo”, “água e terra”, “trabalho” e “resistência” (outubro de 2017)59. A divulgação da Rota dos Quilombos nos mass mídia viabilizou o reconhecimento e a valorização da riqueza cultural dos quilombos, bem como a desconstrução de muitos pré- conceitos ainda voltados ao Vale do Jequitinhonha e às comunidades quilombolas, que, mesmo em municípios onde elas são significativamente representativas, ainda são desvalorizadas, excluídas e marginalizadas. Reconhecemos que o turismo desencadeia uma série de impactos para as comunidades, todavia é preciso também reconhecer as possibilidades que a atividade propicia a todos que se envolvem no processo. E assim como ressalta a reportagem da revista O Globo: “O visitante de um quilombo é quase um parente que a família ainda não conhecia. Não demora para ele mergulhar neste universo único, que já encantou antropólogos e historiadores e agora abre as portas para os viajantes amadores” (OTAVIO, 2015, p.38). Atualmente estão disponíveis pela “Rota dos Quilombos”60 dez roteiros nas seguintes comunidades: Catitu do Meio e Roça Grande (Berilo); Córrego do Rocha, Faceira, Gravatá e Moça Santa (Chapada do Norte) e Macuco, Quilombo, Santiago e São Pedro do Alagadiço (Minas Novas). Cada roteiro traduz um pouco do cotidiano nessas comunidades, incluindo visitas à sede da associação quilombola, caminhadas pela comunidade, piquenique, banho de rio, apresentações culturais, culinária tradicional, roda de conversas com histórias da comunidade ao pé do fogão à lenha, oficinas de artesanato e culinária tradicional, etc. São experiências que encantam e fascinam cada vez mais aqueles que se interessam por esse tipo de passeio. Não se trata de um turismo de massa, mas de uma modalidade dessa atividade voltada a um público muito singular que busca conhecer e vivenciar um pouco das tradições afrodescendentes do sertão mineiro. Tratar-se-ia, contudo, de uma atividade sazonal que não 59 Disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=PFfP8SPe6o8&list=PL9O7-FBP5RHahWn9IdQK- dzTgTmj-Leww&index=1 60 Informações específicas sobre as rotas encontram-se disponíveis em: http://www.rotadosquilombos.com.br 219 pode ser considerado como uma fonte de renda principal das comunidades, mas que atende aos propósitos do turismo de base comunitária, da troca de experiências e vivencias (DEUS; CARMO, 2016). É interessante apresentar um pouco da percepção dos próprios quilombolas sobre esse projeto, uma vez que eles possuem suas expectativas a respeito, mas como bem colocado pelo presidente da COQUIVALE (que também cursou a capacitação), todos sabem de suas potencialidades e limitações e estão atentos aos próximos encaminhamentos do projeto: [...] as comunidade que passaram por essa capacitação, elas estão tranquilas para receber, até porque elas entenderam que não é que vai chegar ali cem turista e barrota na comunidade, elas sabem, elas entenderam que quem quer visitar a comunidade são pessoas que tem o perfil de querer conhecer a comunidade. Nós não somos Paris não, que cê abarrota de turista e o tempo todo tem que ter um oferecimento de coisas, boas e ruins. A comunidade só tem a parte boa pra oferecer, porque o que ela vai oferecer de ruim? Então elas sabem que não é pra fazer mal pra comunidade, elas entendem. O impacto do turismo nas comunidades quilombolas gente, ele é um impacto positivo. Não tem como ser negativo não. Primeiro que só vai visitar nós aqui quem tem o interesse de conhecer uma comunidade, ué. Não vai querer vir pra cá alguém, por exemplo, que quer utilizar a prostituição, por exemplo. Eles sabem que aqui eles não vai achar isso. Então já tem o perfil de quem poderia estar, vindo fazer turismo na comunidade quilombola. Isso aí o pessoal já entendeu, as comunidades que passaram pela capacitação já entendeu. E tem comunidades que soube, que tá dentro da rota, que já ta falando que quer participar da rota. [...] Nós estamos agora só aguardando é o lançamento do Blog, os próximos passos. Porque é através do lançamento do blog, que eu acredito que os turistas virão. No comecinho começou bem a vir uns turista, nós mesmo, recebemos alguns, pesquisadores.... que, queriam divulgar a rota. E todo mundo fora que a gente fala que tem a Rota dos Quilombo, eles tem o maior interesse de conhecer, agora pessoal acha que não ta recebendo só porque não tem aquela parte burocrática, que é chata, organizada ainda. Pra cê emitir nota fiscal, porque vai lidar com dinheiro né... é um comércio... agora nós estamos só esperando finalizar isso... lançar o blog, aonde eles vão ter as informação pra não precisar ficar ligando, perguntando, agora com o blog eles vão achar essas informação... (Quilombola Presidente da COQUIVALE, Berilo, novembro de 2016). Os encantos das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha foram também ressaltados pelo projeto “Quilombos do Vale do Jequitinhonha: Música e Memória”, patrocinado pela Cemig, Itaú, Petrobras, FINEP e Milton Kanashiro Arte, Cultura e Cidadania; e que teve apoio da Fundação Heinrich Böll, possibilitando que uma equipe de historiadores e documentaristas de São Paulo registrasse, entre 2014 e 2016, relatos de vida e manifestações culturais de cerca de 60 comunidades quilombolas dos municípios de Minas Novas, Berilo, Chapada do Norte e Virgem da Lapa. O projeto61 viabilizou ainda a produção de um livro contendo os relatos de vida de diversas personalidades dessas comunidades (raizeiros, congadeiros, guardiões da tradição quilombola, tamborzeiros, quitandeiras, etc.); um banco de imagens e uma série de vídeos apresentando para a sociedade a riqueza 61 Todo esse material encontra-se disponível no site: www.quilombosdojequitinhonha.com.br 220 sociocultural dessas comunidades. A importância desse projeto foi reconhecida pelo IPHAN, que em 2017 o selecionou como um dos oito vencedores da 30ª Edição do Prêmio Rodrigo Franco Andrade (uma das principais premiações do patrimônio cultural no Brasil). Como desdobramento, as comunidades quilombolas do Jequitinhonha tiveram ainda sua cultura representada na exposição “Quilombos do Vale do Jequitinhonha: Música, Memória e Resistência” realizada e apoiada pela Fundação Palmares em novembro de 2017 em Brasília. Segundo os coordenadores do projeto, um dos aspectos que mais impressionou a equipe foi a consciência política dos direitos e a forma como essas comunidades vêm atuando politicamente na manutenção e preservação de suas manifestações culturais (SYDOW; FOGAÇA, 2017). Os três projetos analisados fazem parte de ações vinculadas a medidas compensatórias de impactos ambientais/sociais que tais empresas promovem em diversas regiões do país. Todavia, tais financiamentos, sob a condução de atores sociais envolvidos e preocupados com a ausência de projetos/ações, têm promovido uma transformação da concepção sociocultural do Vale e tem, inclusive, viabilizado, a partir de diálogos e do desenvolvimento da autonomia dessas comunidades, e de um protagonismo não apenas cultural, mas político e econômico destas coletividades. Desse modo, podemos dizer que tais ações estão caminhando, conjuntamente, para a tentativa de se desenvolver o etnodesenvolvimento no Vale do Jequitinhonha, a partir do exercício de protagonismo desses sujeitos. Pois, como ressalta Lima (2014, p.23): [...] as linhas centrais do etnodesenvolvimento deveriam estar relacionadas à capacidade de as comunidades efetivamente se tornarem gestores do seu próprio desenvolvimento, sendo assegurado a elas a oportunidade de formar seus etnoprofissionais em áreas técnicas específicas e estratégicas, ou seja, a qualificação profissional de indivíduos que pertençam à própria comunidade, como professores, médicos, engenheiros, advogados, etc., e assim terem os meios e os recursos humanos capacitados para gerirem com maestria unidades político-administrativas etnocomunitárias responsáveis pela gestão de seu território. E ainda nessa perspectiva, observamos que essas mobilizações e articulações que vêm sendo realizadas no Vale, têm surgido a partir de um processo participativo, o que Lima (2014) chama de “comunidades de argumentação”, as quais se pautam na representatividade multiparticipativa, incluem no processo de construção social uma pluralidade de opiniões, visões de mundo e etnoconhecimentos que viabilizam o fortalecimento político dessas comunidades. Um resultado claro desse processo é o surgimento da Comissão das Comunidades Quilombolas do Médio Jequitinhonha (COQUIVALE), que desde 2016, vem estabelecendo um forte protagonismo dessas comunidades com o objetivo de promover e 221 consolidar as articulações entre as comunidades quilombolas do Médio Jequitinhonha, a partir do diálogo entre os próprios grupos na luta por maior visibilidade e força política em suas demandas sociais. A COQUIVALE está ligada ainda à N’GOLO - Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais, que vem acompanhando e apoiando a luta dessas populações desde 2005. Desde a sua criação esta comissão vem realizando uma série de reuniões em diversos municípios do Jequitinhonha no intuito de conscientizar a todas as comunidades e membros da importância dessa articulação regional dos quilombolas do Jequitinhonha. Além disso, a cada reunião são levantadas as demandas e realizados diagnósticos da situação das comunidades de cada município, atividade esta que vem sendo, inclusive, realizada com o apoio de uma equipe da Coordenadoria de Inclusão e Mobilizações Sociais (Cimos) do Ministério Público de Minas Gerais, com a finalidade de identificar ainda os direitos fundamentais que possam estar sendo violados nessas comunidades. É importante destacar também que, a cada reunião, o protagonismo do diálogo e das orientações a serem compartilhadas é repassado para as lideranças locais, que assumem o papel de discutir e informar aos quilombolas da região sobre seus direitos, sobre os desafios de comunidades de outras localidades e sobre os avanços que cada município do Vale tem conquistado nesses últimos anos no que se refere às políticas públicas quilombolas. E foi a partir desse protagonismo que em agosto de 2016 foram certificadas pela Fundação Palmares quatorze comunidades de seis municípios do Vale que já estavam com seus processos de autoreconhecimento encaminhados há anos, mas que não haviam ainda obtido nenhum retorno a respeito. O acompanhamento da COQUIVALE junto à Palmares e a própria orientação da construção de novos pedidos têm viabilizado êxitos importantes nesse processo de reconhecimento, que como sabemos, é o primeiro passo para a conquista de seus territórios tradicionais e da preservação de suas paisagens culturais. No intuito de acompanhar melhor as linhas de atuação dessa comissão, realizamos, além de entrevistas com lideranças envolvidas no processo, uma análise das postagens realizadas na página do facebook da comissão, a fim de compreender melhor o encaminhamento de sua atuação nas comunidades, uma vez que, todas as suas ações tem sido divulgadas nesse meio de comunicação. Sendo assim, no período de 20/02/2016 a 27/11/2017 foram realizadas em torno de 210 postagens, das quais 88 estavam relacionadas à práticas e ações de articulação das comunidades quilombolas no Jequitinhonha, incluindo: encontros regionais; reuniões da Coquivale; notícias a respeito da certificação de comunidades do Vale; 222 de lançamento de livros sobre a questão quilombola no Brasil e no Vale e a realização de Encontros da Juventude Quilombola nos principais municípios envolvidos na comissão (Itinga, Jenipapo de Minas, Berilo, Virgem da Lapa, Chapada do Norte, Araçuaí e Coronel Murta). Nesse sentido, é interessante ainda ressaltar que ao questionar o presidente da Coquivale sobre a importância do surgimento da entidade a resposta foi imediata: A ARTICULAÇÃO! Comunidade articulada e empoderada é tudo! Se a comunidade não empoderar da sua identidade cultural, se aceitar, e manter articulada com as outras, que estão em volta dela, né, criar essa rede, ela não vai (...) Quando você cria essa rede de articulação, fala assim o povo quilombola, pronto, acabou. (...) E aí o povo unido, né, é mais forte. Então, quando a gente criou essa articulação, que não é só de um município, junto todos os município do Vale do Jequitinhonha pra discutir política pública, né, os quilombola discutir as política pública deles, então facilitou a articulação e é o principal benefício da COQUIVALE, é a articulação, é manter a articulação. Fazer ela e manter (Quilombola Presidente da COQUIVALE, Berilo, novembro de 2016). A partir dessa análise, observamos que 2017, para a COQUIVALE, foi o ano de discutir sobre as políticas públicas voltadas para a juventude quilombola, ações que desencadearam, inclusive, na realização do I Encontro Estadual da Juventude Quilombola entre os dias 25 e 26 de maio na Cidade Administrativa (Belo Horizonte). Vale ainda salientar que dentre as práticas de articulação, observamos ainda diversas reuniões e diálogos dessas comunidades com Universidades e Institutos Federais principalmente regionais, tais como a Universidade Federal dos Vales de Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais – Campus Araçuaí (IFNMG), muitas delas associadas principalmente à solicitação por parte das comunidades de uma assistência maior aos alunos oriundos de suas comunidades. Além disso, destacam-se ainda articulações e diálogos realizados com ONGs e entidades públicas e privadas, tais como: CEDEFES; ASA Brasil; Fundação Palmares; IEPHA; N’GOLO; CEMIG; SEBRAE; CONAQ; MPF; CIMOS; Pastoral da Terra e do Migrante; CNBB; Fundo Ecumênico de Solidariedade; Itaú Cultural; Petrobrás; Secretaria Estadual de Cultura (SEC); Instituto Oi Futuro; REDETUR; IDENE; FUCAM; EMATER; SEDA; INCRA; Projeto Rondon Minas; SEPIR; Programa DGM e diversas outras prefeituras e sindicatos regionais. Todavia, a entidade que mais se destacou em ações junto às comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha, principalmente entre 2015 e 2018, foi o Ministério Público, como bem ressalta o presidente de COQUIVALE: [...] nós firmamos uma parceria com o ministério público pra fazer o diagnóstico das comunidades quilombolas, que já tá saindo, começou com Berilo. O ministério público, com o promotor, visitou cada comunidade quilombola, e ainda mais duas pra visitar, e ele, a equipe dele faz um relatório bem detalhado das demandas da comunidade, mas bem detalhado mesmo, das demandas. E eles mesmos começam a 223 fazer os encaminhamentos. Aí eles faz o relatório e encaminha pra gente. (...) E eu acompanho, alguém da Coquivale também acompanha todas as visitas, eu mesmo acompanhei todas as visitas até agora. Todas as comunidades, acompanhei. E eles faz o levantamento de tudo, as dificuldade que a comunidade tá enfrentando, eles faz também qual é o potencial da comunidade, o que a comunidade pode trabalhar, aí pergunta: que tipo de artesanato cês tem aqui? E aí aparece... ah, fulano sabe fazer peneira, aí outro, ah, fulano sabe fazer panela de barro, aí eles acham o potencial pra futuramente tentar uma parceria com alguma instituição pra tentar desenvolver aquele potencial como uma geração de renda (Quilombola Presidente da COQUIVALE, Berilo, novembro de 2016). Entendemos que tais articulações incidem, inclusive, na segunda temática de postagens mais realizadas na página da comissão – Direitos Quilombolas –, correspondendo a 48 postagens no período analisado. Tal dinâmica evidencia ainda que estas populações encontram-se cada vez mais instrumentalizadas em nível de informação, compreendendo seus direitos e sabendo onde e como conquista-los, seja em âmbito municipal, estadual ou federal. Destacam-se entre essas postagens convites para audiências públicas realizadas nas sedes municipais do Vale, cuja temática foi: “Os direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais”; mutirões da defensoria pública à respeito de pendências juntos à previdência social; “empoderamento e resistência à invasão de terras para o plantio de eucalipto”; decretos sobre políticas públicas educacionais, fundiárias e de viés cultural. Tal temática também esteve presente em 35 postagens que discutiam sobre a cultura quilombola e a luta pela valorização e reconhecimento, partindo, principalmente, das manifestações e falas das próprias comunidades quilombolas do Jequitinhonha, divulgando apresentações culturais, festas nas comunidades, encontros de bandas de taquara ou vídeos feitos pelos comunitários sobre suas tradições culturais. Outro eixo temático de destaque nas postagens da COQUIVALE, principalmente no ano de 2016, foi aquele concernente ao empoderamento feminino. Foram divulgadas, nesse sentido, diversas reportagens, imagens e dossiês que trabalhassem com: questões de gênero; violência contra mulher; tendo sido realizada, inclusive, uma mesa redonda no IFNMG sobre a “História das mulheres na formação econômico-social e cultural do Médio Jequitinhonha”; um roda de conversa com mulheres quilombolas e diversas outras discussões que desencadearam na realização, em novembro de 2016, do I Encontro de Mulheres Quilombolas do Vale do Jequitinhonha. Neste evento, em que tivemos a oportunidade de participar, vivenciamos a força das mulheres do Vale, representadas por cerca de 200 lideranças femininas dos municípios de Almenara, Felizburgo, Chapada do Norte, Minas Novas, Berilo, Araçuaí, Itinga, Almenara, Jequitinhonha, Itamarandiba, Angelândia, Diamantina, Capelinha, Jenipapo de Minas, Francisco Badaró, Virgem da Lapa e Coronel 224 Murta. O encontro foi composto de mesas de debate, oficinas, grupos de trabalho e apresentações culturais diversas. Nas mesas estiveram presentes pesquisadores, representantes do CEDEFES, Federação N’Golo, Comissão Pastoral da Terra, Pastoral do Migrante, Rondon Minas, Caritas Diocesana-MG, Instituto Bateia, CODECEX (Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas), assim como representantes de instâncias governamentais como a Coordenadoria de Mobilização e Inclusão Sociais do Ministério Publico de Minas Gerais (CIMOS); Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e do Trabalho; Secretaria Estadual de Desenvolvimento Agrário; Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial e Superintendência Regional de Ensino de Araçuaí. A participação das mulheres após as apresentações das mesas foi incisiva; muitas possuíam dúvidas sobre casos específicos, as quais foram sanadas e compartilhadas com outras lideranças, que ajudaram no debate. Havia sempre um questionamento ou uma angústia que elas gostariam de expor e compartilhar, além de uma grande preocupação com casos de desrespeito ao direito das mulheres que se evidenciavam. Muitos desses debates se intensificaram nos grupos de trabalho: i) políticas públicas e mulher negra; ii) mulher quilombola: uso, manejo e conservação da biodiversidade; iii) mulher negra: mercado de trabalho e geração de renda; iv) mulher negra e violência; v) mulher negra e identidade. E a partir dos debates realizados em cada eixo, foi elaborada a “Carta da Mulher Quilombola do Vale do Jequitinhonha” na qual constam as seguintes considerações e reivindicações: a) A imediata adoção de medidas de proteção ambiental, preservação e recuperação das águas e nascentes e combate à seca, tais como: barramento da expansão das monoculturas de eucalipto e elaboração e aprovação do seu marco regulatório; levantamento das terras devolutas para demarcação e titulação dos territórios quilombolas; fiscalização da exploração do garimpo; construção de barragens e implementação de tecnologias de convivência no semiárido e do Plano Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais; desafetação dos territórios quilombolas tomados por unidades de conservação de uso integral e apoio à agroecologia; b) A erradicação dos processos migratórios degradantes e a adoção de medidas tais como: criação de frentes de trabalho e geração de renda; fiscalização do cumprimento das leis trabalhistas durante os processos migratórios; implementação de escolas de ensino infantil, favorecendo a realização das atividades profissionais das mães e realização de audiências públicas para denunciar violações de direitos dos migrantes; c) A criação de alternativas de trabalho e de geração de renda, por meio das melhorias e expansão das políticas públicas de apoio à agricultura familiar; da publicação de editais específicos de fomento a criação de cooperativas e associações quilombolas e a adoção de estratégias que favoreçam o aumento da escolaridade e a profissionalização da juventude quilombola; d) A adoção de Política de combate à discriminação e à violência contra a mulher quilombola, por meio, dentre outras ações, da constituição de uma rede de apoio à mulher; da criação imediata da Vara Especializada no atendimento à mulher; da capacitação de policiais militares para atendimento dos casos de violência contra mulher; da promoção de ações de combate ao machismo e a toda e qualquer forma 225 de discriminação social; da fiscalização e melhoria do acesso às políticas de saúde, em especial da política de pré-natal e assistência ao parto; e) A adoção de políticas de preservação e disseminação das tradições e saberes que compõem a identidade cultural quilombola; f) O apoio aos movimentos, às associações, aos conselhos de políticas públicas e às práticas participativas (conferências, encontros, fóruns) que tratem de temas afetos à realidade da mulher quilombola e, em especial, à participação da mulher na política (Carta da Mulher Quilombola do Vale do Jequitinhonha, 2017, p.1-2). Após tais apontamentos, faz-se necessário destacar que muito além dos discursos de empoderamento, tais debates e reivindicações estão intrinsecamente relacionados à luta diária das famílias do Vale, sejam homens, crianças ou mulheres; vazanteiros, quilombolas ou coletores de sempre vivas; à realidade da seca; à falta de oportunidades de trabalho e estudo; às políticas de apoio à agricultura familiar e de preservação ambiental, cultural e patrimonial imbricadas ao cotidiano de todas elas. Desse modo, ressaltamos que os proclames dessas mulheres só evidenciaram ainda mais sua importância no seio familiar e na luta pela sobrevivência das famílias e comunidades, relevância essa que é também reconhecida na carta mencionada acima: Após dois dias de debates, oficinas e grupos de trabalho, constatamos que, as mulheres quilombolas do Vale do Jequitinhonha permanecem vivendo em situação de pobreza e padecem pela falta de água, causada pela degradação ambiental, especialmente pela monocultura do eucalipto; pela falta de condições adequadas para geração de renda, em especial para produção e comercialização agrícola e artesanal e pelos processos migratórios e estão submetidas a diversas situações de discriminação e violência de gênero e raça. Reafirmamos o nosso protagonismo na vida social e comunitária, como pessoas essenciais e indispensáveis na luta pela conquista de direitos e melhorias nas condições de vida de toda população (Carta da Mulher Quilombola do Vale do Jequitinhonha, 2017, p.1) As discussões desenvolvidas em torno do protagonismo feminino no âmbito da COQUIVALE, no ano de 2016, consolidou um movimento que até o momento caminhava de forma individual, ou seja, alcançou o seu objetivo principal enquanto instituição – promoveu a articulação entre essas mulheres. A valorização, os espaços para o diálogo e os debates fortaleceram o empoderamento feminino, que pode ser observado nas imagens apresentadas a seguir, nas quais buscamos registrar o que foi a essência desse evento e a importância da participação das mulheres de diversas partes do Vale, que demonstraram suas motivações para participarem deste encontro por meio da fala, da escrita, da escuta e da própria postura. Foi um grande aprendizado poder vivenciar esse momento de articulação feminina, onde preponderou o respeito e a confiança de compartilhar diversas situações de marginalização, preconceito e até mesmo violência. Independente da idade, localidade, grau de escolaridade, grupo comunitário ou cor da pele, todas foram ouvidas com a mesma consideração e atenção. Momentos como estes não trazem apenas visibilidade ao 226 protagonismo feminino no Vale, mas as fortalece, ainda mais, na luta diária, possibilitando que essas mulheres tenham, e busquem o acesso aos seus direitos, além de viabilizar que elas se vejam na força e na resistência umas das outras. Reconhecendo assim, sua real importância enquanto “Força-motriz” do Vale do Jequitinhonha. Figura 20: Mesa de Debate no I Encontro de Mulheres Quilombolas do Vale do Jequitinhonha Figura 21: Quilombola de Arraial dos Crioulos – Araçuaí Figura 22: Quilombola de Chapada do Norte Figura 23: Quilombola de Diamantina (coletora de Flores Sempre-Vivas) Figura 24: Grupo de Trabalho: Políticas Públicas e Mulher Negra 227 Figura 25: Apresentação dos Resultados dos GTs Figura 26: Entrega dos Certificados de Participação do Encontro Fotos da autora (2016) E por fim, a COQUIVALE demonstrou-se ainda preocupada com a temática da educação quilombola, tema ao qual foram destinadas 18 postagens sobre: o ensino obrigatório de história da África e Cultura Africana nas escolas; bibliografias, tais como o “Alfabeto Quilombola” elaborado por meio de um projeto de extensão da UFVJM; além de diversas reuniões com entidades municipais, estaduais e federais solicitando melhores condições de ingresso, permanência e formação para os alunos quilombolas, que, com todo esse protagonismo, ainda são discriminados ou marginalizados nos ambientes escolares. Para compreender a importância desse protagonismo quilombolas do Vale, na entrevista realizada com o presidente da COQUIVALE questionamos ainda sobre o que é ser quilombola, que na concepção dele seria: Acho que ser quilombola é você ter identidade cultural, né, e você nunca perder a raiz. Porque ser quilombola não é só estar lá dentro da comunidade. Você pode ser um quilombola que nasceu na comunidade, foi viver em São Paulo, mas você tem identidade, você tem raiz, você continua quilombola. O quilombola já tem no sangue a resistência. A resistência a tudo: a resistência que nós tínhamos, que nossos pais, nossos avós tinham antes de defender o território, né, contra os invasores; nós temos hoje a resistência de defender e proteger a identidade que tende a ser perdida. (...)E hoje permanecer com essa identidade cultural, com essa identidade quilombola, é uma resistência, tá sendo um desafio muito grande pra gente. Então ser quilombola pra mim é resistir a tudo! Resistir a tudo! (Quilombola Presidente da COQUIVALE, Berilo, novembro de 2016). Resistência essa que, quando associada ao “ser quilombola no Vale do Jequitinhonha”, segundo o Presidente da COQUIVALE é duplicada, pois: [...] ser quilombola no Vale do Jequitinhonha é você resistir, primeiro é resistência por ser de uma comunidade, quilombola, você já tem seus problemas, já tem uma identidade, se tem pro lado bom e por lado ruim, já tem o problema da política pública não chegar lá, mas você tem o benefício de ser um quilombola, de ter uma identidade cultural forte, e ao mesmo tempo você pertencer a uma região chamada Vale do Jequitinhonha, que tem o lado bom que é a riqueza cultural do povo, que é uma maravilha, mas também o lado ruim de tá numa região onde não chega nada. Então do pouco que tem uma hora sai, uma hora sai. Então é resistência multiplicada 228 por dois né. Ser quilombola no Vale do Jequitinhonha acho que é um dos maiores desafio que tem. Primeiro porque está numa região do estado de Minas Gerais aonde não chega as políticas públicas corretamente, e quando chega, chega pela metade (Quilombola Presidente da COQUIVALE, Berilo, novembro de 2016). Como apresentado nas diversas análises e depoimentos expostos neste subcapítulo, a realidade e a vivência dessa paisagem cultural emergente das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha vem se transformando consideravelmente, principalmente, na perspectiva etnopolítica, uma vez que estas comunidades encontram-se cada vez mais engajadas e atuantes na busca pelo reconhecimento de seus direitos e na própria viabilização destes a partir de proposições de políticas públicas que estejam verdadeiramente voltadas para a realidade vivida por elas, em suas regionalidades. Todavia, no âmbito da sociedade civil ainda verifica-se um grande desconhecimento da importância dessas comunidades, inclusive no que concerne ao seu significado como patrimônio vivo da história e da identidade cultural de seus municípios. Na microrregião de Capelinha, onde se concentram grande parte das comunidades quilombolas do Jequitinhonha, verificamos, a partir de pesquisas de campo, que esse desconhecimento a respeito da importância dessas comunidades ainda é muito expressivo. E foi no intuito de compreender como este fenômeno é percebido e vivenciado pela sociedade envolvente dos municípios de maior referência no contexto microrregional – Minas Novas, Turmalina e Capelinha – e no município no qual se encontra a comunidade quilombola que realizamos o estudo de caso deste trabalho – Angelândia, é que buscaremos problematizar a seguir. 5.3. Percepções regionais sobre a questão quilombola no Vale do Jequitinhonha Partindo da concepção de que a Paisagem Cultural configura-se e concretiza-se como uma matriz que deve ater-se às compreensões e percepções dos diversos sujeitos que a concebem, realizamos uma pesquisa sobre a percepção de segmentos da sociedade regional no que concerne à questão quilombola no Vale do Jequitinhonha. Para tal, foram selecionados municípios do entorno de Angelândia (Minas Novas, Capelinha e Turmalina), que possuem um contingente populacional expressivo (superior a 15 mil habitantes). Os três municípios estão inseridos na Microrregião de Capelinha e Mesorregião do Vale do Jequitinhonha (mapa 7), correspondendo a grandes centros comerciais da região, e contando, inclusive com feiras 229 livres, para as quais muitos agricultores da área-foco de investigação levam seus produtos para comercialização. As entrevistas foram elaboradas no intuito de se avaliar a percepção da população local e regional sobre a questão quilombola no Vale do Jequitinhonha. Além de recolher dados do Perfil dos entrevistados, a entrevista semiestruturada foi organizada em três partes essenciais direcionadas respectivamente à compreensão/entendimento da cultura negra/ afrodescendente; dos aspectos turísticos potenciais locais; e da presença de comunidades quilombolas na região. Foram aplicadas, na região, um total de 516 entrevistas, compreendendo 51, nas comunidades quilombolas do Alto dos Bois; e 465 entrevistas efetuados em seu entorno (“sociedade envolvente”); tanto na zona rural (29), como na zona urbana (436) dos municípios próximos; dos quais: 94, em Angelândia (zona urbana: 88; zona rural: 06); 117, em Capelinha (zona urbana); 127, em Minas Novas (zona urbana: 116; zona rural: 11); e 127, em Turmalina (zona urbana: 115; zona rural: 12). Mapa 7: Recorte Territorial Investigado na Microrregião de Capelinha – Vale do Jequitinhonha (MG) Quanto ao perfil dos entrevistados, houve um relativo equilíbrio entre os sexos dos entrevistados (nas comunidades quilombolas: sexo masculino - 39% e sexo feminino - 61%; no entorno: sexo masculino - 49.5%; sexo feminino: 50,5% das pessoas); sendo a 230 maioria deles, adultos (pessoas com idades compreendidas entre 30 e 59 anos - 51% entre os quilombolas e 49%, entre os integrantes da “sociedade envolvente”) ou jovens (pessoas com idade de até 29 anos - 29% entre os quilombolas e 42% da população do entorno); mas incluindo, também, certo contingente de pessoas idosas (com mais de 60 anos - 20%, em Alto dos Bois; e 9%, na “sociedade envolvente”). Tais entrevistados, em termos de escolaridade, em sua maioria, cursaram no máximo, o ensino fundamental (79% dos quilombolas e 45,6% das pessoas entrevistadas no entorno) ou médio (21% dos quilombolas e 46.7% nos membros da “sociedade envolvente”). Apenas um percentual de 7,7 dos entrevistados, no entorno, possui formação de nível superior62 (e nenhum, no Alto dos Bois). A partir dessa amostragem significativa de entrevistados, chegamos a considerações relevantes para a contextualização da percepção dos atores desse recorte territorial sobre a questão quilombola. Para tanto, fez-se necessária uma tabulação dos dados obtidos nas entrevistas - etapa, que se revelou fundamental para que o sujeito não seja apenas um “legitimador de conceitos cristalizados e corporativos”, sendo a fala do mesmo um instrumento fundamentado na realidade concreta, e concedendo à pesquisa uma maior “coerência teórico-epistemológica”, servindo ainda de “base para a avaliação da pertinência das conclusões que o estudo chegou” (MACEDO, 2010, p.141). Seguindo os pressupostos teórico-metodológicos de Bardin (1977), no que concerne às fases da análise de conteúdo, realizamos (na fase da pré-análise) uma leitura minuciosa das respostas dos entrevistados para cada questão, a qual nos forneceu elementos consubstanciais para a construção de uma categorização (à qual denominamos neste estudo de “respostas norteadoras”) que nos viabilizou a construção de uma interpretação mais aprofundada de tais percepções a partir da análise de seus conteúdos. Na primeira parte da pesquisa, sobre a compreensão e entendimento da cultura negra/afrodescendente iniciamos a entrevista questionando sobre os maiores problemas enfrentados por essas populações no Brasil atualmente. Obtivemos cinco conjuntos de 62 Nas comunidades quilombolas (em Alto dos Bois) a maioria dos entrevistados identificou-se como agricultores familiares e no caso de algumas mulheres como donas de casa (“do Lar”). Já na “sociedade envolvente”, os profissionais de nível superior entrevistados declararam exercer as funções de: advogado, engenheiro (ambiental, agrônomo), farmacêutico, enfermeira, professor, sacerdote, vereador... Enquanto os entrevistados com nível médio de formação identificaram-se como técnicos em Agropecuária, Agrimensura, Administração, Informática, Meio Ambiente, Enfermagem, Fotografia; e aqueles com menor nível de escolaridade afirmaram exercer funções tais como: agricultor familiar/ lavrador/ trabalhador rural, fazendeiro, comerciante (incluindo: açougueiro, padeiro, feirante...), professor, funcionário público (incluindo: agente de saúde, auxiliar administrativo e servente escolar), secretária, recepcionista, comerciário, policial, mecânico, operador de máquinas, motorista, taxista, frentista, pintor, pedreiro, carpinteiro, serralheiro, cabeleireiro, jornaleiro, porteiro, artesão, garimpeiro, estudante, dona de casa, trabalhadora doméstica... Ou, alternativamente, disseram estar aposentados ou desempregados. 231 respostas norteadoras: i) racismo, discriminação ou preconceito; ii) questões do mundo do trabalho; iii) questões de saúde/ educação/ moradia (infraestrutura básica); iv) não há problemas e v) não sabem. Tanto para a sociedade envolvente (71%), quanto para os quilombolas de Alto dos Bois (56%) os maiores problemas ainda estão relacionados ao racismo, discriminação ou preconceito. Todavia, dentre os quilombolas as questões relacionadas ao mundo do trabalho (17%) e às questões de saúde, educação e moradia (12%) também tiveram peso significativo. Muitas destacaram ainda a desvalorização profissional por serem negros, sendo muitas vezes aceitos apenas em serviços de baixa qualificação, como podemos observar no depoimento a seguir: “o tipo de atividade que exerço é menos valorizada em relação [àquelas desenvolvidas pelos] brancos” (Balconista, 23 anos – Angelândia). Ressalta-se ainda que, entre os quatro municípios, as percepções mantiveram o mesmo padrão, destacando-se, inclusive, concepções significativas de pessoas (40 entrevistados) que acreditam que essas comunidades já não enfrentam muitos problemas atualmente, pois, segundo eles, muitos desses problemas ficaram no passado, pois hoje esse segmento da população possuiria muitos direitos e benefícios financeiros concedidos pelo governo, como assinala essa professora de 40 anos residente na cidade de Minas Novas: “Discriminação hoje [só se observa] pelo lado social. Atualmente os negros têm os mesmos direitos que os brancos, ou até privilégios”. Questionamos, na sequência, se, na opinião dos entrevistados, a vida dos negros teria melhorado ou piorado e: 86% dos entrevistados da sociedade envolvente destacaram que houve melhorias; 9% que a situação tinha piorado; 3% que tal situação teria melhorado um pouco (e 2% dos participantes da pesquisa não souberam definir uma resposta à questão). Dentre os quilombolas: 74% disseram que sua situação melhorou; 12% que piorou; 8% que melhorou um pouco (e 6% não souberam responder). Dentre as justificativas mencionadas a respeito das melhorias, 38% da sociedade envolvente e 32% dos quilombolas destacaram que o preconceito, a discriminação e a exploração teriam se reduzido. E observamos que dentre os entrevistados que deram tal resposta à questão, em suas falas, na maioria das vezes, comparavam a situação atual ao período da escravidão, como pode ser observado à seguir: “Já saiu da escravidão, hoje está melhor” (Do Lar, 32 anos – Turmalina); “Pois não são mais escravos, estão inseridos na sociedade” (Estudante, 18 anos – Angelândia). Tais concepções estão relacionadas ainda com a seguinte pontuação feita pelo presidente da COQUIVALE e, 232 mencionada por diversos outros quilombolas e pesquisadores do Vale com os quais tivemos contato: Eu fico imaginando aqui, oh, uma carta demorava dez .... há dez anos atrás uma carta demorava dez dias pra chegar na.... na....no... ao destino dela. Aí a gente fica imaginando há 128 anos atrás, a Lei Áurea, foi assinada dia 13.... dia 14 essa lei não tinha chegado aqui não gente... ainda mais aqui no Vale do Jequitinhonha, aonde que essa lei ia chegar aqui? Aí eu fico imaginando quanto tempo que demorou pra essa negada do Vale do Jequitinhonha saber que tava liberta? Então quando minha avó contava as histórias do tempos do cativeiro, que era como se ela estivesse vivendo aquilo, eu não duvidava. Porque realmente esse povo depois que, depois que tiveram a liberdade, esse povo teve que se fazer de escravo. Muita gente aqui no Jequitinhonha teve que se fazer de escravo depois. Eu mesmo, eu sou novo, eu lembro de minha mãe trabalhando a dois reais o dia. Batia enxada o dia inteirinho de Nosso Senhor, pra poder ganhar dois reais, dois reais... (Quilombola Presidente da COQUIVALE, Berilo, novembro de 2016). O segundo maior motivo de avanços mencionado pelos entrevistados, foi justamente o aspecto das melhorias nas condições de trabalho, tanto entre quilombolas (30%) como na sociedade envolvente (32%). Encontramos muitas falas destacando a importância das leis trabalhistas, da valorização do negro da sociedade através de políticas públicas a ele direcionadas, que acabaram influenciando mais a própria sociedade e empresas na contratação de profissionais negros e, inclusive, a importância da mídia que vem discutindo essas questões de forma cada vez mais incisiva – “Os projetos do governo permitem faculdades, as empresas empregam os negros e eles têm mais oportunidade agora” (Funcionário Público, 32 anos – Capelinha). As políticas públicas, benefícios e direitos adquiridos por lei foram mencionados como avanços obtidos por 19% dos entrevistados da sociedade envolvente e 20% dos quilombolas, dentre eles: o Programa Bolsa Família, as prioridades em licitações como aquela do PNAE e outros projetos voltados à agricultura familiar; e, principalmente, as conquistas educacionais, como o estabelecimento de cotas para negros em universidades, que foram mencionadas por 17% da sociedade regional e 14% dos quilombolas - “melhorou, apesar de muito preconceito, melhorou bastante [a situação], pois hoje é mais fácil [para o negro] entrar em uma faculdade e ter uma profissão” (Funcionário Público, 40 anos – Capelinha). Por outro lado, dentre aqueles integrantes da sociedade envolvente que mencionaram que a vida dos negros piorou, apontaram como os principais motivos para isso: a continuidade do preconceito, do desrespeito e da discriminação (59%); a subjugação dos negros às piores condições de trabalho (15%); a falta de escolas e programas de saúde efetivos para as comunidades afrodescendentes (13%) e a violência ainda sofrida por consequência do racismo (5%). Já para a comunidade quilombola de Alto dos Bois, os problemas principais 233 que não propiciaram a melhoria na qualidade de vida foram: o preconceito, exploração e desrespeito (67%) e a violência (33%), como podemos observar no depoimento à seguir: “ainda [se] mata muito negro (...) e os branco tem mais chance que os negro[s]” (Quilombola, 25 anos, Alto dos Bois). Buscamos também rastrear quais seriam os atores que mais têm ajudado as comunidades quilombolas na região, (segundo a percepção dos entrevistados), e obtivemos o resultado exposto no Gráfico 1. Gráfico 1: Percepção da Sociedade Envolvente sobre entidades que contribuem com as comunidades afrodescendentes na região investigada. Elaborado pela autora (2018) Podemos observar que, uma parte significativa dos entrevistados desconhecem entidades que auxiliam essas populações (25%) e, 7% chegaram a afirmar que nenhuma entidade atua a seu favor. Ressalta-se que, dentre aqueles que acreditam nessas atuações, 20% destacaram o papel do governo federal, por meio das leis e quotas universitárias; 12% destacaram a atuação das prefeituras, principalmente, devido ao auxílio por elas prestado para a promoção de atividades culturais nas comunidades e nas sedes municipais no intuito de valorizar a cultura, como acontece nas “feiras culturais” em Minas Novas e Angelândia, ou por meio de transporte e/ou projetos vinculados à agricultura familiar, uma vez que, grande parte dessas comunidades ainda está localizada nas zonas rurais desses municípios, o que justifica ainda a menção da atuação do sindicato dos trabalhadores rurais (7%), vinculados, principalmente, à obtenção da aposentadoria. Outra atuação representativa nesse sentido destacada pelos entrevistados foi a da sociedade civil (13%). A importância das escolas nesse papel de conscientização também foi destacada por 4% dos entrevistados. É relevante 234 assinalar que nas quatro cidades visitadas, observamos, em graus distintos, a presença da cultura negra/quilombola no dia a dia citadino, seja na alimentação, no artesanato ou nas manifestações culturais principais dessas cidades como as festas de Nossa Senhora do Rosário, dos grupos de Congado, Tamborzeiros, Bandas de Taquara, etc. É pertinente ressaltar que uma sociedade que reconhece a importância dessas manifestações para a sua história e identidade cultural irá apoiar os movimentos e suas comunidades (seja com doações para os leilões que acontecem nas comunidades, ou mesmo, com a participação e visitas às comunidades, organizadas, muitas vezes, pelas próprias escolas da região). Observamos ainda que algumas entidades religiosas também foram mencionadas (2%), tais como: Igreja Batista; Igreja Católica (na “Campanha do quilo”); Irmãs Salesianas; Fundo Cristão (AMPLIAR); embora muitas dessas entidades não possuam ações diretas voltadas exclusivamente para as comunidades quilombolas, mas sim destinadas a comunidades carentes da zona rural e urbana. Tal confusão foi também observada quando os entrevistados pontuavam as ações das ONGs nas comunidades, não sabendo eles, em sua grande maioria, pontuar nem o caráter da atuação nem o título da entidade. Na percepção dos quilombolas de Alto dos Bois, as únicas entidades mencionadas pela sociedade envolvente e que eles não discriminaram foram as ONGs e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Na região de Alto dos Bois, observamos ainda, em campo, que existe pouca assistência desses órgãos às comunidades; não existindo muitos projetos e ações efetivas que incidam diretamente sobre os agricultores familiares quilombolas. Sabemos, todavia, que essa realidade se distingue daquela observada nos demais municípios, onde já pontuamos a ação de diversas entidades. Tal resultado nos aponta que na região de Alto dos Bois, as comunidades ainda encontram-se pouco articuladas com tais entidades, ou até mesmo núcleos quilombolas de outros municípios, o que reflete, inclusive no fato de 57% dos quilombolas entrevistados não conhecerem nenhuma entidade com atuação na região, como pode ser observado no Gráfico 2. 235 Gráfico 2: Percepção dos Quilombolas sobre entidades que contribuem com as comunidades afrodescendentes na região investigada. Elaborado pela autora (2018) Dentre aqueles que mencionaram a atuação de alguma entidade, observamos que 12% destacaram a ação da sociedade civil; 11% reconhecem as ações do governo federal (na figura das leis e cotas estudantis); 6% das Associações Quilombolas (principalmente aquela à qual estão vinculados); 6% das instituições religiosas (destacando-se principalmente, neste caso, a Pastoral da Criança, que desenvolve um trabalho específico com a nutrição das crianças da comunidade, além de entidades como a Sociedade São Vicente de Paula). Prefeitura e escolas foram mencionadas, cada uma, apenas por 2% dos entrevistados. E 4% disseram que não há ajuda alguma para a comunidade. Ao serem questionados, por outro lado, sobre os atores/agentes que atrapalham a vida dos negros/quilombolas no Brasil, a sociedade envolvente apontou: a “sociedade preconceituosa” (38%). Um depoimento a ser destacado é o seguinte: “As classes sociais altas, ricos. Quanto mais tem, mais que, mais pisam nos fracos” (Profissional do Lar, 39 anos – Turmalina); 7% indicaram os governos – devido à corrupção ou roubo das terras dos quilombolas, e outros por conceberem que a política de cotas mais atrapalha do que ajuda, como foi apontado pela recepcionista de 29 anos do município de Capelinha: “O governo, porque ao criar quotas para negros, na verdade alimenta mais o preconceito. Não existe perseguição contra eles!”. Tal opinião dialoga com outro percentual de respostas encontrado na pesquisa, daqueles que acreditam que são os próprios negros que atrapalham a vida deles próprios (4%), quando aceitam os benefícios e direitos de cotas, que fortaleceriam os discursos da diferença. Foram mencionados ainda “os patrões” (6%) na figura daqueles que, 236 por preconceito, ainda não empregam os negros, como as grandes empresas que desmatam a região, as monoculturas de eucalipto que destroem a natureza e não empregam ninguém e, ainda, os grileiros que roubam as suas terras. Vale ressaltar ainda que 11 % dos entrevistados consideram que ninguém prejudica os afrodescendentes e 32% apontaram que não conheciam entidades ou pessoas que os prejudicassem na região, situação também observada entre os quilombolas, dos quais 59% disseram não conhecer pessoas que prejudiquem as comunidades, como pode ser observado nos Gráficos 3 e 4. Gráfico 3: Percepção da Sociedade Envolvente sobre entidades que prejudicam os afrodescendentes na região. Elaborado pela autora (2018) Gráfico 4: Percepção dos Quilombolas sobre entidades que prejudicam os afrodescendentes na região. Elaborado pela autora (2018) Dentre as entidades mencionadas pelos quilombolas, ressaltamos que 13% ao mencionarem as agências e os organismos governamentais, explicaram que muitos prejuízos foram causados às comunidades quando o governo atual reduziu os projetos direcionados à educação (fechando, inclusive, algumas escolas na zona rural, que tinham um viés voltado à educação quilombola), assim como reduziu também beneficiários do Programa Bolsa Família, 237 que viabilizava a sobrevivência de muitas famílias na região. Dentre os 14% que mencionaram a sociedade preconceituosa, a discriminação e a diferenciação de direitos e tratamento direcionaram suas críticas aos “brancos” da sociedade envolvente. Já os 8% que citaram “os patrões” retrataram, principalmente, a exploração da mão de obra negra. Buscamos também investigar quais são as perspectivas que as pessoas visualizavam para o futuro dos negros no Brasil, e na sociedade envolvente 88% dos entrevistados opinaram que ele será bom, 9% ruim, enquanto 3% não responderam à questão. Respostas não muito distintas também foram observadas entre os quilombolas (86% bom; 8% ruim e 6% não responderam). Para aqueles que disseram acreditar num “bom futuro” para as comunidades, os principais argumentos para justificar sua avaliação (também coincidentes entre sociedade envolvente e quilombolas) foram, respectivamente: i) avanços na direção de uma igualdade racial (29% e 30%); ii) melhores condições de trabalho (20% e 16%); iii) influência positiva de programas governamentais e leis na vida dos negros (14% para ambos); iv) melhores condições de educação e saúde (11% e 14%); valorização da cultura negra (10% e 4%) -, além daqueles que não souberam opinar (16% e 22%). Nota-se que para a sociedade envolvente a aposta em um futuro melhor para os negros está vinculada à valorização da cultura negra, mais do que para os próprios quilombolas entrevistados, dos quais apenas 51% acreditam na vitalidade dessa cultura nos tempos atuais; enquanto 29% deles acreditam que muitas características da “cultura afro” ficou no passado (e 20% não quiseram responder). A partir dessas percepções e das observações realizadas em campo, ressaltamos que poucas pessoas de Alto dos Bois possuem clareza sobre o que significaria uma “presença da cultura negra”, e até mesmo, sobre o que é “ser quilombola” nos termos indicados pelos órgãos oficiais e pela própria Academia. Apesar de, no cotidiano dessas comunidades, muitas dessas características estarem vinculadas ao seu modo de viver, nos afazeres domésticos, nos preparos da roça, nas histórias e na memória dos mais velhos e, não apenas, como consta no imaginário deles, na vinculação à escravidão e às histórias de dor e discriminação, que ainda são latentes na memória de muitos entrevistados, poucos reconhecem essa presença da cultura negra que se verificaria: na alimentação - feijoada, canjiquinha, polenta, biscoito de goma, leite de mamão, frango caipira, feijão tropeiro (15%); na capoeira, danças e congado (15%); nas Bandas de Taquara (5%); nas festas culturais e/ou religiosas (7%); na presença dos negros na mídia (5%); nas tradições nas comunidades (7%); na celebração do dia da Consciência Negra (3%), como podemos observar no Gráfico 5. No intuito de esclarecermos esses 43% dos entrevistados que acreditam na 238 presença da cultura negra na atualidade, mas que não sabem explicar como isso se materializa na realidade, é que, aliás, postulamos ser necessário que se desenvolva um trabalho de resgate e conscientização nessas comunidades como vem sendo realizado em outras tantas coletividades no Vale do Jequitinhonha (como já mencionamos anteriormente). Gráfico 5: Percepção dos Quilombolas sobre a presença da cultura negra na atualidade Elaborado pela autora (2018) É interessante destacar ainda que verificamos uma diferença significativa nas percepções da sociedade envolvente sobre as formas de representação da cultura negra nos diferentes municípios pesquisados. Em Angelândia, por exemplo, como podemos verificar no Gráfico 6, a presença da cultura negra se dá ainda, além das tradições (19%) - que são os elementos do cotidiano que essas pessoas imaginam que ainda existam nessas comunidades, por meio: da relevância do dia da Consciência Negra (15%); da música - na figura do samba – (11%); da capoeira, danças e congado (11%); da alimentação (8%); das festas culturais e/ou religiosas (7%); da presença desses atores na mídia (4%); da existência de palavras ou termos de origem africana (3%) e das Bandas de Taquara (3%). Tais percentuais explicitam o desconhecimento dos munícipes de Angelândia sobre a presença de importantes representantes das Bandas de Taquara no município, mencionadas por poucos entrevistados. O desconhecimento também se revelou por meio de 19% dos entrevistados que disseram que a cultura negra está presente aí, mas que não souberam explicitar como isso se dá. Outra informação importante que esses dados nos revelam é que há, a princípio, um trabalho nas escolas e no município voltado às comemorações do dia da Consciência Negra, revelado pela 239 menção de 15% dos entrevistados; todavia, ao que nos parece, este trabalho vem sendo direcionado às discussões do movimento negro, mas pouco sobre a temática das comunidades quilombolas nos contextos intra e extrarregional. Gráfico 6: Percepção da Sociedade Envolvente em Angelândia sobre a presença da cultura negra na Atualidade Elaborado pela autora (2018) Em Capelinha, município limítrofe a Angelândia (do qual inclusive essa pequena cidade se emancipou no ano de 1995), 36% dos entrevistados não souberam explicitar sobre como a cultura negra se faz presente aí (Gráfico 7). Outros 21% apontaram as tradições que acontecem no interior das comunidades, sobre as quais muitos têm conhecimento em decorrência da venda de muitos produtos tradicionais oriundos dessas comunidades na feira, tais como: artesanatos; doces; fubá de moinho d’água, e vários outros elementos vinculados, inclusive, à alimentação, como foi mencionado ainda por 17% dos entrevistados em Capelinha. Diferentemente de Angelândia, em Capelinha a cultura negra foi vinculada por mais pessoas à capoeira (14%) e às festas culturais/religiosas (10%) do que ao samba (2%), vínculo este que é fortemente veiculado, inclusive, pela mídia. Tal realidade parece associada ao fato de Capelinha ser o município “matriz” de Angelândia, e possuir ainda muitas festas tradicionais, das quais os moradores de comunidades rurais (algumas, que inclusive estão em processo de reconhecimento como quilombolas) participam fortemente com suas manifestações culturais de tambores, bois, reisados, etc. 240 Gráfico 7: Percepção da Sociedade Envolvente em Capelinha sobre a presença da cultura negra na Atualidade Elaborado pela autora (2018) Em Turmalina, um centro regional importante na microrregião de Capelinha, apenas 18% disseram não saber como a cultura negra se apresenta na atualidade; enquanto os demais entrevistados destacaram que tal cultura manifesta-se, sobretudo (Gráfico 8): nas tradições das comunidades (27%); na capoeira, danças e congado (21%) nas festas culturais/religiosas (14%); nos alimentos (8%); na presença dos negros na mídia (5%); na relevância assumida pelo dia da consciência negra (4%) e pelo samba (3%). No município de Turmalina, diferentemente dos demais pesquisados, não há incidência de comunidades quilombolas reconhecidas ou em processo de autoreconhecimento como nos municípios vizinhos. Todavia, a proximidade com Minas Novas (município limítrofe) e incidência de festivais culturais, como o Festival da Canção (realizado anualmente em setembro) deve influenciar a percepção das pessoas a respeito de tal questão. É, por esse motivo, também, que a associação da cultura negra às festividades é mais representativa em Turmalina, quando comparado às percepções obtidas no município de Angelândia, por exemplo. Ressalta-se que as dimensões emergentes da realidade sociocultural nos contextos local e regional, concernentes às territorialidades festivas e aos alimentos tradicionais, nesse sentido, têm assumido uma significativa relevância nas percepções dos moradores e do poder público de Turmalina. Uma evidência desse processo foi a criação do “Festival de Gastronomia e Fazeres de Turmalina – DiCumê”, criado em 2018, no intuito de valorizar a culinária típica do município e suas festividades, vinculando, inclusive, a realização do evento a uma pré-seletiva do 33º FESTUR (Festival da Canção de Turmalina). 241 Gráfico 8: Percepção da Sociedade Envolvente em Turmalina sobre a presença da cultura negra na Atualidade Elaborado pela autora (2018) Já o município de Minas Novas, como podemos observar no Gráfico 9, apresenta uma percepção da sociedade envolvente ainda mais peculiar, uma vez que 50% dos entrevistados reconhecem a presença da cultura negra nas festas culturais/religiosas e, neste caso, principalmente na Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas, da qual participam grupos de toda região – tamborzeiros, congadeiros, bandas de taquara e pífano, diversos grupos culturais que se reúnem em nome da fé em Nossa Senhora do Rosário. E é em decorrência da participação ativa desses grupos, muitos dos quais oriundos de comunidades quilombolas, em diversas festividades e feiras na sede do município, que muitas pessoas têm conhecimento dos costumes e tradições destas coletividades, e que são preservadas nas comunidades (20% dos entrevistados). Além disso, em Minas Novas a sociedade envolvente ressaltou ainda a presença da cultura negra: na capoeira (11%); na alimentação (7%); no samba (4%); no dia da Consciência Negra (2%); em sua exposição na mídia (1%); nas bandas de taquara (1%) e ainda 4% não souberam opinar a respeito. No que concerne à importância atribuída às espacialidades e territorialidades festivas e aos alimentos e manifestações culturais tradicionais neste recorte regional, gostaríamos de destacar o “Festival Gastronômico e Cultural Jequi Sabor”. O festival, que acontece nos municípios de Minas Novas, Turmalina e Capelinha, teve sua primeira edição no ano de 2007 na cidade de Capelinha. Desde então, o mesmo vem sendo associado a algumas 242 festividades já incidentes nessas cidades, como é o caso da Festa de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas, que no ano de 2018, teve a realização do festival no seu primeiro dia de evento. Assim como diversos outros festivais gastronômicos da região, este surgiu a partir do olhar de uma nova moradora da cidade de Capelinha, que ao se deparar com a riqueza de sabores dos alimentos tradicionais produzidos nas cozinhas típicas da região, acreditou no potencial econômico, turístico e cultural que a criação do festival poderia agregar à dinâmica destas cidades. Desde então, foram realizados dezessete festivais que buscam valorizar a culinária regional de raiz, na qual, ressaltam-se, fortemente, inclusive, importantes atributos do “saber fazer” oriundo de diversas comunidades quilombolas da região. Gráfico 9: Percepção da Sociedade Envolvente em Minas Novas sobre a presença da cultura negra na Atualidade Elaborado pela autora (2018) Dentre os entrevistados da sociedade envolvente nos quatro municípios (entre aqueles que afirmaram que a cultura negra não está presente nos dias atuais), 46% destacaram que a “cultura acabou, ficou no passado, só existia na época da escravidão” (Comerciante, 51 anos – Capelinha). Os principais motivos dessa perda cultural salientados por eles foram: i) a falta da valorização por parte da sociedade (15%); ii) pouco envolvimento dos jovens no processo (13%); iii) a incapacidade dos negros em suportar a pressão do preconceito/racismo (12%); iv) a inexistência de uma diferença fundamental entre cultura negra e cultura branca atualmente (9%); v) a falta de incentivo/ investimento governamental para sua preservação. Já entre os quilombolas de Alto dos Bois apenas uma pessoa disse que a cultura afrodescendente se perdeu, mas não apresentou justificativas para tal afirmação. Nas comunidades quilombolas 243 que visitamos neste recorte territorial, observamos, efetivamente, muito pouco a presença de jovens, os quais, em sua maioria, aos 14 anos já se encontravam no processo de migração para o corte da cana ou colheita do café. É que, em decorrência da falta de oportunidades de trabalho para a juventude no Vale, muitos saem e acabam ficando por lá, e quando retornam, já não têm interesse em participar de movimentos culturais que resistem em suas comunidades. E é também por esse motivo que valorizamos e ressaltamos a importância de projetos como o de “Agentes Quilombolas Socioambientais” desenvolvido pelo CEDEFES, uma vez que iniciativas como essas possibilitam a eles novas perspectivas de trabalho na comunidade, além de uma capacitação inicial para que eles possam também encontrar outras propostas que viabilizem sua manutenção na comunidade. Outro aspecto que foi objeto de nossa investigação foi a busca de compreensão dos entrevistados sobre os termos “quilombo” e “quilombola”. Na pesquisa realizada com a sociedade envolvente, 53% dos entrevistados disseram que conheciam e 47% disseram que desconheciam tais termos/conceitos, sendo que em Capelinha e Turmalina o percentual de pessoas que desconheciam superou o dos que disseram conhecê-los apenas. A grande maioria soube definir mais claramente o conceito de quilombo, como “o lugar para o qual os negros fugiam da escravidão”, referindo-se sempre a algo do passado, às lições sobre o Quilombo de Palmares que aprendemos na escola. E aqueles que reconheceram o termo quilombola se limitaram apenas à definição de “aquele que vive no quilombo”. Essa dificuldade de compreender o sentido atual do termo foi constatada também nas próprias comunidades quilombolas de Alto dos Bois, dos quais: 57% disseram desconhecer o significado dos termos; enquanto 41% disseram conhecê-los e 2% não souberam responder à questão. Dentre aqueles que disseram conhecer os termos, a definição predominante para quilombo foi a de “local onde se escondiam os negros fugidos” e para quilombola – “aqueles que fugiam”. Poucos apresentaram, contudo, alguma identificação com os termos, à exceção dos idosos da comunidade: “geração de pessoas de antepassado nossa, Nós somos quilombolas” (Quilombola, 67 anos); “quilombola é raízes, mais experientes que traz respeito a toda comunidade” (Quilombola, 52 anos). Ainda entre a percepção dos mais velhos vale destacar o relato de uma senhora que associava os quilombolas aos “caboclos” ou “índios” – “É os caboclo, é? É os caboclo que eles fala isso né, que é esse tipo de gente, é esse povo. De caçar os caboclo bravo do mato (risos), os índio” (Quilombola, 79 anos). Questionamos ainda os membros da sociedade envolvente que participaram da pesquisa se eles já haviam visitado alguma comunidade quilombola da região e: 62% dos 244 entrevistados disseram nunca ter ido a uma comunidade assim; 20% não souberam responder e apenas 18% afirmaram que conheciam (principalmente comunidades localizadas nas proximidades da sede municipal e em decorrência de alguma festividade realizada nas mesmas). Dos quatro municípios investigados, essa predominância do desconhecimento não ocorreu apenas no município de Minas Novas, onde tivemos um percentual de 50% que conheciam tais comunidades e 50% que desconheciam. Para aqueles que não conheciam uma comunidade quilombola, indagamos ainda como eles imaginavam que elas fossem, e 68,5% disseram nem imaginar, enquanto entre os demais 31,5% foram registradas repostas como: “Deve ser uma comunidade muito unida, organizada com uma cultura de trabalho, união e força em torno da liberdade as caracterizariam (Gerente Administrativo, 33 anos – Turmalina); “Humilde, simples e harmoniosa” (Balconista, 23 anos – Minas Novas); “Acho que deve ser um lugar que tem casas velhas, um lugar precário” (Funcionária Pública, 40 anos – Capelinha); “Mato cheio de aldeias” (Estudante, 13 anos – Angelândia). É interessante ressaltar ainda que nos três municípios registramos respostas que associavam essas comunidades à precariedade econômica (casas antigas, pessoas humildes), mas sempre envoltas por um sentimento de união e harmonia. Todavia, no município de Angelândia, entrevistados de várias idades associaram as comunidades quilombolas a aldeias indígenas, fato que pode ser associado ao processo histórico de ocupação da região, no qual muitos desses povos, em meados do século XIX, ainda a ocupavam fortemente, inclusive, as proximidades de Alto dos Bois. Quanto aos aspectos que caracterizam a cultura negra/ quilombola, 260 entrevistados da sociedade envolvente não souberam discriminá-los, e entre os demais foram pontuados as seguintes características: i) memória, tradição e os costumes que são passados de geração em geração (27%); ii) alimentação, destacando-se, principalmente, a feijoada e alimentos feitos com milho (26%); iii) danças, músicas e festas – tais como o Congado, a Capoeira e as Festas de Nossa Senhora do Rosário (25%); iv) Religiosidade – candomblé e catolicismo popular, também presente nas manifestações do Congado (7%); v) roupas e modo de se vestir (7%); vi) artesanato (3%); vii) língua (3%); e por fim, viii) a resistência ao preconceito e à escravidão (2%). É importante ressaltar que muitos aspectos mencionados constituem elementos importantes da matriz cultural brasileira, cuja origem e manutenção nos dias atuais estão vinculadas à memória e tradição dessas comunidades que resistiram e criaram diversas alternativas e estratégias para preservar patrimônios culturais, religiosos e alimentares tão singulares. 245 No intuito de conhecer a respeito dos potenciais turísticos desses municípios e das comunidades quilombolas de Alto dos Bois, realizamos ainda uma investigação sobre a percepção dos participantes da pesquisa quanto à realização de festas no município e seus frequentadores e sua percepção sobre: “o que é turismo”, o que poderia atrair os turistas para a sua região, e os impactos desse fenômeno. Observou-se que 97% dos entrevistados da sociedade envolvente registraram que ocorrem importantes festas em suas municipalidades, as quais atraem, principalmente: a comunidade local (31%); pessoas oriundas de comunidades vizinhas (24%); turistas (23%) e parentes que residem fora e retornam especificamente para estas festividades (22%). E é interessante ressaltar que, 77% dos frequentadores dessas festas são pessoas que possuem algum vínculo local ou regional com tais eventos (comunidade local, parentes que moram fora e comunidades vizinhas). Tal fato está associado principalmente ao caráter regional ou religioso assumido por muitas dessas festividades, como podemos observar na Tabela 10, na qual os eventos mais mencionados pelos entrevistados foram destacados em negrito. Tabela 10: Principais festividades dos municípios investigados Angelândia Capelinha Minas Novas Turmalina  Festa do Trabalhador (1º de Maio)  Festa do Café ou “Café dos Ausentes”  Feira Cultural (mensal)  Festa Junina  Folia de Reis  Festas de Padroeiros de comunidades rurais (Santo Antônio dos Moreiras; São Sebastião; São Benedito)  Cavalgada  Outras festas religiosas (N. Sra. Dos Anjos; N. Sra. Aparecida; São Vicente; Imaculada Conceição; Bom Jesus  Capelinhense Ausente ou “Festa do Café”  Forró do Bode  Sexta Cultural  Cavalgada  Aniversário da Cidade  Festa Junina  Outras festas religiosas (N. Sra. Aparecida; São Francisco; N. Sra. Da Graça; São Vicente; São Sebastião)  Festa do Divino  Festas Culturais (Pau de Sebo e Bumba meu Boi).  Festa de N. Sra. Do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas  Outras festas religiosas: Divino, São Benedito, São Pedro, São Pedrinho, São Sebastião, N. Sra. Da Gruta, São João, S’Antana)  Carnaval  Festa de padroeiros das comunidades rurais (Sto. Antônio de Bem Posta, Santo Antônio de Lagoa Grande, São Sebastião de Bem Posta/Cruzinha)  Sexta Cultural  Festa Junina  Festival da Canção de Turmalina (FESTUR)  Festa do Divino  Festa do Trabalhador  Festa Junina  Cavalgada  Encontro de MotoCross – “Trilhão da Balsa”  Outras festas religiosas (N. Sra. Aparecida, queima de Judas, São Cristóvão) Elaborado pela autora (2018) 246 Outra evidência disso a se destacar é o fato de muitas dessas festas mais mencionadas pelos entrevistados possuírem, ora direta ora indiretamente, o título de “Ausentes”: Café dos Ausentes, Capelinhense Ausente, Turmalinense Ausente, etc. O que demonstra que grande parte dos turistas dessas regiões são pessoas que possuem alguma ligação familiar ou histórica com esses lugares, sendo muitos deles, inclusive, migrantes, que retornam para estas festas nos períodos da entressafra, ou que moram em outras localidades, e ajustam seus períodos de férias do trabalho para vivenciarem essas espacialidades festivas em sua terra natal. Outro aspecto relevante a ser ressaltado é que a maior parte das festas mencionadas possui um caráter predominantemente religioso, fortemente vinculado às festividades de padroeiros das cidades ou das comunidades rurais dos municípios em questão. Dentre os entrevistados quilombolas de Alto dos Bois, verificamos também o predomínio das festas religiosas, principalmente a de Nosso Senhor Bom Jesus – padroeiro da comunidade, e de São Sebastião e São Antônio que acontecem na comunidade de Santo Antônio dos Moreiras. Questionamos, aliás, os entrevistados sobre o que mais poderia atrair aos turistas à região e, o atrativo mais pontuado, por 37% dos participantes da sociedade envolvente, foram as igrejas (muitas delas centenárias). Além disso, como pode ser observado no Gráfico 10, 21% dos entrevistados mencionaram ainda as cachoeiras; 18%, os rios; 6%, as serras; 6%, as pinturas rupestres; 6%, os saberes e as plantas medicinais; 5%, a flora e 1% a fauna local. Gráfico 10: Principais Atrativos Turísticos pontuados pela Sociedade Envolvente Elaborado pela autora (2018) A importância que é atribuída aos atrativos naturais desses lugares corresponde, fortemente, às “paisagens naturais locais”, cuja visitação faz parte do lazer cotidiano dessas 247 pessoas, que nos finais de semana visitam cachoeiras, rios e matas nas redondezas das sedes urbanas. Vale ressaltar, que não são todas as pessoas que visitam esses lugares, pois em nossa pesquisa, apenas 68% disseram que os frequentam; 22%, afirmaram não frequentá-los (alguns ressaltaram motivos religiosos) e 10% não responderam tal indagação. Outro aspecto que chamou nossa atenção foi a relevância que muitos entrevistados atribuíram às plantas medicinais, até as incluindo como um atrativo turístico da região, atribuindo a elas o valor imaterial dos saberes das “benzedeiras” e “raizeiros” da região, que atraem muitas pessoas em busca de cura física e espiritual. Nas comunidades que compõem o quilombo de Alto dos Bois, como pode ser observado no Gráfico 11, o atrativo mais indicado foi a cachoeira (40%) localizada nas proximidades do antigo casarão, o qual por sua vez, foi o quarto atrativo mais mencionado (11%). A capelinha de Nosso Senhor Bom Jesus foi o terceiro atrativo mais mencionado, sendo associado a ela, inclusive, como foco de atração a própria festa do padroeiro que acontece anualmente em 06 de agosto, e que é considerado um dos encontros mais importantes entre comunitários e seus familiares, mas atraindo também pessoas de comunidades vizinhas e moradores da sede municipal (trataremos com mais profundidade sobre essa manifestação religiosa no capítulo seguinte). E mais uma vez emergem aí, como atributos/vivências importantes da paisagem cultural local as espacialidades festivas. Gráfico 11: Principais Atrativos Turísticos pontuados pelos Quilombolas Elaborado pela autora (2018) 248 Os quilombolas de Alto dos Bois destacaram outros atrativos, alguns não pontuados pela sociedade envolvente, tais como: o casarão antigo de Alto dos Bois, a Toca do Índio, a Banda de Taquara e as festas tradicionais – elementos de extrema importância na constituição identitária dessas comunidades, embora pouco valorizados ainda pela percepção, tanto da sociedade envolvente, quando dos próprios comunitários, uma vez, que apesar de terem sido mencionados, não foram pontuados com frequência pelos entrevistados. Os lugares mais mencionados foram aqueles que fazem parte do cotidiano de lazer dessas pessoas, e que corresponderiam a destinos para os quais eles acreditam que o turista - que busca conhecer lugares novos, bonitos e diferentes (como muitos definiram sua compreensão de turismo) -, gostaria de conhecer em Alto dos Bois. Nesse sentido, o turismo para os quilombolas de Alto dos Bois estaria muito mais vinculado às belezas naturais e cênicas que estas paisagens têm a oferecer do que ao turismo relacionado às tradições e cultura quilombola, que eles mesmos poderiam apresentar e compartilhar com o outsider, que pudesse vir a desejar conhecer o Alto dos Bois. Posto isso, a partir das percepções apresentadas neste subcapítulo ressaltamos que apesar de algumas iniciativas tomadas pelas prefeituras municipais no sentido de promover o diálogo e encontro da sociedade envolvente com as comunidades quilombolas da região, o reconhecimento dessa diversidade e o próprio autoreconhecimento das comunidades sobre a sua própria relevância histórica, social, cultural e econômica ainda é incipiente, principalmente em Alto dos Bois. Dos quatro municípios analisados, Minas Novas é o que apresenta um reconhecimento mais evidente de tais atributos, em decorrência, principalmente da tradição na cidade de se realizar a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, trazendo muito dessa cultura das comunidades rurais negras para as principais ruas da cidade, através dos tamborzeiros, grupos de congado, bandas de taquara, marujadas, dentre outros. Aí a cultura negra assume, portanto, absoluta centralidade no imaginário e no cotidiano dos habitantes da cidade. Iniciamos este capítulo apresentando o protagonismo das comunidades quilombolas do Jequitinhonha, por meio do desenvolvimento de projetos e iniciativas dos próprios quilombolas, por meio da criação de uma comissão regional – a COQUIVALE, que tem realizado mudanças significativas do modo de se reconhecer quilombola, mas vale ressaltar que ainda há muito que ser feito nessa perspectiva, principalmente nas comunidades. A articulação entre os grupos constitui uma ferramenta de crucial importância nesse processo, mas, acreditamos ainda que para se alcançar o verdadeiro sentido e significado das paisagens 249 culturais das comunidades quilombolas no Vale, ressaltando a importância dessa riqueza cultural na presença e manutenção desses grupos neste recorte territorial, seria necessário buscar o cerne do processo histórico e social que interconecta esses grupos na escala local. E é por meio do diálogo no contexto regional e da troca de experiências políticas que tais comunidades poderiam se fortalecer em sua coletividade, embora, os núcleos precisassem estar consolidados, se reconhecendo numa narrativa local, que, por decorrência da migração e da dinâmica socioespacial regional, tem se perdido na memória. É no sentido de elucidar tais questões, que buscaremos nos próximos capítulos reconstruir, a partir de depoimentos comunitários, documentos históricos e experiências locais a narrativa que consolidaria esse emblemático sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois, onde hoje se encontram três comunidades já reconhecidas pela Fundação Palmares como quilombolas, que ainda lutam, como já ressaltamos anteriormente, pelo resgate e construção de uma compreensão interna (autoreconhecimento) desse novo contexto sociocultural e etnopolítico no qual estão inseridas. 250 CAPÍTULO 6 – O patrimônio vivido das Paisagens Culturais do Sítio Histórico-Geográfico de Alto dos Bois Ao chegar à região de Capelinha e Angelândia em busca de informações sobre os processos de formação histórica, geográfica e cultural de suas paisagens nos deparamos sempre com relatos sobre um lugar chamado Alto dos Bois. No imaginário local, lugar de índios, negros fugidos, cachoeiras, casarão e cemitério. Mas é sugestivo notar que todos esses relatos se remetem, apesar das mais distintas narrativas e percepções, à relevância e ao valor simbólico que é atribuído a estes signos da paisagem local. Alto dos Bois está localizado no município de Angelândia, conhecido também como a “Terra do Café”; a pequena cidade encontra-se em uma região cafeicultora conhecida como “Chapada de Minas”. Estabelecida em uma área de transição de cerrado, mata atlântica e alguns trechos de campos de altitude, suas chapadas (ou planaltos) são entrecortados por vales encaixados drenados por importantes cursos d’água, como o rio Fanado. A cidade de Angelândia desfruta de clima ameno (18 a 22ºC) e o relevo local comporta variações de altitude entre 700 e 1100m, condições propícias para a produção cafeeira e, principalmente, de cafés especiais, cultivados em grandes fazendas que se encontram em produção desde a década de 1970, na região. O plantio dos “cafés das chapadas de minas” já era mencionado pelos viajantes naturalistas que passavam por estas regiões no século XIX. Santos & Barroso (2017) irão, inclusive, reportar que, ao remeter-se à construção da Estrada de Santa Clara, estabelecendo a conexão entre o Jequitinhonha (Minas Novas – Altos dos Bois) e Mucuri (Teófilo Otoni e o Porto de Santa Clara/ES), em 1878, já havia aí uma produção cafeeira de 40mil arrobas para ser transportada. Segundo os autores o jornal regional “O Cruzeiro” teria anunciado, em maio de 1896, um crescimento de dez vezes desta produção, chegando a registrar a produção de 300 mil arrobas do grão no Mucuri, originadas de 10 milhões de pés de café (SANTOS; BARROSO, 2017, p.57). Tal registro apenas reforça a importância, já histórica, da produção de cafés na região, inclusive, para exportação; tendência essa que a partir da década de 1970 foi reforçada pela chegada das grandes empresas e demanda de produção na região. A participação dos agricultores familiares é, contudo, ressaltada por diagnóstico elaborado pelo SEBRAE, que indica a presença de 553 estabelecimentos de pequenos produtores do grão no levantamento realizado na região, em 2014 (SEBRAE, 2014). 251 Apesar de ser uma região onde o cultivo do café sempre existiu, para o consumo local e regional, essa tipologia de café, para exportação, e direcionada a outros mercados nacionais, passou a se desenvolver fortemente após a década de 1970, a partir da implementação de incentivos governamentais do “pacote tecnológico”; e com a chegada de produtores do sul de Minas à região do alto e médio Jequitinhonha. Como pode ser observado no Mapa 8, que representa as áreas plantadas com lavoura de café nos municípios da Chapada de Minas, produzido pelo SEBRAE63 (no “Diagnóstico da Cafeicultura da Chapada” em 2014), destacam-se, nesse contexto, os municípios de Capelinha, Angelândia, Novo Cruzeiro e Itaipé, com área plantada maior que 2.000ha (SEBRAE, 2014). Mapa 8: Municípios da Chapada de Minas e dimensão de suas respectivas áreas plantadas com a lavoura café. FONTE: SEBRAE (2014, p.4). No biênio de 2011/12, o município de Angelândia apresentou 7.360ha de área colhida e 59.842 sacas de café produzido, sendo superada apenas pelos municípios vizinhos de Capelinha (11.060 ha de área colhida e 94.009 sacas produzidas) e Novo Cruzeiro (8.550 ha de área colhida e 55.350 sacas de café). Todavia, segundo dados coletados por esta mesma fonte em 2014, em termos de área plantada, Angelândia superaria o município de Novo Cruzeiro. O diagnóstico ressalta ainda a “importância de Capelinha como a principal praça de 63 Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). 252 comercialização dos cafés regionais”, pois 62% dos cafeicultores de médio e grande porte comercializam seus produtos nesta localidade (SEBRAE, 2014, p.68). E, pela proximidade (30 Km), grande parte do café produzido em Angelândia é comercializado em Capelinha. Essa importância da produção cafeeira no município de Angelândia é uma característica do lugar associada não apenas aos aspectos econômicos, mas à própria dinâmica sociocultural local. No capítulo anterior um dos atrativos turísticos mais mencionados pelos entrevistados no município de Angelândia foi a Festa do Café, que é registrada como patrimônio imaterial municipal, juntamente com dois bens imóveis que se referem a esta atividade: o antigo galpão de beneficiamento de café e as instalações da Fábrica de Café Dona Íris. Além disso, o café está presente em diversas receitas tradicionais do município, tais como: licor de café, rocambole de café, brigadeiro de café, pudim de café e o doce de leite com café, expressando a identidade regional que os moradores de Angelândia vivenciam no que concerne a esse importante alimento da cultura mineira. Todavia, poucos são os produtores que se inserem de maneira justa neste mercado da “terra do café”; pequenos produtores, pela dificuldade do transporte das mercadorias pelas estradas ainda precárias da região, acabam sendo interceptados por “atravessadores”, que tendem a desvalorizar o produto, comprando-o a preços inferiores aos valores de mercado. Além disso, a maior parte da produção de café do município é realizada por três grandes fazendas: Dona Íris (produtores locais); Sequoia e Primavera (grupo mineiro Montesanto Tavares64). Em visita realizada à Fazenda Primavera (em julho de 2015), atestamos sua importância como referência em produção e exportação de grãos finos. A empresa possui expressiva infraestrutura para plantio, secagem, armazenamento e torrefação de café, além de pista de pouso para pequenas aeronaves. O acesso é feito por estrada de terra em bom estado de conservação, o ano todo, com sinalização própria (Figura 19). A fazenda dedica-se à produção de cafés especiais da variedade arábica, principalmente para exportação, e sua produtividade média alcança 30 sacas por hectare. A maior parte dos cafés produzidos é do tipo cereja descascado e café despolpado (lavado). Apesar da importância em termos de renda para o município, tais propriedades geram empregos apenas sazonais na época da colheita do café, empregando a mão de obra local, principalmente nos meses de abril e maio. Fora destes 64 Em 2015, o grupo firmou uma joint venture com a trading japonesa Itochu para a criação de uma nova empresa, a Cafebras-Cafés do Brasil S/A, para ampliar a exportação de café verde de alta qualidade para a Ásia e outras regiões, como Europa e Estados Unidos. O grupo, criado em 2000, após a venda pela família Tavares do Café 3corações para a israelense Strauss, detém também a Atlântica, empresa voltada para exportação de café verde. O faturamento da Montesanto Tavares foi de R$ 580 milhões em 2012. 253 períodos não há muitos postos de trabalho voltados para a população, principalmente rural, do município. Figura 27: Estrada de acesso à Fazenda Primavera Foto: Pedro Cardoso (agosto/2015) Figura 28: Ruas de Café da Fazenda Primavera Foto: Carla Duque (julho/2015) A partir dessa contextualização podemos compreender as diversas representações e significados que as imagens apresentadas nas Figuras 27 a 28 remetem àquele que chega à pequena sede do município de Angelândia, onde a paisagem da estrada já revela a importância da produção cafeeira, respaldada pela placa de boas vindas e pelas sensações que este lugar desperta ao se avistar a sua praça principal, destacada como um importante bem cultural para a população local, contrastando com o contorno das plantações de café do entorno e com a fumaça da fábrica de torrefação Dona Íris sobre a cidade, ao entardecer. Todavia, vale ressaltar que em visita de campo realizada em setembro de 2018, vivenciamos na sede municipal a fumaça excessiva sobre a cidade logo ao amanhecer, deixando toda a paisagem esbranquiçada e com um forte odor, dificultando, inclusive, a respiração. Uma moradora local, que alega ter problemas de bronquite, destacou que em dias assim, ela chega a se ausentar do trabalho por falta de ar. Figura 29: Paisagem ao chegar à sede municipal de Angelândia. Foto: Pedro Carvalho, 2015. Figura 30: Placa de Boas Vidas na entrada da cidade. Foto: Carla Duque (2015) 254 Figura 31: Fotografia da sede municipal de Angelândia FONTE: PREFEITURA DE ANGELÂNDIA (2018). Figura 32: Fumaça oriunda da torrefação da Fábrica de Café D. Iris FONTE: Ludimila Silva (2018) E é a partir dessas imagens e percepções/interpretações da paisagem de Angelândia que percorremos em torno de 14 km (ver Mapa 9) de belíssimas paisagens, entremeadas pelos plantios de café das fazendas, algumas áreas de pastagem, remanescentes de matas nativas e dos pequenos povoados até chegarmos ao Casarão de Alto dos Bois. 255 Mapa 9: Município de Angelândia (MG): da Sede Municipal à região de Alto dos Bois 256 A primeira paisagem que se revela ao longo desse percurso, logo após a saída da cidade, são as plantações de café das grandes fazendas da região. São ruas de café que recobrem toda a vertente dos mares de morros que configuram a paisagem. No mês de setembro, a florada dos cafés propicia ainda uma delicadeza à paisagem desses campos recobertos por flores brancas que antecedem os primeiros grãos (Figuras 25 e 26). Figura 33: Ruas de café na estrada para Alto dos Bois Figura 34: Florada do Café Foto: Ludimila Silva (2018) Entremeados aos pés de Café destacam-se ainda na paisagem os coqueiros Catolés, que em algumas regiões, já nas proximidades do córrego do Engenho, se apresentam em pequenas florestas no topo dos morros (Figura 27). Figura 35: Paisagem vista da estrada para Alto dos Bois Foto: Ludimila Silva (2012) O Catolé foi, e ainda é, muito utilizada na região para cobertura das casas, viveiros, fornos de biscoito, paiol, etc. (como pode ser observado nas Figuras de 36 a 39), além do seu uso tradicional como alimentação, no fornecimento do palmito e do coquinho. A retirada dessas espécies atualmente é proibida por lei, o auxilia na manutenção do tradicional uso das folhas secas e do coquinho que ainda é fortemente observada na região. 257 Figura 36: Palmeira Catolé (ou Indaiá) Foto: Ludimila Silva (2015) Figura 37: Uso da palha para cobertura de um forno de biscoito. Foto: Ludimila Silva (2015) Figura 38: Uso da palha para cobertura de um viveiro de mudas. Foto: Altair Sancho (2012) Figura 39: Uso da palha para cobertura de uma tenda de beneficiamento de produtos alimentícios (cana, mandioca, coquinho Catolé, etc.) Foto: Ludimila Silva (2015) Vale ressaltar que o primeiro olhar direcionado a estas paisagens é despertado pela beleza bucólica de suas ruralidades, mas a busca da interpretação de tais elementos, através da vivência com as comunidades nos revela o que Wagner e Marvin (2000, p.136) já destacavam em seus estudos, ou seja, que “em qualquer paisagem cultural, a disposição, estilo e materiais desses aspectos tendem a refletir a presença de um modo de vida distinto, ou genre de vie, interagindo com um determinado quadro natural”. O uso das folhas do Catolé para cobertura de casa, já fora, salientado, inclusive pelo viajante naturalista Saint-Hilaire ao chegar à aldeia de Alto dos Bois em 1817: Na maioria são cobertas com as longas folhas de duas palmeiras que crescem nas matas, e se conhecem, uma pelo nome de ariranga, outra pelo de catulé. Essas folhas constituem um abrigo impenetrável às águas da chuva, dão, porém, aos tetos um ar agreste e desleixado que não tem os das choupanas de França ou Alemanha (SAINT-HILAIRE, 2000, p.209). 258 Já nas proximidades de Alto dos Bois, na subida para a chapada a paisagem é tomada por plantações de eucaliptos das áreas limítrofes do município (divisa com Minas Novas), até que se chegue às chapadas e o que ressalta aos olhos do viajante aí é a monotonia e falta de iluminação solar decorrente da presença dos grandes eucaliptais. Não há como passar por tais caminhos sem dissocia-los aos impactos que essa monocultura causa nas áreas de chapada, de uso comunal no passado (como já ressaltamos anteriormente), desencadeando nessas regiões a redução da disponibilidade de água, o assoreamento dos canais e reservatórios, a diminuição da biodiversidade e a limitação ao acesso de uma série de recursos fundamentais para a manutenção dos modos de vida tradicionais dessas populações, tais como, o uso medicinal das plantas nativas que se encontrava nessas regiões das chapadas (Figura 40). Refletindo sobre tais questões, por este caminho que parece não ter fim, no final da subida, avistamos uma placa indicando o caminho para chegar à “Cachoeira de Alto dos Bois”, aquela que os habitantes de Angelândia ressaltaram como importante ponto turístico no município (Figura 41). Figura 40: Floresta de Eucaliptos nas proximidades de Alto dos Bois. Figura 41: Placa indicativa da Cachoeira do Alto dos Bois Fotos: Pedro Carvalho (2015) Mais próximos do destino continuamos seguindo pela “estrada mais batida”, até que ao adentrar mais no grotão, descendo a chapada dos “Altos dos Bois”, avistamos as primeiras casas, plantações até que, num determinado momento, a paisagem nos revela a atual situação de grande parte dessa região, tão valorizada no passado pelas matas densas, e que agora se caracteriza por estar tomada pelos eucaliptais, que chegam a descer algumas vertentes das grotas, alcançando quase a beira das estradas e pequenos córregos, onde disputam espaço com elas, pelo uso da terra, pequenas plantações de café, áreas de pastagem e matas nativas (Figuras 42 e 43). 259 Figura 42: Primeiras casas da comunidade de Alto dos Bois. Figura 43: Usos do solo: chapadas e grotões. Fotos: Pedro Carvalho (2015) Quando se percorre estas estradas no intuito de conhecer o “Alto dos Bois”, não há como não referendar algumas observações mencionadas por diferentes atores locais, dentre eles o historiador José Carlos Machado, que ao falar de Alto dos Bois, a ele se refere da seguinte forma: “Aqui começa a história de Capelinha” (MACHADO, 2000, p.45). As narrativas regionais sobre a importância histórica desse local, deixam escapar ainda as riquezas naturais e culturais que estas paisagens do caminho já podem nos proporcionar. Num primeiro momento dúvidas, questionamentos, caminhos errados, mas em outros, a partir do olhar mais dedicado, da escuta do outro, e, principalmente, da leitura dos elementos que compõem essas paisagens, conseguimos compreender a dinâmica sociocultural imbricada em suas feições e percepções. Nesse ponto do caminho, pouco antes de se chegar ao casarão de Alto dos Bois, onde vários atores da configuração territorial, social, política, econômica e cultural do médio Vale do Jequitinhonha vivenciaram experiências em diferentes temporalidades, a ansiedade pela chegada toma conta de nós, até que sobre a sombra de uma imensa paineira, aí localizada a várias gerações (Fig.44), desponta um casarão de mais de 200 anos, feito de pau-a-pique, sobre o qual relatos de histórias dos moradores constam em registros de diversos viajantes do século XIX, os quais passaram por essas terras ainda em seu processo de descoberta e povoamento pelos colonos portugueses. Uma espacialidade, que a partir dos relatos e documentos históricos, nos remete a outras temporalidades, conflitos e modos de vida, que incidiram no passado e também podem ser vislumbrados em termos de sua perpetuação no futuro. 260 Figura 44: Casarão de Alto dos Bois sobre a sombra da Paineira Seguindo os pressupostos dos escritos de Wagner e Marvin (2000) a respeito desse olhar da Geografia Cultural para as paisagens, ao se chegar a Alto dos Bois, considerando toda sua carga histórica e cultural, previamente conhecida pela percepção regional atual (obtida pelas entrevistas semi-estruturadas) e da descrição densa de viajantes naturalistas do século XIX, foi preciso compreender que: A evolução de uma paisagem é um processo gradual e cumulativo – tem uma história. Os estágios nessa história têm significados para a paisagem atual, assim como para as do passado. Além disso, as paisagens culturais atuais do mundo refletem não apenas evoluções locais, mas também grande número de influências devido às migrações, difusão, comércio e trocas (WAGNER; MARVIN, 2000, p.141). Alto dos Bois revela nitidamente essa interação passado – presente – futuro, além de revelar dimensões e conexões em diferentes escalas regionais da microrregião de Capelinha e da mesorregião do Vale do Jequitinhonha. Tal conexão se expressa nas histórias que configuram este lugar, seus modos de vida, e ainda na própria dinâmica sociocultural emergente das comunidades quilombolas desse emblemático recorte territorial. É, aliás, se compreendendo a paisagem como uma construção histórica e interescalar que buscamos direcionar nosso olhar às diferentes temporalidades e espacialidades que estão vinculadas ao lugar. 261 6.1. A aldeia, o aldeamento e o destacamento/quartel: conflitos e descobertas de uma paisagem em construção Ao investigar o processo de formação histórico-cultural e regional do Vale do Jequitinhonha, e da própria gestação das paisagens culturais minerárias de Minas Gerais, é quase impossível não fazer referência a este lugar – Alto dos Bois. Mencionado em vários documentos históricos analisados, ora como aldeia indígena, ora como aldeamento, destacamento, quartel militar, fazenda, paróquia, povoado ou comunidade, o estudo de suas paisagens demanda, assim, uma análise multidimensional, que se efetivada através do cruzamento de informações de distintas fontes, possibilita a compreensão de suas espacialidades e temporalidades. Posto isso, para construir uma primeira narrativa das paisagens pretéritas de Alto dos Bois, iniciaremos o processo pela leitura e análise da cartografia histórica da Capitania de Minas Gerais65, de bibliografias sobre a história regional e, ainda, de documentos históricos oficiais encontrados no banco de dados do Arquivo Público Mineiro (APM) e que fazem referência a Alto dos Bois. Para realizar essa análise partimos da perspectiva da “etnografia dos documentos”, compreendida por Rockwell (2011, p.160): [...] como um enfoque que se define através dos recursos analíticos e das preocupações levadas às documentações. Os documentos aqui não são lidos apenas como fonte de dados sobre um determinado contexto, mas evidências materiais de processos sociais que elucidam as experiências e trajetórias desses sujeitos [tradução nossa]. Logo a análise dos documentos históricos deste contexto nos revelam experiências e trajetórias desse emblemático local – Alto dos Bois –, que carrega em sua memória histórica e geográfica elementos importantes das relações culturais e sociais que se estabeleceram em suas paisagens, ao longo da história, no contexto regional. Ao realizar a leitura/interpretação de cartografias históricas que representaram a “Capitania de Minas Gerais” no período de 1777 a 1929, observamos uma dinâmica singular no surgimento e “desaparecimento” de localidades, acidentes geográficos, cursos d’água e diversos indícios de mudança das paisagens revelados pela própria alteração toponímica presente nesses mapas. Reconhecemos, ainda, que a maior parte da cartografia produzida no período colonial e imperial foi produzida a partir dos objetivos e demandas dos governos das 65 Dentre os acervos consultados nesta análise nos debruçamos, principalmente, nos mapas disponibilizados no acevo da Biblioteca Digital Luso-Brasileira – https://bdls.bn.goc.br. 262 capitanias reais, e é justamente, para tais intencionalidades e estratégias de reconhecimento do espaço geográfico que voltaremos nosso olhar. Os três primeiros mapas, que datam de 1777, 1778 e 1798 são de autoria de José Joaquim Rocha, “um engenheiro militar português que serviu ao Brasil na segunda metade do século XVIII” (FURTADO, 2010, p.158). Os engenheiros militares, segundo Furtado (2010) dividiam-se entre as funções da guarda e do reconhecimento do território, fato este que lhes proporcionava um vasto conhecimento sobre os lugares, e que propiciava sua vinculação aos ofícios da cartografia. Rocha dedicou-se, principalmente, à produção de mapas e memórias históricas sobre a Capitania de Minas Gerais. Enquanto militar, serviu aos famosos “Dragões de Minas Gerais” e desempenhou a função de “sargento-mor das ordenanças dos distritos das capelas de São Luís da Conquista e Santo Antônio da Barra, do termo da vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí” – área foco de investigação do nosso estudo (FURTADO, 2010, p.155). É interessante ressaltar, neste momento, que a própria biografia do cartógrafo (autor dos primeiros mapas que iremos analisar), já nos revela dois elementos importantes da história de Alto dos Bois: a “Companhia dos Dragões da Coroa” e os “sargentos-mor”, sendo a menção a eles, recorrente nas documentações analisadas. Segundo Furtado (2010, p.185), esta “função não era remunerada”, no entanto, tratava-se de uma “patente de caráter honorífico”, de relevância simbólica e social. Ao compor as “companhias de ordenanças”, tais homens auxiliavam as tropas regulares, congregando “homens que não possuíam instrução militar sistemática, apesar de desempenharem, entre outras funções, atividades dessa natureza” (FURTADO, 2010, p.185). Posto isso, os mapas desse reconhecido cartógrafo e memorialista revelam (como pode ser observado no Mapa 10), por meio de suas concepções de textura, cores e hierarquia dos lugares uma paisagem onde predominam cadeias de serras entrecortadas por importantes cursos d’água reincidentes nas representações cartográficas da região, tais como os rios Gequitinhonha, Arassuahy e Tamarandiba66, além das áreas de chapada e da Serra das Esmeraldas - um grande complexo de serras representado nos primeiros mapas da região, e que consiste num importante divisor de águas das bacias dos rios Jequitinhonha, Doce e Mucuri, o qual, nas cartografias posteriores, se apresenta subdivida nas seguintes toponímias: Serra Negra (1822), Serra do Chifre (1863), Serra da Noruega (1866) e Serra do Ambrósio (1874). 66 Grafias utilizadas na época para os rios: Jequitinhonha, Araçuaí e Itamarandiba. 263 Mapa 10: “Mapa da Capitania de Minas Geraes” – José Joaquim da Rocha (1777) FONTE: BDLS (1777) Podemos observar ainda que nas proximidades dos rios Jequitinhonha e Araçuaí há o predomínio de fazendas (simbolizadas por um triângulo vermelho), com a toponímia que representa: nomes de famílias ou dos primeiros colonos europeus que chegaram à região (como Philippe, Machado e Ventura); nomes com referências religiosas (Santo Antônio, Santa Cruz) e características físicas do lugar (Sumidouro e Água Suja). Seguindo ainda a hierarquia toponímica desta carta, observamos a presença de duas importantes localidades a Capella de Piedade e da Vila do Fanado. A Vila do Fanado correspondia à localidade de maior referência neste recorte espaço-temporal, uma vez que fora neste local, às margens do córrego Bom Sucesso do Fanado, que o bandeirante Sebastião Leme do Prado (em 1727), vindo dos arredores da Vila do Príncipe (atual cidade de Serro) se instalara em busca de novas minas de ouro na região por eles denominada de Arraial de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Fanado (fundado em 02 de outubro de 1730). Já a Capella67 de Piedade (atual Turmalina) fora fundada por volta de 1750/1760, em decorrência da descoberta do ouro no rio Araçuaí (curso d’água no qual deságua o rio Fanado). Nesta localidade, muitos colonos da região das minas (dentre eles, Luiz Machado, João Cordeiro e Canuto Quaros) se dedicaram, principalmente, à 67 A hierarquia “Capella” (como se encontra grafado nas cartografias analisadas) refere ao fato de ao surgirem essas pequenas localidades, distantes dos principais centros, como no caso a Vila do Fanado, uma das primeiras instalações eram as de capelas. Assim, antes de se tornar uma paróquia ou uma vila, esses povoados com pequenas igrejas eram mapeados como “Capellas”. 264 produção agrícola de milho, feijão e algodão e à criação de gado (IBGE68, s/d.). Com o exponencial potencial para a descoberta do ouro na região, antes mesmo da fundação do Arraial do Fanado, foi ordenada a construção de uma Casa de Fundição na região das “Minas Novas”, evento este ocorrido no ano de 1729 (MACHADO, 2000). Quando chegamos ao casarão de Alto dos Bois, em nossa primeira visita, realizada no ano de 2011, esta data – 1729 – foi fortemente delimitada pelos atuais moradores da propriedade e por importantes pesquisadores da história regional. E ao buscarmos outras referências a respeito, descobrimos que neste ano ocorreram fatos extremamente significativos para a dinâmica histórica e geográfica da região. Com as descobertas de ouro, tal território começou a ser disputado pelos governos das Capitanias de Minas e Bahia, até que em 21 de maio de 1729, a Coroa Portuguesa determinasse que a região ficasse subordinada ao governo da Bahia, cabendo à Ouvidoria de Serro Frio (do governo das Minas) apenas os assuntos judiciais a ela concernentes (MACHADO, 2000). A disputa pelo território fez-se presente, também, entre as populações indígenas - originárias da região - e os novos colonos que chegavam para conquistar as frentes de expansão do domínio português. A presença dos grupos indígenas também fez parte de muitas das representações cartográficas deste período, sendo referenciadas, predominantemente, nas regiões próximas aos rios São Mateus, Ribeirão Todos os Santos, Mucuri e Doce. No “Mapa da região limítrofe dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, em litígio”, de 1798, José Joaquim Rocha refere-se ao “Certão povoado de gentio de várias nações” da seguinte forma: “Certão abitado por diferentes naçoens de Indios, que muitas vezes tem pe[di]do [ao] Padre - para os instruir nos Dogmas da fé e os Malalis oferecerão em 1782 na prezença do autor deste Mappa 600 arcos para conquistar o Barbaro Botocudo devorador da humana carne”69 (APM, 1798, p.1). Sobre os índios dos arredores da região da Vila do Fanado (como podemos observar no mapa a seguir), as aldeias dos Monoxó e Panhame70, que até aquele momento, haviam sido localizadas apenas depois da Serra das Esmeraldas, a qual representava um acidente geográfico de extrema importância e estratégia na defesa das terras das “Minas Novas” aos ataques dos bravios Botocudos71. 68 Informações referenciadas a partir da plataforma “Cidades”, disponível no site do IBGE (s/ data) – www.cidades.ibge.gov.br. 69 Trecho retirado do mapa conforme a grafia da época. 70 Grupos étnicos da família Maxakali (Tronco Macro-Jê). 71 Denominação pejorativa atribuída pelos portugueses aos indígenas da etnia Borun, tendo como referência a nomenclatura associada a eles por outras tribos rivais, em decorrência do uso de grandes batoques nos lóbulos das orelhas e no lábio inferior por alguns de seus indivíduos. 265 Mapa 11: “Mapa da Capitania de Minas Geraes – com deviza de suas comarcas” – José Joaquim da Rocha (1778) FONTE: BDLS (1778) Frente à nova dinâmica econômica que se implementava na região, e os confrontos cada vez mais intensos com as populações indígenas, principalmente os “temíveis Botocudos” (que tradicionalmente ocupavam esses territórios), em 28 de dezembro de 1729, o 4º Vice-rei do Estado do Brasil – Vasco Fernandes César de Meneses (Conde de Sabugosa) solicitou que a 3ª Companhia dos Dragões72 se direcionasse à Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Fanado, “atendendo às necessidades de guarda e segurança” da estrada que ligava essa região aos caminhos da Bahia (LIMA JUNIOR, 1943, p. 252). A Companhia, segundo César Junior (1978, p.27), teria ficado “estacionada na povoação de Alto dos Bois, distante dez léguas da sede da Vila que ainda não tinha sido oficialmente instalada”; com um contingente de aproximadamente 80 homens para controlar todo o território do Termo de Minas Novas, que, à época, corresponderia ao estado do Ceará, a Companhia dos Dragões foi removida para Vila Rica (atual Ouro Preto), e outras estratégias de defesa do território foram então desenvolvidas para esta emergente região de colonização (LIMA JUNIOR, 1943). Tais fatos nos revelam que a localidade de Alto dos Bois é tão antiga quanto o Arraial de Nossa 72 Em 1719 o governo português enviou para as Minas Gerais duas companhias de dragões para garantir a lei e a ordem nas atividades de exploração do ouro e fiscalização da cobrança de impostos. Com a descoberta de uma nova região potencial nas proximidades no médio Jequitinhonha, em 1729 o governo enviou a terceira companhia. 266 Senhora do Bom Sucesso do Fanado. Buscando referências na cartografia histórica, nas dezenove cartas analisadas, no período de 1777 a 1929, encontramos o topônimo de Alto dos Bois em nove delas, sendo que a primeira data de 1801 (Mapa 12). Mapa 12: “Planta geográfica do continente, que corre da Bahia de Todos os Santos athe a Capitania do Espírito Santo, e da costa do mar athe o Rio Francisco” – Amador Veríssimo de Aleteia (1801) FONTE: BDLS (1801) Nesta carta (Mapa 12), podemos observar a localização estratégica de Alto dos Bois próximo ao conjunto de serras que separam a próspera região da Vila do Fanado dos territórios indígenas, que se encontram mais ao sul, representados no mapa por flechas (“Puris Gentio” e “Botocudos Gentio”). A terminologia “gentio”, presente em diversos documentos deste período, revela a maneira como a Coroa Portuguesa e os colonos concebiam essas populações, enquanto elementos selvagens, que precisavam ser “civilizados”, “catequizados” e “tutelados” para a salvação de suas almas. Tais concepções sustentaram, aliás, durante vários séculos diversas ações e declarações de “guerras justas”, em nome da construção da “civilização” que “foram responsáveis pela escravidão à sujeição, a destruição cultural e ao desaparecimento de muitos povos indígenas” (TORRES-LONDOÑO, 2000, p.269). É ainda nesta cartografia que encontramos a localização do rio Fanado e dos caminhos que conectavam as vilas e distritos em ascensão, neste período, a estratégicos povoados - como Alto dos Bois. Segundo Paraíso (1992, p.415) com o declínio da mineração na primeira metade do século XIX, “as novas opções econômicas foram a pecuária, o comércio e a agricultura, e N 267 as zonas de escoamento dos produtos foram os grandes rios locais” os quais visualizavam o acesso a portos litorâneos. E é nesse contexto que se inicia o povoamento dos colonos europeus ao longo dos cursos d’água, o que exigia, no entanto, “a superação de algumas dificuldades, ainda que aproveitando as rotas naturais dos rios, tais como: carência de pontos de abastecimento para as tropas, falta de segurança” (em decorrência aos ataques dos Botocudos) “e ausência de estradas mais adequadas” (PARAÍSO, 1992, p.425). Para isso, principalmente no período de 1800 a 1814, foram abertas novas rotas e instalados presídios, quartéis, destacamentos e aldeamentos indígenas, os quais funcionavam da seguinte maneira: [...] o presídio funcionava como o centro de decisões de uma divisão militar, local onde residia o maior contingente de tropas e os oficiais mais graduados; nos quartéis temos as estruturas intermediárias de decisão, ali residindo tenentes ou alferes e, excepcionalmente, um graduado inferior, como sargento e cabo. Os quartéis têm sob o seu controle alguns destacamentos. A estrutura física do quartel é mais complexa que a dos destacamentos e mais simples que a dos presídios. Finalmente, os destacamentos são estruturas menos complexas de poder e organização. Ali ficavam alocados poucos soldados e, excepcionalmente, graduados, ocupando na maioria das vezes uma simples cabana de palha (PARAÍSO, 1992, p.416). Frente aos apontamentos de Paraíso (1992) e a partir dos relatos realizados por Saint-Hilaire (2000) em sua visita realizada ao Alto dos Bois, em 1817, situava-se na região: a Aldeia dos índios Macuni(s), a qual ele avista primeiro após descer as chapadas, na descida no vale do rio Fanado, assim registrando ele sua experiência – “a aldeia se compõe de casas, ou melhor, choças, completamente separadas umas das outras, e dispersas por aqui e ali sem ordem”; o quartel – “o edifício que serve de caserna aos soldados acantonados no Alto dos Bois”, acompanhado ainda da “casa do comandante, que era um pouco mais alta que as outras”; e de um pequeno destacamento – “um posto militar destinado a proteger contra os botocudos um campo de milho, que constituía o verdadeiro limite do território português” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.209-216). Sobre esta última localidade, o viajante francês ressalta ainda que: É aí que os soldados indígenas, que fazem parte do destacamento de Alto dos Bois, se metem de emboscada para atirar de espingarda sobre os Botocudos. [...] Na extremidade do campo, na espessura da mata, estavam os militares portugueses e índios, encarregados de proteger a colheita de milho. Ali, à margem de um regato que se lança no Fanado (possivelmente o córrego Fanadinho – destaque nosso), os soldados tinham construído algumas barracas em que dormiam e preparavam os alimentos (SAINT-HILAIRE, 2000, p.216). No ano de 1822 encontramos duas referências cartográficas que demarcavam a presença de Alto dos Bois enquanto uma localidade. Ressaltamos que, no Mapa 13 (apresentado abaixo) referente à “Capitania de Minas Gerais nos fins da era colonial”, de José Ferreira Corrato, há uma classificação hierárquica distinta dessas localidades, segundo a qual, 268 Alto dos Bois, Piedade, Chapada e Barreiras seriam “freguesias e curatos mais importantes” da região. E a cidade de Minas Novas (antiga Vila do Fanado) já se apresentava como a localidade regional responsável por sediar importantes instituições da época, tais como: a Sede da Vara Eclesiástica e as Escolas Régias ou Eclesiásticas. Essa representação nos revela ainda algumas informações a respeito dos recursos econômicos da região, onde já estavam presentes, no início do século XIX, a produção de cana de açúcar, algodão, tabaco e a criação de suínos e nas proximidades de Piedade, Alto dos Bois, Barreiras e Minas Novas. Nas regiões mais a leste situavam-se as matas dominadas pelos Botocudos, como se demarca na simbologia desta cartografia representada a seguir. Saint-Hilaire (2000, p.193-194), aliás, também ressaltou, em sua visita ao Termo de Minas Novas (1817), as condições favoráveis da região para a produção de algodão, do “milho, feijão, um pouco de trigo, batatas, bananas” e especialmente para o cultivo da “mandioca” e do “arroz” que “dá bem em toda parte, principalmente nas zonas baixas e arborizadas e nos lugares pantanosos”. Mapa 13: “Capitania de Minas Gerais nos Fins da Era Colonial de José Ferreira Corrato (1822) FONTE: APM (1822) Sobre essa produção agrícola em Minas Gerais em meados do século XIX, os cronistas Halfeld & Tschudi (1998, p.111-112) ressalta que a agricultura mineira neste período voltava-se principalmente à produção de alimentos, com destaque às seguintes produções: “a cultura mais extensa e importante é a do milho. [...] Em segundo lugar em importância está a cana-de-açúcar, que cresce em uma grande parte da província e é cultivada geralmente nas grandes fazendas, enquanto o milho é plantado também pelos pequenos 269 produtores”. Vale ainda destacar as observações do autor no que concerne à produção de algodão, que se deu principalmente na região de Minas Novas: O algodão era cultivado em Minas predominantemente por pequenos agricultores. Não havia plantations algodoeiras na província, e nas grandes fazendas era cultivado sobretudo para autoconsumo, como parte de um mix variado de produtos. No início do século XIX, favorecido pelo colapso da oferta do Haiti, Minas exportava pouco mais de 1000 toneladas/ano de algodão em rama, proveniente principalmente da região de Minas Novas, mas, a partir dos anos 20 essa exportação praticamente desapareceu, deslocada para grande produção do sul dos Estados Unidos. [...] um pequeno surto exportador de algodão mineiro que, entretanto, só durou até o início dos anos 1870, não resistindo à recuperação da oferta americana. O cultivo de algodão para consumo interno e para exportação sob a forma de pano continuou forte por todo o século, mesmo nos períodos de declínio das exportações em rama (HALFELD; TSCHUDI, 1998, p.113). Quando observamos este registro a respeito da produção de algodão e trazemos essa realidade para o contexto atual, compreendemos de onde vem a vocação de algumas regiões próximas a Minas Novas à produção artesanal de colchas e diversos outros tecidos nos teares de madeira, como é caso das mulheres de Berilo, por exemplo, que ainda hoje plantam, fiam e tingem o algodão, como se fazia naquele período. A força da tradição nos revela que, mesmo em situações de crise, como esta ressaltada na literatura, e noutras mais recentes -, oriundas do acesso do mercado brasileiro aos produtos importados de baixo custo (como é o caso das mercadorias chinesas) - ela se mantém preservada, vinculada, principalmente, ao modo de vida dessas populações. Em grande parte das comunidades quilombolas que visitamos neste recorte territorial o plantio de algodão, pelos pequenos agricultores, ainda se faz presente estando voltado, principalmente para o uso familiar. Outra atividade econômica que aparece no mapa 13, na região de Alto dos Bois e Minas Novas, é a criação de suínos, pois segundo o autor: De maior significação para a província é a criação de suínos, que ali é empreendida com grande êxito, impulsionada essencialmente pelas extensas plantações de milho e pelo clima favorável. As mantas de gordura dos porcos gordos são salgadas e secas ao ar, e constituem um importantíssimo artigo de exportação para a capital do império e para as províncias vizinhas. O toucinho de Minas sempre obtém melhor preço nos mercados do Rio de Janeiro que os de outras províncias (HALFELD; TSCHUDI, 1998, p. 114). Sobre tais informações é interessante ressaltar que essa cultura alimentar do milho, do toucinho de porco e da cana-de-açúcar configurou-se durante muitos anos e ainda hoje, como importante signo e significado da paisagem cultural de Alto de Bois. Tais produtos encontravam-se sempre presentes nas “roças” dos quartéis, nas fazendas dos colonos e foram ainda fortemente produzidos no auge da trajetória histórica da Fazenda de Alto dos Bois (século XX) e, hoje, ainda tais produtos são encontrados nas pequenas propriedades, 270 estando vinculados, inclusive, à identidade cultural das comunidades quilombolas de Alto dos Bois e médio Jequitinhonha. No que concerne às potencialidades econômicas da região, vale ressaltar ainda as referências encontradas na Revista do Arquivo Público Mineiro a respeito das “riquezas minerais” de Alto dos Bois. Neste documento, que descreve as ocorrências minerais de algumas localidades, descobertas em 1729, e cuja explotação fora recomendada pelo então governador da Província nos anos de 1800, tendo sido encontrada a seguinte descrição na literatura: “Alto dos Bois – entre a antiga aldêa da Penha e a Cidade de Minas Novas existe um chapadão conhecido pelo nome de Alto dos Bois, muito rico em minas de enxofre, antimônio e outras preciosidades mineraes” (APM, 1924, p.14). Gostaríamos de ressaltar que encontramos poucas referências a respeito da atividade na região, se comparadas às menções realizadas às minas e lavras de Minas Novas e Chapada do Norte; embora haja indícios da presença de garimpos na região de Alto dos Bois, registrados, principalmente, pela história oral dos moradores de Angelândia e região, considerando-se, contudo, que aparentemente, esta não foi uma atividade de grande destaque na localidade. No segundo mapa de 1822, representado a seguir (Mapa 14), podemos observar os dois caminhos que saiam da Vila do Fanado em direção a aldeia de Alto dos Bois. O primeiro passava pela região da Chapada, entrecortando apenas a fazenda de Santos. Já o segundo caminho foi traçado a partir do povoado de Piedade, e descia pelas fazendas de Estiva, Gangorra e Prata, passando ainda pelas imediações de Senhora das Graças (futura cidade de Capelinha). 271 Mapa 14: Theil der neuen karte der Capitania von Minas Gerais, por Wilhelm Ludwig von Eschwege (1822) FONTE: BDLS (1822) A respeito desses dois caminhos, Johann Emanuel Pohl (médico, mineralogista e botânico, que esteve na região em 1820), deixou como registro as seguintes observações: Em 13 de outubro, recomeçamos a viagem para o Alto dos Bois. Ainda que já de manhã tudo estivesse pronto, só pudemos partir a tarde. A bondosa solicitude do Capitão Seno, que queria acompanhar-nos até o Alto dos Bois, demorou-nos aqui. Tínhamos de escolher entre dois caminhos que levavam àquela aldeia. Um segue para oeste, passando pelo Arraial da Graça, a uma légua de distância; é três léguas mais curto, porém difícil. O outro é de quase seis léguas, mas é muito mais fácil, especialmente para a condução de carga. Escolhemos o último, mesmo sendo mais longo. Mal havíamos deixado a fazenda, tivemos de subir uma elevação montanhosa, em cujo dorso se estendia uma ampla chapada coberta de pequenos arbustos. Daqui vimos, em baixo, ao norte, a Fazenda Catarina e, ao alcançarmos o vale, depois de feitas mais umas três léguas, chegamos ao Rio Fanado, a cujas margens se acham várias fazendas com esse nome. Numa delas, na margem oposta, fazia-se a sesta ao meio-dia. Seu dono presenteou-nos com feijão e ovos. Restaurados, subimos em seguida uma serra muito escarpada, em cuja crista andamos mais uma légua, e depois atingimos o Córrego Fundo. Tivemos de subir ainda outra serra e encontramo-nos na chapada do Alto dos Bois, de onde segue o caminho da aldeia para Fanado. Aqui vimos, no vale, ao sul, a Fazenda Alto dos Bois, que pertence ao sacerdote de Fanado. Depois de andarmos longo trecho nesta elevação, tivemos de seguir por uma vereda extremamente íngreme. Aqui atingimos o Ribeirão Fanadinho, que corre de leste para oeste com a largura de três braças e se despeja no Rio Fanado. Em sua margem está edificada a aldeia onde residem os macunis ou o Quartel do Alto dos Bois (POHL, 1976, p. 361). Em sua descrição, Pohl (1976) refere-se ao Alto dos Bois enquanto: uma região (“viagem ao Alto dos Bois”; “chapada do Alto dos Bois”); onde havia uma aldeia indígena (“onde residem os macunis”); uma fazenda (“a Fazenda Alto dos Bois que pertence ao sacerdote de Fanado”) e um quartel (“o Quartel do Alto dos Bois”). Tais distinções, 272 ressaltadas pela dinâmica da paisagem descrita pelo viajante, nos revelam que esta referência toponímica do Alto dos Bois, já na primeira metade do século XIX, representava não apenas um lugar – o quartel ou o aldeamento (que são referências mais antigas), mas também uma região mais vasta, concebida, neste contexto, enquanto um “espaço de referência, conteúdo e contingência” (BEZZI, 2004, p.211). O Alto dos Bois incorpora, nesse sentido, a dimensão da “região espaço vivido” (FRÉMONT, 1980, p.18) definido de acordo com a percepção, incorporando os tempos da natureza e da sociedade, nos quais as diferenças se delineiam progressivamente. Segundo Castro (1992, p.33) “a delimitação da região jamais poderá ser rígida, pela própria dinâmica do espaço e pela dificuldade de segmentar linearmente sua complexidade”. Enfatizamos que para se compreender a complexidade do processo de formação das paisagens culturais de Alto dos Bois é preciso se buscar nessa conexão dos relatos históricos, das distinções geográficas e das percepções pretéritas e presentes, suas referências, conteúdos e complexidades compreendidas, aliás, por meio da interação de distintos atores sociais nas realidades local e regional, a partir de elementos próprios de sua coletividade. Nesse sentido, é que realizamos nossa análise fazendo uso das colocações e percepções de viajantes naturalistas que passaram pela região, descrevendo e analisando diversos signos que configuram suas paisagens, como Saint-Hilaire, que ao descrever os caminhos que conduziam ao Alto dos Bois, ressaltou sua percepção de algumas formações naturais que encontrou, quando passava pelo povoado de Piedade em direção à fazenda de Gangorras (também demarcadas no mapa): A região elevada que se estende de Penha à aldeia de Alto dos Bois ou aos arredores, e a muito próximas que mais tarde percorri entre a povoação de Piedade e a fazenda de As Gangorras, apresentam um aspecto e uma natureza de vegetação inteiramente novas para mim. Alí, não se vêem montanhas elevadas terminadas por agudos, separadas por vales estreitos e profundos, e revistas de matas majestosas. Alí não se observam, também, terrenos simplesmente ondulados e cobertos de ervas e arbustos. São morros pouco elevados, separados por vales, e cujo cume apresenta uma espécie de pequena planície. Na região dá-se esses cumes bizarros o nome de tabuleiros, que significa planalto, e chamam-nos chapadas, quando tem maior extensão (SAINT-HILAIRE, 2000, p.201). É a partir de relatos como este, que se evidencia a relevância dos trabalhos desses naturalistas do século XIX, os quais a partir de suas narrativas de viagem nos revelam traços significativos da paisagem, como o fez Saint-Hilaire, ao descrever a “Aldeia de Alto dos Bois”. O autor fez algumas descrições que revelaram a presença, aí, de três famílias de “novos colonos” por volta de 1787: Antônio Gomes Leal (pai); Domingos de Freitas Sampaio e alguns membros da família Pereira. Segundo Machado (2000), em 1777, existiria na região, 273 confrontando com a propriedade de Gomes Leal, outro fazendeiro importante conhecido por Manuel Luis Pêgo (sobre o qual discutiremos a seguir). Vale ressalta, por outro lado, com a descoberta das Minas Novas nas proximidades do “Distrito dos índios Botocudos antropófagos”73 e das demais “aldeias de gentios”, a necessidade de ocupação dos territórios, colonização e “catequização”/ “civilização” dos nativos se fez cada vez mais presente (BDLS, 1822a). Tal realidade pode ser observada no Mapa 15, onde constam anotações sobre a descoberta de diamantes em 1781, nas proximidades do atual município de Araçuaí – atividade que adquiriria grande importância econômica, e ainda a presença dos “Gentios Panhames”74 nas proximidades do Rio Piauí e Setúbal, ultrapassando a barreira natural da Serra das Esmeralda, conforme também destacamos nos mapas anteriores. Mapa 15: Planta Geral da Capitania de Minas Geraes FONTE: BDLS (1822a) Vale ressaltar que muitas das etnias representadas nesses mapas como “gentios” correspondiam às sociedades indígenas que viviam em permanente confronto com os 73 Índios Borun, que como outros povos indígenas do Tronco Macro-Jê, na verdade, não adotavam práticas antropofágicas, que eram características ou usuais apenas entre os antigos Tupi(s) da Costa. 74 Um dos grupos étnicos hoje extintos integrantes da família Maxakali (Tronco Macro-Jê). Gentio era uma denominação depreciativa dada aos índios aludindo à sua condição de índios pagãos. 274 Botocudos, e que acabaram por se aproximar dos colonos portugueses em troca de proteção, tais como os Malali, Macuni e Panhames, que apesar de pertencerem a um mesmo tronco linguístico – Macro-Jê – são de famílias linguísticas distintas. Estes, “gentios”, pertenciam à família Maxakali, e viviam, principalmente, entre os rios Jequitinhonha e Doce: Os grupos que compunham essa pan-tribo e se localizavam entre os rios de Contas e Doce, mas, particularmente, entre o Jequitinhonha e o Doce, eram os: Pataxó/ Patacho; Monoxó/ Manaxó/ Mapoxó/ Momaxó/ Maxakan/ Makaxó Kumanoxó/ Cumanachó/ Comanaxó; Kutatoi; Maxakali/ Machacalizes/ Machacaris/ Macachacalizes/ Malakaxi/ Malakaxeta; Malali/ Malalizes; Makoni/ Maconés/ Macunins/ Makuinins/ Maquaris/ Bakoani/ Maconcugi; Kopoxó/ Copoxó/ Gotochós e Panhame/ Bonito /Bonito (PARAISO, 1997, p177). Por volta de 1857, o naturalista suíço Johann Jakob Von Tschudi (1818-1889) ao viajar pelo Leste Brasileiro (do Rio de Janeiro a Caravelas – sul da Bahia) percorreu as regiões mineradoras de Ouro Preto, Serro e passou, também, pelas proximidades de Alto dos Bois, tendo estado na fazenda de Antônio Gomes Leal (filho de um dos primeiros colonos da região, o qual foi, por muitos anos, o responsável pelo aldeamento de Alto dos Bois, nas proximidades do quartel) - já nas proximidades do rio Mucuri. Em suas conversas com este colono, ele relata que: Até 1787, os malalis formavam uma tribo com mais de 500 indivíduos. Naquele ano, ao serem forçados pelos botocudos a se deslocar para o oeste, depois de uma guerra devastadora, não chegaram mais que 150 indivíduos à região do Quartel. Quando se reuniram na fazenda de Antônio Gomes Leal [pai], depois do retorno à floresta e da nova derrota, eram apenas 26 (TSCHUDI, 2006, p.198-199). Antônio Gomes Leal (filho) relatara ao naturalista que quando esses indígenas (hoje extintos) retornaram ao quartel, após a primeira derrota contra os Botocudos, o comandante “deu-lhes um tratamento pouco sensato: forçou-os ao serviço militar para proteger a população civilizada dos constantes ataques de índios selvagens” (TSCHUDI, 2006, p.198), evento este que os levou a uma segunda derrota frente aos botocudos, levando- os a direcionar-se à fazenda de seu pai – Fazenda São Pedro – “onde foram recebidos amigavelmente” (TSCHUDI, 2006, p.198). Antônio Gomes Leal (pai), segundo relatos de seu filho, “tinha feito grandes esforços para civilizá-los e conseguiu bons resultados, ora com bondade, ora com severidade. Era protetor e amigo dos índios” (TSCHUDI, 2006, p.198). Em sua estadia na fazenda de Antônio Gomes Leal (filho), Tschudi teve a oportunidade de conhecer alguns indígenas da etnia Malali, que haviam acompanhado seu hospedeiro até às margens do rio Mucuri, região de grandes perspectivas de desenvolvimento em meados do século XIX. Segundo Tschudi (2006, p.199), os Malali: Tinham a cor da pele mais clara e a face mais oval. Parecem ser trabalhadores ativos e habilidosos, mas desconfiados. Essa é, provavelmente, uma reminiscência dos maus tratos sofridos por seus antepassados no quartel do Alto dos Bois. A 275 constituição física deles é, em geral, mais fraca e delgada do que a dos naknenuks75 e por isso é fácil entender por que sucumbiram aos botocudos selvagens e guerreiros. Parece que, até agora, não se misturaram com outros índios. Sobre a distribuição territorial dessas populações indígenas neste recorte espacial, destacamos ainda a importante contribuição de Curt Nimuendajú76 (1924-44), etnólogo alemão, que em expedição realizada no início do século XX, deixou registros de diversos grupos indígenas encontrados em diferentes fontes documentais e espacializou sua localização geográfica em seu “Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes” de 1944. A partir do georreferenciamento deste mapa, inclusive, elaboramos o Mapa 16, no qual registramos as etnias das famílias Botocudo/Borun e Maxacali, localizando ainda a posição geográfica de Alto dos Bois e das sete divisões militares que analisaremos a seguir. A partir desse recorte, percebemos nitidamente a região de fronteira entre as duas famílias linguísticas nos “Sertões do Leste de Minas Gerais”, situada no interflúvio dos rios Jequitinhonha, Doce e Mucuri, região então considerada perigosa em decorrência dos frequentes conflitos entre indígenas e os novos colonos que buscavam fazer a ocupação desses territórios (PARAÍSO, 2014). O Mapa 16 nos leva à reflexão sobre a relevância do Vale do Rio Doce, assim como da região do Alto dos Bois, nos séculos XVIII e XIX, como uma das áreas mais estratégicas à proteção dos colonizadores frente aos conflitos travados com as populações indígenas e frente ao extravio do ouro no transporte aos portos no caminho para a Bahia. Segundo relatos de viajantes ou de historiadores do período colonial, o Alto dos Bois constituía um local adequado para o policiamento do tráfico de riquezas da Coroa portuguesa justamente por situar-se no divisor de águas dos vales dos rios Mucuri, Jequitinhonha e Doce – três recortes sub-regionais de extrema importância político-econômica na configuração histórica do território estadual (LIMA, 1943; POHL, 1976). Assim, toda região dos sertões do leste (principalmente no leste mineiro) era ocupada por novos colonos e destacamentos militares. Tais destacamentos ficavam alocados em quartéis e eram distribuídos e comandados a partir de sete Divisões Militares que deveriam cobrir estrategicamente todo esse vasto território. No mapa 16 apresentamos a localização dessas divisões, distribuídas estrategicamente nos limiares da área de abrangência dos territórios tradicionalmente ocupados pelos “temíveis Botocudos”77. 75 Um dos grupos étnicos, já extintos, que integravam a família dos Botocudos. Habitavam a região de Nanuque/MG. 76 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju. Rio de Janeiro: IBGE, 2ª impressão, 1987. 94p.: mapa. 77 Ressalta-se que este povo indígena constituiu, de fato, uma das sociedades autóctones mais aguerridas e combativas no enfrentamento com os conquistadores europeus. 276 Mapa 16: Distribuição espacial dos grupos étnicos das famílias linguísticas Botocudo e Maxakali segundo Curt Nimuendaju (1942-44) e localização das Divisões Militares. 277 As primeiras divisões foram implantadas principalmente às margens do rio Doce. Todavia o aumento da produção de ouro na região das novas minas da Vila do Fanado, criou a necessidade de se instalar uma 7ª divisão às margens do Jequitinhonha no ano de 1810, instalada em São Miguel (atual cidade de Jequitinhonha). Estavam sob o comando da 7ª Divisão cinco quartéis: Itinga; Bonfim (hoje Joaíma), Vigia (Almenara), Salto Grande (atual Salto da Divisa) e Alto dos Bois (município de Angelândia) (PREFEITURA DE ANGELÂNDIA, 2000). Tendo em vista o histórico de ameaças e batalhas que estes colonos necessitariam travar com os primitivos donos dessas terras, os conquistadores utilizavam o medo que outras etnias tinham dos “temíveis botocudos” (que controlavam todo o território do leste mineiro), para agrega-los às suas propriedades apropriando-se de seus conhecimentos sobre as matas, caminhos, cursos d’água, etc. em troca de uma suposta “proteção” contra os ataques a eles dos botocudos. A respeito da apropriação do trabalho indígena, Paraíso (1992, p.416) destaca a Carta Régia de 12/5/1798, fruto da pressão dos colonos que se encontravam “insatisfeitos com a maneira ‘branda’ como os índios eram tratados”, e que, segundo a autora: [...] aboliu o direto de os índios venderem livremente a sua força de trabalho, restaurando a dominação mais direta sobre os trabalhadores indígenas com os estímulos aos descimentos e a imposição de trabalho compulsório em atividades que deveriam ser realizadas, preferencialmente, fora do perímetro da aldeia, fosse em propriedades particulares ou em obras públicas (PARAÍSO, 1992, p.416). Para a autora, tal política teria desencadeado a intensificação de uma “prática militarista violenta e expropriadora das terras indígenas”, contribuindo, inclusive, para o extermínio desses povos. Além disso, os portugueses tinham ainda o ideário de “civilizar” e “catequizar” os índios. Saint-Hilaire (2000, p.211), descreve em seus relatos que logo que chegaram à região, os portugueses teriam sido abordados “gentilmente” por indígenas das etnias Malali e Macuni, as quais, segundo ele, “vinham refugiar-se no meio dos homens de nossa raça fugindo à perseguição dos Botocudos, inimigos de todas as demais nações indígenas”. Partindo desse pressuposto, teria se tornado “fácil” e se julgado “justo” que os colonos portugueses se apropriassem do trabalho desses índios em troca da presumível proteção, obrigando-os, inclusive, de certa maneira, a abandonar sua cultura, língua e modos de vida. Apesar do caráter depreciativo dos relatos desse viajante a respeito das tribos indígenas, fruto das concepções de mundo vigentes naquele contexto, eles deixam claro, em alguns trechos, que essa aculturação não se deu, contudo, de forma tão pacífica e natural: 278 Foram todos batizados; conhecem os princípios da religião cristã, e pela manha e à tarde são ouvidos, no interior de suas casas, a recitar orações em língua portuguesa. A religião, entretanto, muito pouco melhorou seus costumes. A maioria foi casada por um sacerdote; mas não tem o menor respeito pela fidelidade conjugal. [...] Esses homens tampouco renunciaram às suas antigas superstições. Assim assegura- se que quando venta muito, as velhas mulheres se põem a fumar à porta das casas e, na intenção de afugentar a tormenta, soltam contra ela baforadas de tabaco [...] Batizando as crianças dão-se-lhes nomes de santos e um nome de família português. Além desse, porém, os Macunis dão a seus filhos outro nome tirado de sua língua, e chamam-nos sempre por este último (SAINT-HILAIRE, 2000, p.212). Como podemos observar nos trechos apresentados acima, apesar das imposições do cristianismo, dos hábitos europeus e da língua portuguesa, nesse primeiro contato, muitas etnias ainda buscaram manter suas práticas tradicionais, costumes e línguas, fazendo, de certa maneira, com que muitos dos colonizadores, não acreditassem, inclusive, na possibilidade de sua aculturação total. O relato que apresentamos abaixo mostra essa percepção de Saint- Hilaire quanto aos indígenas de Alto dos Bois, e coloca em releve, desse modo, que mesmo em busca de “segurança” junto aos portugueses, estes resistiam, de alguma forma, aos processos de aculturação. Viu-se que os Macunis tinham habilidade e que podiam aprender a ler, escrever, contar, servir como soldados, lavrar a terra; viu-se, porém, que eles eram despreocupados, inconstantes, preguiçosos, e dissipavam imprevidentemente seus fracos recursos. Talvez se creia que tais defeitos não sejam mais que o resultado passageiro de antigos hábitos, e que desaparecerão com o tempo e uma civilização mais adiantada; o exemplo, porém, das outras nações indígenas não permite, infelizmente, que se conceba essa esperança (SAINT-HILAIRE, 2000, p.214). Ao analisarmos tais componentes da paisagem cultural e histórica de Alto dos Bois no período oitocentista, faz-se necessário ressaltar os estudos de Ruellas (2015) que buscaram compreender como se dava a relação entre os colonizadores e indígenas em Alto dos Bois, buscando identificar os meios que estes utilizaram “para se adaptar ao universo posto, garantindo formas de sobrevivência coletiva e adaptando seu universo simbólico e social” (RUELLAS, 2015, p.19). Para a autora, Alto dos Bois teria representado, nesse contexto, um importante espaço de “reconstrução de laços culturais e identitários”, uma vez que, “na perspectiva da resistência adaptativa, ou de submissão apenas aparente [...] os povos indígenas passavam a ver esses espaços como formas de almejar ganhos, ou perdas menores. Assim, adaptavam-se e reelaboravam os sentidos naquele universo em mudança” (RUELLAS, 2015, p.46). É interessante, nesse sentido, destacar que apesar de terem sido extintos, muitos hábitos dessas etnias indígenas, que são descritos por Saint-Hilaire, ainda podem ser 279 observados no modo de vida dos atuais habitantes de Alto dos Bois. A seguir apresentamos (na Tabela 11) alguns dos aspectos de modos de vida descritos pelo viajante que ainda permanecem válidos e vívidos na região. Tabela 11: Modos de Vida dos grupos indígenas que permanecem na vivência socioespacial nas Paisagens Culturais de Alto dos Bois Modos de Vida (Século XXI) Relatos de Saint-Hilaire (1817) Uso da palmeira Catolé para cobertura de casas “Na maioria são cobertas com as longas folhas de duas palmeiras que crescem nas matas, e se conhecem, uma pelo nome de ariranga, outra pelo de Catolé. Essas folhas constituem um abrigo impenetrável às águas da chuva, dão, porém, aos tetos um ar agreste e desleixado que não tem os das choupana de França ou Alemanha” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.209). Casas separadas “A aldeia se compõe de casas, ou melhor, de choças, completamente separadas umas das outras, e dispersas por aqui e ali sem ordem” (SAINT- HILAIRE, 2000, p.209). Construções de Pau- a-pique “As paredes das casas dos Macunis são, em geral, construídas segundo o uso dos brasileiros-portugueses, com ripas cruzadas e terra argilosa de cor vermelha. Todavia os Macunis, muito menos cuidadosos do que os portugueses, parecem pouco se importar em esconder caibros retos e iguais, e sem sequer se dão o trabalho de esconder essas estacas com argila, limitando-se obturar grosseiramente os buracos que ficam entre elas” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.209). Estrutura de paiol, casas de farina (sem a terra) “Outras choças, ainda menos cuidadas, foram construídas sem barro, e os espaços vazios, que deixam entre si as varas cruzadas, são obturados por galhos de árvores ou folhas de palmeira” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.209). Vasilhames de Barro “São ainda as mulheres que fabricam o vasilhame. Os vasos que saem de suas mãos vão para o fogo e são muito bem feitos. Fazem-nos de diversos tamanhos; mas todos tem a mesma forma e, como entre os Malalis, é a de uma esfera um pouco deprimida, tendo uma larga abertura” (SAINT- HILAIRE, 2000, p.213). Cordão (para fiar sacolas, cordas, esteiras, etc.) “Além do vasilhame de barro, as mulheres fazem ainda esses sacos de que falei acima. Fornecem-lhes o material de fabricação o algodoeiro e uma espécie de Cecropia (a imbaúba dos brasileiros), cujas folhas são verdes de ambos os lados. Para tirar partido dessa última planta, tomam dos ramos tenros da Cecropia, e começam por despojá-los da casca exterior. Em seguida, com a concha de um molusco, esfiapam as fibras lenhosas; separam-nas do tecido celular que as liga, e fazem assim uma espécie de estopa muito fina. Para fiar essa estopa, tomam fibras, e torcem-nas sucessivamente, enrolando-as sobre as coxas nuas com a palma da mão. A espécie de cordão que resulta desse trabalho serva para fazer não só os sacos de rede, como também as cordas dos arcos” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.213). Uso de plantas medicinais “Quando ficavam doentes não utilizavam outro remédio, além da ipecacuanha” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.215). FONTE: Elaborado pela autora (2018) Ao se aproximar desses núcleos de novos colonos, muitos grupos indígenas se fixavam junto a estas povoações, sendo, por vezes, agregados às fazendas como mão de obra escrava, uma vez que, os escravizados negros foram direcionados, predominantemente, às regiões de extração do ouro próximo à Vila do Fanado. É nesse contexto que, em todo esse 280 território, ainda desconhecido pelos portugueses, tornou-se comum a fundação dos aldeamentos junto às fazendas, que se pautavam na justificativa de proteção dessas populações, no intuito, todavia, de agregar o trabalho indígena nas lavouras ou, mesmo, promover sua incorporação aos destacamentos militares como soldados conhecedores do território. Foi neste contexto que, segundo Saint-Hilaire (2000), o aldeamento de Alto dos Bois foi fundado no ano de 1794, quando, o lavrador Antônio Gomes Leal, que já possuía relação com os ameríndios, que se apresentaram em sua fazenda, à época de sua chegada à região, quando ele fora incumbido pelo Capitão-Mor da região e pela junta de Vila Rica a assumir a responsabilidade de gerir tal aldeamento, enquanto “Diretor dos Indígenas”, “a fim de civiliza-los, ensinar-lhes a doutrina cristã, e torna-los homens úteis” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.211). Apesar da importância dos escritos deste renomado naturalista, não podemos deixar de realizar uma análise crítica sobre suas avaliações a respeito desse fato, quando ele afirma benevolentemente que: “sem nenhum interesse, Antônio Gomes executou dignamente a tarefa de que fora encarregado. Revestido pela junta do título de diretor, governa os índios com bondade; faz-se querido por eles; instrui-os na nossa religião, e ensina aos jovens a ler, escrever e contar” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.211). Tal “benfeitoria” relacionada à formação dos aldeamentos, como bem ressalta Ruellas (2013, p.1583), partia do interesse tanto dos colonos como da própria Coroa portuguesa, uma vez que: Todas as ações empreendidas, tendo como fundamento a Carta78, possuíam fins em comum: o de ocupar os sertões e de transformar seus habitantes em cidadãos eficientes e úteis para servir o novo Estado. Para este fim, a prática da criação de aldeamentos, bem como de destacamentos militares ou quartéis, se fez necessário e eficiente. No que tange os aldeamentos, esse atendia diversos interesses de múltiplas esferas da sociedade da época. Do ponto de vista da Coroa, o foco principal era integrar os índios à sociedade colonial, tornando-os aliados e súditos cristãos. Garantia-se assim, a soberania sobre o território dos sertões, defendendo-os de estrangeiros e índios considerados hostis. Índios aldeados auxiliavam também, com sua mão de obra, na construção de sociedades coloniais. E nesse sentido, como ressalta, por sua vez, Ruellas (2013), havia um enorme interesse dos colonos e da Coroa portuguesa na constituição desses aldeamentos e no desenvolvimento de suas “práticas civilizatórias” junto aos índios, e que destacavam a importância de engajados “homens virtuosos” como Antônio Gomes Leal, presumivelmente, no grande feito de cuidar desses “pobres índios”, dispondo de um cuidado e “prudência paternal” no cumprimento deste papel (SAINT-HILAIRE, 2000, p.215). 78 Trata-se da Carta Régia de 13 de maio de 1808, na qual o príncipe regente declara “Guerra Justa” aos temíveis Botocudos que impediam o avanço das frentes de ocupação dos sertões, encaminhando nesse sentido, como medidas necessárias, além do extermínio, a instalação de aldeamentos de divisões militares. 281 Sobre o papel da família Gomes Leal na região, vale ressaltar ainda as seguintes considerações de Ruellas (2013, p.1586): “a relação da família Gomes Leal com os índios traz aspectos particulares da história dos índios da região, em suas estratégias políticas de alianças preferenciais com os colonos”. Tal consideração nos remete tanto às estratégias adotadas pelos indígenas de sobrevivência frente à pressão dos ataques dos botocudos e de “outros” novos colonos, quanto dos próprios portugueses no aquartelamento, domesticação ,e até mesmo, na miscigenação, por meio de casamentos, principalmente entre homens portugueses e mulheres indígenas, como ocorreu com muitos dos filhos de Gomes Leal. Mattos (2004, p124) ressalta, aliás, a partir dos relatos de D. João Pimenta em seus escritos - “Memória História e Descritiva da Freguesia de Santa Ana de Água Boa” - feitos em 1887, “importantes aspectos da ocupação daquela região de matas pelos ‘caboclos pioneiros’, bem como as relações de ‘mestiçagem’ ocorridas entre nacionais e indígenas”: Na borda da Mata, limitado pelas águas do Capivari e do Fanado, existe o grande planalto denominado Alto dos Bois ou Das Trovoadas. Ali morava o célebre Capitão Pequeninho ou Capitão dos Bois, por ter sido o primeiro que introduziu a criação do gado vacum. Nas cachoeiras do Fanadinho, no lugar denominado Alto de Dentro, distante 6 ou 8 Km do Capitão Pequeninho, morava Antônio Gomes Leal, fazendeiro, com alguns escravos e os filhos Cassimiro Gomes Leal, Camilo, Antônio, Domingos e João, e também o genro de Antônio Rodrigues da Cunha. E como fossem criados os filhos de Antônio Gomes em promiscuidade com índios, com eles aprenderam a língua indígena, e pelo muito agrado a eles dispensado, tanto Antônio Gomes como todos os filhos (MATTOS, 2004, p.124). Os estudos de Mattos (2004) sobre a região revelam outras vertentes/faces dessa paisagem de Alto dos Bois em gestação, apresentando-nos, a partir de sua análise sobre a mestiçagem, as referências sociais e políticas que giravam em torno desses novos colonos que se estabeleciam na região. Denominados nas documentações históricas como “caboclos pioneiros”, muitos destes colonos eram frutos da miscigenação entre índios e portugueses como a que acontecera entre os bandeirantes paulistas, em sua maioria mamelucos, que abriram os sertões em busca de novas riquezas. Grande parte das fazendas e aldeamentos que se instalaram nas matas dos “sertões do leste”, que neste período, estiveram vinculadas a estes “nacionais pobres”, e se estabeleciam, inclusive, laços de parentesco entre eles, como ressalta Mattos (2004, p.108) no trecho apresentado abaixo: A família Fernandes, de ‘caboclos pioneiros’ iria estabelecer laços de parentesco com os Gomes Leal, da região de Alto dos Bois. A relação destas famílias com os índios confirmam aspectos particulares da história dos índios na região, em suas estratégias políticas de alianças preferenciais com os colonos. Talvez a família Pêgo tenha sido a que tenha ganhado notoriedade entre os responsáveis pela política de ‘brandura’ do Regulamento das Missões, que os perseguiam e aprisionavam como sedutores dos índios. 282 E é nas referências do naturalista Tschudi (2006) que encontraremos mais informações a respeito da Família Pego, relacionada a um ator social de extrema importância neste contexto espaço-temporal, até então pouco mencionado nos registros concernentes à realidade da região de Alto dos Bois por aqueles que por lá passaram – o negro. Nos relatos de Saint-Hilaire sobre a região de Alto dos Bois e Capelinha, encontramos referências à presença e protagonismo negro em três momentos. O primeiro, ao chegar a região de Alto dos Bois, quando narra que é guiado por um negro até o local da fazenda. O segundo quando ele escreve sobre a população de Capelinha – “os habitantes de Capelinha quase todos homens de cor, entregam-se à agricultura, e tem suas plantações em matas situadas a alguma distância da povoação” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.206). E por fim quando ele remete às mulheres Macuni na Aldeia de Alto dos Bois: “tem principalmente preferência pelos negros, e, por ocasião da minha viagem, uma índia estava criando um mestiço fruto de seus amores passageiros com um negro bastante velho, que tinha vindo fazer roupas na aldeia” (SAINT-HILAIRE, 2000, p.212). A presença de um negro alfaiate – “pardo” no quartel também é confirmada por uma lista de soldados que serviam no quartel de Alto dos Bois em 1815. Ao cruzarmos, aliás, as informações desses dois naturalistas – Tschudi e Saint- Hilaire –, observamos a complementaridade das informações referente à presença do negro neste recorte territorial. Enquanto na região das Minas Novas, era a mão-obra negra que realizava a extração do ouro no leito do Rio Fanado e nas lavras de Chapada, na região de Alto dos Bois e Capelinha – às margens dos rios Fanadinho e Urupuca, predominava a mão- obra indígena vinculada, predominantemente, à formação das roças nas matas, sendo, dessa forma, a figura do negro, relatada através da presença dos “pardos” - no quartel de Alto dos Bois (como mencionado anteriormente) - ou dos “mulatos” - abrindo importantes roças na região – tais como Tomás e Feliciano Pego: Há trinta e poucos anos, dois irmãos, Tomás e Feliciano Pego, mulatos escuros, porém sérios, trabalhadores e ativos, fixaram-se nas matas do alto Rio Urupuca (também pronunciado Arapuca ou Oropuca), que deságua no Rio Suaçuaí Grande, o maior afluente da margem norte do Rio Doce, ao sudoeste de Capelinha. Desmataram a floresta e fizeram grandes plantações. Mediante tratamento cordial, conquistaram a confiança dos índios, de tal forma que a maioria convivia bem com os dois irmãos, ajudando-os nos trabalhos agrícolas. Quando as plantações estavam bem desenvolvidas, venderam a terra por um bom preço e penetraram mais fundo na floresta, acompanhados pelos índios, para recomeçar o mesmo trabalho. Depois de terem produzido dessa forma várias roças e de as venderem por bons preços, tomaram a decisão de fixar residência permanente e formaram uma grande fazenda, chamada “Surubi”. Os índios, sempre fiéis, continuaram com eles. Formavam, por assim dizer, uma única família, pois os índios veneravam os dois irmãos de forma até comovente. A um deles chamavam “meu pai” e ao outro, “meu padrinho”. Viveram alguns anos tranquilos e satisfeitos até que, repentinamente, inexplicáveis 283 acasos que, às vezes, invadem o destino dos homens, derramaram sobre eles maldição e desgraça (TSCHUDI, 2006, p.202-203). Pessoa (2007, p.43) em sua tese “GENTE SEM SORTE: OS MULATOS NO BRASIL COLONIAL” apresenta essa configuração “de gentes livres e forras”, que não eram nem brancos, nem escravos e das distinções envolvidas na utilização dos termos “mulato” e “pardo”. A partir da análise de documentos coloniais, nos quais estes termos foram utilizados, Pessoa (2007, p.43) esclarece assim que ambos referiam-se à miscigenação entre negros e portugueses, e os mulatos, segundo as avaliações preconceituosas da época, eram aqueles que “de fato não eram pessoas merecedoras ou dignas de confiança”. Daí o esclarecimento no relato de Tschudi sobre os Pego – “dois irmãos, Tomás e Feliciano Pego, mulatos escuros, porém sérios, trabalhadores e ativos” – feito no intuito de distingui-los e apresenta-los como homens de confiança, mesmo pertencendo a este segmento racial dos mulatos. Quanto aos pardos, assim como encontramos em documentos, Pessoa (2007) relatou a atribuição a eles de ofícios de importância – professores, funcionários públicos, cargos em irmandades, etc. –, vinculando-os, predominantemente, a figuras “de confiança” – de acordo com os valores vigente à época. Sobre a família Pego, Machado (2010, p.54) ressalta que o pai de Tomás e Feliciano, Manuel Luiz Pego, havia chegado à região de Minas Novas por volta de 1771, “à procura de riquezas minerais ou de terras para o cultivo”. E Machado (2010, p.54) levanta a hipótese dele ter sido um “mestiço de índio e português”, vindo de “uma região essencialmente agrícola”, registrando ainda muito “zelo para com a alfabetização dos filhos”. Levando-se em consideração os argumentos apresentados na pesquisa de Pessoa (2007) e os relatos de Tschudi, construídos a partir de um encontro que ele narra ter tido com Feliciano Pego – “quando nas primeiras horas da tarde, passei por uma roça e, bem perto do caminho, vi um mulato idoso trabalhando no campo com alguns jovens de pele escura” (TSCHUDI, 2006, p.202), e frente ao contexto geohistórico regional, acreditamos que a família Pego era oriunda da miscigenação entre negros (pelo termo utilizado – “mulato” e pela descrição da cor da sua pele, pelos naturalistas) e portugueses (se considerarmos que estes desempenhavam as mesmas funções dos “colonos pobres”/“caboclos pioneiros”, em grandes fazendas na região, tendo obtido assim, o respeito, inclusive de estrangeiros que passaram pela região, apesar de sua condição, então desvalorizada, de mulatos. Posto isso, acreditamos que a Família Pego representou, neste contexto, a presença mais marcante da presença do negro nas proximidades de Alto dos Bois, a partir da qual formulamos, inclusive, nossas hipóteses da miscigenação entre índios, negros e 284 portugueses neste recorte territorial. Consideramos, ainda, a partir das questões expostas anteriormente, que a família Pego – mulata – começa a se miscigenar com a descendência indígena, a partir do momento em que os nativos passam a ser agregados como mão de obra em suas fazendas, assim como também o faziam os membros da família Gomes Leal. Esta observação se consolida a partir do relato de uma tataraneta de Tomás Luiz Pego, segundo a qual – “sua mãe afirmava que a bisavó fora uma índia moreninha e de cabelos lisos” (MACHADO, 2000, p.54). Esta integração que se dava, principalmente, por meio do casamento de homens – de origem portuguesa – com mulheres indígenas, o que propiciava aos filhos do casal a condição de crescerem e serem educado pelas concepções da “casa grande”, mas detendo o conhecimento do território e língua oriundos da convivência com a mãe e os demais indígenas, o que era extremamente estratégico para estas famílias. Segundo Machado (2000), a história e a importância da família Pego, sempre esteve fortemente vinculada à região de Alto dos Bois (nas proximidades da atual Capelinha), uma vez que sua fazenda, em meados de 1771, fazia divisa com tal localidade, como podemos observar no trecho destacado abaixo: Manuel Luiz Pego tinha a sede de sua fazenda no córrego que atualmente tem o seu nome. Ela se estendia, ao norte, até o córrego Areão; a leste, divisava com o Alto dos Bois, inclusive, com terras de Antônio Gomes Leal; a oeste, com terras de Domingos de Freitas Sampaio; ao sul, Manuel Luiz tinha como divisas as matas dos rios Urupuca e Surubim. [...] até o século XIX, as fazendas apresentavam tamanhos descomunais (MACHADO, 2000, p.58). Ao exercer também a “catequização” “proteção” dos índios em sua fazenda, Tomás e Feliciano Pego, chamaram atenção de um frei capuchinho – Bernardino –, que chegara em Capelinha, pelos anos de 1848, para “catequizar” os índios, e que ao se deparar com tal atuação da família Pego, e embora aproveitando-se da receptividade dos irmãos, delatou-os, contudo, ao presidente da província como responsáveis por “maquinações e intrigas revolucionárias”, como descreve Tschudi (2006, p.203-204): Em 1848, apareceu por ali um indivíduo depois conhecido por sua vileza. Era um capuchinho chamado frei Bernardinho que, chegando a Surubi, desfrutou a hospitalidade dos irmãos até encontrar terreno favorável para colocar em prática seu plano ardiloso. A religiosidade fingida do frei comoveu os dois irmãos e, quando este se ofereceu a Tomás Pego, homem honrado e religioso, para dar aulas de religião para duas de suas netas, filhas de uma índia, este recebeu a oferta com alegria. Alguns meses depois, o monge desapareceu secretamente de Surubi. Tinha maculado a honra das duas moças, mas, não satisfeito com esse ato infame, tramou a ruína de toda a família. Foi para Ouro Preto e lá, aproveitando um período de grande agitação política, acusou os irmãos Pego de maquinações e intrigas revolucionárias. Afirmou que eles haviam mobilizado índios para defender o partido oposicionista. Foi tão longe em suas calúnias que Luiz Antônio Barbosa, na época presidente da província de Minas Gerais [...] viu-se forçado a trazer os irmãos Pego, sob escolta policial, até Ouro Preto, onde foram presos. Por meio de lisonjas servis e fingindo religiosidade, frei Bernardino conseguiu que presidente lhe desse a incumbência de 285 converter os índios de Surubi a religião cristã! De volta ao local de seus crimes, os índios não quiseram saber dele e o ameaçaram de morte. Viu-se, então, forçado a buscar refúgio nu lugar próximo. Os índios quando perceberam que seu protetores não mais retornariam, voltaram para a floresta, levando as duas moças desonradas. [...] A fazenda Surubi, saqueada e abandonada, foi tomada pelo mato. A casa deteriorou- se e hoje é nada mais que um monte de ruínas. Os irmãos Pego, finalmente libertados do cativeiro, pobres e infelizes, não quiseram voltar àquele local marcado por tão trágicas lembranças. Feliciano Pego, com alguns filhos e netos, iniciou vida nova há várias anos em uma propriedade à margem do Rio de Todos os Santos, onde o vi, e que ele espera não mais lhe será roubada. Seu irmão Tomás vive em algum lugar da província de Minas. A partir desse episódio, Mattos (2004, p.108) ressalta que “talvez a família Pego tenha sido a que tenha ganhado maior notoriedade entre os responsáveis pela política de ‘brandura’ do Regulamento das Missões, que os perseguiram e aprisionaram como ‘sedutores’ dos índios”. Todavia, a presença desses padres capuchinhos, apoiados pelo avanço de tal regulamento, se tornou cada vez mais significativa, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, quando foram direcionadas para região diversas missões para a constituição de aldeamentos de fundamentação religiosa. Embora, Mattos (2004, p. 104-105) ressalte a existência de alguns aldeamentos constituídos pelos próprios colonos, como os da família Gomes Leal, neste período, registrando aspectos significativos a respeito da utilização da mão de obra indígena nestes espaços e, ainda, a importância estratégica de sua constituição na região de Alto dos Bois: A família Gomes Leal aquartelara e ‘domesticara’ indígenas falantes do Maxacali em fuga dos constantes embates com os rivais Botocudos, utilizando sua mão de obra na abertura de fazendas da região do alto Mucuri, que ficou conhecida como Alto dos Bois – referência importante para todos os viajantes e tropeiros dos Oitocentos. Com efeito, aquelas serras divisoras das águas das bacias do Jequitinhonha e Mucuri, desde o início do século 18, ainda que considerando a precariedade dos caminhos, já se articulavam com a capital de Minas, e dali com o Rio de Janeiro e São Paulo, além de comunicar-se, através do Jequitinhonha, com o Recôncavo baiano e a cidade de Salvador. O trecho apresentado acima nos revela claramente o prestígio dessa região tanto em função da presença do aldeamento, quanto da sua própria localização estratégica no interflúvio das bacias do Mucuri e Jequitinhonha (como já pontuamos); e da própria conexão do lugar com os principais centros administrativos da época – a capital de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo. Logo, o interesse da Coroa Portuguesa por esta localidade era evidente, e em várias situações foram enviados aí inspetores do governador da Capitania de Minas Gerais, tais como D. Manuel de Portugal e Castro (1814 a 1821), a fim de verificar a condição dos aldeamentos e divisões militares da região. E desse modo que, em 1810, foi para aí direcionado o Coronel Inspetor Maximiniano de Oliveira Leite, com a função de relatar as condições encontradas na 1ª e 5ª Divisões Militares e, ainda, nas aldeias dos Tocaiós e de Alto 286 dos Bois (APM, 1810). Sobre os conflitos que ocorreram nas regiões das divisões militares, Saint-Hilaire (2000, p.211), narra uma situação, que marca, inclusive, a chegada de um grupo de índios Borun nos arredores de Minas Novas: Até o momento em que foi estabelecido o posto militar de Passanha, os Botocudos não tinham ainda aparecido nas cercanias de Alto dos Bois; mas, perseguidos pelos soldados da 5ª divisão (a de Passanha), refluíram para as Minas Novas, devastaram campos de milho e mataram alguns habitantes. Os portugueses e índios abandonaram as matas; retiraram-se em 1809, para o planalto em que está atualmente a aldeia, e lá não mais tiveram a receiar os Botocudos, que jamais atacam de frente um inimigo armado e numeroso. E foi após este acontecimento, que segundo Saint Hilaire (2000, p.211), “em 1814, deu-se mais força à pequena colônia, enviando, para protegê-la, um destacamento de trinta homens, e entregou-se o comando ao furriel João de Magalhães”, que é quem recebe o naturalista em sua visita à região no ano de 1817. Ao analisamos os documentos oficiais da Seção Colonial da Secretaria do Governo da Capitania, do APM, observamos que a referência a Alto dos Bois, enquanto quartel ou destacamento, só se dá, efetivamente, a partir desse período. Aliás, encontramos dois documentos que datam de 1815 referindo-se ao Destacamento do Alto dos Bois. O primeiro de 07 de fevereiro de 1815 trata de uma “Relação das Praças do Destacamento do Alto dos Bois, feita na Revista do Capitão Inspetor” (Figura 45). 287 Figura 45: Relação das Praças do Destacamento do Alto dos Bois (1815) FONTE: APM (1815) 288 Este documento dissemina uma série de informações importantíssimas para compreendermos quem eram os agentes da paisagem pretérita, os quais dão sentido a muitos signos da paisagem atual. Neste período, constava no quadro do destacamento um efetivo de vinte soldados, dez a menos do que aquele contingente anunciado por Saint-Hilaire em 1814, e também referenciado neste manuscrito. Dentre eles, estavam seis indígenas, em grande parte filhos de pais incógnitos, de origem da região do Fanado (oriundos dos aldeamentos da região), com idades de 20 a 30 anos, todos com nomes e sobrenomes portugueses e com data de assentamento como praças no mês de junho de 1814, data de referencia da criação do destacamento em questão. Segundo Mattos (2006, p.11) as “divisões militares eram compostas de mestiços e indígenas que, além de guiarem as expedições de guerra e bandeiras, também trabalhavam em obras públicas, sobretudo na abertura de estradas”. Uma das informações que reforça esta presença dos indígenas oriundos dos aldeamentos nos quartéis é a filiação de um deles – “Antônio GLZ [Gonçalves]” – que é atribuída à “João da Silva do termo do Fanado”. Segundo Mattos (2006, p.11-12) no relato do Ouvidor da Capitania do Porto Seguro, de janeiro de 1764, havia na região de São Mateus (Vale do Mucuri) alguns aldeamentos governados por João da Silva Guimarães, que “desceu fugido das Minas”. À época, “Sua Majestade”, havia, inclusive, oferecido a ele o perdão por possíveis crimes, caso ele estabelecesse “suas aldeias” em determinada região de conhecimento da Coroa. Há relatos da existência de mais de treze aldeias, dirigidas por João da Silva até 1780, quando este já encontrava falecido, e de um aldeamento sob o controle de seu sucessor Francisco Teixeira Alves. A presença de um filho de um diretor de aldeamento no quartel de Alto dos Bois ressalta a relação existente entre esses aldeamentos e os serviços militares prestados nos quartéis. Podemos ainda destacar, a partir da análise deste documento, a utilização da mão de obra indígena e do seu conhecimento sobre o território na abertura de estradas e caminhos entre os vales do Jequitinhonha e Mucuri, no intuito de conectar a região ao mar – empreitada iniciada já em 1811. Um dos responsáveis pela abertura desses caminhos era o Comandante Bento Lourenço, “morador do povoado de Minas Novas que incursionou de forma pioneira naquela região, indicando o caminho inicial por onde futuros expedicionários percorreram” (MATTOS, 2006, p.13). Segundo Mattos (2004, p.99), “o mesmo Bento Lourenço seria patenteado coronel de milícias, quando, conduzindo certo número de índios que vagavam mais anexo ao povoado [de Minas Novas] (...) prometendo grandezas existentes no rio Mucuri e finalmente a conclusão da catequese dos índios”. Na “Relação dos Praças de Alto dos Bois”, 289 consta também a observação de que treze soldados daquele destacamento teriam sido enviados pelo Comandante Bento Lourenço, personagem que também é citado no segundo documento de 1815 – “Carta à sua alteza real informando sobre a expedição empreendida por seu destacamento do Alto dos Bois, assim como seu regresso sem muitas novidades”, e no qual o relator Capitão Caetano José de Melo ressalta o pedido do Capitão ao Furriel Comandante do Quartel que lhe enviasse “dois índios pelo mesmo nomeados”, uma vez que este já havia lhe enviado doze/treze soldados indígenas em outra ocasião por contribuir com as forças daquela divisão. No entanto, o relator ressalta, neste documento, que irá verificar o envio dos soldados solicitados pelo Comandante Bento Lourenço, sem retirá-los do quartel, que na época da visita encontrava-se com poucos soldados, o que poderia comprometer a “segurança daquela posição” (APM, 1815a). Havia também dentre os praças deste destacamento três homens pardos (filhos de pai português e mãe negra), cuja filiação já era conhecida e que vinham da região de Alto da Piedade (atual cidade de Turmalina, presente nas cartas históricas já apresentadas anteriormente e mencionado por Saint-Hilaire no início de seu percurso para a aldeia de Alto dos Bois). A idade desses jovens variava de 16 a 22 anos e o que nos chama atenção neste quadro é que a um deles era atribuído um dos dois únicos ofícios descritos na ficha, o de alfaiate. Esta informação vai ao encontro de uma “Descrição geográfica, física e política da Capitania de Minas Gerais” elaborada por Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, em fins do século XVIII, no que concerne aos habitantes da região da Vila de N. Sra. do Bom Sucesso do Fanado, ao destacar que os filhos de europeus com africanas eram denominados de crioulos, mulatos ou pardos, aos quais caberiam os trabalhos vinculados às artes e ofícios mecânicos; já os “cabras escravos”, “filhos de mulatos negros nascidos no Brasil”, “empregar-se-ão na mineração, e lavoura das terras agrícolas” (APM, 1901, p.777). O outro ofício descrito na ficha está vinculado a um soldado branco, de 36 anos, filho de Joaquim da Cunha, cuja especialidade era de ferrador. Aos demais nove praças/soldados do destacamento não foram preenchidas muitas informações que possam ser analisadas. Outro elemento interessante que se apresenta neste documento é a observação de que alguns desses soldados estavam “em diligência para o mato”, e dentre eles, o “branco ferrador”, três indígenas e um soldado sem descrição de cor. Saint-Hilaire (2000, p.216), faz uma descrição dessas diligências dos soldados de Alto dos Bois nas matas ao redor do destacamento: De distância em distância, reservaram-se, à margem do caminho, na espessura da floresta, pequenas clareiras bem limpas, mas rodeadas de macega; um homem, escondido nessas espécies de abrigos, não poderá ser descoberto pelos passantes antes de passarem diante dele. É aí que os soldados indígenas, que fazem parte do 290 destacamento de Alto dos Bois, se metem de emboscada para atirar de espingarda sobre os Botocudos. Passamos diante de um sentinela assim postada, e finalmente, chegamos ao campo de milho, para o qual dirigíamos nosso passeio. Na extremidade do campo, na espessura da mata, estavam os militares portugueses e índios, encarregados de proteger a colheita de milho. Ali, à margem de um regato se lança no Fanado, os soldados tinham construído algumas barracas em que dormiam e preparavam os alimentos. No ano de 1816, encontramos duas correspondências oficiais que faziam referencia a Alto dos Bois nos documentos do APM: a primeira delas, datada de 06 de abril, contém uma “Informação de serviço de Joaquim José da Fonseca dizendo que ao tomar posse como Juiz, lhe passou seu antecessor uma ordem do Governador para que tirasse uma devassa do assassinato de Manuel de Souza Passos, na Fazenda Alto dos Bois”. O que nos chama atenção neste documento é a informação encontrada no título – a atribuição de Fazenda de Alto dos Bois, a qual ainda não havíamos encontrado noutros documentos oficiais (APM, 1816). Tal denominação foi ainda encontrada na “Carta Chorográfica da província de Minas Gerais” de 1863, juntamente com a denominação de outra fazenda muito importante na configuração do Aldeamento de Alto dos Bois – Fazenda de Gomes Leal. Mapa 17: Carta Chorográfica da província de Minas Gerais FONTE: BDLS (1863) A referência anterior a esta carta que encontramos do Aldeamento de Alto dos Bois foi localizada no relatório de Pedro Victor Renault, de 1836, em que ele registra a presença do Diretor Antônio Gomes Leal, e ainda discrimina as nações indígenas, que estavam presentes no local, sendo, inclusive, alguns grupos oriundos da família dos temíveis Botocudos: 291 Neste ponto achei reunidos para cima de trezentos Botocudos entre homens, mulheres e meninas, da nação NaK-Nanuks, que, sendo muitos d’elles mansos, tinham sido chamados pelos seu capitão, que hoje se entrega ao trabalho, e vive muito amigo dos brasileiros na casa de Antônio Gomes Leal (APM, 1903, p.360). Em 1841, o Aldeamento de Alto dos Bois passou a ser comandado por Cassimiro Gomes Leal (filho de Antônio Gomes Leal - filho), personagem que nessa época empreitara o reconhecimento das matas das regiões de Trindade e Norek, afluentes do rio Urupuca, juntamente com seus filhos; seus irmãos (Camilo, Antônio e Domingos); o “língua”79 Joaquim Fernandes Gomes (possivelmente um mestiço oriundo do próprio aldeamento de Alto dos Bois, filho de algum Gomes Leal com uma índia), os senhores Francisco Rodrigues da Cunha e Antônio Rodrigues da Cunha (sendo este genro de Antônio Gomes Leal – e possivelmente filhos de Justiniano Rodrigues da Cunha o Capitão do Quartel de Alto dos Bois), além de outros colonos da região; como podemos observar, no relato a seguir, que coloca em pauta essa missão: Em 1841 Cassimiro e filhos, guiados pelos índios, fizeram reconhecimento das matas da Trindade e Norek, afluentes do Urupuca. Transpondo as águas do Fanado na sua cabeceira no lugar denominando Morro dos Pereira, encontraram as águas do Ribeirão Trindade, localizando-se ali Jacinto Pereira que lhe deu o nome. Seguindo o curso d’água, a seis km. abaixo localizou-se Antônio Rodrigues da Cunha, cunhado de Cassimiro, denominando-se Fazenda da Grama, hoje povoado de Pontarate; em seguida localizou-se Camilo Gomes no córrego denominado Tomazinho, no Ribeirão S. João. Francisco Rodrigues da Cunha, por alcunha secretário atacado do Casimiro [Gomes Leal, diretor dos índios Macuni], no S. João da Serra. No São João, denominado da Mata, localizou-se Cassimiro, circundado ao norte por seu mano Antônio, e nordeste por Zeferino Rodrigues Cruz e leste por Paulo Ferreira da Cruz e seu genro o língua José Francisco Fonseca, a sudoeste. Roberto Francisco Terra e Joaquim Fernandes Gomes, prosseguindo o reconhecimento, transpuseram as águas do Noret até Pontarate, aonde localizou-se Domingos Gomes, fundando até mais tarde a fazenda da Chapada. Sobre a região de Pontarate ou Pontarat, Mattos (2004, p.118) identificou os escritos de Joaquim Silvério de Souza a respeito das visitas pastorais aí realizadas entre 1902 e 1907, “uma interessante nota acerca do surgimento do povoado de Malacacheta”, no qual consta que os terrenos doados ao patrimônio de Santa Rita pelo “índio mestiço”, Domingos Felisberto, filho de Cassimiro Gomes Leal, e alguns descrições a respeito da aldeia dos Macuni, conhecida como Pontarat, localizada na região de Alto dos Bois: A padroeira tem patrimônio doado por um índio, Domingos Felisberto (era mestiço). O documento que dá fé deste patrimônio está no arquivo eclesiástico de Capelinha. Ainda vive o índio doador. O patrimônio consta d’uns seis alqueires geométricos abrangendo o lugar do comércio até o cemitério, do cemitério em curva direita a cachoeira pelo veio do rio até a estrada do norte, e desta pela antiga estrada (na ponte) a Bocaina, seguindo a linha vertente até o mesmo cemitério. Assim nos informou o Sr. Fortunado Gonçalves Mendes. Esse senhor me disse que a palavra Malacacheta vem de Malacachis, o nome da tribo que morava neste lugar. Três 79 Tradutor de línguas indígenas. 292 aldeamentos havia no espaço de três quilômetros aqui. Malacachi é nome do capitão de índios aqui aldeados. Domingos Felisberto, sendo herdeiro de seus pais, em cujo nome o diretor (Cassimiro Gomes Leal) do aldeamento registrou em 1856 os terrenos, fez deles doação para o patrimônio de Santa Rita. Estive com este índio mestiço, já de barba branca, mas de cabelos bem negros. Facilmente se reconhece nele a origem indiana (D. Joaquim Silvério de Souza, Livro de Visita Pastoral - 1902/1907 apud MATTOS, 2004, p.118). A presença dos aldeamentos e de migrações indígenas, principalmente na região do Mucuri, foi documentada até no início do século XX. Uma das últimas referências que encontramos a respeito dos indígenas ou do aldeamento de Gomes Leal e seu sucessor Cassimiro Gomes Leal, data de 1870, quando “noventa índios sob o comando de seu avô, Pahóc”, conduzido “pelo seu pai, Félix Ramos” teriam se apresentado aos “’protetores’ dos índios residentes em Minas Novas e Trindade, respectivamente José Silvério da Costa e Cassimiro Gomes Leal” (MATTOS, 2004, p.109). Segundo a autora, no ano seguinte, estes índios teriam se direcionado para os aldeamentos do Vale do Mucuri, onde os conflitos com indígenas relatados desde os primeiros anos do quartel de Alto dos Bois ainda eram frequentes. O segundo documento do ano de 1816 por nós analisado (28 de junho de 1816), novamente corresponde a um relatório de inspeção realizada pelo Tenente Francisco Barbosa Pinto às 5ª e 7ª Divisões Militares e ao Destacamento de Alto dos Bois, no qual encontramos a seguinte informação à respeito da extração do ouro (pela primeira vez mencionada) e dos conflitos das respectivas divisões com os Botocudos: Não se tem aberto lavra alguma para a extração do ouro, e os Bárbaros Gentis da 5ª Divisão e Alto dos Bois a muito tempo que não aparecem, nem tem feito o mais pequeno dano aos Novos Colonos, e os da7ª Divisão continuam a aparecerem de paz [ilegível] cada vez mais civilizados (APM, 1816a, p.3). Além disso, o relator pontua que o destacamento de Alto dos Bois precisava de “pólvora, chumbo, remédio de Botica, principalmente aqueles da primeira necessidade, calças, inchada para capina da roça dos soldados” (APM, 1816a, p.4). A situação do contingente de praças no destacamento também é ressaltada por Saint-Hilaire (2000, p.216), quando em 1817 passava pela região: O destacamento de Alto dos Bois, originariamente composto de trinta homens, não o é atualmente (1817) senão dez, todavia esse pequeno número de soldados basta, porque estão em contínua atividade, o comandante tem grande zelo no serviço, e os Botocudos avistando alguns soldados armados de espingarda receiam, sem dúvida, que ainda existam mais. Outra informação importante que aparece nesta carta, concernente ao contexto regional, é o registro da necessidade observada pelo Tenente Francisco Barbosa (em sintonia 293 com as intenções do comandante da 7ª Divisão), de se fundar um novo quartel nessa divisão, num local denominado “Cachoeira do Inferno”, localizado entre o Quartel da Vigia e de Salto Grande, onde, segundo ele, haveria forte predisposição para a entrada de novos colonos e comerciantes, uma vez que nesta localidade já ocorria o descarregamento de canoas (APM, 1816a). A abertura de novos quartéis, principalmente, no interflúvio dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, na fronteira com a província do Espírito Santo, se deu fortemente na segunda metade do século XIX, como pudemos observar no “Mapa Geral da Província do Espírito Santo: relativo às colônias e vias de comunicação”, de Carlos Krauss, elaborado em 1866, no qual são localizados diversos novos quartéis, como Quartel das Coimbras, Quartel de Santa Cruz e a Colônia Militar de Urucu. Mapa 18: Mapa Geral da Província do Espírito Santo: relativo as colônias e vias de comunicação FONTE: BDLS (1866) Neste horizonte de discussão, vale a pena problematizar um pouco mais sobre as grandes frentes de ocupação do território das matas do leste mineiro, pelos irmãos Teófilo Benedito e Honório Esteves Otoni, os quais realizaram, durante quatro anos, diversas incursões e investigações na região no intuito de estabelecer a Companhia do Mucuri. Após uma série de negociações com os governos central do Rio de Janeiro e provincial de Ouro Preto, conseguiram, em 1851, criar uma sociedade, cujo objetivo era “promover o desenvolvimento regional através do estabelecimento de rotas comerciais que ligassem o interior da mata ao litoral”, observando-se que em contrapartida, o governo lhes concederia “isenções alfandegárias e de impostos” (MATTOS, 2004, p.106). O interesse pela região se consubstanciava principalmente pelo intenso fluxo migratório que já se direcionava para ela e ainda pelo fato da Companhia proporcionar aos “pioneiros” que já adentravam o território 294 estímulos e melhores condições para o seu estabelecimento, por meio, principalmente, da abertura de estradas e estabelecimento de colônias, como a de Urucu. Os imigrantes estrangeiros eram recrutados na Europa pela “Associação Central de Colonização para o Brasil”, sediada em Paris, e “seriam marinheiros, sapateiros, comerciantes, gente recrutada nas tavernas da Cidade de Anvers (Antuérpia), se é que não saíram muitos das prisões e calabouços e que vieram com promessas não autorizadas e impossíveis de realizar” (MATTOS, 2004, p.95). A primeira leva de imigrantes que chegou a colônia foi composta por 28 famílias portuguesas (153 pessoas oriundas da Ilha da Madeira), em 1855. A segunda leva, foi em 1858, quando chegaram 162 belgas e holandeses (MATTOS, 2004). Segundo o pesquisador holandês frei Olavo Timmers80 (1969 apud MATTOS, 2004, p.94) houve muito estranhamento desses imigrantes em relação ao “povo escuro da selva” – “um rapaz meio negro, meio índio, cuja fisionomia não despertava muita confiança”. Timmers (1969, p.178- 179 apud MATTOS, 2004, p.94) descreve um pouco de como foi a trajetória desses estrangeiros no contexto da Colônia de Urucu: Podemos imaginar um pouco a desilusão e o desânimo daqueles 164 viajantes, acabados pela viagem de semanas e semanas numa barca a vela, pelos sofrimentos no trajeto do Rio [de Janeiro] até Santa Clara, de mal em pior, na travessia da mata, a pé ou numa carroça de boi, quando chegaram a praça da Colônia [do Urucu], recebidos no quartel sem luxo, sem conforto. Sabendo-se agora completamente enganados, iludidos, sem amparo no meio da mata virgem, rodeados de soldados escuros com suas constantes precauções contra os ataques de índios ferozes. Nada, ninguém pode inspirar-lhes alguma confiança: cocheiros e companheiros pretos, chins81 exóticos, todos com uma linguagem que ninguém deles entendeu. Deviam sentir-se desterrados, perdidos, condenados à morte. E era apenas o prelúdio da tragédia, da qual uns meses depois Lallemant foi testemunha [uma epidemia de febre tifoide que dizimou a população da Colônia]. A Companhia do Mucuri permaneceu sob o comando de Teófilo Otoni até 1861, quando sua administração passou para o controle do governo imperial. Essas frentes de expansão e ocupação dos territórios do Jequitinhonha e Mucuri já eram relatadas desde 1820, como podemos observar na carta do Sargento-Mor Joaquim José da Fonseca de 15 de setembro de 1820, na qual ele “informa estar auxiliando a construção da estrada do Alto dos Bois ao Rio da Urupuca, e deseja muito continuar até o término da construção” (APM, 1820, 80 TIMMERS, O. O Mucuri e o Nordeste Mineiro no passado e seu desenvolvimento segundo documentos e notícias recolhidas por Frei Olavo Timmers OFM em lembrança do 100 aniversário de Teófilo Benedito Ottoni. 1869 - 17 de Outubro de 1969. Teófilo Otoni. Datilografado com emendas manuscritas. 535 fls. 81 Empregados chineses da Companhia do Mucuri, que com o término do contrato retornaram ao Rio de Janeiro, e até mesmo a sua terra natal. Alguns, entretanto, se estabeleceram na região, casaram-se com os holandeses da Colônia, e configuraram famílias sino-holandesas que se especializaram em tinturaria de roupa de luto. Curiosamente, o pigmento utilizado era de conhecimento etnobotânico indígena – nativo (MATTOS, 2004). 295 p.1). Quando escreveu sobre Alto dos Bois em 1832, o viajante Johann Pohl, relatou que os militares, juntamente com os indígenas, ainda estavam nessa missão na região do Rio Urupuca, onde, além de abrirem os caminhos para estabelecer ligação com a Capitania do Espírito Santo e com o rio Doce, dedicavam-se ainda ao plantio de milho e à proteção da empreitada aos ataques dos botocudos ainda muito hostis nesta porção do território (POHL, 1976, p.361). A cartografia histórica analisada, no período de 1826 a 1929 nos indicou ainda – a partir da presença ou ausência de alguns elementos constitutivos das paisagens –, qual era a dinâmica que os governos da Capitania de Minas Gerais buscavam implementar nesses territórios. No Mapa 19, a localidade de Alto dos Bois é representada como Capella ou Povoado, e apresenta-se cercado de diversas outras fazendas ou sítios conectados por distintos caminhos já demarcados na cartografia oficial. Observa-se que a região do Termo de Minas Novas tornava-se, então, cada vez mais povoada, e constavam cada vez menos referências às populações indígenas, o que se observa principalmente nos mapas de 1826, 1849, 1855 e 1862. Mapa 19: Carta topográfica e administrativa da província de Minas Geraes FONTE: BDLS (1849) 296 Outra referência espacial importante apresentada por este mapa é a Fazenda Conceição, onde segundo Mattos (2004, p.100), no ano de 1836, ao realizar uma expedição na região no intuito de instalar um presídio, o francês Pierre Victor Renault teve notícias de que o seu proprietário – “o quartel-mestre Antônio José Coelho, havia aberto à sua custa, o caminho para Mucuri, por causa das excursões dos índios que devastaram o seu gado na raia do povoado”. Este trecho revela as relações ainda hostis que se mantinham entre os colonos da região do termo de Minas Novas e os índios oriundos, principalmente, da região do Mucuri. Ainda segundo a autora, este caminho já havia sido traçado, inclusive, em 1816, por Bento Lourenço e abandonado em decorrência do temor que estes “desbravadores”82 ainda tinham em relação aos indígenas do Vale do Mucuri. A presença desses povos é ainda ressaltada na “Carta Topográphica do Mucury” (Mapa 19), produzida por Herculano Ferreira Pena, em 1859, na qual há diversas referências a respeito da localização das aldeias (Aldea Pote, Distrito da Tribu Pojichá, Distrito das Tribus Potin, Neckdeck, Ciporock, Confederação dos Nacknenuks, Tribus desconhecidas e Distrito da Tribu de Bakues). No recorte analisado, podemos observar ainda duas referências de aldeamentos - uma direta (Aldeamento dos Chipoxos) e outra indireta (Distrito das Tribus de Jão Imma. Cazimiro e Capitão Maciel). Mapa 20: Carta Topográphica do Mucury FONTE: BDLS (1859) 82 Reconhecemos o teor, evidentemente, etnocêntrico do termo. No entanto, ainda hoje ele é utilizado pela população local quando vai se referir a este processo histórico da região. 297 Enquanto na região do Jequitinhonha, principalmente nos arredores do Termo de Minas Novas, o território apresentava-se cada vez mais marcado pela presença de povoados e fazendas dos novos colonos, a região do Mucuri (limítrofe ao Alto dos Bois – representada no mapa 20) encontrava-se ainda em processo de avanço da fronteira e abertura de caminhos que pudessem conectar as regiões do Jequitinhonha e Mucuri à costa atlântica do continente. Um elemento crucial neste processo foi a construção da Estrada de Santa Clara - “a primeira estrada de rodagem construída no interior do Brasil”, concluída em 1857 (SANTOS; BARROSO, 2017, p.42). Responsável pela conexão entre Minas Novas e outras localidades, este importante caminho passava por Alto dos Bois, pelo entreposto comercial de Filadélfia (criado em 1853) e o porto de Santa Clara (como pode ser observado no Mapa 20). Segundo Santos & Barroso (2017, p.50), transitavam por ela “mais de quarenta carros particulares puxados por cavalos, duzentos carros de bois e quatrocentos lotes de burros”. O transporte de mercadorias era realizado, a princípio, predominantemente pela Companhia do Mucuri, mas também pelos tropeiros, que circulavam de maneira mais eficiente nos caminhos mais precários entre Filadélfia e o Alto Jequitinhonha. Ressalta-se que, apesar de sua vocação inicial para o transporte de mercadorias, a estrada desempenhou um papel de maior destaque no transporte de bagagens e dos familiares dos colonos da região (SANTOS; BARROSO, 2017). Filadélfia configurou-se ainda como um estratégico eixo político e populacional, atraindo a população regional (90% da população desta localidade em 1872 era originária do Vale do Jequitinhonha e Mucuri) e ainda mão de obra estrangeira (SANTOS; BARROSO, 2017). Santos & Barroso (2017, p.36) destacam também que neste mesmo ano “a população de cativos africanos e crioulos correspondia a 10% da população do Vale do Mucuri”, sendo a maior parte deles oriundos da região de Valença (RJ), tendo sido trazidos pelo fazendeiro Araújo Maia, para sua fazenda Monte Cristo, em Filadélfia. Assim, a carta topográfica do Mucuri (Mapa 20) representa bem a reflexão de Mattos (2004, p.116-117) quando se refere às estratégias administrativas do Governo Imperial para esta região, principalmente, a partir de meados do século XIX – com o Regulamento da Catequese e Civilização dos Índios83 (1845) e a Lei de Terras84 (1850): Na província de Minas Gerais, esforços oficiais para esta contabilização [da população indígena] apresentaram-se no decorrer do processo de valorização da terra que gradualmente ocupou a agendo dos administradores, evidenciando o 83 Atribuía exclusivamente aos missionários o ensino da catequese e “civilização” dos índios no interior dos aldeamentos. 84 Estabelecia a compra como única forma de acesso à terra e abolia, em definitivo, o regime das sesmarias. 298 ‘controle’ do indígena como ‘fator da valorização’. Conhecer os índios e administrar os conflitos de terra transformava-se definitivamente em preocupação governamental, uma vez que essa ‘valorização’ implicava em captação de recursos para os cofres públicos. O investimento no setor da ‘catequese indígena’, ainda que significasse consideráveis dispêndios por parte do governo, a partir de sua ‘racionalização’ e ‘moralização’, observada principalmente no final da década de 1860, parece ter rendido, quase imediatamente, retorno para o governo, principalmente através da venda de terras devolutas e ‘limpas’ de indígenas, que, uma vez classificadas e contabilizadas, recebiam um espaço bem delimitado, cujas destinações, na maioria das vezes, tiveram fins funestos, como podemos deduzir de alguns casos específicos. E neste contexto, a realidade que se configurava era de “’desinfestação’ das terras – seja de índios, seja das próprias matas”, uma vez que nesta região do interflúvio entre os rios Doce, Jequitinhonha e Mucuri (nas proximidades do Alto dos Bois) os conquistadores sentiam a necessidade de impulsionar a colonização e a “domesticação”85 dos indígenas, como bem destaca Mattos (2004, p.118-119): [...] ao mesmo tempo em que liberava o território para as atividades agrícolas economicamente valorizadas e adequadas para a solidificação das elites regionais, parece ter significado, em si mesma, a liberação de uma mão de obra absurdamente disponível – uma vez que a economia monetária nada significava para os nativos, afastados dos povoados e, portanto, distantes dos regulamentos sobre a ética pela qual o projeto de “civilização” devia ser pautado. Vale ressaltar que as ações da própria Companhia do Mucuri e o estabelecimento dos aldeamentos dirigidos por Capuchinhos, cada vez mais frequentes na região, contribuíram para o “recrudescimento de violências entre colonos e índios”, de forma que estes últimos se encontravam em “estado absoluto de escravidão” (MATTOS, 2004, p.118). A autora ainda ressalta que o direcionamento desses indígenas para estes “aldeamentos oficiais” propiciou a formação de uma espécie de “comando paralelo”, por parte dos colonos (antigos diretores de aldeamentos, inclusive, como os descendentes de Antônio Gomes Leal – responsáveis pelo aldeamento de Alto dos Bois), que juntamente com alguns “línguas” (mestiços que falavam diversas línguas indígenas) passaram, não apenas a escravizar os indígenas em suas fazendas sem a autorização do governo provincial, como também a roubar suas aldeias. Mattos (2004, p.114) narra uma dessas histórias, protagonizadas, inclusive, pelos descendentes dos Gomes Leal em ofício enviado ao Diretor Geral dos Índios da Província em 1870: Camilo Gomes Leal e seu irmão Domingos Gomes Leal, unidos a um homem de perversos costumes e perito mestre da língua dos índios, de nome Joaquim Fernandes, com inteira infração da lei de terras, introduziram-se na mata e tomaram posição nas imediações do grande aldeamento do Pontrat. Escravizando 85 Sobre os termos desinfestação e domesticação utilizados pela autora nas citações apresentadas gostaríamos de ressaltar que reconhecemos o caráter extremamente colonialista e etnocêntrico dos mesmos. Todavia, acreditamos ser importante trazê-los a tona nesta discussão, uma vez que os mesmos representavam as concepções empregadas na época. 299 completamente os índios, deles se tem servido não só de seus trabalhos rústicos, como ainda para instrumento de seus crimes. Em resposta ao “estado de insubordinação” que se estabelecia a partir da convivência dos indígenas fora dos aldeamentos com os “caboclos pioneiros”, o Diretor Geral dos Índios, inclusive, enviou orientação aos colonos para continuarem utilizando o trabalho indígena, desde fosse atribuído ao mesmo a diária de 320 reis (MATTOS, 2004). Teófilo Otoni, que se apresentava como “defensor” e “protetor” dos índios dirigia fortes críticas aos colonos que foram os primeiros administradores dos índios em seus relatórios. A partir de tais colocações, Timmers (1969, p.35 apud MATTOS, 2004, p.126) faz, a propósito, os seguintes apontamentos: [...] a catequização feita por Antônio Gomes Leal [o diretor dos índios de Alto dos Bois] e outros “cristãos” recebe de Otoni com sua “filantropia pura” pouca apreciação. Só a Companhia e seu diretor procederam com verdadeira compaixão e desinteressada humanidade no tratamento dos aborígenes da zona do Mucuri; tudo o que outros, fazendeiros ou comandantes, fizeram era bruto egoísmo e desumano abuso dos coitados dos ferozes-por-necessidade. Até os esfaimados exterminadores da tribo dos Malalis, aqueles que “quando vencedores os devoravam” seriam menos culpáveis do que os “espoliadores chamados Cristãos” com a chibata, o tronco e a palmatória. Toda a selvageria dos índios era compreensível e perdoável: a culpa estava no lado dos civilizadores “cristãos”. No intuito de destacar a importância dos novos atores desta paisagem conflituosa em construção, as políticas provinciais valorizavam as iniciativas de colonização por parte de colonos estrangeiros, vinculados inicialmente à presença da Companhia do Mucuri e da construção de importantes estradas para transporte de mercadorias e pessoas. Embora, o insucesso desses processos ainda, na virada dos séculos XIX para o XX estivesse vinculada aos ataques indígenas nas estradas, como ressaltam Santos & Barroso (2017, p.52): “o trajeto na Estrada de Santa Clara era povoado de medo, quer de ataques indígenas, quer das doenças. Era uma prática comum procurar usar as vias da Santa Clara de noite”. As preocupações vinculadas às condições de saúde e de insumos disponíveis nos pontos estratégicos desses territórios em disputa, como Alto dos Bois, foram também encontradas nos relatórios de engenheiros envolvidos nas construções de estradas tanto no Jequitinhonha como no Vale do Mucuri. Dentre as correspondências oficiais que fazem referência ao Alto dos Bois, encontramos ainda, no ano de 1821, dois documentos que retratam as condições políticas e sanitárias da região. O primeiro remete à baixa de um soldado que por estar portando o “mal de Lázaro”, ou lepra, o qual envia um documento ao presidente da província informando da necessidade de sua baixa e substituição por outro soldado que o faz voluntariamente (APM, 1821). Já o segundo documento refere-se a uma “representação que fazem os proprietários e 300 colonos das terras tomadias nas imediações do quartel do Alto dos Bois, pedindo a exoneração do empregado ali inútil, visto que o mesmo não toma nenhuma atitude com relação aos índios Botocudos”, referindo-se ao Capitão da guarda – Joaquim Manoel Barbosa. Dentre os colonos que fazem esta solicitação, encontram-se alguns representantes da família Gomes Leal – José Gomes Leal e Antônio Gomes Leal – e outros ainda cujas referências aparecem pela primeira vez nos documentos analisados: Francisco Ferreira Coelho; Antônio José da Costa; Antônio Soares Mendonça; Jerônimo Ferreira e Antônio José Coelho – todos colonos naquela região (APM, 1821a, p.1). E foi ao analisar os documentos que se referiam a tal representação que encontramos a referência a Justiniano Roiz da Cunha, como um soldado envido nessas solicitações e o qual, segundo os moradores do casarão, teria sido o primeiro português de sua linhagem, representando, assim, o eixo de conexão entre a fase do Quartel e o período da Fazenda de Alto dos Bois (sob o comando dos Roiz da Cunha), ao qual se intercepta ainda o importante papel da construção da Estrada de Ferro Bahia e Minas (EFBM), inaugurada em 1881. Este resgate da cartografia histórica que nos conduz à busca sistemática por documentos, mapas, cartas e referências que mencionassem a localidade de Alto dos Bois, seja enquanto aldeia, aldeamento ou quartel, nos levou a compreender a trama geohistórica que envolve esse importante sítio histórico-geográfico cujas memórias, vivências e relatos históricos mantém-se vivos, principalmente, pela importância da materialidade dos processos atribuídos à existência do casarão; o qual, entre suas paredes de pau-a-pique, janelas de encaixe e telhas de cocha, perpetuaram, por séculos, toda uma imaterialidade de histórias preservadas pela oralidade ou pelos “tesouros” guardados, a sete chaves, nos baús de D. Lia (a proprietária do Casarão). Posto isso, entre histórias e resistências do processo de configuração dessa paisagem cultural de Alto dos Bois, em tempos de aldeia, aldeamento e quartel, revelam-se elementos importantes para a análise/(re)interpretação das paisagens culturais locais como a diversidade de povos indígenas, que buscam sua sobrevivência física e cultural, entremeados a emblemáticas figuras político-sociais deste contexto territorial como os “Gomes Leal”, os “Pego”, os coronéis e soldados do Alto dos Bois, que se aglutinaram para a formação social e territorial deste recorte regional, a partir da miscigenação de negros, índios e portugueses. Todos esses processos foram narrados, descritos e evidenciados por relatos de viajantes naturalistas; pelas correspondências da Coroa portuguesa, ou ainda, demarcados 301 espacialmente na cartografia histórica da região. E é entre essas narrativas e caminhos – ou descaminhos –, que iremos traçar, a partir desse momento, a narrativa do Alto dos Bois, enquanto a importante “Fazenda dos Roiz da Cunha” (no século XX), ressaltada com um marco da paisagem cultural, narrada pela memória viva dos moradores da região de Alto dos Bois – incluindo-se nessas percepções as comunidades do entorno que configuram suas paisagens culturais, a partir da concepção do espaço regional enquanto espaço vivido. 6.2. Do Quartel a Fazenda: o papel da tradição familiar na manutenção e preservação da memória das Paisagens Culturais de Alto dos Bois Ao configurar-se como uma “região espaço vivido”, na perspectiva de Frémont (1980), a paisagem cultural de Alto dos Bois nos revela distintas concepções de mundos vivenciadas por diversos sujeitos que se constituíram como peças fundamentais na consolidação de sua espacialidade. O que o Alto dos Bois representa, hoje, para a população local e regional, perpassa por muitos desses processos que advém do século XVIII e XIX, como apresentamos no subcapítulo anterior. A região de Alto dos Bois, que integrava o quartel, as aldeias, os aldeamentos, as fazendas dos primeiros colonos, o destacamento militar, os conflitos entre indígenas e portugueses, a abertura das estradas, dentre outros processos já destacados, desvela, a partir desses lugares e representações, a formação de suas paisagens culturais. Assim, como ressalta Frémont (1980, p. 167-168), a região: Integra lugares vividos e espaços sociais como um mínimo de coerência e de especificidade, que fazem dela um conjunto com uma estrutura própria (a combinação regional), e que a distinguem por certas apresentações na percepção dos habitantes ou dos estranhos (as imagens regionais). A região é menos nitidamente conhecida e percepcionada do que os lugares do quotidiano ou os espaços sociais da familiaridade. Mas na organização do espaço-tempo vivido, constitui um invólucro essencial antes do acesso a entidades muito mais abstratas. Dialogando com tais concepções, partimos da análise deste “invólucro” regional com auxílio da cartografia histórica e da etnografia dos documentos, compreendendo essa “combinação regional”, que era atribuída a Alto dos Bois, para agora dedicarmo-nos ao estudo dos “lugares do quotidiano” ou dos “espaços sociais da familiaridade”, que se manifestam a partir da história e geograficidade que representam o Casarão de Alto dos Bois e a família “Roiz da Cunha” na configuração dessa paisagem cultural. Pois, como bem destaca Claval (2002, p.23), “falar de regiões é falar de realidades sociais já existentes”, da “significação do espaço para cada indivíduo”, da “imaginação geográfica”, potencializadas a 302 partir da construção das categorias regionais, como é o Alto dos Bois. Nesse sentido, ainda segundo este autor: A paisagem não se apresenta tão-somente como um reflexo do funcionamento passado ou presente da sociedade. As relações emocionais entre a paisagem e o observador são analisadas. O papel da paisagem nas estratégias de poder e de dominação é explorado, a significação da paisagem na construção ou na preservação das identidades é ressaltada (CLAVAL, 2002, p.26). E é no intuito de compreender tais significações da paisagem do “Casarão de Alto dos Bois” no imaginário e na construção das identidades locais, que construiremos as discussões expostas aqui, a partir das paisagens da memória e das lembranças sociais desses grupos, que lhes atribui, por meio dessa memória coletiva, um sentimento de pertencimento a esta região em tempos do auge produtivo da Fazenda de Alto dos Bois. E o elo principal que nos proporcionou essa conexão entre tempos e espacialidades do Quartel a Fazenda, foi justamente a memória de D. Lia (atual herdeira do Casarão) que, a partir da reconstrução genealógica de sua família, nos revelou um importante nome dessa história – Justiniano Roiz da Cunha. É... eu sou da quinta geração... o meu tataravô é quem ele falou aí... Justiniano Rodrigues da Cunha. Foi passando pro bisavô... avô... pai, mãe e agora estamos nós aqui... eu tenho vontade de ficar aí para sempre, né, e não deixar cair nada, acabar, que já teve muita coisa bonita (Entrevista concedida por D. Lia, Alto dos Bois, junho de 2012). Além disso, encontramos ainda o registro de Justiniano Roiz da Cunha no título de eleitor de um de seus filhos – Pedro Rodrigues da Cunha (encontrado no arquivo pessoal de D. Lia). Descobrimos também referência a Justiniano em quatro correspondências oficiais disponíveis no APM no período de 1824 a 1826, que nos revelam um pouco de sua trajetória antes de chegar ao Alto dos Bois. Ao analisar tais documentos, um dos primeiros questionamentos que nos apresentamos foi à respeito deste sobrenome ROIZ, e ao realizar um curso de paleografia histórica, encontramos no livro - “Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX” - a referência de Roiz, abreviatura que, segundo a referida obra, tratava-se do sobrenome Rodrigues (FLEXOR, 2008, p.366). Outras abreviaturas foram também encontradas para este sobrenome com pequenas alterações, como pode ser observado na Tabela 12, apresentada abaixo: 303 Tabela 12: Abreviaturas para o Sobrenome Rodrigues Séculos XVI - XVII Séculos XVII - XVIII Séculos XVIII - XIX RoTz - Rodrigues (16-17) Rõz - Rodrigues (16-17) Ruz - Rodrigues (16-17) Roiz - Rodrigues (16-19) Rõiz - Rodrigues (16-19) Roiz - Rodrigues (16-19) Roiz' - Rodrigues (16-19) Roiz" - Rodrigues (16-19) Roz - Rodrigues (16-19) Roys - Rodrigues (16-19) Roys - Rodrigues (17) Ruiz - Rodrigues (17) Ruiz - Rodrigues (17) Ruiz - Rodrigues (17) Rroiz - Rodrigues (17) Rois - Rodrigues (18) Rois' - Rodrigues (18) Roiz - Rodrigues (18) Ros - Rodrigues (18) Roz' - Rodrigues (18) Roz - Rodrigues (18) Rs - Rodrigues (18) Rzs - Rodrigues (18) Rois - Rodrigues (18-19) Roiz - Rodrigues (18-19) Roriz - Rodrigues (18-19) Roz - Rodrigues (18-19) Rõz - Rodrigues (18-19) Roz" - Rodrigues (18-19) Rz - Rodrigues (18-19) Rx - Rodrigues (18-19) Roizs - Rodrigues (19) Ro'z - Rodrigues (19) Rozs - Rodrigues (19) Ruiz - Rodrigues (19) Fonte: FLEXOR (2008, p.366-367). A partir de tal constatação, passamos a procurar pelos documentos que apresentassem tanto o sobrenome Rodrigues como Roiz. A importância desse sobrenome para a família e, ainda segundo a percepção dos moradores de Alto dos Bois, é marcada pela presença de um carimbo de madeira, que pertenceu a um dos filhos de Justiniano, o Sr. Pedro Roiz da Cunha, no qual consta a abreviatura PEROIZC, como pode ser observado na Figura 46. Figura 46: Carimbo de Madeira pertencente a Pedro Roiz da Cunha Foto: Silva (2016) Justiniano Roiz da Cunha era um Sargento Comandante de uma das Divisões Militares do Jequitinhonha. Segundo Resende (2005, p.3), ele teria sido designado para comandar a 5ª Divisão, no Suaçuí Grande, por ter sido “considerado o único capaz” de realizar tal missão no território ainda dominado pelos índios Botocudos, na entrada dos sertões do Mucuri. Segundo a autora, esta afirmação remete-se ao fato dele “ter sido ‘criado entre os índios’”, e dessa forma, dominar “sem igual, o idioma do botocudo” (RESENDE, 2005, p.3). Tal citação nos leva a inferir uma possível miscigenação de Justiniano, que poderia ser, na verdade, um filho de português com uma índia da família Borun, o que 304 justificaria seu domínio do idioma. O fato é que Justiniano era uma importante personalidade na configuração militar dessa região de fronteira entre os vales do Jequitinhonha e Mucuri, onde iniciara suas atividades de autoridade, correspondendo-se diversas vezes, inclusive, com o Diretor das Divisões Militares da Comarca de Minas Gerais. A primeira correspondência que encontramos no APM data de primeiro de setembro de 1824, uma carta enviada ao “Senhor Sargento Justiniano Roiz da Cunha – Comandante da 7ª Divisão” pelo Sr. Diretor Guido Tomas Marlière. O conteúdo desta correspondência nos revela diversas relações e dinâmicas sociais presentes nesses ambientes no período em questão. A primeira situação apresentada trata-se de um esclarecimento a uma ocasião em que os soldados do destacamento de Justiniano, teriam se dirigido à Cidade Imperial de Ouro Preto para fazer queixas a seu respeito, relatando que o mesmo havia os injustiçado e tratado com desrespeito: [...] vieram fazer queixa de poucos favores ao seu crédito, dizendo (em nome de toda Divisão) que vossa mercê os vexava por via de um europeu por nome Manoel Joaquim, umas mulheres a quem vossa mercê é afeto, e até uma escrava: como, porém, o excelentíssimo senhor Marechal, nos remeto já castigados não tem que preceder mais a este respeito (APM, 1824, p.472). Outra situação relatada foi a de transferência de soldados de seu destacamento para a divisão de Setúbal. Esse trânsito dos soldados era muito comum entre os quartéis, de acordo com a demanda de defesa de cada uma das regiões, ou até mesmo, a partir da solicitação de alguns grupos de colonos que pudessem se sentir desprotegidos frente aos ataques dos botocudos. Eram muito comuns, como iremos analisar a seguir, estes pedidos ou “abaixo assinados” de colonos solicitando a presença mais efetiva dos destacamentos em defesa de suas terras. Encontramos também alguns relatos de furtos por parte dos soldados nesta correspondência em questão e em outra (que data de 10 de março de 1825). Na primeira há o relato do roubo referente a todo o pagamento do destacamento por um militar, que havia sido enviado por Justiniano, sendo solicitado, ao sargento, que realizasse a devida punição do meliante, como podemos observar no trecho destacado abaixo: Pelo futuro tenha vós mercê, em seu sucessor, mais cuidado na escolha dos Soldados que vem receber o Pagamento além de não haver continuamente roubos nos soldos como os já acontecidos; e nunca suceda repetição deste horrendo crime sem se proceder a prisão, e castigos do delinquente, dando-lhe logo parte de assim o haver executado, e conservando ali o preso em uma corrente a pão e água até segunda determinação minha. No entanto desconte aos que devem dos furtos que fizeram todos os seus vencimentos, exceto o rancho, e fardamentos que estiverem devendo (APM, 1824, p.472). 305 Na segunda correspondência, também referente à região de Alto dos Bois, trata-se de um roubo de um cavalo feito por dois soldados da Divisão, os quais são denunciados por vendê-lo ainda a viúva, aproveitando-se de sua fragilidade, e aos quais é solicitada a seguinte providência: [...] Vossa Majestade mandará logo prender a ambos, e castigar na frente da Divisão formada, por dois cabos - a saber: o dito Clemente da Silva Souto com 100 varadas fortemente aplicadas, e ao seu irmão Alexandre 50. – E pagarão ambos os ditos 12$ reis a referida viúva por inteiro, tirando o dinheiro do rancho, e descontos para fardamentos, e depois de 24 horas de prisão os soltará: advertindo a todos que, semelhante castigo levará todo e qualquer soldado que se fizer indigno deste nome, perpetrando, como fazem alguns, roubos de cavalos, e outros animais domésticos dos lugares por onde transitam, e que me envergonho de ser chefe de semelhante indignos da honra e distintivo militar. – Vossa Majestade me dará parte de o haver cumprido inteiramente e lido esta na frente da Divisão reunida (APM, 1825, p.583). Aqui, vale ressaltar uma informação importante, já mencionada no subcapítulo anterior, referente à presença de índios e negros dentre os Praças dos destacamentos. Ao analisarmos os castigos que eram atribuídos a estes soldados, tais como: a retirada da alimentação, “varadas fortemente aplicadas” e humilhação frente aos demais; observamos que se tratava de práticas fortemente vinculadas ao contexto da escravidão, conjuntura esta fortemente vinculada a estas paisagens pretéritas do período dos quartéis militares nos sertões de Minas Gerais, e não apenas nos contextos das fazendas, como é enfaticamente analisado pela historiografia oitocentista. Outra informação de extrema importância para a compreensão dessa paisagem cultural, que se configurava no âmbito dos quartéis, é a presença das roças dos índios ou soldados “índios”, já descritas por diversos viajantes naturalistas que passaram pela região, e cuja importância também é ressaltada em tais documentos analisados. Nesta correspondência ao Justiniano, Guido Marlière deixa clara sua preocupação e interesse em saber como estava o cultivo das roças gerenciadas pelo sargento: Enquanto a roça dos índios, que vós mercê diz principiara na Barra do Rubim louvarei muito que a continue este ano até onde poder chegar ficando na inteligência vós mercê e os seus sucessores no comando de que este artigo pelo futuro é privativamente da escolha e inspeção do Regente Vigário dessa colônia e Diretor dos mesmos índios aprovado pelo Excelentíssimo Governador (APM, 1824, p.472). O trabalho nas lavouras era de extrema importância neste entorno dos quartéis, tanto no intuito de fornecer mantimentos para os Praças, comandantes e seus familiares, como no próprio papel de “civilização” dos indígenas que a eles se agregavam, seja por meio de grupos que se aproximavam em vias de proteção, ou daqueles que eram presos e forçados aos trabalhos nas cadeias dos quartéis, onde também eram “catequizados”. Assim, Guido Marlière, sob a ordem do Governador da província, determinou que todos os soldados da 306 divisão de Justiniano, com exceção dos “indispensáveis para o Imperial Serviço”, deveriam ser “empregados em diante com a maior cordialidade e zelo a feitura de roças, e mais edifícios necessários para hospedar e cristianizar aos mesmos índios” (APM, 1824, p.472). E, para cada soldado que se dedicasse a esta “feitura das roças” seria paga a gratificação de 40 reis, a qual deveria ainda ser registrada e referendada pelos mesmos em formulário de provimentos encaminhado juntamente com os pagamentos despendidos pelo Governo Imperial. Além disso, as ferramentas utilizadas pelos mesmos (indígenas e soldados), tais como facas e machados, deveriam ainda ser marcadas com a inicial “I”, no intuito de se evitar possíveis furtos de colonos do entorno, os quais deveriam ser punidos, caso “se encontrassem com coisas furtadas à Fazenda Pública” (APM, 1824, p.473). Esta ordem foi ainda corroborada na segunda carta, de 10 de setembro de 1824, na qual, o mesmo Guido Marilère, reforça a orientação de se gratificar com 40 reis os Praças da 7ª Divisão “que se empregarem na fábrica de roças” (APM, 1824a, p.485). Os conflitos dos interesses imperiais com os colonos da região se davam ainda por meio da compra ou posse de terras, por meio de atravessadores, sem o consentimento, muitas vezes, do presidente da província. A este respeito, temos o caso mencionado nesta primeira correspondência, de um mestiço indígena - Capitão Ignácio Gonçalves de Abreu -, que havia vendido a alguns colonos terras pertencentes aos índios Maxakali, aos quais fora determinada a devolução dos terrenos, juntamente aos possíveis colonos que já estavam na terra atuando em sua “catequização”. Ao analisar esta primeira correspondência, nos foi possível decifrar uma série de signos e significados que configuraram essas paisagens culturais da região de Alto dos Bois. Neste contexto, do século XIX, são estes cenários de conflitos de interesses, encontros e desencontros entre soldados, indígenas, colonos, pardos, comandantes e de um governo imperial, que Alto dos Bois se revela para além dos limites de um quartel, destacando-se enquanto uma região, na qual entoam modos de vida e vivências muitos singulares deste contato intenso entre os diversos atores já discriminados. Esta constatação pode ser reforçada ainda a partir do seguinte trecho encontrado em outra correspondência (de 25 de março de 1825), na qual o Comandante de outro quartel, relata alguns feitos do Sr. Justiniano na região de Alto dos Bois: “estendeu-se consideravelmente a sua Colônia do Alto dos Bois até o Suaçuí Grande: deo-se-lhes mais uma guarda de 10 homens nas cabeceiras do Sapé e Mucuri”. Sobre essa atuação de seu tataravô, D. Lia ressalta que “[...] meu tataravô que pedia os soldado pra vim, né, lá de Araçuaí, nessa época, que os índio tava atacando aí, já era meu 307 tataravô que morava aqui” (D. Lia, Alto dos Bois, junho de 2012). Neste contexto, esta região é tratada então como uma colônia, inserindo-se, pois, nesta mesma paisagem, todos os signos e significados desta espacialidade em sua materialidade ou imaterialidade (relações de poder, subserviência, quartéis, lavouras, soldados, indígenas e comandantes), como descrita e analisada nos parágrafos anteriores, quando nos dedicamos à compreensão da primeira correspondência de Guido Marlière ao Sargento Justiniano. Outra narrativa de extrema importância que versa sobre Justiniano Roiz da Cunha encontra-se presente nesta correspondência de 25 de março de 1824, encaminhada ao Governo Imperial por Guido Marlière, a título de “Informação”. O fato se inicia quando Justiniano (que era da 6ª Divisão) é direcionado para a 7ª Divisão a fim de cobrir a ausência do Cadete Sargento Comandante Antônio Roiz da Cunha, que necessitou dirigir-se a Cidade Imperial para cuidar da saúde. Neste período, Justiniano realizou alguns feitos na região, como a limpeza do caminho entre São Miguel e Solto Grande, juntamente com os soldados desta divisão, o que muito agradou aos colonos da região, que passaram a atribuir a ele agrado e confiança. Justiniano, contou aos colonos ainda a respeito das roças de mantimentos que estava desenvolvendo na região de Rubim, o que na opinião de Marlière, demonstra que “além do mesmo Justiniano enfeitar-se com as penas alheias, tinha prometido aos suplicantes abundantes socorros, a custa de quem? Do Estado; e prejuízo dos índios” (APM, 1825a, p.500-501). Esta fala de Marlière ressalta a indignação do mesmo, frente ao abaixo assinado, elaborado pelos Colonos da 7ª Divisão, solicitando a substituição do Comandante Antônio Roiz da Cunha pelo Sargento Justiniano, que havia lhes relatado diversas benfeitorias que teria feito em sua divisão de origem. No intuito de compreender a razão desta solicitação, Marlière realizou uma investigação a respeito de Justiniano, descobrindo suas ações nas duas divisões a fim de consolidar seus planos de ser destinado a esta outra divisão. Dentre elas, ainda na 7ª Divisão (Quartel de Alto dos Bois), Justiniano, com o objetivo de motivar o abaixo assinado, distribuiu entre os colonos muitas cartas de empenhos, as quais o Diretor Marlière teve acesso para sua constatação. Descobriu-se ainda que na 5ª Divisão (Quartel de São Miguel) ele havia comprado muitas fazendas e casas, por uma alta quantia, as quais foram adquiridas por meio de extorsões que realizava na região, dentre as quais a do Capitão Luiz de Souza, que foi obrigado a vender as cabeças de gado da sua família, que eram o sustento de duas de suas filhas, já viúvas, levando a família a passar dificuldades em decorrência desta situação. Além disso, a respeito dos soldados que foram a Ouro Preto reclamar sobre sua condição de humilhação vivenciada no quartel (exposta na primeira carta analisada), 308 descobriu-se que, possivelmente,e tenham sido realmente injuriados, pois a mulata que os ameaçava, foi alforriada por Justiniano por 200 reis, e vivia conjugalmente com o mesmo, o que era tido pelos moradores do Arraial de São Miguel e familiares como um verdadeiro escândalo. Talvez tenha sido até por isto, que Justiniano tenha realizado toda essa “trama” para mudar de Divisão. Assim, mediante tais constatações Marlière dá o seguinte parecer: Por onde concluo que este Cavaleiro de Indústria sendo amigo falso, o pai indigno não pode com proveito do Estado ser Comandante de uma Divisão sem correr-se o risco dele enganar mais gente a sombra de semelhante Comando e usar infalivelmente debaixo de outro pretexto de reações contra os soldados, que contra ele requererão. Que os suplicantes devem (os ofendidos) requerer a bem da sua justiça contra o comandante atual para então Vossa Excelência como Delegado de Sua Majestade Imperial fazer a justiça que as provas exigirem. O mais seria injustiça. Todo o militar honrado (...) sacrifica o seu sangue, e metade da sua liberdade a Pátria, faz tudo para o Povo, e mata pelo povo. É o que posso informar a Vossa Excelência a quem Deus Guarde por muitos anos. Quartel Central do Retiro em 24 de março de 1825 (APM, 1825a, p.502). Contudo, apesar do contexto exposto acima, não nos cabe aqui fazer qualquer tipo de juízo à respeito das informações explicitadas por Marlière sobre as condutas de Justiniano Roiz da Cunha, o que buscamos ressaltar nesta análise, são as relações e processos que possam ter ocorrido neste contexto que levaram, de alguma forma, este comandante da 5ª Divisão ser o primeiro descente da árvore genealógica da família de D. Lia. E é por meio deste abaixo assinado e da posterior promoção a “Alferes Agregado ao segundo Regimento de Cavalaria de Primeira Linha do Exército, e Comandante da quinta Divisão do Rio Doce” atribuída a ele pela “Sua Majestade o Imperador” (em 29 de setembro de 1826), que acreditamos ter, o Justiniano Roiz da Cunha, chegado ao comando do Quartel de Alto dos Bois (BNB, 1826, p.2). Posto isso, recuperando sua trajetória reconstruída até aqui, a partir da análise desses documentos, acreditamos que Justiniano tenha sido direcionado, inicialmente, para a 5ª Divisão e, mediante as demandas territoriais das outras divisões e quartéis do Jequitinhonha e Mucuri, tenha sido posteriormente (entre 1821 e 1824), transferido para a 7ª Divisão, para a qual foram direcionadas as correspondências enviadas por Guido Marlière. Frente às dinâmicas e conflitos apresentados nas cartas acessadas, e, principalmente, na última delas mediante a sua promoção, acreditamos que Justiniano tenha conseguido sua transferência neste período de 1826, passando a atuar, então, juntamente aos colonos da região de Alto dos Bois. Não encontramos ao certo informações a respeito do fim do quartel, mas neste período, da segunda metade do século XIX, a paisagem cultural de Alto dos Bois foi fortemente registrada na historiografia regional a partir dos avanços e expedições de ocupação do Mucuri partindo da região. Segundo estas fontes, algumas dessas frentes de ocupação 309 foram, inclusive, coordenadas pelos descendentes de Antônio Gomes Leal (cuja história de vida foi reconstruída anteriormente) na abertura das estradas que ligavam Minas Novas, Alto dos Bois, Colônia de Filadelphia ao Porto de Santa Clara. Além disso, diversos foram ainda os registros sobre os conflitos incidentes no Mucuri e Doce, neste processo de avanço sobre os territórios Borun, que resistiriam até o início do século XX. Desse modo, o quartel de Alto dos Bois, na presença de Justiniano Roiz da Cunha, que já tinha o conhecimento da lavoura e da “Fazenda Pública”, foi aos poucos se transformando em um importante ponto de tropas e viajantes (mais ainda do que nos séculos anteriores), uma vez que agora se tornava um ponto de passagem para chegar à principal estrada de rodagem da região – a estrada de Santa Clara – que ligava a Minas Novas ao mar. Assim, Justiniano Roiz da Cunha, como o primeiro antepassado dos atuais moradores do Casarão de Alto dos Bois, juntamente com seus soldados e/ou escravos indígenas e afrodescendentes, foi então consolidando o destino e a transformação do Quartel em Fazenda de Alto dos Bois. E é neste contexto, que seguimos agora nossas narrativas a partir da memória e dos documentos pessoais da família de D. Lia sobre sua história e de seus ancestrais. Assim, segundo a mesma, seu tataravô, Justiniano, fora casado com Elisar Gomes Leal, “uma filha de índia” – “bugra”. Sobre a história de sua tataravó e a presença dos “bugres” na região, vale destacar a narrativa que nos foi apresentada por D. Lia: Na época do meu tataravô tinha. Era bugre. Aí ele tinha os... capanga... naquela época falava capanga, né. Era os escravo que tava trabalhando aí, mandou atrás deles, e eles sabia conversar igual os bugre. Aí, na hora que eles foi deitar, quando eles via que eles dormiu, eles ia pro mato adentro, seguiram a trilha deles. Aí, quando chegou lá, o primeiro que eles fez foi cortar a flecha deles, né. Os bodoque, que as flecha deles de antigamente era igual um bodoque hoje. Aí cortou aí, pra eles matar eles, matou bastante também os bugre, né. Cabou quase com os bugre tudo, tanto ficou duas bugrinha pra trás, uma era minha tataravó, do lado do meu avô. O meu avô era descendência de índio mesmo, tinha uma cor bonita. Porque índio, todo índio tem uma cor muito bonita, né? [...] Só a bugrinha que ficou aí, eles pegaram ela com cachorro, e foi ela que casou. Portanto eu tenho descendência de índio também, mas é mais pouco porque sou da quinta geração, né? Agora do lado do meu tataravô, do Justiniano, tem descendência de português né! (D. Lia, Alto dos Bois, junho de 2012). Pelo histórico das primeiras famílias que chegaram à região, e pelo sobrenome indicado por D. Lia, acreditamos que, possivelmente, sua tataravó Elisar fosse fruto da miscigenação entre os indígenas da região com os descendentes dos Gomes Leal, como já mencionamos anteriormente. Em um dos documentos mais antigos que encontramos, há o registro que se refere, possivelmente, à mãe de Elisar: Sra. Anna Gomes Leal. Trata-se de um “recibo” de 500 reis, redigido na localidade de Grama, em 17 de fevereiro de 1882, por Pedro 310 Rodrigues da Cunha e José Rodrigues da Cunha, no qual está a seguinte mensagem: “Devemos a nossa vó Anna Gomes Leal, a quantia acima de reis, quinhentos mil reis, valor por nós recebido em moeda que faz me o favor de nos emprestar para lhe pagando até com [ilegível] desta tenho por ser verdade mandamos passar apresentar em que assinamos”(Carta de 17 de fevereiro de 1882, Arquivos do Casarão de Alto dos Bois). Figura 47: Recibo de empréstimo concedido por Anna Gomes Leal aos netos Pedro e José Rodrigues da Cunha Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Justiniano e Elisar tiveram três filhos: Pedro Roiz da Cunha; Miguel Roiz da Cunha e Mathilde Rodrigues da Cunha. Encontramos referências da ligação familiar entre eles em dois documentos analisados: no título de eleitor de Pedro Rodrigues da Cunha, no qual constava o nome do pai; e em uma notinha de fiado, onde encontramos o nome de Mathilde, cuja compra foi feita por seu sobrinho Isaias em 1922 (filho de Pedro Rodrigues da Cunha, do qual falaremos também a seguir). Sobre Miguel, não encontramos nenhum documento, no entanto, ao nos relatar sobre os entes falecidos, D. Lia salientou que o “Tio Miguel”, irmão de Pedro Rodrigues, também havia sido enterrado no cemitério de Alto dos Bois, destacando ainda que ele era um “filho particular” de Justiniano. Identificamos em diversos ramos e gerações destas famílias a figura do “filho particular”, ou seja, do filho fora do casamento oficial, sendo alguns, inclusive, filhos de fazendeiros com escravas e/ou indígenas da região. Tais documentos e os primeiros ramos da genealogia de Justiniano Roiz da Cunha são apresentados na Figura 48. 311 Figura 48: Filhos de Justiniano Roiz da Cunha Elaborado pela autora (2018) Se considerarmos que muitos desses soldados mestiços chegavam aos quartéis ainda bem jovens, na faixa etária de 16 anos, acreditamos que Justiniano tenha vivido até aproximadamente seus quase 100 anos86. Seu falecimento encontra-se, inclusive, registrado em dois documentos: o primeiro de 31 de março de 1912 – uma carta, na qual um oficial de justiça comunica a Pedro Rodrigues da Cunha que ele seria o responsável pela “partilha dos bens que ficaram por falecimento do senhor seu pai” (Figura 49). E o segundo, uma carta de 1917, na qual um de seus netos elabora um documento de fiador de posto, “cuja parte a ele cabe por herança de meu finado avô senhor Justiniano Rodrigues da Cunha” (Carta sem identificação, Alto dos Bois, 1917). 86 Este fato não nos surpreende muito, uma vez que, segundo relatos dos moradores da região ainda existem e existiram muitos idosos que alcançaram esta idade, alguns já falecidos como Sr. Tião Toco (que dizem que era filho de escravos) e outros ainda vivos, como D. Maria Roxa (que tivemos a oportunidade de conhecer aos seus 100 anos, na comunidade de Fanado, nas proximidades de Alto dos Bois). 312 Figura 49: Carta de 1912 – Falecimento de Justiniano Roiz da Cunha Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois A última carta em que há referência de Justiniano (avô) data de 11 de outubro de 1903, um recado deste ao Senhor Pedro Rodrigues, solicitando ao mesmo que fosse à sua propriedade lavar o restante da madeira que havia se comprometido. Apesar das rasuras e dificuldade de leitura da letra (como pode ser observado na Figura 50), podemos inferir que o “recado” não tenha sido escrito pelo próprio Justiniano, que possivelmente, já estava no avançar da idade, interpretação que é reforçada pelo seguinte trecho “venha lavrar e lhe participar, que a carpina já me é pesado”. Capelinha, 31 de março de 1912 Amigo Senhor Pedro Rodrigues da Cunha Saudações Comunico-lhe que pelos Senhores Pedro Gomes e Antônio Rodrigues Soares, fui encarregado de fazer com vosso, amigável ou judicialmente, a partilha dos bens que ficaram por falecimento do Senhor seu Pai, assim lhe peço o favor de vir entender-se comigo a este respeito parecendo –me que a divisão amigável será muito mais conveniente aos Senhores. Seu amigo, abraço Sebastião Nimiu Ottoni 313 Figura 50: Carta de Justiniano Roiz da Cunha para Pedro Rodrigues – 11 de outubro de 1903. Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Nesse sentido, a partir dessas duas cartas de 1903 (quando já estava sentindo o peso da idade) e de 1917 (quando já estava falecido), acreditamos que ele tenha tido óbito neste início do século XX. Outra carta que nos releva ainda um pouco mais das relações de Justiniano em Alto dos Bois é a de 18 de junho de 1887, escrita a ele pelo amigo Lopes Ferreira, na qual, apesar da escrita de difícil leitura, conseguimos identificar a referência à sua esposa (sem, porém, lhe mencionar o nome), e ainda ao Casarão e ao Cemitério, como pode ser observado na Figura 51, na qual apresentamos a carta e sua transcrição87. Figura 51: Carta do Senhor Lopes Ferreira à Justiniano Rodrigues da Cunha em 18 de julho de 1887. Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois (2016) 87 Cabe aqui destacar que algumas cartas encontravam-se rasgadas ou com a escrita ilegível, o que impossibilitou a identificação e leitura de todas as palavras de seu conteúdo. Tais trechos, inclusive, foram identificados nas transcrições por meio de pontos de interrogação [?] ou ainda pelo termo [ilegível]. Ilustríssimo Justiniano Rodrigues da Cunha 18 de Junho de 1887 Meu querido, faço lhe nesta [ilegível] pondo-lhe que logo recebi a sua carta comunique a sua mulher e ela me disse que há muito queria ter um distinto (?) e com ela disse me que era muito fácil colher [?] do casarão no cemitério abaixo. Seria isto que um P[?] o que é de fazer é o quanto o Senhor ali deseja [ilegível] de ser. [linha ilegível] Senhor Lopes Ferreira Alto dos Bois, 11 de outubro de 1903 Prezado nós ser [ilegível] [ilegível] Senhor Pedro Rodrigues Francisco Dias e Abamatas Xico Alves Gecim [ilegível] Ilustríssimo Senhor Pedro cumprimentos. Desejo-lhe boa saúde e felicidade com sua ilustríssima família peço-lhe para me avisar lavrar o resto das madeiras que me teve de precisar que você vinha lavrar e lhe participar que o carpina já me é pesado na [ilegível] e peço a vós para não delatar a este fim que este apertado do fisco que este aqui só senhor como sempre Amigo abraço Recado do amigo Justiniano Roiz da Cunha 314 De todos os documentos e referências que buscamos, este foi o primeiro que relatou o quartel como casarão, e destacou a presença do cemitério, o qual, segundo o Inventário de Bens Imóveis, realizado pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Angelândia, em 2000, foi “construído pelos portugueses cristãos” e longamente utilizado, no passado, “pelas comunidades existentes nas circunvizinhanças de Minas Novas, Turmalina e Capelinha” (ANGELÂNDIA, 2000, p.8). O cemitério de Alto dos Bois é um dos lugares cuja importância é fortemente ressaltada, pelos moradores locais, nesta paisagem cultural, sendo inclusive, destacado, por muitos deles como o “cemitério dos índios”. Alguns moradores associaram-no também aos portugueses, e poucos se referiram a ele como “cemitério dos escravos”. A única associação feita entre o cemitério e os negros escravizados na região, foi a construção do muro de pedra seca, que cerca o mesmo, o qual, segundo relatos da comunidade, foi “construído pelos escravos”. Figura 52: Cemitério de Alto dos Bois (visão externa) Foto: Rodrigues (2018) Atualmente o cemitério ainda é utilizado pela família e membros da comunidade que o desejarem. Observamos que há um grande desejo de alguns de permanecer neste lugar mesmo após a sua morte – “Assim eu canso de falar com as menina, se eu morrer lá ni Capelinha, quero ser aqui. Vai lá me trazer de todo jeito. Quero ficar junto com minha família antiga” (D. Lia, Alto dos Bois, abril de 2015). As lembranças vinculadas ao cemitério perpassam desde a menção daqueles que ali foram enterrados às histórias de corpos que vieram transportados pelos familiares de outras regiões do entorno, como Bem Posta (Minas Novas), Bonfim (Água Boa), Angelândia e Jaguaritira (Malacacheta), que demoravam cerca de três dias de viagem para chegar. Os familiares vinham trazendo os corpos a pé, carregando-os em lençóis amarrados em varões, ou até mesmo, em caixões, como descreve Dona Benvinda: “Cemitério de formato regular, medindo 14,20 x 14,40m, cercado por pedras quartzíticas, foliadas, justapostas e solidarizadas com barro, tendo 1,5m de altura por 45cm de espessura, com uma entrada executada em madeira lavrada, mais alta que o muro contanto com alguns túmulos, onde se pode ler algumas datas e nomes” (ANGELÂNDIA, 2000, p.8). 315 Antigamente não tinha o cemitério de Angelândia, né, porque Angelândia é bem nova, aí não tinha cemitério lá e não tinha cemitério em Jaguaritira e eles traziam corpos de lá [...] Vinha gente lá de Angelândia, lá de Jaguaritira, dormia na estrada, e trazia os corpos, né. E amarrava numa árvore os corpos, né, e ficavam ali, à noite, ascendia fogo e comia farofa lá durante a noite. No outro dia é que eles acabavam de chegar e enterrava o corpo e pra voltar pra traz. [...] Era assim, era dificultoso, portanto, tem um cemitério lá perto de Jaguaritira, que é num mato lá, que eles vinham trazendo o corpo de lá e pesou de mais, o [corpo] inchou muito, e ele estava estourando as tábuas do caixão. Aí eles furaram, não tinha como seguir, aí eles furaram lá na beira da estrada e enterrou o corpo ali mesmo. Ele chamava Thomaz, e então ficou lá o cemitério com o nome de Thomazinho. E até hoje ainda existe (Dona Benvinda, Capelinha, março de 2016). O pesquisador local, Dêga Fernandes, também narra alguns relatos que ouvira na região sobre estes sepultamentos que eram realizados em Alto dos Bois por pessoas de comunidades muito distantes: [...] Mas, como tinha muita distância, eles traziam os mortos de várias... de várias distâncias de 80, 100 km, ou mais, de várias comunidades da região porque não tinham cidades, aí eles viam de 80 a 100 km de várias região, que o pessoal naquela época eles falavam, que era no varão, né, botavam uma pessoa num.. um tipo de uma gaiola, que botavam num varão, botavam nas costas de um lado e do outro e transportavam e gastavam um, dois, três dias para transportar esta pessoa. Paravam naquelas estradas, ali eles faziam uma fogueira à noite, eles paravam e botavam o morto ali no varão pra um lado e pro outro e faziam fogueiras a redor, pra até para espantar animais que tinham onça e animais ferozes entendeu? Aí eles botavam fogo fogueira a redor e deixavam o morto e passavam a noite ali em oração olhando o corpo pra no outro dia transportar. E aí conta a história que eles traziam pessoas de várias região para até sepultar aqui. Mas o objetivo mesmo do pessoal da construção do cemitério que era pra sepultar os mortos do pessoal da região (Dêga Fernandes, Alto dos Bois, junho de 2012). Neste sentido, esta paisagem deve ser compreendida ainda enquanto uma representação simbólica de um dos ritos de passagem fortemente demarcados nas sociedades ocidentais – a morte (CLAVAL, 2007). O cemitério, enquanto o lugar mais representativo da morte agrega, assim, à sua paisagem a importância de se manter viva a memória dos que se foram. Esta conexão, todavia, não se dá a todo o momento na vida cotidiana, é acionada em determinadas circunstancias cerimoniais que “evocam periodicamente a lembrança das almas desaparecidas e provam que não foram esquecidas”, como é o caso da celebração anual do Dia de Finados, em 02 de novembro (CLAVAL, 2007, p.96). Figura 53: Cemitério de Alto dos Bois (Visão Interna) Foto: Silva (Novembro de 2011) 316 A fotografia acima (Figura 53) foi registrada logo após o dia de Finados, quando encontramos o cemitério todo limpo e com algumas homenagens póstumas expostas sobre os túmulos. Mediante esta paisagem cemiterial e da carga simbólica, histórica e cultural atrelada a este emblemático signo da paisagem cultural de Alto de Bois, ressaltamos que diferentemente de outros cemitérios, sejam eles urbanos ou mais modernos, nos quais o que se destaca na paisagem é o patrimônio arquitetônico; em Alto dos Bois, o cemitério representa um recurso simbólico que, atrelado à história dos seus antepassados, às tradições, valores, tensões, conflitos de modos de vida e até de enraizamento do lugar inscritos na memória coletiva e socialmente construída, configura-se como um lugar sagrado – “onde ocorrem manifestações socioculturais múltiplas, onde o homem se relaciona com o sobrenatural e se faz questionar sobre os antepassados e o sentido de sua existência” (NOGUEIRA, 2013, p.31). A esta manifestação do sagrado, Rosendahl (2002, p.27) atribui o termo de “hierofania, que etimologicamente significa algo de sagrado que se revela”, ou seja: O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade de ordem inteiramente diferente da realidade do cotidiano. São inúmeras hierofanias. A manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma árvore, uma pedra, ou uma pessoa implica em algo de misterioso, ligado à realidade que não pertence ao nosso mundo. [...] Não se trata de uma veneração do objeto enquanto tal, e sim da adoração de algo sagrado que ele contém e que o distingue dos demais (ROSENDAHL, 2002, p.27). E é a partir de tais considerações que buscamos realizar uma análise simbólica dessa paisagem cemiterial de Alto dos Bois, orientando nosso olhar para estes signos do sagrado, tais como a cruz, as rochas, as flores, as velas, as estruturas metálicas e os elementos que ressaltam o mapa cognitivo das relações entre as pessoas e este lugar. No âmbito da geografia da religião, nossa análise deste lugar sagrado, será direcionada a partir das “forças culturais enquanto características que refletem os valores culturais e históricos do grupo estudado” (ROSENDAHL, 2002, p.67). Assim, os registros fotográficos, juntamente com os discursos dos moradores e vivências em campo serão as fontes fundamentais para a construção dessa narrativa da paisagem cultural cemiterial de Alto dos Bois. Começaremos então pelas memórias de D. Lia e Sr. Pedro (casal que reside no Casarão) sobre aqueles que ali foram enterrados, e cujo registro ainda encontra-se presente na memória de nossos anfitriões. Memória esta acionada, ainda, a partir de um caderno de anotações de D. Lia, onde a mesma tem o costume de anotar alguns acontecimentos e datas importantes. Assim, chegamos ao número de 53 pessoas enterradas no cemitério de Alto dos Bois, sendo que a maior parte delas possuía algum parentesco com D. Lia e Sr. Preto e/ou residiam na comunidade ou redondezas (Tabela 13). 317 Tabela 13: Listagem das pessoas que foram enterradas no Cemitério de Alto dos Bois segundo a memória dos atuais moradores do Casarão (D. Lia e Sr. Preto) Nome Laços de Parentesco Terezinha Rodrigues de Jesus Mãe de D. Lia (faleceu com 76 anos) Carlota Rodrigues da Cunha – Tia Carlota Tia-avó de D. Lia José Pereira dos Santos Avô de D. Lia Pedro Rodrigues Lopes Primo de 2ª Grau de D. Lia (Filho de Justiniano – neto) Justiniano Rodrigues da Cunha – Tinhano (neto) Tio-avô de D. Lia (filho de Pedro Rodrigues da Cunha) e pai de Pedro Rodrigues Lopes Pedro Lopes da Silva Tio-avô D. Lia (casado com sua Tia-avó Maria Rodrigues da Cunha) Braz (esposo de D. Nora) Comunidade de Córrego do Engenho Antônia Camargo Chaves “Tonica” Filha de Manoel Camargo dos Santos (Escravo) – Alto dos Bois/ Irmã do avô do pai de D. Lia José Camargos dos Santos Avô de Sr. Preto Maria Camargos dos Santos Avó do Sr. Preto Terezinha Camargos Comunidades vizinhas Butica Comunidades vizinhas Alexandrino Soares Sogro do irmão de D. Lia (Fanado) Maria José Filha de Alexandrino Adão Filho de Alexandrino João Filho de Alexandrino José Soares Irmão do Sogro do irmão do D. Lia (Fanado) Joaquina mãe do Alexandrino Pedro Soares Fernandes pai do Alexandrino Joaquim Parente do avô de D. Lia Luzia Parente do avô de D. Lia Nathalia Sobrinha de Sr. Preto Nica Irmã do Jureilçon – prima de 2º grau de D. Lia Maria Fostina Morador das redondezas Terezinha de Fostina Morador das redondezas Darizão Morador das redondezas Sebastião Borges Morador das redondezas Zé Cacheado Morador das redondezas Joaquim Cacheado Morador das redondezas Bastião Francisco Parente de D. Lia Maria de João Francisco Parente de D. Lia Barbina de José Virício Parente de D. Lia Manezinho Moreira Parente de D. Lia Esposa de Manezinho Moreira Parente de D. Lia Vianês Filho de Manezinho Moreira (picada de cobra – solteiro) Anjo (Angelo) de Lara pai de Raimundo casado com Terezinha Rodrigues Lopes irmã do Pedro Tinhano Biano Filho de Vitória (mãe de Raimundo casado com Terezinha) Filho de Ireno Sepultado com uns 6 ou 8 anos Maria Jose Irmãs gêmeas - filhas de Bastião Borges Maria das Dores Irmãs gêmeas - filhas de Bastião Borges Dorizão - Dário Gomes dos Santos Foi criado na casa de Chiquinho Rodrigues Menina de 10 anos de gangorrinha Celuta Filha de Pedro Soares (tinha uns 2 meses) Augusto Cacheado Parente do pai de D. Lia Mariinha Camargo (filha da escrava Rita) Avó do Sr. Preto Edilene Sobrinha de Sr. Preto Eva Filha de Tunica Biano Filho de Tunica 318 Glória Filha de Maria Rodrigues (irmã de Carlota) Maria Figueiredo Parente de D. Jacy Zé de Tio Olim Parente de D. Lia Cristiano Comunidade Aruega Miguel (irmão de Pedro Roiz da Cunha) Tio de Carlota (filho de Justiniano) - "filho particular" Fonte: Entrevistas e caderno de anotações de D. Lia - Elaborado pela autora (2016). Apesar do número encontrado, a partir da listagem acima, observamos poucos marcos na paisagem do cemitério que pudessem indicar essa quantidade de pessoas sepultadas em Alto dos Bois. Na Figura 54 podemos observar que as únicas referências simbólicas encontram-se mais ao fundo do cemitério, apresentando-se, assim, como um local no qual há uma proporção de “espaços vazios” muito maior do que de “lugares ocupados/demarcados”. E a fim de entender essa espacialidade interna desses signos sagrados do Cemitério de Alto dos Bois, é que iremos realizar, a partir da imagem abaixo uma análise de cada um desses lugares que configuram essa paisagem. Figura 54: Espacialidade dos Túmulos no Cemitério de Alto dos Bois Foto: Silva (2011) No primeiro túmulo, ao fundo com as grades azuis (Figura 55), está sepultado o Sr. Pedro Rodrigues Lopes, nascido em 06/07/1935 e falecido em 15/04/2000. Era filho de Justiniano Rodrigues da Cunha (neto do primeiro Justiniano que fora o Comandante do Quartel de Alto dos Bois), o qual também se encontra sepultado neste cemitério. O seu Figura 55: Túmulo do Sr. Pedro Rodrigues Lopes Foto: Silva (2011) 7 2 1 3 4 6 5 319 túmulo destaca-se na paisagem cemiterial de Alto dos Bois em decorrência da presença das grades, reconhecidas como uma forma de “proteger/zelar” o túmulo. Segundo relatos da comunidade foi colocado pela esposa do mesmo, hoje também falecida, cuja origem é de Chapadinha (município de Capelinha). Partindo da compreensão de que as paisagens culturais são configuradas pelos sujeitos e suas formas de se espacializar nas mesmas, continuaremos nossa leitura dessas paisagens entremeando as relações que se configuram entre esses sujeitos (que se apresentam nas paisagens cemiteriais) e a história de vida de suas famílias que se constituíram nessas paisagens. Desse modo, apresentamos a seguir a árvore genealógica da família de Sr. Pedro Rodrigues Lopes (Figura 56). Figura 56: Árvore Genealógica do Sr. Pedro Rodrigues Lopes Fonte: Elaborado pela autora. Ao construir as árvores genealógicas de Alto dos Bois, procuramos sempre investigar qual era o local de moradia dessas pessoas na época da pesquisa. E estas informações nos revelaram que algumas famílias, como a do Sr. Pedro Rodrigues Lopes, já não possuem vínculos de morada com o lugar. No entanto, os vínculos familiares permanecem, pois seus parentes sabem onde atualmente estas famílias residem, desde aqueles membros que estão em localidades rurais mais próximas, tais como a comunidade de Fanado (em Angelândia) àqueles que estão em outras cidades (como Capelinha e Nova Serrana, no oeste de Minas Gerais) ou em outros estados (como São Paulo, Paraná). 320 A família de Justiniano (neto) morava “bem pertinho, há uns 1.000 metros” do Casarão (Nicinha – filha de D. Lia, Alto dos Bois, 2018). Essa proximidade das residências pode também ser observada em duas cartas, nas quais o mesmo é mencionado, quando ainda era criança (em 11 de março de 1912, sendo citado juntamente aos irmãos) e outra quando já era casado (em 22 de outubro de 1961), na qual sua referência aparece juntamente com a de sua esposa. Na primeira carta, de 1912, a sua menção aparece da seguinte forma: “Abraço a Carlota, Chiquinho, Isaias, Justiniano, Rita e a Deus meus caríssimos compadres aceite um saudoso abraço no lado do coração saudoso de sua amiga Agostinha Valte”. Esta carta foi enviada por D. Agostinha Valte, que muito se correspondia com D. Maria Levina e Sr. Pedro Roiz da Cunha, sempre se referindo aos filhos do casal. Já na correspondência de 1961, de José Alves Barbosa para Antônio Alves Barbosa (irmãos), é interessante ressaltar que após brevemente dar-lhe as notícias de como estavam passando em Nova Esperança (Paraná), na metade seguinte da carta são enviados abraços e lembranças para os familiares e vizinhos, dentre os quais, alguns são membros da família de D. Lia, como a D. Carlota que a criou quando era criança no Casarão. O destinatário desta correspondência, Sr. Antônio Barbosa - “Sotonio”, casou-se com a mãe de D. Lia (Terezinha) em 13 de setembro de 1959. Na época D. Lia já estava com 9 anos, e tinha apenas o irmãozinho Irineu (também mencionado na carta, filho do casal). Nova Esperança, 22 de outubro de 1961 Saudação Ilustríssimo Sr. Antônio Alves Barbosa aceita esta recordação do seu irmão. “Sotonio” eu já vou indo bem de saúde e felicidade graças a Deus Louvado só sentimos é a saudade de vocês todos daí. E mando a benção para vocês. Sotonio nois aqui vamos indo na forma do costumado Sotonio eu estou contente por as lavouras por aqui está muito boa, espero que se Deus quiser nois vai ser muito feliz. Por hoje é só termino com muita lembrança. Para vocês todos e envio a benção pra você e Terezinha e para Irineu, lembrança para Calotinha. Lembrança para compadre José Ferreira. Lembrança pro Abílio com a família, lembrança para o Padrinho Pedro e a madrinha Maria. Lembrança par ao padrinho Justiniano e a madrinha Ana. Lembrança para comadre Florência. Lembrança para comadre Sicília e compadre Sercio. Lembrança para comadre Mininha e compadre Olímpio. E no mais lembrança para todos conhecidos e quem perguntar por mim. Lembrança pra compadre Vicente Camargos com a família separado. Fim. José Alves Barbosa (Fonte: Acervo do Casarão Alto dos Bois, 2016) Faz-se necessário evidenciar que a leitura e análise dessas cartas nos leva a compreender muitas das dinâmicas sociais, familiares e econômicas dessas paisagens culturais de Alto dos Bois. Nesta por exemplo, os laços de parentesco e vizinhança se sobressaem em todo conteúdo da mensagem, muito mais extensa do que as próprias notícias do remetente. Outra dinâmica importante de ser ressaltada, e que é marca forte do contexto socioeconômico 321 regional do Vale do Jequitinhonha é o da migração, presente em ambas as cartas. Na primeira, de 1912, D. Agostinha conta para os amigos que está se mudando com os filhos para Diamantina, onde os mesmos encontraram emprego – “Comadre e cumpadre e meus caros meninos, vou por meio desta fazer uma saudosa despedida que estou de partida para Diamantina. Os meninos José e João Gabriel estão empregados lá e estão a me chamar. Vou ajuda-los a viver porque são bons filhos graças a Deus”. Não há referências a respeito do trabalho “dos meninos”, mas sabe-se que nesta época, como já mencionamos em capítulos anteriores, que na cidade de Diamantina entre 1876 e 1976 funcionou uma importante fábrica de tecidos na Vila de Biribiri. Já a segunda carta, de 1961, é um retrato direto dessa forte migração, pela qual passou o Vale do Jequitinhonha, com a formação dos “turmeiros” (anunciada desde o início do século XX), os quais se destinavam para o sul do país em busca de oportunidades de trabalho e melhorias de vida. E como esta correspondência, temos ainda várias outras que narram essas saudades e esperanças daqueles que ficam e daqueles que se vão. A memória e a saudade são também evidenciadas pelo cuidado empregado sobre os túmulos daqueles que se foram, e encontram-se evidenciados nesta paisagem. Quando nos aproximamos dos mesmos, observamos que em todos eles encontrava-se uma espécie de planta muito comum em jardins e cemitérios, principalmente pela sua longevidade, uma vez que florescem em todo período de calor – as bougainvilleas – conhecidas na comunidade como “sempre-lustrosa”. O zelo e o cuidado revelam-se até no nome em que são conhecidas regionalmente! Mesmo que seja apenas para colorir uma lápide que esteja sem qualquer tipo de identificação (Figura 57) ou ainda para compor um verdadeiro jardim sobre a memória daqueles que se foram (Figura 58) - é a sempre-lustrosa que se destaca nessa paisagem. Figura 57: Sempre-lustrosa em uma lápide no Cemitério de Alto dos Bois. Figura 58: Jardim com “sempre-lustosas” e uma espécie de Bromélia. Fotos: Silva (2011) 322 E é sob este zelo que se encontra também o segundo túmulo que conseguimos identificar, com a ajuda dos moradores do Casarão - o de D. Terezinha Rodrigues de Jesus (mãe de D. Lia) -, que pela sua idade aproximada de falecimento, acredita-se que tenha nascido no ano de 1928, e falecido em 10/02/2004 (data que se encontra talhada na cruz de madeira que está sob o seu túmulo). Além disso, atrás da cruz existe ainda uma espécie de oratório, composto por três lajes quartzíticas, sob o qual se encontravam algumas velas, como se fosse um verdadeiro altar em intenção da alma de sua mãe já falecida. Figura 59: Túmulo de D. Terezinha (mãe de D. Lia) Foto: Silva (2011) A memória de muitos desses óbitos encontra-se registrada também no caderninho de notas de D. Lia (como mencionamos anteriormente), o qual ela guarda desde 23 de maio de 1971. Até a data desta pesquisa, encontramos 71 registros de falecimentos; 4 registros de nascimentos (sendo 3 de netinhos de D. Lia e um do seu bisavô); 17 de casamentos; 19 registros relacionados à migração de seus familiares (principalmente dos seus filhos entre 1997 a 2015); além de algumas notas de aula, visitas que recebeu no Casarão e até da data que chegou a luz em Alto dos Bois (09 de abril de 2000). Apesar das dificuldades para fazê-los, D. Lia sempre contou com a ajuda dos seus filhos, que mediante a necessidade de anotar alguma informação, os chamava - “vem cá menino, vem cá anotar a data aqui pra mim”. E Nicinha, ao nos relatar essas lembranças, continua: “Aí (risos) a gente saia correndo mesmo feliz sabe, pra ir lá anotar a data pra ela, aí ela falava o nome da pessoa, tipo assim, é... José Joaquim, aí a gente ia lá e anotava, anota aí, dia tanto de tal mês de tal ano, que fulano morreu. Era desse jeito!” (Nicinha, Alto dos Bois, 2018). Para além de registros, o caderninho de notas revelou-nos saudades e muitas das relações de carinho e amizade que existiam entre essas pessoas. D Lia, ao falar do falecimento de sua mãe, registra: “Faleceu minha querida mãe, Terezinha Rodrigues de Jesus, no dia 10 de fevereiro de 2004, terça- feira a 00h e 30m da madrugada aos 76 anos de vida. Nós nos amávamos.” (Caderno de Notas de D. Lia). 323 Os óbitos relacionados aos túmulos 3 e 4 (conforme enumerado na Figura 54) também foram registrados por D. Lia, refere-se à família Soares – José Soares (3) e Alexandrino (4) em 02 de maio de 2005. Segundo D. Lia, os dois eram irmãos, e seus pais também foram enterrados ali, juntamente com três filhos de Alexandrino. No dia de Finados, do ano de 2011, os familiares estiveram visitando o túmulo e plantaram “sempre-lustrosas” e bromélias em memória de seus entes queridos (Figura 60). Figura 60: Túmulos dos irmãos José Soares (3) e Alexandre Soares (4). Foto: Silva (2011) Outro marco desta paisagem cultural cemiterial de Alto dos Bois, que nos chamou atenção, foi uma lápide sem qualquer tipo de referência (5), mas que a época de finados, apresentava-se com um pequeno ramo de sempre-lustrosa (Figura 61). Segundo D. Lia, neste local foi sepultada a pessoa que construiu o cemitério. Ela não soube dizer muitos detalhes sobre a pessoa, Figura 61: Túmulo do responsável pela construção do cemitério de Alto dos Bois Foto: Silva (2011) mas a simbologia e importância ressaltada por seus antepassados de preservar e cultuar este túmulo é mantida e repassada aos seus filhos e netos. A respeito dos demais túmulos (6 e 7) não conseguimos obter muitas informações. No entanto, ao analisar as imagens dos mesmos, destacamos como ainda são singelas as homenagens, seja em forma de flores plantadas ao solo, próximo ao muro do cemitério (6), ou em um pequeno vasinho de barro cercado por algumas pedras (7). 324 Figura 62: Túmulo 6 – não identificado Figura 63: Túmulo 7 – não identificado Fotos: Silva (2011) Outro signo importante dessa paisagem de Alto dos Bois, localizado nas proximidades do cemitério é o cruzeiro e o oratório. A cruz de madeira, lavrada manualmente, já não possui mais o seu braço, mas o ancho para coloca-lo encontra-se visível na parte que ainda está de pé (Figura 64). Na sua base encontra-se “um pequeno oratório rústico (Fig. 65), composto de duas lajes quartzíticas, emborcadas sobre uma base de pedra seca” (ANGELÂNDIA, 2000, p.24). Figura 64: Cruzeiro e Oratório nas proximidades do Cemitério Figura 65: Detalhe do Oratório construído com lajes quartzíticas. Fotos: Silva (2011) Sua importância religiosa está diretamente ligada à sacralidade do cemitério, uma vez que em dias de Finados ou ocasiões de enterro, os moradores se encontram neste local para acender velas, levar flores, fazer orações e rezar o terço. A passagem pelo cruzeiro faz parte do trajeto de peregrinação dos familiares em dias de Finados. Assim como, a parada no Casarão, onde D. Lia sempre manteve um costume de seus antepassados de oferecer aos “passantes” um café e uma quitanda, como relembra sua filha, ao nos relatar sobre os significados do cruzeiro: 325 O significado do cruzeiro era assim, todo o dia 02 eles iam pra lá rezar o terço, no cruzeiro. Eu lembro quando a gente era pequeno, ia muita gente rezar... Meio dia, sabe, o terço era rezado ao meio dia lá no cruzeiro lá. [...] Sempre minha mãe fazia biscoitos e oferecia a todos que iam lá desde bem cedinho até a noitinha iam muita gente e quase todos passavam lá no casarão era tipo um costume deles aí mãe sempre tinha quitandas e café pra oferecer mesmo porque iam gente de longe (Nicinha - Filha de D. Lia, Angelândia, novembro de 2018). Além das quitandas e do Café, D. Lia, se recorda que em dias de sepultamento, ela buscava água em um “putim que tinha” lá no córrego Fanadinho, pois “não tinha torneira d’água em casa pra nada”, e “deixava em cima da mesa”, afinal, “como é que ês vai abri a cova com sede?”. Quando os familiares chegavam, eles já sabiam que poderiam contar com o pote de água que D. Lia já havia deixado separado para eles. Uma segunda simbologia que está associada ao cruzeiro é a sua importância nos pedidos de penitência em época de seca, quando as mulheres da comunidade se reuniam para pedir chuva. Nesse dia, as crianças buscavam água e pedras no rio, para deixar ao pé do cruzeiro (cantando uma pequena oração), enquanto as mulheres adultas rezavam o terço, como descreve D. Lia: [...] quando eu era pequena, nós ia lá no rio, o rio chama Fanadinho, uns trazia pedra, eu trazia uma butijinha d’água, pra molhar o cruzeiro, e falava assim: (cantando) “São Bernabé, que morreu lá na cruz, Nosso Senhor que dá chuva e cai na terra”. E aí no outro dia chovia! Era aquele tanto de menina, tudo prima minha. As mais adulta do que eu. Eu era muito criança nessa época. Aí então elas rezava o terço e eu não sabia rezar, mas só que eu tava junto (D. Lia, Alto dos Bois, novembro de 2018). Depois da penitência cumprida, e das pedras colocadas no pé da cruz, “aí diz que no outro dia, minha filha, caia aquele chuvão” (Nicinha, novembro de 2018). Ao ouvir o relato de sua mãe, Nicinha se interessou muito pela narrativa e foi logo buscar essa simbologia ao pé do cruzeiro, encontrado a imagem apresentada a seguir (Figura 66). É interessante destacar, que há mais de dez anos essa prática já não é tão realizada na região, no entanto, as pedras continuam lá, apresentando sinais de que não foram sequer movimentadas (com fungos na superfície superior e algumas folhas – não muitas – recobrindo o entorno). Essas características exaltam, mais uma vez, a sacralidade deste importante signo da paisagem – um lugar sagrado, cujas tradições e memórias são respeitadas e preservadas pelo zelo de se manter intacto e velado aos olhos do estrangeiro, mas visível e extremamente significativo para aqueles que a compreendem ou a rememoram de alguma forma. 326 Figura 66: Pedras de penitência ao Pé do Cruzeiro Foto: Nicinha (2018) Mediante o exposto, configura- se, pois, nesta Paisagem Cultural Cemiterial de Alto dos Bois uma relação, que, como ressalta Claval (2007, p.96), “passa por deslocamentos até os cemitérios: daí a sua significação na organização do espaço”. Significação esta que, como destacamos, possui sua temporalidade e ocasião, sendo distinta do cotidiano da comunidade, quando esta paisagem encontra-se “encubada”, a espera do próximo instante de necessidade em que os vivos precisem reestabelecer sua conexão com os mortos. Tal concepção é reforçada pela própria localização do mesmo, entre os eucaliptais, “escondido”, quase imperceptível aos olhos dos mais distraídos. Figura 67: Localização do Cruzeiro e Oratório em meio ao Eucaliptal. Foto: Silva (2011) A respeito dessa conexão com os mortos, ou com a morte, encontramos ainda algumas orações que nos revelam a tradicionalidade desses cultos na comunidade de Alto dos Bois, são elas: oração para hora da morte; oração para as almas e a oração a Santa Cruz. Para iniciarmos essa compreensão, apresentaremos inicialmente o trecho desta “oração para a hora da morte”, que revela a súplica pela redenção e, ao mesmo tempo, o temor pela sua chegada: [...] este pecador que há de morrer seja com Jesus que há de nos valer. Que nos valer quando chegar tempo, que da morte vem. Cabo de repente quando vem ela vem sozinha, ela dizendo que esta hora é minha. Os que ouço forte neste coração, que ela 327 a seja, concede sem poder falar bendita benevolência, bendita seja. Lava-nos na gloria meu Jesus também (Acervo Casarão Alto dos Bois, 2016). Temor este que, em relação às almas, se converte em devoção e crença na sua força de proteção e fé, como podemos observar na Figura 68, na qual a “Oração às Almas” se inicia apresentando o respeito em oração pela redenção das mesmas, reconhecendo-se a sua força misericordiosa e o respeito à sua benevolência, e segue com a solicitação de proteção frente aos inimigos de todas as formas possíveis. Fechando então, como forma de agradecimento ou penitência, com um Pai Nosso e uma Ave Maria “para as Almas todas”. Figura 68: Oração para as almas Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois (2016) ORAÇÃO Almas Santas Benditas aquelas que Nosso Senhor Jesus Cristo neste mundo adoraste Bendita[?] a glória sem fim assim. E que [ilegível] confesso que pedi sem por minha, mas falta com socorro da tempo para que as almas venham as todas as 3, todas as 6, todas as 9 [linha rasgada] 9 serei livre de todos os meus inimigos [rasgado] almas 3 primeiras que chamei ponha diante de mim fale e responda os meus inimigos que vierem por diante oh almas que chamei ponha a minha esqueça oh almas [ilegível] que chamei ponha outras de mim fala e responda os meus inimigos que vieram por de trás eu [ilegível] no meio destas 3, destas 6, destas 9 nessa terra de todos os meus inimigos que não me possa causar danos na alma no corpo nem de dia nem de noite nem quer que me achar ou encontrar pau ou pedra ou outro tormento que me possa ofender de tudo isto serei livre neste dia pelo poder de Deus filho e Espírito Santo e aqui Nosso Senhor [ilegível] parte contrariar [rasgado] da tribo de Judá ares de dar [rasgado] Aleluia, aleluia, meu Jesus [rasgado] fortalecido assim fortalece-me [rasgado] vencer todas as batalhas que [rasgado] porém. Rezar um Padre [nosso e 1 ave] Maria paras as Almas todas. Amém Jesus Maria José Francisco Rodrigues da Cunha Alto dos Bois Clemente Soares Nesse sentido, é interessante destacar a devoção antiga dessa família às almas (o que também reflete muito das crenças e tradicionalidades da própria comunidade e região do entorno). Nestes escritos encontramos a assinatura de Francisco Rodrigues da Cunha, que viveu entre 1905 e 1985. Logo essa tradição vem se perpetuando até então, uma vez que, segundo D. Lia, pela oração às almas alcança-se qualquer pedido ou proteção. Segunda Paes (2007, p.44) essa tradição de oração às almas foi introduzida no Brasil, principalmente, por 328 meio dos padres de origem portuguesa, como forma, inclusive, de catequizar, disciplinar e doutrinar os gentios colocando-os “em contato com temas da doutrina católica, como o purgatório e o pecado mortal, e obrigando-os a agir segundo determinadas normas”. A tradição se manifesta hoje, principalmente, por meio da crença popular e das celebrações de encomendação das almas associadas aos rituais da quaresma (forma devocional de manifestação voltada a elas, assim como, se comemoram os dias de determinados santos) ou ainda missas, cultos e celebrações em cemitérios ou quintais realizadas às segundas-feiras (dia votivo das almas). Passarelli (2007, p.5) ressalta que a devoção às almas é muito maior do que a de alguns santos tradicionais do catolicismo, para ele, “o fiel das almas vive quase à margem do catolicismo oficial”, no entanto, a devoção se fez tão presente, inclusive, nos registros dos livros de intenções das missas (em ação de graças ou pedidos), que a Igreja Católica acabou sendo obrigada a reconhecer a presença dessa crença no catolicismo popular em alguns de seus ritos tradicionais. Assim, ainda segundo este autor: Depreende-se que o ritual tenha assim um valor educativo e preventivo. É uma caridade que retorna: relatam que todos temos necessidade de rezar pelos mortos porque também nós, em breve, estaremos sepultados e precisaremos de rezas. Se em vida oramos pelas almas, uma vez falecidos teremos quem reze pela nossa; caso contrário ela ficará esquecida e não poderá ascender no purgatório, pois crêem, que são as preces recebidas que as fazem progredir, pela misericórdia divina, subindo das chamas em direção à luz (PASSARELLI, 2007, p.4). A tradicionalidade da religiosidade cristã em Alto dos Bois é ainda reforçada por este outro manuscrito de uma “Oração a Santa Cruz”, assinado por Jacinta dos Santos Cunha, em 8 de abril de 1888. Uma tradição também de origem portuguesa, a devoção à Santa Cruz está fortemente demarcada em muitas cidades históricas por meio da presença dos Cruzeiros, erguidos nos pontos mais altos das cidades, partindo-se da crença de que as cruzes afastariam os espíritos maus e assombrações. O dia de Santa Cruz é comemorado a 03 de maio. Dentre as ladainhas, orações e ofícios de Santa Cruz. que encontramos referência. não havia nenhum que se assemelhasse a este escrito por Jacinta. Todos, no entanto, evocam a força e a misericórdia do Cristo Crucificado para os momentos de dificuldades. 329 Figura 69: Oração de Santa Cruz (Altos dos Bois – 08 de abril de 1888) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois (2016) Tabela 14: Transcrição da Oração de Santa Cruz (Alto dos Bois, 08 de Abril de 188 – Pertencente a Jacinta Santos Cunha) Pertence esta oração a Jacinta Santos C O pão divino Do sacramento Tu estais conosco Entendo o momento 1.1.1.1.1.1.1.1.1.1.1 Bem perto de nós Estais o Senhor Na hóstia Santa Cheias de amor, 2.2.2.2.2.2.2.2.2.2 Quem deras meu Deus Os meus pensamentos Seus tivesse sempre Neste Sacramento 3.3.3.3.3.3.3.3.3.3.3 Amor de Jesus Todos é inconcebível Morto de saudades Eu perto vivo. 4.4.4.4.4.4.4.4.4.4.4 Com és tão bom O Senhor Jesus Sofrendo vimos Na Santa Cruz 5.5.5.5.5.5.5.5.5 Como pais amante Todos em convida Para sua mesa Da eterna vida 6.6.6.6.6.6.6.6 O homem ingrato Rei vindes ao dosar É um Deus amante Sobre os altares 7.7.7.7.7.7.7.7 Cheguem todos a mim Que estão encarregados Eu vos livrarei dos Vossos pecados 8.8.8.8.8.8.8.8.8 Cheguem todos a mim Que estão oprimidos Que vos livrarei Dos vossos gemidos Bemposta para os povos De anjos e luzes Vos acompanhais Neste altar sagrado Bendita Sejais Bendito louvado seja Do seu divino lar E nós tão bem aconteça Louvemos a Santa Cruz Ela todo nosso bem Que a glória nos cuida Isso tão bem lá na terra Louvemos a Santa Cruz Deus vos salve Santa Cruz Que estais neste sereno Sei a filha de nosso padre Meu Jesus Divino guarde .................... Esta sua redenção Ampara meu Jesus Por vinha aos pecadores Foi morrer na Santa Cruz Naquele manto total Fez brilhar uma luz De [ilegível] Senhor E feitas na Santa Cruz ...................... A dor foi a Deus ficando Vosso amado Jesus Desse último suspiro Nos braços da Santa Cruz Meu Jesus quando morrer De hoje o mundo sem luz Por carregar nossos ombros Na linha da Santa Cruz Então o filho de Deus Por esse mundo sem luz Nos de chover a sua grade Na lenha da Santa Cruz Bendita e louvada seja Para sempre Santa Cruz Bendita seja sem fim Para sempre amém Jesus Assim nesta Seja Foi feita esta oração No dia 8 de abril de 1888 Jacinta dos Santos Cunha Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois (2016) 330 Nas cartas analisadas encontramos duas referências à Jacinta no período de 1888 a 1926: Jacinta dos Santos Cunha e Jacinta Camargo dos Santos. A primeira assina a oração exposta acima, já a segunda é a destinatária de uma carta impressa enviada em 1903, por Honaria Ottoni que, em agradecimento à cura de uma doença grave, solicita doações em honra ao Divino Espírito Santo. Segundo D. Lia, uma delas era escrava no Casarão e, em outras cartas, sua referência também apareceu junto a “Velha Rita” (que, segundo relatos da comunidade também fora escrava no Casarão). A partir dos sobrenomes de ambas, acreditamos que Jacinta dos Santos Cunha seja alguma familiar de Justiniano Roiz da Cunha (o fazendeiro), inferência reforçada pelo seguinte trecho de carta de Izaias, escrita em 1919 – “Tia Jacinta”: “Lembrança a meu padrim Chico, Tia Jacinta, dê um abraço meu compadre Chico Lopes, no João Batista e a todos meus amigos”(Carta de Izaias – 22 de junho de 1919, Quartel em Belo Horizonte). Já Jacinta Camargo dos Santos acreditamos que tenha sido uma das escravas do casarão, como foi registrado pela comunidade, ao se referirem a Jacinta e Rita como as duas principais escravas que trabalharam no casarão. Todavia, havia ainda uma forte afeição entre os familiares de Justiniano, Jacinta Camargo e Rita, como pode ser observado nos seguintes trechos de correspondências destinadas ao Alto dos Bois: “Uma abraço a velha Rita, lembrança D. Jacinta, Chico, Ângelo e Antônio” (30 de março de 1926, Glicério) e; “A família Aurélio, a Velha Rita, Chico e Dona Jacinta e Angello e Antônio Zeferim Chaves...” (sem data e local). Pela genealogia das famílias, como iremos nos aprofundar à seguir, pudemos observar que uma das famílias que descenderam diretamente dos negros escravizados em Alto dos Bois é dos “Camargo” (bisavô de Sr. Preto, por parte de pai; e tataravô de D. Lia, por parte de mãe). Reforçando ainda mais a importância da religiosidade para os antepassados de D. Lia, encontramos ainda 19 registros de orações escritas a próprio punho, a maioria sem identificação, referentes à: Nossa Senhora do Rosário (4); Salve a Rainha; Credo; Oração do Irmão Policarpo; Oração de São Geraldo; Oração pela glorificação de Policarpo; Oração a São José; Oração do Padre Donizete (1958); Oração de Santa Rosa de Lima (em espanhol); Oração a Santo Antônio (para se achar objetos perdidos); Oração Maria Concebida sem pecado; Oração da Santíssima Trindade; Oração para dor de dente (1901) e um trecho final de uma oração bem curioso que faz referência à Primeira Guerra Mundial: “prometeu passar o céu a fazer na terra, e sobre ela fazer caber depois de morta uma chuva de rosas, que são os seus inúmeros milagres, operados principalmente de 1914 a 1918, durante a grande guerra. Incessantemente... Incessantemente” (Manuscrito sem referência de autor e data). Outros 331 documentos de cunho religioso que encontramos, tratam-se de algumas páginas de um livro chamado “Doutrina Cristã” (muito utilizado nas comunidades rurais para catequese ou leituras em encontros de orações pelos católicos) e ainda de dois textos de promessas de orações destinadas a parentes falecidos, terços, dias de trabalhos e até alguns valores destinados aos santos de devoção, como podemos observar nas imagens e nos textos transcritos abaixo. Figura 70: Promessa de orações e trabalho. Fonte: Acervo de Titão – Capelinha (2010) Figura 71: Promessa de orações, doações e jejum. Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Além desta prática das promessas aos santos de devoção, outra tradição que encontramos nos documentos foi a do envio de cartas ou bilhetes dos festeiros solicitando aos destinatários doações para realização da festa em forma, principalmente, de doação de um leilão. Foram localizadas oito cartas de festeiros, sendo cinco delas de festas na cidade de Capelinha; duas em comunidades rurais; e uma não apresentava informações sobre o local da festa e nem sobre a data (Tabela 15). Promessa: trabalhar 2 semana por 10.000 Cr, comprar 2 velas e uma maço de velas, uma dúzia de fogos. Rezar 3 terços a Nossa Senhora da Conceição e Jesus Cristo. Rezar 1 terço para Senhor Bom Jesus da Lapa e levar um galho de flor. Fazer uma novena de terços e ofício de Nossa Senhora, rezar 1 terço para Santo Antônio e assistir o terço com 1 vela acesa. Fazer 2 toalhas para Nossa Senhora e Jesus Cristo. 1 mistério São Longuinho 1 terço pra Nosso Senhor e Nossa Senhora 100 reis para São Vicente 100 pra Nossa Senhora da Conceição Uma novena de Salve Rainha pra alma do finado Miguel 100 reis para Nossa Senhora do Rosário 3 jejum pra São Vicente Antônio e assistir o terço com 1 vela acesa. Fazer 2 toalhas para Nossa Senhora e Jesus Cristo. 332 Tabela 15: Cartas de Festeiros Festa Local Data da Carta Data da Festa N. Senhora da Graça Capelinha 15 de julho 1918 6 a 15 de agosto Santa Cecília Capelinha 05 de abril de 1920 22 de abril N. Senhora da Saúde Bemposta (comunidade rural de Minas Novas) 20 de junho de 1921 18 de agosto São Vicente de Paula Capelinha 02 de junho de 1926 19 de julho Santa Cecília Capelinha Outubro de 1948 21 de novembro N. Senhora da Conceição Chapadinha (Comunidade Rural de Capelinha) 02 de setembro de 1955 28 de setembro N. Senhora da Graça Capelinha Agosto de 1956 15 de agosto Santa Cruz sem informação sem informação sem informação Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois (2016) – Elaborado pela autora As festas de Nossa Senhora da Graça (Capela que deu origem à cidade de Capelinha), Santa Cecília, Nossa Senhora da Saúde, São Vicente de Paula e Nossa Senhora da Conceição possuem referência na região desde o início do século XX. As cartas, enviadas (com antecedência), apresentavam uma escrita muito amável e cuidadosa, destacando não apenas a importância da doação, como da própria participação do doador e das bênçãos ou recompensas que o mesmo receberia da santa homenageada, como podemos observar na Figura 72. A participação das comunidades rurais nesses festejos Figura 72: Carta do Festeiro de N. Sra da Graça (15 de julho de 1918) - Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois ainda hoje se faz muito ativa, tanto na doação de valores, alimentos e artesanatos para os leilões, quanto na própria participação durante a festividade, arrematando os leilões, bingos ou participando das apresentações culturais. Em setembro de 2018, tivemos a oportunidade de vivenciar os festejos em honra a São Vicente de Paula na sede municipal de Angelândia. Nesta ocasião encontramos algumas pessoas da zona rural e inclusive membros da banda de Taquara de Sapé Timirim (que também participam com frequência dos festejos em Alto dos 333 Bois). Um dos aspectos que mais nos chamou atenção foi a participação da banda de taquara em todos os momentos da festividade. Participação esta que iniciou-se com a banda circulando pelas ruas da cidade, tocando as caixas e flautas, como se estivessem chamando a população para a missa, a procissão terminou na entrada da igreja, quando os mesmos entraram e abriram os caminhos para o pároco que iria iniciar a celebração. Alguns membros da banda participaram também de alguns dos ritos da missa, tais como no próprio caminhar com o estandarte de São Vicente de Paula na procissão de saída. Figura 73: Procissão de Saída – estandarte e banda de Taquara de Sapé Timirim Figura 74: Saída da Igreja de N. Sra dos Anjos para o levantamento do Mastro (na praça) Fotos: Silva (2018) Ao final da mesma, o grupo voltou a tocar chamando os participantes para o levantamento do mastro, apreciação dos foguetes e início do leilão na lateral da igreja. No levantamento do mastro, que aconteceu no jardim da praça (que fica a frente da Igreja de Nossa Senhora dos Anjos), enquanto alguns membros da comunidade fizeram o levantamento, a banda circulou o mastro tocando até que todo o processo terminasse e todos os foguetes fossem acionados. Ao final desta etapa, a banda seguiu para o espaço onde aconteceria o leilão, circulando a cruz e todo o espaço da festa, abrindo e abençoando os caminhos para o início dos festejos. Essa espacialidade festiva dos padroeiros pelas bandas de taquara foi também observada em outras festividades que tivemos a oportunidade de participar nas comunidades rurais de Angelândia e Minas Novas. 334 Figura 75: Levantamento do Mastro de São Vicente de Paula Figura 76: Banda de Taquara tocando ao redor do Mastro de São Vicente de Paula Figura 77: Mastro, Banda de Taquara à frente da Igreja de N. Senhora dos Anjos Figura 78: Fogos à São Vicente de Paula Figura 79: Abertura dos festejos pela Banda de Taquara (abrindo os caminhos ao redor do Cruzeiro) Figura 80: Abertura dos festejos pela Banda de Taquara (abrindo os caminhos na lateral da Igreja) Figura 81: Abertura dos festejos pela Banda de Taquara (abrindo os caminhos ao redor das barracas) Fotos: Silva (2018) E assim, aconteceu, concomitantemente, a venda dos alimentos tradicionais para os participantes da festa, o leilão, o bingo e tudo isso animado pela apresentação da banda de 335 taquara, que tocou até o final do evento. Os alimentos que estavam sendo vendidos nas barraquinhas eram bem específicos: caldos de mandioca e feijão tropeiro. Já os alimentos do leilão eram mais diversos: biscoito de goma, broas, leitão a pururuca, balde com feijão in natura e ovos caipira, frango assado, pudim de leite condensado, farinha de mandioca, bolos, roscas, biscoitos industrializados, além de garrafas de refrigerante e bebidas alcoólicas como vinhos e caixas de cerveja. Um dos leilões de maior destaque foi o bolo de festa em honra a São Vicente, feito pela Sra. Angelina, no qual estava escrita a seguinte mensagem, juntamente com a imagem do Santo: “Angelina pergunta: São Vicente você já ganhou bolo de Aniversário? São Vicente responde: Angelina, Não!”. Assim, ressaltamos a importância da religiosidade para essas comunidades, seja na zona rural ou urbana, elas participam ativamente dessas festividades, fortalecendo o sentido comunitário em ambas as realidades, como podemos visualizar nas imagens registradas a seguir. Figura 82: Alimentos leiloados durante a Festa de São Vicente de Paula – Angelândia Fotos: Silva (2018) A discussão em torno das paisagens culturais nos revela, tanto no passado quanto no presente, a vida e a morte, a fé, as crenças e a religiosidade que se conectam, a todo o momento, independente do foco ao qual se direciona o nosso olhar etnogeográfico. Em Alto dos Bois, essa sincronia de elementos se faz presente em todas as suas paisagens, sejam elas pretéritas, do presente ou até mesmo das projeções futuras de seus moradores. As narrativas dos moradores e a nossa vivência na comunidade vão revelando, a cada detalhe, documentos, 336 fotografias ou relatos de vida toda uma trama comunitária que se consolida como uma das essências vitais de suas paisagens culturais. Esta conexão se dá por meio da própria espacialidade dos comunitários em âmbito regional, seja nas sedes municipais de Angelândia, Capelinha e Minas Novas (em eventos religiosos, feiras ou encontros culturais) ou nas próprias comunidades rurais do entorno (nas festas dos padroeiros, visitas aos parentes, etc.). Todavia, há também uma identificação local e regional em torno das dinâmicas socioculturais e geohistóricas que se estabelecem neste vínculo entre suas histórias pessoais e/ou familiares e o Casarão de Alto dos Bois. Para referendar esse nosso olhar etnogeográfico sobre essas paisagens, que os sujeitos que configuram nas histórias desse lugar, nos apoiamos nas discussões sobre o cotidiano, desenvolvidas por Benhur P. Costa (2016, p.143), ao destacar que essa busca pelas “trajetórias de mudança na espacialidade” e suas “representações” está diretamente vinculada ao ato de “coletar narrativas mais profundas sobre as representações e estórias cotidianas de certos sujeitos na reflexão sobre suas ações e experiências na espacialidade em questão”. Assim, a partir das histórias de vida dos antepassados de D. Lia, expressas em suas correspondências, fotografias, dentre outros registros documentais, buscaremos identificar: i)os “contrapontos” – “evidências das descontinuidades que apontam para os processos de mudança sobre as convivências”; ii) as concordâncias – que “apontam para certa aura [essência] cultural do lugar em questão”; e iii) as “perdas”, “saudades”, “sentimentos de nostalgia ou desgostos sobre certos acontecimentos” que se configuram como “pistas sobre outras atividades de sujeito que vêm a contribuir com a mudança das relações tecidas no lugar de convivências” (COSTA, 2016, p.143). E é no intuito de compreender toda essa complexidade de relações e convivialidades, que emanam da reconstrução da árvore genealógica de D. Lia, que começaremos essa narrativa de paisagem pelos registros de seu bisavô – Pedro Rodrigues (ROIZ) da Cunha, que também assinava como Roiz (seguindo sua ancestralidade paterna). Foi Pedro Roiz da Cunha que assumiu a fazenda de seu pai. Seus primeiros recibos de “Imposto Territorial Rural” (ITR) datam do período de 1901 a 1949 (período no qual acreditamos que tenha vindo a óbito). Pedro Roiz da Cunha casou-se com Maria Levina de Paula Dias (falecida em 19 de dezembro de 1936) e tiveram seis filhos: Isaias, Justiniano, Gabriela, Maria, Francisco e Carlota. Ao falarmos da paisagem cemiterial de Alto dos Bois, nos deparamos com a história da família de um de seus filhos, o Justiniano, cujo filho encontra-se enterrado também neste cemitério. 337 Figura 83: Árvore Genealógica de Pedro Roiz da Cunha No arquivo dos moradores do Casarão, encontramos 45 documentos que se referem à Pedro Roiz (que datam do período de 1903 a 1949). Neste contexto da “Fazenda de Alto dos Bois”, Sr. Pedro representaria a segunda geração da família Roiz. A partir dos documentos de “Impostos Territoriais Rurais” (ITR) e dos relatos dos familiares e comunitários, acreditamos que a fazenda esteve sob a gerência desta geração até o início da década de 1940, quando, a partir do falecimento do pai, quem assumiu a responsabilidade da propriedade foi sua filha Carlota – representante da 3ª Geração. Sendo assim, considerando a data de nascimento de um seus filhos mais velhos (1897), que tivemos acesso, acreditamos que essa 2ª Fase do Alto dos Bois compreendeu-se entre 1890 (quando Pedro possivelmente tenha se casado) até 1942, quando Carlota começa a assinar os recibos. O período de 1942 a 1944, compreendemos que tenha se configurado como uma fase de transição entre a gestão de pai e filha, posto que a herança de Carlota teria sido declarada, em testamento registrado, apenas no ano de 1944. A partir da leitura das cartas, ressaltamos que os Sr. Pedro Roiz era um fazendeiro de grande importância na região. Sabia ler e escrever, e assim, assinava e escrevia cartas, documentos de venda, promissórias, recibos e até testamentos para as pessoas que não possuíam tais conhecimentos. Grande parte das correspondências, que encontramos em seu nome, foram a ele destinadas no intuito de realizar-se diversos tipos de negócios, tais como: combinação de corte de madeira; venda de animais (jumento, bois); empréstimo de animais para serviço em outras propriedades; cobrança de dívidas; compra e/ou troca de alimentos (como arroz, cachaça, batata, “fubá de munho”, farinha) e até empréstimo de dinheiro. Dentre as localidades com as quais estabelecia tais relações de compra e venda, estão: outras 338 fazendas da região de Alto dos Bois, outras comunidades ou povoados da região (Arrependido, Trindade, Boa Vista, Bonfim) e outras vilas e centos de maior circulação de mercadorias como Capelinha, Minas Novas e Malacacheta. A seguir apresentamos um exemplo dessas cartas, na qual podemos identificar o comprador, o vendedor, o cargueiro/tropeiro88 (que fazia o transporte dessas mercadorias sobre encomendas dos clientes) e ainda as relações de pagamento pelo serviço, tal como a troca ou “barganha”, que ainda é muito comum na região. Figura 84: Carta remetida a Pedro Roiz da Cunha (21 de julho de 1914) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Vale ressaltar, que além de sua importância no transporte das mercadorias pelos caminhos acidentados das grotas do Jequitinhonha, eram os tropeiros os responsáveis também pela circulação das informações e de muitas dessas correspondências. Assim, mesmo chegando pelos postos dos correios em Minas Novas (a partir da segunda metade do século XIX), quando oriundas de outras regiões, ou no caso de cartas oficiais, eram eles os responsáveis pela entrega dessas correspondências nos povoados e vilas mais distantes dessa localidade central. Outro aspecto interessante de se destacar dessas relações comerciais, que identificamos nas cartas, foram os “combinados” e as relações de confiança que se estabeleciam entre esses três sujeitos. Uma vez, que cabia ao tropeiro essa função de fazer-se 88 Trataremos mais adiante com mais profundidade a respeito da importância dos tropeiros e suas representações em Alto dos Bois. Boa Vista, 21 de julho de 1914 Amigo Pedro Rodrigues da Cunha Aceite com sua excelentíssima família minhas sinceras visitas e de minha família. Amigo Senhor vai pelo Augusto 1 alqueire de milho para você por no moinho para vir fubá para fermento e pago o trabalho de mouer, não mando barganhar o milho por fubá porque tenho precisão de 1 e meio alqueire de fubá. Vai de novo passar as despesas se For menos você volta esse fubá mais nos manda dizer. Peço de apanhar amanhã cedo oposto dar. Sempre as suas ordens como sabem senhor Galdino Fus[ilegível] 339 valer a demanda daquele que o encomendou, que se encontrava registrada, inclusive, nesses pequenos bilhetes. Nesse sentido, era necessário que as tropas possuíssem também uma pessoa que detivesse o conhecimento de escrita e leitura, serviço que poderia ser prestado pelos mesmos na escrita/leitura dessas cartas. Além disso, cabia ainda a estes cargueiros a responsabilidade de levar o dinheiro e/ou produtos que entrariam no negócio, como podemos observar no trecho transcrito abaixo. Figura 85: Carta remetida a Pedro Roiz da Cunha (04 de março de 1919) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Senhor Pedro realizava também algumas comercializações com mercados maiores em cidades como Malacacheta e Capelinha, onde se encontrava grande variedade de produtos importados, tecidos, chapéus ou instrumentos a serem utilizados nas fazendas. No panfleto encaminhado a ele em 24 de maio de 1920 (Figura 86), pelo comerciante Bernardo Pego, este o oferecia as novidades que tinham chegado ao seu comércio, colocando suas condições de venda (no dinheiro), e ressaltando, ainda, que além de vender ele também estaria comprando produtos alimentícios (como café, milho, feijão, arroz e toucinho) pagando a dinheiro “os melhores preços do dia”. Amigo Pedro Rodrigues da Cunha Saúdo lhe com sua excelentíssima família a quem eu com Jovita visitamos. E partudar [?] desta Senhor [ilegível] Fernandês que vai levar umas carrigas para Antônio Lopes e na volta dele peço a vos para entregar o resto da nossa farinha, se tiver fubá de munho peço mandar meio alqueire, e peço para aceitar a conta e manda dizer se os 500 ficou de pagar asunto [?], o no pra leva dinheiro pra inteirar se caso faltar não mande a cachaça, [abreviação] mandou dizer por junto com minhas vasilhas estas toudas emprestadas. Vai se 1 garrafa para amigo nada te custa. Sem mais, seu amigo Galdino Pereira 4 de março de 1919 340 Figura 86: Panfleto de mercado em Malacacheta (24 de maio de 1920) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Malacacheta, 24 de maio de 1920 Amigo e Senhor Pedro Rodrigues Saudações Tendo resolvido voltar ao comércio, tenho o prazer de comunicar a V. S. que de novo me estabeleci com variado sortimento de fazendas, armarinhos, ferragens, louças, chapéos, calçados, artigos de fantasia, molhados (vinhos, cervejas), sal, kerozene, farinha de trigo, arame e gêneros do paiz, etc. tudo vendendo, á dinheiro, pelos preços os mais vantajosos. Rogo a V. S. o obsequio de visitar a minha casa comercial, afim de verificar a vericidade do que acima disse. Espero que, examinando os meus artigos e as minhas condições de venda, V. S. dará preferência á minha casa nas suas compras. Outrosim, venho comunicar-lhe que compro, á dinheiro, café novo, milho, feijão, arroz, toucinho, etc., pagando os melhores preços do dia. Com toda estiam e consideração me subescrevo de V. S. Amº Obrº Crº Bernardo Pego Nesse aspecto, vale ressaltar, que o centro comercial mais próximo de Alto dos Bois, no início do século XX, estava localizado na Vila dos Anjos, onde começaram a chegar os primeiros mercadores a partir da segunda metade da década de 1930, quando o Sr. Geraldo Gomes (garimpeiro) montou a primeira loja, onde comprava e vendia minerários, tecidos e alimentos. Ao recordar sobre o garimpo, D. Hermelinda nos contou que neste período eram encontradas muitas pedras preciosas na região, existindo, inclusive, um importante comercio relacionado a extração da mica, encontrada, principalmente, na região de São José e Grota Escura: É, aqui foi muito bom aqui, pedra preciosa tinha turmalina, tinha ametista, muita mica, tinha mica desse tamanho assim oh, que saia fora da bolsa, quando punho no animal, saia fora do balaio, aí depois foi diminuindo, diminuindo, já não tem mais tanta mica como era. Tinha uma família em Capelinha que comprava. Comprava essas mica. Tinha fábrica. Meu marido também pôs a oficina de mica, tinha 5, 6 passador de mica. Colocava o avental, tinha o parapeito, pra a faca bater, beneficiava a mica, enchia as caixa de mica, e vendia pra Valadares, vendia pra esses outro canto (D. Hermelinda, Angelândia, setembro de 2018). Os irmãos de Geraldo Gomes - Antônio e Geraldo Ernestino Gomes - vieram em seguida, montando, respectivamente, a primeira farmácia e uma loja de mantimentos. Outro comerciante de destaque foi o Sr. Clemente Celestino de Almeida, o qual juntamente com seu 341 irmão Tibúrcio89, montou uma grande loja que vendia de tudo um pouco. Muitos produtos comercializados nessas lojas eram importados de centros urbanos maiores, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro; todavia grande parte deles era adquirida nas fazendas da região. O transporte dessas mercadorias era feito, principalmente, por tropeiros com uso de burros, mulas e cavalos, que circulavam por algumas estradas e caminhos de terra que aos poucos foram sendo abertos. A fim de viabilizar uma circulação mais adequada desses produtos, há relatos de que os comerciantes Clemente Celestino e João Gomes reuniram-se e abriram o restante da estrada que interligava as localidades de Capelinha e Vila dos Anjos, facilitando o fluxo de mercadorias entre elas (além dos demais povoados que se encontravam nesse entorno). Algumas dessas transações comerciais eram feitas no sistema de “cadernetas de fiado”, nas quais o vendedor anotava os produtos, quantidades e valores em sua caderneta, e o comprador realizava o pagamento em outro momento, ou pagava aos poucos, sendo debitado no valor devido. As cobranças eram feitas, inclusive, contando-se os juros dessa “espera” pelo pagamento. Nas notinhas que encontramos do Sr. Pedro (correspondentes aos anos de 1895, 1896 e 1914), constam principalmente produtos relacionados à costura, tais como: algodão, algumas peças de tecidos, carretéis de linha, colchetes, colchas de casal, agulhas e ainda alguns utensílios pessoais ou para a casa (colchas de casal, guarda-sol e chapéus). 89 Primeiro professor de Alto dos Bois, do qual falaremos em seguida. 342 Figura 87: Notinha de Mercado de Pedro Rodrigues da Cunha (2 de fevereiro de 1914) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Figura 88: Caderneta de Fiado (19 de agosto de 1895) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Sua esposa Maria Levina e suas filhas costuravam. Assim, grande parte dessas compras realizadas nestes mercados maiores (localizados nos principais centros comerciais da região) era direcionada a esta finalidade. Além de suprir as necessidades de vestimenta da família, a prática da costura ainda carrega uma simbologia muito forte associada ao afeto e agradecimento, como podemos observar no registro encontrado em uma das correspondências José Gomes do Amaral - Negociante de fazendas, ferragens, amrarinho, armas, chapéos, calçados, louça, molhados, etc. etc. Compra e vende café e gêneros do paiz Pontorate, 2 de fevereiro de 1914 O Sr. Pedro Rodrigues da Cunha 3 Peças de algodão meum a Sb 15.000 5 metros trançado 700 3.500 190 metros grim 800 1.500 3 metros Tephir 800 2.400 3 metros riscado 800 2.400 2 metros riscado 500 1.000 2 metros trançado 800 2.000 12 metros estopa 800 9.500 2 Colchas branca casal 8.500 17.000 6 carreteis de linha 1.000 1 peça enfeito longo / 14 colchetes 300 1.300 2 peça enfeito amarelo 800 1.600 2 Lenços 400 800 1 guarda sol bom 6.500 1 Barra Sabão 1.500 67.100 15/02/1915 Recebi 43.000 24.100 19 de agosto de 1895 O Senhor Pedro Roiz da Cunha [abreviaturas indecifráveis] de Oliveira Deve: Resto de conta senha 16.000 10 m de beija flor 3000 30.000 3 m de casimira 12$ 36.000 6 vidros [?] nossim[?] 12n 7.200 3 ‘’ ‘’ 12n 3.600 3 e mio ‘’ ‘’ sescrao somin 4.400 1 carretel de linha 300 Batom para paleta e calite 900 1 chapéu libra 15.000 Agulha 100 1 [ilegível] pennas 500 TOTAL 114.0000 343 entre Maria Levina e sua amiga Agostinha, na qual, esta faz dois comentários a respeito dessa simbologia. No primeiro ela destaca o valor da costura como um presente de casamento e no segundo trecho como um agradecimento à receptividade da amiga quando a for visitar. Comadre muito estimei pela notícia que me deu do casamento de Nazinha. Estimei e só muito peço a Virgem da Conceição que ela seja muito feliz (...) eu desejava ter um bocadinho de força para ajuda-la em alguma coisa, mas minhas forças estão tão poucas, mas hei de o menos darde para fazer algumas costuras. [...] Compadre Jermano Camargo me prometeu que em Setembro vem me ver (...) [e irá me levar para] vê-las e placar as saudades (...) como tenho vontade de vê-las (...) já vá guardando alguma costura pra mim fazer para todos da casa. (Carta de Agostinha, amiga de Maria Levina em 9 de julho de 1908). Em uma das cartas de Sr. Pedro encontramos ainda uma referência muito importante a ícone muito forte da paisagem de Alto dos Bois, e ainda muito presente na comunidade – as pedras de forno. A formação quartzítica da cachoeira possui lapas/lajes grandes, que desde essa época (década de 1920) já eram utilizadas para fabricação de fornos para assar quitandas ou para torrar farinha (Figura 89). As lajes quartzíticas, grandes e lisas, segundo os moradores de Alto dos Bois, são ideais para estas atividades, uma vez que suportam as altas temperaturas desses processos e são facilmente encontradas (ainda hoje) às margens da cachoeira de Alto dos Bois, como podemos observar na Figura 90. Figura 89: Forno de Farinha feito com a laje retirada da cachoeira de Alto dos Bois – Comunidade de Córrego de Engenho – “Casa de Farinha de D. Nora” Foto: Silva (2018) Figura 90: Lajes quartzíticas encontradas nas proximidades da cachoeira de Alto dos Bois Foto: Silva (2018) É interessante destacar que o mesmo valor que é atribuído hoje a estas pedras, também foi registrado nesta correspondência no trecho – “pedras especial dentro do seu quintal” (Figura 91). Em quase todas as residências que visitamos na região, e que possuíam 344 fornos, as pedras foram doadas pelos proprietários do casarão em diferentes épocas. A utilização desse recurso da natureza na manufatura dos alimentos é tão significativa, que, em muitos casos, a retirada das pedras não é cobrada. Sua resistência faz com que esse patrimônio perdure nas famílias por muitas gerações, que carregam, consigo, a mesma gratidão e lembrança que Dona Nôra expressa em sua fala ao dizer: “essas pedra foi cumpadre Preto que me deu”; ou ainda nas letras dessa cartinha, quando ao perguntar o valor do serviço, o remetente, já sabendo a resposta negativa da cobrança, atesta ao final - “os favores que saberei lhe agradecer”. Figura 91: Carta remetida a Pedro Roiz tratando de compra de pedras (sem data – Década 1920) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois A afetividade atribuída, tanto às pessoas quanto aos lugares, também representa uma simbologia marcante das paisagens culturais de Alto dos Bois. Em uma correspondência que o Sr. Pedro recebera de seu sobrinho (em 17 de abril de 1922), quando estava servindo ao exército, passando pelos quartéis de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Espírito Santo, é possível perceber esse carinho que eles atribuíam aos seus familiares e à saudade de sua terra: Terei muito prazer se vos encontrar gozando uma vigorosa saúde, dentre mil felicidade, e que o mesmo aconteça a todos da casa [...] Eu graças a Maria Santíssima estou indo bem de saúde, só sentindo muitas saudades dos nossos aromáticos campos e da nossa bela terrinha mineira.(Carta de Antônio de Paula Dias, sobrinho de Pedro Roiz, 17/04/1922 – Espírito Santo). Prezado Amigo e Senhor Pedro Rodrigues Saúdo lhe com a excelentíssima família desejando a todos completo bem estar. E [ilegível] dar estas senhor José Silino que hoje vai diretamente em sua casa a fim de trazer um jogo de pedra de formo e um juça ao ano para auxiliar na tiração das pedras e com de [negociação]das mesmas a fim de ver boas pois sonha com o ano tem pedras especial dentro de seu quintal. Tratando sobre quanto tenho de lhe pagar visto o seu trabalho e pelos os favores saberei lhe agradecer. Aqui fica as suas [bênçãos] compadre amigo certo e grato. Sebastião Gerrois 345 Nas cinco cartas remetidas à Maria Levina (esposa de Pedro Roiz) também emanam sentimentos de saudade, carinho e religiosidade, relações fortemente representadas em expressões como: “Foi para mim um dos maiores prazeres quando em casa me [encontrei] com as tuas muito carinhosas letrinhas”; “não sei quando chegará o dia feliz de nos encontrarmos”; “Sigo, não perco a esperança [porque] Deus é bom pai, há de permitir e vamos encontrarmos”; “Recebi no coração a benção que lhe enviei com muita saudade” – todas escritas por sua tia Andreia Jozephina Dias, em 1902 (Figura 92). Figura 92: Carta a remetida a Maria Levina escrita por sua tia (02/12/1902). Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Muitas dessas relações de afetividade se expressavam, frequentemente, no uso de algumas terminologias muito singulares, e que ainda hoje são atribuídas às pessoas que se tem muita proximidade na convivialidade cotidiana, como é caso das expressões “compadre” e “comadre”. No seu sentido original, corresponderia ao tratamento entre o padrinho de uma pessoa e os pais desta, todavia, nos espaços rurais (não apenas em Alto dos Bois) são utilizados, principalmente, no intuito de enfatizar os laços de carinho que unem aquelas pessoas. Sendo da mesma família, o usa destas expressões significa que o laço de amizade - entre os compadres e comadres - vai além do parentesco. E, não sendo da mesma família, é Santa Rita de 2 de dezembro de 1902 Levina minha muito querida sobrinha do meu coração a Deus. Foi para mim um dos maiores prazeres quando em casa me com as tuas muito carinhosas letrinhas as quais virá de dar-me grande satisfação para saber e peço senhor novidades em companhia de vosso muito divino espero e meus caros sobrinhos, o quais com muito amor abraço. Eu e seu Tio e suas primas a lhe achar este graças a altíssimo passamos sem mais atribulações não sei quando chegará o dia feliz de nos encontrarmos para dar-te um apertado abraço. Sigo, não perco a esperança para Deus que é bom pai há de permitir e vamos encontrarmos. Eu com muito amor abraço você e Nazinha e meus queridos sobrinhos. Recebi no coração a saudosa e amorosa benção que lhe enviei com muitas saudades. Sua Tia e vossa amiga que muito lhe estima Andreia Jozephina Dias de Amo. Seu Tia e suas primas visitam você e toda família. 346 uma forma de dizer ao outro que há entre eles uma relação de irmandade, que podemos observar nas cartas de D. Agostinha, grande amiga de D. Levina, que a trata de “querida comadre”. Figura 93: Carta remetida a Maria Levina por sua “cumadre” Agostinha - (06/05/1916) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Na carta acima, podemos observar ainda outra prática muito evidente entre os comunitários de Alto dos Bois e, ainda, realizada, inclusive, por aqueles que migraram efetivamente ou temporariamente para outras cidades ou estados brasileiros, que é o hábito de enviar um alimento identitário. A presença desse registro demonstra que essa busca de uma aproximação ao seu lugar por meio do consumo dos alimentos é algo que, já no início do século XX, marcava fortemente as relações nestas paisagens. D. Agostinha teve que mudar com seus filhos para Diamantina, em busca de trabalho, e é nas correspondências e no contato com sua amiga que ela buscava voltar para o seu lugar. E como ressalta Menezes (2013, p.123) é nessas histórias, que “estão presentes os valores culturais, as representações em torno das práticas de obtenção, preparação e consumo dos alimentos, os quais auxiliam na construção e na manutenção de identidade dos grupos sociais”, estando eles, dentro ou fora de seus territórios tradicionais. Nesse sentido, o “leite de mamãozinho” representa muito mais do que um sabor, um registro familiar ou um saber-fazer, ele é a forma de D. Agostinha sentir a paisagem de Alto dos Bois, as lembranças do lugar, das pessoas, dos encontros, dos pés de mamão, do engenho, do moinho, levando-a ao contato dessa essência de ser de Alto dos Bois. Comadre Levina a Deus Com grande prazer tive hoje em receber sua carta para ter suas notícias e de compadre, as meninas que estão bem. Eu e os meninos vamos indo na forma costumada, mas sofrendo grandes saudades dos felizes dias que aí passei e também da sopa de inhames que tanto apreciava. Com recebe o leite de mamãozinho. Muito lhe agradeço de não esquecer de um pedido que fiz. Deus que lhe pagará. E a Deus abraço compadre e os meninos. Abençoa Gabriella e queira abençoar Rozinha e a Deus c om a lhe um dia que possa ti ver Abraços a Nazinha Sua Comadre e amiga Agostinha 06 de maio de 1916 347 Mais de 100 anos depois dessa carta, o sentimento sobre os alimentos identitários (como o biscoito de goma, a broa de fubá de moinho d’água, etc.) continuam os mesmos. Em diversas vezes que estivemos visitando a família de D. Lia, no Casarão, a encontramos junto com algum de seus filhos produzindo o biscoito de goma para enviar aos demais que não se encontravam residindo mais na região. “Ah, o biscoito de goma tem que ter né!” (Fala de Edson, Alto dos Bois, junho de 2012). Além do biscoito de goma, outro alimento identitário que representa essa conexão forte dos moradores de Alto dos Bois como seu lugar é o doce de marmelo, com o qual também fomos presenteados em uma das encomendas enviadas de lá à uma de suas filhas que reside, atualmente, em Belo Horizonte. Além da migração sazonal, à qual também encontramos referências desde o início do século XX, outra maneira de sair de Alto dos Bois era por meio do alistamento, no caso dos homens mais jovens. Sendo assim, entre março e dezembro de 1919, um dos filhos do casal – Izaias Rodrigues da Cunha – saiu do seu lugar para servir ao exército brasileiro no Quartel do 59º Batalhão de Caçadores localizado em Belo Horizonte (MG). Apesar de Alto dos Bois ter sido um importante quartel militar no século anterior, não encontramos nenhuma associação do vínculo de Izaias ao exército brasileiro com a descendência de seu avô Justiniano. É interessante pontuar que o serviço militar neste período não era algo obrigatório, no entanto, no alvorecer do movimento republicano, o poeta, jornalista, abolicionista, nacionalista, fundador e membro da Academia Brasileira de Letras – Olavo Bilac – desempenhou uma campanha (entre 1915 e 1916) nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, “conscientizando os brasileiros da necessidade do Serviço Militar Obrigatório” (EXÉRCITO BRASILEIRO, S/D, p.1). Tendo em vista, que outros primos e parentes de Izaias também tenham servido neste período, acreditamos que a sua entrada no serviço militar, durante esse período, possa ter sido influenciada por este movimento iniciado por Olavo Bilac. A figura desse tio – que foi um soldado – é fortemente demarcada pelas memórias de D. Lia, seus filhos e vários moradores de Alto dos Bois. Além dos documentos, como a “caderneta de assentamento de praça” e a “caderneta de atirador”, encontramos ainda fotografias e ouvimos algumas histórias de que ele guardava, em seu quarto no casarão, um tesouro – posto, que após a sua morte o quarto onde ele dormia permaneceu fechado por muitos anos. Durante a realização da pesquisa in loco, alguns entrevistados, que não visitavam o casarão a alguns anos, nos perguntavam se o quarto do soldado Izaias permanecia fechado. Esses próprios questionamentos, que nos foram surgindo mediante o contato com a 348 comunidade, nos fizeram buscar, nos registros encontrados, quem foram essas figuras importantes e tão destacadas pela comunidade ainda hoje, como Pedro Roiz, Izaias e alguns outros membros desta família. Soldado Izaias Rodrigues da Cunha Filho de Pedro Rodrigues da Cunha Nasceu em 1897 Natural do Estado de Minas Gerais Estado Solteiro Altura 1 metro e 70 centímetros Barba: raspada Offício: Lavrador Bocca: regular Rosto: Regular Cabellos: Castanhos Lê? Sim Côr: Branca Escreve? Sim Nariz: Pequeno Conta? Sim Vaccinado? Sim Signaes particulares: Não têm. Informações Caderneta de Assentamento de Praça do Soldado Izaias (1919) Figura 94: Fotografias do Soldado Izaias Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois O “histórico militar”, presente em sua caderneta de Praça destaca que o recruta participou de duas missões importantes. A primeira foi em 30 de junho de 1919, quando “seguiu em diligência para a cidade de Divinópolis, neste estado, a fim de acautelar os interesses da União Federal ameaçados pelos grevistas da EFOM (Estrada de Ferro Oeste Minas), que havia chegado à cidade 1890, alavancando o desenvolvimento socioeconômico do arraial (que foi elevado à cidade em 1915). Além disso, o jovem Izaias, aos seus 22 anos, participou (em 5 de novembro) de uma segunda missão, agora na cidade de Sete Lagoas, “nos campos do garimpo”, onde permaneceu durante nove dias. Sobre sua participação no exército há a seguinte descrição feita pelo Coronel Flavindo Ramos: A trinta de dezembro foi louvado pelo Senhor Coronel Comandante do Batalhão pelo procedimento correcto que soube ter diante do tempo em que serviu neste Batalhão, deixando assim crepito vivo digno de ser imitado não só pelos camaradas que continuam nas fileiras do Exército como aos que vão ser incorporados. Na mesma data foi louvado pelo referido comandante pela dedicação e interesse que demonstrou durante o período da instrucção, e especialmente nas manobras (Caderneta de Assentamento de Praça, 1919). Izaias destacou-se também como atirador. Ao chegar no quartel foi incorporado à companhia como atirador de 2ª classe. Em setembro, ele “passou a pertencer à 1ª Classe de tiro por haver preenchido as condições exigidas na classe anterior” (Caderneta de Atirador, 1919). Apesar de ter de destacado bem no serviço militar, conforme consta em seus documentos, em uma das primeiras cartas que enviou a sua família, ele relatou ao pai, que 349 havia sido dispensado do serviço, mas que resolvera ficar, fato que “arrependi bem, mas, porém, foi tarde, mas mesmo assim estou vivendo bem” (Carta de Izaias para família em 22 de março de 1919). Em outras cartas, escritas nos meses seguintes, ele já apresentava certo conformismo com sua situação “não estou sofrendo fome, graças à Deus, e sem me gabar estou desenvolvendo bem no serviço. Meu serviço não é pesado e no mais, aceito”. No entanto, a vontade de voltar, a saudade de casa, dos amigos, irmãos e familiares fica explícita nos trechos seguintes: [...] tenho fé em Deus que ei de voltar aí”; “minha irmã querida do meu coração Carlota [...] não posso lhe contar quanta saudades sofro de você. Toda alegria para mim é tristeza, mas tudo Deus é servido, seja assim fiel a vossa vontade”; “Meu querido irmãozinho, Justiniano, recebi suas lembranças, sei que de mim não esquece. Aceite um apertado abraço deste seu irmão e peço a Deus para nunca te dar essa sorte”; “E no mais, meus querido irmão e minha querida irmã, até um feliz dia que Deus der para nos encontrar para matar a saudade destes corações (Correspondência enviada por Izaias aos irmãos em 22 de junho de 1919 – Acervo do Casarão). Em sua última correspondência (de 28 de setembro de 1919), antes de voltar para casa (após ser dispensado em 31 de dezembro de 1919), Izaias escrevia ao irmão Chiquinho que não se esquecia, um só minuto, de todos de Alto dos Bois, e que estava na expectativa do seu breve retorno. Ressaltou ainda ao irmão, que avisasse aos seus “colegas mais modernos” que não se cassassem antes de se apresentar ao serviço militar, pois muitos que ele conhecia precisaram deixar esposa, filhos, o que lhes causara muita tristeza, angústia e aborrecimento. Entre tantas saudades, Izaias também fizera uma grande amizade durante este período – Joaquim Moura dos Santos, originário de Lagoa Santa (MG), que compartilhando dos mesmos sentimentos expostos por Izaias, descreve da seguinte forma o seu retorno para casa: “Izaias, para mim não houve alegria maior de que a do dia que eu cheguei em casa, junto de meus velhos pais, irmãos, irmãs, cunhados, sobrinhos, amigos e amigas. Para mim parecia um céu aberto, e para viver também era assim!” (Carta de Joaquim Moura, Correio de Vespasiano – Lagoa Santa – 20 de fevereiro de 1920). Após o seu retorno, a presença de Izaias em Alto dos Bois foi registrada em algumas cartas, cadernetas de fiado e ITRs no período de 1920 a 1946. Assim como seu pai, Izaias parecia ter sido uma importante referência na região, pois assinava como testemunha algumas dívidas de colegas, realizava o pagamento de dívidas junto aos mercados para seus familiares e era sempre lembrado pelos amigos que estavam distantes nas cartas enviadas para a família. A partir do ano de 1942, que acreditamos ter sido o ano de falecimento do seu pai, ele assumiu parte da fazenda, o que é comprovado pelos ITRs que recebeu entre 1942 e 1946 referente a uma propriedade em Alto dos Bois. 350 Figura 95: Árvore Genealógica de Izaias Rodrigues da Cunha 351 A partir da reconstrução genealógica, obtida a partir do cruzamento de algumas entrevistas, descobrimos a seguinte ramificação familiar de Izaias Rodrigues da Cunha (Figura 95). Izaias casou-se primeiramente com Amélia, e tiveram sete filhos. Sabe-se pouco dessa parte da família de Izaias, apenas tem-se notícia dos já falecidos, alguns que foram para São Paulo e outro que ainda mora na comunidade de Paudolinho, em Minas Novas. Foi do seu relacionamento com Maria Camargo (Mariinha) que se originou a maior parte de seus descendentes – “Essa que eu to falando, chamava Maria também. Tratava ela até de Mariinha. Era pretinha, pretinha ...” (D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Verificamos que muitos membros da família “Rodrigues da Cunha” se relacionaram com filhos ou descendentes da família Camargo – linhagem que corresponde aos descendentes dos negros escravizados do casarão na época da escravidão. Assim, acredita-se que logo após a abolição da escravatura, assim como aconteceu em diversas regiões do Brasil, esses negros ficaram trabalhando e morando nas proximidades das fazendas de seus antigos donos, alguns estabelecendo, inclusive, relações familiares, como é o caso de diversas configurações familiares em Alto dos Bois. Segundo D. Lia, seu tataravô, Justiniano, chegou a conceder a eles uma terra num local chamado “Capoeira dos Negros”: [...] os negros que ele tinha, depois que entrou a lei, que libertou, né, aí... diz que ele [Justiniano] deu até um lugar pros negro, que nós quando a gente ia pra Capelinha, passava lá nessa estrada, e eu tenho certeza que hoje já virou estrada de...rodagem, e tem muitos morador, a gente não sabe a artura mais ou meno não, mas tinha a Capoeira dos Negros. E eu acho assim, que meu tataravô, depois que surgiu essa lei, que então falou, deu eles o lugar deles, fazer, deles mora né? (D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Ao nos relatar sobre os escravos que existiam na região, D. Lia registrou ainda que, na época do seu tataravô: [...] diz que eles vendia, vão supor, eles gostava daqueles que era mais esperto, aquele que era mais lerdo, aí diz que ele vendia. Diz que ele vivia brigando, que tinha um... punha eles pra debulhar milho, diz eles queria um debulhar mais que o outro porque não queria sair. Né? Que quando achava um que tratava mio, uai, que eu julgo assim, que até hoje tem, não tem? Patrão que trata um mais ruim outro que trata mio... então nenhum deles queria sair de lá. Que quem me contou foi a minha prima. Que era irmã desse que tava lá naquela gradinha azul. Que o pai dela contava e falava que diz que eles fazia, de debulhar de primeira, mais depressa, queimava o sabugo que, que o sabugo é cheio de linha, e queimava ele pra ver se debulhava mais. Diz que eles escondia o sabugo, diz que os outro ia lá eles virava aquela briga... “ai, que cê pegou meu sabugo, de debulhar dele”. Era engraçado essas história, que se o mais velho não tivesse morrendo e tivesse passado pros mais novo. Igual, ela , ela é mais veia do que eu, então, o pai dela contou isso pra ela né? (D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). 352 Segundo Sr. Tião (Sebastião Chaves Camargo) – esposo de D. Ana (neta de Izaias Rodrigues e Mariinha Camargo) – seus avós, por parte de mãe, também eram escravos. Como ele não chegou a conhecer nenhum de seus avós, ele não soube nos dizer muitas histórias sobre esse tempo, mas ressaltou que: [...] meu avô era cativo, mas eu acho que ele não trabalhou naquela fazenda. Meu avô, do lado de mamãe. Ele trabalhava numa outra fazenda, uma tal fazenda dum...dum... Joaquim Camargo. Mas lá na fazenda de Alto dos Bois dizem que teve escravo, mas eu não sei nem se meu avô trabalhou lá. Mas o escravo é feito um animal, boi ou um cavalo de serviço, o que for, que vendia, ou eu acho que emprestava, eu sei lá, as vezes até aconteceu dele ter trabalhado. Mas é só porque eu não posso falar, não [sei se] o meu avô trabalhou ali, que meu avô morreu no dia 06 de agosto de 1935 (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Sr. Tião, ao falar sobre sua casa, lembra-se de sua mãe e de seu avô – “Eu não considero que isso aqui é meu não, eu considero que isso aqui é de mamãe, porque eu sou neto de escravo. E meu avô trabalhou na escravidão pra pagar isso aqui” (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Além de neto, Sr. Tião também se casou com uma descendente de negros que foram escravizados na região, que é Dona Ana, também oriunda da família dos Camargo, como podemos observar na árvore genealógica da família Camargo apresentada na Figura 96. Segundo D. Lia, a tataravó do Sr. Preto (seu esposo e irmão de Dona Ana) – Rita Camargo, que era tratada por todos do Casarão como “Tia Rita”, era negra, e era escrava do casarão. Na percepção de D, Lia seu esposo fala pouco sobre essas histórias, porque, diferente de sua tia Carlota, que lhe contava tudo, os familiares do Sr. Preto não falam muito sobre esse passado. Essas “histórias veladas” (principalmente por aqueles que se reconhecem como descendentes diretos dos negros escravizados) também foram observadas em outras comunidades quilombolas que vistamos no Vale do Jequitinhonha. 353 Figura 96: Genealogia da Família Camargo (Descendentes de negros escravizados na região). 354 Foram poucos os relatos que conseguimos levantar a respeito da escravidão. Observamos que esta ainda é uma questão muito velada na comunidade. Neste contexto há o lado daqueles que descendem dos negros escravizados, e que ainda possam trazer ressentimentos dessas relações (inclusive na Fazenda); e há ainda os descendentes dos grandes fazendeiros da região, que mesmo estabelecendo relações familiares com os descendentes destes negros, carregam muitas das histórias de exploração e expropriação atreladas às atitudes de seus tios, avós e bisavós. Muitas dessas relações desencadearam ainda em diversos casamentos entre primos, o que era (e ainda é) muito comum na região. E é dessa união entre os primos Adão Camargos e Maria Cordeiro Chaves (ambos netos de Manuel e Rita – que foram escravos no Casarão) que descende o Sr. Preto (esposo de D. Lia e atual proprietário do Casarão). Logo, o Sr. Preto também é primo de sua esposa, uma vez que é neto de Izaias, que era tio de 2º grau de D. Lia. A maior parte dos descendentes de Izaias foi morar no estado de São Paulo (nas cidades de Ribeirão Preto, Sorocaba, dentre outras que os informantes não souberam destacar). Os demais se encontram na Comunidade de Barra do Capão e em outras localidade rurais localizadas no mesmo município ou em municípios limítrofes a Angelândia, tais como: Fanado e Santo Antônio dos Moreiras (em Angelândia); Santiago e Paudolinho (em Minas Novas) e Soares e Fanadão (em Capelinha). O contexto da migração emerge como um “contraponto” na construção das paisagens culturais de Alto dos Bois (e de diversas outras localidades do sertão mineiro), o que, na perspectiva de Costa (2016), elenca uma série de descontinuidades na vivência e convivência dessas comunidades. Dentre os nossos sujeitos em análise, a família que mais produziu registros sobre essa realidade foi a família de Maria Rodrigues da Cunha, dentre os quais encontramos 95 cartas que a mãe recebera dos filhos e familiares no período de 1950 a 1991 e ainda 17 que escrevera para os filhos entre 1954 e 1974. O trabalho sazonal é uma realidade ainda latente em todo o Vale do Jequitinhonha. E são muitas as famílias que se separam em decorrência das oportunidades de trabalho em outras regiões. Até mesmo aqueles que vão, quando se deparam com alguma oportunidade por lá, logo se lembram dos amigos e buscam alguma forma de leva-los também. No trecho que apresentamos abaixo, podemos observar a importância que é atribuída à presença dos companheiros da terra natal “nestes lugares de outros”, aproximando-os das suas origens e das relações de amizade, companheirismo e parceria presentes, também, no modo de ser e trabalhar desses “seres do Vale”. 355 São Paulo, 26 de fevereiro de 1972 Ao meu amigo José Nascimento os meus votos de felicidade que Deus e Nossa Senhora Aparecida o cubra com seu divino manto sagrado, são os votos que lhe deseja Deocleciano Lopes. Nascimento, eu estou um pouco triste por estar ausente de todos meus colegas, e aqui em São Paulo, dificilmente conseguiria arranjar colegas porque os rapazes daqui são (...), pousado na arquitetura da insensibilidade. E não querendo te prejudicar, prejuízo adicional, mas acredito que nesta época não há maior serviço aí em nosso município, portanto se você quiser ficar aqui uns meses junto comigo, era um prazer, além de revê-lo. Se você quiser vir eu ajudarei você arranjar emprego. Se você tiver o certificado de reservista os outros documentos nós tiramos aqui. Se você vier mande uma carta urgente para mim dizendo dia e mais que você vem. Aqui na Capital, é muito bom de trabalhar, principalmente quando é em dois colegas unidos. Se você não conseguir arranjar emprego pra você na mesma firma que trabalho, arrumamos em outra. Se você vier, traga um pouco de dinheiro pra nós alugar um quarto e ficarmos juntos. Venha ou manda uma carta urgente pra mim, tá! Sem mais para o momento subscrevo atenciosamente; Deocleciano Lopes Ainda sobre as oportunidades de trabalho em São Paulo, encontramos uma carta na qual um dos filhos de D. Maria relata que em São Paulo há outro tipo de serviço que eles podem encontrar, o qual se difere do trabalho nas lavouras, ressaltando-se, principalmente, o tempo de trabalho e a segurança, como podemos observar no trecho a seguir: “Mãe, eu também resolvi dar uma experimentada em São Paulo. Mãe, estou ganhando 3 cruzeiros por hora, e faço 8 horas por dia. Mãe, trabalho é seguro, não vou na vaidade de São Paulo, estou segurando para mim ir para ajudar vocês” (Sebastião Lopes Rodrigues, São Paulo Capital, 12 de janeiro de 1975). Todavia, muitos acabam se direcionando para trabalhos em grandes lavouras nos estados de São Paulo e Paraná, deslocando-se, em alguns momentos, entre cidades, nas quais já existe algum tio, irmão ou amigo precisando de “companheiros” para o trabalho: “Alô Tonho, o Jovacir já está te esperando para ajudar ele a fazer a colheita, está morando no Japurá, vem aqui que eu te levo lá. Se você vier, traga um companheiro para mim, se vier o Tião, melhora ainda. Demar e Telé não chega para as [lavouras] que querem” (Raimundo R. Lopes, Floresta, 22 de agosto de 1971). Outro aspecto interessante de se ressaltar é a ligação forte que esses trabalhadores acabam estabelecendo com as lavouras onde estão trabalhando, enaltecendo-as sempre nas correspondências com os familiares, ressaltado toda a sua satisfação pela chuva, pela colheita e pelos alimentos e lucros obtidos: [...] é com grande satisfação que digo para você que eu já terminei a minha colheita; colhi 160 sacos de soja e 125 sacos de milho. O preço do milho é 6.200 e soja 15.500, por saco (Raimundo Rodrigues Lopes, Floresta, 12 de maio de 1969). [...] Querida mãe, a lavoura aqui está uma joia. Está chovendo bastante, graças à Deus. Nós já plantamos feijão e milho e algo mais (Romualdo Rodrigues Lopes, 28 de setembro de 1974). 356 No entanto, a lavoura e as criações do seu lugar, da “sua roça” nunca são esquecidas, pois os irmãos que migraram sempre solicitam, nas cartas enviadas para a mãe, que os demais, irmãos ou primos que tenham ficado em Alto dos Bois, os ajudem a cuidar de suas roças e animas, procurando sempre ter notícias ou fazer negócios com os mesmos conforme a necessidade da família: Mãe, mande me dizer como vai minha criação. Irmão Demar, se minhas cana der futuro você compra um burro pra mim, tá? (José Nascimento L Rodrigues, 08 de maio de 1976). Mãe, peço a senhora não vender minhas vacas, porque o meu futuro é este aí, eu não tenho nada de futuro faz 3 anos, que toco roça e estou dando na cabeça por cousa da seca que esta sendo muito (José Nascimento L Rodrigues, 11de fevereiro de 1979). Mãe, [...] como está as lavouras, os cafezal vai dar bastante esse ano, nós vamos aí em julho para colher café com você, espero que esta tudo bem por aí. (Sebastião, São Paulo Capital, 18 de maio de 1988). Outro aspecto marcante das correspondências entre mãe e filhos é a afetividade e o carinho que emanam das palavras de ambos. Há sempre um cuidado velado pela “querida”, “bondosa” e “amada” mãe e pela dor da saudade do lar, da família e de todos, a qual é desvelada logo nas primeiras linhas das cartas: “Minha Bondosa mãe Maria Rodrigues da Cunha, é com o coração cheio de saudades que pego na caneta para dar-te as minhas notícias; e ao mesmo tempo pedir a sua benção e do bondoso pai” (Sebastião Lopes Rodrigues, Indianópolis (Paraná), 20 de novembro de 1972). E também nas últimas linhas: “Ao terminar esta, peço a benção da Senhora e do querido pai e chorando de saudades despede o seu amoroso filho”. (Sebastião Lopes Rodrigues, Floresta, 08 de agosto de 1972). Às vezes, a saudade da mãe e a ausência de notícias geravam, inclusive, uma cobrança da mesma sobre os filhos – “Ficamos alegre ao receber, porque a mais de 10 meses não tinha notícias de vocês. Já não sabia mais o que pensava, se escrevia e não tinha resposta” (Maria Rodrigues da Cunha, Alto dos Bois, 18 de junho de 1970). Mas tais sentimentos logo se apaziguavam frente a respostas tão carinhosas de um filho: Mãe, eu aprendi esta frase com a Senhora. Deus tarda, mas não falta! E é a pura verdade...Mãe a senhora reclama que eu esqueci da Senhora, por favor, nem pense uma coisa dessas, eu só não estou aí junto da senhora porque o destino quis assim. Não se desanime querida mãe, porque logo que eu tiver uma folguinha estarei aí ao seu lado. Por que das coisas boas do mundo a Senhora é a mais importante para mim... (Raimundo Rodrigues Lopes, Indianópolis, 02 de dezembro de 1979). Ora a saudade dos migrantes se manifestava pela lembrança dos lugares, dos amigos, dos encontros e dos alimentos: “estou sentindo até o cheiro do café de leite e os biscoitos (...)” (Sebastião Rodrigues Lopes, Indianópolis, Paraná, 1972); “não esqueço das queimadas de pinga com rapadura da casa do Neneu” (Sebastião R. Lopes, São Paulo, 09 de 357 junho de 1976). Ora o coração apertava ao se receber uma fotografia dos familiares em seus antigos ou novos contextos de vida: “Mãe, não repara esta fotografia porque está muito “plaiboy” tirei para fazer o alistamento e não serviu por causa do cabelo grande” (Sebastião Lopes Rodrigues, Indianópolis (PR), 20 de novembro de 1972); “Mãe, me cortou o coração por ver a senhora e o pai e todos que estavam na fotografia, por saber que estou tão distante de você” (Filho, Saudação/PR, 21 de abril de 1973). Além do carinho inestimável dos filhos, D. Maria Rodrigues recebia sempre notícias de seus netos, inclusive os recém-chegados – “Mãe, tenho prazer em dizer que a senhora já tem outra netinha e chama-se Vanilda” (Valter Lopes Rodrigues, Indianópolis/PR, 20 de julho de 1974). Os quais, depois de mais crescidos também estabeleciam fortes laços afetivos com a avó por meio das tão esperadas cartinhas: Olá vó, tudo bem? Espero que esta a encontre com saúde e felicidade. Vó aqui estamos todos bem, graças à Deus! Estou escrevendo estas poucas linhas para dizer que já não suporto mais a saudade da senhora e de todos. Vó se não fosse tão longe daqui aí, hoje mesmo eu estaria bem pertinho da senhora, porque a senhora é minha segunda mãe (Marcos Carlos Lopes, Sete Lagoas, 06 de agosto de 1979). Querida vó, estou morrendo de saudade da senhora. Vó estou com muita vontade de ir até aí. Eu estou na sexta série e espero que eu passe para a 7ª. Vó está tudo bem aqui e espero que esteja aí também. Vó gostaria que a senhora viesse até aqui (Maria Helena Lopes, Sete Lagoas, 09 de novembro de 1987). E quando faltava uma fotografia ou lembrança para enviar para a vovó, valia até o a pontinha do cabelo de cada netinho, guardada por tantos anos com muito cuidado pela avó e depois pelos familiares responsáveis por zelas por estas lembranças tão significativas da história de suas famílias, e que se repetem em tantas outras, vítimas da migração, em várias outras localidades do Jequitinhonha. Assim, como ressalta Claval (2007, p.84-85) “os objetos não são simplesmente suportes da memória funcional. Eles tomam frequentemente uma forma simbólica: guardava-se para si uma mecha de cabelos de quem se amava antes mesmo de se dispor de sua pintura ou de sua fotografia”. 358 Figura 97: Mechas de cabelo dos netos de Maria Rodrigues da Cunha Fonte: Acervo Prefeitura de Capelinha (2016) A migração resulta ainda em uma série de mudanças de percepções de mundo, perspectiva de vida e hábitos. O filho que vai, se casa e volta com a nova família para visitar seus familiares, quando volta precisa mediar, muitas vezes, esse choque de culturas e modos de viver, que se revelam, inclusive, no simples fato de não existir um meio de transporte entre as cidades ou vilas e os povoados de sua origem: “Mãe, como eu disse, que se der tudo certo, a gente vai aí em junho ou julho, gostaria que me escrevesse como está as conduções pra vila ou Moreira, porque eu estou um pouco desacostumado de andar a pé, imagina a Lourdes que não tem costume de andar muito” (Sebastião e Lourdes, São Paulo, 04 de março de 1979). Dona Maria Rodrigues da Cunha, uma das filhas de Pedro Roiz e Maria Levina, casou-se com Pedro Lopes da Silva, que era filho de Francisco Lopes da Silva (oficial de Justiça) e Emília Figueiredo de Macedo (que diziam ser uma índia “pega no laço”). D. Maria e Sr. Pedro tiveram 12 filhos (conforme apresentado na genealogia abaixo). Sobre seus avós paternos – Francisco e Emília – vale a pena apresentar o relato de Sr. Júlio: Mina avó era uma veiona alta, né, isso! Pegada é no mato, né, era uma índia, né, era uma veiona morena, mais morena que Benvinda né? E essa aí né toda cor tinha aquela... que meu vô Chico era branco, né, e ela morena... e meu avô era Francisco Lopes da Silva, né, um véi bobo e ativo, né, naquele tempo eles falava quarteirão, que hoje é oficial de justiça, ele trabalhava assim pra fazer partilha, igual fazia, né? Naquele tempo eles falava era quarteirão,né, oficial de justiça, né, juiz de direito também, né, isso é antigamente eles falava... Vovô Chico deve ter morrido assim com uns... oitenta e poucos anos, e vovó também foi nessa assim, até mais, que vovô Chico morreu primeiro, né. E ela, nossa eu lembro muito dela, nós vinha aqui, ela tinha um fogãozinho assim, pocava lá, ela uma veiona alta, assim, ninguém via os pé dela não, desde quando eu conhecia ela, vestia aqueles trenhão rastando assim... Saía lá do Miguel de Meira, onde eles morava, aí vinha passear na casa de pai, que ele gostava muito dele, isso é, todo fio gosta da mãe, né? Vinha aquela veiona arrastando aquele negócio, aquele covão daquele vestido... (risos) ... era o sistema dos antigo, né? ( Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Mãe, Os meninos não tinha nada para mandar para a Senhora, resolvemos cada um deles mandar uma pontinha do cabelo como recordação para a senhora. - Glorinha - Guico - Dalvinha - Carlinhos - Ronildes 359 Figura 98: Genealogia da família de Maria Rodrigues da Cunha e Pedro Lopes da Silva 360 Sr. Pedro Lopes e seus filhos eram também importantes comerciantes na região. Em 02 de agosto de 1959, ele recebera uma carta do proprietário de mercado da Vila dos Anjos (Angelândia), José Machado de Almeida, solicitando a ele que lhe desse preferência na compra da produção de marmelos desse ano, indicando ainda seu interesse na obtenção dos produtos dos vizinhos do mesmo, como podemos observar na transcrição da carta apresentada abaixo: Vila dos Anjos, 2 de agosto de 1959 Caro amigo Pedro Lopes da Silva, saúde e muitas felicidades é que sempre lhe desejo: bem assim a sua excelentíssima família; quanto eu e os meus, ficamos com saúde. O fim desta é pedindo a “preferença” dos seus marmelos deste ano eu compro os seus e também compro de algum seu vizinho no caso que o senhor não possa mandar trazer aqui eu mando buscar em sua casa, eu preciso é saber de uma certeza para que eu possa contar com os seus marmelos: prometo fazer um preço bom: e peço o favor de conversar com os seus vizinhos que tem marmeleiro, no mais aqui fico ao seu inteiro dispor. José Machado de Almeida (Caderno de Escrivão - Acervo Prefeitura de Capelinha, 1959) Seu filho, Clemente Rodrigues Lopes, também fazia negócios com a venda de burros e mulas. Em algumas correspondências identificamos o histórico da venda de uma mula preta (em outubro de 1959) por um “comprador de burros” que, ao ver sua mula preta na cidade, logo mandou um portador comunicar o seu interesse a Clemente, o qual na sequência foi ao seu encontro, fechando o negócio, cujo pagamento foi feito a prazo com cobrança de 5% de juros em caso de atraso do mesmo. Caro amigo Clemente Lopes; Saudações extensiva a todos seus. Comunico-lhes que aqui chegou um homem comprador de burros e via sua mula preta e disse que dava por ela 12mil cruzeiros e pediu-me para mandar em sua casa sobre este negócio e pagou ainda este portador para levar a carta a sua presença caso lhe convenha fazer este negócio venha com o portador desta. Nada mais, abraço. João Joaquim da Macena Pinto De hoje a, 4, quatro meses ou (120) cento e vinte dias preciso pagar ao Senhor Clemente Rodrigues Lopes ou a sua ordem a quantia supra de Cr (12000,00) doze mil cruzeiros proveniente de uma mula que eu comprei com este referido prazo. Assim como, declaro que na falta do pronto pagamento ao vencer o prazo mencionado, me obrigarei pagar mais os juros de (5) cinco por cento ao mês, até o seu real emboço ou enquanto me for esta concedida e para seu documento mandei passar esta em que me assino. José Fideles de Arbuqueques. Testemunhas: - José Pereira - Abílio Rodrigues Costa - Erasmino Peçanha de Oliveira Alto dos Bois, 02 de outubro de 1959. (Caderno de Escrivão - Acervo Prefeitura de Capelinha, 1959) 361 Entre os documentos relacionados aos negócios e cadernetas de fiado, encontramos ainda um testamento muito curioso, no qual o Sr. João José Lopes deixa para seus amigos alguns de seus bens após a sua morte, e dentre estes companheiros estavam alguns membros da família Lopes e Rodrigues da Cunha, como podemos observar na transcrição apresentada a seguir: Testamento que faz João José Lopes depois de ter acertado todos os meus negócios resolvi fazer este testamento deixando inscrito e sobre os meus cuidados, até o resumo da minha vida: que os interessados após a minha morte poderão passar a sai deste papel, levando-o a juiz e promoverem o dividendo dos bens deixados por mim João José Lopes, que sendo solteiro e não tenho pai nem mãe, nem irmão, lançou mão da pena deixando para seus amigos. Uma mula ruana careta arriada fica para Valter Rodrigues Lopes 10 burros arriados fica para Valdemar 30 vacas fica para Sebastião Rodrigues Lopes 4 carabinas e 2 revolvos fica para José Nascimento Lopes Uma fazenda de terras na Lagoa Grande fica para Leopoldino Rodrigues da Cunha. Uma trela de cachorros bons, fica para o Sr. Tibúrcio caçar viado no Alto dos Bois. (Caderno de Escrivão - Acervo Prefeitura de Capelinha, 1959) Após adoecer no início da década de 1970, Sr. Pedro faleceu em 1974. Dona Maria permaneceu com alguns de seus filhos em Alto dos Bois até o final desta década, vindo a falecer no município de Sete Lagoas, onde morou com suas filhas (no dia 03 de agosto de 1998). Como podemos observar na sua árvore genealógica, ainda permanecem em Alto dos Bois dois de seus filhos, Romualdo e Júlio. Atualmente Sr. Júlio e sua esposa D. Benvinda, possuem uma casa em Capelinha, e é seu filho Jureilçon quem cuida do terreno do pai. Em 2015, ele retornou da migração, investiu em plantações de abóbora e tomate, e junto com alguns primos, hoje consegue sobreviver na sua terra vendendo seus produtos para as feiras locais. Sobre o trabalho de seu filho, D. Benvinda ressalta: Ocê teve lá na plantação dos Jureilçon? Ah aquilo lá agora menina, ele plantou tanto no ano passado... tanta bananeira lá, eu mesmo deve ter uns 90 dias que eu não vou lá, deu cacho pra todo canto... plantou naquelas serra tudo, naqueles morro tudo, plantou bananeira, Nossa Senhora... mas ele plantou tanta bananeira, e ele tem fé com coisa pouca não, ele planta assim, três, quatro alqueire de feijão...e plantando, e mexendo com irrigação e... nossa, mas ele tá trabalhando mesmo ali... aquela abóbora chinesa, aquela muranga, daquele tipo muranga, né? Ele plantou até naquela serra, e ele tem vendido tanto... essas região toda aqui compra elas, igual agora... mas lá a plantação dele é tanta gente que quer ir lá ver... iche... até o prefeito de Angelândia já foi lá olhar... ele gostou mesmo, mas ta bonito as bananeira que ele plantou lá, as primeira, tá tudo soltando cada um cacho, né... (D. Benvinda, Capelinha, março de 2016). Os demais irmãos de Jureilçon também estão fora de lá, residindo em Belo Horizonte, Triângulo Mineiro, São Paulo e Santa Catarina. A maior parte dos descendentes de Maria Rodrigues da Cunha hoje reside em Sete Lagoas (MG), mas ainda há alguns de seus filhos que permaneceram em São Paulo e Paraná, onde a maioria deles começou a vida, como 362 já apresentamos anteriormente. Há ainda Maria Levina, filha de Maria Rodrigues, que nasceu em Alto dos Bois, mas que, após se casar, mudou-se para o distrito de Santo Antônio dos Moreiras (Angelândia), onde reside com seus oito filhos. Outro elemento importante que configurou as paisagens culturais e a dinâmica sociocultural de Alto dos Bois, que nos foi revelado pelos relatos de vida dessa família, e de outras se cruzaram nessas histórias, é a educação. No início do século XX não existiam ainda escolas na região, havia alguns professores que ministravam aulas particulares nas fazendas ou nas vilas e cidades. Em 1939, por demanda dos senhores Joaquim Vieira, Vicente Pego e Jacinto José Ribeiro (proprietários da maior parte das terras da região), chegou ao município de Capelinha a primeira professora – Maria Júlia, que foi seguida por Conceição Reis, Maria do Socorro, Vicentina Neves, José Batista e Benvinda Damas (todas lecionaram em uma casa que serviu de prédio escolar particular durante muitos anos). No entanto, antes mesmo da chegada da escola à Capelinha, a população da região era alfabetizada em sua própria residência, por meio da contratação de professores particulares os quais, em sua maioria, tratavam-se de comerciantes, que detendo o conhecimento da escrita e leitura, lecionavam nas fazendas da região a partir do chamado dos próprios fazendeiros. Neste sistema, o primeiro professor que deu aulas na região de Capelinha foi Epaminondas e na região de Alto dos Bois foi Tibúrcio Celestino de Almeida. Filho de Antônio Galdêncio de Almeida e Preciliana Maria das Neves nasceu em 31 de março de 1888, no município de Rio de Contas (Bahia). Filho e neto de comerciantes, Sr. Tibúrcio começou a trabalhar na loja do seu avô quanto tinha em torno de onze anos de idade. Ao relatar sobre o seu pai, D. Hermelinda ressaltou que mesmo após a abolição da escravatura, ele lhe contava, que na época da fazenda de seu avô, em Rio das Contas, ele chegara a conhecer alguns escravos que ainda viviam na fazenda, por volta dos seus cinco anos de idade. Em torno de 1915, a família de Sr. Tibúrcio veio para a região de Capelinha (no estado Minas Gerais) e alguns anos depois, ele se casou com Tereza de Souza Gandra. Tereza era filha de Clemente de Souza e Maria Fernandes Gandra, lavradores oriundos do município de Aricanduva, onde possuíam uma fábrica de fumo. Tibúrcio e Tereza viveram muitos anos em Capelinha, onde, segundo D. Hermelinda, ele havia trabalhado em quatro ofícios diferentes: secretário da prefeitura de Capelinha; fiscal do mercado; carteiro e tropeiro. 363 Figura 99: Tereza de S. Gandra e Tibúrcio Celestino de Almeida (Arquivo pessoal de D. Hemelinda) Sobre as atividades que exercia na prefeitura de Capelinha, D. Hermelinda ressaltou que, no ano de 1928, seu pai trabalhou como secretário municipal e também como fiscal do mercado, o qual não sabe ao certo quando foi seu exercício. Sobre a função de fiscal do mercado Martins (2010, p. 11), ressalta que cabia ao mesmo: [...] prestar auxílio eficaz ao diretor na observância do regulamento do estabelecimento, examinar os gêneros alimentícios para que não ocorresse falsificação com a mistura de substâncias, tomar nota da chegada dos tropeiros, fiscalizar a pesagem dos gêneros, fazer a inspeção das dependências do Mercado, para conservá-lo limpo e em ordem, separar as mercadorias dos carregamentos destinadas a varejo e fiscalizar o varejo dos mantimentos. Segundo D. Hermelinda, seu pai trabalhou como carteiro durante 10 anos de sua vida, transportando as malas de correspondências no lombo de burro, fazendo, principalmente o trecho de Capelinha, Setubinha e Novo Cruzeiro. Ela conta que as cartas, que vinha de Belo Horizonte, e que chegavam a Capelinha no lombo de um animal, eram separadas e colocadas em um “sacão” ou uma “mala grande”, feito de um tecido muito resistente e impermeável, “que se chovesse, água não entrava não!”. Além das correspondências o carteiro, na época denominado de “correio” ou “estafeta”, levava ainda a chave da mala, que deveria ser entregue ao receptor, e um tubo de alumínio, onde era depositada a “guia, aqueles papéis que meu pai levava pra apresentar o [responsável] de lá. O de lá assinava, tornava a por dentro desse tubo. Um tubo redondo assim, que cabia os papel dobradinho e tampava. ele trazia isso com tudo cuidado. Não podia perder” (D. Hermelinda, Angelândia, setembro de 2018). Sobre o transporte dessas correspondências e a responsabilidade que era atribuída a estes funcionários, D. Hermelinda nos contou um caso que acontecera com seu pai. Aí colocava essas carta, esses embrulho que vinha tudo dentro desse sacão, dessa mala grande, e punha nos burro e ía levar. Chegava lá, o dono lá da agencia lá recebia, abria, que era um lacre, era fechado, uma coisa lacrada, e as chavinha tudo 364 era dada pra quem levava, quem perdesse uma mala daquela ficava preso pro resto da vida. E ele salvou um companheiro. Tinha um tal Mestre Domingo, em Capelinha, um preto alto que eu conheci, esse, esse correio, ele viajou, e ele facilitou na estrada, e perdeu uma mala, e o burro entrou por um carreiro, e saiu lá na estrada adiante, e a mala caiu. Meu pai foi atrás, fazendo outra viagem, o primeiro que foi, perdeu essa mala, e meu pai, de ultimo, foi e achou essa mala. Chegou lá o mestre domingo já estava preso. Aí o dono da agencia lá falou: “É... o correio, o mestre Domingo, tá preso”. Aí meu pai falou, “pois eu vou tirar ele agora, que eu achei a mala”. E salvou ele, ele tinha uma coisa com meu pai lá em Capelinha, ele agradecia sempre (D. Hermelinda, Angelândia, setembro de 2018). Segundo Bonsembiante (2006) os serviços postais chegaram à província de Minas Gerais no ano de 1798, a fim de viabilizar, principalmente, a troca de informações entre a corte portuguesa (no Rio de Janeiro) e os principais centros urbanos e comerciais que se estabeleciam nessas regiões. Segundo o autor, a presença das agencias de correios em Minas Gerais foi crescendo exponencialmente entre 1830 e 1870, correspondendo a 18 agências no primeiro período, 52 (em 1830) e 123 agências (em 1870). Nos mapas do trajeto desses serviços postais em diferentes períodos (apresentados pelo autor), podemos observar a evolução desses caminhos na região do Termo de Minas Novas. Até 1830, o trajeto feito no Vale do Jequitinhonha, se restringia às agências de Diamantina, Minas Novas e Rio Pardo de Minas (já no norte de Minas Gerais), sendo percorrido por no máximo quatro funcionários (ou estafetas – termo utilizado na época, com já ressaltamos anteriormente). Nos demais mapas de 1867 e 1870, os trajetos passam a alcançar Diamantina, Capelinha, Minas Novas, Araçuaí, Rio Pardo de Minas e Teófilo Otoni (já no Vale do Mucuri). Nos trajetos feitos entre o Rio de Janeiro, Ouro Preto, Diamantina e Minas Novas o transporte era feito com cargueiro, podendo ser utilizado, em alguns casos, as diligências (carruagens fechadas de quatro rodas puxadas por quatro cavalos). Em outros trechos, como entre Minas Novas e Araçuaí; Minas Novas, Capelinha e Teófilo Otoni e Minas Novas e Rio Pardo o trajeto era feito sem cargueiros oficiais, sendo então contratados homens de confiança da região que já exercessem o ofício das tropas, como era o caso do Sr. Tibúrcio. O trabalho com as tropas é outra característica muito latente na memória de D. Hermelinda quando relembra do pai. Segundo ela, naquele tempo, “todo mundo vivia com essas tropa. De fazer frete, mudança, levar de uma coisa pra outra, ir a Montes Claros comprar coisa, aí pros negociante de Capelinha, a vida era essa” (D. Hermelinda, Angelândia, setembro de 2018). Sr. Tibúrcio tinha em sua tropa: uma mula de guia, nove burros de carga e um burro de coice. Ao me relatar essas distinções, D. Hermelinda repara em minha feição a mesma curiosidade que ela tinha quando era criança e seu pai distinguia os 365 animais dessa forma, então a fim de me explicar (entre risos) tais distinções ela descreveu da seguinte forma a mula de guia e o burro de coice: [...] a mula de guia não punha carga nela não, era toda enfeitada, tinha aquela porção de coisa na mula, na guia. [...] o burro de coice eu perguntava também, eu falava com meu pai, mas porque falava burro de coice? Porque tinha a mula de guia, os nove burro de carga, e esse burro atrás que ia em pelo, não tinha cela, não tinha nada, era pra o cozinheiro descansar. Ia andando a pé um légua, às vezes duas, três... Naquele tempo falava légua, hoje fala é quilômetro. Aí, quando cansava, o cozinheiro que, quando ia, tinha o cozinheiro, tinha a trempe de ferro, que bate, pendura o caldeirão, aquelas coisa, aí, levava a despesa nesse balainho cumprido, aí. Esse moço, quando cansava, montava nesse burro de coice, porque era o último, era o último (risos), tinha a mula de guia e o burro de coice (risos). E é isso que a gente achava engraçado, porque era o último (D. Hermelinda, Angelândia, setembro de 2018). Ao relembrar do trabalho do pai como tropeiro, D. Hermelinda, salientou, principalmente o transporte do querosene e da pedra de sal – “E as tropas trazia querosene, aquele salão grosso, do jeito que tirava do mar lá, trazia aqueles pedrão, sabe, sem passar em máquina nem nada. Vinha aqueles caramujo do mar, aqueles trem tudo, não beneficiava não. E tinha as medida”. A importância e a dificuldade do acesso a tais mercadorias foram também registradas por Seu Tião, ex-aluno de Tibúrcio e tropeiro por influência do pai, que também exercera essa profissão. E busquei sal em Poté, ni burro, daquele sal grosso, pedra, pedra dava pedra até de quilo [...]tinha pedra de sal de quilo. É cê quebrava de mão de pilão, punhava no pilão e saia masserando. Então eu ia buscar o sal, quando eu chegava em casa, tinha aquela fila de gente, a avó dela mesmo era uma, alguém mais por aí era um, tá lá, um esperando o sal chegar, um com capanguinha de um lado, outro vazia. É eu vim pegar um punhado de sal, porque eu já tomei emprestado com não se quem... (risos) comprava na medida, pra receber dia de serviço, e um panhava uma medida de sal na capanga la´... é nós vamo levar, essa medida de sal tem que dar pelo menos por 30 dias. O sal era difícil né? (risos) [...] Querosene é igual eu contei o caso aí né, papai era muito trabalhador, comprava uma lata de querosene de 18 litros, mas era lata mesmo, o tambor já é mais novo, a lata era quadrada [...]Tinha a marca Jacaré. Perigo pra carregar e estourar né. E o burro que vinha trazendo querosene, tinha ele mais reservado pra não tomar coice, nem bater uma carga na outra. Porque se batesse quebrava. Chegava aí: oh me vendo um quarto de querosene, me vende a garrafa (Sr. Tião Vicente, Barra do Capão, setembro de 2018). Senhor Preto também destacou a dificuldade que era para conseguir o sal e as consequências da falta do sal para o condicionamento dos alimentos e cuidados com as criações: [...] o custo de vida antigamente era tão difícil, que não usava sal, eles ficava com o capado aí engordando sem poder matar por conta de sal, tinha que ir lá em Teófilo Otoni pra buscar sal e chegar aqui pra distribuir com a vizinhança. E buscava de burro, não tinha estrada, buscava de burro, tinha hora que o porco passava da hora de matar por conta de sal. Porque não tinha sal pra guardar o toucinho, porque eles guardava era salgado. O porco não levantava mais pra comer, só ficava lá sentado e comia e deitava (Sr. Preto, Alto dos Bois, dezembro de 2012). 366 Outro aspecto, também ressaltado por D. Hermelinda e Sr. Tião, foi a utilização do caixote que transportava a querosene para fazer uma nova medida de mercadorias, que correspondia a meio alqueire, aproximadamente 18 quilos de grãos ou artigos secos. “Media café com aquele caixote. Eu comprei muito café na mata, ou, um café de meio alqueire aí! Esse era o caixote da querosene” (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Em 1939, Sr. Tibúrcio abandou a tropa, vendeu os animais e mudou-se com sua família para a região de Vila dos Anjos, sendo um dos primeiros moradores a se estabelecer na região. Segundo D. Hermelinda, seu pai fora convencido por três amigos que disseram que “o lugar tava começando” e que se “fazia muito negócio”. Ela ressaltou ainda que seu pai estava também “preocupado com a chegada de carro, que eles ia tomar o jeito dele viver”, pois, com a abertura da estrada entre Diamantina e Capelinha, a chegada dos veículos de transporte poderiam acabar com ofício dos tropeiros. Sendo assim, Sr. Tibúrcio decidiu vender tudo que tinha em Capelinha e arriscar uma nova oportunidade em Vila dos Anjos, onde além do comércio, que abriu com seu irmão Clementino, começou a trabalhar também como professor, ofício que assumiu, inclusive, oficialmente em seu título de eleitor emitido já em “Villa dos Anjos”, município de Capelinha, em 1972 (Figura 100). Figura 100: Recorte do Título de Eleitor do Sr. Tibúrcio (profissão: Professor) (Arquivo pessoal de D. Hemelinda) Foi assim então, que o professor Tibúrcio, formado pelo aprendizado nas “escritas contábeis” das vendas da família e dos ofícios de carteiro e tropeiro, passa a ser uma das principais referências na região de Alto dos Bois (como professor particular) e no povoado de Santo Antônio dos Moreira (onde passou a dar aulas pagas pela prefeitura de Capelinha). Lecionou em muitas fazendas da região, “levando escola” para todos – “é que meu pai dava aula pra todo mundo. Pra criança, homem casado, mulher casada” (D. Hermelinda, 367 Angelândia, setembro de 2018). E sobre esses “combinados de aula”, encontramos uma correspondência de Tibúrcio para o Sr. Pedro Lopes (esposo de Maria Rodrigues da Cunha), em 25 de fevereiro de 1950, pedindo ao mesmo que compreendesse que ele teria que adiar o combinado de dar aulas aos seus filhos, em decorrência de um pedido urgente de outro fazendeiro, que mediante a necessidade aceitara o preço cobrado por ele (Figura 100). Figura 101: Carta do Professor Tibúrcio cancelando escola de José Nascimento Acervo Prefeitura de Capelinha E é este um dos pontos que liga a história das escolas em Alto dos Bois com a família de D. Maria Rodrigues. Apesar do “combinado das aulas” ter sido postergado, elas chegaram a acontecer, pois encontramos um caderno de aulas do professor Tibúrcio com a assinatura de um dos filhos de D. Maria - o José do Nascimento Lopes (Figura 102). Os professores, chamados de mestres, utilizavam, no início, apenas uma pequena lousa (pedra lisa na cor preta com bordas de madeira) e um lápis tipo giz. Os alunos escreviam na lousa, pois não existiam cadernos nesta época, o papel ainda era muito caro e pouco acessível. Com a chegada da caneta tinteiro e da disponibilidade do papel, os professores passaram a utilizar também os livros e cartilhas manuscritas. Figura 102: Livro Manuscrito de José do Nascimento Fonte: Acervo Prefeitura de Capelinha É interessante observar que algumas folhas de cadernos manuscritos à caneta tinteiro que encontramos, além das letras do alfabeto e o nome do aluno – escrito pelo professor, apresentavam abaixo a caligrafia ainda incipiente de seus alunos (Figura 103). Outras eram apenas algumas palavras, organizadas pela primeira letra, para que os alunos Vila dos Anjos, 25 de fevereiro de 1950 Caro amigo Pedro Lopes. Saudações. Cheguei aqui e achei um recado de José Nascimento muito forte que eu fosse lá na casa dele para afirmarmos a nossa conversa que tinha de escola; sem dúvida, ele está disposto ao meu preço de duzentos cruzeiros; e como eu quero ser correto com um e outro, resolvi a lhe escrever esta cartinha dizendo que eu vou lá amanhã em casa de José Maria, conforme foi a exigência dele, ficará a sua escola para mais adiante eu tornar voltar para acabar de ensinar os seus meninos como o amigo sabe que é o meu desejo. Espero que o senhor não me levará mal por isso. Seu amigo. Abraços. Tibúrcio Celestino de Almeida 368 pudessem copiar e aprender como se escreve essas palavras, que em sua maioria, faziam parte do seu cotidiano, como podemos observar nas Figuras 104 e 105. Encontramos também uma folha mais recente, escrita a lápis, correspondente ao ano de 1960, que apresentava a mesma metodologia das cadernetas manuscritas, da aprendizagem pela cópia (Figura 106). Figura 103: Caderno Manuscrito de Francisco Rodrigues da Cunha Figura 104: Caderno Manuscrito de palavras com as letras F, B, L, M, N e P. Figura 105: Caderno Manuscrito de palavras com as letras P, C, G e F. Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois Figura 106: Caderno (escrito a lápis) com os números de 1 a 100 (pertencente a Nair Rodrigues Fernandes – 1960) Nos cadernos que datam de 1916 e 1920 podemos observar ainda a presença de algumas palavras que não eram muito comuns ao cotidiano local (tais como: supremacia, publicidade, humanidade, etc. - Figura 107); as vozes dos animais (como por exemplo, “a andorinha chilra, o pato grasna, o jumento zurra” – Figura 108); as moedas da época em numerais e abreviaturas (Figura 109); uma folha de Carlota Rodrigues da Cunha (irmã de Maria Rodrigues) aprendendo a escrever seu nome (Figura 110) e um pequeno manuscrito de 18 de agosto de 1920, de Maria Barbosa, onde constam algumas lições sobre “o que fazem as boas meninas”, ângulo e ponto, e ainda sobre os mestres (Figura 111). 369 Figura 107: Manuscrito de Aula – Palavras Incomuns Figura 108: Manuscrito de aula: vozes dos animais Figura 109: Manuscrito de aula: moeda Figura 110: Manuscrito do Nome Figura 111: Lições de aula – Maria Barbosa (1920) Fonte: Acervo Casarão Alto dos Bois É preciso ressaltar, que cabia ainda aos mestres, neste período, o papel de convencer aos pais sobre a importância de se colocar seus filhos na escola. Considerando, que seria uma despesa a mais, muitos evitavam, apresentando o argumento de que a escola de seus filhos era a enxada. No intuito de viabilizar a educação dessas crianças e jovens, muitos Escrinta – Visto _ 8 Que fazem as boas meninas? Levantam-se à hora marcada por seus pais e mestres; lavam-se, penteiam-se com cuidado, escovam os dentes, mas não se miram uma hora porque não são vaidosas, antes de sair do quarto arranjam todo quanto é seu. 18-09-1920 – Maria Barbosa Ângulo é uma figura formada por duas linhas que se encontram em um ponto. O ponto em que as linhas que o forma. Escrinta – 4 erros vistos – 6 O mestre reza era tão acatado e venerado naquele terreno como o mestre de escola; além do respeito ordinariamente tributado aos preceptores, dava-se uma circunstancia notável e vinha a ser os mestres de reza eram sempre velhos e cegos. 28-08-1920 – Maria Barbosa 370 professores aceitavam ainda que o pagamento fosse feito em quartas de feijão, arroz, milho ou outros produtos. Em algumas situações, eram os próprios alunos que acabavam recebendo certa ajuda das próprias professoras, como destaca D. Hermelinda: [...] que isso, a gente ía nessas roça, eu e a Maria Júlia, eu ajudava muito a Maria Júlia. Aí a gente fazia aquela... foi difícil pra gente convocar esse povo, explicar o adiantamento, a vantagem, de aprender, uns respondia a gente “não, a escola dos meus menino é a enxada, é a foice”, respondia assim, e não vou pô meus menino na escola não que os antigo sempre falava que menina quando cresce, fica moça, fica escrevendo pra rapaz. Pois que que tem escrever pra rapaz? As resposta que a gente ouvia era essa. Pra que aprender, que tem muita gente pobre e que tem as coisa. E o que que adiante leitura? A gente escutava isso tudo. Aí a gente com jeito, contava ali, com jeito, paciência, a gente ía, dava uma ajuda, de vez em quando, também, é que colocava os menino na escola, foi difícil. Desbravar esse povo. Foi duro. (D. Hermelinda, Angelândia, setembro de 2018). Segundo Sr. Tião Vicente, seus pais pagavam cinco mil contos de reis para que ele pudesse ter aulas com o professor Tibúrcio e, para pagar esse ordenado, somava-se o trabalho do pai (nas tropas ou nas fazendas) com as costuras que sua mãe fazia pra fora (costurando de dia e à noite à luz do candeeiro). E sua mãe sempre dizia: “manda fiado pra escola que hoje eu vou pagar, a gente não pode criar os filho analfabeto de tudo não” (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Quando Sr. Tião estudava, por volta de 1948, a escola era próximo ao Casarão, nas proximidades da fazenda de D. Maria Rodrigues da Cunha e Sr. Francisco Lopes, e segundo ele, apesar de não gostar muito de estudar, ele era muito bom aluno, estava sempre ganhando livros do professor por realizar mais rapidamente as lições, como podemos observar no trecho abaixo: [...] aquilo cê já virava o livro aqui, e já ia e falava: “É, aqui quem fizer a lição desse livro primeiro, ganha o livro”. E eu já ficava esforçado ali, porque já tava achando que o livro era uma grandeza, né, e tal, tal, e a gente tinha um negócio, de como o povo punha a dizer de “gavar o toco”, mas eu não perdia não. Era! Ainda conto uma história que tinha no livro, que era a última história, essa cê tinha que ler ela, quando cê entregava a lição que cê ia atrás dele - “daí pra mim vê” - ele era um veio assim meio estorvo, meio bravo, mas era como quem precisava [...] Agora quando cê lia o livro todo, primeiro livro, segundo livro, terceiro livro, quando cê fazia aquelas lição do livro tudo, “Sebastião ganhou o livro”. Num fazia nem o sorteio não, já falava direto. Trazia o livro, oh ganhou o livro, aquele barulhão, não sei que tem, não sei que tem, panhava aquele livro, com pouco, agora é pra ler a tabuada. Agora cê lia a tabuada, com pouco [...] ocê já falava de core, é isso assim... assim, é isso assim assim..., é isso assim assim... com pouco... “ah cê ganhou o livro de tabuada também”... (risos) (Sr. Tião Vicente, Barra do Capão, setembro de 2018). Sr. Vicente lembrou-se ainda de uma história que ele decorou, quando tinha 10 anos, que constava nas últimas páginas do segundo livro do professor Tibúrcio, a história do “Jeca Tatu”, que ele gostava tanto que varava noite lendo – “eu gostava tanto dessa história, que eu viciei aquilo tanto que eu aprendi ela de core, aprendi e nunca mais esqueci” (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018): 371 A história é: “O Tonico vai a roça, desceu do pangaré, no mato que ele almoça, lá no rancho de sapé, tem que passar na baixada, tem que subir na colina, vai cantando uma toada, troteando na campina. Entra agora na picada, por entre a mata sombria, ouve alegre a passarada, sondando o nascer do dia. Bailam feliz em festa, borboleta entre flores, que bolice na floresta quantos estão em rumores. Araponga martelando, como martelo e bigorna, longe, longe, quando em quando, chora no campo a codorna, bicho do mato se espanta o trote da montaria. Foge a paca e se levantam num carreiro as Cutia. Chego o Tonico ao destino e toma da enxada ao trabalho, o ar é claro e cheiroso, a terra é fresca e macia, azul é o céu luminoso, como é lindo o novo dia!”(Sr. Tião Vicente, Barra do Capão, setembro de 2018). Outro aluno que se esqueceu das lições do mestre Tibúrcio é o Sr. Júlio, filho de Maria Rodrigues da Cunha – “meu professor era um baiano, era sabido, sabido, e sabia mesmo o dicionário.Era o Tibúrcio Celestino de Almeida, era bommm ensinador e explicava! Eu peguei com ele até muita prática de mexer, assim, com animal porque ele sabia de tudo né!” (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Sobre o seu mestre, Sr. Júlio nos conta ainda que era um bom contador de histórias, ele e seu filho, que estavam sempre presente nas fogueiras juninas de seu pai: [...] o Tibúrcio mesmo, aquele era bom pra contar história, né, ele tinha um fio ainda melhor, quando eles ia lá pra pai, no tempo de fogueira, né, são João, São Pedro, que meu pai chamava Pedro, nós fazia, ele gostava de comemorar, fazia, todo ano nós fazia fogueira, né, aquele fogueirão, aí o mestre já ia, levava o fio dele, o Joaquim, já até falecido, morreu novo, aquilo contava história que ficava noite interim (risos), ficava a noite inteirinha... (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Da família dos Rodrigues da Cunha muitos foram alfabetizados por essas professoras, e se tornaram também professores de seus filhos e sobrinhos, como o Sr. José Guadalupe, que é da quinta geração desta família. Dona Benvinda (nora de D. Maria Rodrigues) também deu aulas no Casarão de Alto dos Bois. Na época, quando ficava muito tarde para retornar à sua residência, ela acabava pernoitando por lá. Dona Carlota, uma das irmãs de D. Maria Rodrigues, colocava-a para dormir junto com sua sobrinha, D. Lia. Atualmente já não existe mais escola em Alto dos Bois, as crianças e jovens todos se dirigem para a sede de Angelândia para estudar nas escolas municipais e estudais. Não há mais escolas na zona rural. O que permanece são apenas alguns prédios abandonados e a lembrança dos grandes mestres, como o Professor Tibúrcio, que faleceu em 1986, com 98 anos, deixando muitas histórias, lembranças, saudades e ensinamentos na memória naqueles que foram seus alunos e de seus familiares. Dentre seus legados, é relevante destacar a importância que atualmente é atribuída à sua filha, D. Hermelinda, que foi a primeira professora a assumir uma escola estadual em Vila dos Anjos, no ano de 1948, e que é, frequentemente, homenageada pelas escolas da região e pelo poder público municipal, o qual 372 chegou, inclusive, a atribuir seu nome ao centro cultural da cidade de Angelândia no ano de 2011. Muitos dos ensinamentos de seu pai emanaram nas lembranças de Dona Hermelinda. Quando apresentamos a ela alguns cadernos de aula que foram utilizados pelo seu pai, ela se recordou do método que o pai utilizava para soletrar as palavras, o qual, segundo ela, era muito curioso, pois ele não soletrava separando as palavras pelas letras, como é tradicionalmente feito hoje, mas sim pelos fonemas, demarcando o que havia sido soletrado a cada sílaba finalizada. Para exemplificar ela nos contou a ocasião em que ele, já bem idoso e doente, recebera algumas professoras para ouvir o seu modo de soletrar: [...] ele dava aula era soletrando, falava soletrar. Agora, cê entende. Pra hoje quando fala soletrar, que eu vejo aí na televisão, soletra duma maneira, né? Por exemplo, boneca, o menino fala, b, o, n, e, c, a - BONECA. o menino soletra assim. E no tempo que meu pai dava aula, a professora chegou aqui pra ouvir meu pai soletrar, que ele tava na cama, doente, cego, surdo, que pra conversar com ele precisava conversar muito alto. Aí vieram aquela porção de professora pra ver meu pai conversar. Aí eu falei com ele assim: “Oh, tem umas professora aqui querendo ouvir o senhor assuletrar umas palavra”. Ele falou assim: “Qual é a palavra que ela quer que eu soletro?”. Levando a mão na mão das professora. Aí elas gostaram demais de ver ele conversar, né. Ele foi e falou assim, vou soletrar a palavra Fulgêncio. Presta bem atenção como que era o modo dele soletrar: Fe u lê Fu gi, legencio, so. (risos). Fe u lê Fu gi, legencio, so. Quer dizer, o f, era ‘fe’, o ele era ‘le’, o n, era ‘ne’, o r era ‘re’, o c era ‘ci’, [..] meu pai soletrava plantação: PE LE A NE PLAN. C cidrilha, a til, ão. Ainda falava o ão. E ele aprendeu assim e ensinou todo mundo desse jeito (D. Hermelinda, Angelândia, setembro de 2018). Além da mudança na forma de soletrar, D. Hermelinda nos contou ainda sobre algumas palavras que mudaram a ortografia, e dos regionalismos existentes no contexto de Alto dos Bois, que sempre lhe despertaram muita curiosidade, levando-a, inclusive, a, durante toda sua vida, fazer alguns pequenos registros dessas novas palavras que ia ouvindo dos frequentadores do mercado de sua família. A cada palavra nova, de pronúncia distinta, ela corria no seu caderninho e anotava a palavra e qual significado ela tinha. Frente à riqueza desse material que D. Hermelinda guardava, aos seus 91 anos, ela foi presenteada por suas netas com a publicação de um dicionário regional com todas essas palavras reunidas no seu caderninho. No livro “A voz de Dona Hermelinda nos regionalismos do Vale do Jequitinhonha” encontramos as definições das palavras, segundo os exemplos e aplicações de D. Hermelinda, e ainda o significado presente em dicionários contemporâneos. Algumas palavras tem origem no “jeito mineiro” de falar, diminuindo ou associando alguns termos, tais como: amode (parece que é, a modo de); conão (então); decá (me dá); enriba (em cima); e outras estão associadas a objetos típicos da épocas como: catre (armação de colocar o 373 colchão); enxerga (objeto que se coloca no lombo do animal, espécie de almofada); enxergão (colchão). Encontramos ainda algumas expressões que carregam em seu sentido alguns pré- conceitos existentes nessas regiões há alguns anos atrás, como desasnar, cujo significado está associado a “desenvolver, dar instrução, educar, ensinar”, uma vez que este sentido está ainda relacionado ao hábito que as pessoas tinham de chamar aquelas que não detinham conhecimento de “asno”, “burro”, “jumento”. Assim como a palavra dinigrido (escuro), cuja origem, vinculada ao termo denegrir (por negro, manchar, macular) já converge junto às concepções racistas do negro/escuro, como algo ruim. Há ainda algumas palavras bem curiosas, que acompanhadas de alguns exemplos nos levam a imaginar determinadas situações, como: esganchar (colocar no quadril) – “Esgancha esse menino aí, senão ele cai!”; estagó (inferno) – “Você é tão ruim que vai pra o estagó!”; fandango (todo machucado) – “Ele caiu e ficou fandango!”; furtume (mau cheiro) – “Aquele carro tá um furtume só”; “ganga-manejo” (caracteriza uma pessoa que articula muito ao conversar) – “Eu tenho antipatia da Suzana quando conversa. Ela ganga-manejo demais!”; muquém (ficar quieto) – “O menino apanhou até ficar muquém!”; e por fim a palavra picumã, que buscamos todas as vezes que entrávamos nas casas em Alto dos Bois, quando queríamos descrever a “crosta feita pela fumaça” dos fogão a lenha, agregando àqueles espaços uma concepção simbólica muito latente do saberes alimentares (OLIVEIRA; DAMAZO; MACEDO, 2015). Outra palavra que encontramos nesta obra e ainda em versos nos documentos do acervo do casarão foi o termo “Arenga”, que enquanto para D. Hermelinda, trata-se apenas de um “fuxico” – “Deixa de fazer tanta arenga, mulher!”, em outros dicionários há ainda a associação a alocução, discurso enfadonho, dizer coisa aborrecida, etc. Outros termos que nos remeteram ainda a arenga foram: gunguzar (falar baixo, cochichar; ingrisia (confusão); letefoge (muita conversa); licuaca (barulho); livuzia (mentira); lodaça (conversa sem fim); lorota (conversa sem proveito). Todos esses sentidos, podemos perceber no poema “Alfabeto do Arengueiro”, encontrado nos arquivos do Casarão, que nos revelam os demais sentidos e significados dessa expressão naquele contexto regional (Figura 112). 374 A Arenga nunca acaba Ah quem dera que acabasse Só se houvesse um direito Que por lei executasse B Bem se vê que o arengueiro É amante da desgraça Sem mexerico não vive Sem arenga nunca passa Não sei se eles aprendem Ou mesmo se vem de raça C Creio senhor realmente Que arenga cada vez mais Arenga e muito antiga É do tempo de Ananias Arengueiro embaixador Faz papel de Caifás D Deverá os arengueiros Abandonar esse ofício; Arenga é como veneno Matta mais de que feitiço Porque o povo arengueiro Só gosta do precipício E Eu antes quero me ver Como maior feiticeiro De que viver um só dia Na língua do arengueiro Arenga é como o vento Que gira o mundo inteiro. F Ferve arenga nesta terra Como água no caldeirão Esse povo arengueiro Não tem consideração Não possui dignidade Nem honra de cidadão G Goste muito de vilences E de quem guarda segredo Deste povo arengueiro Tenho cisma e grande medo Por uma pequena palavra Eles fazem grande enredo H Haverá quem se acostume Como pessoa da língua quente? A boca do arengueiro É mesmo logo ardente Tem os lábios venenosos E a língua de serpente I Isto muito me zanga Encolerizado eu fico Neste mundo há muita gente Que vive de mexerico Indagando do passado Para contarem aos ricos J Já vi ativa memória Na gente da linga leve Tudo quando vê e sabe Na ponta da língua esquece Com mentiras e arengas A tudo ruim se atreve. L Língua malvada e feroz Faca sem ponta flamenga Não lucra nada antes perde Quem vive contanto arenga O fim de todo arengueiro É comer angu sem guenga. M Maldiçoada seja arenga E quem por ela tem paixão Este povo arengueiro Tem na boca com missão O inferno tem na língua Demônio no coração N Nunca há falta de arenga Sempre se vê de sobra Nunca houve um arengueiro Que fizesse boa obra Os lábios do arengueiro Tem mais veneno que cobra. O Oh infames arengueiros Por quem a desgraça argumenta Tudo quanto vê e ouvem Outro tanto acrescenta Quem arenga alevanta Quem alevanta sustenta. P Permita como castigo Que no pé durma má língua De um e de outro lado Apareça grande íngua Que proibida de falarem A ver se arenga mingua. Q Quando alguém for arengando Tenham as orelhas moncas Fugindo sempre de ouvir Aquelas palavras loucas Este povo arengueiro Lança fogo pela boca R Rogo aos mestres arengueiros Que tratem doutra oficinas Deixem ofício de arenga Que ofende a lei divina Ofende os céus e a terra Quem tem a língua ferina. S Se os poderes deste mundo Estivesse em minhas mãos Quando eu visse um arengueiro Lhe faria castração Para que de tal gente Acabasse a geração. T Tem pessoas neste mundo Que para arengar é mestre Tenho mais medo de arenga De que bexiga ou peste Quem vive contanto arenga Não vai no reino celeste U Um mandou certo arengueiro Que rezasse o padre nosso Respondeu ele eu não sei Quero aprender e não posso Com mentiras e arengas Faz transação e negócio. Figura 112: Transcrição do Alfabeto do Arengueiro Fonte: Acervo do Casarão 375 Além do poema do Arengueiro, encontramos também alguns versos e “modinhas”, que narram histórias de amores não correspondidos, perdidos ou abandonados. O mais antigo é uma modinha de 11 de abril de 1889, no qual o eu-lírico chora pelo amor não correspondido por uma moreninha vendedora de flores. Figura 113: Recorte da Modinha – Moreninha, Moreninha (11/04/1889) Modinha Moreninha, moreninha Tu és do campo a rainha Tu es senhor de mim Tu mata todo i do amor Faceira vendendo flores Que colhe em teu jardim. Moreninha, moreninha Sentada em tua banquinha Cercada de todos nós Rufando alegre passadeira Como a ave do espinheiro Te soltas também a raiz. Apresso me comprar estas flores Tao linda como os amores Como mais linda não há Foram banhadas do orvalho São fores do mero seralho Que colhi em meu jardim. O moreninha [ilegível] Eu vou comprar te as fores Mas dai-me uma dúzia também Que importa rosa do feirado Em usar o beijo enguiçado Que tua boquinha tem Tu fugistes faceira De certo [ilegível] [ilegível] Tu ia e de [ilegível} curto Sentando a moita da murta Mostra ti mas trate o frei O morena minha sereia Tu es a rosa da aldeia Como mais bela não há Aí Jesus quanto é bonita Com as tranças presa na fita E as flores no samborá. 11 de abril de 1889 Fonte: Acervo do Casarão Em um manuscrito de 28 de junho de 1919, encontramos um eu-lírico feminino – Sinhá Barbosa (Áurea Barbosa Lourdes Rodrigues Lopes), que escreve três poemas: o primeiro trata-se do relato do sofrimento pelo amor que foi embora; o segundo um amor não correspondido que esnoba seus sentimentos e o terceiro sobre o sonho com um amor que também não se encontrava presente. Tais poemas nos fazem refletir sobre os anseios, desejos e temores dessas mulheres do Alto dos Bois, no início do século XX, que já sofriam pela partida dos enamorados, que saiam do seu lugar em busca de oportunidades de trabalho, mas deixavam muitas saudades nos que ficavam. Saudades essas que, no entanto, não ficavam apenas no plano dos pensamentos dessas mulheres, eram materializadas em forma de letras, poemas e modinhas que, escritos no papel, dividiam a dor da saudade dessas mulheres apaixonadas. Toda essa poesia foi e é parte dessa paisagem bucólica que se faz em Alto dos Bois, a leitura desses poemas nos propicia um retorno a este passado, que apesar de triste, revela muita pureza e intensidade desse sentido de ser de Alto dos Bois. 376 Figura 114: Modinhas de Sinhá Barbosa Fonte: Acervo do Casarão de Alto dos Bois Modinha 1º Adeus meu anjo querido Não sei quando te verei De saudades meu anjo De saudades morrerei 2º Eu vivo no mundo sozinha Sofrendo que nunca pensei A sorte alimenta meus dias Só aquela que sozinha fiquei 3º Eu vivo no meu mundo sozinha Estranho por todo o país Ilustrado com pouca importância Só aquela pobre infeliz 4º A morte para mim é ventura A qual deixarei de sofrer Vou deixar este mundo enganosa Já gozei já posso morrer. Versos 1º Dentro do meu coração tem Dois copos rasos deixados Cheios de águas finas Que por ti tenho chorado 2º Lá de traz daquela serra Corre água sem chover Os moços de Capelinha Me namoram sem me ver 3º Lá vai a garça voando Com penas que Deus lhe deu Contando penas por penas Mais penas padeço eu. 4º Você disse que eu sou feia Eu não sou feia assim Lá em casa tem um feio Que pegou feiura em mim. 5º Menina dos olhos pretos Que ainda ontem reparei Achei muito de meu gosto Só por morte descartei. Modinha Sonhei a dormir Bom as mãos sobre os seios Talvez nos anseios de um vago sonho E vinha-lhe a rosto quebrar Sem desmaios os pálidos raios De um tíbio luar 2º A noite de muitas [?] mágoas No fundo do peito senti palpitar Que susto que angústia Por vê-la abatida por vê-la Dormindo tão perto do mar... 3º Caia alta a brisa gemia Senhor parecia queres brigar Dormia tão perto que os [ilegível] Vestidos julgueis confundia Com a espuma do mar... Mais antes do beijo dispor-lhe na fronte Mais largo horizonte surgiu-se o dia O encanto desfez e a sombra fugiu-me Fugiu-me entre as nevoas da noite perdida Sinhá Barbosa 28 de junho de 1919 Aurea Barbosa Lourdes R. Lopes Fonte: Acervo do Casarão de Alto dos Bois 377 Apesar de não apresentar autoria, também acreditamos que este possa ser um eu lírico feminino, que também lamenta a dor de um amor que partiu. Muitos homens neste período também trabalhavam em tropas, levando grandes cargas, boiadas e muares para regiões muito distantes, tendo de deixar suas namoradas ou noivas à espera de sua volta, as quais ficavam ainda com o receio deles não retornarem por alguma outra ocasião do destino, como os perigos da mata ou outros amores perdidos. Figura 115: Modinha – sem autor. Fonte: Acervo do Casarão de Alto dos Bois. Assim como as dores dos amores foram enunciadas nestes poemas, a felicidade do matrimônio, dos batismos e dos aniversários também era celebrada por meio das palavras e Modinhas Ou que noite de Tristeza que passei Neste meu coração Vista triste trespassando De saudade 1º Meu benzinho adeus a Deus até quando eu Cá voltar que eu me Vou para deserto solidão Até morrer 2º Meu benzinho adeus a Deus até quando eu Cá voltar que eu me vou Para de certo vou Morrer vou acabar 3º Chorava eu por quem Não via por quem tanto Me dizia que nós vamos Tao constante [ilegível] E [ilegível] aceitar Meu benzinho se Foi embora foi par Ingratidão tua que Vai nossas tão constantes Como o sol e o amanhecr 378 discursos, os quais, como bem diz o narrador, “para pedir a palavra é necessário que tenha preparado bastante para bem explicar, diante de uma satisfação qual é esta em que neste momento nos achamos rodeados de amigos, tendo a cabeceira desta mesa dois jovens que acabam de receberem o laço matrimonial” (Caderno de Escrivão, 1959). A eloquência dos discursos revela não apenas o domínio das palavras do interlocutor, mas todo o significado, valores e dimensões que norteiam esses acontecimentos nesta sociedade de meados do século XX em Alto dos Bois – a importância que era atribuída ao matrimônio, aos batismos e até mesmo às comemorações de aniversários, como retratado nos trechos apresentados a seguir. Figura 116: Discurso de Matrimônio Fonte: Caderno de Escrivão – 1959 (Acervo da Prefeitura de Capelinha) Meus Senhores! Minhas Senhoras, Senhoritas ou vou beber a saúde de formôzo por que acabam de unirem-se pelos indissolúveis laços da mais sagrada união em que se diz o matrimonio. É sempre belo ver duas almas que se adoram consubstanciarem-se neste banho de pureza, e muito mais belo ainda Senhores, é ver construir-se uma família com elementos tão sólidos e prometedores de felicidades futuras, como os que se veem aqui presentes: modelo exemplar de nobreza e de virilidade, de caráter; e na noiva protótipo de graça, de candura feminina, com tão risonhas promessas e de esperar que o dedo da mão poderosa apontará o caminho por onde ão de seguirem, onde encontrarão a felicidade. E por não ter expressão para melhor explicar levanto os olhos ao céu e peço súplicas ao Altíssimo Deus e a Virgem Mãe das mães que o Alto celeste derrame gotas de felicidades e de prosperidades sobre as cabeças desses dois nubentes. Viva os noivos, via os pais dos noivos, via as testemunhas... Meus Senhores, minhas Senhoras, Senhoritas Eu vou beber a saúde do jovem recém-nascido que acaba de receber o primeiro matrimônio que é o Santo Batismo. Hora Senhores! É para mim motivo de grande prazer ao ver neste momento em torno desta mesa uma manifestação composta de tanta gente na maior satisfação aplaudindo e dado aplausos pela linda escolha dos Senhores Pais do jovenzinho Valdemar para serem seus Padrinhos o Senhor José Abrante e Dona Ana Maria Neres, e eu por não ter mais expressões o quanto desejo, peço a todos presentes para me acompanhar com vias e palmas. Viva o jovenzinho Valdemar! Viva os seus distintos padrinhos! Viva a todos aqui presentes! Viva outra vez via! Viva mais uma vez, Viva, Viva! Meus Senhores, minhas Senhoras, Senhoritas! Parece-me que tocando por uma força misteriosa é que não posso deixar de levantar-me a fim de erguer um brinde em honra da taça em que horas festejamos. Emocionado pelo prazer desta tão linda festividade, venho neste momento dizer-vos que embora seja minhas palavras muito vans, e de frases muito tosquiadas, mas quero com isto dizer-vos que a Senhorita Maria Levina Lopes, hoje canta mais uma primavera: seus 14 anos, no verdor dos seus anos, com o desenvolvimento do seu crescimento e com igual simpatia do seu dom natalício, é de esperar que com a continuação dos tempos será mais tarde de alegria de seus pais, a esperança de que tem a felicidade de conhecê-la. Viva a Senhorita Maria Levina Lopes, Viva! Viva seus pais e seus parentes, Viva! Viva também este povo aqui presente, Viva! 379 Meus Senhores, minas Senhoras, Senhoritas É com imenso prazer que pego neste copo para beber a saúde do jovem Valter Lopes a quem hoje conta mais uma felicidade de uma primavera, seus 16 anos. Com o desenvolvimento de suas boas notas e com seus bons predicados, a de esperar que muito breve será a maior alegria de seus pais e dos seus amigos e mais um elemento a pátria. Valter Lopes! Senhores este menino que no verdor dos seus anos, não perde tempo e não descuida dos seus estudos fez quarto ano e não se deu pôr cansado, frequenta o ginásio e garba o prazer de suas boas notas 10 no procedimento e no adiantamento e na higiene. É merecedor de elogios, e como admirador de seus bons exemplos, e como um dos seus amigos, levanto a minha mão direita e grito em voz alta: Viva Valter Lopes! Fonte: Caderno de Escrivão – 1959 (Acervo da Prefeitura de Capelinha) Ao nos depararmos com a riqueza dessas informações, guardados com tanto zelo durante todos esses anos por essas famílias e, que muito nos revela sobre as paisagens culturais que se configuraram em outros tempos nesta espacialidade, afirmamos, mais uma vez, a importância de se compreender Alto dos Bois enquanto uma paisagem. Paisagem que se reconstrói nas percepções pretéritas, presentes e futuras, que conectadas às paisagens da memória (reativas por documentos como esses), funcionam como “engrenagens triviais na construção e motivação das identidades coletivas” desses sujeitos, as quais são, desse modo, contextualizadas nas paisagens (SCHAMA, 1996, p.17). A partir da história de vida de D. Maria Rodrigues, uma das filhas do Sr. Pedro Roiz da Cunha, nos foi possível reconhecer as percepções e vivências desses sujeitos quanto aos processos migratórios, às dores da saudade, e às alegrias anunciadas através das cartas, poemas e discursos. Registros esses que só lhes foram possível por meio da educação e da escola que chegou à região através dos professores particulares, os quais foram formados pelos ofícios cotidianos daquele período: mercadores, tropeiros ou carteiros, como foi o caso do Sr. Tibúrcio Celestino, até hoje mencionado e respeitado em toda região pelos ensinamentos que deixou. Nesse sentido, gostaríamos de ressaltar a importância que os registros (anotações, livros e documentos antigos) assumem para essas famílias, as quais, muitas vezes, utilizam-se de pequenos cadernos ou livrinhos de catecismos para anotar datas, nomes e eventos significativos para eles, como foi o caso do senhor Francisco Rodrigues da Cunha (o quarto filho de Pedro Roiz que traremos em nossa próxima narrativa). Francisco Rodrigues Cunha nasceu em 1895 e faleceu em 1975, aos seus 80 anos de idade. Casou-se com Anna Alves Sampaio em 24 de junho de 1915, e tiveram oito filhos, como podemos observar na árvore genealógica apresentada a seguir. 380 Figura 117: Árvore Genealógica de Francisco Rodrigues da Cunha 381 Figura 118: Caderno do Primeiro Catecismo com anotações de Francisco Rodrigues da Cunha Fonte: Acervo de D. Jacir Anna Sampaio faleceu em 05 de março de 1942, “um dia de quinta-feira às 4h da tarde em Capelinha e na casa de Dr. Donzentro” (Anotações do caderninho de Francisco Rodrigues – Figura 117). Sr. Francisco anotava sempre o dia da semana e, em algumas situações, o horário e local dos nascimentos e falecimentos de sua família. Em suas anotações encontramos a data do falecimento de sua mãe (Maria Levina) e de dois de seus filhos: Levina (que falecera em 05 de setembro de 1933, uma segunda-feira, com apenas quatro anos de idade); e Izaias (em Cristalina faleceu Izaias no dia 1º de junno de 1945, dia de sexta-feira). O falecimento de Izaias é algo ainda muito forte na lembrança de seus familiares em Alto dos Bois, pois quando criança, ele fora ferido pelo facão do seu irmão, Sebastião, e a mãe, pedindo pela vida do filho, fez uma promessa a Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa, que, se o filho sobrevivesse, ele iria a pé até a Lapa de Bom Jesus, no estado da Bahia. Todavia, um tempo depois quando foi cumprir a promessa, no retorno da viagem, ele teve uma febre e faleceu antes de chegar a sua terra natal. Tal acontecimento foi relembrado por Sr. Júlio (primo de Izaias) e por D. Jacir (viúva de um dos irmãos de Izaias): [...] o Sebastião [irmão] brincando com ele, eles brincando, eles com aquelas faconas pra quem não conhece aquelas peixeironas, né, cabo de milho que eles falavam, né, na cintura, né, mas aí ele pegou ele assim, e levou, aí a faca saiu, quando a faca saiu ele foi descendo ele devagarzinho, e a faca vazou em cima rapaz. Aí a mãe dele fez um voto, que era tia Ana, era a mãe, a esposa do Chiquinho Rodrigues né, e fez um voto, se ele não morresse que ele ia na Lapa do Bom Jesus, de a pé, e foi devera, mas quando foi chegando na volta ele morreu, deu uma febre nele, pra ver que a fé revolve montanhas, como eles falam né... (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). [...] o dia que o fio morreu, vindo da lapa, um fio que ele tinha, que tinha um voto de ir na lapa do Alto dos Bois até lá na lapa de Bom Jesus, com um peso de arroba na carcunda. Ele foi com o peso de arroba e quando vinha voltando, divisa de Bahia com Minas, ele morreu na noite que ele invinha voltando. Um voto que a mãe dele fez. Pra ele ir na lapa carregando um peso de arroba na carcunda caminhando. Cê é doido. Isso é muita fraqueza né? De fazer um voto desse. Ele caiu em cima de uma 382 faca, a faca varou nele assim, veio cá na carcunda. A mãe fez um voto pra ele não morrer, não morreu não, mas o dia que ele cumpriu o voto ele morreu. [...] Izaias que ele chamava (D. Jacir, Capelinha, março de 2016). Quando ouvimos relatos como esses, nos ressaltam a importância e o significado da fé para essas comunidades, pois, tratam-se de penitências extremamente árduas, afinal, de Angelândia (MG) até Bom Jesus da Lapa (BA), pelas estradas atuais, há que se percorrer, de carro, em torno de 759 km (11 horas de viagem) e, à pé, 654 km, distância que para ser percorrida, demorar-se-ia em torno de 135 horas de caminhada. A compreensão da magnitude desse sentimento e da esperança que é atribuída a esta devoção, aos poucos, foi se desvelando para nós, na maneira como essas pessoas se referiam a este santo de devoção e, principalmente, à Festa de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa, comemorada todo dia 06 de agosto. Figura 119: A Fé e devoção a Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa expressa na corporeidade dos sujeitos Fotos: Silva (2015) Na comemoração realizada no ano de 2015, tivemos a oportunidade de vivenciar este momento de devoção representada pela corporeidade dos sujeitos: nos olhares voltados à imagem de Nosso Senhor; na profundidade da oração executada com os olhos fechados; na entrega de corpo e alma, representada pela invocação das mãos; e ainda nas lagrimas e prantos em agradecimento às graças alcançadas ou em pedido de socorro por uma situação difícil. E, como diz Sr. Júlio, é “a fé revolve montanhas”, e que faz com que lembranças de fatos como o do Sr. Izaias sejam eternizadas por diversas gerações, por meio da oralidade e dos exemplos de devoção, que reforçam ainda mais a importância e o significado dessas relações na construção de suas paisagens culturais. Assim como D. Anna, entregou a vida de seu filho às bênçãos de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa, Sr. Francisco (seu esposo), também apresentava muita devoção, registrada, inclusive, no seu caderninho, quando ele recebera a imagem de seus santo de 383 devoção em sua residência (no mês de junho de 1925), e ainda quando ele anotou a presença de um frei que esteve na região – Frei Francisco, no dia 05 de outubro de 1913. Sr. Francisco e Anna possuíam um terreno na região de Alto dos Bois (Imposto Territorial de 1921 a 1922) e também em 1923 a 1925 passaram a pagar o imposto territorial de outro terreno na região do Córrego das Gamelas e do Córrego do Engenho, onde, atualmente, vive grande parte dos seus descendentes que ainda residem na zona rural de Angelândia. Segundo Sr. Júlio, “o tio Chiquinho tinha uma burrada... meu pai tinha, mas ele tinha mais, né, tomava emprestado e tudo” (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Sobre um desses empréstimos, encontramos uma carta de Sr. Francisco ao Sr. Antônio José da Silva, em 18 de abril de 1909, quando o mesmo cobrava do amigo as “bestas emprestadas”, as quais ele já havia solicitado, inclusive, a devolução em quatro outras cartas que já lhe encaminhara anteriormente (Figura 120). Figura 120: Carta de Francisco Rodrigues da Cunha a Antônio José da Silva (18 de abril de 1909) Fonte: Acervo do Casarão Em outras correspondências remetidas ao Sr. Francisco, encontramos também a mensagem de amigos avisando que fariam uma visita com suas filhas muito em breve, outras desmarcando uma visita e ainda cartas que faziam convites para que a família comparecesse a algumas festividades de padroeiros na região. Em seu caderno de anotações, encontramos ainda o seguinte registro de seu filho Pedro – “foi embora para São Paulo meos treis ermão no dia 3 de abril de 1945, dia de terfeira, dea triste – Antônio, Brás e Sebastião” (Caderno de Francisco Rodrigues, Acervo de D. Jacir). Em 1959, um de seus filhos, que ainda se Excelentíssimo Senhor Antônio José da Silva Alto dos Bois, 18 de abril de 1909 Saúdo lhe paz e tranquilidade e a saúde para a família amigo. Amigo Antônio peço o seguinte a vos em me Trazer as minhas bestas porque tenho aí em seu poder. Amigo e isto irá com prazo de 6 meses e já mandei muitos recados e com esta carta são 4 que lhe escrevo e ainda não esteve solução alguma outro sim digo que esta será a última. Eu ainda não fui buscar porque nosso trato não é este e por isso o melhor prazo que lhe dou é de hoje. A 6 dias se esta não vier tomarei novas providências por ver se trás elas ou não e no mais fica para nossa vista a expressa falta. Sem mais por esta vez seu amigo Francisco Rodrigues Dê muitas lembranças ao amigo Joaquim Silva Minhas lembranças a todos de Alto dos Bois. 384 encontravam fora, escreveu uma carta ao seu pai (Figura 121), na qual podemos observar também a tristeza daquele que foi, pela ausência dos que ficaram, sentimentos estes expressos também nas tantas lembranças que são direcionadas aos tios, amigos, afilhados e irmãos. Figura 121: Carta de um dos filhos de Francisco (03/04/1959) Fonte: Acervo do Casarão Costa Faria - Panema Estado do Paraná Paraná, 3 de Abril de 1959 Ilustríssimo Sr. Francisco Rodrigues Saudações Querido papai, em primeiro lugar que desejo que esta cartinha vá te encontrar saúde e felicidade. Quanto eu aqui fiquei gozando saúde graças a Deus; Papai eu peço desculpa para o senhor por falta de descuido, de não ter escrito para o senhor. Quero que esta carta vai encontrar todos daí com saúde, pape ao receber este espero que em breve o senhor escreva uma carta para mim ficar sabendo como vão por aí. Lembrança para minha tia Maria e todos da casa, um abraço para o querido Romualdo uma lembrança para Ritinha e um abraço e uma bença para a afilhada Osvaldina. Lembrança para a tia Carlota, eu aqui estou com saúde e felicidade. Quero que mande se estão gozando saúde e felicidade. Lembrança para Maria minha irmã. A partir dos relatos de seus familiares e ainda da leitura das 12 cartas que encontramos em nome do Sr. Francisco, destacamos que assim como seus irmãos ele também era um fazendeiro de referência na região. Sendo, inclusive, solicitado por um juiz de paz, através de um pequeno bilhete, para apaziguar uma situação de desentendimento entre alguns de seus vizinhos. Muitos de seus netos, ainda hoje, preservam essa tradição, destacando-se como importantes empresários da região, sendo, inclusive, proprietários de lojas comerciais de referência no município de Angelândia, onde grande parte deles encontra-se residindo atualmente. Em vista das demais famílias, poucos netos ou bisnetos foram morar em São Paulo ou em outros estados. Todos os quatro filhos de Pedro Roiz da Cunha, cujas histórias de vida foram traçadas até aqui, casaram-se, tiveram filhos, e adquiriram outras propriedades nas redondezas seguindo a tradição do pai, de serem importantes referências comerciais e políticas na região. Dentre os seis filhos de Pedro, foi sua filha - Carlota Rodrigues da Cunha -, que continuou 385 cuidando da Fazenda de Alto dos Bois. Sendo a única a não se casar, Carlota tornou-se muito reconhecida na região, uma vez que a fazenda demandava que a mesma estivesse sempre contratando alguns “camaradas” para trabalhar para ela, nas conhecidas “marombas” ou mutirões. É isso aí, é os multirão que eles faziam, aqueles Marombão! Naquele tempo falava era Maromba, né. Matava aquela frangaiada e, ixe, isso aí eu assisti demais, menino daquela época agente gosta demais né... (risos). [...] arrumava aquela peãozada, vinha mais de 20, né, e reuinia com os de cá, e virava lá, é! Acho que tinha época que tinha até 60 campina, né! Aí sambava a noite intirinha, né, e ali era onde ela [Carlota] fazia aqueles doce de leite, e quitanda doce, né, é que naquele tempo dizem que o povo era bobo, mas eles era ativo rapaz, sabia fazer as coisas mesmo, né.... (Entrevista concedida por Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Como não tinha filhos e nem esposo para ajudar na lavoura, D. Carlota estava sempre contratando camaradas para ajudar nos afazeres da fazenda. Encontramos várias pessoas da comunidade, e de comunidades visinhas, que já trabalharam para ela, sendo alguns deles familiares, vizinhos, ou até mesmo crianças que acompanhavam os pais, e que hoje já estão com seus setenta/oitenta anos. Dentre estas memórias, o que mais se destacou das lembranças de D. Carlota foi o cuidado que ela tinha com as pessoas que trabalhavam em sua fazenda, principalmente no aspecto da alimentação. Havia sempre o “quebra jejum” caprichado para aqueles que chegavam, um almoço bem farto e ainda as quitandas que nunca faltavam – “tinha muita gente que mexia lá! A casa tinha gente direto! Ela dava comida esse povão todo! Aqueles panelão de comida, todo dia... todo dia... era mesma coisa...” (D. Orlinda, Alto dos Bois, julho de 2015). Nessa tarefa, D. Carlota contava ainda com a ajuda das sobrinhas que juntavam no “tachão” para preparar aquela fartura de alimentos – “naquela época tinha uns tachão assim que dava pra todo mundo, nó, era gozado mesmo aquele tanto de gente para cozinhar” (D. Benvinda, Capelinha, março de 2016). E sobre este saber-fazer de D. Carlota e suas sobrinhas, D. Benvinda e Sr. Júlio fazem ainda questão de ressaltar: Dona Benvinda: Ela sabia fazer muitas coisa gostosa! Sr. Júlio: Nossa! Aquelas meninas mesmo, a Maria Ôta... aí era boa quitandeira e fazia doce, né, eita! E a Terezinha, que é mãe daquela que mora na fazenda, né, fazia... Dona Benvinda: Aquele povo que, eu até hoje não aprendi, elas matavam um frango e desossava ele. e ele ficava inteirim, ela tirava o osso do frango todo e só deixava a pontinha da asa e o pescoço! E ela desossava ele, e o frango ficava perfeito assim! Aí uma hora ela enchia e outra hora ela só assava o frango. Eu não aprendi a fazer isso. (Entrevista concedida por Sr. Júlio e D. Benvinda, Capelinha, março de 2016). 386 Essa fartura dos alimentos foi também destacada por Sr. Júlio, quando nos contou que na casa de seu pai também eram feitas muitas marombas. Eles chamavam camaradas de outras regiões, como Jaguaritira, onde conheciam muitas pessoas (por conta do trabalho com as tropas, pois sua família também tropeava pela região), para ajudar na capina, plantio e colheita, quando o serviço era muito para os próprios membros da família. A preocupação com os camaradas da maromba também pode ser observada nesta fala do Sr. Júlio: [...] lá em casa mesmo, nós fez muita maromba mesmo, aí matava dez, quinze [frango] o povo já gostava! Ah no Júlio Lopes tem uma maromba, lá quando eu chamasse dez, vinha trinta... (risos) não era porque era guloso não, mas tudo nós gostava, [...] eu gostava de ir na maromba! De primeiro, se eles desse cachaça eu comprava duas carne... do jeitinho que ele me tratou lá eu quero fazer com eles aqui ... (risos)... e onde cê andava lá era um lugar de fartura, né! (Entrevista concedida por Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). E nas comidas de maromba, além dos tachos de frangos inteiros ou desossados, tinham ainda o arroz de pilão – “aqueles arroz garrado, no que trem gostoso, eu gosto, eu lembro dele eu sinto saudade”, o feijão andu e a canjiquinha – “E fica boa de vera, né rapaz, agente come umas canjiquinha com uns trupico no meio..hum...” (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). A esposa de Sr. Júlio, D. Benvinda, também gostava de receber os camaradas em sua casa com bastante fartura – “eu fazia, fazia biscoito, bolo de fubá, eu fazia no ponto de forno a lenha, e aí eu fazia uns 5 a 6 fornada de biscoito, fazia bolo, fazia rosca, fazia, era tudo fartura mesmo” (D. Benvinda, Capelinha, março de 2016). A caridade e o carinho de D. Carlota também são ressaltados e relembrados por todos que trabalhavam na fazenda – “Aquilo era uma pessoa boa, tudo que a gente precisasse e ela tivesse, a gente podia ir buscar, nada que a gente precisasse, se ela tivesse, ela negava. Então era uma pessoa boa, que tudo ela tinha” (D. Orlinda, Alto dos Bois, julho de 2015). D. Benvinda também fez questão de ressaltar que D. Carlota sempre: Dava comida, sabe, porque naquele tempo ela tinha um jeitinho bom né! E era uma pobreza geral, todo mundo, né, ia trabalhar lá, aí trabalhava e fazia aqueles trabalhos pra ela e ela retribuía. Naquele tempo era muito difícil, e aí ela retribuía com coisas de mantimento assim pra comer, aí ela ficou conhecida, porque eles vinham trabalhar para ela e ela dava as coisas pra eles (D. Benvida, Capelinha, março de 2016). Dona Carlota também era “Tia Carlotinha”, “Déia”, a tia carinhosa que recebia sempre com muito carinho a criançada, e ainda criou seis sobrinhos: Rita/”Ritinha” e Osvaldina/”Tozinha” (filha e neta, respectivamente, do seu irmão Francisco); Terezinha, Maria Ota e Gabriel (filhos de sua irmã Gabriela, que falecera quando seus filhos tinham ainda de dois a três anos de vida); e a derradeira, que é D. Lia, hoje a herdeira do Casarão de 387 Alto dos Bois. Sr. Júlio, mesmo não sendo criado por ela, se sente como se tivesse sido, pois o carinho de suas lembranças sobre a Tia Carlota fica nítido em seu depoimento: [...] mas ela gostava tanto da gente... que eu já estava aí grandão, e ela subia no morro com agente na cacunda... e ela fazendo comida lá, e eu enganchado do lado (risos), dou até risada assim contando assim [...] ela fazia doce de leite, requeijão, né, já naquele tempo ela já mexia com aquilo tudo, né (Entrevista concedida por Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Tia Carlota também é sempre lembrada nas correspondências que encontramos nos arquivos do Casarão. Apesar de não encontramos nenhuma carta escrita por ela, encontramos quatorze escritas entre 1919 e 1969, grande parte delas remetidas por seus sobrinhos e afilhados, descrevendo a saudade dos familiares ou as dificuldades que passavam nos locais que encontravam trabalho. É importante ressaltar que as histórias de Tia Carlota, desde o nosso primeiro encontro com o Casarão de Alto dos Bois e sua guardiã – D. Lia, estiveram presentes nos relatos e imagens do Casarão. E é ela, juntamente com D. Lia e Sr. Preto, que nos recebe no primeiro cômodo de entrada do Casarão, no retrato pintado, onde está a imagem dos três, dependurara sobre as paredes de tabatinga (Figuras 122 e 123). Figura 122: Sala de entrada do Casarão Foto: Silva (2012) Figura 123: Retrato Pintado de Sr. Preto, D. Carlota e D. Lia. Foto: Silva (2015) A presença dos retratos pintados ainda é muito forte nas residências de Alto dos Bois e Angelândia, eles foram muito utilizados entre o final do século XIX e os anos de 1990. Eram pinturas feitas a óleo que utilizavam como base uma fotografia preta e branca da família (que poderia ser ampliada e colorida), e sobre a qual ainda era comumente agregado algum apetrecho ou vestes de luxo, assim como a suavização de rugas e marcas que as pessoas apresentassem. Os retratos pintados, ainda possuem um significado muito demarcado nessas 388 localidades, uma vez que esta imagem das famílias é sempre colocada no primeiro cômodo de entrada das residências, em um local de destaque e próximo às imagens dos santos de devoção da família. E foi a partir deste retrato que a figura da Tia Carlota, tão mencionada por todos da região em nossas entrevistas e sempre lembrada nas correspondências remetidas a ela ou aos outros membros da família, se materializou. Segundo D. Lia, que a reconhecia até como mãe, D. Carlota: [...] era gente boa demais. Num tinha coisa não. O dom dela era fartura, que igual hoje cês chegaram lá não tinha aquela comida? Ali todo mundo que chegava lá, ela dava comida. E ia gente direto! Porque ia buscar canjica, troca de moer milho, levava o milho, ela punha pra muer, ela ficava, como que, por exemplo, se o senhor leva uma quarta de milho, senhor leva uma quarta de canjica. Aí vão sipor, depois que mueu, sobra ali duas medida de canjica, aquilo ali que ela ficava com aquilo. Pra tratar as criação dela. Ela vivia só mexendo com... tinha porco, bastante galinha, e tinhas as criação de gado, mas só que ela não tinha quem tomasse conta pra ela, sabe. Ela não quis casar, ela me contou que não queria casar. Não tinha paciência que a irmã dela sofreu muito que o marido dela bebia, fazia, um dia correu de casa. “Eu não casei que eu não tinha paciência igual minha irmã não, que eu não corria não, eu matava ele”. E ela tava certa uai, porque não tem muito que bebe e não quer é faze correr? Aquele tanto de fio... Oh menina... e era boa viu! Que ela sabia fazer de tudo. Ela cortava de machado, cortava de foice... pergunta essa aí oh! Ela fazia cortado, mãe ajudava ela, e minha madrinha ia cozinhar. Ela lutou viu! (D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Frente a este depoimento de D. Lia, e considerando a sua condição de mulher, fazendeira, que negociava as mercadorias, contratava camaradas e cuidava dos sobrinhos, precisamos destacar, mais uma vez, a força das mulheres do Vale do Jequitinhonha e do Alto dos Bois, que assim como Carlota, na ausência dos pais, irmãos ou maridos que ora estavam tropeando pelos vales e grotões ora estavam trabalhando fora na migração sazonal, precisavam cuidar de todos os afazeres da casa, do quintal e da roça. E fora por esta lida incessante na fazenda, que herdara de seu pai, que Carlota e a Fazenda de Alto dos Bois, mantiveram-se reconhecidas por muitos anos, constituindo-se, inclusive, esta localidade como um importante ponto de referencia na produção e manufatura de alimentos em toda região de Angelândia, Capelinha e até Minas Novas. A dinâmica comercial de D. Carlota também nos foi revelada nas diversas correspondências que recebera solicitando empréstimos de bois ou até mesmo de dinheiro. Encontramos poucas imagens ou fotografias que nos pudessem revelar como se configurava essa espacialidade da Fazenda de Alto dos Bois. No entanto, a partir dos relatos e da memória dos comunitários e familiares, conseguimos compreender e imaginar como essas paisagens, carregadas de signos e significados, se configuraram naquele período. Oh eu lembro muito pouco, e tenho saudade de lembrar, igual minha mãe aqui, isso aqui era uma coisa de outro mundo, soh, cê descia ali pra baixo era tudo coberto, 389 gangorra, moinho, engenho, fábrica de farinha, roda d’água, tudo coberto assim... Do tamanho dessa casa toda aqui tudo coberto só pra funcionar, ali o engenho onde os boi rodava era tudo coberto, podia ta chovendo, cê podia levanta de madrugada a cana tava lá de baixo, levantava de madrugada a chuva podia tá caindo, cê panhava boi no engenho oh, fazia rapadura o dia inteiro, podia ta chuva derramando água que tava fazendo rapadura ali. E o lugar, e o deposito de guardar as rapadura num quartim tinha lá de guardar rapadura, isso aqui era coisa de outro mundo. Eu lembro do moinho e da gangorra socando. Do moinho eu lembro de nóis indo lá pega fubá, toda hora que cê ía os cachorro ía atrás já tinha uma pedra lá mesmo lisa pro cê pô o fubá pra eles, era bom demais (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Sobre o engenho (Figura 124), vale a pena ainda trazer o relato do Sr. Júlio, sobrinho de Carlota, que nos descreve um pouco de suas vivências nesse local: [...] eu sei que eu ajudei a moer muito lá cana. Lá era um engenhão, então tinha aquelas casinhas pra lá, aí eu deitava, porque eu era pequeno e novo naquele tempo né e, os cara gostava porque eu era muito trabalhador, aí eles falavam: “ vai durmir aqui, nós vamos dormir aqui hoje porque fica mais perto do engenho”. E eu dormia. Era duas bicas d’água, mas era um trem dava umas dez mangueiras dessas grossonas de 150 né. E bem a noite, quando agente levantava era meia noite, aí falavam: “vamos colocar o boi no engenho” aí levantava naquele sono rapaz [...] era bonito rapaz, importante né! Tudo feito de pedra, aquele engenho colocava pedra por cima e um muro mais ou menos assim de uns cinco metros, seis de altura... lá no fundo ficava lá, ló onde ia correr a garapa no fundo a fábrica, um lugar de correr aquela garapa alta. E tinha que por uma bica porque se não jogava lá, ... punha boi e e junta boi daqui e dali, ao menos nós guentava umas duas carga. Cê já ouviu falar “ carga de cana” carregava de burro, né? No gancho saia duas cargas de uma vez [...] o trem era bonito né! (Entrevista concedida por Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Figura 124: Engenho e o rancho (ao fundo). Acervo do Casarão (2015) 390 Um dos aspectos relacionados ao engenho que nos chamou atenção foi que, além da tradicional produção de rapadura e cachaça, a fazenda de Alto dos Bois também possuía uma “Fábrica de açúcar”, que segundo D. Lia, “fazia o açúcar, era um açúcar tão gostosa, hoje ninguém vê esse açúcar, só eu que lembro desse açúcar, era tão boa, era um amarelim assim, cê punha na boca, parecia mel...” (D. Lia, Alto dos Bois, junho de 2012). A partir dos relatos apresentados, podemos destacar como signos desta paisagem produtiva da Fazenda de Alto dos Bois: a roda d’água; o moinho d’água (utilizado na produção de fubá); a gangorra (também movida pela força da água e utilizada para descascar arroz ou socar outros cereais); o engenho de cana (com a moenda à tração animal), o alambique para fabricação da cachaça, com os tachos e caixotes para fabricação de rapadura e açúcar; além da casa de farinha, que ficava mais próxima do casarão (Figuras 125). Em conversas e visitas que realizamos a fazenda, Sr. Preto nos contou um pouco de quais eram os instrumentos presentes nesse espaço e sua localização. A partir de tais relatos, construímos um croqui com a localização: dos fornos; da “roda de bulinete” (utilizada para ralar a mandioca); da prensa e da masseira (Figura 126). Segundo relatório produzido pela prefeitura em 2000, o forno de beneficiamento de farinha era construído em pedra, adobe e barro, em formato cilíndrico, e possuía as seguintes medidas: 70 cm de diâmetro e 1,20 de altura. Neste período, seu estado de conservação era regular e o mesmo encontrava-se desativado (ANGELÂNDIA, 2000). Figura 125: Local onde localizava-se a casa de farinha. Fonte: Acervo Casarão (2015) Figura 126: Croqui da Casa de Farinha da Faz. Alto dos Bois Elaborado pela autora (2018) Dona Jacir, ao relatar sobre a Fazenda de Alto dos Bois, ressaltou, principalmente, em seu depoimento, a importância da fábrica de farinha, que além de suas lembranças, resgatou ainda algumas memórias e casos que seu sogro, Francisco Rodrigues da Cunha 391 (irmão da Carlota), lhe contava sobre o trabalho dos escravos no tempo de seu pai – Pedro Roiz da Cunha: Mexia com fábrica de Farinha, rapadura, fábrica de rapadura, cachaça, tinha alambique, tinha a fábrica de rapadura, tinha a fábrica de cachaça, tinha fábrica de farinha, tinha um pouco de café de quintal, que hoje tem as área, nesse tempo usava os quintal, aqueles quintalão cheio de café, com aqueles café grandão que ês tinha. Tirava muita farinha, fazia goma, que ês tinha muita farinha, tirava goma, pra encher cargueiro, as tuia deles era uns caxãozão, do tamanho desse quartim aí, agora enchia de farinha, enchia de goma. Tinha aquelas negra, as negra e os negros que plantava, as tainha, as gulambera, não era que nem hoje rela tocado assim que nem toca não, tinha as gulambeira de fazer , fazia mesi e mesi de farinha, e tinha um mucado fazendo farinha, um mucado fazendo rapadura, as vezes tinha aquele tanto de negro... (D. Jacir, Capelinha, março de 2016). A “gulambeira” que Dona Jacir diz em seus relatos, vincula-se ao processo de ralar a mandioca, que naquela época era feito a mão, no ralador, diferente de hoje que em muitas residências de Alto dos Bois, as pessoas já possuem um motor para triturar a mandioca. Sobre este aspecto, não podemos deixar de apresentar o relato de D. Maria Rocha, uma senhora de quase 100 anos, que mora na comunidade de Fanado (município de Angelândia), e que trabalhou muitos anos como batedeira de taxo, raladeira de mandioca e costureira. D. Maria nasceu na comunidade de Santo Antônio dos Moreiras e, em decorrência de uma deficiência que possuía em uma das pernas, os fazendeiros da região a buscavam à cavalo para que ela pudesse ficar em suas casas durante determinado período batendo os tachos de garapa, ralando mandioca ou costurando roupas que precisavam de reparos. Aos nos contar sobre o seu trabalho nas casas de farinha, D. Maria nos relatou que, naquela época, quem trabalhava ralando a mandioca ganhava o dobro de quem só raspava (ou descascava), por isso ela logo tratou de aprender o serviço de ralar para conseguir mais serviço na região: [...] eu mexia com farinha... teve uma vez que nós foi trabaiá numa casa, nesse tempo nós relava mandioca era no ralo, pois é, eu fui trabaiá numa casa que eles pagava... quem torrasse a farinha, e não sei que mais lá, eles pagava um mil reis, que eles falava, isso quem relava, e quem só raspava a mandioca era 500. Eu por desaforo: “eu quero ganhar mais” - passei pro ralo! Pra ganhar mais ué.... (risos)... fui pro ralo pra pegar mais serviço. (D. Maria Roxa, Fanado, setembro de 2018). 392 Segundo D. Maria, ela era muito requisitada na região, principalmente para bater os tachos de garapa – “eles colocava uma tábua de fornaia no coxo, e eu sentava na tábua e pegava a bater...”. Os fazendeiros iam buscá-la em outras fazendas, onde já estava trabalhando, para combinar com ela, que assim que terminasse aquele serviço, eles iram mandar buscá-la. Alguns já adiantavam o corte da cana no sábado, mandavam buscá-lo no domingo, para que ela começasse o trabalho na madrugada de segunda – “o que tinha chegado primeiro já tinha até cortado um pouco da cana, né! Cortou de sábado, um pouco, e foi buscar eu dia de domingo pra poder chegar na segunda-feira pegar de madrugada, que era o costume” (D. Maria Roxa, Fanado, setembro de 2018). Figura 127: D. Maria Roxa – batedeira de tacho. Foto: Soares (2018) Sobre este costume de trabalhar e bater o tacho de madrugada, vários entrevistados fizeram questão de destacar – “tinha muita gente trabalhando aqui, eles levantava era três hora da manhã pra moer cana, socar milho pra fazer farinha de milho, fazer farinha de mandioca... aqui tinha moinho, gangorra, roda d’água, fábrica de farinha, fábrica de pinga..” (D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Além de D. Lia, Sr. Júlio, Sr. Tião e Edson, Dona Benvinda também se lembrou de ter vivenciado momentos como esses em algumas vezes que dormira na Fazenda, quando dava aulas na comunidade: Eles levantavam assim uma hora, meia noite, pois iam no engenho lá pra moer... e tinha uma moça aqui que olhava o tacho, porque não podia bater, porque se não derramava tudo aí escumava, aí essa menina dormia lá no nosso quarto, no quarto onde nós estava dormindo, aí ela dormia assim no chão e quando era uma hora da manhã, eles iam chamar ela pra olhar o tacho. E frio aquele mês de junho, porque é, hoje não está fazendo frio como naquele tempo, naquele tempo caía geada mesmo e nós tava lá na cama sentindo frio e ela levantava, e só com um paninho assim e nem blusa tinha, e jogava um paninho assim e já ia lá olhar o tacho. Já tinha moído um tacho e já estavam lá fervendo... ia o outro, e já estava moído também, né, no cocho, para na hora que aquele saísse de lá, o outro já estava moído, e já cortavam cana... (D. Benvinda, Capelinha, março de 2016). Dona Maria Roxa, não se lembrou se chegou a trabalhar para Carlota no casarão, mas ressaltou que trabalhou muito anos na região da Barra do Capão, onde, inclusive, morava o Professor José Soares, que se lembrou de quando era criança e a buscava para costurar as roupas de sua família: Eu já busquei ela aqui muitas vezes no cavalim... (risos) ...quando eu era pequeno, era eu e meu irmão que buscava ela aqui. Ela ficava lá em casa semana... já ficou até 15 dias, né? Que eu era muito pequeno eu não tenho muita lembrança, mas eu lembro deu buscando ela aqui... eu lembro mais quando era pra remendar as 393 roupas... porque pela dificuldade da época, pra comprar roupa, que era muito cara, cê aproveitava enquanto dava, ia aproveitando... e ela era a única pessoa na região que tinha paciência pra costurar, pra remendar, pra fazer bem feito... cortar uma calça, pra fazer outra (Prof. José Soares, Fanado, setembro de 2018). Outro signo importante da paisagem de Alto dos Bois é a gangorra, presente em vários relatos já apresentados e cujas funções são também descritas por Sr. Tião: Figura 128: Muro de pedra da gangorra e algumas peças de madeira Foto: Dêga Fernandes Agora lá, aquela água, tinha duas bica dessa grossura, da grossura dessa lata aí, oh. E quando a água caia lá, tocava a gangorra. A gangorra era um gangorrão, e lá na bica a água tocava o moinho, tocava a gangorra, tocava uma roda de relar mandioca, uma roda de fiar algodão... (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Apesar de não ser o forte da região, Sr. Tião conta que muitas propriedades possuíam um pé de algodão para fazer o pavio, o qual era utilizado tanto nos candeeiros (para iluminação) quanto na produção de cobertores: Figura 129: Candeeiro Foto: Silva (2016) Agora aqui era pé que tinha. Mas eles juntava aquelas que tinha lá e fiava pra fazer o pavio, fazia a linha, e tinha as tecelona, que eles fala, tecia o cobertor, eu lembro, conheço, Teal [tear] que eles fala. E a rodinha de fiar o pavio, mamãe mesmo tinha, fia o pavio, fia a linha, e tem aqueles quilo de linha e de pavio que dava uma coberta. Mamãe fiava a linha, depois levava pra tecelã tecer cobertor (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Segundo D. Lia, muitos dos cobertores que tinham na época da Carlota foram adquiridos dos tropeiros que pousavam na fazenda. Em noites muito frias, eram, inclusive, esses cobertores que eram emprestados aos tropeiros quando pousavam por lá. Em nossas caminhadas pela região, encontramos na mesma casa onde morava D. Maria Roxa, na comunidade de Fanado, uma senhora de sessenta e poucos anos – D. Lora – que, quando era criança, acompanhava a mãe, que trabalhava para Dona Carlota lavando esses cobertores de 394 algodão na beira da cachoeira do córrego Fanadinho (nos fundos do casarão) com o sabão de coco de macaúba, também produzido por lá. Eu comecei a trabalhar lá duns 10 a 11 anos. Mas eu trabaiei muitos tempo, nós foi indo, aí eu comecei nessa idade, mas todos dias que ela precisava, ela chamava nós. Eu era bem pequena, mas eu era inteligente, e mãe me levava pra eu ajudar ela nessa casona. Nós chegava lá ela dava nós aquelas pelotona de sabão de coco macaúba, eles falava macaúba, um redondinho pretinho assim pra nós passar nas roupa, fazia aquelas bola mesmo assim, sabe? E aí a gente punha numa buxa de palha, não tinha escova, não tinha nada, fazia uma buxa de palha de milho, mascava, mascava assim e punha, tirava os pedaço. Aí nós lavava aqueles trem tudo com esse sabão. Pretim da cor dessa calça que cê tá usando. E aí nós passava nesses cobertor de algodão, só que cê tinha que ir molhando eles, e estendendo, tornava a molhar, batia nas lapa, batia, estendia, até eles clarear. Aí eles clareava, nós turcia tudo, 12 cobertor que nós lavava, e punha pra secar, e pegava tudo sequim. Nós ía pra aquelas lapa, aquelas laje lá é tudo limpinho, aí nós estendia, o sol esquentava e num instantinho secava. (D. Lora, Fanado, setembro de 2018). D. Orlinda também trabalhou muito para Carlota – “lavava roupa... panha café... plantava o milho... tudo quanto é coisa a gente fazia lá na fazenda, lá tinha um movimentão danado, tinha muita gente trabalhando, tinha muito movimento”. E assim como D. Lora, ela também ressaltou a importância das lapas ou lajedos – “Aqueles lajeiro era tudo limpinho... aquelas água tudo limpinho... correndo naqueles lajedo” (D. Orlinda, Alto dos Bois, julho de 2015). Ao nos depararmos com tais relatos, retomamos, mais uma vez, a conexão dessas pessoas com elementos físicos dessas paisagens - as lajes quartzíticas, cuja importância já ressaltada ao falarmos do cemitério, do oratório e até mesmo dos fornos de biscoito e de farinha, retorna à memória dos comunitários ao se lembrarem das atividades que realizavam na fazenda. Assim, a cachoeira, o córrego do Fanadinho e seus lajedos, além de representarem fortes relações topofílicas nas paisagens culturais de Alto dos Bois (relacionadas ao laser), vinculam-se ainda ao próprio cotidiano dos sujeitos nas relações de trabalho atuais e pretéritas. Ao recordar-se dos trabalhos que realizava com sua mãe na fazenda, D. Lora deu forte destaque a este sabão preto caseiro que era muito produzido na região, em quase todas as casas era este sabão que as famílias utilizavam para lavar suas roupas, feito do coco de macaúba, como ela faz questão de nos contar: [...] nós chamava nessa época de coco de macaúba. Quando cê massa ele, cê tira aquela massa amarelinha. Nossa dá uma gordura, minha filha! Quando a gente tá tirando, tem que por pra secar, pra ficar uns dia pra ele, sabe, aí a gente punha no pilão, minha fia, e ía socando, socando, até acabar, e aí ia tirando de um a um a gordura. Aí cê punha na panela, tinha aquelas panelona de ferro. [...] Só que o sabão ficava bom demais, a mão da gente ficava até... Eles vendia e todo mundo fazia... fazia aquelas bola mesmo assim, sabe? Cozinhava ele e quando via que já tava no ponto, secava ele e fazia aquelas bolona (D. Lora, Fanado, setembro de 2018). 395 Como observamos até aqui, a fazenda (na época de D. Carlota) era muito produtiva, sendo um ponto de referencia para os moradores locais (na manufatura de seus produtos e trabalhos que realizam em diversos serviços na fazenda) e também para os tropeiros que vinham de várias regiões do Jequitinhonha e Norte de Minas, como destaca Dêga Fernandes ao nos descrever um pouco da tradição dos tropeiros na região: Os tropeiro era tradição, eles vinham de Minas Novas, vinham de Araçuaí, vinha daquela região toda trazendo rapadura, outras coisas, chegava aqui eles trocava por outras mercadoria de Malacacheta, Angelândia, Jaguaritira, eles trocava trazia, café, tudo quanto é mercadoria, a cerâmica que seria uma panela, um pote e outras coisas assim (Dêga Fernandes, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Outra terminologia utilizada localmente para se referir aos tropeiros era campeiro, porque as tropas vinham trazendo muitos produtos do campo. A chegada dos tropeiros na fazenda era sempre muito esperada, pois além de ponto de troca e comércio, ela era ainda um rancho de pouso para as tropas que vinham passando por outros povoados da região (como Lagoa Grande, Bem Posta, Galego, Grilo, Vendinha, etc.). Sr. Júlio se recorda com muito carinho sobre o dia que os tropeiros chegavam à região, inclusive para pousar na casa de seu pai (Pedro Lopes), que também recebia as tropas: Alí do lado de onde meu pai morava, ali de Jureílson, ali é aonde que os tropeiros desciam e vinham lá de Minas Novas, Araçuaí trazendo rapadura, né, para levar para Malacacheta. Prá, de lá, vim trazer sal, feijão, arroz... isso eu lembro como fosse hoje. Quando entrava a semana nós trabalhava lá, e falava: “hoje é dia dos tropeiros”! Passava sempre na base de quarta ou quinta, né, “eooo.” Aquele gritaiada, vinha né. Lá onde o meu pai morava era pouso de rancharia, né, morava lá na beira do rio, aonde eles arranchavam, né. Sempre ia lá pra casa, porque naquele tempo ninguém tinha cisma de ninguém, e a casa era grande tinha um porãozão com caixa, né, recebia todo mundo. E lá na casa de Dêia também, tia Carlota, né, Dêia, lá também tinha o quarto, está lá até hoje, aquele quartão de fora lá é que os tropeiros dormiam né (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). O filho de D. Lia, Edson, chegou a vivenciar um pouco dessa chegada dos tropeiros na fazenda, quando ele tinha uns sete anos de idade, por volta de 1986, na época dos últimos tropeiros, como ele mesmo relata: Ah isso que deve eu tinha uns sete anos. Hoje eu tenho trinta e três. Já foram os últimos tropeiro, né. Que tropeiro, o véi Tunico mesmo, eu lembro dele passando aqui. Eu lembro até uma panela de barro que o véi Tunico vendeu pra mãe, e uma muringa que ele deu pai. Quando eles pontava lá em cima, nóis já sabia, os tropeiro em vem, aí se tivesse alguma coisa desarrumado corria lá, arrumava, aí quando era três horas da manhã cê escutava eles batendo na cangalha assim, ali era a hora que eles ía arriá os burro pra partir pro lado de Malacacheta aqui. Aí nóis ficava esperando quando eles vinha aqui, quando eles vinha aqui eles geralmente trazia bala, alguma coisa pra gente. (risos) era bom demais (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). 396 Segundo Edson, sua mãe pegava muitas panelas de barro com os tropeiros. Ao afirmar isso, ele despertou na memória de sua mãe uma história de amizade entre os tropeiros e sua família, como podemos observar no diálogo apresentado abaixo entre mãe e filho: Edson: Mãe pegava mais era panela né, mãe. Aquela panela ali foi Geraldo Campeiro que trouxe? D. Lia: Foi, o pai de Tonico que me deu. Me deu, quando eu era moça e disse assim “toma Lia essa panela pro cê quentá água quando cê casa”. Edson: Relíquia de quando a gente era moleque ela só ficava no cantim da fornalha pra esquentar água. Aquela panela tem mais de 30 anos. (Entrevista concedida por Edson e D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Figura 130: Panela de Barro no cantinho da fornalha. Foto: Silva (2016) Na memória vinculada aos tropeiros que pousavam no casarão, ouvimos também relatos sobre o quarto dos tropeiros, onde eles colocavam as cangalhas e buracas (bolsas de couro com as mercadorias) no cantinho, e esticavam as capas das cangalhas, sobre as quais eles dormiam. No quarto do tropeiro a família também já havia construído uma fornalha, onde os tropeiros podiam preparar sua alimentação – “lá eles já tinha o forno, acendia o fogo, comida boa no mundo era ali. Aqui já tinha a fornainha deles. Mas comida boa era ali, e rápida também. Enquanto cê piscava, eles fazia uma comida ali” (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Como já salientamos anteriormente, muitos dos irmãos de D. Carlota tropeavam pela região trazendo mercadorias para vender em suas fazendas e nos comércios da incipiente Vila dos Anjos. Sr. Júlio acompanhava o pai desde os seus doze anos, ao relembrar dessas vivências ele nos contou um pouco sobre as mercadorias e as dificuldades no transporte e na arrumação das cargas, principalmente, em decorrência da precariedade dos caminhos. Desde doze anos agente fazia quase de tudo né! Pai tinha uma voz chata demais e perguntava: “vocês não querem marmelo?” Aí nois trazia pra ele uns cinco burro em dois alqueires. Lá em Capelinha que eles faziam o doce, né, e sofria muito, porque o marmelo dava desde do mês de novembro, porque é maduro né, e muita chuva assim, as estradas ruim e agente vinha com aqueles burro carregado... Eu e um menino pegava cinco burros, tinha que pegar dez balaios. Chegava pra descarregar aquilo tudo, era pesado né, e eu era novo, você tinha muita força porque naquele tempo, eu tinha muita força né, nem tanta força, era o treino né, porque de novo treina né, porque já começa pequenininho, né, e aquela atenção. Agente também já começava a por força de pequeno, né, aí eu vinha com estes cinco burros e chegava uns córrego, tinha um córrego que chamava córrego do Jó e chegava e atolava e ali você pra tirar aquilo ali, uai pra tirar você tinha que tirar a carga e carregar pro lado de fora e entrar no meio daquela lama e saía daquilo igual um porco né, mas tinha que vir, porque era o pai da gente. Eu até achei muito importante o pai da gente ensinar isso, né, agente aprender a trabalhar né (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). 397 Ao recordar das tropas de seu tio Chiquinho Rodrigues, ele nos relatou ainda que o tio colocava chocalhos nos burros guias e a outros era atribuído ainda alguns nomes – “tinha Retrato, era até um burro de coice, que eles falam, que é um burro mais velho, né, carregava cachaça, aí eles falava ‘põem aí, o Retrato no canto’, eu achava era grassa (risos)” (Entrevista concedida por Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Apesar das tropas terem acabado, Sr. Tião Camargo continuou “tropeando” nos tempos modernos, trocando mercadorias entre uma comunidade e outra – “Eu tropiei um tempo daqui pra Minas Novas, em Quilombo, eu ia pra lá, pegava as carga, chegava lá punhava no ônibus e ia vender, no outro dia pegava, dormia lá, no outro dia, já vinha direto e chegava aqui de noite. Eu tenho até a história que eles gravou no jornal” (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Abaixo apresentamos a notícia, guardada por Sr. Tião em quadro, como um troféu do reconhecimento de sua história de tropeiro (Figura 129) e ainda a imagem de um dos seus burros, selado com uma cangalha no fundo do seu quintal (Figura 130). Tião de Vicente e Chico do Fumo Sebastião Rodrigues Chaves, o Tião de Vicente, de 68 anos, mistura o tempo das tropas de burros com o dos ônibus para chegar à feira de Minas Novas. Ele mora na zona rural de Angelândia, de onde sai tocando seus três burros até a comunidade de Quilombo, já em Minas Novas. Lá, pega o caminhão que vai até a feira, levando urucum, arroz com casca e descascado no pilão que tem em casa. Ao todo são três dias dedicados à feira. “Já fui até no Poté” (no Vale do Mucuri) a pé, tocando burro”, garante Tião Vicente. Além de vender arroz, ele compra outros produtos, que leva para a feira de Angelândia. Foi assim que negociou com Francisco Carlos dos Santos, o Chico do Fumo, de 45, morador do Córrego do Angico, a compra de uma partida de fumo de rolo. Negociação lenda, penoso, cheia de Figura 131: Jornal de Tião de Vicente Fonte: Arquivo de Sr. Tião 398 idas e vindas. Chico do Fumo relutava em aceitar os R$ 50,00 oferecidos por Tião Vicente. “Ele é lapidado em lograr a gente, menino. Ele tem me logrado muito”, falou Tião, em voz baixa, quando Chico se afastou para conversar com outro freguês. Mais tarde, Chico do Fumo fechou o negócio e ano escondeu um certo desconforto, manifestado através de cara marrada e um silencio acabrunhado. Também falando baixinho, Tião de Vicente concluiu, em tom de satisfação: “Chico ficou meio aborrecido porque comprei o fumo dele barato”. Enquanto Tião vai a Minas Novas, a mulher, Ana Cordeiro dos Santos, frequenta a feira da cidade deles. “A precisão obriga a gente a sair cada um pra um canto. Tenho uma mulher que é uma santa para ajudar”, diz Tião, que teve “16 filhos com três mulheres”. Ele está contente porque, com a chuva, “tudo melhorou muito”, mas lamenta o fato de precisar viajar para sustentar a família. “Gosto mesmo é do município de Angelândia. Mas a gente não faz só o que gosta. Se eu pudesse, estava lá perto da minha velha, não estava aqui, não”, garante Tião de Vicente. Figura 132: Burro de tropa do Sr. Tião de Vicente Foto: Silva (2018) Figura 133: Entrevista com Sr. Tião FOTO: RODRIGUES (2018) Destacamos até aqui a história da Fazenda de Alto dos Bois até o período em que foi dirigida por D. Carlota Rodrigues, o qual se compreendeu entre 1944 (quando ela recebera a herança de seu pai) e 1972 (quando ela assinou o último ITR). No documento de sua herança além de cerca de 23 hectares de terras, constam ainda o “casarão”, o “engenho e a gangorra”, o “moinho”, o “paiol”, o “engenho velho”, outra “gangorra” e “uma chácara de café no quintal de casa” (Acervo do Casarão, 19 de fevereiro de 1944). Todos estes signos da paisagem, que foram herdados por D. Carlota, hoje fazem parte da memória herdada dos moradores de Alto dos Bois por meio de suas próprias vivências ou das histórias contadas por seus antepassados. E hoje são velados e resguardados por sua principal herdeira, D. Maria Rodrigues dos Santos – D. Lia, filha de Terezinha e neta de Gabriela Rodrigues da Cunha – a última filha de Pedro Roiz da Cunha, cuja genealogia apresentamos na Figura 132. 399 Figura 134: Árvore Genealógica de Gabriela Rodrigues da Cunha 400 Gabriela Rodrigues da Cunha casou-se com Zé Pereira, com o qual tiveram três filhos (Terezinha, Gabriel e Maria Rodrigues da Cunha – “Tia Ota”). No entanto, D. Gabriela faleceu deixando os três filhos muito novos sob os cuidados de sua irmã Carlota. O viúvo – Zé Pereira – viveu até o seu falecimento com seus filhos e netos no casarão, onde ajudava muito a cunhada na lida da Fazenda e no zelo com os filhos. Gabriel, ao casar-se com D. Quintina, mudou-se para a comunidade de Quilombo (município de Minas Novas), onde viveu com sua esposa, sem ter filhos, até o ano de 1993, quando falecera. As duas filhas de D. Gabriela, encontram-se residindo em Alto dos Bois: Maria Ota, como é conhecida pelos familiares (mora nas proximidades do Casarão), e grande parte de seus filhos continuam residindo também na comunidade de Alto dos Bois (como pode ser observado na genealogia apresentada anteriormente); já sua irmã Terezinha (já falecida) teve sete filhos: D. Lia, do primeiro relacionamento, e seus seis irmãos do casamento com o Sotônho. Dos descendentes de D. Terezinha, apenas residem em Alto dos Bois D. Lia e seu irmão Irineu, os demais filhos encontram-se em São Paulo ou em duas comunidades rurais próximas – Santo Antônio dos Moreiras e Fanado. E foi a partir de dessa família, mais especificamente dos “guardiões do Casarão de Alto dos Bois” – D. Lia e Sr. Preto – que toda essa trama genealógicas das paisagens culturais da Fazenda de Alto dos Bois foi possível de ser traçada. A memória e o acervo zelado com tanto cuidado e carinho, pelo casal e seus filhos, foram nossos eixos norteadores para toda essa construção, juntamente com os demais membros da comunidade sobre esse importante sítio histórico geográfico, que conecta histórias da formação territorial brasileira, mineira e do Vale do Jequitinhonha às histórias de vida dos sujeitos que preservam esse modo de ser e viver em Alto dos Bois. Ao se realizar um estudo de cunho etnogeográfico de comunidades quilombolas, muitos pesquisadores buscam investigar as origens/marcos históricos destes lugares que se remetem à sua ancestralidade africana. Todavia, apesar da importância do reconhecimento e busca da historicidade, nem sempre são essas características/critérios que fundamentam a construção identitária do grupo. Nesse sentido, Sahr et all (2011) destacam que, acompanhando os avanços teóricos da conceituação de quilombo e quilombola, as pesquisas superam a busca apenas por “reminiscências dos antigos quilombos”, em favor da própria organização territorial da comunidade como uma forma de garantia da sobrevivência social, cultural e territorial desses grupos. Desse modo, a identidade quilombola se constituiria/consolidaria não apenas a partir do passado e das memórias da escravidão, mas 401 também por meio das relações familiares e territoriais dos mesmos. E é nesse sentido que a reconstrução genealógica se apresentou como um recurso teórico-metodológico de extrema importância para a reconstrução histórica da espacialidade de Alto dos Bois. Ao refazer suas histórias de vida, reencontramos juntamente com os sujeitos da pesquisa, referências e limites do seu lugar na constituição familiar. O reconhecimento dos sujeitos nesse sistema de ascendência e descendência os possibilita reafirmar o sentimento de pertencimento a famílias, grupos, coletividades e à sua comunidade quilombola. E como ressalta Ramos (2009, p. 75), “o parentesco que se constitui como memória é a codificação do território. É pelo parentesco que as pessoas são fixadas na terra. Herdeiros, as pessoas são também herdadas pelo território”. Este território que esteve presente em todas as narrativas anunciadas até aqui (por meio da produção, da divisão das terras entre os herdeiros descendentes da fazenda de Alto dos Bois ou dos caminhos percorridos pelos indígenas, colonos, tropeiros e/ou carteiros) se configuram, a partir das relações entre os sujeitos, de suas apropriações simbólicas e culturais em paisagens singulares que revelam não apenas na espacialidade vinculada a este território, mas também nas percepções e vivências dos moradores dessas comunidades. Vale ressaltar ainda que há uma parcela considerável dos filhos que acabam migrando, inicialmente temporariamente, para outras cidades, em busca de emprego e acabam constituindo suas famílias por lá, permanentemente. Dentre os principais destinos mineiros desses imigrantes de Alto dos Bois destacam-se: Belo Horizonte, Sete Lagoas, Pará de Minas, Betim e Juatuba. No estado de São Paulo: a capital paulista, Salto, Jaguaritinga, Ribeirão Preto e Sorocaba. E em menor representatividade aparecem ainda Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso, Brasília e Paraná. Apesar de existirem muitos destinos ligados a atividade agropecuária, no caso dos destinos mineiros e paulistas, ambas as cidades se destacam atualmente como polos industriais em suas devidas proporções. Muitos destes, que migraram inicialmente para atividades domésticas ou construção civil, atualmente encontram- se inseridos nessas outras funções do segundo setor. O forte êxodo rural, todavia, não extingue a ligação de pertencimento desses com sua terra natal. Muitos visitam os familiares nas férias, trazendo suas famílias, ou levando por um tempo algum parente para visitar, ou ainda, para tentar uma oportunidade de estudo/emprego nas cidades maiores. Esses laços de afetividade presentes em diferentes gerações se confirmam não apenas nos relatos dos moradores, mas na própria construção genealógica, que, muitas vezes, apesar de não saberem os nomes dos filhos de uma 402 determinada família que se mudou há algum tempo, eles têm conhecimento de quantos filhos/filhas esta já possui. E são essas relações de parentesco/ afinidade que asseguram o sentimento de pertencimento e construção da identidade quilombola deste lugar. É a força dos que pertencem a esta terra, que mantém o seu povo, a sua cultura e a sua ancestralidade viva na “fluidez de sua espacialidade histórico-vivencial” (Sahr et all, 2011, p.42). Enquanto neste subcapítulo a árvore genealógica de D. Lia nos conduziu a compreensão da dinâmica sociocultural, espacial, econômica e cultural que se estabelecera em Alto dos Bois, enquanto uma importante fazenda, de tradição familiar; no subcapítulo seguinte, será o seu desafio, juntamente com seus filhos, de preservar e manter toda essa história vivida na vivência comunitária de Alto dos Bois, que nos guiará para a compreensão do atual contexto no qual se configuram as paisagens culturais de Alto dos Bois – enquanto um Casarão cheio de histórias e reminiscências que resistem à desatenção do poder público e de uma comunidade tradicional, de agricultores familiares, que se descobre enquanto descendente de negros escravizados, e com direitos e tradições assegurados pela Constituição de 1988, mas que chegam para eles apenas no ano de 2010. 6.3. ALTO DOS BOIS: as vivências comunitárias na afirmação identitária quilombola e a resistência do patrimônio histórico e cultural A paisagem cultural de Alto dos Bois se desvelou, até aqui, permeada por distintos conflitos territoriais desde a chegada do primeiro português, em 1729. E para além de um “alto”, onde os colonos criavam o gado a solta, no topo das chapadas, Alto dos Bois foi se constituindo enquanto um importante quartel, aldeia e fazendas. Ressaltamos aqui, que além da Fazenda de Alto dos Bois (onde anteriormente localizava-se o quartel) diversas outras fazendas do entorno também se reconheciam como parte da região de Alto dos Bois. E foi por meio desse reconhecimento que chegamos a tantos moradores de comunidades visinhas que se identificam com as histórias deste lugar. Muitas dessas comunidades foram, inclusive, se formando a partir desse crescimento das famílias, que mesmo ao comprarem fazendas em outras localidades (de toponímia distinta), continuavam sentindo-se e identificando-se como pertencentes à região de Alto dos Bois. E ainda hoje esse sentimento de pertencimento configura-se entre algumas dessas comunidades, nas quais há pessoas que descendem das famílias de Alto dos Bois, e que se reconhecem como parte da história desta região. Tais 403 comunidades encontram-se no limiar dos municípios de Angelândia, Capelinha e Minas Novas, como pode ser observado na Tabela 16. Tabela 16: Comunidades rurais onde há parentesco com as famílias da região de Alto dos Bois Angelândia Capelinha Minas Novas Alto dos Bois Tabuleiro Santiago Córrego do Engenho Ribeirão dos Vales Quilombo Barra do Capão Fanadão Alagadiço Santo Antônio dos Moreiras Santo Antônio do Fanado Paudolinho Sapé Timirim Camarinha Fanado Capoeira Grande Grota do Amaro Córrego dos Soares Grota Escura Baixinha Grota do Barulho Chapadinha Córrego dos Bento Fazenda Amanda Grota dos Alves Grota do Algodão Cabeceira da Grota Córrego do Lambu Fonte: Dados coletados em campo. Para compreendermos as paisagens culturais e as vivências comunitárias que se configuram em Alto dos Bois, no contexto atual, partimos então, da análise dessa dinâmica territorial que se estabelece entre tais comunidades, por meio de suas representações, valores, crenças, saberes, práticas culturais, agrícolas e comerciais. Nesse sentido, compreendemos que a paisagem é construída e/ou representada por meio destas concepções de identidade e territorialidade, que os sujeitos consolidam neste mosaico de comunidades, que configura a região de Alto dos Bois. Há comunidades que possuem fortes vínculos familiares e culturais; e outras, nas quais a interação se estabelece, principalmente, por meio de trocas comerciais, que os moradores realizam nas feiras de agricultores familiares, que acontecem aos sábados nas sedes dos municípios de Angelândia, Capelinha e Minas Novas. A história de vida de Sr. Tião Vicente é um exemplo dessa dinâmica, uma vez que este se deslocava para a casa de seus parentes em Minas Novas – para vender seus produtos na feira deste município; enquanto, sua esposa, D. Ana, estava vendendo outros produtos na feira de Angelândia. Ao vivenciar um sábado de feira no município de Angelândia encontramos muitos agricultores dessas comunidades listadas na Tabela 16, principalmente da zona rural de Angelândia, e algumas de Capelinha (tais como Chapadinha, Santo Antônio do Fanado e Ribeirão dos Vales). E é nesse espaço do convívio, que podemos também observar como se manifesta a “revalorização das territorialidades” dessas comunidades, enquanto um “elemento de afirmação das identidades” (CRUZ, 2007, p.14). As interações entre os sujeitos se estabelecem desde a tipologia, quantidade e disposição dos produtos que são encontrados na feira até os momentos de encontro entre “compadres” e “comadres” no momento da 404 comercialização. No entanto, mesmo entre os compadrios, as territorialidades das comunidades se afirmam a partir de falas como: “esse amendoim foi produzido lá no meu quintal, na comunidade do Fanado” ou “esse mel, purim assim, é só lá no nossa comunidade de Chapadinha” (Expositores da Feira de Angelândia, setembro de 2018). Desse modo, uma “disputa” se estabelece entre os agricultores no intuito de “ganhar” as vendas dos produtos oriundos de suas comunidades, a partir da apropriação de sua territorialidade, que é acionada frente à alteridade para com as demais comunidades que se encontram presentes neste espaço. Assim, como reforça Anjos (2009, p.8), “a territorialidade é específica em cada comunidade” e é por meio da alteridade que ela se manifesta, enaltecendo as distintas formas “como ela se relaciona com o seu território, com a sua base física, com a sua terra”. Compreendemos que as paisagens culturais de Alto dos Bois se constituem a partir das conexões que se estabelecem entre tais comunidades, as quais se consolidam por meio dessa manifestação de suas territorialidades na construção dessa região, enquanto espaço vivido. Há assim, um fortalecimento das identidades territoriais das comunidades, sem, no entanto, negar o seu pertencimento a história regional representada por Alto dos Bois. Ou seja, quando vivenciamos esses espaços de disputas no mercado municipal de Angelândia e questionamos aos sujeitos se eles conheciam a região de Alto dos Bois, todos demonstraram, direta ou indiretamente, uma identificação com as histórias de lá. Tais percepções, nesse sentido, é que nos levam a defender esse reconhecimento de Alto dos Bois para além das suas dimensões apenas territoriais, enquanto inclusive um território quilombola, mas como uma paisagem cultural que engloba todos esses processos e temporalidades, extrapolando, inclusive, os limites das comunidades atuais. No entanto, para que tais concepções sejam alcançadas é preciso reconhecer e identificar também as dimensões materiais, imateriais, simbólicas e político-culturais desses atores sociais na construção e apropriação desses territórios (HAESBAERT, 2016). Para tal, no âmbito dos estudos direcionados às comunidades quilombolas no escopo das ciências geográficas, buscamos estabelecer diálogo com as concepções de Anjos (2009), segundo o qual o território coloca-se, em sua essência, como um fator espacial e social implicitamente atrelado à dimensão política permeada na identidade, cujo processo de categorização e dimensionamento estão entremeados por suas referências culturais e simbólicas. Vale ressaltar que, ainda segundo este autor, o limite do território nem sempre condiz apenas aos seus aspectos físicos, ele pode estar relacionado, também, a área de influência que uma determinada comunidade exercita em seu espaço de vivência, “até onde a comunidade reconhece a sua influência, o seu exercício de poder” 405 (ANJOS, 2009, p.8). É nesse sentido, que as comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão (nas quais vive grande parte dos descendentes das primeiras famílias da Fazenda de Alto dos Bois) se autodefiniram, conjuntamente, em 28 de setembro de 2010, enquanto remanescentes de quilombo (FUNDAÇÃO PALMARES, 2010). Antes do processo de autoreconhecimento existia apenas a “Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Barra do Capão” (AFPPRBC - fundada em 1997), à qual eram filiados membros das três comunidades. Assim que o grupo começou a buscar o seu reconhecimento, enquanto quilombola, baseados principalmente na importância histórica e cultural de Alto dos Bois (no início de 2010), uma das primeiras medidas a serem tomadas foi a transformação da associação de produtores rurais em “Associação Quilombola dos Pequenos Produtores Rurais das Comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão” (ALCEBAC), por meio do termo aditivo de modificação total do estatuto averbado em julho de 2010. É importante ressaltar que este processo de transformação inicial por meio dos estatutos das associações ocorreu em praticamente todas as comunidades quilombolas do médio Jequitinhonha, segundo, inclusive, orientações de alguns profissionais autônomos ou prefeituras municipais que atuaram fortemente nesta construção em âmbito regional (desde a orientação, conscientização e transformação dos estatutos ao encaminhamento da carta de autoreconhecimento para a Fundação Palmares). Todavia, o protagonismo da comunidade, por meio da associação, já era evidente, mesmo antes do autoreconhecimento. Ao analisarmos algumas atas da associação que tivemos acesso (do período de abril de 1998 a outubro de 2007) observamos que o grupo já se encontrava mobilizado para realizar uma série de projetos que pudessem promover a melhoria na qualidade de vida, e principalmente, o desenvolvimento de atividades produtivas que pudessem gerar mais renda e oportunidades de trabalho na comunidade. Propósitos estes apresentados, inclusive, nos próprios objetivos do estatuto da associação, registrado em 2005. Art. 3º - São os seguintes fins da ASSOCIAÇÃO DOS PEQUENOS PRODUTORES RURAIS DA BARRA DO CAPÃO:  Trabalhar pelo desenvolvimento da agropecuária e proteger o meio ambiente;  Participar dos trabalhos comunitárias e atender aos menos favorecidos, buscando seu desenvolvimento integral;  Firmar convênios e elaborar projetos com órgãos e entidades possuidoras de recursos específicos para a manutenção das estruturas existentes da comunidade;  Reunir recursos materiais, humanos e assistenciais disponíveis através de esforços, pondo-os à disposição da população da comunidade (AFPPRBC, 2005, p.1). Nas 46 reuniões realizadas neste período, observamos que em boa parte delas estiveram presentes representantes da EMATER ou vereadores, que repassavam para os 406 associados diversas orientações referentes à: plantios; disponibilidade de máquinas na prefeitura; realização de projetos para obtenção de mudas, sementes ou compra de maquinários; além de informações sobre saúde, educação, direitos dos trabalhadores rurais, dentre outros. Um dos primeiros projetos de plantio realizados Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Barra do Capão foi o “Projeto de Viveiros de Café”. Entre 1998 e 2001, foram repassadas orientações pelos técnicos da EMATER a respeito: da área (arrendada) para o plantio das mudas; do acompanhamento dos plantios; ao uso da água; a análise do solo; ao uso de sementes selecionadas e à localização do canteiro de mudas distante de outros cafezais. Todavia, em maio de 2001, alguns produtores, não satisfeitos com o resultado, já diziam que o “projeto do café estava um fracasso”, indicando, inclusive, a necessidade de se investir em outros produtos (Ata da reunião da Associação, maio de 2001). Todavia, o tradicional plantio de café na região continuou sendo realizado pela comunidade, para a qual, inclusive, em fevereiro de 2004, foram repassadas informações, pelo técnico da EMATER, da importância da criação de uma Associação de Cafeicultores, a fim de evitar a exploração dos atravessadores e valorizar a qualidade do café produzido por eles. Essa indicação foi retomada em maio de 2005, por outro técnico da entidade, contudo, o projeto não avançou, pois se acreditava que uma segunda associação traria mais dificuldades de gerenciamento do que benefícios para a comunidade. Nesses primeiros anos da associação, observamos uma forte atuação da EMATER na comunidade, principalmente: no fornecimento de sementes (milho, feijão); mediação entre agricultores e prefeitura no uso de tratores e maquinários; na elaboração e implementação de projetos de plantio, inclusive comunitários, tais como: cana-de-açúcar, abacaxi, marmelo, banana, mamão, mandioca e outros. Muitos desses plantios continuam sendo realizados nas pequenas lavouras dessas comunidades ou em seus quintais, nos quais além de uma série de hortas bem diversas encontramos ainda muitas árvores frutíferas. Na leitura das atas observamos que o órgão, nesse sentido, também realizava uma campanha de melhoria na alimentação das famílias, incentivando e orientando as mesmas a cosumirem mais verduras e frutas produzidas em seus quintais. E para potencializar essa mudança dos hábitos alimentares, no ano 2004, a EMATER concedeu uma série de mudas frutíferas para serem plantadas nos quintais da comunidade. Além de orientações e palestras sobre alimentação e saúde, a comunidade recebeu ainda uma série de cursos referentes: a linhas de crédito, como o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar); Programa de 407 Combate a Pobreza Rural (PCPR); fruticultura; organização rural; casa de máquinas; recuperação de nascentes do rio Fanado; meio ambiente; situação de risco para crianças com baixo peso; curso de tratorista; aração da terra; direitos dos trabalhadores rurais (previdência social, acidentes de trabalho, transporte, INSS, licença maternidade); piscicultura; apicultura; artesanato; secretária e avicultura. Em alguns registros identificamos ainda as dificuldades encontradas pelos associados, principalmente, no que ser refere à: participação nas reuniões; contribuição das mensalidades; falta de união dos associados e ainda alguns entraves relacionados à emissão da carteira de associados. Nesse sentido, em diversas reuniões observamos que a comunidade esteve sempre buscando realizar esse cadastramento dos associados para auxiliá-los na obtenção de recursos e benefícios junto ao governo, além do próprio acesso à saúde, uma vez que tais comunidades possuem o direito de marcação preferencial de consultas, em decorrência de sua dificuldade de acesso à sede municipal em decorrência das más condições das estradas e da escassez de meios de transporte para essas populações. Outro aspecto interessante de se ressaltar nas atas da associação é que a mesma sempre se preocupou em identificar os problemas existentes na comunidade e buscar soluções para todos. Um exemplo dessa relação foi a solicitação da comunidade, junto a prefeitura, de que a mesma fornecesse aos alunos da comunidade, que estudam no distrito de Santo Antônio dos Moreiras, um lanche extra, uma vez que os mesmos saíam de casa antes da 5 horas da manhã, pegavam o ônibus às 5:20 e ficavam mais de 1 hora esperando para o início das aulas. Além disso, a associação solicitou também a abertura de uma escola noturna na comunidade de Barra do Capão, pois já havia uma quantidade de 20 alunos a espera das aulas. É importante ainda salientar que as associações configuram-se como importante espaço de diálogo entre comunidades e prefeitura, tanto pela mobilização política que representam, quanto pela sua própria natureza jurídica, que facilita nos momentos de negociação e até mesmo de realização de projetos que visem a melhoria da qualidade de vida em suas comunidades. E, além disso, configura-se também como um importante meio para solicitar apoio para a realização de benfeitorias na comunidade, tais como melhorias nas estradas, educação, saúde, dentre outros. Após o seu reconhecimento enquanto comunidade quilombola, além dos propósitos econômicos e produtivos voltados aos pequenos produtores familiares, a associação passou a registrar em seu estatuto algumas proposições vinculadas às questões culturais de cunho étnico e cultural, como podemos observar no trecho transcrito abaixo. 408 Capítulo II – Do Objetivo Art. 6º. ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DOS PEQUENOS PRODUTORES RURAIS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE ALTO DOS BOIS, CÓRREGO DO ENGENHO E BARRA DO CAPÃO tem por objetivos: melhorias das condições socioculturais, educativas e econômicas, bem como trabalhar pelo desenvolvimento social e econômico das comunidades que compõem esta associação buscando as melhorias na qualidade de vida das famílias associadas. § 1º A Associação visando alcançar seus objetivos poderá: I – Assinar convênios, contratos e compromissos para cumprir a todas suas obrigações e seus objetivos; II – estimular por todos os meios legais e éticos, a educação, cultura afro e popular, o artesanato e demais atividades que visem o desenvolvimento das pessoas quilombolas envolvidas; III – planejar e executar projetos de desenvolvimentos de seus associados fornecendo condições necessárias à total utilização dos novos recursos, através de seus respectivos acompanhamentos; IV – planejar, coordenar e executar programas, projetos e ações institucionais que se refiram à cultura afro-brasileira e a cultura popular em geral; V – promover o desenvolvimento de atividades que contribuam para erradicar o racismo, a discriminação e o preconceito racial, com vistas a promover o exercício da cidadania das famílias quilombolas; VI – apoiar projetos, atividades e ações das organizações e de movimentos socioculturais quilombolas em Minas Gerais; VII – desenvolver e articular parcerias institucionais para implementar projetos de recuperação, proteção e tombamento de bens imóveis, com vista à preservação dos espaço socioculturais das comunidades quilombolas de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão. VIII – estimular o intercâmbio cultural, educacional, social, político e financeiro com outras associações e órgãos afins; IX – capacitar e aprimorar a qualificação técnico profissional dos associados; X – viabilizar, registrar, executar e divulgar a produção do conhecimento e atividades relativas ao meio ambiente, sua recuperação e proteção; XI – priorizar projetos, programas, ações e atividades com a finalidade da promoção e da assistência social (ALCEBAC, 2010, p.1-2). Ainda no estatuto da associação quilombola encontramos alguns elementos que reforçam essa identificação comunitária entre as três comunidades, por meio do uso termo “união”, para se definir que as três “pertencem igualmente” a associação, estando esta, ainda, “aberta à inclusão de outras comunidades próximas e reconhecidas como sendo áreas de remanescentes de quilombos que se interessem a participar” (ALCEBAC, 2010, p.1). Como destacamos na Tabela 16, existem outras comunidades no entorno de Alto dos Bois que possuem esses vínculos familiares e de pertencimento com a história do lugar, e o registro da possibilidade de inclusão das demais comunidades na associação ratifica esse reconhecimento. Partindo destes objetivos, propostos em 2010, e analisando a trajetória da associação em seus nove anos de existência, destacamos que a comunidade vem atuando, principalmente, na busca de informações junto às prefeituras e órgãos competentes para 409 compreender os direitos e deveres que o grupo teria após o seu reconhecimento enquanto quilombola. Nesse sentido, os presidentes da associação já participaram de diversas reuniões realizadas no município de Angelândia, Minas Novas, Chapada do Norte, Berilo e Capelinha. Muitos desses encontros foram, inclusive, realizados pelas próprias comunidades por meio das atividades desempenhadas pela COQUIVALE ou pela Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais. Além desses direcionamentos, um dos maiores desafios foi a conscientização da importância das famílias se associarem e compreenderem o que representa para elas o próprio reconhecimento enquanto comunidade quilombola, como ressalta D. Júlia, atual presidente da associação, que nos dera este relato quando acabara de assumir a mesma, em abril de 2015: É sempre eles pergunta. Só que sempre que eu falo, é porque é um processo meio burocrático, né, porque a gente é reconhecido como quilombola, mas até que você consegue, fazer, colocar em prática aquele direito que você tem, que a gente sabe que a gente tem um direito especial, mas até que você consegue colocar aquele direito que você tem em prática, é difícil demais, né, não é fácil. É com o tempo é que você às vezes consegue. Né! Conseguir colocar aquele direito que a gente sabe que é um direito que os descendente de quilombola tem. Mas pra colocar em prática não coloca, é muito difícil né. [...]E a gente a cada dia que passa a gente á procurando conhecimento, informação. E quem sabe, Deus abençoa que um dia a gente chega lá. (D. Júlia, Barra do Capão, abril de 2015). Além da realização de outros cursos por meio da EMATER, SENAI e SENAR (fruticultura, recuperação de nascentes, costura industrial) uma das maiores conquistas da comunidade, após o reconhecimento como quilombola, foi o fornecimento de hortaliças, frutas e leguminosas para a merenda escolar no município de Angelândia por meio do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). No ano de 2015 a associação solicitou a EMATER, em caráter de urgência, a emissão de 17 DAPs (Declaração de Aptidão ao PRONAF) para concorrer à chamada pública, uma vez que “associação tem prioridade em relação às demais organizações concorrentes, diante disso, solicita-se, se possível, brevidade na nossa demanda, visto que, estamos sendo prejudicados na seleção de propostas do PNAE” (Carta enviada à EMATER, em 22 de setembro de 2015). Sobre a importância dessa conquista D. Júlia ressalta que: [...] por ser quilombola, ajudou a gente muito, né, na entrega dos alimento pras escola, a gente sempre tem um ponto a mais, né, a gente que é remanescente de quilombo. A gente consegue vencer na frente dos outros, né. Não é porque a gente queira tomar frente dos outro, mas é o direito, né. Só que a gente divide com os outro também, a gente não deixa eles pra trás não (D. Júlia, Barra do Capão, fevereiro de 2019). Nesse sentido, o reconhecimento possibilitou-os a acessar outras oportunidades de crédito e venda de produtos, que ainda não haviam alcançado quando apenas se reconheciam 410 apenas como agricultores familiares. Além disso, é preciso ainda destacar a entrada de jovens quilombolas da comunidade em Universidades e Institutos Federais por meio das cotas direcionadas a quilombolas, além do acesso desses alunos a bolsas de estudos acionadas por esse mesmo direito. Nesse sentido, D. Júlia ressalta que: Ser quilombola, essas comunidade ser quilombola, trouxe uma importância muito grande pra nós! Porque nos pode reconhecer nossos direito, as mulher tá mais animada, sabe. Elas, né, ficam entusiasmada, de ver muitas reportagem, sabe. muitas mensagem, até falando de nós aqui no Alto dos Bois, foi uma importância muito grande pra nós, sabe? iniciativa grande mesmo, que nós conseguiu. Uma oportunidade muito boa. E graças a Deus, nós temo que agradecer a Deus (D. Júlia, Barra do Capão, fevereiro de 2019). Outra conquista importante que D. Júlia ressaltou foi a participação da comunidade no “Arte e Sabor – festival gastronômico do Jequitinhonha e Mucuri”, realizado nos dias 28 e 29 de setembro de 2018, por meio do Circuito Turística das Pedras Preciosas, em parceria com a prefeitura de Angelândia. Esse projeto, que foi realizado em diversas cidades do Jequitinhonha e Mucuri, buscou promover, por meio da realização das feiras culturais, a valorização dos artistas locais (músicos, poetas, artesãos) e da culinária tradicional regional. E nesta ocasião, a associação quilombola de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão foi convidada para comercializar seus produtos durante os dois dias da feira. Além disso, realizamos, juntamente com a comunidade, uma exposição sobre a história de Alto dos Bois, apresentando aos munícipes alguns resultados dessa pesquisa por meio da apresentação de três banners e ainda de um painel com as fotografias que representavam um pouco do modo de vida dessas comunidades. Nesse sentido, o convite para a exposição dos produtos representou não apenas uma oportunidade de comercialização, mas também de reconhecimento da importância histórica de Alto dos Bois e cultural da comunidade quilombola, que ainda era pouco reconhecida localmente. Todavia, a partir da realização da feira, este contexto começou a mudar, como nos revela D. Júlia: Igual aquela feira que teve em Angelândia, aquela feira cultural, o rapaz de Teófilo Otoni, o repórter das Pedra Preciosa, pediu pra gente tá fazendo as coisa e pondo na internet pra vender lá, pra ele conseguir vender algumas coisa pra nós na internet. Os artesanato, né, aquele doce de fava, aquele cabo de machado que desse um jeito de fazer, que era uma coisa muito importante. E até aqui mesmo em Angelândia, o povo tá só cobrando da gente, pra gente poder tá fazendo. Aí eu vou ver se eu consigo vender no sábado, na feira, né, essas coisa. Punha lá mais coisa tradicional dos quilombola, essas coisa mais antiga, né, fazer paçoca no pilão, fazer o cabo de machado, fazer os biscoitinho socado no pilão, brevidade, várias coisa, né. Várias coisa que a gente fazia antigamente, essas coisa mais caipira mesmo, né? Se Deus quiser nós vamo conseguir, e eu quero ver, lutar, ver se eu consigo bastante coisa pra comunidade, né! (D. Júlia, Barra do Capão, fevereiro de 2019). 411 Figura 135: Exposição Alto dos Bois: geografia e história das paisagens de um lugar da memória e de vivências comunitárias Figura 136: D. Júlia com os produtos da comunidade a serem comercializados em frente ao painel de fotografias da comunidade Figura 137: Visita da população à exposição. Figura 138: Membros da comunidade que foram prestigiar o evento. Figura 139: Cabo de Machado Figura 140: Artesanato de Crochê, tempero de alho, urucum e panelas de barro produzidos pela comunidade. FOTOS: SILVA (2018) Acima apresentamos algumas imagens da exposição sobre a importância histórica de Alto dos Bois, dos produtos comercializados pelos comunitários, da circulação de pessoas 412 nesse espaço, além do registro fotográfico dos membros da comunidade que estiveram presente neste momento também de confraternização. Durante a feira tivemos a oportunidade de estabelecer vários diálogos com a população local e os moradores das comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão. Nestes momentos diversos habitantes de Angelândia vieram nos relatar sobre alguma experiências que tinham com o lugar (no casarão ou na cachoeira). Alguns jovens disseram que os professores trabalhavam um pouco da história de lá nas escolas da região. E ainda ouvimos pessoas que conheciam a luta pela preservação que a família, que reside no casarão, estabelecera durante muitos anos com as gestões municipais anteriores. As fotos da comunidade, da gangorra, da casa de farinha, do moinho manual de moer milho, dentre outros signos dessas paisagens, levaram tanto os moradores da cidade quanto da própria comunidade a refletir sobre a existência, até hoje, dessas práticas artesanais e da importância de se valorizar e divulgar a preservação dessas práticas culturais dentro do próprio município. Nesse sentido, houve uma percepção unanime de que: o patrimônio histórico e cultural do Casarão de Alto dos Bois e da comunidade quilombola fazem parte da história de todos os angelandenses. Outro patrimônio imaterial dessa comunidade que não podemos deixar de registrar é o protagonismo de algumas lideranças, que dedicam toda uma história de vida em benefício de uma vivência comunitária. E nesse aspecto, há que se evidenciar a história de vida de D. Júlia, uma experiência de vida muito rica e que, com certeza, também está trazendo grandes avanços para a associação. D. Júlia, antes de assumir a presidência da associação, já se configurava como uma importante liderança na comunidade de Barra do Capão, uma vez que, além de participar de diversas reuniões e cursos de formação comunitária (oferecidos pela prefeitura de Angelândia), ela sempre atuou conjuntamente à Pastoral da Criança na região. Segundo D. Júlia na região já existiram muitos casos de desnutrição e, atualmente, essa situação já diminuiu consideravelmente. Para sanar tais circunstâncias, por meio da pastoral da terra, ela e mais algumas companheiras da região, faziam um cadastramento das crianças que precisavam de uma atenção especial, realizando a pesagem, no final de cada mês, e concedendo às mães que precisassem a “multimistura de alimentos”, que era fornecida pela pastoral da terra. Esta alimentação enriquecida, que as mães acrescentariam à alimentação diária de suas famílias, era formada de farelo de trigo e de arroz, folhas verde-escuras, sementes e casca de ovo. Sobre este trabalho, D. Júlia (atual presidente da associação) e Sr. Gilson (ex-presidente da associação) ressaltam que: 413 E esse trabalho é muito importante, sabe, lá é um trabalho voluntário, e tem um acompanhamento, muito importante (D. Júlia, Barra do Capão, abril de 2015). [...] E é muito gratificante né Júlia, quando a gente faz um trabalho assim que você vê as pessoas sendo beneficiadas por aquilo que a gente faz, é legal, né. Que vê aquelas criança, aquelas pessoas que tem realmente necessidade. E quando cê faz uma coisa pra pessoa que não tem necessidade, cê num, às vezes, cê num... fica tão assim... é.... feliz que quando cê vê que realmente cê tá ajudando, quem precisa né (Sr. Gilson, Barra do Capão, abril de 2015). Além do trabalho com as crianças da comunidade, D. Júlia desenvolvia também um acompanhamento com as gestantes da comunidade: [...] tem o acompanhamento da gestante e tudo, né, até no final da gravidez. E a gente tem o livro também, sempre eu passo o livro pra elas, pras gestante, elas acompanha, elas lê o livro direitinho. Muitas vezes não dá tempo nem do médico explicar todos os detalhes pra elas, né, da gravidez, como que faz depois que ganha, e aí, elas tem o livro, elas já acompanha tudo sabe... muitas aqui sabe... aquela Mazinha, mesmo, muitas aqui, nossa, mas foi legal demais, elas aprendeu muitas coisa, sabe. Porque muitas dela é tímida, muitas vezes não pergunta o médico, ou a enfermeira, e até mesmo a mãe, né. A mãe também as vezes fica acanhada de tá passando, que, cê não deve ter vergonha de ter que passar, né, que as vezes a filha tá grávida e fica com vergonha de passar, mas tem que passar. Aí, o livro já explica tudo (D. Júlia, Barra do Capão, abril de 2015). Mediante tantas atividades desenvolvidas por D. Júlia na comunidade, questionamos se ela era agente de saúde ou se trabalhava em algum setor da prefeitura, então ela nos disse que era apenas voluntária da pastoral da terra, mas que sempre trabalhou em parceria, realizando alguns levantamentos em determinadas regiões e repassando para as agentes de saúde municipais. Além disso, D. Júlia chegou até a conceder um dos cômodos de sua casa para os atendimentos médicos da comunidade, pois frente a inexistência de um local adequado na associação, ela se viu na necessidade de ajudar. Sobre essa a atuação de D. Júlia na região, Sr. Gilson fez questão de registrar que: [...] esse trabalho voluntário se não for uma pessoa que tem vontade, mesmo, pra tá encarregado a fazer ele, não sai com nada, então eu até tinha comentado com ela, Júlia, assim, sobre sua boa vontade, seu interesse, sua força de vontade de tá a frente dessas coisa, né, e assim apesar de todos esses trabalho que ocê desenvolve, agora, além de tudo ocê ainda é a presidente da Associação... (Sr. Gilson, Barra do Capão, abril de 2015). E com o mesmo tom de solidariedade e desejo de proporcionar melhorias para sua comunidade D. Júlia responde: A gente no caso não tem é muita experiência, negócio de associação, né, mais a gente tem boa vontade, né. Quer dizer, ninguém nasceu sabendo né, então a gente procura, né, cada um que sabe, a gente busca informação né, e Deus ajuda. E eles já trabalhou muito tempo com ela, e eles vai ajudando a gente né... eu tô disposta, e o que eu puder ajudar na comunidade, vê se agente consegue desenvolver um trabalho, mais assim, claro, né. Transparente pra que todo mundo possa ficar satisfeito, né... (D. Júlia, Barra do Capão, abril de 2015). 414 Em 2015, quando estava iniciando sua atuação como presidente da associação, D. Júlia ressaltou que ainda havia muito que se fazer na comunidade, e que era preciso desenvolver um trabalho que envolvesse os idosos e as crianças. No âmbito da associação, já existia um grupo de mulheres, para o qual ela almeja desenvolver cursos de tricô, crochê e até mesmo a construção de uma horta comunitária junto à tão sonhada ampliação da sede da associação, cujos avanços abordaremos a seguir. A primeira sede da associação dos produtores rurais da Barra do Capão foi construída em 1999, com apoio dos associados e da prefeitura de Angelândia. Todavia, mediante o crescimento das reuniões e da necessidade, inclusive, de construir-se um banheiro na sede, desde 2002, o grupo vem angariando fundos para aumentar o espaço e estrutura-lo melhor para as reuniões e para a realização de festividades na comunidade. Desde 2002, o grupo vem realizando mesas de leilão após as reuniões mensais, a fim de levantar recursos para as necessidades da associação, assim como para a realização da festa do padroeiro da comunidade. A realização dos leilões tem tido cada vez mais a participação da comunidade e de membros de comunidades visinhas. Em janeiro de 2019, D. Júlia nos relatou sobre uma doação “inesperada” de mais de 80 leilões para a domingada da associação: [...] todo mês nós tem uma reunião, e sempre nós faz uma festinha, mesa de leilão e tudo. E nós ficou surpreendido porque um rapaz lá, a gente pediu pra ele levar um leilão, e ele levou um cinquenta leilão, até mais sabe, nós nem contou, mas deu mais... ele levou leilão que dava pra umas três domingada menina, foi muito legal, sabe! E sempre nos ta fazendo festinha na associação, tem uma sanfona, banda de música e dança a noite inteira mesmo. A gente faz essas festinha lá, aí... esse leilão mesmo que eu to falando com ocê, foi uma pessoa só, nós foi ver, e não é só 50, tinha 80 leilão só de uma pessoa. E tinha mais dos outros, tinha mais umas três mesa de leilão, cheinha, sabe! Foi muito bom, graças a Deus! Então Deus tá agindo sim, ajudando que nós tá conseguindo fazer as coisa, realizar! Né! Os nossos sonhos! (D. Júlia, janeiro de 2019). E é com os recursos desses leilões, as mensalidades dos associados e a ajuda de entidades públicas e privadas da região, que a nova sede da associação, já está em fase de acabamento. A nova sede, também localizada na comunidade de Barra do Capão, contará com um espaço grande para a realização das reuniões, uma cozinha, banheiros e um terreiro grande ao redor, no qual o grupo continuará com o propósito de realizar os encontros e domingadas da comunidade. Assim, no âmbito das perspectivas anunciadas por D. Júlia em 2015, a construção da sede trata-se de uma grande vitória para a comunidade, posto que no final de 2018 já estava quase toda finalizada (Figuras 141 e 142). Outro conquista já em andamento, segundo D. Júlia, é o projeto da horta comunitária e de obtenção de um veículo para transporte das mercadorias, o qual está em fase de elaboração no intuito de ser encaminhado 415 para a Fundação do Banco do Brasil, que em visita realizada à comunidade, em dezembro de 2019, já se colocou à disposição para auxiliá-los. Figura 141: Nova Sede da Associação da Comunidade Quilombola de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão Figura 142: Interior da nova sede da associação quilombola FOTOS: SILVA (2018) Segundo os moradores da comunidade, nos últimos anos eles têm recebido muitas visitas de agentes de promoção da cultura regional, representantes das empresas cafeicultoras da região e agentes fomentadores do turismo, que ao se depararem com a riqueza sociocultural do lugar, logo se disponibilizam a apoiar esse projeto maior de valorização e preservação desse importante patrimônio cultural material e imaterial dessas comunidades. Tal interesse se revela também a partir das belezas naturais e da própria geograficidade de cada comunidade que faz parte desse Território Quilombola. Compreendemos que estas comunidades configuram um território tradicional quilombola, partindo da concepção de Anjos (2009, p.105), para o qual este se consolida em uma determinada espacialidade quando “o pertencimento territorial está associado aos antepassados, portanto, a uma memória que relaciona passado-presente”. Acrescentamos ainda, que para compreendermos as paisagens culturais que se configuram nesse território, precisamos concebê-lo não apenas a partir de sua demarcação física, mas, também, como um espaço de vivência e convivência com o meio natural, e de reprodução material e cultural dessas comunidades, que se dá por meio do reconhecimento das casas, das roças, dos quintais, da dinâmica socioespacial dessas comunidades e dos signos que constituem suas paisagens culturais. Para tal, começaremos nossa análise da espacialidade que essas três comunidades representam no município de Angelândia (Mapa 21). 416 Mapa 21: Território Quilombola das Comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão – Angelândia/MG Localizadas a noroeste da sede municipal, o território quilombola encontra-se organizado ao redor de três córregos principais: Capão, Engenho e Fanadinho, os quais irão desaguar no Rio Fanado, que é um importante afluente do Rio Araçuaí e, consequentemente, do Rio Jequitinhonha. Há nas três comunidades importantes nascentes que alimentam esses córregos, assim como outros pequenos cursos d’água, também pertencem a este território - Córrego do Lambu e Córrego do Algodão. O Córrego Fanadinho é uma importante fonte de fornecimento de água para outras comunidades também quilombolas de: Santo Antônio dos Moreiras (comunidade quilombola certificada pela Fundação Palmares em 2016) e Fanadinho e Canoas (reconhecidas pelo município). Além dessas, o município reconhece ainda três outras comunidades como potencialmente quilombolas: Sapé Timirim, São Benedito e Ramos, uma vez que ambas possuem características culturais significativas, tais como a presença das bandas de taquara (Mapa 22). 417 Mapa 22: Comunidades Quilombolas e Povoados no Município de Angelândia - MG Assim como o córrego Fanadinho, o Rio Fanado também nasce a sudoeste do município de Angelândia e, ao longo dele (assim como em seus afluentes), encontram-se diversas comunidades rurais e a própria sede do município. Desse modo, este é um dos recursos hídricos mais importantes dessa região, o que reforça ainda a relevância da participação deste município no movimento SOS Fanado, que vem atuando na região no 418 intuito de recuperar as nascentes e lutar pela preservação das matas ciliares e da qualidade da água neste rio. O córrego do Engenho é um pequeno afluente do Córrego do Capão, no qual está localizada a maior parte dos moradores dessas comunidades. Para a população local, o Córrego do Capão recebe este nome, principalmente, pela densa mata de capoeira que existia em suas margens. Atualmente, estes “capões” encontram-se limitados a pequenas extensões do córrego, que é ainda subdivido, pela comunidade, em: Cabeceira do Capão (já nas proximidades do município de Setubinha); Capão (proximidades do córrego Olho-d’água) e Barra do Capão (onde está localizada a comunidade quilombola, já nas proximidades do seu encontro com o córrego do Engenho). Encontramos ainda (em algumas residências) a presença de fossas negras, as quais começaram a ser construídas nas residências a partir de 1999, com, incentivo dos agentes de saúde municipais para a construção de “casinhas” nos quintais das propriedades, uma vez que estavam acontecendo muitos casos de esquistossomose na região. Atualmente grande parte das casas já possuem banheiros em seu interior (com chuveiro e vaso sanitário), sendo então, muitas dessas fossas desativas e o esgotamento direcionado para os cursos d’água mais próximos. A captação de água é feita em poços artesianos ou ainda por meio de caixas de captação de água de chuva que começaram a ser instaladas nessas comunidades no ano de 1998. A construção ou instalação dessas caixas faz parte de um programa do governo federal que teve início no ano de 1995, para construir tanques de armazenamento de água pluvial coletada nos telhados das residências com capacidade de 5.000 litros. Todavia, algumas famílias reclamam da qualidade dessa água, que muitas vezes é direcionada, principalmente, para uso nos banheiros, limpeza da casa ou para lavar roupas. Os resíduos orgânicos são utilizados principalmente como adubo para as hortas ou na alimentação de porcos e galinhas. Os demais resíduos domésticos são queimados em buracos cavados ao fundo das próprias propriedades. A energia elétrica também é algo recente na comunidade (chegou em 1999), assim como o celular rural com antena externa. Ainda são poucos os locais nessas comunidades que possuem acesso a de telefonia celular e/ou internet, em algumas situações as pessoas precisam subir no alto de um morro para conseguir o sinal. Ao todo, vivem nesse território90 222 pessoas, sendo 38 na comunidade de Alto dos Bois, 43 em Córrego do Engenho e 141 na Barra do Capão. Não há muitos jovens e crianças na comunidade. Nos últimos anos, alguns jovens casais retornaram e estão 90 Levantamento realizado no ano de 2016. 419 recomeçando a vida na comunidade. A agricultura nessas localidades é voltada principalmente para o consumo, no entanto, a principal fonte de renda dessas famílias ainda é da venda de seus produtos excedentes da agricultura familiar. Algumas famílias participam do PNAE e outras comercializam legumes, grãos, farinhas e frutas, principalmente, para os vizinhos na comunidade, nas feiras semanais ou para lojistas maiores, com os quais alguns produtores que já negociam a venda no início da produção. Eu planto milho, feijão, amendoins, mandioca, café. É às vezes eu vendo sim, pouco mas... eu vendo em Angelândia, pra vizinhança, eu levo na feira de vez em enquando né. A mulher faz a hortinha, agora mesmo tem mesmo couve, cebolinha por causa do tempo né. Quando não chove ela planta alface (José Guadalupe, Barra do Capão, dezembro de 2012). Em Alto dos Bois, por exemplo, algumas famílias conseguiram plantar grandes lavouras de tomate, abóbora e banana, as quais no início da produção, já se encontram vendidas para um grande comprador de Teófilo Otoni. Todavia, muitos reclamam que neste processo acabam sendo vítimas de atravessadores por não terem como transportar suas próprias mercadorias para estes grandes centros: Eu vendo o tomate em Angelândia e Capelinha. Mas eu acho que vou vender pra um rapaz que vem lá de Teófilo Otoni, que compra em caixa de uma vez sabe, e pega quantidade grande. Se combinar com ele, ele busca lá na lavoura. Mas é mais barato né. Se eu tivesse uma condução pra ir lá levar, valia mais a pena eu vender direto par ao supermercado né. Porque se for pra eu entregar no mercado agora ele sai à R$40,00. Pegando aqui ele pede lá R$32,00 [a caixa] (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Outra fonte de renda que identificamos nas três comunidades é a venda do eucalipto, que funciona como uma espécie de “poupança da família”, pois o retorno financeiro é alcançado apenas após seis anos (tempo necessário para desenvolvimento da espécie), o qual é adquirido por meio da comercialização da madeira ou do carvão (o que justifica a presença de alguns fornos de carvão que identificamos na paisagem). Sobre o plantio de Eucaliptos na região é importante ressaltar que várias chapadas, ao redor das comunidades, encontram-se tomadas por essa espécie, que além de ocupar parte do território que era utilizado por eles para coleta de frutos ou remédios encontrados no cerrado, ainda interfere no volume de água dos córregos da região, que após a chegada desses grandes eucaliptais reduziram consideravelmente. Todavia, quase todos os pequenos agricultores da região possuem alguns alqueires de eucalipto em suas propriedades para garantir uma renda frente às dificuldades de se encontrar outros plantios mais rentáveis, como ressalta um dos quilombolas da região: Esse aqui a gente corta ele mais fino, né. Esse aí já tá praticamente bom de cortar pra fazer cabo. Agora esse ali se é pra carvão a gente deixa ele engrossar mais, mas já tá 420 bom pra cortar. Aqui nesse lugar aqui era o café, mas o café não tava saindo, então o menino pego e plantou o eucalipto. Agora aqui pra fora já era outra, era manga de pastagem. Mas com certeza o eucalipto vai ser melhor porque a gente antes tinha o pasto, mas nem cuidava dele também (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Juntamente com os eucaliptos, ampliou-se nessas paisagens a presença dos fornos para queima e produção do carvão, que é de baixa caloria. Em seu estudo, Viana (2004) menciona os efeitos alelopáticos de algumas espécies de eucaliptos que impedem o crescimento de outras plantas e a baixa biodiversidade que existem na área monocultural. A produção em larga escala consome muita água, comprometendo o abastecimento local e interferindo diretamente no ciclo hidrológico. Ou seja, os eucaliptais realmente promovem significativos impactos ambientais, especialmente quando cultivados em larga escala. Além disto, podem provocar alterações no modo de vida das comunidades rurais, gerando impactos negativos como o desemprego, o que é corroborado por Silva (2009) num estudo sobre os impactos dos eucaliptos nas comunidades geraizeiras em Minas Gerais, no qual afirma que: “o cerrado mostra-se frágil ao plantio do eucalipto devido a suas características pedológicas e climáticas” (SILVA, 2009, p.7). O que não pode deixar de ser ressaltado é que na pequena propriedade, o eucalipto quando cultivado em baixa escala pode ser consorciado com cultivos como milho e feijão, além de ter a função de matéria prima para produção de lenha ou ter outros usos não comerciais, diminuindo o consumo de madeira nativa. Figura 143: Expansão dos Eucaliptos sobre a Mata Nativa Figura 144: Fornos para queima e produção de carvão. FOTOS: RODRIGUES (2012) Alguns jovens e adultos trabalham também nas grandes empresas produtoras de café na região. Todavia, a disponibilidade de serviços nestas empresas altamente mecanizadas é muito limitada, sendo contratados alguns apenas no período da colheita (maio/junho), quando, inclusive, muitos deles estão, inclusive, trabalhando em suas próprias propriedades. Grande parte dos idosos recebe também aposentadoria rural. O trabalho na lavoura, em 421 decorrência da falta de mão de obra jovem nas próprias famílias, às vezes demanda a contração de “camaradas” como era realizado antigamente. Segundo D. Júlia, o pagamento aos camaradas ainda ocorre por meio da “troca de dia” ou com mercadorias (tarefa de milho, feijão, farinha, dentre outros) nessas comunidades. Há também aqueles que trabalham pelo sistema de pagamento de diárias (que giram em torno de R$ 45,00 /dia). Sobre essas formas de trabalho na comunidade não podemos deixar de registrar a história do Empreiteiro e do Jornaleiro, que nos contou D. Jacir. Um conto que, por meio da religiosidade, faz uma distinção, inclusive de valores, entre aqueles que trabalham pelo pagamento da diária e aqueles que assumem um serviço por empreitada (recebendo o valor combinado apenas após a finalização do serviço). Quando eles andava pelo mundo, São Pedro mais Nosso Senhor, Nosso Senhor ía atrás, chegava num lugar, e Nosso Senhor saia andano mais ele e chegou numa lavoura, numa lavorona grande, e tinha um senhor capinando um roça, com aquela enxadona, com aquele cabão de enxada, buscava lá em cima e puxava com aquela vontade de fazer o serviço, aí Nosso Senhor gritou: “Oh moço, cê pode me ensinar pra ver o caminho que passa pro outro lado?” – “Não senhor que eu trabalho é pro dia, se o patrão chegar e pega eu parado ele não me paga o meu ordenado, eu não ganho” – aí ele falou, trabalhava pro dia, tem o jornaleiro e o empreiteiro. Esse daí era o jornaleiro, trabalhava, ganhava no dia. Amaldiçoado é o jornaleiro. Aí São Pedro falou: “oh Senhor, o senhor também é ruim em Senhor, o home naquela ânsia pra trabaia, patrão não gostava, e o senhor amaldiçoa ele?” – “Oh Pedro, cala sua boca Pedro, vão bora!”. Aí foi, chegou lá adiante, tinha outro. Tava tomando café debaixo de uma sombra. Aí o senhor pediu se podia ele, atravessar ele numa pinguela que tinha, mas São Pedro tava com uns carcalho nas costa, e enquanto São Pedro andou, tem muita coisa, de vez enquanto passa aí na televisão aí, aquelas coisa do princípio do mundo. Aqueles povo com aquelas coisada, aqueles panelão, que tá passando, aí gritou: “Oh meu senhor, cê pode me fazer a bondade de me ajudar a passar esses negócio aqui nessa pinguela, chama pinguela, num vácuo do rio assim, oh, poe a pinguela assim, vai por os guarda-mão, e ele segura, põe os guarda mão assim na pinguela. Aí o camarada: “meu serviço é empreitada, não é pro dia, eu vou passar com o senhor, que tá muito de idade”. Aí foi lá passar com o senhor, e ele achou que um senhor, não era Nosso Senhor não. Aí quando chegou lá que tomou o picuá dele, passou pra ele, deu ele a mão que ele já tava velho, e passou, “abençoado é o empreiteiro!”. o empreiteiro hoje, eu falo que é por causa de mim, quando eu tava morando no Paraná, eu mais meu marido, nós trabaiava de empreitada, naquele que tempo que, hoje bagunçou, o real bagunçou, naquele tempo que bagunça com dinheiro velho. Naquele tempo que um serviço que gastava 20 dia, nós tirava ni dois, que era empreitada. O empreiteiro ganha mais e é abençoado. E o jornaleiro é amaldiçoado. Cê pode prestar atenção pro cê ver. Se ocê for pra roça e ver o camarada levantar cedo e for pro amigo, pro dia, ele não arruma nada, ele vem lá da casa do amigo, trazendo um quilo de sal, uma medida de sal, um pedaço de toucinho, fica só naquilo. E o empreiteiro, as vezes um serviço de 10 dias ele faz ni 2. As vezes era pra ele gastar 500 reais, ele ganha 1000. Na empreitada, que cê esforça, é de empreitada. Aí, lá ía andando, Nosso Senhor e São Pedro. Aí chegou na beira dum rio. Nosso Senhor falou assim: “OH Pedro, pega esse cabo de cuia, cabo da cuia, e joga dentro d’água. E ele jogou, foi lá no fundo assim e voltou. O cabo de cuia voltou. “Agora pega uma pedra e joga”. Pedro pegou a pedra e jogou. Aí a 422 pedra foi e ficou. “Oh Pedro, é pra ser assim viu, morrer e não vorta!” que é igual a pedra, que o cabo de cuia, ele diz “OH Senhor, faz isso não Senhor, deixa eu vorta! “Não, pode não o mundo não cabe!”. E é de vera né? Aí ele abençoou que era pra ser igual a pedra, jogar, enterrar e ficar, morreu, enterrou, cabou. Aí São Pedro lá vai andando, lá vai andando, lá vai andando, aí chegou numa artura Nosso Senhor falou com Pedro: “O Pedro! Esse ano não vai chover viu, não vou dar nem uma chuva esse ano!”. “Oh Senhor, como é que o povo vai fazer Senhor?” “Eu não sei... esse ano eu não vou dar nenhuma chuva esse ano”. E ele tinha um cumpadre que ele gostava dele demais, ele correu e falou com cumpadre – “OH cumpadre, cê não planta esse ano que Nosso Senhor não vai deixar chover esse ano viu!”. Os outro tudo plantou e o cumpadre dele não plantou não. Aí a roça dos outro tudo deu, cada espiga de milho assim, desse tamanho assim... e o cumpadre dele ficou sem planta. Falou que não ia chover, aí quando a roça tava começando a Lorá, começando a virar as espiga, ele falou assim – “Oh Senhor, mas ocê pinta né Senhor, que cavaiada que o senhor me pôs nela. Cê falou comigo que não ía chover, eu falei com meu cumpadi que não plantasse, que eu não ía dá chuva esse ano”. – “Oh Pedro, eu falei com ocê que não ía chover, mas não falei com ocê que não ia dá não. Quem dá é eu, né chuva não. Aí cê fala com seu cumpadre que depois que todo mundo cuiê, as roça, tirar pros paiol, ele vai lá nas paiada que ele acha pra passar o ano ainda”. Assim ele fez “O cumpadre, na hora que os outro quebra as roça, ce vai lá na roça deles pra aproveitá aquelas cabecinha de macaco que fica”. Aí Nosso Senhor multiplicou lá pra ele, tanto que colheu que passou o ano também. Mas ele falou que não ia dar chuva, mas quem dá é Deus. Eu mesmo até solão assim, êlá vai morrer de fome, morre nada! Ninguém morre de fome. Aquele, eu mesmo... quando eu tava lá na roça, eu tenho um cumpadre lá que hoje ele não tá falando, ele foi operado da garganta, tá com problema, ele não fala hoje é muito meu amigo, eu gosto muito dele, “Oh cumade, a senhora ta indo lá pra Capelinha, lá ninguém dá um copo de café ou um prato de comida”. O cumpadre, Jesus me abeçoa, aonde eu tiver ele me abençoa Ao discorrer sobre a dinâmica das lavouras e sua importância enquanto principal fonte de renda para estas famílias é preciso ressaltar o significado que elas assumem no próprio cotidiano dessas comunidades, pois, como ressalta Anjos (2009, p.113), o trabalho na lavoura: [...] é marcado por muitas tarefas. A ‘lida’ na roça requer atenção, concentração, conhecimento e respeito. A roça que produz alimentos é um presente para a comunidade e uma recompensa ao trabalhador rural. A maioria dos territórios quilombolas no Brasil têm uma tradição de agricultura de subsistência. A preservação da natureza ou do moderno conceito de sustentabilidade ambiental é algo que está ‘embutido’ na cultura quilombola de forma secular. Desse modo, a dinâmica socioespacial dessas comunidades é sempre muito direcionada por três aspectos importantes: o tempo do plantio, o tempo da colheita e o tempo das festividades. Apesar do solo dessa região possui características favoráveis ao plantio da lavoura, hortaliças e árvores frutíferas, os períodos para realização dessas atividades são direcionados pelas condições climáticas, principalmente pelas chuvas, pois há pouca produção irrigada na região. Desse modo, como podemos observar no Gráfico 12, a dinâmica de 423 plantios se dá principalmente entre os meses de outubro a abril. Outubro, conhecido como o mês das águas, dá início às atividades, a terra já preparada no mês de setembro passa a receber, nesse momento, as primeiras sementes e mudas. No mês de dezembro os plantios iniciados em outubro diminuem em decorrência do grande volume de chuvas, restando apenas algumas hortaliças mais resistentes. Neste período, muito do que é consumido, já foi devidamente armazenado e condicionado nos meses anteriores. Em janeiro, os plantios e parte da colheita são retomados proporcionando, nos meses de fevereiro a abril, certo equilíbrio entre plantio e colheita. De maio a junho, quando o tempo começa a ficar mais seco e frio, os plantios diminuem e predomina o tempo da colheita. Vale ressaltar, que neste período, grande parte da comunidade direciona-se para o trabalho na colheita do café, sendo alguns absorvidos pelo serviço disponível em outros estados, a fim de conseguir uma renda melhor para a família por meio desse processo de migração sazonal. Gráfico 12: Dinâmica mensal de plantios e colheitas nos núcleos quilombolas de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão. Elaborado pela autora (2016) No calendário agrícola, representado na Figura 145, podemos observar também essa intensa dinâmica dos plantios que se estabelece a partir do mês de outubro e em menor diversidade nos meses de dezembro, maio, junho e julho. Como a produção de hortaliças é, predominantemente para consumo próprio, boa parte dos quilombolas consegue manter a horta, mesmo que mínima, durante todos os meses do ano. 424 Figura 145: Calendário Agrícola dos plantios anuais Elaborado pela autora (2016) Figura 146: Calendário Agrícola de colheitas anuais Elaborado por Ludimila de M. R. Silva (2016) 425 Já no calendário de colheitas anuais podemos observar que há uma homogeneidade na quantidade de cultivos por mês, sendo que, de janeiro a outubro, a produção ocorre de maneira bem balanceada. Ressalta-se ainda que a produção de alguns produtos em quase todos os meses do ano pode ser observada também na mesa dessas famílias, com a presença frequente de alimentos como: o café, as hortaliças, o arroz e o feijão – típicos da culinária mineira. Em alguns meses ressalta-se a produção de algumas iguarias do lugar, como por exemplo, o doce de marmelo (produzido de julho a setembro) e a cachaça (de março a agosto). A sazonalidade dos alimentos também pode ser observada tanto no calendário de realização das festas, quando nos próprios alimentos que são consumidos durante as mesmas. Apesar de, atualmente, não serem realizadas muitas festas nas comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão, os comunitários participam muito de festividades que ocorrem em localidades vizinhas. Em janeiro, por exemplo, acontecem as festas de São Sebastião e a Folia de Reis na comunidade de Santo Antônio dos Moreiras. Em março algumas pessoas participam da programação da semana santa na sede do município, onde também acontece, em maio, a festa do Trabalhador ou Festa do Café, na qual muitas pessoas da comunidade participam da programação das cavalgadas e apreciam ainda os concursos de tratores e shows diversos. Os meses de junho e julho são os que mais possuem festas de santos católicos nas comunidades rurais como Santo Antônio, São João e Santana, além das festas juninas que acontecem também na cidade. Em 06 de agosto acontece uma das poucas festas na Barra do Capão, em honra ao padroeiro das comunidades – Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa. Na sede do município também é comemorado no mês de agosto o dia da padroeira da cidade – Nossa Senhora dos Anjos. Em Setembro destaca-se a festividade de São Vicente de Paula, em outubro, a de Nossa Senhora Aparecida e, em dezembro, a festa de Santa Luzia realizada na comunidade de Terra Cavada. Ao retratar a sazonalidade da produção dos alimentos e das festividades do lugar é inevitável resgatar os sabores desses momentos. É muito comum, ao adentrar-se a uma residência na zona rural, reconhecer como um primeiro sabor o cheiro do café. O “cafezinho” é sempre uma primeira acolhida do lar. Este vem sempre acompanhado de um biscoito, uma broa ou um queijo. Essas seriam receitas da nossa “mineiridade”, como diria Mônica Abdala (2007). Em sua maioria, as comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha estão localizadas nas grotas dos pequenos córregos e rios nas zonas rurais. Nestes locais, mesmo o 426 alimento oferecido às visitas, representa a sua resistência, o seu modo de vida e sobrevivência, construídas a partir de um cenário de memórias e lutas, sejam elas do “cativo”, da “época dos escravos” ou da seca e das dificuldades do meio de reprodução social. Assim, como ressalta Araújo (2012, p.9), ao retratar sobre a alimentação das comunidades quilombolas do Paraná: [...] para compreender plenamente o sentido e significado da tradição e cultura da alimentação quilombola é preciso considerar que estas comunidades arrancam sua vida, por assim dizer, das terras ancestrais que constituem o território étnico-cultural que habitam: são terras de uso comum, com uma diversidade de apropriação dos recursos naturais (solo, hídricos, florestais) em que diferentes categorias de trabalhadores e trabalhadoras rurais trabalham, mantêm a vida, reproduzindo práticas e saberes e produzindo novos conhecimentos e formas de existência. No Vale do Jequitinhonha, assim como no Paraná, as primeiras minas de ouro foram encontradas no século XVII. E com esta atividade, os portugueses trouxeram então um novo elemento para a região, que já era ocupada por diversos grupos indígenas, a mão de obra escrava. E foi da convivência e contradições entre esses três grupos principais que se configurou a “culinária quilombola”, como também ressalta Araújo (2012). Alguns elementos das antigas fazendas ainda permanecem na espacialidade dessas comunidades, como o engenho, o moinho, a roda d’água, as casas de farinha, etc. E com eles os sabores da cultura e da tradição ancestral são repassados entre as gerações, como podemos observar na fala de uma quilombola do Vale “Broa de fubá só presta se for com fubá de moinho” (Quilombola, Alto do Bois, 40 anos). Essas tradições, apesar do avanço da modernidade, e da presença dos produtos industrializados, reforçam ainda mais a importância do alimento na construção identitária desses grupos. Além das receitas, com ingredientes elaborados ou extraídos ainda sobre modos de fazer tradicionais, devemos destacar a espacialidade atrelada ao ato de se alimentar. “Quando é visita de primeira vez, a gente recebe lá na sala, mas quando é de casa a gente chega pra cozinha” (Quilombola, Alto dos Bois, 60 anos). À visita da sala é servido o cafezinho, já à visita da cozinha diversas outras iguarias. O segredo dos alimentos e da tradição não é desvelado em um primeiro contato, há todo um processo de reconhecimento do outro para que esta confiança se estabeleça e a permissão do “conhecer” seja construída. Em algumas comunidades, mais reservadas, esse processo, contudo, se dá de forma mais lenta. Ao passar da sala à cozinha, outro sabor nos foi revelado: o biscoito de polvilho ou biscoito de goma. Em visita que realizamos ao Casarão, na comunidade de Alto dos Bois, observamos que tanto os filhos homens como as mulheres sabem fazer o biscoito. Aqueles que já saíram de Alto dos Bois, em busca de trabalho ou que constituíram suas famílias em 427 outros lugares, sempre encomendam esse biscoito aos seus familiares para se recordarem do seu lugar. Apesar de utilizar a goma industrializada, o modo de fazer continua sendo artesanal, o biscoito amassado no tacho, é modelado e levado ao forno de barro. Como podemos observar nas figuras abaixo, todo o processo é feito pela família, relembrando, a todo o momento, as situações em que os seus antepassados os ensinaram a receita, discutindo sobre as características que se mantêm ou que mudaram e, envolvendo, inclusive, a participação das crianças, que desde muito pequenas, são incentivadas a valorizar e aprender a fazer o biscoito, como podemos observar nas fotografias abaixo. Figura 147: “Filho homem” dos proprietários do Casarão fazendo o Biscoito de Polvinho/Goma. FOTO: DINIZ (2011) Figura 148: “Filha mulher” dos proprietários do Casarão preparando o Biscoito de Polvilho/Goma. FOTO: CARVALHO (2015) Figura 149: Pais e filha fechando o forno para assar o biscoito. FOTO: CARVALHO (2015) Figura 150: Mãe ensinando o filho a preparar o biscoito. FOTO: SILVA (2015) Outros alimentos tradicionais também nos foram oferecidos em uma reunião realizada em dezembro de 2012. Nesta ocasião, convidamos a comunidade para uma breve apresentação de resultados das pesquisas que já estávamos desenvolvendo na região sobre o “ser quilombola”. Em retribuição às nossas atividades, voluntariamente, a comunidade 428 preparou um delicioso café, com a contribuição de diversas famílias. Foi então quando outros elementos da identidade quilombola se revelaram para nós, tais como: o chá de amendoim (um leite queimado com açúcar e amendoim moído); o requeijão moreno; o bolo de arroz; o cabo de machado (broa de fubá feita na palha de milho); o biscoito de goma; o queijo fresco e o tradicional cafezinho. Figura 151: Reunião com a Comunidade Quilombola Figura 152: Bolo de arroz FOTOS: SANTOS (2012) Figura 153: Balaio de Biscoito de Goma Figura 154: Cabo de Machado Figura 155: Requeijão moreno FOTOS: SANTOS (2012) Abdala (2007, p.102) registra essa tradição alimentar está fortemente associada à presença dos tropeiros na vida cotidiana das fazendas mineiras. À época, como não havia muitas hospedarias, as fazendas transformavam-se em um lugar de repouso e alimentação para esses viajantes com “cama boa e mesa farta”. Para os fazendeiros a chegada das tropas representava, assim, uma boa oportunidade para adquirir alguns produtos e alimentos, assim como novas receitas, além de, é claro, “saber das novidades”, fazer novas amizades e ter conhecimento à respeito dos “mexericos políticos” das cidades. 429 Figura 156: Farofa de Andu FOTO: CARVALHO (2015) O feijão andu ou guandu é um alimento que assume bastante destaque regionalmente. Segundo Azevedo, Ribeiro e Azevedo (2007, p. 82) “esta leguminosa foi introduzida no Brasil provavelmente pelas rotas dos escravos, nos navios negreiros procedentes da África, tornando-se largamente distribuída e semi-naturalizada na região tropical”. Este alimento é muito valorizado e requisitado, não apenas no Vale do Jequitinhonha, como também em toda região norte de Minas Gerais. Além de seu sabor e uso tradicional na culinária regional, o andu possui ainda propriedades importantes na melhoria dos solos (contribuindo para a fixação biológica de nitrogênio e elementos minerais); recuperação de áreas degradadas (pela sua capacidade de se associar com micro- organismos do solo, como bactérias fixadoras de nitrogênio, dando certa autonomia de nutrientes às plantas), etc. (AZEVEDO; RIBEIRO; AZEVEDO, 2007). É sugestivo observar que o alimento, além de explicitar alguns elementos da tradicionalidade de uma comunidade, nos revela ainda um pouco do seu espaço vivido, dos plantios do quintal, dos afazeres do lar, do sabor de se viver naquele lugar. Saberes que carregam a memória desse lugar, a vivência comunitária, e que, a partir dessa abertura das comunidades tradicionais para “os de fora” adquirem densidade e passam a ser significativos, também para os outsiders. Segundo Buttimer (1985, p. 174), o espaço vivido corresponderia a “um conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloca-se e busca um significado. É um horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são percebidas e valorizadas”. É, portanto, na busca de um conhecimento e imersão nessas experiências individuais e coletivas/intersubjetivas, que o alimento se revela como um elemento crucial na compreensão das especificidades culturais de um espaço vivido (BUTTIMER, 1985). Como já sinalizamos, para captar estas experiências in loco fez-se necessária uma observação participante na vida cotidiana desses atores, estabelecendo com eles uma relação menos formal, e buscando através da vivência e oralidade as essências desses “saberes locais”. Outro elemento do cotidiano da região de Alto dos Bois é a sua religiosidade que constitui uma das bases estruturantes da sociabilidade. E é interessante notar que é comum observar-se, no interior do Brasil, o apadrinhamento dos lugares por santos católicos. Em Alto dos Bois, tem-se o Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa como padroeiro da comunidade. E em 430 honra e agradecimento às bênçãos concedidas por seu patrono, sua festa é sempre realizada no dia 06 de agosto, “faça chuva ou faça sol”. Referendamos sinalizações observadas na literatura, no sentido que a festa é um “processo portador de uma base espacial para construção da identidade dos sujeitos sociais” (FERNANDES, 2003). As manifestações culturais, sobretudo, as religiosas são momentos particularmente expressivos de convivência, reencontros, amizades e confraternização. Daí a emergência e reconfiguração, nesses momentos, de valores positivos em que os laços afetivos de determinada comunidade e grupo social se fundamentam e se fortalecem. Neste retrabalhamento dos anseios individuais e coletivos, o passado, o presente e o futuro se entrelaçam e se reencontram em diálogos e perspectivas, sonhos e realidades, revelando desejos caros e intrínsecos à comunidade. Neste momento há, por exemplo, o encontro de pessoas que ficam sem se ver o ano inteiro e é apenas naquela manifestação cultural específica que acabam se reencontrando. Não são apenas as comunidades do território quilombola de Alto dos Bois que dedicam devoção ao Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa, há inúmeras outras comunidades quilombolas que o consagram, inclusive, como padroeiro. Precisamente por ser uma devoção, originalmente da tradição portuguesa, sua incidência é observada em diversos territórios de colonização lusitana, sendo, inclusive, muitos rituais construídos a partir de tradições rememoradas do século XVII. Há, nesse sentido, muitos relatos de romarias à Gruta de Bom Jesus da Lapa, santuário localizado no município de Bom Jesus da Lapa, estado da Bahia (nordeste brasileiro), o qual dista desta região aproximadamente 600 km (como já sinalizamos anteriormente). A história deste local está relacionada a um português, Francisco de Mendonça, que havia sido contratado para pintar o Palácio da Aclamação em Salvador, então sede do governo. Após realizar seu trabalho, lhe foi negado o pagamento prometido, e em repressão à sua indignação ele foi então preso e açoitado como um escravo. Quando foi solto, Francisco deixou a cidade e levou consigo as imagens de Jesus Crucificado e Nossa Senhora da Soledade. Após andar por muitos meses, encontrou o Morro de Bom Jesus da Lapa e abrigou as imagens em uma das nove grutas existentes no morro de aproximadamente 90 metros de altura. No período dos garimpos este local passou a ser ainda mais visitado em decorrência dos garimpeiros que passavam pela gruta e viam a luminosidade das velas acendidas pelo português. Desde então o local passou a ser visitado por romeiros e devotos de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa, oriundos de diversas partes do Brasil (KOCIK, 1988). 431 A festa ao padroeiro acontece sempre no dia 06 de agosto na capela de Bom Jesus, localizada na comunidade de Barra do Capão. Para eles é importante comemorar e agradecer as bênçãos e graças sempre no dia certo. Nos dias que antecedem a festa, a capela (localizada no núcleo de Barra do Capão) começa a ser preparada; os moradores se mobilizam para pintá- la e organizar o altar. Assim como o local, os alimentos que serão servidos também começam a ser preparados com antecedência. No dia anterior à comemoração, a família responsável pela festa, após cinco a sete dias de preparo da massa, já está com os “pães de Cristo” prontos (assados no forro de barro) para serem distribuídos entre os participantes. A comemoração começa com o terço cantado na capelinha, segue com a soltura de fogos de artifício em honra a Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa, apresentação de “Bandas de Taquara” e o início do leilão. No momento da reza, o sagrado se manifesta nas vozes e na postura/distribuição das pessoas na capela. Seis homens, os puxadores, catam em voz alta e distintas a primeira parte da prece, enquanto a comunidade e duas mulheres em vozes mais agudas fazem a resposta. O terço é todo cantado nesse movimento que integra todos os participantes. Ao final, os homens abrem os bancos e a comunidade, um a um, passa a se aproximar do altar para realizar suas preces individuais. Finalizado o terço, as pessoas começam a sair aos poucos da capela, e a transição do espaço sagrado para o profano se dá por meio da apresentação da banda de taquara, cujas origens remontam ao cristianismo e à miscigenação entre índios e negros. As músicas retratam a lida na terra, o cotidiano das comunidades rurais, e as relações desse homem religioso (sagrado) para com o mundo exterior (o espaço profano). Nesta ocasião a banda de taquara que se apresentou foi da comunidade de Sapé Timirim, também do município de Angelândia. Alto dos Bois, apesar de possuir alguns membros da comunidade que tocam nessas bandas taquara, não possui uma banda própria. 432 Figura 157: Capela sendo preparada para o dia da Festa. FOTO: SILVA(2015) Figura 158: Preparação dos pães de cristo. FOTO: CARVALHO (2015) Figura 159: Homens assentados a frente do altar durante a realização do terço cantado Figura 160: Agradecimento individual da comunidade após o reza do terço. FOTOS: SILVA (2015) Figura 161: Banda de Taquara tocando na porta da Capela FOTO: SILVA (2016) Para dar início às manifestações do espaço profano, a banda de taquara se dirige à casa de prendas, dando início assim ao leilão. Os leilões são momentos muito típicos das festas quilombolas e é neste momento que se materializam a solidariedade, troca, união e 433 trabalhos coletivos. Todas as “prendas” a serem leiloadas são doadas e, a seguir, preparadas pela própria comunidade. A intenção do leilão é arrecadar dinheiro para a realização da próxima festa. É nessas convergências e similitudes, que se observa o valor imaterial e a força dos laços sociais entre vizinhos e parentes que vivem nesse insólito lugar. Os leiloeiros passam então apresentando e incentivando os lances. Dentre as prendas do leilão estão alguns alimentos típicos como: o frango assado com farofa; feijão carioquinha plantado na comunidade; o fubá de moinho d’água; a pipoca; os biscoitos de goma; o amendoim; a peneira; a farinha de mandioca; o galho de bala (sendo este um dos mais disputados entre os rapazes que querem presentear suas namoradas) além de bebidas alcoólicas e refrigerantes. Figura 162: Banda de taquara iniciando o Leilão na casa de prendas. Figura 163: Prendas no interior da casa Figura 164: Leiloeiro com um frango assado. Figura 165: Galho de balas. FOTOS: NASCIMENTO (2015) À medida que vai chegando o final do leilão os pães de cristo, biscoitos, chá e o café são distribuídos para a comunidade, rememorando ao sagrado e dando indicativo da chegada do final da festividade. Após o último leilão arrematado, a banda de Taquara volta a tocar manifestando em sua espacialidade essa relação intrínseca entre o sagrado e o profano na Festa de Nosso Senhor Bom Jesus. Eles circundam mais uma vez o cruzeiro, localizado em 434 frente a Igreja, perpassam pelo local onde ficavam guardadas as prendas do leilão, entram na casa do festeiro, onde comem mais uma vez o pão de Cristo, tomam café e a cachaça, e saem, mais uma vez, tocando e cantando para finalizar sua apresentação no interior da casa de prendas. Figura 166: Caminho da Banda de Taquara na casa do festeiro. Figura 167: Agradecimento ao festeiro no interior da cozinha. Figura 168: Festeiro oferecendo uma cachaça em agradecimento à presença da Banda Figura 169: Finalização da festa na casa de prendas. FOTOS: NASCIMENTO (2015) Já na comunidade de Quilombo (município de Minas Novas), localizada próxima a Alto dos Bois, a festa de Nosso Senhor Bom Jesus é realizada nos primeiros dias de agosto, de acordo muitas vezes com a disponibilidade do grupo e do padre. Nesta localidade é servido um almoço em honra ao padroeiro. A festa se inicia pela manhã, com a procissão acompanhada da banda de taquara até a casa do festeiro do ano, onde troca-se a bandeira pela imagem. A imagem é levada à capelinha, onde acontece a missa e o terço cantado. Após este momento de oração tem-se o levantamento do Mastro e o almoço. No período da tarde é realizado o leilão, que finaliza com as apresentações da Banda de Taquara e Marujadas, que em algumas ocasiões acontecem até o avançar da noite. 435 Mediante o exposto acima, ressaltamos que os sabores da Festa de Nosso Senhor Bom Jesus emergem como elementos essenciais da constituição da identidade do território quilombola de Alto dos Bois, e de diversas outras comunidades do Vale. Como ressalta Rosendahl (2003, p.215-216), “os símbolos do culto religioso são impregnados da cultura local e fornecem a ela uma identidade forte”. Identidade preservada nos costumes, hábitos, histórias e alimentos. A partir da experiência vivenciada nesses dias de festividade, a importância dos alimentos tradicionais na construção identitária quilombola ressaltou ao nosso olhar. O papel assumido pelo alimento, nessas comunidades, vai além do seu papel nutricional: ele representa uma carga simbólica e cultural que constrói e reforça, a cada receita retirada do forno de barro, a identidade, história e vivência sociocultural de um povo. A tradicionalidade da culinária mineira, que atravessa territórios e grupos populacionais distintos, no Vale do Jequitinhonha possui uma carga sociocultural marcada, fortemente, pelo histórico de formação e configuração de grande diversidade de populações tradicionais, como as comunidades quilombolas que, mesmo passando pelas “histórias do cativeiro”, por adversidades sociais, econômicas e culturais tiveram a capacidade de preservar sabores e crenças que atravessam gerações. As tradições da Festa de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa que se desvelam no lar, na memória e no encontro comunitário, em suas distintas temporalidades e espacialidades, constituem, assim, elementos primordiais de sustentação da identidade cultural quilombola que, mesmo integrada e associada aos processos da modernidade se mantém conspícua e sólida no seu território ancestral. Outro aspecto muito evidente dessa ancestralidade presente nas paisagens culturais dessas comunidades é o uso das plantas medicinais ou “meisinhas”, as descrevem os próprios moradores: É, a gente aqui na roça a gente gosta muito de chá, porque isso é cultura da roça mesmo, fazer o chá. Meu marido até fala, né, que a mãe dele antigamente, como era difícil ta indo na cidade, pra ir na farmácia, então o pessoal usa muito meisinha medicinal. Pra tosse, pra gripe, e aí a gente acostuma [...] Meu marido até fala, né, que a mãe dele antigamente, como era difícil ta indo na cidade, pra ir na farmácia, então o pessoal usa muito meisinha medicinal. Pra tosse, pra gripe, e aí a gente acostuma. Eu mesmo acostumei, porque eu nunca tinha tomado isso, quando eu casei que eu vim eu comecei a gripar aí eu falei assim com meu marido, nossa nois tem que ir em Angelândia pra mim comprar um xarope porque eu to ruim. Ele falo que não, que aqui tem as meisinha, vamo lá. Aí ele me mostrou as meisinha, as planta medicinal pra fazer chá né. Aí vamo lá pro cê vê as meisinha. Tem várias qualidade, tem poejo, hortelã, o cheiro do hortelã é uma delícia, cê acredita que o meu pezinho de poejo, que ele é muito dengoso, morreu. Aí é porque o sol tava muito quente. E eu adoro o chazinho, menino é que tem hora que tá, se por pouco açúcar eles não quer beber né, e não é bom por muito açúcar. Mas não é muito bom 436 não, eles fala que é mais bom fazer com pouco açúcar. Pro efeito surgir mais. E aí eu adoro essas meisinha, só que a gente tem hora que tem que apelar pra farmácia também né. E eu tem hora que eu fico tomando chazinho aí eu falo eu vou é lá na farmácia pra ver se tem um xaropinho ué, fica tomando só meisinha de horta (Sra. Crislaine, 26 anos, dez/2012). Apesar do reconhecimento e valorização dos conhecimentos ancestrais, o uso das plantas medicinais é sempre realizado com muito cuidado e zelo. Há sempre a recomendação da quantidade certa, dos cuidados no uso. Em quase todos os quintais das comunidades identificamos a presença de alguma planta de uso medicinal. Segundo os moradores, estas são utilizadas principalmente para as doenças mais simples. Na maior parte dos casos, utilizam o serviço público de saúde na cidade de Angelândia, ou ainda, buscam soluções junto ao médico da família, quando este vem à comunidade para realização das consultas periódicas. O uso tradicional de plantas medicinais, apesar dos resultados predominantemente positivos, é comumente questionado pelos especialistas que buscam identificar em suas composições algum indicativo de proteína ou substância que subsidie a afirmação dos saberes populares. Segundo Brandão (2010, p.11) desde a década de 1970 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) “reconhece a importância das plantas medicinais para o tratamento de várias doenças, mas alerta que esses remédios tradicionais precisam passar por processos biotecnológicos de validação”. Dentre os métodos indicados estão os estudos botânicos, químicos, farmacológicos e toxicológicos. A partir de alguns relatos realizados durante as visitas nas residências das comunidades ou nas travessias pelos campos do cerrado, fomos realizando o registro de algumas dessas espécies e do uso das mesmas, segundo os relatos dos moradores. Na Tabela 17, buscamos ressaltar qual a parte da planta que é utilizada para a fabricação do medicamento, uma vez que a mesma planta pode aumentar a pressão (se for utilizada a raiz) ou diminuir (se for utilizada a folha). Cuidado este que também fora pontuado por nossos entrevistados. Além disso, os entrevistados utilizaram algumas expressões muito peculiares para descrever a “doença” para a qual eram destinas as “meisinhas”, tais como: “calor na urina” – “esse remédio aqui é remédio para quem sofre da urina, quem tem as urina quente [...] umas urina quente, urinando sangue”; “depurativo do sangue” – “É um tipo que limpa o sangue da pessoa, Às vezes a pessoa o sangue descontrolado ou desregulado, é um depurativo que sangue”; “ofensa de cobre” – “que uma pessoa que não gosta doce põe nocê ainda é mais difícil de tirar. Como se fosse um mal olhado, mesma coisa” e ainda “espinha de cobra” – “que, por exemplo se ocê meche pros mato, é fácil pro cê pegar... aquilo ali médico 437 nenhum num cura não... enquanto cê não vai num raizeiro, faz uma oração, um passe, uns trem lá, não resolve” (Sr. Preto, Alto dos Bois, julho de 2015). Tabela 17: Plantas medicinais e usos indicados pelos moradores de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão Planta Uso Doença Unha Danta (cerrado) Chá da raiz Tosse/gripe Alcaçú (cerrado) Carapiá (cerrado) Hortelã (horta) Folha Alfavaca (horta) Gengibre Raiz Dor de garganta Brasforte Chá da raiz Depurativo do Sangue Pirete Pé de Perdiz Suma Branca Bago Pari Angico Casca Sucupira Branca Pau-Santo Gabiroba Folha Galoina Ramada da folha Calor na Urina Quebra-pedra Canela de Macaco (cerrado/Horta) Chá da raiz Mangaba Casca/folha Pressão - Ela cura qualquer tipo de pressão Capim Cidreira Raiz Aumenta a pressão Folha Abaixa a pressão Batata ralada em infusão Abaixa pressão Chuchu Chá da folha Abaixa pressão Pacari Casca Gastrite Pacari (árvore mato) Casca Semente de Sucupira Branca Semente Carqueja Folha Colesterol/fígado raiz Abrir o apetite Para-tudo Casca Colesterol Quina do campo Casca Semente de Sucupira Branca Semente Ofensa de cobra Óleo de Cocaíba Óleo Pau D’Óleo Óleo Barbatimão Chá da folha Diminui o estômago, diminui o apetite e ajuda a emagrecer Raiz gastrite Macimira/ Macilica/Marcelinha Chá da folha Diminui febre e dor de barriga Jaborandi/ Pimenta de Macaco Folha Hidratante para o cabelo. Alto valor no mercado (shampoo, cosméticos, etc.) Sucupira Vermelha Semente reumatismo Alecrim Chá da folha (infusão) “toma pra subir os morros igual menino de 12 anos” (Sr. Preto) – “dilata os ventrículos pulmonares, aumenta oxigenação, as pena fica boa” (Sr. Geraldo) Batata Bate (folha) Calmante – “tomara pra dormir” Raiz (raspa e bate) “alteia a pressão” Elaborado pela autora (2016) 438 É interessante ressaltar que por meio da preservação dos saberes das plantas medicinais, muitas crenças populares acabam se perpetuando no cotidiano desses grupos, tais como a “espinhela caída”, “feitiço”, “ofensa de cobra” e o “mau olhado”, que segundo Sr. Preto, funciona da seguinte forma: “se ocê chegar aqui, eu não gosto docê, eu dou uma olhada ruim pro ocê, isso dá uma versão de dor! E se eu to com olhado, enquanto não mandar rezar não resolve”. O conhecimento das plantas “venenosas” também foi ressaltado durante nossas caminhadas pela comunidade, tais como: a figueira-do-diabo ou trombeta – Datura stramonium - (“veneno”); beladona - Atropa belladonna - “a língua cresce, a pressão aumenta e o fígado dilata”) e o cansanção - famílias Euphorbiaceae (“se passara na pele, queima. A gente até come, mas tem que esfregar bem um no outro pra tirar o picado”) (Sr. Preto, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Outro elemento importante de se destacar é a fabricação das “garrafadas” ou xaropes/preparados caseiros para algumas situações específicas, tais como as discriminadas na Tabela 18. Tabela 18: Garrafadas produzidas no Alto dos Bois Garrafada Situação Ajuda mulher a engravidar Três Sementes de marinheiro (mata) + Brás Forte + Salsa Parreira (campo) Acaba com o desânimo Osso de jumento + Brás Forte + Ovo de Pata + 4 comprimidos de viagra + 3 vidros de biotônico (batido) Acaba com “Brotaiada” / coceira 3 pés de pirete + 3 raízes de suma branca + 3 pés de pé de perdiz + vinho Elimina a falta de apetite e colesterol alto Carqueja em infusão na água + Guaraná Mordida de cobra Colocar o fumo na boca e puxar o veneno da cobra com o boca para o fumo. Elaborado pela autora (2016) Muitos desses saberes, crenças e práticas socioculturais, presentes no cotidiano dessas comunidades, encontram-se materializadas no cotidiano ou em suas espacialidades festivas. Assim, no intuito de reconhecer as singularidades das paisagens culturais de cada uma dessas comunidades, buscaremos apresentar a seguir, por meio dos mapas etnoambientais, uma leitura dessas paisagens, construídas a partir das vivências e experiências que tivemos com os sujeitos desse importante território quilombola. A construção desses mapas foi realizada a partir de nossas travessias pelas comunidades, nas quais os sujeitos- chave foram demarcando alguns signos dessas paisagens que fossem mais representativos de seus modos de vida atuais e passados. Para começarmos nossas “narrativas” dessas paisagens pelo encontro do olhar desses sujeitos com o nosso, começaremos pela espacialidade da comunidade de Alto dos Bois, que apresenta distintos signos cheios de significados e memórias que se referem a modo de ser de Alto dos Bois, como pode ser observado no Mapa 23. 439 Mapa 23: Mapa etnoambiental da comunidade quilombola de Alto dos Bois – Angelândia/MG 440 Quando falamos desta comunidade, sua “paisagem-marca” é o Casarão de Alto dos Bois. Diferentemente dos tempos remotos, quando a centralidade principal da comunidade era a dinâmica produtiva da Fazenda, como local de comercialização, beneficiamento e produção de mercadorias para a comunidade e para as tropas que também pousavam nesta propriedade, nos tempos atuais a matriz principal de significados dessa paisagem é a importância do patrimônio arquitetônico de “um casarão de adobe de mais de 200 anos” (Quilombola, 45 anos, Alto dos Bois, 2015). E assim, nossa leitura/ narrativa das paisagens culturais da comunidade de Alto dos Bois se iniciará pela primeira imagem que se tem deste Casarão, quando se chega à propriedade. Enquanto o olhar dos outsiders se encanta pela sua beleza cênica, levando-os a outros tempos e histórias remotas deste lugar, e dessa região, para a comunidade há outros signos e significados que lhe são atribuídos em decorrência de sua vivência comunitária neste espaço. Assim, para as crianças e jovens, com as quais aplicamos os mapas mentais nas três comunidades, a paisagem do Casarão está associada, principalmente, aos seus aspectos naturais, principalmente pela cachoeira, paineiras, barriguda, animais silvestres (tais como: um pássaro chamado “maria preta” e o macaco bugio) além de galinhas e algumas árvores frutíferas. Além de aparecem em 12, dos 15 mapas realizados com a paisagem da “Fazenda de Alto dos Bois”, os desenhos dos elementos da paisagem natural foram representados em dimensões maiores do que o próprio casarão como pode ser observado nos mapas mentais apresentados abaixo. Figura 170: Mapa mental de um Quilombola de 12 anos Figura 171: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos 441 Figura 172: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos Figura 173: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos. Figura 174: Mapa mental de uma quilombola de 13 anos. Figura 175: Mapa mental de um quilombola de 11 anos. FOTOS: BATISTA (2015) Em seus mapas mentais da Fazenda algumas crianças representaram a queda d’água, o poço da cachoeira, os afloramentos rochosos, as lapas quartzíticas, a mata e algumas piteiras (elementos que podem ser observados nas fotografias abaixo - Figuras 176 e 177). Figura 176: Queda d’água, poço e mata na cachoeira de Alto dos Bois Figura 177: Piteira e Cacto Mandacaru (ao fundo) no alto da cachoeira de Alto dos Bois FOTOS: SILVA (2018) 442 Na Figura 170, uma criança de 12 anos, apresentou em sua representação uma concepção escalar dos lugares, representando não apenas o casarão, mas as duas cachoeiras que ficam próximas ao local: a cachoeira de Alto dos Bois e a Cachoeira do Moinho, de propriedade de uma das filhas de D. Lia. De 2012 a 2018, várias benfeitorias foram realizadas no local, transformando-o em uma importante referência de lazer, sendo reconhecido, inclusive, pela comunidade e por frequentadores oriundos de diversas cidades da região (como Angelândia, Capelinha, Minas Novas, Malacacheta e Setubinha). Atualmente a área possui além da cachoeira e do poço, uma quadra de areia, piscina pequena para crianças, churrasqueiras, quiosque, banheiro, bar (para comercialização de bebidas) e é cobrada uma pequena taxa por pessoa para passar o dia no estabelecimento. Entre todas as crianças e jovens que desenharam as cachoeiras, o aspecto mais destacado na explicação do mapa foram os passeios que elas fizeram com os pais nesses locais, principalmente, para o lazer nos finais de semana ou feriados. 443 Figura 178: Cachoeira do Moinho FOTOS: SILVA (2018) Figura 179: Mapa mental de uma quilombola de 7 anos. Figura 180: Mapa mental de um quilombola de 4 anos. Figura 181: Mapa mental de uma quilombola de 11 anos. Figura 182: Mapa mental de uma quilombola de 8 anos FOTOS: BATISTA (2015) Nos mapas acima, cuja ênfase foi atribuída primordialmente aos elementos da paisagem construída, há que se ressaltar que o tamanho do casarão em relação aos outros elementos também representados, como, por exemplo, as paineiras (Figuras 179 a 182). Na 444 Figura 180, cujo mapa representado foi elaborado por uma criança de quatro anos, aparece a cerca, que fica próxima à entrada da fazenda, em dimensões maiores, inclusive, que o próprio casarão. Gostaríamos ainda de salientar que o mapa apresentado na Figura 181, foi feito por uma criança que possuía uma vivência mais próxima dessas paisagens, e por isso, além de desenhar as flores da paineira e a jabuticabeira (sem frutos, pois não estava na época), representou ainda o cemitério e “calçada de pedra”, ou embasamento estrutural de pedra seca, sobre o qual foi construído o casarão. Outro elemento importante ressaltado pela percepção da comunidade (e que foi evidenciado nos mapas pela quantidade de janelas representadas) é a quantidade de cômodos do casarão: “[...] a casa tem 22 cômodos. Estrategicamente cada cômodo tem duas portas. conta a história que era estratégico naquela época, escapatória... Essa estratégia que eles usava, entrava numa porta saia na outra. Se um atacava ali, saia ali na frente... (Dêga Fernandes, Alto dos Bois, junho de 2012). Assim, para alcançar os significados dessa vivência dos moradores do casarão, que o compreendem não apenas como um patrimônio histórico, mas como seu espaço de morada, buscamos apreender as histórias e dinâmicas cotidianas que cada um desses cômodos representa para esta família, que será narrada a partir da numeração dos mesmos apresentada na Figura 183. Figura 183: Croqui do Casarão de Alto dos Bois Elaborada pela autora (2016) 445 A construção do casarão se deu como um organismo único, as paredes, divisões e telhado constituem um único corpo, todo costurado. Se analisarmos o telhado, primeiramente, ele é composto por uma peça única de madeira Braúna de aproximadamente 9 a 10 metros de comprimento e 30 a 40 centímetros de largura. Nas junções da parede com o telhado há sempre outra peça de madeira de dimensões parecidas cortando o eixo principal na perpendicular, de forma a encaixar-se sobre o mesmo. A madeira, mais fina, que se entrecruza para receber as “telhas de coxa” do telhado é conhecida pelos moradores como “amarelinho” ou “gema de ovo”. Trata-se da Platymenia reticulata, conhecida também como vinhático do campo ou do cerrado, ou como pau de candeia. É típica do bioma do cerrado, atingindo de 6 a 12 metros de altura. Sua utilização para fabricação dos telhados está relacionada ao fato de sua madeira ser leve, dura, fácil de trabalhar e de alta resistência a fungos e cupins. Segundo Sr. Preto outra espécie muito utilizada na fabricação dos telhados, antigamente, era a ripa de palmitinho verdadeiro ou açaí. Todavia, devido a dificuldade de se encontrar essa espécie na região, atualmente a espécie mais utilizada tem sido as varas mais finas de eucalipto. Muitas dessas peças encontram-se amarradas com uma espécie de cipó, denominada na região como cipó escravo (Figura 186). Figura 184: Encaixe do eixo Principal com a terceira água do telhado (à leste). FOTO: SILVA (2016) Figura 185: Peça centra de Braúna entrecortada pelos galhos de amarelinho ou “gema de ovo” FOTO: RODRIGUES (2012) 446 Figura 186: O uso do cipó escravo para amarrar as madeiras. FOTO: SILVA (2016) Na lateral leste há a conformação da terceira água do telhado (Figura 182). Já na lateral oeste do casarão, entre o telhado e as paredes de barro existe uma abertura, uma espécie de janela que se abre sobre um segundo telhado mais baixo da casa. É nesta abertura, que moradores contam que, na época do quartel, ficava um soldado sentinela vigiando quem estava chegando pela estrada que subia a serra, na qual hoje se avista um bambuzal (Figuras 185 e 186). Figura 187: Janela de Sentinela DINIZ (2012) Figura 188: Janela de Sentinela SILVA (2016) Em algumas partes do telhado, e principalmente nas paredes de pau-a-pique, foi utilizado também uma espécie nativa de bambu conhecida regionalmente como taboca (Figura 189). A toponímia indígena, de origem tupi, significa “planta oca, sem nó”. Na lateral leste do casarão, encontramos também paredes que foram construídas com tijolos de adobe, que encontram-se se tabatinga na parte externa do casarão (Figura 190). Para fundação e nivelamento do terreno sobre o qual o casarão foi construído, foi realizado um embasamento 447 de pedra seca, quartizítica, aparente em algumas laterais da fachada, degraus, passeios e pisos externos (como pode ser observado nas Figuras 190 e 191). [...] a abertura no telhado, é onde eles observavam quem vinha lá do outro lado, eles subia e observava quem vinha lá do outro lado, lá, e fazia parte da estratégia deles... essa aqui oh, é a abertura que tinha aqui, ces pode ver que essa janela aqui é uma janela, ela não é bem uma janela ali, ela é uma janela pra eles olha, no caso o pessoal olhava aqui oh, e via os inimigo que vinha do outro lado. Isso aqui é lugar de vigiar os índios e alguns inimigos que vinham atacar, então era estratégico daqui observar e ver quem tava vindo lá. Então era estratégia militar. (Dêga Fernandes, Alto dos Bois, junho de 2012). Outra característica bem singular desta construção são suas portas e janelas, talhadas em madeira, em sua maioria, originais, com peão de madeira encaixado nos marcos, também entalhados em madeira. Segundo D. Lia, esse tipo de dobradiça é conhecida na região como “dobradiça de cachimbo” e as portas que se encaixam nesses marcos como “porta de coice”. Segundo Dêga Fernandes, “é tudo do Figura 192: Janela de madeira com dobradiça de encaixe. FOTO: SILVA (2016) Figura 193: Dobradiça de Ferro Fundido RODRIGUES (2012) mesmo material que foi feito desde 1814 até hoje, como vocês podem ver que tudo é madeira grossa, as janelas são todas janelas moldadas, tanto portal, elas não usa prego, elas são encaixada!” (Dêga Fernandes, Alto dos Bois, junho de 2012). Há poucas fechaduras ou dobraduras feitas de ferro fundido e “algumas peças que vocês vão ver de dobradiça e Figura 189: Parede de Pau-a-pique FOTO: SILVA (2016) Figura 190: Parede de Adobe e embasamento em pedra seca. FOTO: NASCIMENTO (2015) Figura 191: embasamento em pedra seca FOTO: SILVA (2018) 448 fechadura ai, que era feito, chamava ferreiro que fazia, ferreiro, ele esquentava o aço, esquentava o ferro, e fazia as peça de fechadura, dobradiça” (Dêga Fernandes, Alto dos Bois, junho de 2012). Em cada um dos cômodos adentrados encontramos um objeto ou uma característica da construção que conta um pouco da história e vivência comunitária de Alto dos Bois. O Cômodo 1 (conforme numeração do croqui), trata-se de um quarto cuja entrada é feita pela sala principal. Neste quarto encontramos um forro de tábuas justapostas sobre caibros, estrutura ainda muito utilizada em algumas residências da comunidade, inclusive, como uma espécie de sótão para guardar mercadorias. Além disso, um pequeno espelho com moldura de madeira trabalhada também nos soltou aos olhos. Em diversos cômodos dessa moradia há objetos de madeira que eles ganharam ou adquiriram em alguma cidade que estiveram trabalhando durante a migração sazonal. Além disso, este também é um dos cômodos que possuem duas portas, e, neste caso, a segunda porta dá para um cômodo mais no interior da casa (Cômodo 4). Figura 194: Forro de tábuas justapostas sobre caibros. FOTO: SILVA (2016) Figura 195: Forró de tábuas utilizado como sótão. FOTO: SILVA (2018) Figura 196: Espelho com moldura de madeira trabalhada FOTO: SILVA (2016) O segundo cômodo é a sala de visitas do casarão. Onde são recebidos aqueles que chegam à propriedade pela primeira vez. É o local onde a família se apresenta aos chegantes, por meio, inclusive, do retrato pintado de D. Lia, Sr. Preto e D. Carlota, que fica próximo às imagens com seus santos de devoção. E ao entrar no casarão, esta pequena sala com paredes e piso pintados de tabatinga, com uma mesa de madeira azul ao centro (sempre decorado com um forro de tricô e uma flor artificial) e um banco rústico em madeira de sucupira (presente na família há várias gerações) já anuncia a experiência que nos espera ao adentrar este espaço. Nas paredes laterais encontramos ainda mais algumas peças de madeira, talhadas pelo irmão 449 de Sr, Preto, que ele nos apresenta com muito orgulho e satisfação, com representações muito específicas de animais do meio rural (peixes, jacaré, boi, cavalo e uma mulher montada sobre um burro). Figura 197: Sala de entrada do Casarão FOTO: SILVA (2012) Figura 198: Imagens de animais da fazenda entalhadas em madeira FOTO: SILVA (2016) Na porta de entrada (de duas folhas) encontramos ainda, na folha de cima, duas letras “R”, maiúsculas, talhadas na madeira, que Sr. Preto acredita ser da época do Pedro Roiz da Cunha. O terceiro cômodo, que acessamos pela sala principal, trata-se do famoso quarto de Isaias, que ficou fechado por muitos anos, o que Figura 199: Registro “RR” na porta de entrada. ainda é latente na memória da comunidade. Neste quarto, além das histórias do soldado Izaias Roiz da Cunha, encontramos outra reminiscência dos tempos da fazenda: uma cama catre. Os catres eram camas de madeira, cujo estrado era feito de tiras de couro de boi, amarradas e entrelaçadas nas estruturas laterais ou ainda por esteiras de bambu. Segundo D. Lia, no início as pessoas dormiam sobre as esteiras, e só depois que passaram a fazer os colchões ou “enxergões”, feitos com sacos de linha (onde Figura 200: Detalhe da cama Catre com esteira de bambu. FOTOS: SILVA (2016) 450 eram transportados alguns cereais), os quais eram preenchidos com palha de milho. Ao nos contar sobre este objeto, Sr. Preto nos relatou que ao acordar ficava a marca exata do corpo da pessoa, e por isso, era necessário sempre agitar o conteúdo do colchão para que ele pudesse voltar ao seu formado original. Os cômodos 3, 4, 5, 7 e 8 também foram quartos onde encontramos mais alguns exemplares de catres, bancos artesanais, janelas e portas de encaixe e muitas lembranças que em alguns momentos se materializavam em objetos bem singulares como os baús antigos, ainda utilizados pela família para guardar objetos importantes – “baú paralelepipédico, de madeira, revestido de couro cru, afixado por taxas de metal com dimensões externas de 40 x 50 x 80 cm” (ANGELÂNDIA, 2000, p.14). Em um desses baús, utilizados antigamente para transportar roupas e objetos pessoais dos viajantes, encontramos a data de 1867 e as inscrições das letras L.A.D.C escritas com taxinhas fincadas sobre a madeira. Assim como este, há ainda outros baús que são guardados como verdadeiras relíquias pela família. Figura 201: Detalhe da inscrição de um Baú. Figura 202: Baú antigo do D. Lia Figura 203: Outros Baús encontrados no casarão FOTOS: SILVA (2016) O cômodo 6 trata-se de um pequeno corredor que liga a sala de visitas ao que a família denomina de “varandona” (Cômodo 9), pois ao lado, no cômodo 10, está a “varandinha”, um cômodo um pouco menor. Em 2012, quando conhecemos a “varandona”, ali ficava uma grande mesa de jantar, onde as pessoas se assentavam para conversar e ouvir histórias, atualmente, este mesmo espaço transformou-se em uma sala de TV, onde a família continua se reunindo para conversar mais ao alvorecer da noite. 451 Figura 204: Corredor FOTOS: SILVA (2012) Figura 205: “Varandona” FOTOS: SILVA (2012) Figura 206: Sala de TV FOTOS: SILVA (2012) O cômodo 11 é o coração do casarão – sua cozinha. É onde D. Lia, com seu fogão a lenha fornece o calor que sustenta as paredes de sua casa, juntamente com suas memórias e cuidado de seus filhos. Cuidado este que pode ser observado nas paredes branquinhas e no piso de chão batido todo marcado com “patinhas de cachorro” – marcas feitas com banana verde cortada imitando as pegadas do animal (Figura 207). É aqui, que D. Lia e Sr. Preto, têm sempre um cafezinho e um biscoito quentinho para oferecer às visitas. [...] mas pode perguntar pra mãe, quando eu tava aqui oh, dava uma hora dessa que eu parava meu serviço aqui, eu entrava aqui pra dentro, catava um balde, metia o barro, e entrava aqui pra dentro, passava barro nesse negócio todo aqui (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Figura 207: Cozinha Principal de D. Lia FOTO: SILVA (2018) A cozinha de D. Lia está ligada ainda ao cômodo 13 por uma pequena escadinha de lapas quartzíticas, as quais formam dois lajeados onde a família costuma se assentar para fazer suas refeições ou até mesmo “esticar o corpo” para o “coxilo da siesta”, após o almoço – “Era nesse lajeado que mamãe Terezinha sentava com as perninhas dobradas desse jitinho com o pratinho na mão” (D. Lia, Alto dos Bois, setembro de 2018). Em tempos do Coronel Justiniano Roiz da Cunha, dizem que esses lajedos também serviam de local de alimentação para os escravos da fazenda: [...] tinha uma banca onde eles colocava comida pros escravo, alguma coisa assim, entendeu? Essa banca aqui gente, segundo eles é que colocava aqui comida para os escravos, dos parente deles antigo que tinha escravo, e às vezes colocava comida aqui... eles fala que essa banca aí era pra isso... (Dêga Fernandes, Alto dos Bois, junho de 2012). 452 Figura 208: Escadinha de Lapas entre os cômodos 11 e 13. FOTO: SILVA (2018) Figura 209: Lajedos de quartzito. FOTO: SILVA (2012) Neste cômodo que encontramos também uma das peças que a família sempre apresenta aos visitantes com muito orgulho – o tradicional pilão de madeira – “peça de madeira lavrada, com dimensão de 40 x 1,20 x 0,35cm, utilizado para o processamento de grãos alimentares” (ANGELÂNDIA, 2000, p. 18) (Fig. 210 e 211). Que foi utilizado por seus antepassados, e ainda hoje continua sendo de grande utilidade no cotidiano de D. Lia: Eu limpo café aí até hoje... corante... arroz mesmo, de vez enquando, eu compro a quarta de arroz, e limpo... fica tudo mais gostoso...(D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Além do pilão grande, ela ainda nos apresenta seu pequeno pilãozinho madeira utilizado, principalmente, para socar temperos (Figura 212). Figura 210: Detalhe interno do Pilão, um formado para pilar cada produto. FOTO: RODRIGUES (2016) Figura 211: Visitante socando café no Pilão de D. Lia. FOTO: SILVA (2018) Figura 212: Pilãozinho de madeira FOTO: SILVA (2018) 453 A cozinha de D. Lia dá acesso também a um sexto quarto, onde contou que dormia o Sr. Lídio (um importante agregado da família do qual falaremos a seguir), “O outro é o quarto daquele Lídio lá, oh. Tem dois quarto que ele morou aqui mais nós.” (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Nesse pequeno quartinho (Cômodo 12), encontramos mais uma peça de catre e o seu piso, diferente dos outros quartos, é feito de tábuas justapostas (Figura 213), como as utilizadas no assoalho do cômodo número 1. Figura 213: Catre com esteira de bambu e piso de assoalho. FOTO: SILVA (2016) O cômodo 14, localizado bem próximo a cozinha, consiste em uma pequena dispensa onde encontra-se uma mureta, feita de adobe, utilizada para guardar uma medidas de 9 alqueires de coco do café (Figura 214). Ao lado há também uma caixa grande que, segundo Sr. Preto, é utilizada para armazenar alguns mantimentos, como arroz e farinha (Figura 215). Este pequeno cômodo guarda ainda uma balança de metal, cujo contrapeso era feito de pedras de 1 ou 2kg, utilizada, principalmente, para pesar carnes, toucinho e sal (Figuras 216 e 218). Essa peça foi muito utilizada nos tempos das tropas e acredita-se que esteja na família desde os tempos do bisavô de D. Lia. Alguns dos toucinhos pesados na balança encontravam-se, inclusive, secando no “pau de secar carne”, dependurado no telhado por uma pequena tira de cipó escravo, e abaixo, encontrava-se ainda uma peneira de bambu produzida na comunidade (Figura 217). Neste quarto podemos observar também um moinho manual utilizado para moer o milho e fazer a canjiquinha (Figura 219). Em nossas caminhadas pela comunidade, nos deparamos com um moinho abandonado, no qual nos foi possível compreender o funcionamento deste equipamento. O moinho é formado por duas peças de madeira, entre as quais há um tubo de metal que direciona o caimento do grão, que ao entrar entre as duas partes, que são giradas por uma alavanca manual, é triturado por pequenas ranhuras de metal que estão presas às duas partes (como podemos observar no detalha da Figura 220). 454 Figura 214: Muro com medida de 9 alqueires (para guardar o coco do café) FOTO: SILVA (2016) Figura 215: Caixa grande de madeira utilizada para guardar mantimentos. FOTO: SILVA (2016) Figura 216: Balança de Metal FOTO: SILVA (2016) Figura 217: “Pau de secar carne” FOTO: SILVA (2016) Figura 218: Pedras de contrapeso (1 e 2Kg) FOTO: SILVA (2016) Figura 219: Moinho Manual para tirar canjiquinha FOTO: SILVA (2016) Figura 220: Encaixe do moinho manual FOTO: SILVA (2012) À medida que os cômodos vão ficando menores no casarão de Alto dos Bois, mais objetos típicos da história, da cultura e dos modos de vida desse lugar vão sendo apresentados aos nossos olhos. Assim, no cômodo 15, o menor deles, Sr. Preto mostrou-nos mais de 18 itens diferentes, tais como: baús grandes e pequenos (Fig. 221); peneiras simples e uma peneira com borda de couro (Fig. 222); uma forma de madeira muito utilizada por eles para fazer medidas de fubá (Fig. 223); ferro antigo de passar roupa (Fig. 224); cuscuzeira de barro (Fig. 225); além de chifres de boi e de carneiro utilizados para “proteger a casa” de energias negativas (Fig. 226). Alguns instrumentos de iluminação como: um “gazão” ou “gazante” (utilizado para iluminar o túnel do garimpo por meio do uso de querosene – Fig. 227); um candeeiro (Fig. 228), no qual a iluminação era feita por meio da queima do pavio de algodão umedecido com óleo de mamona e ainda uma pequena “candeia” (Fig. 229), como eles chamam localmente, sem a alça de dependurar, que era utilizada como vela no cemitério. 455 Figura 221: Coleção de Baús antigos. Figura 222: Peneira com borda de couro Figura 223: Forma de madeira utilizada para medidas de fubá ou farinha. Figura 224: Ferro de passar roupa (antigo) Figura 225: Cuscuzeira de Barro. Figura 226: Sr. Preto mostrando um chifre de carneiro. Figura 227: Gazão utilizado no garimpo Figura 228: Candeeiro. Figura 229: Candeia. FOTOS: SILVA (2016) Depois de nos contar um pouco de sua sabedoria sobre as plantas medicinais da mata (herdada de seu pai, como ele ressalta no relato apresentado a seguir), Sr. Preto nos mostrou também uma ferramenta que utiliza para procurar essas raízes em suas caminhadas pela região (Fig. 229). Meu pai mexia com curador, aqui perto de Jaguaritira, Malacacheta, fica aqui pro lado da mata. Ele que arrancava raiz pra esse curador. Aí um dia, eu vou atrás daquele remédio daquele homem. Quando eu cheguei lá ele falou pra mim assim, “Oh Seu Preto, ocê que mora lá naquele canto, pode chegar lá, e fechar os oio, e 456 rancar qualquer raiz que cê cavavar ali e fazer remédio, mas ocê tem que saber pra que que serve, pro cê dar uma pessoa, se não oce mata ela (Sr. Preto, Alto dos Bois, julho de 2015). Sr. Preto fez toda a questão de nos apresentar ainda alguns utensílios utilizados pelos tropeiros, como um suporte de ferro empregado pelos tropeiros para coar café (o qual era fincado na terra – Fig. 230) e um “bulhão” ou bule de barro para servir o café coado (Fig. 231). Figura 230: Instrumento utilizado para coleta de raízes medicinais. Figura 231: “Ferro de coar café”. Figura 232: “Buião” para colocar café coado. FOTOS: SILVA (2016) O décimo sexto quarto do Casarão trata-se de um paiol, que já o encontramos cheio de espigas de milho (em visita que realizamos no mês de junho de 2015) e vazio (em março de 2016), quando se encontrava a espera das espigas da próxima colheita - entre maio e junho (Figuras 233 e 234). Além de sua conexão com a dinâmica produtiva da comunidade, este cômodo carrega ainda outras narrativas que são sempre rememoradas por Sr. Preto, quando nos fala sobre as paredes de adobe, do barril de pinga (de madeira de baspo para saborizar a bebida) e dos arreios de cavalo que ficam ali dependuras, e que trazem a Sr. Preto muitas recordações do tempo dos tropeiros e das cavalgadas que fazia pela região (Figura 235). Um dos aspectos mais interessantes dessas histórias, que a família foi nos contando nas visitas que realizamos ao casarão, é a importância que eles atribuem aos instrumentos que já não são mais utilizados pelos mesmos (em decorrência do desgaste do tempo), mas que pelo significado que carregam não são dispensados, pelo contrário, são guardados como uma memória viva de um tempo que guarda muitas saudades e que eles acreditam ser importante de ser recordado e repassado para as novas gerações. Um exemplo desse processo de reconhecimento do patrimônio material da família são as panelas de barro ou ferro batido que encontramos neste e outros tantos cômodos do Casarão (Figura 236 e 237). 457 Figura 233: Paiol em julho de 2015. FOTOS: SILVA (2015) Figura 234: Paiol em março de 2016. FOTOS: SILVA (2016) Figura 235: Arreios de cavalo FOTOS: SILVA (2016) Figura 236: Patrimônio Material – botes de barro e panelas de ferro batido FOTOS: SILVA (2016) Figura 237: Sr. Preto apresentando com todo orgulhoso um bote de barro quebrado, mas que guarda com muito carinho para mostrar para os visitantes e familiares FOTOS: SILVA (2015) O cômodo 17 é também um dos quartos mais reconhecidos pela família e pela comunidade – o “Quarto do Tropeiro”. Além da fornalha onde os tropeiros preparavam seus alimentos, é também neste cômodo e no de número 18 (anexo ao anterior) e 19 e 20 (outro quarto onde Sr. Lídio também morou) que encontramos as peças do moinho d’água e do engenho de cana de açúcar, peças que a família guarda com muito zelo na esperança de ainda vê-los montados e funcionando novamente, como nos tempos de D. Carlota. Encontramos a “moega” – peça de madeira onde são colocados os grãos para que os mesmos fossem triturados, quando caíssem lentamente sobre a pedra do moinho d’água (Figura 238). Algumas peças de madeira e as engrenagens do engenho, como a “moenda” ou “mó de moinho” – utilizada para espremer a cana (Figura 239). E ainda antiga masseira onde se colocava a massa da mandioca triturada ou ralada para descansar e escorrer a goma (Figura 240). Além destes, foi também nestes últimos cômodos que encontramos um arado de 458 madeira (Figura 241), denominado localmente por “caidera” - um instrumento agrícola utilizado para lavrar a terra, puxado por junta de bois, burros ou mulas (como pode ser observado no desenho da Figura 242). Figura 238: Moega – peça do moinho d’água. Figura 239: Moenda ou mó de moinho do Engenho. Figura 240: Masseira de mandioca FOTOS: SILVA (2016) Figura 241: Arado de madeira. FOTO: SILVA (2016) Figura 242: Representação do uso do arado de madeira a força animal Desenho de Ari Riboldi Os cômodos 21 e 22 tratam-se de outra cozinha de D. Lia, onde tem um fogão a lenha, sobre o qual sempre fica sua panela de barro que ganhou de um amigo tropeiro antes de se casar e um forno de biscoito ainda muito utilizado pela família para fabricação das quitandas tradicionais, como o famoso biscoito de goma. 459 Figura 243: Cozinha e forno de biscoito. FOTO: SILVA (2016) Figura 244: Biscoitos de goma sendo colocados no forno para assar. FOTO: SILVA (2018) Depois de conhecer os 24 cômodos do Casarão, e rever os equipamentos do engenho e da casa de farinha, Sr. Preto nos mostrou que também guardavam algumas peças do bulinete da casa de farinha e ainda uma canga de boi, utilizada pelas tropas (Figuras 245 e 246). Figura 245: Canga de Boi e Roda do bulinete Figura 246: Peça de girar o bulinete. FOTOS: SILVA (2016) Outros signos da paisagem cultural de Alto dos Bois também foram ressaltados pela comunidade e representados no mapa etnoambiental, tais como: o cemitério; o galho de balas da festa de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa; o forno de carvão e o muro de pedra da gangorra, os quais já foram abordados anteriormente, a partir dos relatos da comunidade. Há ainda que se destacar, três outros signos dessas paisagens, que também foram representados nos mapas mentais: as plantações; os fornos de biscoito; as pinguelas e os mata burros (como pode ser observado nas Figuras 247 a 252). Na Figura 248, o jovem de 13 anos, desenhou, bem no cantinho da folha, sua casa, o fogão a lenha, o forno de biscoito e o paiol. Apesar de 460 ter sido o único a realizar esta representação do forno de biscoito e do fogão a lenha fora da casa com uma cobertura sobre estas estruturas, esta é uma das paisagens mais comuns nas três comunidades. Muito ressaltada, inclusive, pelos adultos e idosos. Todavia, em outros desenhos do casarão, identificamos também a presença de uma chaminé no telhado, indicando que eles reconhecem a existência e a importância do fogão à lenha no interior de suas casas. Figura 247: Mapa mental de um quilombola de 11 anos. Figura 248: Mapa mental de um quilombola de 13 anos. Figura 249: Mapa mental um quilombola de 11 anos. Figura 250: Mapa mental de um quilombola de 16 anos. Figura 251: Mapa mental de um quilombola de 12 anos. Figura 252: Mapa mental de uma quilombola de 8 anos. FOTOS: BATISTA (2015) 461 Na Figura 249, há uma representação com destaque o pomar de sua casa no qual ele identificou vários pés de café, um pé de laranja da terra (carregado de frutos) e vários pés de mexerica carregados e em vários tamanhos (fruta que estava em período de safra, e que a família, estava, inclusive, fornecendo para o PNAE, o que evidencia ainda mais a importância atribuída a este pomar pelo jovem quilombola). Em todos os seis mapas apresentados acima o pomar encontra-se também representado, indicando assim a importância, para essas crianças e jovens, do espaço produtivo que existe ao redor de suas casas. Além disso, ainda na Figura 247, ele preocupou-se em identificar a estrada que vai para a casa de um vizinho, a ponte e o córrego do Capão que passa aos fundos de sua casa. No mapa da Figura 252 também houve uma preocupação em representar-se a estrada, indicando, neste caso, a conexão da casa com a garagem, onde seu pai guarda a moto da família. Este mapa, inclusive, é um, dos três desenhos, onde as crianças representaram como elementos humanos a família. Outros elementos da paisagem construída que se destacam nas representações acima são as caixas d’água nos quintais, o paiol e o galinheiro. Além disso, na Figura 250 podemos observar que o jovem de 16 anos representou além da sua casa, um pé de café, o coqueiro catolé (muito evidente na paisagem de sua casa – na comunidade de Córrego do Engenho) e uma antena parabólica. Tais elementos estão diretamente ligados à sua própria experiência de vida, uma vez que ele já migrou para trabalhar nas lavouras de café e com a renda adquirida lá, a família pode adquirir a antena parabólica e o aparelho televisor. A partir da utilização da “Metodologia Kozel” (2007), realizamos uma leitura dos mapas mentais considerando a forma, distribuição e as características dos ícones representados pelas crianças. Nesta análise, encontramos como elementos móveis: os animais (silvestres e domésticos) e uma moto; e como elementos humanos apenas três representações das famílias nos mapas que as crianças realizaram de suas casas e nenhuma referência de elementos humanos na Fazenda, o que indica que, para este público, há um forte significado ambiental e histórico associado ao Casarão e seu entorno. Outro elemento importante de se ressaltar nessa paisagem da comunidade de Alto dos Bois é a “Toca do Índio”, que constitui um elo importante da identidade quilombola desse grupo, posto que rememora sua ancestralidade indígena, e a história de formação desse sítio histórico emblemático – “O meu avô mesmo, cê vai vendo a foto dele a gente vê que ele tem sangue de índio. A sombrancêia mesmo grossa, e grande, assim, do meu avô”. (D. Lia, Alto dos Bois, abril de 2015). Para o Senhor Preto, a toca do índio representa: Um lugar que tem um lugar assim, que não foi nois que fez...uma coisa que nós vai, aquilo é interessante demais, né? É um lugar que nós achou, e que aquilo só pode ter 462 sido construído pelos índio, por mão de nós, de gente, que não foi, né! É um lugar que achou, e eu acho que aquilo ali é um lugar, que eu acho que eles escondia ali! Eu acho que escondia! (Sr. Preto, Alto dos Bois, julho de 2015). Ressalta-se ainda que, apesar de sua importância histórica e representatividade no conhecimento local, poucos moradores já foram até lá. Alguns, inclusive, nutrem um sentimento de topofobia mencionado que a “toca” do Índio, era vista como local onde se escondiam bandidos em tempos antigos, como pode ser constado na entrevista com Sra. Orlinda: “La na gruta não é muito bonito não, o problema são as abelhas Europa, e há um tempo atrás bandido escondia lá, tinha onça também” (Moradora de Alto dos Bois, 80 anos, dez/2012). Ou ainda como ressalta Sr. Júlio: Uai num era toca de índio, morava um criminoso, aí eu não sei, diz que tinha uma Lapa grande lá, sempre que eles iam lá, aí levantava pra esconder lá, diz que, assim eu ouvi contar né, que este criminoso escondeu lá dentro desta toca e escreveu na pedra lá, mas eu não lembro mais... (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Tal percepção relaciona-se também ao fato da dificuldade de acesso ao lugar e das histórias de onça que se houve na região, como destaca um antigo morador da região: Eu já fui lá na Toca lá. Mas o que mais esconde ali é onça. Teve uma vez que eu tava lá embaixo, quando deu um pouco fui na toca, aí tinha uma onça que tinha feito rastro lá, ela corto isso aqui arriba, e depois foi um colega nosso vê lá pro lado de Antão. Mas já tem tempo já. Mas nós já viu o miado dela naquelas mata lá. Mas sempre tem. Tinha rastro direto dela aqui nessas mata. Antigamente que elas pegava, pegava carneiro, bode, porco. A que tem aqui é suçarana (suçuarana). É suçarana brava (Sr. Expedito, Alto dos Bois, 78 anos, dez/2012). Figura 253: Acesso à Toca do Índio. Figura 254: Entrada da Toca do Índio. Figura 255: Interior da Toca FOTOS: RODRIGUES (2012) Outro aspecto interessante de se destacar a respeito da percepção sobre a ancestralidade indígena em Alto dos Bois, são algumas reminiscências da história de um ataque indígena que teria sido realizado na Fazenda de Alto dos Bois, quando alguns negros trabalhavam secando goma e arroz nas lapas próximas à cachoeira: 463 Eles tinha lá os negro, lá no terrerão. Secando arroz, secando goma, e do outro lado tinha umas aldeia dos índio. Do lado de cá era do bisavô do meu marido, e do lado de lá tinha as aldeia dos índio. Onde é que tinha um negro lá no terreiro, esparramando as coisa, os cereais, e veio um dos índio e sequestrou um dos negro, deu uma flechada assim na cocha dele e jogou ele na carcunda. E aí os outro empregado da fazenda, gritaram cachorro, passou a mão neles assim e montou eles atrás e eles soltou ele, aí eles veio cuidá do negro. Muito tempo com a perna quebrada com a flechada que o índio deu. Isso aí eu não cheguei a ver, mas meu sogro me contava. Acontecia essas coisa tudo. (D. Jacir, Capelinha, março de 2016). Ao nos relatar sobre a dificuldade do caminho para chegar à toca do índio, Sr. Júlio se lembrou de quando ia brincar com seus irmãos na região, recordando-se, inclusive, de algumas espécies da fauna e flora que existiam por lá: Você foi lá? Lá não é tão grande assim mas é uma serra até bonita né pra É difícil, é difícil, é ruim de chegar lá e tinha um pé de Jatobá e agente ia lá mais He He, você viu o pé de Jatobá lá? Né . E dá umas fruta que você já conhece, conhece? Nóis ia lá e aí agente falava, “tinha um pé de Jatobá e agente era menino e falava que tinha lá perto uma toca, aí nóis ia rasgando até lá e lá tem um salãozao bonito né agente ia no tempo de menino agente ia até distraia bem e chegava lá morcego demais tinha, agente entrava lá tinha aquele túnel assim e ali só tinha morcego, chegava lá e pedra naquele trem e saia um cardume né, há há há pra menino era uma vida gozada né, hoje agente não vai, até hoje agente queria ir lá, mais como é que vai ir escorando pra chegar (risos)... (Sr. Júlio, Capelinha, março de 2016). Durante nossa travessia para a Toca do Índio foram identificados inúmeros elementos da fauna e flora evidenciados pelas relações descritas entre a comunidade e a vegetação do entorno. Com relação às fitofisionomias, percebeu-se no local a presença de resquícios de mata atlântica e faixas destacadas de cerrado e suas divisões (cerradão, campo limpo e vegetações secundária – capoeira), como pode ser observado na Figura 256, e como sinalizaram, no século XVIII, os viajantes naturalistas que passaram por esta região. Figura 256: Travessia – área de transição entre Mata Atlântica e Cerrado Foto: RODRIGUES (2012). 464 Já, relativo à presença faunística na região, percebemos que os mamíferos de médio e grande porte (como tamanduás, tatus, onças parda e pintada), de acordo com os comunitários, estão presentes localmente, mas são pouco vistos tendo em vista que tais animais eram encontrados com uma frequência muito mais elevada em tempos remotos, quando as matas encontravam-se mais preservadas do que nos dias atuais. Já a questão hídrica emergiu como um dos pontos de maior destaque durante as travessias realizadas por Alto dos Bois. Visualizamos um número relevante de nascentes que abastecem a região, estando, todavia, algumas delas secas, o que, segundo os moradores, já é resultado dos processos de assoreamento e erosão derivados do desmatamento e plantio de espécies exóticas na região, como o eucalipto nas proximidades dos Córregos Fanadinho e do Capão. Vale ressaltar, também, a recorrente preocupação dos comunitários com a possibilidade de esgotamento das nascentes e, posterior, dificuldade na obtenção de água para usufrutos diversos (abastecimento próprio, dessedentação de animais, irrigação florística, dentre outros fatores levantados durante a visitação). Figura 257: “Pinguela sobre a nascente que deságua no Córrego Fanadinho. Figura 258: Nascente mais seca ao pé da vertente para a gruta Toca do Índio. Figura 259: Mata Ciliar ao redor no Córrego do Capão no trecho que percorre a comunidade de Alto dos Bois. FOTOS: RODRIGUES (2012) Outro elemento significativo na construção da identidade quilombola dessas comunidades, e que foram representados no mapa etnoambiental de Alto dos Bois, foram os fornos de biscoito e os tijolos de adobe. Além de serem utilizado na fabricação de alguns desses fornos, os tijolos de adobe são ainda frequentemente fabricados e utilizados na comunidade para construção de pequenos cômodos ou reforma de casas antigas feitas com esse material (prática tradicional que vem sendo preservada por várias gerações). Como é o 465 caso de Sr. Tião e D. Antônia, que já está possuem suas casas de alvenaria, quase finalizadas, mas que pretendem preservar suas casas antigas: A casa aqui eu não quero desmanchar de jeito nenhum, eu quero arrumar ela toda, fazer uma calçada em roda, rebuçar e largar do jeito que tá, não quero que mexe em nada aí. Aí quem quer desmanchar, eles lá que desmancha, eles lá que desmancha, eu cá não vou desmanchar não (Sr. Tião, Barra do Capão, setembro de 2018). Porque eu tenho uma cozinha ali bonita, mas eu não quis ir pra ela. Eu prefiro ficar aqui nessa bagunça aqui. Não vou desmanchar não. Eu vou tirar, desmanchar aquilo ali oh. Na frente ali eu vou tirar por causa que, pra poder deixar uma pracinha no terreiro, né. Mas aí eu vou pedir os menino pra poder fazer o corredozim, rebuçar e topar nessa aqui. Porque aqui eu quero deixar bem arrumadinho, depois que eu mudar pra lá, arrumar aqui bem arrumadinho, porque de vez em quando a gente tem um leitinho pra poder fazer uns queijim, uns requeijão... doce... aí a gente tendo uma casinha separada, bem fechadinha, pode por até umas telinha na porta, nas gretinha,né... (D. Antônia, Barra do Capão, setembro de 2018). Figura 260: Tijolos de adobe produzidos no quintal do Casarão FOTO: SILVA (2015) Figura 261: Casa de adobe de Sr. Tião FOTO: SILVA (2018) Sobre essa ancestralidade das casas de adobe, encontramos ainda Sr. Lídio, que leva sua vida aos “modos dos antigos”, preservando sua casa de adobe e vivendo de forma mais afastada da sociedade. Sr. Lídio chegou ao Alto dos Bois sozinho e em busca de um lugar para morar, lá foi acolhido pela família do casarão, que lhe concedeu um lugar para construir sua casa e levar sua vida sossegado. Hoje ele é como um membro da família, muito respeitado por todos. Sobre este seu lugar, ele ressalta que: [...] aqui eu gosto daqui! O lugar do nascimento é o lugar da gente né? Aqui o que eu mais gosto é de mim mesmo. Mas aqui eu gosto. Aqui é bom! Aqui tudo que tem aqui foi eu que fiz, esse pé de manga aí fui eu que plantei... essa casa aqui foi eu que fiz... sozim... faz de adobo...eu sou pedreiro, eu faço tudo de uma casa que precisar, eu faço. Eu que fiz essa casa. Não gastei muito tempo não, primeiro eu fiz três cômodos, aí quando foi no outro não eu fiz daqui pra lá, esses dois daqui. Eu fiz tudo sozinho, lenha, essas teia tudo carreguei tudo na carcunda sozinho (Sr. Lídio, Alto dos Bois, dezembro de 2012). 466 Sr. Lídio não é de muitas conversas, vive sozinho em sua casa, nos fundos do Alto dos Bois, e desperta muita curiosidade nos demais moradores da região por seu modo de ser mais pacato e isolado dos outros. Na breve conversa que tivemos com ele, ao lhe questionar sobre sua idade, ele nos contou a história da “lei sem ver” e da “lei de aparecido”: [..] bom nascido, eu sou nascido duas vezes, mas antes eu morava na lagoa, que eu vim pra aqui com quarenta e dois anos... Sabia tudo, que aqui eu sou velho a muitos anos... agora inteirei 80 anos, mas isso aí é de aparecido, só de quando eu apareci tô com 80 anos, mas eu tô mais de 200 anos aqui. Na Lei sem ver né... agora na lei vista, tô com 80. Lei sem vê, é gente sem vê... é na lei sem vê... sem saber da gente sabe? A lei sem saber da gente, agora na lei de aparecido, de nascimento eu tô com 80 e tantos... (Sr. Lídio, Alto dos Bois, dezembro de 2012). Em sua pequena lavoura, para subsistência ela planta milho, mandioca, feijão, banana, café e cana-de-açúcar. Possui até em seu quintal um “escaroçador” ou descaroçador de moer de cana, muito utilizado ainda na região para tirar a garapa, muito utilizada antigamente para adoçar o café, o que justificava, inclusive, a presença de uma peça destas em quase todas as residências da comunidade. Figura 262: Sr. Lídio e sua casa de adobe na comunidade de Alto dos Bois Figura 263: “Escaroçador de cana” encontrado na propriedade de Sr. Lídio. FOTOS: RODRIGUES (2012). Ao visitarmos a propriedade de Sr. Dino e D. Antônia, em Barra do Capão, nos deparamos mais uma vez com uma peça desta, sobre a qual Sr. Dino e o pesquisador Dêga Fernandes, traçaram uma “boa prosa”, cheia de memórias e recordações, à respeito do seu funcionamento. 467 Figura 264: Escaroçador de Cana do Sr. Dino. FOTO: SILVA (2018) Dêga: Aqui todo mundo tem uma tradiçãozinha, fornaia de lenha... todo mundo tem a tradição. Onde que vai acha. Descaroçador de moer cana...moía cana antigamente pra fazer café, pra fazer café era aqui né Dino? Dino: era. Dêga: A garapa pra fazer o café, não usava açúcar, né, quando não tinha rapadura.... Dois home garra de cá, dois home garra de lá, e enfia a cana Dino: Não é um né? Quando panhava demais era dois, né. (risos) mas nós tacava mais era um. Dêga: Um dum lado, e outro do outro. Dino: isso aqui oh, quantas vezes, só eu mais minha muié tirava garapa pra fazer o café... chuva tava descendo assim, oh, e nós garrado aí. Pelejando pra poder moer... (Dêga Fernandes e Sr. Dino, Barra do Capão, setembro de 2018). Assim como o “escaroçador” de cana, os fornos de biscoito também são muito tradicionais nessas comunidades. Seja no interior das casas, ou no quintal, sobre uma cobertura de palhas do coqueiro catolé, não há uma casa em Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão que não tenha o seu forno de barro. E se não tiver, tem sempre uma vizinha próxima que o possui, para fazer as quitandas que não podem faltar na mesa quilombola, como também já ressaltamos anteriormente. Figura 265: Forno de Biscoito sobre cobertura de palha do Coqueiro Catolé (Alto dos Bois) FOTO: SILVA (2015) Figura 266: Forno de Biscoito do Casarão de Alto dos Bois FOTO: ROCHA (2015) E assim, não há como destacar a importância dos fornos de biscoito sem ressaltar também as típicas cozinhas de Alto dos Bois, com seus fogões a lenha, branquinhos, asseados diariamente (principalmente após as principais refeições) com o barro branco, conhecido regionalmente como tabatinga (Figuras 267 a 270). Além da saborosa comida que é preparada sobre a brasa produzida pela queima dos galhos secos, é também ao redor do fogão, assentado “na beirinha”, que o calor da brasa aquece as memórias e vivências que são relembradas pelas 468 comadres, que há muito não se encontravam mesmo morando na mesma comunidade (Figura 268). Figura 267: Fogão a lenha de D. Margarida (Córrego do Lambu) FOTO: ROCHA (2015) Figura 268: Conversa de “cumadres” na beirinha do fogão FOTO: SILVA (2015) Figura 269: Ludimila passando a tabatinga no fogão após o almoço FOTO: RODRIGUES (2015) Figura 270: Fogão a lenha de D. Lia (Casarão de Alto dos Bois) FOTO: ROCHA (2015) O mesmo cuidado que é atribuído aos fogões a lenha, observamos ainda nas panelas areadas que ficam dispostas em estantes de madeira ou sobre as paredes das cozinhas, formando um verdadeiro “quadro” com esse jogo das panelas que se destacam sobre as paredes de pau-a-pique pintadas com a tabatinga (Figuras 271 e 272). Figura 271: Panelas de D. Margarida (Córrego do Lambu) FOTO: ROCHA (2015) Figura 272: Panelas de D. Lia (Casarão de Alto dos Bois) FOTO: RODRIGUES (2012) 469 Mas, como diz o velho ditado, que “panela velha é que faz comida boa”, essas também possuem um lugar especial nas cozinhas de Alto dos Bois, uma vez que são nestas panelas de ferro grosso ou de barro, que são preparadas as deliciosas comidas de fogão a lenha, cujas marcas do sabor se anunciam na camada de óleo queimado que fica sobre essas peças. Figura 273: Panelas “Velhas” de D. Margarida – Córrego do Lambu (Alto dos Bois). FOTO: ROCHA (2015) Assim como a “comida boa” é uma matriz de significado importante para as paisagens culturais de Alto dos Bois, a “pinga boa” também é. Ao longe o alambique da família de Crislaine já ressalta aos olhos. Segundo ela, que é natural de Angelândia, assim que se casou, ela e seu esposo (natural de Alto dos Bois), buscaram um financiamento junto ao PRONAF mais alimentos para começar o negócio do alambique, voltado à produção de rapaduras, já que o outro que funcionava em Córrego do Capão já não estava produzindo mais. Aos poucos foram montando o alambique, e hoje o carro-chefe é a cachaça, sendo a rapadura produzida apenas sob encomenda, pois a saída deste produto é menor. A primeira safra de pinga chegou aos 5.000 litros que foram vendidos principalmente para os bares das comunidades próximas e até mesmo em Angelândia. Há ainda a produção oriunda da cana que eles pegam à meia-parte para o beneficiamento, que agregara um percentual considerável a sua produção. Ao nos contar sobre as dificuldades desse trabalho, Crislaine nos revelou os motivos deles preferirem “alambicar à meia-parte”: Olha a gente tá a procura de cana a meia, se você souber quem tem cana a meia pode falar que a gente ta pegando. O pessoal trás a cana, deixa aqui no alambique, a gente moe, e quando faz a pinga, parte no meio né. Eu acho que assim é até melhor pra gente porque facilita bem, porque meu marido, ele tem que tá cortando e puxando e muiendo, dá três trabalhos, quatro porque tem que lambicar também. E se ele achar a cana no local facilita bem porque aí ele vai só muiê e lambica. E nós aqui a gente mexe com burro, animal né, porque a gente não tem trator, então é um trabalho muito árduo, porque a gente tem que tá puxando a cana no animal, trazendo aqui. Então tem hora que demora muito, essa cana mesmo que a gente fez 5.000 litros dela demorou bem, e essa outra que a gente fez, que eu não sei exato o tanto que deu, essa a meia, a gente fez mais rápido porque aí facilitou, eles cortaram e trouxeram de caminhão. Aí facilitou pra nós, porque a gente puxando no animal é muito cansativo, você não pode trabalhar o dia todo. Igual 8 horas por dia, você tem que trabalhar umas duas, três horas e descansar uma hora ou duas, tornar a pegar. E porque não pode cansar o animal né, e a gente também cansa muito né (Crislaine, Alto dos Bois, 25 anos, dezembro de 2012). 470 Figura 274: Alambique vista da estrada de Alto dos Bois. FOTO: SILVA (2012) Figura 275: Maquinário do Alambique de Crislaine FOTO: SILVA (2012) Outro signo muito presente, não apenas na comunidade de Alto dos Bois, mas também em Córrego do Engenho, Barra do Capão e diversas outras comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha são os fornos de barro, muito utilizados para fazer as quitandas quilombolas. Segundo Carmo, Silva e Gianasi (2018), os fornos de barro, se constituem, nesta região, como importantes ícones identitários, a partir dos quais se consolidam relações socioespaciais que reforçam a importância do “saber-fazer” dos alimentos tradicionais, que são transmitidos entre as gerações. Apesar de o encontrarmos em diversos formatos (como pode ser observado nas figuras abaixo), em sua maioria são construídos de adobe, com lapas quartzíticas na base inferior (para suportar as altas temperaturas) e pintados de tabatinga. Figura 276: Forno de Barro pontudo. Foto: SILVA (2018) Figura 277: Forno de barro arredondado. Foto: COSTA (2015) Assim que a lenha é totalmente consumida pelo fogo, atribuindo ao forno a temperatura necessária para assar as quitandas, as cinzas são retiradas de seu interior com uma pá de cabo bem grande, jogadas ao chão, o forno é limpo com uma “junta de piaçava”, os 471 tabuleiros de quitandas são colocados ao forno, e sua abertura é vedada por folhas de bananeira. E dentro de poucos minutos, biscoitos, bolos e pães saem totalmente assados e exalando um cheiro de tradição, memória e pertencimento, como podemos observar na feição de D. Lia, ao saborear o delicioso biscoito de goma feito por sua filha. Assim, não há como falar dos fornos de barro e não falar sobre os biscoitos de goma, que “escritas” sobre os tabuleiros revelam histórias e lembranças que vão sendo narradas durante todo o seu preparo – feito a várias mãos, senão, não é fazer biscoito de goma. Tivemos a oportunidade, e o prazer, de vivenciar diversos momentos de preparo do biscoito no casarão, participando, inclusive, na sua produção – colocando a mão na massa, nos tabuleiros e saboreando cada momento dessa deliciosa tradição. A goma já não é a produzida pela comunidade, mas o saber-fazer e todo o seu significado, não se perdem, ao contrário, se fortalecem a cada geração pelos valores dessa vivência comunitária que estão associados a ele. Além do cuidado da tradição, cujos saberes são repassados para as futuras gerações por meio desse “fazer coletivo”, de reunir a família para produzir os biscoitos, o cuidado também se dá por meio da materialidade. Os fornos, assim como as paredes das casas, no dia seguinte da fabricação das quitandas, quando já estão bem frios, recebem mais uma camada de tabatinga para ficar bem branquinhos – cuidado este que revela a beleza e ainda a manutenção estrutural dos fornos. 472 Figura 278: Forno tampado com folha de bananeira. Figura 279: Biscoitos assados sendo retirados do forno. Figura 280: Conversa e degustação de biscoitos ao redor do forno de barro. Figura 281: Pesquisador escrevendo biscoitos. Figura 282: Detalhe do biscoito de goma assado Figura 283: Balaio de biscoitos de goma Figura 284: Biscoito de goma sendo colocado para assar. Figura 285: Biscoito de goma assado, pronto para ser retirado do forno. FOTOS: COSTA (2015) Na comunidade de Córrego do Engenho os alimentos também são signos importantes da paisagem, que se destacam, principalmente, na importância da casa de farinha de D. Nora, cuja centralidade principal, também ressaltada no Mapa 24. 473 Mapa 24: Mapa Etnoambiental da Comunidade Quilombola de Córrego do Engenho – Angelândia/MG 474 Atualmente existem 14 casas na comunidade, sendo que, 4 delas, encontram-se abandonadas ou vazias. As 10 famílias de Córrego do Engenho correspondem a aproximadamente 43 pessoas. Com o crescimento dos filhos dos primeiros grupos familiares, ressalta-se que aqueles que permaneceram na comunidade construíram casas novas, abandonando algumas antigas; e aqueles que migraram para outras cidades ou estados correspondem, principalmente, aos filhos dos filhos que partiram em busca de novas oportunidades de trabalho. Em Córrego do engenho o principal símbolo de sua paisagem cultural é o engenho. Mas não é qualquer engenho. A principal referência e centralidade da comunidade é o “Sobradão de D. Nora” (Figuras 286 e 287), onde encontramos ainda a gangorra e a casa de farinha, elementos de extrema importância para a cultura e modo de vida quilombola do Jequitinhonha. Foi também na casa de D. Nora, uma das moradoras mais antigas da comunidade, que encontramos uma peteca, produzida com penas de galinha angola, signo que se associa à sua descendência indígena – das avós que foram “pegas no laço”. Figura 286: Paisagem do sobrado de D. Nôra Figura 287: Embasamento estrutural de pedra seca do Solar de D. Nôra Figura 288: Fornos de Farinha Figura 289: Gangorra na propriedade de D. Nôra Figura 290: Peteca FOTOS: SILVA (2015) 475 Toda a família de D. Nôra participa no preparo dos alimentos típicos de Córrego do Engenho, cuja qualidade é reconhecida em toda a região. São doces, queijos, o requeijão moreno, a farinha de mandioca, bolos, biscoitos e diversas outras quitandas, cujas receitas são guardadas à sete chaves por seus guardiões. Em seu cotidiano é possível observar que muitas práticas são feitas de modo tradicional: a gangorra limpa o arroz e tritura o milho para as criações, as quitandas são assadas no forno de barro, a mandioca é descascada manualmente pelas mulheres; e o coquinho do catolé é quebrado com o uso de uma pedra, práticas essas que se aproximam muito dos costumes indígenas. Figura 291: Filhas de D. Nôra descascando mandioca para a produção de farinha FOTO: SANTOS (2012) Figura 292: Filho de D. Nora retirando o miolo do coquinho da palmeira Catolé FOTO: SILVA (2015) Durante nossas vivências na comunidade, tivemos o prazer de sermos convidados por D. Nora, para acompanhar o processo de preparo da farinha de mandioca. Segundo ela, algumas vezes um dos filhos auxiliam no momento de prensar a massa, mas, a maior parte do processo é realizado por ela e suas duas filhas – Neuza e Cleuza. Ao chegarmos à casa de D. Nora, em uma manhã de terça-feira, o cheiro da farinha secando nos fornos já alcançava a porteira. O som era das pás de madeira sobre as lapas quartzíticas, quentes, virando, de um lado para o outro, a farinha sobre os fornos. Na fabricação, totalmente artesanal, são utilizados ainda alguns utensílios típicos dessa paisagem como as vasilhas de cabaça para trocar a farinha de vasilhame, e a palha do milho para limpar a superfície da pedra, quando se vai fazer os deliciosos beijus com farinha e rapadura, que D. Nora nos presenteou. O processo demanda um dia inteiro, intenso, e de muito trabalho. No dia de fazer farinha, o forno não pode parar enquanto toda a massa não for torrada - etapa que é feita de duas vezes, até que a mesma fique bem sequinha. O almoço desse dia é uma rápida e típica farofa de andu, alimentação forte, para renovar as energias e logo permitir que se retorne para a lida na casa de farinha. 476 Figura 293: D. Nora e suas filhas torrando a farinha Figura 294: Utilização da cabaça no transporte da farinha Figura 295: Farinha sendo torrada em duas etapas. Figura 296: Beiju Doce (farinha e rapadura) Figura 297: Filha de D. Nora preparando os Beijus. Figura 298: Farofa de Andu FOTOS: SILVA (2018) O nosso desejo de conhecer o processo de fabricação da farinha na casa de D. Nora, e a receptividade e o carinho da mesma, ao nos convidar para experienciar esse dia de trabalho, também nos propiciou trocas de saberes, lembranças e olhares de admiração que não podem ser descritos na riqueza de detalhes que representaram em sua vivência. E foi assim, que compreendemos a verdadeira essência da centralidade que D. Nora e sua família 477 representam para estas comunidades, o que vai muito além das questões produtivas, trata-se do sentido de partilha e das lágrimas de saudade que ficam na partida. Figura 299: Visitantes participando do processo. Figura 300: A vivência e a experiência de se torrar a farinha. Figura 301: Olhares e a alegria da troca de experiências na casa de D. Nora FOTOS: RODRIGUES (2018) A paisagem de Córrego do Engenho se divide entre áreas de pastagem – pecuária leiteira, destacando-se no fornecimento de queijo e leite para a sede municipal; agricultura diversificada, também basicamente para a subsistência e venda de excedentes, como: milho, cana, feijão, mandioca, eucalipto e o café. Este último possui grande produção na comunidade, não apenas de grãos, como também de mudas, que são vendidas por toda a região. Nos quintais, também foram encontradas muitas hortaliças e verduras, tais como: beterraba, alface, couve, cebola, salsa, cenoura, alho, cebolinha, abóbora, inhame, etc. Assim como alguns exemplares de plantas medicinais, como: dipirona, erva cidreira, camomila, hortelã, etc. Podemos observar a relação de afetividade com os quintais e sua produção através das singelas palavras de D. Orlinda – “Bonito é quando tá tudo arrudinho, os pezinhos de alface” (Entrevista concedida por D. Orlinda em dezembro de 2012). 478 Figura 302: Horta de D. Nôra FOTO: SILVA (2015) Figura 303: Plantio de mudas de café. FOTO: RODRIGUES (2012) Faz-se necessário destacar ainda que, algumas pessoas mantêm parte da vegetação nativa como reserva, apesar de não possuírem reserva legal averbada. É costume, mesmo em áreas desmatadas, a manutenção dos indivíduos da palmeira Catolé, que possui diversos usos para a comunidade, tais como cobertura de casas e estruturas com palha e fornecimento de palmito. Além disso, são também mantidos alguns indivíduos de madeiras de lei, como a Peroba e o Jacarandá. Foi relatado que ultimamente existe uma grande dificuldade de se conseguir madeira de qualidade na região, devido à grande exploração no passado. Outras espécies têm uso pela comunidade, como por exemplo, a Palmeirinha, utilizada no processo de secagem da farinha. De uma forma geral, o que se observa são pequenos remanescentes de Mata Atlântica dentro de uma matriz dominante de áreas de produção com a predominância de pasto/sujo, pasto/braquiária, Canavial, Milharal, Cafezal, Eucalipto. O uso da motosserra é comum para o beneficiamento de madeira que é utilizada na construção de casas e estruturas. Figura 304: Palmeira catolé preservada em área desmatada FOTO: SANTOS (2012) 479 À medida que vamos realizando o reconhecimento dessa paisagem cultural das comunidades quilombolas de Alto dos Bois, observamos que, apesar da divisão do grupo em córregos/comunidades, há uma interação muito forte tanto das relações familiares, quanto do próprio modo de vida dessas comunidades. Na comunidade de Barra do Capão, por exemplo, essa convivialidade se dá fortemente por intermédio da religiosidade. E é nessa comunidade, inclusive, que encontramos o maior número de igrejas, sejam elas católicas ou evangélicas, como pode ser observado no mapa abaixo. 480 Mapa 25: Mapa etnoambiental da comunidade quilombola de Barra do Capão – Angelândia/MG 481 Na comunidade de Barra do Capão existem 32 famílias somando um total de 141 moradores. Das três comunidades que formam este território quilombola esta é a mais populosa. Além disso, destaca-se ainda por sua centralidade política (posto que além de sediar a sede da associação, os últimos presidentes foram moradores dessa localidade) e religiosa, em decorrência, principalmente, da Capela de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa e das demais sete igrejas que existem nesta comunidade. As missas na Capela de Bom Jesus acontecem de dois em dois meses, como nos conta uma moradora da comunidade de Alto dos Bois, que frequenta a capelinha nesses dias e também nas reuniões da Conferencia dos Vicentinos que são realizados todos os domingos na capela: À missa eu vou. Só que aqui por devido ser zona rural a gente não tem missa frequentemente, todo mês não. Então o padre vem de dois em dois meses, né. Mas quando tem eu faço questão de ir. Eu gosto muito de participar da missa, né. E tem também a conferência, que é uma reunião que a gente faz todo domingo na igrejinha na Barra do Capão. Porque aqui no Alto dos Bois ainda não tem igrejinha ainda, né, a capela [...] A Conferência é uma reunião dos Vicentinos, inclusive eu sou consorcia, faço parte lá (Entrevista concedida por Crislaine, moradora de Alto dos Bois, dezembro de 2012). Na comunidade de Barra do Capão existem três igrejas católicas, sendo a de Nosso Senhor Bom Jesus a mais antiga delas (Figura 305) - cuja origem remonta ao Sr. Geraldo Camargo, uma dos moradores mais antigos, que trouxe a imagem de Bom Jesus da Lapa/BA; e as outras duas de São José, a capela mais antiga e a igreja nova, ainda em construção, uma ao lado da outra como pode ser observado na Figura 306. Figura 305: Igreja de N. Sr. Bom Jesus (Barra do Capão) FOTO: NASCIMENTO (2015) Figura 306: Igrejas de São Sebastião (Capão) FOTO: SILVA (2015) Já as igrejas evangélicas da Assembleia de Deus são quatro, sendo três nas proximidades do córrego do algodão: uma no interior da grota (Figura 307), outra na beira da estrada e uma terceira ainda em construção (Figura 308) em outra vertente da grota do algodão. 482 Figura 307: Assembleia de Deus – Córrego do Algodão. Figura 308: Igreja em construção – Córrego do Algodão FOTOS: SILVA (2015) A quarta igreja evangélica está localizada na Barra do Capão, nas proximidades da igreja de N. Sr. Bom Jesus (Figura 309). Como ressaltam os moradores, a comunidade que mais possui pessoas evangélicas é o Capão (principalmente nas proximidades do córrego do algodão, onde encontramos a maior concentração das mesmas). Figura 309: Igreja Evangélica na Barra do Capão Foto de Ludimila M. Rodrigues, dez./2012. Alguns geossímbolos relacionados à produção também foram observados na comunidade, tais como o paiol, o armazém de alimentos, poços de peixes, e uma antiga roda de ralar mandioca, que até pouco tempo ainda era utilizada pela comunidade, mas que atualmente também se encontra em ruínas. Na cabeceira do córrego do algodão, onde encontramos grande parte dos elementos citados acima, destaca-se ainda a presença de um ponto de coleta de barro tabatinga, tradicionalmente utilizado para pintar as paredes e fogões a lenha das casas da região. Como forma de preservar as estradas de acesso e coletar água da chuva, observamos também a presença de duas barraginhas nas estradas de acesso à grota do algodão. Assim como nas demais comunidades nos quintais também encontramos árvores frutíferas, hortaliças, verduras e plantas medicinais. Os plantios de milho, mandioca, arroz, feijão andu, quiabo, abóbora dentre outros também são presentes na comunidade de Barra do Capão. 483 Figura 310: Geossímbolos do córrego do algodão Elaborado por Ludimila de M. R. Silva março/2016. Todo esse patrimônio vivido das comunidades quilombolas de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão vem sendo reconhecido pelos governantes municipais desde 1999, quando a prefeitura, recém emancipada de Capelinha (em 1997), enviou uma carta ao IEPHA apresentando a importância histórica da Fazenda de Alto dos Bois, e solicitando informações sobre os procedimentos necessários para o seu tombamento em nível estadual. Ainda em 1999, logo após a criação do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural e da nomeação de seus membros, a prefeitura contratou a assessoria técnica da Associação dos Municípios da Microrregião do Alto Jequitinhonha (AMAJE) para elaboração dos dossiês de tombamento. Em fevereiro de 2000, foi encaminhada uma notificação aos proprietários do Casarão a respeito do tombamento municipal, que não seria feito apenas como tombamento do bem, pois o projeto municipal para a região, na época, era de reconhecer o casarão e seu entorno como “Parque Ecológico e Cultural de Alto dos Bois”, já no intuito de desenvolver 484 o potencial turístico da região, como pode ser observado nos folders produzidos para divulgação no ano de 2000 (Figura 311). Figura 311: Folder de Divulgação da Reserva Ecológica e Patrimônio Cultural de Alto dos Bois 485 Assim, sugestivamente, a partir da divulgação, em todo o município das iniciativas destinadas a transformar Alto dos Bois em Reserva Ecológica e Patrimônio Cultural, muitas localidades começaram a resgatar suas referências culturais particulares, como sua gênese; as lendas, mitos e tradições locais (como festas, grupos musicais...), além da utilização de instrumentos e/ ou utensílios característicos do seu cotidiano e ligados à história e cultura peculiares de cada um desses diferentes lugares. Acreditamos que uma das motivações para a construção de um centro de referência da cultura local em Angelândia (município desmembrado de Capelinha) surge no contexto da necessidade de criação de um sentimento de cidadania local. Outro motivo para uma proposição nesse sentido foi a tomada de consciência do elevado grau de devastação das matas nativas da região pelo crescimento das lavouras de café, o que sinalizou a necessidade de preservação de alguns segmentos residuais do bioma na região, o que incidiu, inclusive, da criação da APA IPÊ AMARELO, que abrange toda a porção norte do município. Tendo em vista a opção tomada pela iniciativa preservacionista do importante sítio, a prefeitura, por meio do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural passou a desenvolver trabalhos de pesquisa buscando resgatar a cultura local na perspectiva de “gerar um sentimento de proteção, não só dos bens culturais, mas também ambientais nesse município” (ANGELÂNDIA, 2000b, p. 8). Procurando ativar o sentimento de cidadania (no sentido da valorização e tombamento dos patrimônios culturais do município), o projeto visava, ainda, o desenvolvimento de uma atividade turística com um corte histórico, cultural e ecológico na região (que poderia inclusive abrir caminho para o desenvolvimento de outras formas de trabalho e lazer in loco). No ano 2000 foram produzidos diversos relatórios a partir da coleta de informações com a população local e técnicos da AMAJE, pesquisa bibliográfica, histórica e documental, que possibilitaram a construção dos dossiês de tombamento. Em 2001, foi aberto pela prefeitura o pedido de tombamento junto ao IPHAN, ao qual foram anexados outros documentos complementares solicitados durante a sua análise, além do parecer técnico realizado pela equipe do órgão na Fazenda de Alto dos Bois. O primeiro parecer ao processo foi encaminhado em 2002, pela 16ª Superintendência do IPHAN (Diamantina), no qual o bem é considerado “passível de tombamento estadual” em virtude de seu “valor arquitetônico e etnográfico para a cultura mineira”, representando ainda, segundo a autora do parecer, um “significativo sítio com vestígios, testemunhos materiais da vida sociocultural dos diferentes grupos sociais que ali 486 viveram, especialmente, os indígenas” (IPHAN, 2002, p. 3). O valor histórico e arquitetônico também é ressaltado no parecer como um argumento crucial para o tombamento do bem, uma vez que este consiste em um “importante exemplar da arquitetura rural de Minas Gerais” e “seu tombamento representa a preservação do agenciamento antigo de casa-fazenda com os espaços e elementos tão típicos da vida rural no sertão mineiro” (IPHAN, 2002, p. 3). Assim, para esta relatora, “quem observa hoje, esta construção, que conserva integralmente as soluções arquitetônicas originais, compreende melhor o gênero de vida do fazendeiro e sua simplicidade de morar, atendendo às exigências da vida estritamente rural” (IPHAN, 2002, p. 3). E para enfatizar a relevância de se preservar este bem, a autora elenca algumas da poucas edificações rurais preservadas no Brasil setecentista ou oitocentista, tratando-se, principalmente, das sedes de importantes fazendas coloniais. Exemplares de “casa rural mais simples e rústica da zona pouco povoada do interior mineiro, originalmente de criação de gado, e onde perduram tradições e costumes antigos, não temos nenhum exemplar tombado” (IPHAN, 2002, p. 3). No intuito de atribuir maior peso ao pedido de tombamento do Alto dos Bois, ainda em 2002, a prefeitura de Angelândia solicitou que fossem anexadas ao processo algumas cartas de reconhecimento da importância desse bem para outras doze comunidades adjacentes (Córrego dos Mendes; Sapé Timirim; Vila Sena; Cabeceira do Capão; Córrego do Arrependido; Córrego Tavares; Grota Escura; Córrego do Capão; Santo Antônio dos Moreiras; São Benedito; Córrego dos Ramos e Grota do Barulho) além de carta da Câmara Municipal, Prefeitura e Secretaria de Cultura do Município de Angelândia. Encaminhados para Brasília, os documentos ficaram em análise e solicitação de complementação até o ano de 2009, quando fora emitido o parecer final negando o tombamento em nível nacional. Segundo o técnico responsável pelo parecer, o processo encontrava-se confuso, uma vez que a solicitação do tombamento estava direcionada para o Casarão, situado no interior da Fazenda, a qual estava, ainda, inserida em uma Área de Proteção Ambiental – Ipê Amarelo – que para o técnico do IPHAN, fora criada com a finalidade de se justificar a implantação do Parque Ecológico e Cultural. Além disso, o parecerista ressaltou a falta de clareza quanto à recomendação do tombamento apenas para a edificação ou para esta e seu entorno imediato. Apesar de a prefeitura ter solicitado o tombamento federal e estadual, o parecer destaca que os técnicos anteriores recomendam o tombamento estadual, mas não fazem recomendações a respeito do seu reconhecimento a nível federal. Para este relator, a fato de tratar-se de uma propriedade privada regulamentada, 487 dificultaria ainda futuros investimentos de recursos públicos. Outro aspecto sobre o qual se justifica sua negativa é a falta de aprofundamento nas referências históricas que são mencionadas nos dossiês. Para o relator, não há evidências concretas de que o local onde se aquartelara a Companhia dos Dragões e onde se situava o aldeamento indígena seja efetivamente na atual Fazenda de Alto dos Bois. Argumento este que jogamos por terra, ao trazer nos capítulos anteriores, a análise da cartografia histórica regional, além de uma série de documentos do Arquivo Público Mineiro e do acervo particular da família que reside no Casarão, comprovando que se trata do mesmo local. Indícios estes, que são ainda reforçados pelo próprio reconhecimento da população local dos municípios de Angelândia, Capelinha, Minas Novas, Malacacheta e Setubinha (como também já ressaltamos ao longo do trabalho). Assim, em 2011 o processo foi arquivado no IPHAN e também não teve andamento junto ao IEPHA. Além disso, no âmbito municipal não houve um consenso entre prefeitura e proprietários a respeito do tombamento do bem (decorrente, principalmente, de desavenças políticas e de promessas e ações municipais que desagradaram os moradores de Alto dos Bois). Todavia, o bem consta como inventariado como patrimônio cultural de Angelândia, juntamente com outros bens de natureza material e imaterial associados a ele, tais como a banda de taquara e as comunidades quilombolas da região. No ano de 2014, a Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico do Ministério Público de Minas Gerais elaborou uma nota técnica com o objetivo de analisar as medidas de proteção que estavam incidindo sobre a Fazenda de Alto dos Bois, reforçando sua importância histórica e cultural, além de solicitar a prefeitura o encaminhamento do tombamento municipal e estadual (junto ao IEPHA). Neste relatório, reforça-se mais uma vez:  Valor arquitetônico e estilístico, uma vez que preserva o estilo e características originais do período colonial.  Valor histórico e de antiguidade, uma vez que se trata de uma edificação provavelmente do século XVIII.  Valor de raridade, por ser um dos poucos bens culturais associados aos aldeamentos indígenas e aos destacamentos militares criados no período colonial.  Valor cognitivo, que são associados à possibilidade de conhecimento. A existência das edificações permite que se conheça a técnica construtiva utilizada em edificações do período colonial, a forma de produzir, viver e morar dos antigos habitantes.  Valor afetivo, pois se constitui em referencial simbólico; em espaço de memória e identidade para as comunidades adjacentes a ela (MPMG, 2014, p.19-20). A promotoria ressaltou que a importância histórica e cultural de Alto dos Bois tem sido evidenciada também pelas pesquisas e trabalhos de campo que estamos desenvolvendo 488 na região desde 2011, assim como, pelos professores do Laboratório de Arqueologia e Estudo da Paisagem da UFVJM. Como considerações finais da nota técnica o MPMG, ressalta que: A região de Alto dos Bois apresenta alto potencial arqueológico, sendo fundamental o aprofundamento do levantamento histórico, bibliográfico e documental, bem como a realização de pesquisas arqueológicas que possibilitem maior conhecimento sobre a região que abrigou, no período colonial, aldeamentos indígenas e um destacamento militar. É importante ressaltar que ainda são raros os bens culturais relacionados à história e à cultura indígena que se encontram protegidos no Estado de Minas Gerais, fato que reforça a necessidade de adoção de mecanismos efetivos para preservação do patrimônio cultural que a região de Alto dos Bois abriga. Especificamente com relação à sede da Fazenda Alto dos Bois, pode-se afirmar que a edificação possui valor cultural, com atributos e significados que justificam a sua permanência.Verificou-se que a Fazenda Alto dos Bois foi inventariada pelo município de Angelândia no ano de 2011, assim como o cemitério que se localiza em seu entorno. Sugere-se, portanto, a proteção por meio do tombamento municipal do conjunto formado pela Fazenda Alto dos Bois e pelo cemitério. Sugere-se ao município de Angelândia a elaboração do dossiê de tombamento do bem cultural, seguindo a metodologia sugerida pelo IEPHA, para fins de pontuação no ICMS Cultural. O Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural deverá ainda definir delimitação do perímetro tombado e de entorno de tombamento e as diretrizes de intervenção para a conservação e manutenção da Fazenda Alto dos Bois. Dada a relevância histórica, arqueológica e cultural de Alto dos Bois no contexto da colonização dos sertões de Minas Gerais, sugere-se seja o IEPHA instado a analisar a possibilidade de tombamento estadual da Fazenda Alto dos Bois, que se insere no universo dos bens culturais relevantes para a história do Estado (MPMG, 2014, p.19-20). Além desse reconhecimento de alguns órgãos do governo estadual, é importante ressaltar que, após o reconhecimento como comunidade quilombola, em 2010, o qual ocorreu muito rapidamente em decorrência, principalmente, da importância histórica do Casarão de Alto dos Bois, a própria comunidade passou a buscar pela proteção desse bem tão significativo e expressivo de sua própria identidade cultural. A luta pela preservação e restauração do Casarão de Alto dos Bois, no entanto, já faz parte do cotidiano de seus moradores, que como ressalta D. Lia, sonham em ver a fazenda e todo o sítio histórico cultural funcionando como nos tempos de seus antepassados. Se eu não tivesse aqui essa casa não tava igual hoje, já tinha caído. Por quê? É por causa que eu nasci e criei aqui, eu tenho pena de ver tudo caído aí. Hoje eu fico satisfeita, que ele tava aí. Porque daqui a tempo que vai acabando os mais veio, vai chegando os mais novo, taí pros neto, bisneto vê, do mesmo jeitinho igual era. Tudo, tudo a mesma coisa... (D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). O desejo de D. Lia e de seus filhos de preservar o casarão, o moinho d’água, a gangorra e todas as histórias de seus antepassados, e todo esse patrimônio material e imaterial de sua família que é fortemente atrelado à história de formação das comunidades do entorno, como já apresentamos anteriormente, fica evidente em relatos como esses: E isso aí pra falar bem a verdade, de vez enquanto quando eu to aqui sozinha, que eu durmo bastante, eu sei lá não sei o que que acontece que ou gira, ou eu sonho, que eu acordo com o barulho do moinho na cabeça, bruuu... bruu... girando o moinho, porque quando ele acaba de moer o milho, que ía moer só a pedra sozinha, que ele 489 ficava fazendo aquele barulho. Hum... mas me dá uma paixão, eu tenho saudade. Mas não tem ninguém pra poder botar minhas coisa como era antigamente, e o que eu achei eu tinha vontade de deixar. Eu só acho triste quando eu desço aí pra baixo que eu vejo só mato, aí eu olho, eitha, quantas vezes eu fiz farinha de milho aqui, cadê aquela gangorra pra gente ouvir o barulho dela, mas era um barulho tão bonito, eu tenho tudo na cabeça aqui, tudo, tudo... (D. Lia, Alto dos Bois, dezembro de 2012). O desejo de D. Lia é compreendido por seus filhos como um compromisso muito valioso e sério que eles possuem para com seus pais. Mesmo os filhos que vivem em outras cidades estão sempre acompanhando e preocupados com a preservação e conservação do Casarão. Em 2011, seu filho Edson, em um dos movimentos de retorno da migração sazonal, buscou auxílio de todos os lugares para conseguir reformar o telhado que colocava em risco a própria estrutura da residência de seus pais. Edson nos contou um pouco de como foi esse desafio na época, reforçando, inclusive, para sua mãe, o seu compromisso de manter esse patrimônio mesmo após a sua partida: Quando eu fui reformar isso aqui, um punhado de gente dizia, ah que dia rapaz, como é que cê vai reformar isso aqui? Novela, pois eu joguei tudo pro chão, eu ganhei essas telhas. Quando tava arrumando isso aqui tava dessa altura de pucumã, pau podre. Tirei essa madeira lá no Córrego do Engenho lá, terreno de Ciliro, essas gema de ovo aí oh. Isso aí também se eu to com 33 e esses que ainda tá aí, ta ái, imagina eu, eu vou morrer e .... já falei isso com mãe, se for o caso ela pode morrer, o dia que ela tiver que morrer. Ela pode ficar tranquila que, enquanto eu tiver vivo, eu vou manter isso aqui. Ela lutou muito por isso aqui, se tem uma pessoa que lutou por isso aqui, foi mãe, porque na época que neném Pimenta veio, nóis já era grande rapaz, e nóis tava pro mundo, e ela garrou nisso aqui, portanto ela saiu na foice com Nenem Pimenta aqui, oh. Não... aí depois que.. (Edson, Alto dos Bois, dezembro de 2012). No intuito de contribuir de uma maneira mais consubstancial com o reconhecimento e valorização desse importante patrimônio cultural da região, realizamos no período de 23 a 29 de setembro de 2018, uma Exposição Itinerante intitulada: “Alto dos Bois: geografia e história das paisagens de um lugar da memória e de vivências comunitárias”. A ideia da exposição surgiu a partir de um convite da prefeitura de Angelândia, para participarmos do “Arte e Sabor – Festival Gastronômico do Jequitinhonha e Mucuri” juntamente com a comunidade, que iria expor seus produtos em dois dias de evento. Sabendo da realização do III Encontro de Flautas o Jequitinhonha no final de semana anterior, nos programamos para apresentar nossos painéis em três momentos, como pode ser observado no convite abaixo. 490 Figura 312: Convite da Exposição Itinerante Com a finalidade de apresentar alguns dos resultados de nossas pesquisas, organizamos a exposição em três painéis: i) “Alto dos Bois: Aldeia, Aldeamento, Quartel/Destacamento Militar”; ii) “Fazenda Alto dos Bois: uma tradição familiar” e iii) “Alto dos Bois: vivências comunitárias quilombolas (os painéis, em escala reduzida, encontram-se no Anexo 3). Produzimos ainda um folder com um breve resumo dos propósitos de nossa exposição, os quais foram impressos pela prefeitura a fim de serem entregues para os visitantes que fossem conhecer a exposição durante nossa estadia em Angelândia (Figura 313). 491 Figura 313: Folder de Divulgação (parte externa e interna) No primeiro dia da exposição, durante a realização do III Encontro de Flautas do Jequitinhonha, tivemos a oportunidade de montar nossa exposição na tenda das oficinas, onde 492 as crianças, jovens e adultos além de aprenderem como fabricar suas flautas de PVC, puderam ainda conhecer um pouco da história de sua região. Algumas pessoas das comunidades que já conheciam essas histórias, ou esses lugares, desenvolveram diversos diálogos relembrando alguns relatos de vida; já outras, como alguns jornalistas ou ativistas da região, ressaltaram a importância de se fazer algo pela preservação deste importante patrimônio histórico e cultural. Apesar de ter realizado poucas intervenções durante a apreciação dos painéis, pude observar que os mesmos despertaram o interesse de jovens, adultos e idosos (Figuras 314 a 317). Figura 314: Exposição dos Painéis. FOTO: SILVA (2018) Figura 315: Apreciação da Comunidade. FOTO: SILVA (2018) Figura 316: Grupo de Marujada lendo os painéis. FOTO: SILVA (2018) Figura 317: Ludimila, Dêga Fernandes (pesquisador local) e Letícia e Daniel (organizadores do evento). FOTO: RODRIGUES (2018) O diálogo com os jovens durante o evento e o apontamento de alguns sobre o fato de já terem estudado sobre a região de Alto dos Bois na escola, nos levou a refletir sobre a possibilidade de levar a exposição para as escolas do município. E assim, por intermédio da secretaria de cultura do município (da figura de Nicinha), e do Professor José Soares, conseguimos agendar um dia de palestras na Escola Estadual Augusto Barbosa, onde 493 ministrei, no período da manhã e da tarde, em torno de 20 palestras (de 20 minutos) apresentando os painéis e deixando um espaço ao final para que os alunos pudessem ver os painéis e sanar suas perguntas e dúvidas. Muitos relataram um pouco sobre suas experiências e vivências em Alto dos Bois. Alguns alunos que, inclusive, moravam nas comunidades de Alto dos Bois, Córrego do Engenho e Barra do Capão, se identificaram na árvore genealógica, auxiliando-nos a completar algumas lacunas que faltavam. Figura 318: Apresentação dos painéis na Escola Estadual Augusto Barbosa FOTO: SOARES (2018) Figura 319: Professor José Soares e seus alunos fazendo a leitura dos painéis FOTO: SILVA (2018) Figura 320: Ludimila apresentando os resultados da pesquisa. FOTO: SOARES (2018) Figura 321: Alunos tentando se localizar na genealogia da comunidade. FOTO: SILVA (2018) Nesta escola trabalhamos principalmente com a faixa etária de 10 a 19 anos. Já na Escola Estadual Iveta Gomes Santana, realizamos cinco palestras para alunos do ensino fundamental (7 a 16 anos). Nossas apresentações foram organizadas no refeitório, de forma que a cada fala, as professores encaminhavam de 4 a 5 turmas para o nosso auditório no refeitório. A fim de viabilizar uma melhor comunicação com os alunos, a escola nos disponibilizou, inclusive, uma caixa de som e microfone para que todos pudessem me ouvir, 494 já que estávamos em um ambiente aberto (Figuras 322 a 325. Assim como na escola anterior, após cada uma das minhas falas, os alunos eram convidados para verem de perto os painéis. Figura 322: Refeitório da Escola Iveta Gomes Santana FOTO: SOARES (2018) Figura 323: Participação dos alunos FOTO: MACHADO (2018) Figura 324: Apreciação dos painéis e perguntas para a pesquisadora FOTO: SOARES (2018) Figura 325: Equipamento de som fornecido pela escola. FOTO: SOARES (2018) Entre palestras, entrevistas e visitas às comunidades, realizamos ainda um encontro com a comunidade, onde entregamos para eles os panfletos, um DVD com um minidocumentário que produzimos com os registros que realizamos durante a Festa de Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa em 2015, apresentamos os painéis e realizamos ainda uma reunião para conversamos um pouco sobre: “o que é ser quilombola” e “qual o papel da associação quilombola na luta e conquista por seus direitos”. Para iniciar o diálogo, logo após os agradecimentos por toda a partilha nesses anos todos de pesquisa, nós apresentamos para a comunidade o documentário – “QUILOMBOS DO JEQUITINHONHA: SER QUILOMBOLA” – produzido pela Rede Minas nas comunidades quilombolas do município de Chapada do Norte. Durante a exibição do filme, muitos identificaram amigos, familiares e diversas práticas culturais que também são presentes em suas comunidades. 495 Figura 326: D. Lia e seus familiares assistindo o DVD da Festa de N. Sr. Bom Jesus da Lapa FOTO: SILVA (2018) Figura 327: Apresentação dos Painéis no Casarão FOTO: RODRIGUES (2018) Figura 328: Apresentação do documentário “Quilombos do Jequitinhonha” FOTO: SILVA (2018) Figura 329: Sr. Preto, D. Lia e seus filhos lendo os painéis FOTOS: RODRIGUES (2018) Figura 330: Apresentação do documentário Figura 331: Foto Oficial de todos os presentes na reunião na Comunidade de Alto dos Bois FOTOS: SILVA (2018) Ao conversarmos sobre essas evidências, eles foram destacando, ainda mais, tantas outras características que os definem como quilombolas do Vale do Jequitinhonha. Um 496 dos aspectos muito ressaltados, inclusive, foi o papel da associação neste reconhecimento, assim como as dificuldades de se conseguir benefícios que atendam às necessidades de todos. Frente ao debate acalorado que ali se estabelecia, me recordei das primeiras reuniões que tivemos com a comunidade em 2011 e 2012, quando eles pouco sabiam o que era ser quilombola. O envolvimento dos atores locais nesse processo se configura não apenas como uma emergência identitária destas comunidades e grupos, mas também como um exercício de novas territorialidades na região, uma vez que tais comunidades passam, nesse processo, a se reconhecerem comunitariamente a se apropriarem imageticamente de seus territórios. O resgate sociocultural por meio das histórias possibilitou que as mesmas verificassem as convergências e proximidades histórica, cultural e étnica que as interconectam tendo como exemplo exponencial dessas trajetórias etnopolíticas, em curso, a reafirmação étnica e a dinâmica reterritorializante das comunidades remanescentes de quilombos (HAESBAERT, 2007). O auto-reconhecimento destas comunidades como quilombolas desencadeou, aliás, no reconhecimento dessa nova realidade que se instala no município, e que desencadeia na necessidade da promoção de práticas que possibilitem o desenvolvimento social, cultural e econômico das comunidades envolvidas. Vale ressaltar que o reconhecimento desse importante patrimônio cultural vivido de Alto dos Bois agrega também à região um valor etnoambiental e ecoturístico, propiciando ademais, uma nova possibilidade de renda e lazer para a população local na perspectiva da sustentabilidade cultural, inserindo, inclusive, os núcleos quilombolas num processo instigante e estimulante de autodefesa e etnodesenvolvimento. O lugar poderia se transformar consequente, e consecutivamente, em foco de programas de educação ambiental e patrimonial direcionados a atores da região a exemplo dos estudantes de vários graus de ensino. E foi exatamente isso que aconteceu logo após a nossa partida. Em outubro de 2018, a pedido de seus alunos, o professor José Soares realizou um trabalho de campo no Casarão de Alto dos Bois e na Cachoeira do Moinho, o qual, segundo o mesmo: [...] foi uma viagem bastante empolgante! Nós organizamos aqui na escola, levamos a turma de administração. Levamos também a turma de aprofundamento do ENEM. Nós chegamos primeiro no casarão. A gente se reunião, né, lá no terreiro em volta do Casarão. A gente falou um pouco da história de Alto dos Bois, na verdade a gente tentou repetir aquela história que você contou pra eles lá, né, lá na aula sua. Né, e aí a gente foi passando pra eles aos poucos, pra depois eles entrar e fazer a vista, na casa. A D. Lia não estava, estava só o Seu Preto que recebeu a gente muito bem! Certo! E fomos também no cemitério, fomos também na cachoeira. E levamos comida e carne pra gente fazer um churrasquinho lá na Cachoeira do Valmir, e nós ficamos lá até a tarde. Depois nós discutimos um pouco com eles sobre o Alto dos 497 Bois, sobre a importância, sobre a importância também do turismo na região, né. Além de conservar o patrimônio histórico e cultural, a importância também do turismo pra região. A gente discutiu também a falta de água lá do Seu Preto, Seu Preto não tá tendo água lá, e a gente discutiu também com eles a respeito da preservação, da importância da preservação do patrimônio. A gente também pensou numa ideia da gente fazer um bingo e todos compartilharem, e todos ajudarem para angariar recursos pra ajudar o Seu Preto também a manter aquele casarão. Então, nós vamos fazer um bingo de um valor, por exemplo, de R$ 500,00, e todos os alunos vão ajudar a vender as cartelas, né, pra gente ajudar também o seu Preto a manter o casarão. E manter aquela casa lá intacta! Então a partir de agora a gente vai criar esse espírito também de solidariedade, pros meninos também ajudar de alguma forma, não ficar só esperando da prefeitura, do município. E a gente quer também unir a comunidade, unir os alunos, em prol lá do Patrimônio Histórico. Foi mais ou menos assim! O Lu também nós citamos também você, muito na nossa fala, porque eu acho que você criou assim um espírito de força, né, deu força pra gente fazer essas visitas. Né, eu acho que a partir do momento que você contou toda aquela história do Alto dos Bois, que você tentou envolver os nosso alunos, isso motivou também os nosso alunos a querer ir visitar. E eu acho que criou neles uma outra expectativa. E o tempo todo a gente comentou, ne, a importância de você, a importância do seu papel na comunidade, a importância também da sua pesquisa. Foi muito bom você, acho que você, ter defendido aí essa tese do Alto dos Bois, muito importante pra nossa história! (Professor José Soares, Angelândia, out/2018). Figura 332: Visita de Campo do Professor José Soares e seus alunos no Casarão de Alto dos Bois (Out/2018) FOTO: SOARES (2018) 498 Figura 333: Visita a Cachoeira de Alto dos Bois Figura 334: Visita ao Cemitério de Alto dos Bois Figura 335: Roda de conversa com Dêga Fernandes no Casarão de Alto dos Bois Figura 336: Visita a cachoeira do Moinho FOTOS: SOARES (2018) Quando recebi essas notícias de meus parceiros de pesquisa, e da felicidade compartilhada neste reconhecimento dos jovens, da comunidade e dos moradores de Alto dos Bois, a felicidade e o sentimento de realização de um sonho tomou conta de mim. E é por relatos como esse, do Professor José Soares, que acredito na força que essas comunidades possuem e no nosso papel de pesquisadores-mediadores, cuja principal função se limita a despertar esses sentimentos e atitudes que, apenas as pessoas do lugar, podem anunciar e trazer à sua vivencia cotidiana, pois, patrimônio de verdade é aquele que se vivencia nas lembranças do passado, nos desafios e dificuldades do presente e nos sonhos e perspectivas do futuro. E é por isso que Alto dos Bois é história e vivência. Histórias de uma família que luta pela perpetuação de seu patrimônio, que só se reconhece enquanto verdadeiro patrimônio (material ou imaterial), a partir da vivência comunitária de suas paisagens culturais. Paisagens essas que finalizo por aqui, com o mais puro sentimento de gratidão frente as palavras de D. Júlia: 499 Obrigada Ludimila! Especialmente é você sabe, você e muito especial! Se não fosse através de Deus e você não tava acontecendo essas coisa tão bonita, tão maravilhosa. Saiba que você é uma pessoa muito importante, pra Deus e pra todos nós! Você não mede esforço, sai de longe, fica fora do marido, esse tempo todo pra poder vir, e tá compartilhando com nós essa beleza! Por isso a gente gosta de tá compartilhando as fotos com você, as coisa do acontecimento, isso foi acontecimento de você mesma, através de você que tá acontecendo essas maravilha, tá! É nós que tem que agradecer você muito por isso tá! Pedi Deus que nos ilumine, dê bastante força, bastante sabedoria mais que você tem. E que você continue sendo essa pessoa meiga, essa pessoa muito inteligente, essa pessoa amorosa, amada por Deus, tá! Com o seu carinho embeleze mais ainda, né, esse projeto aqui , esse trabalho maravilho que você faz. Tá bom Ludimila! Nós que tem que te agradecer. Eu também fico muito emocionada de ver quanta maravilha, né. Você vê que quando a pessoa tem amor, que quer fazer as coisa, as coisa acontece né! Porque que esses poder público né, tanta gente que tem bastante dinheiro, que poderia tá investindo, fazendo tantas coisa bonita, mas não faz, né. Mas pode ir na certeza que o seu trabalho é muito mais importante do que o deles, tá bom Ludimila! Que Deus abençoe! (D. Júlia, Barra do Capão, outubro de 2018). 500 Considerações Finais Não há como finalizar essa longa jornada de estudos e dedicação à compreensão e identificação das paisagens culturais do Vale do Jequitinhonha, sem me remeter ao mesmo sentimento de fascínio e inquietações que o conhecimento dessa realidade desperta naqueles que chegam por lá. Ao colocar-me aberta a esta sabedoria do mundo vivido desses guardiões da geograficidade do Vale, fui presenteada com uma geografia dos sujeitos, que apenas a vivência e a experiência nessas paisagens, poderiam agregar à minha formação enquanto geógrafa e pessoa. O aprendizado é principalmente de valores. Valores que muitas vezes acabam se perdendo no cotidiano agitado e competitivo dos grandes centros urbanos, onde o tempo já não pertence mais ao domínio dos sujeitos. Acredito, que quando autores como Claval (2002), Lowental (1985) e Tuan (1985) buscavam trilhar a compreensão e a necessidade de se voltar às “geografias vernaculares”, “geografias pessoais” e “consciência geográfica”, respectivamente, era esta etnogeografia das paisagens culturais e da busca pela compreensão do “homem inteiro, com seus desejos de bem-estar” e “tudo que ele possui de social e religioso”, como ressaltava Sion (1938, p.461) que eles estavam verdadeiramente defendendo. E foi por meio dessa etnogeografia das paisagens culturais do Vale do Jequitinhonha, e do aprofundamento no estudo da configuração da identidade regional desses sujeitos, que consegui identificar e compreender esse movimento de resistências da cultura popular marginalizada e oprimida, que se configura em distintas escalas e localidades do Vale. Trata-se de uma identidade regional que se consolida a partir do mito fundador comum da resistência, seja por meio dos estudantes, artesãos e artistas locais, que em resposta ao preconceito, criaram um movimento de valorização cultural do Vale; ou ainda do surgimento de jornais locais às mídias sociais atuais para divulgar e colocar em diálogo essas iniciativas que se estruturam nos grotões do Jequitinhonha. E independente da maneira como essas iniciativas se estabelecem, é nesse cotidiano de paisagens culturais de singulares riquezas sociocultural e política, que a resistência se revela enquanto elemento primordial do desejo de construção de um destino comum partilhado. Partilha, que se manifesta por meio do sentimento de coletividade e de comunidade, que é intrínseco a este modo de ser e viver no Vale. Resistência, que também não se apresenta apenas por meio das lutas políticas pelo reconhecimento dos direitos adquiridos por essas comunidades, estruturando-se de forma cada vez mais articulada por meio da formação das comissões regionais e redes de diálogo e trocas 501 de experiência; mas também, pelo próprio desejo dessas comunidades de retomar muitas práticas culturais de seus antepassados que se encontravam adormecidas. E é nesta conexão entre passado, presente e futuro que as comunidades constroem seu protagonismo etnopolítico, por meio da sabedoria dos mais velhos e do olhar inovador e empreendedor dos mais jovens. Além disso, apresentamos no trabalho a importância da construção de parcerias com agentes governamentais e não governamentais, universidades e entidades privadas, desde que estas ações sejam construídas a partir dos desejos, demandas e propósitos dessas comunidades. E é nesse sentido, que o uso do método etnogeográfico se mostrou pertinente no desenvolvimento desses projetos, uma vez que, para esta concepção metodológica, o trabalho (ou a parceria) se inicia pela percepção que estes sujeitos têm do mundo, ou seja, pelo reconhecimento dos valores que norteiam seus desejos e ações. Nesse sentido, acreditamos que não basta elaborar projetos de desenvolvimento social que visem a melhoria da qualidade de vida das populações sem compreender o seu modo de vida e construir, junto com eles, alternativas, a partir do estímulo e construção conjunta dessas atividades. Assim como foi o projeto de formação dos agentes quilombolas realizado pelo CEDEFES no médio Jequitinhonha, como apresentamos ao longo do texto. Ou ainda, em projetos que começaram por meio de uma pesquisa acadêmica, e que se desdobraram em ações de fomento e valorização de práticas culturais específicas desses territórios, como o Encontro de Flautas do Jequitinhonha. A mobilização das comunidades quilombolas em reuniões regionais e a própria criação de redes de comunicação (por meio do facebook e whats app), também contribuíram consideravelmente no processo de fortalecimento identitário e de emergência etnopolítica dessas comunidades. Dinâmica que, inclusive, vem sendo também construída nessas localidades pela ação das comunidades eclesiásticas de base e pelos movimentos sindicalistas desde a década de 1960. A busca pela compreensão das paisagens culturais pelos olhares, percepções e dinâmicas cotidianas e políticas desses sujeitos levou-nos ainda a refletir sobre o papel do reconhecimento da Chancela de Paisagem Cultural Brasileira. É fato que o Vale do Jequitinhonha, com todo o seu histórico de formação territorial, identitária e cultural, como demonstramos no trabalho (e que vem sendo ratificado por diversos pesquisadores), constitui- se uma importante Paisagem Cultural Brasileira. Paisagem que, inclusive, se consolida por meio dessa afirmação da resistência e resiliência histórica, política, cultural e ambiental do Vale. E mesmo sem a “proteção” dos órgãos patrimoniais, essas comunidades vêm preservando e resgatando seu patrimônio de maneira intrínseca ao seu próprio modo de vida, 502 ou seja, cuidar e resguardar o patrimônio material e imaterial do seu povo faz parte dos valores dessas sociedades. Nessa perspectiva, a importância do seu reconhecimento, junto ao IEPHA e ao IPHAN, estaria vinculada, principalmente, à institucionalização dessas práticas no âmbito da legislação específica, considerando, inclusive, a sua compreensão de forma integrada, enquanto uma paisagem cultural, e não apenas enquanto bens materiais ou imateriais isolados. Além disso, o reconhecimento faz-se importante ainda nos embates que essas populações enfrentam com os interesses estritamente mercantilistas de grandes empresas da região que ameaçam a manutenção de suas paisagens (incluindo, seu território étnico, seus lugares de referência simbólica, a qualidade da água, do solo, condições de morada, seus sistemas de valores e práticas culturais, etc.). Assim, para além da proteção sobre os territórios, garantida pela demarcação dos territórios junto ao INCRA, o reconhecimento do Vale do Jequitinhonha e suas comunidades tradicionais contribuiria ainda para a conservação e salvaguarda de todo esse sistema de valores, que não se constitui apenas localmente (em cada comunidade), mas por meio de uma rede que se estabelece entre elas. Ressalta-se que a trama identitária do Jequitinhonha também se estrutura como um elemento importante dessas paisagens culturais, presente, inclusive, desde a configuração desses territórios com a chegada dos portugueses à formação das comissões e associações regionais de artesãos, músicos e comunidades tradicionais. Da mesma maneira que no Vale do Ribeira, onde o reconhecimento enquanto Paisagem Cultural Brasileira viabilizou o registro do Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas, contribuindo para a manutenção de muitas práticas de manejo que vinham sendo ameaçadas, inclusive, pelos órgãos governamentais, no Jequitinhonha também há uma série de sistemas e modos produtivos singulares que demandam essa certificação. O avanço das monoculturas sobre o cerrado, a destruição das matas nativas e a depredação de importantes cursos d’água tem colocado as práticas tradicionais dessas comunidades cada vez mais em risco nessas regiões. Como fazer o fubá de moinho d’água, se a bica já secou? Como fazer o mutirão e a maromba se os camaradas estão todos na migração sazonal? Diferentemente do que se acreditava nos primeiros planos desenvolvimentistas impostos à população da região na década de 1960, as monoculturas não viabilizaram oportunidades de emprego e muito menos melhoraram a qualidade de vida dessas pessoas, pelo contrário, contribuíram ainda mais para o êxodo rural – o qual a qualquer esperança de geração de renda é facilmente reversível, pois o sentimento de pertencimento daqueles que 503 saem lhes remete a todo instante às suas paisagens originais. O desejo de voltar é acalentado pelo sabor do biscoito de goma, da broa de fubá de moinho d’água e do doce de marmelo que é levado pelos familiares em visitas a seus entes queridos, que residem em outros estados, facilmente se materializaria no retorno à sua comunidade, se lá houvesse qualquer indício de oportunidade de trabalho. O que reforça ainda mais a importância de se reconhecer o Vale do Jequitinhonha como uma Paisagem Cultural Brasileira, posto que, assim como acontece no Ribeira, esse processo poderia fomentar uma série de ações dos próprios sujeitos sociais locais, de entidades públicas e privadas e inclusive da sociedade envolvente que passa a ter outro olhar para essas realidades, incitando, inclusive, o desenvolvimento de algumas atividades turísticas, que poderiam agregar valor e gerar uma renda alternativa para essas comunidades. Não concebemos que o turismo irá sanar suas demandas econômicas, mas ressaltamos que o desenvolvimento dessas atividades por meio do turismo de base comunitária, além da complementação da renda familiar, tem viabilizado ganhos, principalmente, sociais, culturais e humanos de trocas de vivências e experiências que transformam as concepções de mundo daqueles que tem a oportunidade de vivenciar a realidade dessas comunidades. Transformação esta pela qual, inclusive, também passamos a cada visita que realizamos a este patrimônio vivido do sítio histórico-geográfico de Alto dos Bois. Assim como a diversidade e riqueza cultural do Vale nos impressionou e instigou no intuito de compreender a configuração de suas paisagens culturais, a existência desse Casarão, de quase 300 anos de história vivida e rememorada por seus moradores a cada objeto que se manuseia, e a cada cômodo que se adentra, também gerou em nós um desejo imenso de nos aprofundarmos no estudo dessas paisagens pretéritas, atuais e do futuro. E foi, a partir do estabelecimento de relações de amizade, confiança e do desejo de descobrir cada detalhe dessa história, que se encontrava nos documentos antigos guardados com tanto zelo por essas famílias, que tivemos a oportunidade de reviver histórias contadas pelas cartas, poemas e cadernos de escrivão, neste retorno ao passado que é tão intenso e presente na memória e vivência atual dessas comunidades. Não seria possível, de forma alguma, compreender a dinâmica sociocultural de Alto dos Bois, e o próprio sentido que esta toponímia carrega para a identidade regional, sem realizar esta verdadeira imersão no seu passado. Exercício que realizei com um desejo e prazer imensurável, por meio da leitura atenta dos documentos, e da busca de indícios que estabelecessem a conexão entre as histórias narradas por eles e as referências ao quartel de Alto de Bois que encontramos em algumas correspondências oficiais 504 localizadas no Arquivo Público Mineiro e em cartografias históricas desde o início do processo de colonização da região. A proximidade e o vínculo que estabeleci com essas comunidades me fez sentir parte dessa história. A reconstrução da genealogia com os mais velhos e mais novos, permitiu-nos, por meio da constituição familiar dos sujeitos, compreender inclusive suas espacialidades em âmbito regional, estadual e nacional explicitando para nós as rotas dos fluxos migratórios sazonais, as principais localidades para as quais os sujeitos se deslocavam, e ainda se deslocam, em busca de melhores oportunidades de serviço. A catalogação exaustiva de todos os esses documentos, entremeou-se, assim, as lágrimas da leitura de uma carta saudosa de uma mãe que não vê seu filho a mais de 10 anos, despertando em mim sentimos ainda não experienciados. Assim como a descoberta de um cotidiano que se preserva em diversos aspectos, desde o início do século XX, hábitos, práticas e vivências de uma realidade pautada em outros valores, com os quais temos, inclusive, muito a aprender. Aprendizado que perpassou ainda pelo reconhecimento do que representa este “ser quilombola” para estas comunidades, pois aqui, não se trata apenas de ser quilombola, mas sim de “ser quilombola de Alto dos Bois”. A identificação regional com a história do Casarão é uma das marcas mais importantes dessa paisagem cultural. Tal cognição, que, inclusive, se manifesta nas mais distintas faixas etárias, como apresentamos nos mapas mentais realizados pelas crianças, que mesmo muito novinhas, já compreendem e vivenciam estas paisagens como parte do seu patrimônio vivido. E é por ser vivido, que ele se preserva material e imaterialmente de forma tão intensa para essas comunidades. Mesmo algumas pessoas que não conhecem pessoalmente o Casarão demonstraram uma ligação identitária fortíssima com este patrimônio, concebendo-o, inclusive, como parte constituinte de suas histórias pessoais. O contato com esses relatos durante a nossa Exposição Itinerante foi outra dinâmica de extrema importância para a compreensão das paisagens culturais de Alto dos Bois. Estas últimas linhas, são escritas, com toda certeza por um coração que se aperta com o fim dessa jornada, que se inebria de lembranças e saudades de vivências tão intensas, mas que se sente realizado por sentir que conclui mais uma missão à qual foi incumbido quando, pela primeira vez, ouviu falar desse lugar e de suas paisagens em 2011. Os meandros desse caminho me levaram a outras jornadas pelas quais eu precisava perpassar para cumprir esta tarefa, que me trouxe muito além de um aprendizado no âmbito da ciência, que eu 505 acredito ser verdadeira - feita com as comunidades, mas também de uma vivência que se materializa em laços de amizade que ficarão para sempre. É esse o poder que o Vale tem: o de fazer com que os de fora, os outsiders, se encontrarem em paisagens que se tornarão suas, pela vivência e experiência. Os seres do Vale incutem nas pessoas esse desejo de estar, de se encantar e de jamais sair de lá, mesmo que seja em pensamento. E como parte desse “Jequitinhonha jeito de ser”, Alto dos Bois também desperta em todos que chegam, e adentram suas paredes recobertas por tabatinga, esse sentimento de se estar caminhando para o mais íntimo do seu ser, para o ventre de sua mãe, onde são gestados os seus verdadeiros valores. A cada gole de café, pedaço de queijo e biscoito de goma, sente-se cada vez mais, parte daquele lugar. E assim, como parte do “Jequi que tem onha” e do Vale que tem Alto, e Alto dos Bois, é que me sinto parte dessa história. Por ter tido vivências de um espaço e tempo, de um patrimônio vivido, que somente aqueles que se permitem experienciar podem compreender com profundidade essa “sersência” do Vale do Jequitinhonha – Paisagem Cultural Brasileira que deve ser reconhecida pelos órgãos governamentais como tal, pois para as comunidades que ali residem, esse reconhecimento apenas reforçaria práticas e vivências que já fazem parte do seu modo de vida e de suas estratégias de convivência socioespacial. 506 Referências AB’ SÁBER, Aziz Nacib. Os domínios da natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 4ª Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. 151p. ABDALA, Mônica Chaves. Receita de Mineridade: a cozinha e a construção da imagem do mineiro. 2ª Ed. Uberlândia: EDUFU, 2007. ABREU, Regina. Palestra magna: Memórias, lugares e identificação com o patrimônio cultural. Proferida no VII Seminário do Patrimônio Cultural: nossos lugares, nossas memórias – Fortaleza 290 anos. Fortaleza, 27 e 28 de abril de 2016. 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INFORMAÇÃO DE SERVIÇO DO TENENTE FRANCISCO BARBOSA PINTO, RELATANDO A INSPEÇÃO REALIZADA NA 5ª E 7ª DIVISÃO MILITAR E NO DESTACAMENTO DO ALTO DOS BOIS. SECRETARIA DE GOVERNO DA CAPITANIA (SEÇÃO COLONIAL). SG-CX.97- DOC.55,1816a, 4p. __________________________. INFORMA ESTAR AUXILIANDO A CONSTRUÇÃO DA ESTRADA DO ALTO DOS BOIS AO RIO DA ORAPUCA, E DESEJA CONTINUAR ATÉ O TÉRMINO DA CONSTRUÇÃO. SECRETARIA DE GOVERNO DA CAPITANIA (SEÇÃO COLONIAL). SG-CX.117-DOC.11, 1820, 1p. __________________________. INFORMAÇÃO DE SERVIÇO SOBRE A BAIXA QUE DEU AO SOLDADO JOSÉ ÁLVARES MACHADO, POR ESTAR COM O MAL DE LÁZARO E QUE NOMEOU EM SEU LUGAR JOSÉ VITORINO DA ROCHA, VOLUNTÁRIO. SECRETARIA DE GOVERNO DA CAPITANIA (SEÇÃO COLONIAL). SG-CX.120-DOC.04, 1821, 5p. __________________________. REPRESENTAÇÃO QUE FAZEM OS PROPRIETÁRIOS E COLONOS DAS TERRAS TOMADIAS NAS IMEDIAÇÕES DO QUARTEL DO ALTO DOS BOIS, PEDINDO A EXONERAÇÃO DO EMPREGADO ALI INÚTIL, VISTO QUE O MESMO NÃO TOMA NENHUMA ATITUDE COM RELAÇÃO AOS ÍNDIOS BOTOCUDOS. SECRETARIA DE GOVERNO DA CAPITANIA (SEÇÃO COLONIAL). SG-CX.121-DOC.20, 1821a,3p. __________________________. MAPA DA CAPITANIA DE MINAS GERAIS NOS FINS DA ERA COLONIAL, de José Ferreira Carrato. COLEÇÃO DE DOCUMENTOS CARTOGRÁFICOS DO ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO – APM. APM-015, 1822. __________________________. CARTA, 01 SET. 1824, GUIDO TOMÁS MARLIÈRE (REMETENTE) AO SENHOR SARGENTO JUSTINIANO DO ROIZ DA C. COMMANDANTE DA 7ª DIVISÃO (DESTINÁRIO). In: REVISTA DO ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Belo Horizonte, Vol. 10, Fasc. 3, jul./dez., 1905, p.472-474. 510 Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/1800.pdf. Acesso em 31/10/2018. __________________________. 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EM SUA OPINIÃO, NOS ÚLTIMOS ANOS A VIDA DOS NEGROS/ AFRODESCENDENTES... ( ) MELHOROU ( ) PIOROU POR QUE ? --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 3. QUEM TEM ATUALMENTE AJUDADO/ COLABORADO/ CONTRIBUÍDO MAIS COM AS COMUNIDADES NEGRAS/ AFRODESCENDENTES NA REGIÃO? --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 4. E QUEM TEM PREJUDICADO/ ATRAPALHADO MAIS A VIDA DOS NEGROS/ AFRODESCENDENTES AÍ? --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 5. O FUTURO DOS NEGROS/ AFRODESCENDENTES NO BRASIL SERÁ BOM ? ( ) SIM ( ) NÃO POR QUE ? --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 6. PARA VOCÊ A CULTURA DOS NEGROS/ AFRODESCENDENTES É ALGO PRESENTE NOS DIAS DE HOJE OU VOCÊ ACHA QUE ELA SE PERDEU NO PASSADO? E POR QUÊ? --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 7. VOCÊ PODERIA DEFINIR PRA MIM AS PALAVRAS/ VOCÁBULOS: “QUILOMBO” E “QUILOMBOLA” --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 8. VOCÊ CONHECE ALGUMA ASSOCIAÇÃO, ONG (OU OUTRAS ENTIDADES) QUE ATUA(M) NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS? VOCÊ SABE QUAL É O PAPEL EXERCIDO POR ELAS? 545 --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ASPECTOS TURÍSTICOS 9. SÃO REALIZADAS FESTAS EM SUA COMUNIDADE? ( ) SIM ( ) NÃO QUAL/ QUAIS?_________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ EM QUE ÉPOCA ELA(S) ACONTECE(M)?:____________________________________ __________________________________________________________________________________ 10. QUEM A(S) FREQUENTA? ( ) TURISTAS ( ) COMUNIDADE LOCAL ( )PARENTES QUE MORAM FORA ( )PESSOAS DE COMUNIDADES VIZINHAS ( ) OUTROS:____________________________________________________________ 11. O QUE É TURISMO PARA VOCÊ? --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ( ) IGREJA/ CAPELA ( ) FAUNA ( ) PLANTAS MEDICINAIS ( ) FLORA ( ) CACHOEIRA ( ) RIOS ( ) SERRA ( ) PINTURAS RUPESTRES OUTROS: __________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ VOCÊ FREQUENTA ESSES LOCAIS? ( ) SIM ( ) NÃO POR QUÊ?________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ 13. VOCÊ ACHA QUE O AUMENTO DO NÚMERO DE TURISTAS NA REGIÃO PODERIA MELHORAR A SUA VIDA? ( ) SIM ( ) NÃO POR QUÊ? __________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ QUESTÕES A SEREM RESPONDIDAS EXCLUSIVAMENTE PELOS INTEGRANTES DA “SOCIEDADE ENVOLVENTE” I. O QUE CARACTERIZA A CULTURA NEGRA/ AFRODESCENDENTE/ QUILOMBOLA EM SUA OPINIÃO? --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- II. VOCÊ JÁ FOI A ALGUMA COMUNIDADE QUILOMBOLA? ( ) NÃO. COMO VOCÊ IMAGINA QUE ELAS SEJAM? __________________________________________________________________________________ ( ) SIM. QUAL? ____________________ONDE ELA FICA? ____________________ O QUE VOCÊ OBSERVOU LÁ? ______________________________________________________ __________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ 546 Apêndice 2: Roteiro de entrevista com a liderança Quilombola 1. O que significa para você “ser quilombola”? 2. O que representa ser um quilombola no/do Vale do Jequitinhonha? 3. Qual a importância da criação da COQUIVALE para as comunidades da região? 4. O que você observou que mudou (melhorou ou piorou) para as comunidades do Vale? 5. Você tem conhecimento do acesso das comunidades ao facebook da COQUIVALE? 6. Ele é um meio principal de divulgação das informações (reuniões, editais, etc.)? Quais os demais meios de comunicação com as comunidades? 7. Quais as principais demandas das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha? 8. Quais os principais problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas do Vale? 9. Quais são os órgãos, entidades ou grupos que mais atuam auxiliando as comunidades? 10. Você acredita que o reconhecimento do patrimônio cultural pelo IPHAN/IEPHA poderia auxiliar de alguma forma as comunidades quilombolas? Como? 11. O que você pensa sobre o desenvolvimento do Turismo nas comunidades quilombolas do Vale? 547 Apêndice 3: TLCE - Termo Livre de Consentimento Esclarecido para Participação na Pesquisa da Comunidade 548 549 550 Apêndice 4: Declaração de Anuência da Prefeitura de Angelândia 551 Apêndice 5: Termos de autorização para utilização de imagens, acervos pessoais e entrevistas na pesquisa 552 553 554 555 556 Apêndice 6: Painéis da Exposição Itinerante 557 558