UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES Frederico Augusto Vianna de Assis Pessoa TERRITÓRIOS DE ESCUTA E IMAGENS EM MOVIMENTO um (discreto) deslocamento epistemológico Belo Horizonte 2017 Frederico Augusto Vianna de Assis Pessoa TERRITÓRIOS DE ESCUTA E IMAGENS EM MOVIMENTO um (discreto) deslocamento epistemológico Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Artes. Linha de Pesquisa: Poéticas Tecnológicas. Orientador: Prof. Dr. Jalver Bethônico Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2017 Ficha catalográfica (Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG) Pessoa, Frederico, 1969- Território de escutas e imagens em movimento [manuscrito] : um (discreto) deslocamento epistemológico / Frederico Augusto Vianna de Assis Pessoa – 2018. 203 p. + 1 DVD. Orientador: Jalver Bethônico. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2017. 1. Som – Teoria – Teses. 2. Cinema sonoro – Teses. 3. Cinema – Teses. 4. Música no cinema – Teses. 4. Estética – Teses. I. Bethônico, Jalver, 1963- II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. III. Título. CDD 791.4301 À Flávia e Joaquim. AGRADECIMENTOS, Agradeço ao meu orientador, Jalver Bethônico, pela paciência, dedicação, abertura, e amizade durante todo este processo. À minha família pelo apoio e compreensão. A todos aqueles que de alguma forma participaram desse projeto. Sobre cada lugar se sobrepõe a experiência do lugar como um selo num cartão postal Ana Martins Marques RESUMO Nesta pesquisa, investigamos aquilo que denominamos Territórios de Escuta - espaços de escuta que aglutinam diferentes experiências, história pessoal/cultural e sensorialidade em torno do som. Parte-se da hipótese de que a escuta tem uma história cultural e pessoal (antropológica e subjetiva) e que ela constitui tais territórios. A escuta reflete não apenas um ponto localizável de recepção sensorial, mas um ponto de confluência que perpassa nossas experiências do mundo, as interpretações diversas que damos ao que escutamos, assim como os dispositivos que modulam nossas percepções – nossa localização geográfico- cultural, nossa história social e pessoal, nossa relação com a tecnologia, bem como os diversos sistemas de pensamento que construímos a partir da escuta. Desta forma, discutimos a escuta como campo de conhecimento do mundo, ultrapassando seu lugar sensorial e abarcando o campo simbólico que ela constitui em nossas experiências. A partir desta discussão, abordamos os Territórios de Escuta no cinema, analisando como estes territórios se constituem neste campo artístico. Um filme propõe um modo de se pensar, organizar, compor, articular e valorar os sons – mas este só se delineia de forma efetiva na interação entre o filme e o ouvinte/espectador. Os Territórios de Escuta no cinema envolvem todo o pensamento e a experiência com os sons que os antecedem, tanto cotidianas, quanto com outras obras artísticas. Neste sentido, nos interessa compreender como o cinema articula, cria e apresenta esses espaços sonoros, mas, também, como se dá a interação subjetiva do espectador com esse universo de sentidos. Se por um lado, as indústrias cinematográficas, a partir de fórmulas e da delimitação de funções mais rígidas para os sons, acabam por balizar a emergência destes territórios – tendendo a padronizar tanto as construções poéticas quanto a recepção dos espectadores, por outro, observamos formas de experimentação sonora que propõe Territórios de Escuta de resistência, distantes dos padrões estabelecidos pelas indústrias. Nossa hipótese é que estes Territórios de Escuta cinematográficos de resistência se constituem a partir de uma influência das pesquisas sonoro-musicais de ruptura que ocorreram ao longo do século XX, as quais alteraram tanto nossa percepção sonora cotidiana do mundo e, por conseguinte, nossa compreensão deste mundo, quanto permitiram uma abertura ampla para a experimentação nas artes que utilizam o som como elemento compositivo. Palavras Chave: Escuta, Cinema, Territórios de Escuta, Sonologia, Banda Sonora. ABSTRACT In this research, we investigate what we call Listening Territories - listening spaces that bring together different experiences, personal/cultural history and sensibility connected to sound. Listening reflects not only a locatable point of sensory reception, but a confluence that combine our experiences of the world, the diverse interpretations we give to what we hear, as well as the devices that modulate our perceptions - our geographic-cultural location, our history social and personal, our relationship with technology, as well as the different systems of thought that we build from listening. We discuss listening as form of knowledge about the world, surpassing its sensorial aspect and embracing the symbolic field that it constitutes in our experiences. Then, we approach the Listening Territories in the cinema, analyzing how these territories are central in the constitution of the cinematographic experience. A film proposes a way of thinking, organizing, composing, articulating and valuing sounds - but, our hypothesis, is that a film can only accomplish it in the interaction with the listener/viewer. Listening territories in cinema involve all thinking and experience with sounds that precedes them: daily experiences with sound as well as experiences with sound through other artistic works. In this sense, we are interested in understanding how cinema articulates, creates and presents those sound spaces, but also how the subjective interaction of the spectator with this universe of meanings occurs. Our hypothesis is that listening has a cultural and personal history (anthropological and subjective) and that it constitutes such territories. If, on one hand, we find rigid functions for the sounds within the cinematic industry that end up limiting the emergence of these territories, leading to a standardization of both - the poetic constructions and the reception of the spectators. On the other, we observe forms of sound experimentation that proposes listening territories of resistance, far from the standards established by the industries. Our hypotheses is that these territories of resistance are influenced by the sound-musical researches of rupture that occurred during the XX century, which altered our daily sound perception of the world and, as a consequence, altered our understanding of this world, and allowed a wide opening for the experimentation in the arts that use sound as a compositional element. Keywords: Listening, Cinema, Listening Territories, Sound Studies, Sound Track. Sumário Introdução 01 Capítulo 1. Territórios de Escuta 05 Capítulo 2. Uma Breve e Fragmentária História Pessoal da Escuta 12 2.1 As primeiras experiências 12 2.2 Uma escuta atávica 16 2.3 Escuta ou escutas? 20 2.4 A escuta dos objetos 21 2.5 Modos de escuta 22 2.6 A sistematização da escuta 26 2.7 Escuta política 27 Capítulo 3. Escuta e Tecnologia 32 Capítulo 4. Som e Cinema – um percurso teórico sucinto 46 Capítulo 5. Territórios de Escuta + Pesquisas Musicais 72 5.1 A arte da organização sonora 74 5.2 A collage dos ruídos e o mundo como música 84 5.3 A síntese sonora e o som mínimo 98 Capítulo 6. Territórios de Escuta + Imagens em Movimento 108 6.1 Ceci est un Message Enregistré (1973) Jean-Thomas Bédard 109 6.2 Ordinary Matter (1972), de Hollis Frampton 116 6.3 In Order not to be Here (2002) Deborah Stratman 128 6.4 2ou 3 Choses que Je Sais D’Elle (1967), de Jean-Luc Godard 138 6.5 Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant 151 6.5.1 A unidade musical e os agenciamentos múltiplos que realiza 153 6.5.2 A música e a história do cinema 154 6.5.3 Cantar a história 158 6.5.4 As composições eletroacústicas e a manipulação expressiva do som 164 6.6 Ruhr (2009) de James Benning 171 Considerações finais 189 Bibliografia 192 Filmografia 201 1 Introdução Os primeiros passos que conduziram a esta pesquisa surgiram logo após a defesa de minha dissertação de mestrado. Havia terminado minha pesquisa sobre o som no documentário, intitulada O Lugar Fora do Lugar: topografias sonoras do cinema documentário (PESSOA, 2011). Ali, embora a escuta atravessasse toda a pesquisa, a perspectiva que assumi tinha sua origem em dois autores: Michel Chion e Johnny Wingstedt. A partir deles, utilizei uma série de categorias (e adicionei mais algumas) que identificavam funções que o som exercia nos filmes documentais. Embora as análises dos filmes escolhidos acrescentassem interpretações que partiam desta relação para costurar outras que ali se imbricavam – políticas e poéticas – percebi, posteriormente, que as categorias se tornaram um quadro rígido, que buscava emoldurar as articulações entre som e imagem, mas que não permitiam dar conta daquilo que escapava ao próprio processo de formatação que elas realizavam. Havia uma redução inevitável no uso das categorias que limitava o acesso à multiplicidade de relações que o som pode estabelecer com as imagens. Além disso, a escolha dos filmes e o desenvolvimento de minhas análises eram orientados por uma busca por obras em que a relação entre som e imagem não refletissem a padronização que percebia nas indústrias do cinema. Havia, portanto, uma incongruência: a procura pela experimentação nos filmes e a utilização de um quadro fechado de categorias que buscava, de certa maneira, a redundância. A procura de formas alternativas de abordagem do som no cinema, menos rígidas e menos limitadoras ali se iniciou. Em um primeiro momento, o campo da música me pareceu ser um possível lugar para que encontros inesperados acontecessem, encontros que poderiam modificar o percurso que havia seguido até então. Parti do princípio de que a experiência musical é transformadora de nossos modos de escuta da própria música, ao propor formas de organização sonora que ultrapassam, muitas vezes, as expectativas criadas pela nossa cultura e nos solicitam uma adaptação a uma escuta específica. Mas, além disso, pensava que formas sonoras novas ou para nós desconhecidas, provocam a nossa sensibilidade e a transformam, fazendo com que nos voltemos para o mundo, para o 2 comum, com outra escuta. A fragmentação melódica de certos estilos musicais, a composição musical com sons que ouvimos no mundo, a pesquisa com sons que não existem na realidade e sua manipulação quase ilimitada, seriam, portanto, propostas que modificariam nossa sensibilidade e transformariam o modo como percebemos organizações possíveis entre sons – realizadas intencionalmente ou ocorridas ao acaso, no próprio mundo. Assim, me pareceu que estes movimentos musicais, embora não alcançado um público amplo, deixaram rastros em outros campos para além da música, como o cinema. Nos campos artísticos, conhecemos os trabalhos de grupos como o Ongaku, Fluxus, Merce Cuningham, os happenings de John Cage e outros artistas no Black Mountain College. Trabalhos que mesclavam as experiências e as transformações do campo da música às artes visuais, às artes cênicas e à dança, entre outras hibridações que surgiram ao longo do século XX e ainda hoje assumem formas experimentais e questionadoras. Portanto, passei a me questionar: como abordar a escuta de obras audiovisuais sem levar em conta esta costura que se dá entre uma diversidade de experiências e modos de imbricação entre a escuta e nossas outras formas de conhecimento? Para mim, escutar é mesclar uma infinidade de aspectos biológicos e culturais, que podem conduzir a experiências completamente diversas – este foi o meu trajeto pessoal. A leitura de textos dos Sound Studies que vinha realizando, reforçava esta perspectiva, já que confirmava, para mim, tanto a ideia de uma escuta que agencia diferentes campos – quanto de uma escuta cultural – com diferenças entre locais, povos e, até mesmo, práticas em que a escuta é envolvida diretamente. A experiência da escuta em uma sala de cinema perpassa toda uma histórica cultural e toda uma história pessoal do ouvinte/espectador. Desta forma, me propus a realizar, inicialmente, um pequeno deslocamento epistemológico, abordando a escuta como forma de conhecimento do mundo tão potente quanto a visão. Além disso, me propus tentar pensar a escuta em suas implicações espaciais – o desenho de espaços, territórios, habitats que ela realiza como parte da constituição de nosso estar no mundo. Logo, em vez de buscar um quadro pronto de categorias que pudessem me fornecer etiquetas de identificação para as funções do som em obras audiovisuais, busquei elaborar um conceito que articulasse os diferentes aspectos implicados na escuta e, por conseguinte, na escuta das obras audiovisuais, e que fosse congruente com minha experiência e minha 3 perspectiva. Esse conceito seria um elemento aglutinador, que permitisse uma visão mais ampla e, ao mesmo tempo, pudesse reforçar o aspecto subjetivo dessa experiência. É claro que a subjetividade não quer dizer isolamento, mas, ao contrário, atravessamento: uma vez que também é composta por redes que entrecruzam aspectos culturais e sociais – embora contenha um elemento de expressão, de pessoalidade tanto na forma como estes entrecruzamentos assumem, quanto sua transformação na apropriação subjetiva. Além disso, seria uma proposta que conduziria a um percurso de conexão entre os campos de saber que me haviam provocado. Este conceito seria o de Territórios de Escuta. O conceito de território de escuta dialoga com aspectos do conceito de território na geografia e sua formulação em diversos autores, bem como com aspectos da percepção dos sons, da estruturação da percepção em formas de relação com o mundo, com objetos e pessoas, e as redes que são tecidas a partir da percepção de fenômenos acústicos. A sua emergência no cinema engloba a proposição que se manifesta através da obra – proposição de territórios de escuta que solicitam aspectos múltiplos da escuta, embora delimitados pela obra – e a relação que ouvinte estabelece com tal trabalho artístico. Trata-se de um conceito aberto, que indica campos e possibilidades de agenciamentos a partir da escuta. Desta forma, permite que compreendamos as poéticas de resistência, em sentido amplo, como campo de forças onde cada elemento, o cada fluxo, pode se conectar a uma diversidade de expressões e sentidos. Ao desenvolver esta pesquisa, percorri um caminho que foi também meu caminho pessoal, pois minha relação com o cinema começa a partir de minha atuação como técnico de áudio e compositor de trilhas musicais para filmes em curta e média metragem, bem como para performances audiovisuais próprias. Mas para além da experiencia com a linguagem cinematográfica, sou artista sonoro e realizo trabalhos onde procuro explorar a potência do som como elemento disparador da construção de sentidos. Assim, o som vem em primeiro lugar, como centro organizador da minha experiência, tanto do cinema quanto de outras artes que utilizam o som como elemento estético. A minha escuta foi sendo modificada pelas experiências com a música e com a Arte Sonora, tanto na formação (embora eu seja músico amador), quanto pelo contato com as obras. Diversos aspectos do som começaram a fazer parte do que me era próprio: o silêncio como expressão; os sons do 4 mundo como música; o ruído como som musical; a interpenetração de todos estes elementos em composições que os transformam em sons organizados etc. Partindo destas perspectivas, desenvolveremos nosso percurso da seguinte maneira: o capítulo 1, Territórios de escuta, apresenta este conceito, sua origem e campos de referência, discutindo aspectos que têm suas raízes na geografia, na filosofia e no próprio cinema. O capítulo 2, intitulado Uma Breve e Fragmentária História Pessoal da Escuta, discute aspectos culturais, históricos e experienciais da escuta: referências em civilizações remotas no tempo e no espaço; modos de escuta; sistemas de compreensão do que se ouve; aspectos políticos que a escuta manifesta; o conhecimento dos objetos e seres que a escuta traz, analisando a formação dos territórios de escuta. O capítulo 3, intitulado Escuta e Tecnologia, reflete sobre este tema, analisando a influência de aparatos tecnológicos sobre a escuta: alterações na configuração dos ambientes, dos modos de vida e das interações entre pessoas motivadas pela tecnologia. O capítulo 4, Som e Cinema – um percurso teórico sucinto, discute aspectos do pensamento sobre o som no cinema que influenciaram esta pesquisa, bem como critica práticas de articulação entre som e imagem hegemônicas, presentes em filmes, principalmente produzidos pelas indústrias cinematográficas. O capítulo 5, Territórios de escuta + Pesquisas Musicais, trata das mudanças do pensamento sobre o som e sobre a música no século XX, destacando aspectos que influenciaram, em nossa visão, o pensamento e as práticas de articulação entre som e imagem no cinema; por fim, o capítulo 6, Territórios de escuta + Imagens em Movimento, analisa a tecedura de territórios de escuta em uma pequena seleção de obras audiovisuais. 5 1 Territórios de escuta Arrumar uma maneira de estar em outro país estando no mesmo (GARCIA, 2012, p. 39) No livro Acoustic Territories – sound culture and everyday life (2010), Brandon Labelle discute as relações identitárias e de poder que se estabelecem em apropriações de espaços urbanos por grupos específicos. Estes grupos se constituem através de conexões sonoras que expressam ora gosto, ora formas de elocução, ora redes de práticas e formas de emissão sonora que os definem e os diferenciam de outros grupos, relacionando-se com as características acústicas do espaço que habitam para sua construção territorial sonora. Labelle percorre ambientes que por vezes são delimitados por sua localização geográfica, como o mundo subterrâneo de túneis de metrô abandonados e ocupados por novos habitantes; por vezes são definidos pela construção de espaços individuais móveis, como os carros com aparelhagens estéreo potentes; ou desenhados através da circulação pelas ruas das cidades portando objetos tecnológicos que ativam sonoridades escondidas nas redes técnicas que cruzam as ruas, de forma a expor a sobreposição de redes que configura o espaço urbano (projeto Sonic City, desenvolvido em Gothenburg, Suécia – LABELLE, 2010, p. 101). Labelle parte da concepção de território como a constituição de um espaço geográfico delimitado em que aspectos acústicos revelam relações de poder e interação que ali se estabelecem: quem pode ou não entrar e sair; quem faz parte e quem não faz; quais são os códigos que definem as relações entre os habitantes; etc. Esta concepção de território como espaço delimitado por relações de poder está presente em diversos autores da geografia, como Raffestin, Gottmann e Dematteis, embora não seja o único aspecto na constituição territorial segundo estes autores. Labelle trabalha dentro desta concepção de território e, embora não defina expressamente o que denomina acoustic territory, seus exemplos apontam para esta interpretação: [...] a topografia auditiva do meio social urbano é escutada como a mistura de diferentes fluxos e ritmos que variam em gradações de liberdade e retenção [...] 6 Seguindo estas intensidades, e o movimento entre os scripts formais e a reescrita informal feita pelo pedestre, a calçada provê uma linha para os fluxos e contra- fluxos, para os sinais e as pulsações, a qual expressa suas reivindicações em relação ao sistema urbano (LABELLE, 2010, p. 93, grifo e tradução nossos)1. O conceito de Acoustic Territories traz uma abordagem epistemológica em que as características acústicas de um espaço se revelam como centro organizador das relações sociais que ali se constituem. Gostaríamos de propor, nesta tese, um conceito relacionado ao de Labelle, mas que se ocupa do indivíduo e sua relação com o espaço em que vive: Território de Escuta2. O território de escuta não é necessariamente um espaço de luta e de definição de identidades, mas um espaço que transita tanto neste modo, quanto no estabelecimento de relações simbólicas múltiplas entre a escuta e o objeto percebido. Bonnemaison e Cambrèzy afirmam a importância de compreender o território em sua dimensão simbólica, como valor, antes de considerá-lo espaço de conflito, espaço político: “O poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o território político e com ainda mais razão precede o espaço econômico” (BONNEMAISON e CAMBRÈZI apud HAESBAERT, p. 50). A própria presença do homem em um espaço o transforma: A presença física do homem em um espaço não mapeado – e o variar das percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo – é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si [...] (CARERI, 2013, p. 51). Claude Raffestin fala do território como um desenho subjetivo do espaço, uma representação que se constrói a partir de uma perspectiva de “objetivos intencionais”: “Não se trata, pois do ‘espaço’, mas de um espaço construído pelo ator, que comunica suas 1 No original: “the auditory topography of the urban milieu is heard as the mingling of differing flows and rhythms that shift through gradations of freedom and arrest […]. Following these intensities, and the movements between formal scripts and informal pedestrian rewriting, the sidewalk provides a line to the flows and counter flows, the signals and beats, which lay claim onto the urban system”. 2 Havíamos, inicialmente, proposto uma apropriação do termo Acoustic Territories de Labelle, traduzido por Territórios Acústicos, para identificar o conceito que desenvolvemos nesta tese. Porém, percebemos que as perspectivas adotadas e as articulações que constituem um e outro conceito são distantes, embora tenham relações. Optamos, após a defesa da tese, por alterar a identificação do conceito, deixando clara a relação de proximidade, mas também a diferença epistemológica que os distancia. 7 intenções [à] realidade material por intermédio de um sistema sêmico. Portanto, o espaço representado não é mais o espaço, mas a imagem [...] do território visto e/ou vivido” (RAFFESTIN, 1993, p. 147). A dimensão subjetiva é central em nossa concepção de território de escuta, onde a manifestação intencional de costura de uma articulação entre os diversos elementos que o compõe e definem um habitar (criar um território próprio) inclui a interpretação, e se condiciona, ao menos parcialmente, pela própria história coletiva. Há um atravessamento do indivíduo pela sua cultura e sua história (pela alteridade) que se manifesta na sua expressão individual e na sua relação com o espaço na constituição de territórios. Neste sentido, Saquet afirma que “a identidade se refere à vida em sociedade, a um campo simbólico e envolve a reciprocidade. Na geografia, significa, simultaneamente, espacialidade e/ou territorialidade” (SAQUET, 2013, p. 147, grifo do autor). Guattari fala da constituição da subjetividade a partir do social e de sua apropriação pelo indivíduo, descrevendo um processo que se relaciona com a possibilidade transformadora dos territórios de escuta: A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 33). Para o autor, os processos de singularização são formas de resistência a um modo hegemônico de constituição de subjetividades, através de apropriações transformadoras que podem se dar nas relações sociais e na própria relação com o mundo: “trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc.” (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 45). Da mesma maneira, os territórios de escuta podem ser construções individuais que transformam o espaço acústico dado através de sua apropriação/reconstrução em uma mescla de sensibilidade e pensamento subjetivos e, se opõe, resiste, muitas das vezes, às tentativas de fixação dos territórios de escuta pela cultura, pensamento e sensibilidade hegemônicos. 8 Pensamos os territórios de escuta como redes que se articulam a partir de múltiplas origens: o sensório e nosso saber sobre ele; as relações simbólicas estabelecidas por um indivíduo a partir deste sensório; os diversos campos de conhecimento e as diferentes interpretações culturais sobre o mundo e sua variação histórica. Penha sublinha a necessidade de compreendermos a territorialidade humana sob este aspecto: “é importante considerar a territorialidade humana como primordialmente condicionada por normas culturais e valores, as quais variam estrutural e funcionalmente, de sociedade a sociedade, de período a período, e de acordo com as escalas de atividade social” (PENHA, 2005, p. 15). O geógrafo brasileiro Milton Santos fala da produção do território que se dá nas ações do homem no e para com o espaço que passa a habitar, e não só ocupar, tornando-se “[...] a sociedade encaixada na paisagem, a vida que palpita conjuntamente com a materialidade” (SANTOS, 2008, p.80). Concordamos com Santos, e acrescentamos em nossa proposta, o pensamento do território que ultrapassa a materialidade como substrato e localização, incluindo a sutileza das percepções que são extraídas da materialidade a partir da escuta e que tecem relações acústicas entre os seres, os objetos e os humanos. Os territórios que nos propomos a analisar não são necessariamente delimitados geograficamente no mundo físico, também podem ser simbólicos ou virtuais. O território de escuta é produzido na relação entre homem e seres, sejam eles artificiais ou naturais, em eventos que se dão no tempo e em locais diversos, tecendo conexões reticulares entre os elementos envolvidos e as construções simbólicas que ali acontecem – trata-se de uma apropriação subjetiva do espaço sonoro que o transforma em território de escuta. Para Deleuze e Guattari o território é constituído a partir da delimitação de um espaço próprio que se caracteriza pelas apropriações subjetivas de referências, marcas e outros tantos componentes que se tornam expressão. O território é “produto de uma territorialização” e “lança mão de todos os meios, pega um pedaço deles, agarra-os (embora permaneça frágil frente a intrusões)” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 120). O movimento de territorialização transforma estes meios, dando-lhes uma constância temporal, uma assinatura, uma marca territorializante – limita um dentro e um fora, que mantém o território protegido do “caos” que o circunda. Ao mesmo tempo, o território comporta em si uma abertura para a desterritorialização, sua conjugação com outros fluxos e ritmos que se 9 voltam para o caos e permitem a constituição de novas conformações. O território é continuamente atravessado por linhas que o puxam e o lançam em movimentos de desterritorialização, outras articulações, e novas territorializações, ou melhor, reterritorializações. Saquet afirma o caráter múltiplo e heterogêneo do território e da territorialidade humana, observando a natureza reticular de nossas relações com nosso meio e com nossos pares: “A territorialidade significa cotidianidade, (i) materialidade, no(s) tempo(s), na(s) temporalidade(s) e no(s) território(s), no movimento relacional-processual [...] a vida cotidiana significa heterogeneidade. É (i) material, social e natural, a um só tempo e significa desejos, necessidades, linguagens, edificações, signos, miséria, riqueza, repetições, mudanças, frustrações, técnicas, família, trabalhos, redes, desencontros, encontros e conflitos, desigualdades e diferenças, unidade; vida e morte” (SAQUET, 2013, p. 164). Os territórios de escuta são espaços que podem ser constituídos contingencialmente na experiência ou serem propostos através da estruturação de situações de escuta que solicitam processos de decifração e provocam redes de significação, como em obras artísticas sonoras ou que utilizem o som em sua elaboração. A experiência do cinema é uma experiência de constituição de territórios de escuta que se manifestam através do encontro e articulação entre imagens em movimento e os sons. A criação cinematográfica mescla uma proposição feita pela obra e o encontro entre o ouvinte/espectador e esta obra – este encontro é o que faz os territórios de escuta cinematográficos aflorarem. O território de escuta não é algo pronto, à espera de um habitante para ocupá-lo – embora diversas práticas culturais hegemônicas possam tentar torná-lo fixo. Mas é algo que se constitui no processo mesmo de habitar o espaço sonoro e transformá-lo em território – algo que expressa um vínculo entre um dado, um espaço sonoro, e indivíduos que inserem nele seus modos de perceber, entender e viver. No caso da obra cinematográfica, há possibilidades de percurso e constituição de territórios de escuta que são a base para a apropriação subjetiva e a criação de um habitat pessoal. As obras indicam caminhos – a partir dos territórios de escuta de quem as cria - mas não os definem de forma fechada. O indivíduo insere seus pequenos “objetos”, seus hábitos, seus modos de perceber o mundo, seu aprendizado, suas experiências estéticas anteriores, etc., transformando o espaço em lar – em território. 10 Mary Ann Doane em seu texto A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço (1980, traduzido em 1983 para o português), afirma que a heterogeneidade característica do cinema, que se manifesta nas costuras múltiplas de relações entre som e imagem (a qual mantém ambas separadas, embora unidas), é central para o pensamento sobre esta arte. Para pensarmos esta heterogeneidade, Doane propõe uma reflexão sobre o espaço cinematográfico. Ela identifica três aspectos centrais: 1) o espaço da diegese: “um espaço virtual construído pelo filme que é delineado como possuindo peculiaridades audíveis e visíveis”; 2) O espaço da tela como receptáculo da imagem: ”é mensurável e ‘contém’ os significantes visíveis do filme”; 3) O espaço acústico da sala de cinema: “o som não está ‘emoldurado’ da mesma maneira que a imagem [...] em certo sentido, ele envolve o espectador” (DOANE, 1983, p. 464.). Em nossa dissertação de mestrado, fizemos um primeiro movimento de reflexão sobre esta ideia de espaço no cinema a partir do que denominamos “Topografias Sonoras”. As topografias sonoras incluiriam a voz, elemento chave para Doane, mas abarcariam os demais aspectos sonoros cinematográficos: ruídos, música e suas respectivas ausências expressivas, seus silêncios. A dissertação abordou o cinema documentário e, ali, identificamos uma “topografia” particular a partir do entrelaçamento de Espaços de ação na realidade; espaços políticos de reivindicação de direitos e expressão de desejos; espaços simbólicos e imaginários que se entrelaçam e se influenciam mutuamente de forma dinâmica, tecendo relações entre pessoas, ideias e valores. Essas relações, ideias e valores são representados ou constituídos no cinema na própria utilização dos elementos principais de sua linguagem, o som e a imagem [...] Optamos por usar o termo topografia por acreditarmos que sintetiza essas variações do ‘relevo’, da forma de constituição e expressão desses diferentes espaços. (PESSOA, 2011, p. 25). Por conseguinte, o conceito de territórios de escuta (bem como sua emergência no cinema e obras afins) tem sua origem tanto nos conceitos espaciais referentes ao cinema de Doane, dos Acoustic Territories de Labelle, das perspectivas sobre o território da geografia, bem como da conceituação da “Topografia Sonora” cinematográfica. Vale ressaltar que o termo acústico, hoje associado fortemente ao campo da física que estuda os fenômenos sonoros, se origina da palavra grega akouein, que significa escutar. O livro de Plutarco, filósofo grego do século I, intitulado Peri Tou Akouein, recebeu o título “Como Ouvir” em português (Martins Fontes, 2003). Ele discute as condições de 11 apreensão dos discursos, do mundo e da aprendizagem através da escuta – atualmente, após as pesquisas e discussões dos campos da sonologia e sound studies, a tradução mais adequada de seu título seria “Como Escutar”, já que ouvir seria o aspecto passivo do processo, e escutar o ativo. Assim, o conceito de territórios de escuta, que utilizaremos como fio condutor na discussão sobre obras cinematográficas, abarca aspectos identitários, afetivos, simbólicos, campos de saberes diversos, bem como a própria sensorialidade. Propõe uma aproximação entre os fenômenos acústicos cotidianos (extremamente multifacetados e complexos) e sua manifestação em obras artísticas. Michel Chion em seu principal livro sobre o som no cinema, Audio-Vision (1990), afirma: “sentenças, ruídos, temas musicais, ‘células’ sonoras – manifestam-se [no cinema] como os mesmos tipos que escutamos em nossa experiência cotidiana” (CHION, 1990, p. 45). Desta forma, em vez de nos esquecermos do cotidiano e buscarmos experiências únicas que o som no cinema poderia nos trazer, é mister compreendermos os inúmeros caminhos e redes que o som percorre e tece em nossas diversas experiências. Estas teceduras serão exploradas, solicitadas e reconstituídas na experiência cinematográfica. Ou seja, o cinema solicita, assim como o mundo, uma rede complexa e intricada de sensorialidade e sentido de seu ouvinte/espectador. 12 2 Uma breve e fragmentária história pessoal da escuta Não há sons [...] escutados por humanos que sejam percebidos fora da cultura e da sociedade. Não há sons experimentados através de uma pura percepção – apenas uma apreciação ‘contaminada’ pela socialidade (KAHN, 2011, p. 31, tradução nossa). 2.1 As Primeiras Experiências Em um domingo à noite, eu estava sentado, tentando começar este texto, quando escutei uma série de estampidos que vinham de um lugar indefinido fora do espaço de minha casa. Após uma curta pausa, mais uma série, com um adensamento sonoro crescente no tempo. A sequência se repetiu, com mais pausas e nuvens de estampidos, com ritmos variáveis, mas com certa regularidade dentro daquele aparente caos. Os sons secos, fortes e curtos não eram dos fogos de artifício constantemente disparados nas redondezas, já que moro ao lado de um estádio de futebol. Pude perceber que não havia a sequência tradicional de disparos que já aprendemos a identificar nos dias de jogos, acompanhando os festivos torcedores que chegam ao estádio para ver seu time, ou os que o deixam após uma vitória. A sequência era mais irregular, parecendo se iniciar com poucos disparos esparsos e, a seguir, saraivadas que se adensavam em uma nuvem de estampidos. Os timbres dos ruídos eram mais secos e agudos que os dos fogos. A estrutura em que se organizavam no tempo era mais descompassada, mas havia uma repetição que constituía uma sequência perceptível, uma forma. No entanto, havia maior variação, o que a distinguia da sequência fixa dos fogos. Não ocorriam muito perto, como pude perceber pela reverberação que os acompanhava. Mas também não distantes o bastante para nos deixar continuar, imperturbáveis, nossas tarefas domésticas. Imaginei armas de fogo ao lembrar-me de que resido a uma quadra de um ponto de tráfico de drogas ou, como se diz, de uma boca de fumo. 13 Cruzo quase que diariamente aquele beco estreito e cumprido – local onde está a boca de fumo – única passagem direta entre minha casa e o restante do bairro que está do outro lado do estádio de futebol. Os sons que escuto diariamente são os das mulheres que moram ali conversando na calçada; dos meninos brincando na rua do beco; dos transeuntes que atravessam calmamente aquele trecho. Sons afetuosos, signos da domesticidade, do familiar, do compartilhado. Lembrei-me de que aqueles tiros poderiam estar ocorrendo ali, onde estivera mais cedo, empurrando o carrinho de bebê com meu filho de oito meses. Pensei que poderia ser uma guerra entre polícia e traficantes ou entre facções do tráfico disputando terreno. Imaginei os disparos acompanhados de clarões, provocados pela pólvora incandescente, talvez mesclando a experiência dos fogos à dos tiros, e transformando o horror em espetáculo. Mas o horror não nos abandona facilmente e sua presença indefectível é corroborada de tempos em tempos pelos estampidos que escutamos em noites quentes ou frias (mais quentes que frias). O som não é apenas índice de um evento ou objeto que o produz. Ao escutarmos os sons do mundo tecemos redes de sentido que nos envolvem. Nessa experiência estão incluídas sensações, emoções, memória, imaginação, razão, percepção estética, espaço, coletividade e linguagem (talvez devêssemos dizer as linguagens, pois não se trata apenas da linguagem falada). Roland Barthes propõe uma diferenciação entre escutar e ouvir (BARTHES, 1990). Para ele, ouvir diz respeito a uma capacidade inata, fisiológica, de ser sensível a vibrações sonoras. Escutar inclui uma intenção – voltar o ouvido para algo e desejar apreender o que se ouve, realizar uma articulação de sentidos dentro de um contexto sonoro. A escuta é um processo de decifração, mas é também uma escrita: percepção do que se dá, mas, também, construção de um espaço hermenêutico individual em cada situação. Truax (1984) reforça a perspectiva de Barthes, apontando que a escuta não só é ativa, mas implica diferentes níveis de atenção: casual ou distraído, ou estar em um estado de prontidão. Seu alcance pode ser global ou focalizado. De qualquer forma, “[...] em cada caso, a escuta pode ser continuamente controlada” (TRUAX, 1984, p. 16). 14 A escuta é uma cartografia de relações, espaços, intensidades. Jean-Luc Nancy, em seu texto sobre a escuta diz: “Escutar é estender a orelha [...] é uma intensificação e uma preocupação, uma curiosidade e uma inquietude” (NANCY, 2013, p. 162). Se estar à escuta é inquietar-se, comecemos por nos colocarmos em situação de inquietude, de escuta. Em uma cultura que compreende seu mundo a partir, principalmente, da visão e constitui discursos repletos de metáforas visuais, a escuta parece retrair-se, canhestra, deslocada. Não se trata de pensar a capacidade de escutar, mas o que está implicado em escutar o mundo e o que nos implica quando escutamos. Ao escutarmos o mundo, constituímos territórios de escuta que passamos a habitar. Eles se organizam a partir de conjuntos de eventos e processos de decifração que buscam compreendê-los, sendo tanto individuais quanto compartilhados. Modos de vida em comum delineiam, em parte, formas de apropriação intelecto- conceitual que realizamos frente aos fenômenos vividos e ouvidos. Por isso, essas características múltiplas e complexas da escuta podem ser destacadas na percepção para certos grupos ou podem ser limitadas, engessadas e deslocadas para o fundo em outros. Eco nos fala que: A percepção de um todo não é imediata e passiva: é um fato de organização que se aprende, e se aprende num contexto sócio-cultural; neste âmbito, as leis da percepção não são fatos de pura naturalidade, mas se formam dentro de certos modelos de cultura, ou, numa linguagem transacionalista, mundos de formas assuntivas, um sistema de preferências e hábitos, uma série de convicções intelectuais e tendências emotivas que se formam em nós como efeito de uma educação devida ao ambiente natural, histórico, social (ECO, 1997, p. 139, grifos do autor). Do ponto de vista fenomenológico, nossa percepção seria global, envolvendo todos os sentidos em articulações complementares e deslizantes (IHDE, 2007). Mas somos capazes de focar certos aspectos dessa experiência tanto a partir de um propósito específico e consciente, quanto pelos hábitos culturais que herdamos. Em nosso caso, o aspecto visual da experiência vem sendo enfatizado há muitos séculos e é reforçado na linguagem, com metáforas visuais que penetram diversos campos de saberes, ou no próprio pensamento conceitual e na valorização do olhar em detrimento das outras formas de percepção: 15 Este visualismo 3 pode ser compreendido como um sintoma da história do pensamento. O uso e o aprofundamento de metáforas visuais aparecem como uma variável que pode ser traçada através de diversos períodos e pontos culminantes da história intelectual, demonstrando como o pensamento sob a influência dessa variável toma forma 4 (IHDE, 2007, p. 6, tradução nossa). Podemos nos voltar para a principal referência histórica do pensamento ocidental, a Grécia, e encontrar um uso emblemático da metáfora visual na alegoria da caverna de Platão: o conhecimento é visão clara, iluminada pela razão. Essa ênfase em um aspecto da percepção faz com que, normalmente, não nos apropriemos do que nos é fornecido pelos outros campos sensoriais como poderíamos. Muitos de nós somos capazes de falar sobre matizes de cores, mas não sobre matizes de timbres. Isto acontece por que não fomos educados para prestar atenção e nomear as variações delicadas dos sons, embora estejamos aptos biologicamente para fazê-lo. Por outro lado, a escuta tem se tornado objeto de reflexão em diversos campos de saber e seus sentidos, modos de dar-se e lugar na cultura vêm sendo revistos. A ciência nos diz que temos a capacidade inata de ouvir de forma semelhante: percebemos sons que se localizam entre as frequências de 20 Hz e 20.000 HZ. É claro que essa amplitude varia com a idade e não exatamente igual para todos. Distinguimos variações temporais dos sons que alcançam cada uma de nossas orelhas em milésimos de segundos, o que nos auxilia a termos uma boa percepção de sua localização no entorno, bem como das dimensões (em sentido aproximado) dos espaços em que esses sons ocorrem. Como dissemos acima, todos somos capazes de perceber variações timbrísticas, o que nos permite identificar sons específicos e suas fontes singulares. Vale lembrar que mesmo a compreensão de uma habilidade ou capacidade natural é construída e pode ser localizada em um contexto cultural específico. Não é por acaso que atualmente a interpretação de fenômenos perceptivos vem, na maior parte das vezes, acompanhada de uma mensuração numérica e um apagamento das diferenças individuais 3Ihde usa o neologismo em inglês, visualism, para enfatizar este modo dominante da percepção. Optamos por manter a proposta na tradução e usamos o neologismo visualismo. 4 No original: “This visualism may be taken as a symptomatology of the history of thought. The use and often metaphorical development of vision becomes a variable that can be traced through various periods and high points of intellectual history to show how thinking under the influence of this variable takes shape”. 16 em nome da abstração generalizadora – assim a ciência vem constituindo e explicando seus objetos. No entanto, não nos interessa aqui a discussão das características científicas da percepção ou da capacidade biológica humana de ouvir. Interessa discutir o que compomos a partir dessa capacidade; o que nos atravessa e nos constitui ao mesmo tempo em que é por nós constituído em relação à escuta e, principalmente, em relação à escuta de obras audiovisuais. 2.2 Uma escuta atávica Em uma tarde de julho de 1997 atravesso o túnel Santa Bárbara, no Rio de Janeiro, a pé, indo de Laranjeiras em direção ao Catumbi. A intensidade do trânsito que por ali passava fazia uma enorme pressão em meus ouvidos. Não havia espaço para o pensamento, somente o constante ruído de amplo espectro dos motores e sua relação com o espaço preenchendo meus ouvidos por completo. Durante os 1.357 metros de extensão que percorri, pude perceber a avassaladora capacidade arquitetônica da ressonância, amplificando os sons que ali se produziam e criando uma massa de fortíssima energia capaz de subjugar quem quer que se aventure nesta travessia. A experiência foi intensa, tão intensa que não tive mais coragem de repeti-la. Há cerca de 30.000 anos, homens utilizavam as paredes de cavernas como superfície de registro de imagens por eles produzidas. Pinturas rupestres gravadas nas rochas internas de cavernas e espaços abertos nas mais diversas partes do globo são conhecidas, apreciadas e estudadas. Curiosamente, os locais em que muitos dos registros imagéticos ocorreram são locais com características sonoras particulares. Em alguns salões de cavernas cujas paredes estão cobertas por pinturas, há uma presença intensa e duradoura de ecos que respondem aos sons provocados por quem ali se aventurar. As respostas da reverberação sonora parecem ser de outras pessoas ou seres, localizadas em recônditos obscurecidos pela ausência de luz daqueles espaços. Há locais em que as pinturas estão adjacentes a pontos de grande ressonância que podem provocar a amplificação de um som emitido em até 15 17 decibéis (para determinadas frequências), e reverberações capazes de apresentar ecos com duração de até cinco segundos (REZNIKOFF, 2008). Reznikoff (2008) cita estudos que vêm sendo realizados e que apontam para uma intenção dos homens do paleolítico em estabelecer relações entre os efeitos sonoros naturais produzidos em determinado local e a realização de pinturas rupestres. Acredita-se que os pontos escolhidos serviam para a realização de rituais acompanhados por cantos ou mesmo por instrumentos musicais – foram encontradas, em alguns desses sítios, flautas feitas de osso. Marcas circulares em vermelho foram descobertas em túneis e passagens associadas à localização específica de pontos de maior ressonância. Tais marcas parecem não ter outra finalidade além da localização dessas referências que poderiam servir de mote para outras ações, como os rituais mencionados, devido à ressonância que ali se manifestava. Esses achados arqueológicos (ou acústico-arqueológicos) deixam entrever o valor da experiência de escuta para esses povos originários, mesmo que não tenhamos a dimensão de quão profunda e ampla poderia ser essa escritura sonora dentro de sua cultura. Os homens do paleolítico constituíam seus territórios de escuta imbricando rocha, vibração e imagem, de forma que as articulações entre sons, espaço, símbolos e vida constituía formas de expressão que encontravam seu nicho nas cavernas: as imagens fixadas nas paredes eram postas em “vibração” a partir de seu agenciamento5 com os fenômenos sonoros. A relação entre o transcendente, o som e a escuta está presente em diversas narrativas míticas de povos antigos. O livro do Gênese, parte do antigo testamento da bíblia cristã, relata a criação do mundo e de tudo que nele existe por Deus. Deus era o verbo cuja criação se faz pela palavra exteriorizada, vibração que coloca em movimento e em relações a 5 Podemos considerar um agenciamento como um encontro e uma relação entre heterogêneos que modifica seus componentes e os afetos a eles ligados: “O agenciamento é o cofuncionamento, é a 'simpatia', a simbiose. […] A simpaba são corpos que se amam ou se odeiam, e a cada vez populações em jogo, nesses corpos ou sobre esses corpos. Os corpos podem ser csicos, biológicos, psíquicos, sociais, verbais, são sempre corpos ou corpus” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 43). Os sons nas cavernas entram em “ressonância” com as imagens e ambos se transformam, propiciando novas práticas, novas expressões, novas relações com o mundo e com os seres, sua vivificação nos rituais, sua ascensão ao simbólico dentro daquela cultura em conformação. 18 matéria: “E o sopro-Deus §§6 revoa § sobre o rosto da água/E Deus disse § seja luz §§§ E foi luz” (CAMPOS, 1992, p. 45). A voz de Deus ressoa em diversas passagens da bíblia, trazendo ameaças, avisos, punições, recompensas e realizando pactos. Mas sua figura não é vista. Seu poder se materializa em sua expressão sonora. Talvez pudéssemos dizer que sua imagem se torna uma imagem acústica. Diferentes povos constituem diferentes territórios de escuta compartilhados. Nossa cultura ocidental de origem eurocêntrica tende a enfatizar a visão como organizadora principal do espaço, como dissemos acima. No entanto, há comunidades em que a escuta se revela como a forma principal de disposição de seus modos de vida: ações cotidianas, interpretações sobre vida e morte, identificação da passagem do tempo, de ciclos naturais, etc. Nas comunidades gregas antigas, o canto do aedo era a presentificação dos fatos memoráveis que ele narrava. Inspirava-se nos cantos e vozes das musas, que lhes traziam as narrativas e mensagens atemporais, como vemos na Teogonia de Hesíodo, comentada por Jaa Torrano: É através da audição deste canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e presentes (TORRANO, 1992, p.16, grifos nossos). Um dos mitos dos índios Macurap7 referente à criação das populações terrenas, aponta para a importância da escuta e dos sons: As pessoas que saíam tinham que responder a vários barulhos, a buzinas. Nambu avisou que ninguém devia responder à cigarra. Mas quando a cigarra cantou, os índios logo responderam, buzinaram. Quem gritou primeiro de alegria fomos nós, índios. Se esperássemos, não respondêssemos à cigarra, íamos aumentar mais que outros povos, ser mais numerosos; mas nós respondemos. (MINDLIN et al, 1999, p.39). 6 Haroldo de Campos utiliza o símbolo § para indicar pausas na elocução. O número de símbolos presentes indica pausas maiores ou menores. 7 Etnia indígena brasileira composta por cerca de 480 membros residentes em áreas demarcadas no estado de Rondônia (Funasa, 2010). 19 O antropólogo Steven Feld realizou um estudo sobre a significação cultural do som para o povo Kaluli, de Papua - Nova Guiné no final dos anos 1970, descobrindo que os pássaros eram elementos centrais na organização da vida daquele povo. Seus cantos traziam como marca o movimento e o tempo; os fluxos e os ritmos. Canções rituais (Gisalo Molan) são originadas no canto dos pássaros, mas não como imitação ou inspiração, mas como doação de formas melódicas que os compositores utilizam em suas canções (FELD, 2012). As estações do ano e os ciclos diários são marcados pela presença dos pássaros, cujo canto sublinha as ações do povo Kaluli. Não se caça pássaros próximos à aldeia: “eles não são perturbados, mas escuta-se atentamente a seu canto” (FELD, ibidem, p. 61), pois se acredita serem mensagens daqueles que se foram – os pássaros são uma conexão com o transcendente. Os Kaluli e os pássaros da região estabeleceram relações entre fluxos humanos (ações cotidianas, rituais, ciclos de plantio e colheita, enfim, modos de vida) e fluxos aviários, desenhando um sistema complexo de articulações entre ambos, uma complexa tecedura de formas de pensar, compreender, habitar e agir, perfazendo um compartilhamento entre ambos que ultrapassa a simples representação ou referência. Os territórios de escuta que os Kaluli e os pássaros compõem manifestam a diversidade de conexões entre ambos a partir das relações entre sons e escuta, mas que as ultrapassam, colhendo geografias, estratégias de sobrevivência, imagens de mundo, etc. Estas culturas que se organizam em torno da escuta e dos sons nos fazem pensar nas possibilidades que subjazem em nossa capacidade de ouvir e articular o que ouvimos dentro de modos de viver. Os territórios de escuta dizem respeito às maneiras com que nos relacionamos com o nosso mundo, tanto sob o aspecto da expressão, quanto da percepção de nosso entorno. A sensibilidade e a capacidade de constituição destes territórios dizem respeito ao aprendizado dentro de modos de vida específicos, bem como sua transformação através de experiências que propõe outras organizações da sensibilidade e do pensamento. 20 2.3 Escuta ou escutas? Alguns de nós aguçam sua escuta para identificar os deslizes da linguagem, as falhas e fissuras que revelam um querer não consciente em cada indivíduo. Outros afinam sua escuta para identificar os sons e categorizá-los dentro de um sistema de relações de alturas fixas denominado sistema temperado. Há os que compreendem auditivamente o funcionamento de máquinas e identificam seu estado a partir do que escutam, atribuindo valores a sons produzidos mecanicamente para os quais a maioria é “surda”. Outros ainda escutam os corpos e decifram o que auscultam através de um léxico de sintomas. Assim, quando falamos de territórios de escuta, propomos um conceito que coliga dimensões várias, intensidades diversas, fluxos e não apenas se referem a um ponto fixo de recepção sensorial. Estamos desenhando um mapa da escuta, apontando direções, intensidades, devires e liames que constituem territórios de escuta – e, desta forma, compreendendo como estes territórios irão se constituir na experiência cinematográfica. Escutar não é um ato puro da percepção, mesmo porque não há atos puros da percepção. Escutar é transitar momentaneamente em possibilidades de tecedura de planos diferentes: sensação, experiência, pensamento, tempo, imagem, etc. As coordenadas que definem um território de escuta podem: 1) marcar práticas e saberes sobre o mundo e sobre os seres; podem 2) se originar em diferentes modos de escuta; podem 3) se estabelecer na própria constituição de gramáticas e universos semânticos que são extraídos da escuta; e podem 4) demarcar espaços e territórios físicos e políticos. Pensamos que as proposições artísticas que solicitam a escuta, como o cinema, desenham territórios a partir de uma ou várias destas coordenadas. 21 2.4 A escuta dos objetos Observo meu filho, com oito meses de idade, experimentando objetos a sua volta. Ele os colhe, segura com uma das mãos, passa o objeto para a outra mão; gira-o para vê-lo sob um novo ângulo; agita-o na expectativa de escutar seu som. Ele percebe que alguns objetos são silenciosos quando testados desta maneira e os bate contra uma superfície para observar o resultado, ou os percute com as próprias mãos. Por vezes encontra sons fortes, secos e curtos resultantes das batidas. Noutras encontra ruídos internos aos objetos, como chocalhos, que se manifestam ao serem agitados. Noutras tantas, encontra apenas os restos irreconhecíveis do objeto, subitamente fragmentado após as primeiras pancadas... O manuseio dos objetos leva uma criança a experimentar os sons dos diferentes materiais de que se compõem, manifestando sua corporeidade através da sonoridade colhida: madeira, plástico, ferro (mais finos ou mais grossos, mais maleáveis ou mais rígidos). Cada material possui um som característico que é despertado a partir da interação. É claro que, neste caso, temos que pensar em uma polifonia composta pelos sons do objeto e da superfície em que é percutido ou da mão que o percute: “[...] devemos notar que as vozes das coisas que são normalmente silenciosas só se põem a ressoar em duetos ou polifonias mais complexas”8 (IHDE, 2007, p. 190, tradução nossa). A criança tece parte de seus territórios de escuta a partir de sua interação física com os objetos. Já adultos, percebemos os sons emitidos por diferentes pisos tocados pelo nosso caminhar. Escutamos o som dos saltos finos e rígidos percutindo o piso de madeira; o solado de borracha chiando nas cerâmicas enceradas; o calçado de solado de couro rangendo no piso de pedra britada. Percutimos mesas e móveis e escutamos sua resposta em metal, plástico, madeira, vidro. Aprendemos a compreender os corpos das coisas, sua 8 No original: “[…] we must note that the voices of things that are often silent are made to sound only in duets or more complex polyphonies”. 22 materialidade, seu íntimo, a partir de sua sonoridade. O som penetra e é penetrado pelos corpos; os desvela, fazendo de seu cerne superfície. A polifonia do mundo harmoniza seres vários, restando a nós a escuta dessas composições. O vento nas árvores no diz das estações, dos espaços geográficos, dos momentos do dia, das relações que podemos estabelecer com o entorno a que denominamos natureza. A água dos rios, descendo pelas corredeiras e estilhaçando-se nas rochas ao fundo das cachoeiras, nos diz do movimento do mundo, da renovação constante da vida, do fluxo do tempo: “[no mesmo] rio não se pode entrar duas vezes” (HERÁCLITO DE ÉFESO, 1973, p.94). Caminhamos pelo parque, nossos pés afundam a (na) grama, esmagando folhas caídas das árvores. As cordas dos balanços vibram e rangem os (nos) galhos. Os pássaros agitam os ramos com seus corpos inscrevendo contrapontos secos e ríspidos entre as folhagens. Cada interação sonora que compõe as polifonias do mundo manifesta seres, ações, momentos, sentidos, fluxos e constitui territórios de escuta diversos. 2.5 Modos de Escuta Terça-feira, meio-dia – encontro Jorge, um conhecido venezuelano que reside há alguns anos no Brasil, onde se casou (com uma brasileira) e teve um filho, hoje com seis anos. Jorge é simpático e está sempre disposto a uma conversa. Toda vez que o encontro me pego imerso na cadência de sua fala, na melodia que sua origem traz para a mistura linguística que o aproxima e afasta do local em que habita. Nossa conversa termina abruptamente, talvez pela pouca atenção que dedico aos nossos temas... Para o compositor e teórico francês Michel Chion existem, ao menos, três modos de escuta (CHION, 1990) que caracterizam as relações que estabelecemos com os sons, como os enquadramos na situação de experiência, em nosso contexto histórico/cultural e em quais de seus aspectos atentamos quando os escutamos. Os três modos seriam a Escuta Causal, a Escuta Semântica e a Escuta Reduzida. 23 A Escuta Causal seria a mais comum das três, na qual escutamos um som buscando colher informações sobre sua causa. Em nosso dia-a-dia esse seria o modo mais utilizado para agirmos no mundo e estabelecermos identificações de objetos e seres, por exemplo. A Escuta Semântica, o segundo modo, seria um modo de escuta relacionado aos códigos sonoros, como a linguagem falada ou o código Morse, por exemplo. O terceiro modo, a Escuta Reduzida, diria respeito a uma escuta em que as qualidades do som, suas características acústicas e estéticas, são o foco. Como nos diz o autor “os valores emocional, físico e estético de um som não estão conectados apenas à explicação causal que atribuímos a ele, mas também às suas próprias qualidades de timbre, textura, a sua própria vibração pessoal.” (CHION, 1990, p. 31, tradução nossa). Estes modos definidos por Chion não são maneiras estanques de relacionamento com o mundo, mas podem se sobrepor e mesclar em situações diversas. A percepção de efeitos sonoros decorrentes da interação entre locais, arquitetônicos ou naturais, e os sons que ali ocorrem é traduzida em avaliações sobre as dimensões do próprio espaço, percepção das características alteradas do som pelo espaço e, em alguns casos, as qualidades destes sons alterados. O foco pode ser a reação do espaço às vibrações sonoras – mesclando origem, sentido e até mesmo aspectos estéticos. Estamos imersos em situações que circundam nossos corpos e nossa escuta abarca todo esse entorno. As distâncias entre nossos ouvidos e os fenômenos sonoros que são capazes de notar são constituídas pela resposta do espaço às vibrações sonoras e pela apreensão que delas fazemos. As reverberações são relações que se manifestam na interação entre vibrações de matérias9: ondas sonoras que tocam sólidos e os fazem responder a seu toque; respostas que, por sua vez, vibram em nossos corpos. Há uma poesia entre corpos, entre matérias, que engendra dinamismos particulares localizáveis nessas relações específicas, nesse território de escuta arquitetural. 9 A onda sonora provoca vibrações em todos os corpos que atinge, em maior ou menor grau. No caso da absorção, o “objeto atingido tenderá a vibrar, dispersando energia da onda sonora” (LAZZARINI, 1998). No caso da reflexão, a ínfima vibração do corpo atingido não é capaz de dispersar a energia da onda sonora, e esta é refletida. 24 A escuta musical alia a estrutura de funcionamento da memória, que permite a conexão entre um evento passado e o momento atual, a certa modelagem do universo sonoro que procura/antecipa padrões de repetição e estruturação sonora e relações rítmicas das composições musicais característica da escuta reduzida – bem como parte de um aprendizado histórico-cultural. Husserl faz uma análise da percepção de melodias e frases como um todo em sua extensão a partir de uma consciência temporal que as delimita enquanto fenômenos. O tempo, a partir de uma análise fenomenológica, não é composto de fragmentos isolados, nem tão pouco um substrato fixo em que os eventos se dão, mas modos de funcionamento da consciência que permitem a permanência de eventos passados conectados ao momento presente: “a consciência se dilata para capturar os momentos passados da experiência e objetos temporais ali presentes 'retendo' e 'estendendo' as fases que a compõem, a decorrida e a porvir, de maneira que as palavras ditas e ausentes do momento presente [...] permanecessem relacionadas à experiência atual”10 (KELLY, 2017). A música se delimita enquanto objeto que se dá à escuta através de um fator estruturante que está tanto na composição quanto na própria escuta, e que estabelece relações entre as notas musicais de uma melodia, produzidas ao longo de um determinado tempo, e interpretam a sequência como um todo unitário. Parte destes territórios de escuta depende do próprio funcionamento de nossa consciência e parte depende de um contato com as obras e um aprendizado cultural que totaliza séculos de experiência. Curiosamente, esse modo de escuta pode se aplicar tanto à escuta de instrumentos musicais, quanto a sons do mundo. Podemos perceber esteticamente os padrões sonoros dos ciclos das máquinas, de aglomerações de pessoas, do vento nas árvores, dos pássaros, entre outros, desde que nos permitamos entrar neste modo de escuta. Muitas composições musicais são realizadas a partir do registro de sons do mundo e sua reorganização para apreciação estético-experiencial, de forma que solicitam a escuta musical tanto no ato de sua constituição, quanto no ato de sua recepção. 10No original: […] consciousness extends to capture past moments of experience and temporal objects therein by “retaining” and “protending” the elapsed and yet to come phases of its experience and thereby the past words that do not presently exist [...] yet remain related to the present experience”. 25 Alguns territórios de escuta podem apresentar alto grau de codificação onde cada elemento possui funções definidas estáveis. Outros podem ser menos codificados, nos quais os elementos apresentam funções de situação, momentâneas, fluidas. A própria escuta estético-musical dos sons do mundo que citamos acima constitui um território de escuta pouco codificado em que a situação de confluência que o organiza define papéis efêmeros para seus elementos – este território de escuta depende de uma conjugação momentânea dos sons e do indivíduo que os escuta e pode desestabilizar de um momento para outro, deixando de compor um todo. Já no caso da música clássica ocidental, diversos acordes e notas musicais possuem funções bem determinadas em um dado contexto da composição. Mesmo que possam ter diferentes funções ao longo da mesma, estas ainda são fixas, pré- determinadas pelas regras do sistema que as rege (excluindo-se os casos de rupturas e surpresas, que abrem caminho para as transformações do fazer musical e das regras que definem suas práticas em um dado momento histórico). Mas mesmo em territórios de escuta mais codificados, a descodificação11 pode se manifestar através das maneiras com que os indivíduos se apropriam dos códigos: “seja porque, limitando-se a efetuar as formas socialmente disponíveis, a modelar sua existência segundo os códigos em vigor, ele [o indivíduo] aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração involuntária e tateante de agenciamentos próprios” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 9). A sociedade de consumo de massa cria códigos de decifração e de estabelecimento de relações entre a escuta e o que é dado a ouvir que se querem universais e eternos – a finalidade é a redução dos riscos através da reprodução das criações que “dão certo”. Mas há aqueles que elaboram outras codificações buscando alternativas sonoras que não estão abarcadas na produção industrial. Isto pode se dar em diversos campos artísticos e, com certeza, no cinema, o qual é objeto desta pesquisa. 11 O termo descodificação tem o sentido de quebra de código, de restruturação de códigos, que permitem abertura e transformação. Difere de decodificação, que seria a tradução do código em termos compreensíveis aos que não compartilham o código. 26 2.6 A sistematização da escuta Sexta-feira, dez horas da manhã – estou sentado no banco da praça olhando meu filho brincar. Nos poucos momentos em que ele não me solicita, dizendo: “papai, papai, papai!”, escuto a conversa do casal adolescente sentado em um banco próximo. Ambos trocam palavras com cuidado, escolhendo o tom em que devem ser pronunciadas. Os olhares parecem procurar sinais que indiquem os percursos que as frases omitem. A gramática falha em meio às frases perdidas na tradução. Um território de escuta pode se desenhar na imbricação da escuta e sua formalização em saberes que se exprimem através de gramáticas solidamente erigidas. Um exemplo seria a interpretação médica de sintomas manifestos em sinais sonoros coletados através do estetoscópio. Antes da invenção desse instrumento tecnológico, havia a prática da escuta direta do tórax dos pacientes apoiando-se a orelha sobre o corpo a ser examinado e a percussão utilizando-se os dedos em áreas específicas do tórax e abdome. No entanto, essas técnicas não estabeleceram um corpus sistematizado amplo sobre o sentido do que se escutava como posteriormente, com a escuta mediada pelo estetoscópio, se fez. A sistematização e o aprofundamento da escuta médica se deu no século XIX, com o médico R.T.H.Laennec, inventor do estetoscópio e do termo ausculta mediada, referindo-se ao uso do aparelho para realizar os exames sonoros. A ausculta mediada se diferenciava da ausculta imediata, sem o uso de aparatos (mediadores). O médico, insatisfeito com os métodos tradicionais da percussão e da escuta imediata (encostando-se a orelha no tórax do paciente), nota que ao utilizar um cilindro de papel para escutar um paciente podia “perceber a ação do coração de uma maneira muito mais clara e distinta do que jamais obtivera através da aplicação imediata da orelha”. (LAENNEC apud STERNE, 2003, p. 102 – tradução nossa). Laennec publicou em 1819 um tratado sobre suas pesquisas e suas técnicas de ausculta: De L’Auscultation Médiate ou Trait du Diagnostic des Maladies des Poumon et du Coeur. Nesse tratado, o autor explicita detalhadamente porque e como deveria ser utilizado o estetoscópio, bem como o sentido dos achados sonoros que o instrumento 27 propiciaria: “o Trait consiste em ensaios preliminares sobre métodos de diagnósticos físicos e uma série de longos ensaios sobre o diagnóstico efetivo de diferentes doenças do tórax, brônquios, pulmões, da membrana que recobre os pulmões e a cavidade torácica, da circulação e do coração”12 (STERNE, 2003, p. 103 – tradução nossa). Desta forma, Laennec estabelecia todo um território de escuta complexo que incluía uma gramática da ausculta que articulava modos de realizar a investigação auditiva e um léxico que permitiria a interpretação do que tal investigação poderia encontrar. Inicialmente, havia ainda a definição de um instrumento mediador como possibilidade de ampliação da capacidade de percepção dos fenômenos sonoros corporais. Além disso, incluía a construção de uma situação de escuta que permitisse isolar o que era escutado em relação a outros sons não pertencentes ao corpo, como ruídos da rua, de outra sala, etc. (mesmo que parcialmente num primeiro momento e, ao chegarmos aos modernos estetoscópios, muito efetivamente). É claro que a circunscrição dos sons a serem interpretados e seus sentidos, criava concomitantemente um espaço acústico semântico particular, onde certos sons fariam sentido e outros tantos seriam considerados ruído e, portanto, excluídos. 2.7 Escuta política Sexta-feira, 8 horas da noite - Fluxos lentos e pouco movimento ao redor. O vizinho discute com sua mulher sobre como o filho deve cuidar do cachorro recém-integrado à família. Todos, num raio de ao menos 20 m, compartilhamos a escuta do manual improvisado “Cães: o que fazer e o que não fazer”. O silêncio salienta os latidos de Zezé que ressoam em nossos ouvidos... 12 No original: “The Treatise consists of a preliminary essay on methods of physical diagnosis and a series of longer essays on the actual diagnosis of different diseases of the thorax, the bronchia, the lungs, the membrane covering the lungs and chest cavity, the circulation, and the heart”. 28 A escuta desenha espaços domésticos, através de vozes e sons familiares e rotineiros, que integram nosso cotidiano. Ao mesmo tempo, a constituição destes territórios de escuta que foi, aos poucos, sendo elaborada ao longo da história, é fator determinante nas relações acústicas que se dão nos limites geográficos das comunidades. A vida em comum se organizou paulatinamente em diversas formas de coabitação e compartilhamento. Os espaços públicos e privados não eram delimitados da mesma forma que hoje o são. Sons produzidos pelas ações de artesãos, vendedores ambulantes, vizinhos, sinos das igrejas, eram parte da ambiência sonora que compunha as aldeias e vilas. Em tempos próximos ao atual, a quantidade e intensidade de sons produzidos nas cidades começa a delinear uma relação entre som e ruído que se caracteriza como “low-fi” 13 (TRUAX, 1984), solicitando a criação de normas para regrar a produção sonora ou limitar sua intensidade. O espaço da casa se tornou local de preservação da liberdade e do direito de controle sobre os sons que ali acontecem, criando um território de escuta diferente do exterior, onde as pessoas eram obrigadas a lidar com a diferença que se manifestava através da produção sonora. Sábado, 9 da noite - Um carro passa sob a varanda, pulsando em sincronia com os graves do funk carioca - MC Catra e MC Pedrinho, No Talento - que sai dos enormes e poderosos alto-falantes internos. As janelas da casa vibram tanto ou mais que meus tímpanos. Ao volante, o rapaz expressa, alto e bom som, suas preferências e talvez, nesse caso, sua origem e sua cultura. Solicita, ou melhor, exige a escuta de quem está próximo (ou não tão próximo), demarcando sua localização sócio-política e afirmando-a através da música. O carro se transformou na extensão móvel dos territórios de escuta domésticos, onde posso criar meu universo sonoro ambulante (LABELLE, 2010, capítulo 4), por vezes isolando o exterior, ou, por vezes, tentando sobrepor o meu território de escuta sobre o 13 Truax fala de uma má relação ruído-sinal na qual a “identificação do sinal é difícil ou impossível” (TRUAX, 1984, p. 20, tradução nossa) frente ao ruído. Há uma dificuldade em se escutar seus componentes sonoros devido à presença de ruídos que os embaralham. 29 compartilhado. A potência do som se associa ao poder, uma vez que “os sons mais intensos sempre estiveram associados às mais poderosas forças do mundo, seja no aspecto físico ou político do poder”14 (TRUAX, 1984, p. 113, tradução nossa). As escolhas de composição do meu território de escuta particularizado e movente no espaço do automóvel expressa a posição estética e no caso citado, política, uma vez que realiza um movimento de dissenso em relação à cultura hegemônica. O filósofo Jacques Rancière define o dissenso não como “um conflito de pontos de vista nem mesmo um conflito pelo reconhecimento, mas um conflito sobre a constituição mesma do mundo comum, sobre o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos dos que nele falam para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele são designados” (RANCIÈRE, 1996, p. 374). O funk carioca aparece como a produção musical não autorizada, não chancelada pelo “bom gosto” da cultura hegemônica. A “boa música” não é produzida por moradores das favelas a partir de samples de outras músicas, textos e coreografias que enfatizam a sexualidade, nem tampouco batidas repetidas e vozes não treinadas de cantores improvisados. Essas pessoas fazem parte da classe dos trabalhadores, dos pobres, dos sem- títulos, dos que não têm voz. Assim, tornarem-se compositores, poetas, dançarinos e cantores produz a transformação radical de seu lugar no mundo, uma nova visibilidade para si, e redefine quem tem voz no espaço comum. Domingo, 12 horas - Saio de casa e caminho pelas ruas do bairro. Encontro um conhecido que inicia uma conversa sobre amenidades. Sua fala é pausada, ritmada e em baixo volume. A concentração exigida para escutá-lo só não é maior porque estamos em um domingo e, no momento, quase não há sons que poderiam interferir em nossa conversa. Marcos faz a emissão e a escuta concatenarem-se no delinear de espaços de relação. Ele escolhe não elevar a voz, não ultrapassar o conforto da fala suave, não querer se sobrepor a possíveis ruídos, mas solicitar a total atenção e concentração do interlocutor. 14 No original: “The loudest sounds have always been associated with the most powerful forces in the world, whether they represented physical or political power”. 30 As escolhas que fazemos de como nos manifestarmos sonoramente demarcam posições políticas em relação ao nosso modo de estar no espaço comum. Certas formas de expressão sonora demarcam espaços de oposição, territórios de escuta que perpassam o político: “os tipos de ruídos que provocavam mais reclamações entre os cidadãos letrados e vociferantes eram os sons produzidos pelos cidadãos mais pobres – principalmente os sons produzidos por entertainers e vendedores ambulantes de produtos baratos”15 (COCKAYNE, 2007, p. 122 apud LABELLE, 2010 p. 16, tradução nossa). A citação fala do século XVIII em Londres, mas vale para os dias de hoje nas grandes cidades brasileiras onde o que nos incomoda é, normalmente, o ruído do outro, daquele que não compartilha o meu modo de estar sonoramente no mundo. Estamos desenhando um mapa provisório que aponta para as conexões e fluxos envolvidos nos possíveis territórios de escuta que articulamos nos nossos diversos modos de vida. Estes são, ao mesmo tempo, um conjunto de marcos que deixa abertos os percursos em linhas de fuga16 que podem desenhar novos mapas. As linhas e articulações são momentâneas, são circunstanciais, se redesenham em constelações outras ao ritmo de movimentos de articulação/apropriação e sua renovação em conexões de elementos, fenômenos, e sentidos diversos. A escuta é uma experiência multifacetada e, embora possamos categorizá-la para tentarmos compreendê-la, suas camadas constitutivas simultâneas são múltiplas. Essa é a razão que torna a escuta um fenômeno que se sujeita ao tempo – suas formas e conexões podem ser ampliadas, estendidas, modificadas a partir de experiências que propõem quebras na sensibilidade aprendida ou apresentam outras formas de sensibilidade – o cinema é uma delas. Hoje, a experiência sensorial e as redes de sentido que a complementam ganham novas possibilidades nas tecnologias que, cada vez mais, fazem parte de nosso dia a dia. 15 No original: “The types of noise that attracted most complaint among the literate and vociferous citizens were those sounds made by the poorest citizens—especially the sounds made by popular entertainers and low- profit traders”. 16 O conceito de linhas de fuga foi proposto por Deleuze e Guattari em diversas obras, como Mil Platôs, Diálogos, Proust e os Signos, entre outros. As linhas de fuga demarcam possibilidades de desterritorialização, abertura para novos encontros, novos acontecimentos, novos agenciamentos, novas territorializações: “nos apoiaremos diretamente sobre uma linha de fuga que permita explodir os estratos, romper as raízes e operar novas conexões” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 24). 31 Estas tecnologias trazem propostas de redesenho das forças envolvidas na constituição de territórios de escuta, ora alterando nossa percepção do entorno sonoro, ora modificando o próprio ambiente através de sua presença. 32 3 Escuta e tecnologia Não te espantes com máquinas, com invenções de última hora. Inacreditável é a quantidade de elementos que ainda não obedecem aos homens. (TAVARES, 2005, p. 118). Na década de 1970, morávamos na Rua Santa Catarina, em uma casa com varanda e quintal cheios de pássaros, coelhos e cachorros. As brincadeiras se organizavam em torno do que o espaço oferecia e dos brinquedos que tínhamos: enterrar coisas, correr, esconder e, muitas vezes, cozinhar de mentirinha, com muitos bolos de lama. Certo dia, minha irmã mais velha ganhou um novo brinquedo, um forninho elétrico, o Forninho Atma. Era uma verdadeira “fábrica de bolos”. O brinquedo não só tinha o forno elétrico, mas incluía diversos saquinhos de mistura para bolos fáceis de serem utilizados. Uma revolução culinária! Fizemos inúmeros bolinhos de 10 cm de diâmetro e cinco mm de altura – dimensões que a máquina comportava. Assavam rápido e ficavam uma delícia, ao menos para nossas bocas famintas. Acho que nunca mais fizemos sequer um bolinho de lama... A tecnologia é parte definidora do que seja o humano e sua história acompanha os percursos de constituição de relações entre homem e o seu entorno. Em uma cena de 2001: uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick, hominídeos descobrem a possibilidade de utilização de objetos como ferramentas que modificam sua ação no mundo. Na cena, vemos os golpes do osso sobre outros seres e objetos, materializando a amplificação da potência transformadora do braço e do próprio instrumento. Os objetos tecnológicos são próteses que constituem entrelaçamentos entre o humano, os aparatos e o mundo de forma a constituir agenciamentos em que os três se transformam, estabelecendo equilíbrios momentâneos, articulações temporárias, que logo poderão definir novas aberturas, novas transformações. A construção de objetos técnicos produtores de som, como flautas de osso (os mais antigos instrumentos musicais encontrados pela arqueologia), expressam possibilidades de 33 composição entre práticas sociais, como ritos, e externalizações de ações corpóreas (como a produção de som pela boca). Com isso, são erigidos novos vínculos entre práticas rituais, música, instrumentos, expressões vocais e a escuta: são constituídos novos territórios de escuta. Ao olharmos para o passado veremos que cada instrumento musical criado pelo homem envolvia (e envolve) saberes que se destinavam a sua confecção e que eram, muitas vezes, transmitidos em um processo oral e prático de aprendizagem. Havia ainda um saber fazer relativo ao uso destes instrumentos que criava uma prática musical dominada por indivíduos específicos da comunidade. Além dos saberes envolvidos em sua criação e sua manipulação, esses objetos eram portadores de signos que os conectavam ao universo da cultura de forma singular, tanto em rituais religiosos quanto em celebrações das mais distintas naturezas. Objetos técnicos produtores de sons podem se transformar em marcos sonoros que criam comunidades acústicas (SCHAFER, 1997; TRUAX, 1984), grupos de pessoas localizados em espaços geográficos que são afetados, em suas práticas comunitárias, por manifestações sonoras específicas: “a informação acústica tem uma função compartilhada na vida de seus habitantes” (TRUAX, 1984, p. 58, grifo do autor, tradução nossa). Uma comunidade acústica constitui um território de escuta delimitado geograficamente a partir das práticas conectadas ao som ou do sentido atribuído aos sons dentro do conviver do grupo. As igrejas foram por longo tempo um marco significativo dos sons escutados nas vilas e cidades do passado (e talvez ainda o sejam em pequenas cidades do interior), quando ritmavam a passagem do tempo com o dobrar de seus sinos em horas do dia e cerimônias comunitárias ali realizadas. Os sinos repercutiam nos corpos, solicitavam a decifração da escuta para com eles compor territórios de escuta mesclando sons, acontecimentos, fluxos e ciclos temporais. Hoje, as igrejas evangélicas, com portas abertas para a rua, utilizando instrumentos musicais amplificados, caixas de som potentes, e fiéis fervorosos, marcam, para muitos, os ritmos, fluxos e sentidos da vida e do mundo. O aparecimento de máquinas que produziam sons não intencionais, decorrentes de seu próprio funcionamento, também fez parte da constituição de comunidades acústicas/territórios de escuta em muitos casos. Balsas a vapor que faziam as travessias dos 34 rios em determinados locais tornavam-se marco sonoro da chegada de entes queridos, forasteiros, vendedores ambulantes, dentre outras possíveis interpretações que seu som poderia ter para uma comunidade específica. Os distritos industriais contemporâneos criam territórios de escuta específicos que são compartilhados pela comunidade de seu entorno, marcando sonoramente ritmos diários vividos por ela. No entanto, a constituição de universos sonoros povoados por máquinas suscitou posicionamentos díspares: tornavam-se esteticamente provocadores para alguns e, ao mesmo tempo, opressores para outros. O movimento futurista, notadamente através da figura de Luigi Russolo, advogava a apreciação dos sons urbanos e sua utilização em composições musicais. Em seu manifesto L’Art dei Rumori (1913), Russolo expressa a necessidade de voltarmo-nos para o mundo para reaprender a escutá-lo: Vamos caminhar pela grande capital moderna, com nossos ouvidos mais atentos que nossos olhos, e nos deleitemos sensorialmente percebendo o murmúrio das águas, o ar e o gás dentro dos canos metálicos, os estrondos e o chacoalhar dos motores [...] Nos divertiremos imaginando nossa orquestração de portas de correr de lojas, o burburinho das multidões, os diferentes rugidos das estações de trem, as fundições de ferro [...] (RUSSOLO, 2004, p.7, tradução nossa). A caminhada de Russolo é uma proposta de desenvolvimento de uma nova escuta que seja sensível esteticamente aos sons que acontecem no espaço comum, de forma a ressignificar a experiência auditiva individual, articulando um novo território de escuta a partir dela. O compositor solicita uma atitude e um engajamento do participante para construir, ele próprio, a música que está em potência no mundo, atribuindo ao ouvinte o papel de perceber os sons que escuta como um todo organizado esteticamente apreciável. Para além dos marcos sonoros, a tecnologia trouxe, em diversos momentos, uma modificação profunda na constituição de territórios de escuta a partir de sua ação sobre a escuta e seus diversos modos, criando novas gramáticas e sentidos, bem como novas práticas e formas de habitar e perceber acusticamente o espaço compartilhado. O que estava em jogo não era mais apenas o estabelecimento de relações com um fenômeno acústico que passava a estar presente no ambiente ao ser produzido por um objeto técnico, mas a própria alteração do processo de escuta. A amplificação de sons inaudíveis (devido a sua pequena intensidade) se tornou objeto do desenvolvimento das tecnologias de captura e registro sonoro que apareceram no 35 correr do século XX, com a criação de microfones com sistemas de transdução mais e mais eficientes e sistemas complexos de amplificação e reprodução de sons. Além da possibilidade de estetização dos sons mundanos, haveria, a partir desses aparatos, a possibilidade de criação artística utilizando-se as vibrações mais ínfimas produzidas pelos seres e objetos. O projeto The Dark Side of the Cell foi desenvolvido pela artista Anne Niemetz e o nano-cientista Andrew Pelling em 2004. Neste projeto, foi utilizada a tecnologia do AFM (atomic force microscope), microscópio capaz de produzir imagens de objetos em escala “nano” – prefixo que denota medidas ínfimas, da ordem de 10-9 tanto para dimensões quanto para durações. O AFM revelou, na pesquisa, que as paredes celulares oscilam em uma nanoescala: “uma vez que estas oscilações estão dentro do âmbito da escuta humana, apenas necessitam de amplificação para que as possamos escutar (NIEMETZ apud VANDSO, 2011 p. 69). Desta forma, foram produzidos “áudios celulares” (ou assim se alega) em sessões laboratoriais com o AFM entre 2002 e 2004, os quais foram apresentados em instalações multimídia e estão disponíveis para escuta no site do projeto. O próprio título do projeto brinca com referências musicais e científicas ao mesmo tempo – o lado escuro da lua, revelado pelas missões Apolo; e o disco do grupo Pink Floyd de 1973 intitulado The Dark Side of the Moon. Em muitas manhãs do ano de 1978, ainda criança, costumava escutar LPs que meu irmão trazia para casa. Ele era cinco anos mais velho e “trabalhava” em uma loja de discos de um de nossos tios. Lembro-me de colocar meus bonecos de pano, que tinham alpiste como enchimento, na sala da minha casa, junto a uma das caixas acústicas, e fazê-los executar pequenas performances ao som de discos como A Day at the Races e Queen Jazz, do grupo britânico Queen. Um dia, caminhava com minha mãe e vi, em uma banca de jornal, uma edição de uma revista em homenagem ao “Rei do Rock”, que tinha morrido recentemente – um compacto com quatro faixas vinha encartado. Lembro-me de imediatamente pedir à minha mãe para comprar o disco/revista para mim. Seria o primeiro que escolhi e que desejei ter. Não me lembro, mas imagino que já tinha visto e escutado Elvis na televisão em um dos diversos filmes que circulavam na “Sessão da Tarde”. Ao chegar a casa, coloquei o compacto na vitrola e escutei atentamente as músicas, inebriado pelo objeto e com certa intuição de seu sentido para mim. Jailhouse Rock, se tornou uma trilha 36 musical frequente para meus bonecos, que a cada escuta acrescentavam novos passos às suas coreografias... O final do século XIX vê o aparecimento de uma máquina que se caracterizava pela exteriorização da memória acústica, a qual, a partir de então, podia ser delegada ao aparelho: o fonógrafo. Objeto capaz de ouvir os mais diversos sons e registrá-los sob a forma de sulcos em um cilindro coberto por uma fina folha de estanho, o fonógrafo era um ouvido mecânico e a memória acústica externada que realizava uma transdução das ondas sonoras em sinais físicos. Os registros podiam ser escutados repetidas vezes por qualquer um que manipulasse a máquina. Era a primeira vez que o som, fundamentalmente temporal e efêmero, era fixado e, com isso, deslocado de sua fonte originária. A voz de Enrico Caruso poderia preencher o espaço de minha sala, sem a sua presença, e tecer, juntamente com meu mobiliário, o meu corpo e minha história, um novo território de escuta. A permanência dos sons em um registro repetível transforma profundamente a experiência da escuta e, com isso, a constituição de territórios de escuta. O fenômeno fugidio das vibrações dos corpos se torna objeto passível de repetidas experiências: pode-se escutar inúmeras vezes o mesmo fonograma e, a cada vez, atentar para aspectos diferentes de sua manifestação. O som pode se tornar objeto de análise e apreciação profunda – permitindo sua comparação não só com a fonte original, mas com outros sons registrados e com outras experiências acústicas do ouvinte. Para muitos, a permanência do registro refletia simbolicamente a possibilidade de permanência do indivíduo, uma vez que sua voz poderia ser escutada por gerações futuras. Muitos dos textos que anunciavam o invento e analisavam suas funções na América do Norte ressaltavam a possibilidade de escutar as vozes dos mortos (STERNE, 2003). Dois aspectos distintos emergem dessas experiências: a possibilidade de uma dimensão nova de compreensão do fenômeno sonoro e, ao mesmo tempo, certa fetichização do registro. Cada um desses aspectos aponta para caminhos diferentes: 1) a apreciação e experimentação técnica e estética da manipulação do som; 2) a transformação do som registrado em commodity. Rapidamente surgem gramofones e discos de baquelita, voltados para a execução caseira de registros sonoros os mais diversos, mas principalmente a música. A indústria 37 fonográfica começa a se formar e aposta no fetiche das gravações para seu crescimento. A posse do som, a escuta individualizada e a criação de um território de escuta privado eram parte da rede simbólica que se organizava em torno do fonograma. O som não estava mais irremediavelmente conectado ao momento e local de seu acontecimento. Podia agora ser deslocado e reproduzido em qualquer ambiente diverso daquele em que fora registrado. A ideia de comunidade acústica começa a se transformar, já que os sons passam a circular em uma comunidade, impactando-a em seus hábitos, mas sem necessariamente habitar um espaço geográfico fixo e fazer parte de uma ambiência sonora fisicamente localizável. Além disso, a produção industrial aponta para uma padronização da forma de registro, do conteúdo e de como a circulação do objeto se daria – os sons se tornam discos comerciáveis, distribuídos em lojas, que necessitam de aparelhos específicos para sua reprodução; são acompanhados por campanhas publicitárias que acrescentam interpretações sobre seu sentido e valor. Assim, há uma codificação dos territórios de escuta de maneira a manter estáveis modos, funções e relações em sua constituição. Ou seja, com a produção industrial de conteúdo, e com as situações de escuta e inserção cultural dos sons modelizadas, os territórios de escuta têm parte de seus elementos constituintes fixados, limitando sua abertura a constelações momentâneas de percepção, modos de apreciação e construção de sentido – a indústria tenta delimitar as situações de contato com os sons registrados (os discos); incentivar modos de fruição e desenhar, ao menos em parte, as redes de conexão que deverão ser feitas na fruição. É claro que sempre haverá abertura e flexão da rigidez que pensamentos hegemônicos tentam incutir nos territórios de escuta. Sempre haverá modos individuais de escolha dos fonogramas a serem adquiridos e ouvidos, particularidades nas situações de fruição, bem como estabelecimento de redes de sentido díspares. Lembro-me que, ainda em 1979, residindo na cidade de Foz do Iguaçu, tínhamos, como todas as famílias de classe média, uma empregada. Chamava-se Dôra. Havia uma velha vitrola portátil em casa, que ninguém mais utilizava. Para que seus dias não se tornassem extremamente entediantes, na repetição rotineira das tarefas de casa, deram-lhe de presente a vitrola. Dôra ria e criava contrapontos ousados com Odair José. Sua alegria 38 enquanto escutava os discos só não era maior porque a vitrola teimava em variar continuamente sua rotação, criando leves glissandos e mudanças de tom inesperadas em versões experimentais dos clássicos de amor. Juntamente com o fonógrafo, aparecem os descendentes diretos do estetoscópio, os tubos de escuta individual deslocados do universo médico. Não faziam parte do objeto original criado por Thomas Edison, mas foram acrescentados a ele como possibilidade de escuta individualizada, atenta e profunda. Mesmo em experiências de compartilhamento do que era escutado no fonógrafo (ou em uma de suas diversas manifestações criadas pela indústria), podia-se optar pela escuta individualizada conjunta17, utilizando-se tubos auriculares atrelados, concomitantemente, ao aparelho, auxiliando a maximizar a intensidade do som (relativamente baixo no fonógrafo) e criando a escuta privada: Esse modo de escuta foi bem recebido nos lares e revelou-se essencial para definir o primeiro contexto em que a indústria do fonógrafo realmente começou a lucrar – salões com fonógrafos [...] onde pessoas em trânsito (talvez esperando o trem ou o bonde) poderiam parar por um instante, colocar uma moeda na fenda do fonógrafo, e escutar uma música ou narrativa curta 18 (STERNE, 2003, p. 162, tradução nossa). Desta forma, os tubos auriculares não só criaram espaços privados de escuta, mas foram apropriados pela indústria fonográfica nascente para ampliar a transformação dos fonogramas em commodities que além de serem passíveis de posse privada, poderiam ser experimentadas em trânsito, em uma experiência de escuta distraída nos espaços públicos. As possibilidades de articulação entre sons e possíveis universos de sentido se modificam, apontando para um desenho universalizante e fixo do território de escuta: o território global 17 Uma versão destas máquinas faz parte do acervo do Edson Phonograph Museum, em Quebec, Canadá. No site do museu, há uma foto que permite visualizar os tubos de escuta individual atrelados ao aparelho. A identificação indica que foi fabricado em 1896 por William Chas Tinson. Outra imagem, mais completa, pode ser vista no livro de Sterne, The Audible Past, na página 162. 18 No original: “This mode of listening caught on in private homes, but it was essential for the first context in which the phonograph industry turned a profit: phonograph parlors […] where commuters (perhaps awaiting a train or a trolley) could stop in for a short time, drop a coin in the slot of a phonograph, and listen to a short tune or sketch”. 39 definido pelas diversas indústrias da cultura, onde som se refere ao campo das celebridades, do sucesso, da unificação do gosto, etc. O que, obviamente, não impede apropriações afetivas particulares dos sons e articulação de aspectos individuais nos territórios de escuta. Há sempre algum grau de apropriação local do universal. As noites de sexta-feira para um adolescente de 13 anos, ainda no início dos anos 1980, não tinham o mesmo significado que viriam a ter mais tarde. Esperava aquelas noites com ansiedade, mas não porque queria estar livre da semana cansativa ou porque iria fazer algum programa com amigos. Esperava ansiosamente o programa do “Disc Jóquei” Mr. T., na rádio Liberdade FM. Mr. T. dizia não ser brasileiro e sua fala era marcada pelo sotaque tradicionalmente presente em “gringos” que passavam a viver no Brasil – talvez um sotaque estilizado cujas nuances não eram percebidas pelos ouvidos ainda não treinados. Cada programa durava uma hora ou pouco mais que isso, se ainda me lembro. Em cada um escutava sequências de músicas estrangeiras dos anos 1970 de que comecei a gostar, e disputavam minha atenção com a música mineira da época – Milton, Lô Borges e o Clube da Esquina. Não perdia tempo e gravava quase todos os programas em fitas K7. Depois, mais horas dedicadas à escuta das sonoridades que me encantavam naquele momento. Posteriormente, regravava fitas, apagava músicas de que não gostava e fazia novas edições para o programa, me transformando, ainda que momentaneamente, em meu ídolo, Mr. T. Observamos que a experiência de individualização do espaço acústico no final do século XIX não estava presente unicamente no fonógrafo. Posteriormente, transmissores/receptores de rádio também exploraram o isolamento acústico e a experiência de desligamento do ambiente sonoro. No entanto, a maior potência de transformação da escuta pelo rádio não estava no uso dos fones, como mais tarde as emissoras perceberam, mas na capacidade de transpor distâncias e criar a categoria de “ouvinte”, padronizando o conteúdo das transmissões, estilos de elocução, ritmo das transmissões (através das durações de cada programa e intervalos) e, mais tarde, 40 manipulando a intensidade dos sons transmitidos19 de acordo com propostas de manutenção do interesse e fidelidade do ouvinte (TRUAX, 1984). O rádio é capaz de penetrar nossos lares, imiscuindo-se na vida privada a partir de uma emissão pública. Ao transmitir para todos os lares em uma ampla extensão territorial, padroniza a ambiência sonora das casas que alcança. Desta forma, desenha-se uma universalidade da escuta individualizada, tecnicizada e homogeneizada pela indústria cultural: [...] além de e mais profundamente do que distribuir informação, a mídia produz consenso, instauração e intensificação de uma linguagem comum no social. Ela não é um meio para a massa, a serviço da massa; é o meio da massa no sentido do que a constitui como tal, como esfera pública do consenso, dos gostos e dos sentimentos comuns. (VATIMO, 2002, p. 44). Aqui também podemos falar da constituição de uma nova comunidade acústica, abarcada pela área de alcance da emissora em questão, cuja união não se dá pela significação sonora de objetos da paisagem (sinos de igreja, sirenes de fábricas, etc.), mas pela leitura do mundo a partir da perspectiva adotada pela emissora de rádio – um território de escuta que mescla som, espaço geográfico, afeto, política e, atualmente, religião. No final da década de 1970, a mobilidade foi acrescentada ao isolamento acústico dos fones de ouvido com o aparecimento do walkman. A portabilidade do aparelho permitia o deslocamento através dos mais diversos espaços sonoros sem que houvesse ruptura do espaço acústico privado. Cada um poderia determinar os sons que escutaria independentemente de onde estivesse, conectando sua experiência visual às escolhas particulares de trilha sonora. Este isolamento acústico, em um primeiro momento, corta a experiência de compartilhamento da comunidade acústica, seja ela de que dimensão for, retirando o indivíduo da vida sonora comum. Por outro lado, sua movimentação pelos espaços, pelas ruas, em transportes públicos marca sua presença para outros, sua enunciação de si mesmo através de seu corpo, no 19 Truax aponta que as rádios perceberam que o aumento da intensidade das emissões em determinados momentos da programação era capaz de chamar a atenção do ouvinte e mantê-lo atento ao que estava sendo veiculado. Desta forma, o controle sobre a intensidade passou a ser parte do desenho dos territórios de escuta radiofônicos. 41 próprio ato de se deslocar pelo espaço urbano. Ele está ali, circulando, agindo, embora haja algo que o distancie dos demais. De certa forma, poderia dizer-se de uma separação do usuário de fones de ouvido. No entanto, por outro lado, há uma conexão permanente com o entorno pelo próprio ato de ocupá-lo/percorrê-lo e criar um território de escuta particular na leitura do espaço a partir da expressão sonora que as escolhas do usuário de fones de ouvido manifesta. A opção de manter-se em seu espaço acústico privado seria talvez uma afirmação crítica silenciosa em relação aos sons circundantes (já que o território de escuta que constitui em sua relação com o mundo só é escutado por ele mesmo) – muitas vezes os sons do tráfego de milhares de veículos nas avenidas de uma grande cidade. Na verdade, o usuário de fones de ouvido estabelece relações complexas com seu entorno. A experiência de escuta que se dá através do uso dessas tecnologias pode ser considerada uma constituição particular de experiências estéticas de união entre som e imagens (visualizadas em percursos pelas cidades). Para alguns, a experiência da escuta privada em deslocamento denota uma alienação em relação ao compartilhado, ao diferente, ao outro: “O mundo se torna parte de uma fantasia [...] na qual a ‘alteridade’ do mundo em suas várias formas é negada”20 (BULL, 2012, p. 207, tradução nossa). No entanto, pensamos que estas escolhas talvez possam ser compreendidas como expressão de uma decisão autônoma sobre a constituição de seu território de escuta. Decisão que se opõe a definições que podem vir de um poder hegemônico representado tanto pelo maquinário presente no espaço compartilhado – fruto da tecnologia e da capitalização dos modos de vida – quanto das emissões de rádio ou do muzak que circulam pelo espaço público. Hosokawa em seu artigo sobre o walkman (2012) aponta como uma das características do usuário a autonomia, que não “é sempre sinônimo de isolamento, individualização, separação da realidade; na verdade, em um aparente paradoxo, ela é necessária para o processo de unificação do self”21 (HOSOKAWA, 2012, p. 108, grifo do autor, tradução nossa). O uso de fones de ouvido e aparelhos de som portáteis são formas 20 No original: “The world becomes part of a […] fantasy in which the ‘otherness’ of the world in its various guises is negated”. 21 No original: “Autonomy is not always synonymous with isolation, individualization, separation from reality; rather, in apparent paradox, it is indispensable for the process of self-unification”. 42 de constituir leituras múltiplas, móveis, em transformação constante, do que seja a cidade ou o espaço compartilhado a partir da tecedura de territórios de escuta novos via conexões fluidas entre som e imagem – os recortes visuais se movem constantemente, assim como os sons que a eles se conectam. A cada dia, mesmo fazendo o mesmo trajeto, podemos ter experiências completamente diferentes das relações entre os espaços e eventos e as músicas que escutamos – sincronizações acontecerão independentemente de nossa vontade; ritmos e pulsações serão por vezes ditados pelas músicas que ouvimos, estruturando o andamento do mundo a nossa volta; nossas associações emotivas relativas às músicas que escutamos poderão ser transferidas momentaneamente para o que vemos, mesmo sem nossa intenção consciente. Em 2004, com muitas horas de ócio, saindo do trabalho às 13 horas e caminhando quatro quarteirões até minha casa, a internet se tornou um verdadeiro mundo de possíveis descobertas. Passei meses pesquisando inúmeros Net Labels e inúmeros selos independentes que permitiam a escuta de amostras de seus artistas. Quis entrar no mestrado na comunicação para pesquisar os net labels. Cheguei a ser aprovado, mas desisti na última hora. Mais tarde, produzi em casa um EP com cinco ou seis faixas e enviei para um deles. Sob um pseudônimo, me senti mais seguro. Pouco depois, vi meu EP, acompanhado de um curto, embora sensível, texto exposto no site da “gravadora”. Dez anos mais tarde, consigo saber que 4.352 pessoas, de um universo de cerca de 6.000.000.000 de possíveis ouvintes, escutaram as faixas. Hoje nossa relação com o mundo é marcada pelo aparecimento rápido de tecnologias sempre renovadas que participam de novos agenciamentos entre humanos e máquinas. A ubiquidade e a atemporalidade, a partir da conexão de todos os espaços possíveis, bem como a condensação do tempo no eterno presente do “tempo real” através das tecnologias de comunicação, parecem constituir a experiência organizadora do estar no mundo. A enormidade avassaladora de dados continuamente produzidos pelas redes de conexão planetária parecem solicitar a protetização cada vez maior dos indivíduos, de forma a não perder um só lance dos acontecimentos do mundo. Desta forma, as relações entre 43 escuta, tecnologia e meio são afetadas e novas articulações entre estes elementos acabam por aflorar. As cidades vêm surgir novos componentes nos possíveis territórios de escuta que ali se desenham: sons eletrônicos dos telefones celulares, tablets, jogos eletrônicos, e-book readers (com leitores com vozes sintetizadas), notebooks, MP3 e MP4 players, entre outros gadgets que circulam atrelados aos corpos. As próteses que passam a fazer parte dos corpos criam novos comportamentos: pessoas falam em voz alta para seu aparelho em diálogos (quase absurdos) que se dão nos espaços de convivência e troca; grupos se reúnem em torno de telas para conversar com outros grupos localizados em espaços geográficos desconhecidos; famílias se encontram e mantém a proximidade física enquanto manipulam seus celulares de forma distraída, articulando conversas múltiplas presenciais e virtuais ao mesmo tempo; a circulação de fonogramas se intensifica e é pressionada pela renovação constante (vide o sugestivo título do disco da banda Titãs lançado em 2001: A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana). A “revolução” do mp3 prometia transformações impensáveis nos hábitos, nos valores e sentidos da circulação musical, e afetaria não só usuários, mas a indústria da música e seus sistemas de comercialização de produtos, contratação de grupos musicais, etc. Em seu início, percebeu-se uma intensa transformação dos fonogramas físicos em arquivos digitais e uma intensa troca via internet que apontava para uma circulação ampla global. Os conglomerados da indústria da música (que normalmente fazem parte de conglomerados mais amplos, da indústria de massa) sentiram-se ameaçados e tentaram oprimir o movimento, fechando sites, processando internautas, criando sistemas de bloqueio, etc. Da mesma forma, os artistas se dividiram, alguns contra e outros a favor da nova onda. Mas ainda assim o movimento continuou e a troca se intensificou, bem como a distribuição gratuita de fonogramas. Por outro lado, apesar de toda a transformação na circulação das músicas, muitos usuários dos sistemas estavam mais interessados em reproduzir virtualmente o que as rádios circulavam nos sistemas de mass media. Por volta de 2008, em conversa com um produtor de rádio que estava bolando uma programação para ser veiculada em um site, a partir das escolhas dos usuários, ele disse que observou algo inesperado: a programação 44 estava se aproximando mais e mais da programação das rádios comerciais que tinham o mesmo público. A criação e circulação livre prometida pelo mp3 mostraram-se fortes, ao menos momentaneamente, no aparecimento dos net labels. Net labels foram (e são) distribuidores virtuais de produções musicais autorais – normalmente de artistas desconhecidos do público e que não tinham acesso à indústria da música. Os net labels constituíam nichos específicos, incentivando e distribuindo estilos de música que garantiam certa unidade ao label. Desta forma, novos artistas e estilos pouco difundidos começaram a ter acesso a uma circulação mais ampla. Artistas dos home studios, que produziam suas obras com as novas tecnologias, nos seus quartos, podiam sonhar em alcançar algum público e ter suas composições escutadas por mais alguém além de seus amigos queridos. Por certo tempo os net labels distribuíram uma diversidade grande de artistas e alcançaram circulação crescente por todo o globo. No entanto, outras formas de troca foram aparecendo e modificando o status deste formato. Redes sociais foram surgindo e substituindo as formas de troca de material inédito e autoral via arquivos digitais – myspace, last.fm, soundcloud, bandcamp, facebook, entre outros. As novas redes de troca permitiram ainda mais acesso aos artistas independentes e aos nichos de estilos específicos, propiciando a transformação de territórios de escuta, tanto pela experiência das obras, quanto pelas trocas e apreciações dos próprios usuários. Por outro lado, hoje estamos tecendo nossos territórios de escuta virtuais musicais (em trânsito ou nos nossos lares ou ambientes de trabalho) a partir de algoritmos que sugerem músicas para escutarmos. Os algoritmos pesquisam nossos gostos e encontram músicas que provavelmente iremos apreciar, a partir dos dados coletados e sua eficiência em encontrar obras que tragam variação, mas, ao mesmo tempo, redundância. Delegamos à tecnologia a função antes exercida pelas mídias de massa. Agora ficamos satisfeitos em constatar como o algoritmo é preciso em renovar nosso gosto musical com “mais do mesmo”. Nada de surpresas ou encontros casuais. Tudo previsto e formatado para seu gosto pessoal e deleite garantido. Por outro lado, estes desenhos complexos de relações de escuta do outro e do meio criam novas articulações: há que se mesclar uma escuta difusa com o deslizamento 45 constante entre o fundo e o primeiro plano; mesclar uma escuta de apreciação estética e decifração de signos em sobreposição mais intensa; ser capaz de criar conexões entre o que escuta através da mediação tecnológica e o que escuta ao mesmo tempo no espaço real; etc. Isto não quer dizer que todos os ouvintes contemporâneos transitem necessariamente nestes inúmeros modos, formas, gramáticas, processos ou redes de escuta, mas que elas são possíveis e aguardam ouvidos que as realizem. A tecnologia participa da constituição de territórios de escuta, muitas vezes tendentes à estabilidade (a repetição constantemente renovada do capitalismo cultural), mas também muitas vezes fluidos, onde linhas de fuga permitem novas articulações mais facilmente. 46 4 Som e Cinema – um percurso teórico sucinto Encontramos na rua uma fileira de cadeiras de um velho cinema levamos para casa colocamos na varanda passamos toda a tarde bebendo e fumando assistindo passar um dia qualquer (MARQUES, 2011, p. 53) Nos anos 1970, assisti no cinema, pela primeira, vez o filme A Fantástica Fábrica de Chocolate (Willy Wonka and the Chocolate Factory, 1971), de Mel Stuart. A atmosfera especial da sala escura, o tema do filme, as lindas imagens extremamente coloridas e, principalmente, as músicas, permaneceram para sempre na minha memória. No fim da adolescência, quando já tinha acesso a um vídeo cassete, gravei em fita K7 cada um dos trechos musicais do filme, para que pudesse escutar sem as imagens. Pure Imagination, cantada por Gene Wilder, estava no topo da lista. Só foi suplantada, pouco tempo depois, pelos trechos das composições de Bernard Herrmann para Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock, minuciosamente “recortados” do filme original e transplantados para minha fita K7. O arpejo circular da abertura e as diferentes referências musicais do pesadelo de Scottie tomavam por completo minha já-não-tão-pura imaginação. O cinema surge ainda no fim do século XIX como promessa tecnológica de transformação do campo das artes, transportando para a tela o mundo em seu acontecer ou recriando narrativas diversas que ilustravam modos de vida das populações do globo e universos imaginários. Esta promessa ganhou espaço no século seguinte e tornou-se um campo de entretenimento, criatividade, questionamento e reflexão sobre o humano que se articula a culturas díspares no mundo todo. Traz consigo toda uma carga das tecnologias que o antecederam e das quais compartilha elementos e modos de interação. Os formatos atuais expandidos (as projeções em espaços abertos, a videoarte, as inúmeras formas 47 experimentais de animação, entre outros), bem como os gadgets pessoais que transportam e veiculam filmes de forma personalizada (com fones de ouvido), interativa, em deslocamento e mesmo com uma percepção flutuante, solicitam uma mescla dos diversos modos, gramáticas, conexões e redes de sentidos que viemos discutindo até aqui. O cinema coloca em interação duas linguagens que se unem na produção deste terceiro elemento que é o filme: som e imagem são articulados através de tecnologias de registro que transformam e deslocam a visão e a escuta; transportam-na para a sala escura e produzem deslizamentos entre ambos os elementos que constituem novas formas de sensibilidade e sentido. Os territórios de escuta que surgem no cinema apontam para a diversidade ampla no estabelecimento de redes de criação e leitura ou, ao mesmo tempo e no sentido oposto, para o estabelecimento de territórios de escuta fixos via a produção cultural que repete seus moldes e os exporta para diferentes culturas e locais: “o capitalismo artista e sua ordem midiático-publicitária é um sistema que produz a ‘diversidade homogênea’, a repetição na diferença, o mesmo na pluralidade” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 52). Desde o início, os registros cinematográficos tiveram sua fruição acompanhada, na maioria das situações de projeção, por alguma manifestação sonora: música ao vivo, sonoplastia, narradores e intérpretes in loco (KALINAK, 2010). Alguns autores observam que a própria ideia do cinema, a sala escura com a projeção de imagens e sons, antecede sua história oficial até mesmo em alguns séculos: “o cinema aparece como continuação e transformação das tradições da lanterna mágica, nas quais showmen projetavam imagens em uma tela, sob o acompanhamento de voz, música e efeitos sonoros” (MUSSER, 1990, p.15, tradução e grifo nosso). Esta forma de relação entre som e imagem em movimento nasceu buscando realizar conexões físicas e simbólicas entre um e outro campo. Musser relata a construção dramática das apresentações da lanterna mágica de Robertson (Étienne Gaspar Robert) no final do século XVIII, onde havia um discurso de abertura que enfatizava o terror, o desconhecido e o oculto, seguido pelo início da apresentação com efeitos sonoros: Após Robertson completar sua longa fala, as luzes se apagavam e o tom da apresentação era aprofundado ainda mais por efeitos sonoros (chuva, trovão, e sinetas soando o toque da morte). Uma aparição se aproximava dos espectadores ate que estivessem prestes a gritar – e logo desaparecia. Seguia-se a isto uma série 48 de cenas tristes, sérias, cômicas, graciosas e fantásticas (os adjetivos são de Robertson) 22 (MUSSER, 1990, p. 24, tradução nossa). A denominação de “cinema mudo” parece não refletir exatamente as situações de apreciação do espetáculo das imagens móveis – a sonoridade estava presente de diversas maneiras, desenhando conexões entre som e imagem, propositais ou não. Em alguns dos primeiros experimentos, como o Quinetofone, tentava-se a articulação entre ambos. O Quinetofone de Thomas Edison, apresentado ao público em 1895, era uma junção de tecnologias de som e imagem: um Quinetoscópio (máquina de projeção individualizada de imagens cinematográficas criada por Edison em 1894) e um Fonógrafo (máquina de registro e reprodução de sons criada por Edison em 1877). Arlindo Machado nos lembra de que, para Edison, ao inventar o Quinetoscópio, O cinema surgia como um ‘fonógrafo óptico’ (um quinetofone, como ele chega a denominar em algumas circunstâncias) e que, mais do que resolver o problema da representação da imagem em movimento, o que estava em sua mira era ‘aperfeiçoar’ o fonógrafo com a complementação ‘necessária’ da imagem que produz o som. Desde o início, portanto, o que estava no horizonte da equipe de Edison era já o cinema sonoro (MACHADO, 2002, P.155). O curto experimento cinematográfico (1894/1895) de William Dickson, que trabalhara com Thomas Edison, onde vemos e ouvimos a execução de um violino enquanto dois homens dançam é um exemplo da proposta com ênfase na sincronia entre o som e a imagem da própria execução. Como sabemos, as dificuldades técnicas de sincronização entre som e imagem, bem como de amplificação suficiente do som, impediram, temporariamente, a constituição de um cinema que unisse ambos os campos através de uma tecnologia. A conexão entre som e imagem, mesmo no início da história do cinema, insere-se em um arcabouço simbólico que atribuía um lugar para o som dentro do espetáculo. Gorbman (1987) discute os motivos da presença da música extra-diegética23 nas produções 22 No original: “After Robertson completed his extended speech, the lights were extinguished and the mood heightened still further by sound effects (rain, thunder, and chimes sounding the death toll). An apparition approached the spectators until they were ready to scream – at which point it disappeared. This was followed by a series of sad, serious, comic, gracious, and fantastic scenes (the adjectives are Robertson´s)”. 23 A música extra-diegética é assim denominada por ser associada às imagens da tela, mas não encontrar nela nenhum elemento de referência realista. A música é executada como se estivesse fora da película, embora dela tome parte. 49 cinematográficas desde seu início, fazendo parte da sala de projeção inicialmente e, posteriormente, inscrita na própria película e mesclada aos demais sons do filme. A música não faz parte do registro ou da reconstrução da percepção sonora/visual real, na maior parte dos casos, mas é capaz de constituir relações particulares com a imagem. A autora analisa argumentos que propõem interpretações sobre o fenômeno do uso da música no cinema: a continuidade histórica da relação entre música e evento cênico (principalmente após o melodrama francês, embora possamos considerar seu início ainda no teatro grego); a finalidade de trazer a terceira dimensão perdida pelo registro técnico bidimensional, o que a tridimensionalidade do fenômeno sonoro, ao ocupar o espaço de projeção, traria; o mascaramento dos ruídos do próprio projetor na sala de cinema, entre outros. Gorbman questiona todas estas considerações sobre a permanência da música na sala de cinema, apontando que nenhuma delas explica necessariamente a continuidade do “acompanhamento” musical das imagens móveis. Por outro lado, a autora observa que a música, como é utilizada tradicionalmente no cinema, tem a finalidade de articular diversos elementos da narrativa ao cruzar fronteiras “entre níveis da narração (diegético/não diegético), entre agentes da narrativa (narradores subjetivo-objetivos), entre o tempo da projeção e o tempo psicológico, entre pontos do tempo e do espaço diegéticos (como transição [temporal e espacial] da narrativa)”24 (GORBMAN, 1987, p. 30, tradução nossa). A música teria essa qualidade de distanciamento e conexão: estar fora (ou transitar entre o dentro e o fora) e permitir a ligação entre elementos díspares – imagens que a princípio poderiam não ter uma relação entre si. Os territórios de escuta desenhados a partir da relação específica entre som e imagem em movimento solicitavam e constituíam novas escutas, ao mesmo tempo em que constituíam geografias próprias – espaços virtualizados e reais mesclados na projeção sobre a tela e no local de fruição, na memória, na experiência vivida e na imaginação; na 24 No original: “Music in film mediates. Its nonverbal and nondenotative status allows it to cross all varieties of ‘borders’: between levels of narration (diegetic/non-diegetic), between narrating agencies (objective/subjective narrators), between viewing time and psychological time, between points in diegetic space and time (as narrative transition)”. 50 proximidade do objeto de escuta/olhar e em seu distanciamento; no desligamento do mundo compartilhado e na imersão na experiência narrativa da tela. A sala de cinema constitui uma heterotopia, um espaço que se manifesta como contraposição aos diversos posicionamentos reais que ocupamos, mas ao mesmo tempo os representa. O conceito de heterotopia foi cunhado pelo filósofo Michel Foucault, em seu texto Outros Espaços (2006). Foucault o define como espaço real, criado pela própria sociedade que se manifesta como uma espécie de utopia realizada “[...] que tem o poder de justapor em um só lugar real, vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (FOUCAULT, 2006, p. 418). O cinema seria um dentre os vários espaços heterotópicos que podemos encontrar na cultura. Lugar fora do lugar, onde vários espaços se sobrepõem, “sala retangular muito curiosa, no fundo da qual, sobre uma tela em duas dimensões, vê-se projetar um espaço em três dimensões” (FOUCAULT, 2006, p. 418). Espaço que se desenha na reconstrução do tempo, através do corte e da montagem, da junção pluri-temporal (uma heterocronia, como nos diz o filósofo) e pluri-espacial que as narrativas projetadas na tela constituem. Espaço de imbricação de uma rede de relações que abarca tanto a história do cinema e de outras artes que a ele se conectam, quanto às teceduras sensoriais e de sentido individuais e culturais que se dão na experiência das obras. Espaço em que as complexas relações entre som, imagem e cultura propiciam a emergência de territórios de escuta. O cinema é espaço aberto, mas onde só se pode entrar “com uma certa permissão e depois que se cumpriu um certo número de gestos” (FOUCAULT, 2006, p. 420) que vão desde o ato voluntário do pagamento do ingresso até a entrega corporal às limitações que definem o papel do espectador cinematográfico: “dupla limitação da imobilidade do corpo, bloqueado em uma poltrona [e sua respectiva] contenção do campo visual” (COMOLLI, 2008, p. 139). Acrescentaríamos a contenção do campo auditivo que caracteriza o isolamento (embora relativo) da sala de cinema. Para além de se manifestar como uma heterotopia, o cinema traz consigo a marca da inserção da máquina na construção do espaço e do tempo percebido. A imagem cinematográfica é uma imagem técnica produzida por um aparelho criado a partir de saberes que definiram as possibilidades de captura de imagens com uma determinada 51 configuração, bem como da captura do som e de sua articulação fragmentária em um todo de duração definida. De certa forma, há uma programação prévia das possibilidades de atuação da máquina em sua relação com as imagens e sons que produz. Esta programação não diz respeito unicamente ao aparato que se poderá usar, mas sim a todo um dispositivo que engloba o objeto técnico, o pensamento produzido sobre ele, as imagens que realiza, os modos que utiliza para fazê-lo, bem como o sentido atribuído culturalmente a estas imagens. Um dispositivo inclui “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2005, p. 9). O pensamento hegemônico sobre relações entre som e imagem no audiovisual que discutiremos mais a frente é parte deste dispositivo em que as imagens/sons se inserem. Há toda uma estrutura de codificação das obras audiovisuais que estabelecem (mesmo que não definitivamente) um plano onde estas imagens/sons transitam, conectam-se, fazem sentido, ocupam suas funções: “toda imagem produzida se insere necessariamente na correnteza das imagens de determinada sociedade, porque toda imagem é resultado de codificação simbólica fundada sobre código estabelecido” (FLUSSER, 2008, p. 21). Cabe aos artistas tentar produzir imagens/sons que vão contra a programação prévia, contra os limites de um pensamento que as “enforma” através da automação da máquina e de seu código de inserção – como nos diz Flusser. Logo nas primeiras décadas do cinema já havia propostas de como deveria ser a construção da relação entre som e imagem, principalmente entre música e imagem. Era uma espécie de programação prévia que definia articulações, mesmo que os primeiros filmes não fossem distribuídos com uma trilha sonora específica para eles e deixassem o acompanhamento musical “por conta da imaginação e dos meios do próprio exibidor” (MACHADO, 2002, p. 159. Compêndios que indicavam composições musicais para serem utilizadas em determinados momentos da narrativa, enfatizando emoções, dando ritmo, indicando localizações geográficas, etc., já existiam na segunda década do século XX – ainda no período “mudo” do cinema. Como exemplo, podemos citar a série Sam Fox Moving Pictures Music, editada por J.S. Zamecnik (1913-14); ou a série Kinothek de Giuseppi Becce publicada em Berlim (1919-29), que usava músicas compostas para outros filmes e músicas já conhecidas pelo público, de diversas origens. As interpretações de relações entre música e 52 imagem vinham, em sua maioria, de outras fontes e já estavam na memória do espectador: da ópera; da música programática; do teatro - principalmente do melodrama, onde o papel da música era ainda mais significativo para a narrativa do que em outros gêneros teatrais; bem como de outras atrações que eram difundidas na época anterior (como os espetáculos de lanterna mágica citados acima) e contemporaneamente ao próprio cinema. Logo que o som fez sua entrada via tecnologia na sala de cinema, sincronizando movimentos labiais e as vozes dos atores, bem como ruídos e suas respectivas origens, suscitou a reflexão e a apresentação de proposições sobre como lidar com este novo elemento e suas relações com as imagens. Na Declaração Sobre o Futuro do Cinema Sonoro (1928), Eisenstein, juntamente com Pudovkin e Alexandrov, afirma a necessidade do uso polifônico do som em relação às imagens visuais e de um caminho de exploração da não- sincronização25 entre ambos para o desenvolvimento de um cinema mais criativo. Em seguida, Dziga Vertov nos apresenta propostas (e realizações) que questionam o discurso de seus compatriotas: Declarações sobre a necessidade de evitar a coincidência de momentos visuais e auditivos, assim como declarações sobre a necessidade de se fazer apenas filmes sonoros ou apenas talkies não valem nada. No cinema sonoro, como no cinema mudo, distinguimos apenas dois tipos de filmes: documentários (com conversas e sons reais) e filmes-drama (com conversas e sons artificialmente preparados). Nem documentários, nem filmes-drama são obrigados a ter momentos visuais que coincidam (ou não coincidam) com momentos auditivos. Planos sonoros e planos silenciosos são ambos editados da mesma forma; podem coincidir (ou não coincidir) na montagem ou podem ser misturados uns com os outros em várias combinações 26 (VERTOV apud FISCHER, 1985, p. 249, tradução nossa). Posteriormente, outros autores, como Béla Balász e Alberto Cavalcanti, produzem reflexões sobre o papel do som no cinema a partir de diferentes perspectivas. Balász, na 25 Talvez pudéssemos dizer sincronização não-realista, pois sincronização diz respeito a uma imagem que ocorre em sincronia com um som, o que pode acontecer de inúmeras maneiras. A sincronização realista manteria a junção entre imagem e som como a percebemos no mundo. 26 No original:”Declarations about the need to keep visual moments from coinciding with audible moments, just like declarations about the need to have only sound films or only talkies aren´t worth a bean. In sound film, as in silent film, we distinguish only two kinds of films: documentary (with real conversations and sounds) and play-films (with artificially prepared conversations and sound). Neither documentaries nor play-films are obligated to have visible moments coincide (or not coincide) with audible moments. Sound shots and silent shots are edited alike; they can coincide (or not coincide) in montage or they can mix with each other in various combinations”. 53 década de 1950, aponta questões e características do som cinematográfico que passam não só pela revelação dos sons do ambiente, parte de nossas vidas cotidianas, e para o qual pouco atentamos, mas também pela nossa redenção “do caos do ruído sem forma” ao tomá-lo, o próprio ruído, como “expressão, como significância, como sentido...”27 (BALASZ, 1985, p.116, tradução nossa). Cavalcanti aprofunda esta perspectiva do ruído, apontando sua possibilidade real de construção cinematográfica – ao compor a banda sonora do filme North Sea (1938), de Harry Watt, Cavalcanti utiliza um som irreconhecível com propriedades timbrísticas que enfatizavam a ideia que queria transmitir: “o guincho dava a impressão de que o navio tinha sido espremido diagonalmente e todas as suas juntas arrebentadas” (CAVALCANTI, 1957, p. 178). Ambos os autores avaliam a riqueza dramática trazida pelo uso do som assincrônico defendido por outros pensadores e diretores. Cavalcanti, além disso, critica o uso excessivo da palavra sincronizada dos talkies e o esquecimento da palavra não sincronizada, lembrando-nos de momentos expressivos de seu uso, como no filme Night Mail (1936), de B. Wright e H. Watt, cuja narração é um poema escrito por W.H. Auden (CAVALCANTI, 1957). Em seu livro Filme e Realidade (1957), Cavalcanti analisa os três elementos da banda sonora: voz, música e ruídos, além de deixar um curto comentário sobre a potência do silêncio. Assim como ele, Balász também percebe a potencialidade dramática do silêncio sobre a imagem cinematográfica, apontando o cinema como a única arte que consegue reproduzi-lo completamente. Por outro lado, o teórico reflete sobre a possibilidade que o cinema traz de tornar o som audível de uma nova maneira, destacando-o de seu ambiente natural, isolando-o, magnificando-o e recompondo-o “em uma ordem com propósito através da montagem sonora”, fazendo do som do cinema, a partir daí, “uma nova arte”28 (BALÁSZ, 1985, p. 117, tradução nossa). O aspecto mais significativo do pensamento destes autores está justamente no fato de que, de certa forma, ambos apontam para possibilidades de dissensão estética frente às práticas hegemônicas do som no cinema de seu tempo a partir da criação de novos 27 No original: “[…] from the chaos of shapeless noise […] as expression, as significance, as meaning…”. 28 No original: “[…] in a purposeful order by sound-montage […] a new art”. 54 territórios de escuta que propusessem e solicitassem a tecedura de novas redes sensoriais e interpretativas. Os territórios de escuta e sua proposição em obras artísticas ganham riqueza justamente nas diversas possibilidades de leitura e articulação que possam gerar, a abertura para conexões não sistematizadas – fluxos que podem provocar a sensibilidade e o pensamento. Rever estas ideias é uma forma de refletirmos sobre como o pensamento abordou a relação entre imagem e som no cinema – como pensou os territórios de escuta no cinema – e como influencia o pensamento que estamos desenvolvendo nesta pesquisa. O livro Composing for the Films (1947) de T.W. Adorno e Hans Eisler se tornou uma das referências para o pensamento crítico sobre a música no cinema logo após suas primeiras edições (em inglês, na data mencionada, e alemão em 1949). Assim como vemos nos textos de Balász e no livro de Cavalcanti, mencionados acima, Adorno e Eisler elaboram uma crítica aguda à padronização do uso da música no cinema. Mas além da crítica, os autores elaboram propostas e argumentações em favor da “nova música” como perfeitamente hábil e capaz para a construção de relações com as imagens cinematográficas. Não se trata do “novo pelo novo”, mas de uma relação entre o material musical e o material fílmico que estabelece outros laços que não os comumente praticados pela indústria do cinema: “a exigência fundamental da concepção musical do filme consiste em que a natureza específica do próprio filme deve determinar a natureza específica da música – ou o inverso, embora este caso seja, atualmente, bem mais hipotético”29 (ADORNO; EISLER, 1976, p. 91, tradução nossa). Os autores desejam, como todos os artistas do século XX, a renovação das práticas artísticas, seja no campo do cinema, seja no campo da música (vide as análises e críticas de Adorno contra a indústria da música e a indústria cultural – termo por ele cunhado). Desejam que as artes experimentem novas formas e novas relações entre seus elementos constituintes. Procuram obras que provoquem a eclosão de territórios de escuta diferentes, articulações que desloquem as redes percepto-interpretativas já constituídas pelas obras da indústria e seu público. Talvez não devamos falar de renovação, mas de ampliação tanto do 29 No original: “La exigencia fundamental de la concepción musical del film consiste em que la naturaleza específica del fim debe determinar la naturaleza específica de la música – o la inversa, aunque este caso sea actualmente más bien hipotético”. 55 material disponível para a construção das obras, quanto da relação espectador/obra. Quando pensamos em territórios de escuta no cinema (e artes afins) e sua capacidade de provocarem novas sensibilidades, pensamos nesta ampliação, nesta abertura para o experimento com o material, a forma, as relações entre os componentes, os suportes e os processos que estes autores buscam. Por volta dos anos 1970 em diante, dá uma maior produção de análises sobre a questão sonora no cinema por teóricos como David Bordwell e Kristin Thompson, Mary Ann Doane, Michel Chion, Claudia Gorbman, Noël Burch, entre outros. Esses autores refletiram sobre o som em filmes e no meio audiovisual, produzindo um pensamento complexo que, em parte, influencia nosso pensamento sobre os territórios de escuta. Diferentemente das pesquisas anteriores, a maior parte destes autores não propõe formas, modos ou poéticas específicas para a articulação entre som e imagem no cinema, mas buscam compreender como o som participa do cinema em seus diversos aspectos, manifestações e funções. Apresentam propostas de análise que buscam fomentar discussão e pesquisa sobre no campo, de forma a aprofundar e ampliar a compreensão dos papéis do som no cinema. Bordwell e Thompson escrevem um artigo a quatro mãos publicado em 1979: “Fundamental Aesthetics of Sound in the Cinema” (sem tradução em português até o momento). Neste artigo, discutem a importância do som em sua capacidade de “delinear ativamente o modo como interpretamos a imagem”30 (BORDWELL; THOMPSON, 1985, p. 181, tradução nossa). O som pode tornar mais clara uma ideia trazida pelas imagens, complementando seu sentido, mas também pode contradizê-las ou torná-las ambíguas com a mesma potência. Os autores comentam a importância das propriedades acústicas do som como elemento de construção de sentido em sua conexão às imagens no cinema: “apresentando-se como os componentes fundamentais do som no cinema, a intensidade, a altura e o timbre interagem de forma a definir a textura sonora de um filme”31 (BORDWELL; 30 No original:”[...] actively shape how we interpret the image”. 31 No original: “As the fundamental components of film sound, loudness, pitch and timbre usually interact to define the sonic texture of a film”. 56 THOMPSON, 1985, p. 185, tradução nossa). A seleção e a combinação de sons permitem a criação de diferentes relações tanto entre os elementos que compõem a banda sonora (voz, ruídos e música), quanto desta com a imagem. Embora se trate de um texto curto, o artigo de Bordwell e Thompson se revela central para a compreensão de que não se trata unicamente da música como material sonoro capaz de realizar conexões expressivas e múltiplas com a imagem. Os autores nos ajudam a perceber e pensar a potência de qualquer som, bem como de suas características materiais e espaciais, para o desenho de territórios de escuta no cinema. Para além de citar os ruídos como capazes de expressão, analisam aspectos particulares do som e apontam possibilidades de uso destes elementos para desenhar o espaço sonoro de um filme, ou como dizem, “a textura sonora de uma obra”. Estas propostas se conectam diretamente com o que viemos descrevendo como território de escuta – a complexa tecedura de conexões entre a percepção dos sons – qualquer som – e os afetos e sentidos que possam provocar em nós. Michel Chion escreveu diversas obras sobre o som no cinema: Film, a Sound Art (2009), La Voz em El Cine (2004), Audio-Vision: sound on screen (1990) e La Musique au Cinéma (1995), entre outros. Dois de seus principais conceitos aparecem na obra Audio- Vision: síncrese e valor agregado. O conceito de síncrese (aglutinação das palavras sincronia e síntese) define uma interação entre som e imagem postos em sincronia na qual se realiza uma síntese entre ambos, “forjando [...] uma relação imediata e necessária entre algo que se vê e algo que se ouve”32 (CHION, 1990, p.5, tradução nossa). O valor agregado é um “valor expressivo e informativo com o qual um som enriquece uma dada imagem criando [uma] impressão definida [...] de que essa informação ou expressão vem ‘naturalmente’ do que vemos, e já está contida na própria imagem”33 (CHION, 1990, p.5, nossa tradução). O autor nos lembra que “o valor agregado funciona 32 No original:”forging […] an immediate and necessary relationship between something one sees and something one hears”. 33 No original: “expressive and informative value with which a sound enriches a given image so as to create [a] definite impression […] that this information or expression "naturally" comes from what is seen, and is already contained in the image itself”. 57 reciprocamente. O som nos mostra a imagem de maneira diferente do que se a víssemos por si só, e a imagem, da mesma forma, nos faz escutar o som de maneira diferente do que escutaríamos se ele estivesse soando no escuro”34 (CHION, 1990, p.21, tradução nossa). Para nossa pesquisa, os conceitos de síncrese, valor agregado e a ideia de coirrigação entre som e imagem são centrais - são conceitos que consideramos extremamente potentes para a compreensão de como os territórios de escuta se desenham no cinema. Os três são complementares e indicam uma relação complexa e de mão dupla entre som e imagem nas obras cinematográficas. Comentamos acima a definição de síncrese e de valor agregado. A coirrigação nada mais seria que a ação mútua entre som e imagem, onde ambos trazem sentido um para o outro. Não se trata do som adicionar algo à imagem, nem tampouco da imagem adicionar algo ao som, mas de um movimento duplo em que ambos se alteram em sua articulação. Este conceito aponta para uma flutuação ampla e constante nas relações entre som e imagem – flutuações que se dão tanto a partir dos contextos em que aparecem (estas relações), quanto no encontro entre espectador/ouvinte-obra. Mary Ann Doane, em seu artigo A Voz no Cinema (1980), analisa os aspectos da voz em sua manifestação cinematográfica. Para a autora, embora o som no cinema tenha como referência para sua discussão a imagem, isso não quer dizer que o som seja a ela subordinado: “é duvidoso [pensar] que qualquer imagem (no filme sonoro) não seja modulada pelo som [...] o som nunca está ausente” (DOANE, 1985, p. 166, tradução nossa)35. Doane observa diferentes aspectos relativos à ocupação do espaço através da voz: “Assim como a voz precisa estar ancorada em um determinado corpo, o corpo necessita estar ancorado em um determinado espaço” (DOANE, 1983, p. 461). A voz off e a voz over são formas de constituição de espaços reais e virtuais no cinema – uma, a voz off, amplia o espaço da diegese ao mesmo tempo em que afirma o recorte da imagem: há algo para além do que é visto, há um espaço contíguo, que a câmera não mostra. A outra, a voz over, 34 No original: “Added value works reciprocally. Sound shows us the image differently than what the image shows alone, and the image likewise makes us hear sound differently than if the sound were ringing out in the dark”. 35 Optamos pela tradução deste trecho do original por observarmos certa incongruência entre a frase original e a traduzida para o português na bibliografia brasileira citada anteriormente. No original:”[...] it is doubtful that any image (in the sound film) is uninflected by sound […] sound is never absent”. 58 conecta imagens dando-lhes sentido narrativo e expressivo e pode se situar num espaço para além da diegese: entre as imagens e o espectador, em um espaço que ultrapassa a tela e se aproxima de quem a vê, como em documentários que a utilizam. As discussões de Doane sobre os diferentes espaços, definidos pelos diferentes usos da voz no cinema, permitiu-nos pensar como o som pode desenhar topografias multifacetadas – que mesclam o sensorial e a interpretação que dele fazemos - a partir de sua articulação com as imagens no cinema. Os diferentes espaços que são propostos nas obras audiovisuais suscitam a apropriação/criação pelo espectador de territórios sensoriais e interpretativos que tecem uma rede de sentido a partir do som e suas relações com as imagens cinematográficas – territórios de escuta cinematográficos. Cada espectador irá articular esta rede de acordo com suas características e história pessoal, ambas marcadas pela temporalidade e que podem ser alteradas a partir da provocação de sua sensibilidade em novas experiências. Por outro lado, as obras indicam possíveis leituras, trazem percursos de construção que propõem articulações entre imagem e som e entre espectador e obra – embora não sejam fechadas e rígidas. O conceito de territórios de escuta, construído a partir de toda esta série de reflexões, nos permite compreender a efemeridade e a complexidade das relações entre imagem e som no audiovisual. O engessamento que decorre da repetição constante de fórmulas não retrata a relação originária entre ambos os elementos (a disparidade natural e a possibilidade infindável de síncrese – para citar Michel Chion em um de seus conceitos mais frutíferos), mas um percurso dentre os inúmeros possíveis. O território de escuta, como dissemos no capítulo 2, articula modos de escuta; gramáticas que a partir dela se estruturam; universos semânticos que dela são extraídos; práticas e saberes sobre o mundo e sobre os seres que acessamos pela sensibilidade auditiva; e mesmo espaços e territórios físicos e políticos que demarcamos e constituímos através do som e da escuta. É importante ressaltar que a sensibilização da escuta e a ampliação da tecedura de redes interpretativas, ambas solicitadas e provocadas tantos pelas obras cinematográficas quanto por outras 59 formas culturais (como a música ou a Arte Sonora36, por exemplo), são trazidas para a sala de cinema e permitem outras leituras das relações entre som e imagem. Os territórios de escuta são propostas que se originam nas obras, mas também momentos de escuta que se articulam no encontro obra/ouvinte. Eco fala das obras como formas. A forma para ele seria: Um todo orgânico que nasce da fusão de diversos níveis da experiência anterior (ideias, emoções, predisposições a operar, matérias, módulos de organização, temas, argumentos, estilemas prefixados e atos de invenção). Uma forma é uma obra realizada, ponto de chegada de uma produção e ponto de partida de uma consumação que – articulando-se – volta a dar vida, sempre e de novo, à forma inicial, através de perspectivas diversas (ECO, 1997, p. 28). Talvez pudéssemos apenas alterar um ponto: uma forma não é única e necessariamente “uma obra realizada, ponto de chegada de uma produção e ponto de partida de uma consumação”. Poderíamos pensar a obra como lugar de emergência de possíveis relações que não estão já definidas, prontas, mas são possíveis, são propostas (em parte) e se dão entre o propositor e o receptor da obra (este como co-autor a partir das redes que tece). Os territórios de escuta que se costuram no cinema são formas que manifestam modos de articulação entre som e imagem em movimento, e que solicitam sua decifração, solicitam o percorrer de suas inúmeras conexões, fluxos e linhas de fuga – dialogam diretamente com as conexões, fluxos e linhas de fuga que podem fazer parte de nosso habitar, nosso estar no mundo através da escuta. O ouvinte/espectador é ele também múltiplo e temporal, transformando-se ao longo de sua história pessoal (que é também social) e podendo, através das experiências que vive, ampliar as possibilidades de realizar a construção destes territórios junto com as obras. Desta maneira, os territórios de escuta propostos em obras artísticas são forma de ressignificar e sensibilizar a experiência cotidiana, assim como o estar no mundo é também possibilidade de experiências ampliadoras de nossas capacidades perceptivas e interpretativas sobre as obras artísticas que experimentamos. Uma via de mão-dupla aberta à renovação, numa espiral que se amplia a cada retorno. E, ainda, a possibilidade de resistir 36 A Arte Sonora tem sido considerada como um campo híbrido que coloca em diálogo as pesquisas do campo do som, incluindo a música, e as artes visuais. 60 à padronização da sensibilidade e do pensamento que a cultura capitalística propõe. É importante lembrar que as propostas sonoras ou imagético-sonoras de uma obra cinematográfica se originam nos territórios de escuta de quem os realiza. Ou seja, são também fruto de experiências estéticas, em sentido amplo, e modos de perceber e habitar os espaços sonoros do mundo. Portanto, trata-se de escutarmos o cinema à espera, abertos para o desconhecido: as propostas de articulação entre os elementos heterogêneos da imagem e do som que se constituem naquele filme específico – bem como todo o universo sensorial e cultural que pode ser despertado e/ou solicitado pela obra. No entanto, as práticas de articulação entre imagem e som mais difundidas na indústria cinematográfica apontam para o oposto, apontam para a expectativa de confirmar o já conhecido: propostas repetitivas de uso do som inserido em contextos pré-estabelecidos de significação dentro da linguagem cinematográfica. Algumas das pesquisas sobre o som no cinema analisam justamente a fixidez das relações entre imagem e som, a partir de fórmulas e soluções repetidas, que se tornou comum na prática cinematográfica de muitos realizadores. Este é o caso do livro Unheard Melodies (1987) de Claudia Gorbman. Neste livro, Gorbman faz uma análise sobre o uso da música no cinema e a institucionalização da criação musical em Hollywood, tendo como centro de suas análises a produção dos estúdios na década de 1930 e 1940. Gorbman apresenta ainda, como parte de seu arcabouço reflexivo, aspectos críticos de seus antecessores, Theodore W. Adorno e Hans Eisler, à indústria da música cinematográfica, objeto do livro Composing for the Films, escrito por ambos e publicado na década de 1940. A autora encontra, a partir de suas pesquisas, um número determinado de funções que a música exerce no cinema, observando que, embora tais funções sejam importantes na condução da narrativa, a música passa despercebida: “devemos ter em mente que o trabalho do discurso cinematográfico em geral é apagar a si mesmo, a serviço da ‘narrativa’”37 (GORBMAN, 1987, p. 68, grifo da autora, tradução nossa). Além disso, boa 37 No original: “we ought to bear in mind that the work of cinematic discourse in general is to efface itself, in the service of ’the narrative’". 61 parte da capacidade denotativa da música se baseia em princípios característicos das composições do século XIX: o centro de referência tonal; a resolução de dissonâncias em consonâncias nas cadências; a construção de melodias reconhecíveis e cantáveis; entre outros. Esses princípios são considerados como “facilmente compreendidos pelo ouvinte” (GORBMAN, 1987, p. 41, nossa tradução), estabelecendo uma praxe de uso da música que se reafirma a cada filme em que aparece. Claudia Gorbman, a partir da análise da prática compositiva e de edição de som no período entre os anos 1930 e 1940, bem como textos publicados no período sobre o tema, identifica princípios de uso da música nas narrativas clássicas Hollywoodianas. Ao identificar estas obras como parte de uma unidade denominada “narrativas clássicas Hollywoodianas”, Gorbman argumenta que podemos perceber aspectos comuns a diversos filmes de um determinado período da produção cinematográfica em Hollywood que justificaria esta denominação: Sabemos que, mesmo que haja uma diversidade ampla de gêneros e estilos autorais e estilos dos estúdios, há algo que podemos identificar como cinema clássico Hollywoodiano, um modelo implícito que determina a duração de um filme, as possibilidades da estrutura narrativa, e a organização de suas dimensões espaçotemporais via mise-en-scène, fotografia, montagem (ou seja, o ‘sistema de continuidade’) e a gravação e mixagem de som 38 (GORBMAN, 1987, p. 71, tradução nossa). O fato de ter localizado este princípios temporalmente na Hollywood dos anos 1930 e 1940, e realizar uma análise de seu uso nos trabalhos de Max Steiner, compositor chave da época, não limitam tais práticas àquele período, nem tão pouco àquele país. A grande maioria das obras audiovisuais contemporâneas utiliza a metodologia clássica de conexão entre som e imagem identificada por Gorbman. Podemos observar os mesmos princípios sendo utilizados em produções as mais diversas em todo o mundo, e não só nas realizadas na Hollywood atual. Lipovetsky e Serroy falam da arte de consumo de massa, tendo o cinema como um de seus representantes. 38 No original: “We know that even allowing for a wide diversity of genres and studio and authorial styles, there is something identifiable as classical Hollywood cinema, an implicit model that determines the duration of a film, the possibilities of its narrative structure, and its organization of spatiotemporal dimensions via mise-en- scène, cinematography, editing (that is, the "continuity system"), and sound recording and mixing”. 62 A arte de consumo de massa é “uma arte destinada à comercialização de massa e voltada para a busca de sucessos, de hits renovados incessantemente” (LIPOVESTY; SERROY, 2015 p. 51). Para garantir o sucesso dos novos hits, a produção utiliza fórmulas que permitem variação, mas garantem o consumo amplo através da permanência de aspectos de sua constituição (estrutura narrativa, arco dramático, uso de atores-celebridades, reprodução dos princípios de articulação entre música e imagem, entre outros). Os princípios identificados por Gorbman são os seguintes: 1) invisibilidade (o aparato técnico de registro e produção sonora não é visto); 2) inaudibilidade (a música não seria composta para ser percebida conscientemente); 3) a música é significante da emoção (a função da música é reforçar a emoção sugerida pela narrativa); 4) a música marca pontos de entrada ou mudança da narrativa (pontos de vista, localização, personagens, etc.); 5) a música provê continuidade (preenche lacunas temporais ou mudanças espaciais, etc.); 6) a música dá unidade ao filme (a própria estrutura da composição musical, bem como sua instrumentação, a repetição de melodias e variações melódicas, garantiriam uma unidade auditiva para o filme); 7) um dos princípios anteriores pode ser violado, desde que a serviço de outro deles. A autora afirma: O objetivo da trilha musical ‘clássica’ é colocar o ouvido daquele que escuta em uma posição subjetiva harmoniosa com olho daquele que vê: criar um corpo ‘fantasmático’ de identificação 39 [...]. Isto nos leva ao cinema clássico Hollywoodiano, o qual é baseado no corpo unificado do sujeito, no apagamento do discurso em favor da história, e em uma imersão do espectador, semelhante a um transe, nesse universo 40 (GORBMAN, 1987, p.7 tradução nossa). Embora haja pontos que já foram questionados em relação a estes princípios (como a ideia de inaudibilidade da música), boa parte ainda se adéqua à interpretação dos processos envolvidos na criação sonora para o cinema. Estes princípios são compreendidos pelo 39 O cinema busca criar uma unidade entre o que dá a ver e o que dá a ouvir, costurando elementos díspares – som e imagem, por vezes produzidos de formas diversas, num todo unitário que permite a identificação do espectador com esta visão/audição cinematográfica, como se o que percebessefosse fruto de sua própriasensorialidade em relação com o mundo e não uma montagem audiovisual que traz uma fabulação da realidade – seja através do recorte e da montagem, seja através da própria criação ficcional. 40 No original: The goal of 'classical’ scoring is rather to place the auditor's ears in a subject position harmonious with the spectator's eyes: to create a unified phantasmatic body of identification […] This brings us to the classical Hollywood cinema, which is predicated on the subject's unified body, the effacement of discourse in favor of story, and a trance-like spectatorial immersion in its world”. 63 espectador a partir do contato continuado, a apreciação e a formação através das próprias obras audiovisuais41. Vale ressaltar que a pesquisadora não defende esta perspectiva de articulação entre som e imagem no cinema, apenas aponta sua prática. A voz, assim como os ruídos, não faz parte das análises da autora, mas é elemento sonoro central nas obras audiovisuais tradicionais. Em narrativas clássicas (e na maioria dos filmes comerciais), a estruturação da banda sonora se faz de maneira que, frente a diálogos, música e ruídos tenham seu volume reduzido ou se retirem da cena para que a voz possa ser escutada sem sua interferência. A questão central (na maioria dos casos) não é a expressividade da voz, mas a inteligibilidade do discurso. Os ruídos são vistos como complementos sonoros à verossimilhança do recorte feito pela imagem e os sons do mundo são reproduzidos de acordo com os eventos que a narrativa apresenta: carros que passam; portas que se abrem e fecham; animais que se manifestam; etc. Vale ressaltar que práticas de apagamento das marcas da tecnologia na construção da narrativa, se verificavam em todos os elementos da banda sonora: [...] blooping 42 ; corte das cenas de acordo com o som; o deslizamento do som entre cenas; aumentar o volume dos diálogos enquanto reduzem-se os níveis dos sons que não servem diretamente à trama. Estas contribuições técnicas e tecnológicas para uma edição de som inaudível ocorrem paralelamente aos padrões conhecidos de edição invisível da imagem desenvolvidos durante o mesmo período 43 (ALTMAN, 1985, p 47, tradução nossa). A forma de construção clássica da relação entre imagem e som no audiovisual tornou-se um sistema codificado e hierarquizado que propõe conexões pré-estabelecidas entre seus pontos. Este sistema tende a reforçar certa limitação das possibilidades de 41 Observamos acima que algumas das práticas utilizadas ainda hoje na construção dos territórios de escuta cinematográficos se originam de outras práticas artísticas, como a ópera, a música programática e o melodrama. 42 O blooping foi uma prática utilizada para garantir transições sem ruídos entre cortes sonoros feitos em películas que registravam o som juntamente com as imagens, como o Movietone. Fazia-se uma marca com tinta escura para garantir o bloqueio da luz do leitor fotoelétrico e, com isso, a ausência de som. (HANDZO, 1985). 43 No original: “[…] blooping, cutting to sound, carrying sound over the cut, raising dialogue volume levels while reducing the level of sounds which don´t directly serve the plot. These technological and technical contributions to inaudible sound editing of course parallel the well-known standards of invisible image editing developed during the same period”. 64 criação poética – apontando para a fixação dos territórios de escuta. Isso não quer dizer que todas as funções já estejam pré-determinadas e nada há a fazer se não preenchê-las. No entanto, a transformação cada vez maior da cultura em commodity, a homogeneização dos ouvintes/espectadores a partir da planificação do que lhes é oferecido e o domínio crescente da perspectiva mercantil da cultura reforçam a rigidez e a hegemonia do sistema como fôrma de produção em massa. Eco define dois tipos de discursos das obras: aberto e persuasivo (ECO, 1997). O discurso aberto nos provoca, é ambíguo, não traz um significado único e fechado. Suscita diversas interpretações que podem se ampliar a partir de experiências prévias, novas inserções em contextos diversos, etc.: “o discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo [...] para a imaginação, para a inteligência” (ECO, 1997, p.280). O discurso persuasivo “quer levar-nos a conclusões definitivas, prescreve-nos o que devemos desejar, compreender, temer, querer e não querer” (ECO, 1997, p.280). O discurso persuasivo é o discurso dos meios de comunicação de massa, da arte de consumo de massa e do cinema industrial que aqui criticamos. As características deste discurso podem ser observadas em produções recentes do cinema. Em Incontrolável (Unstoppable, 2010), de Tony Scott, estrelado por Denzel Washington (que interpreta o personagem Frank Barnes), um trem contendo uma carga química mortal está sem controle e ameaça descarrilar em uma zona densamente habitada de uma cidade. Washington é o maquinista experiente cujo emprego está na corda bamba devido a sua idade. Como bom herói, fará sua própria redenção ao salvar a cidade da ameaça. Neste filme, cada vez que vemos o trem em alta velocidade nos trilhos, principalmente a partir de um close de sua frente, um som assustador, próximo de um rugido, acompanha a imagem. Este som não é parte dos ruídos que o trem produz, mas um ruído acrescido para aumentar o sentido de ameaça que o trem deve ter. Afinal, o trem é “um monstro” que ameaça a vida naquela pequena cidade, e todo monstro que se preze deve produzir seus rugidos ameaçadores. Vale ressaltar que o “rugido” do trem não apaga o som real, não se destaca frente a ele, mas surge como acréscimo que reforça um aspecto dramático, mas que não será necessariamente percebido como estranho. 65 Em De Volta para o Futuro II (Back to the Future, 1989), de Robert Zemeckis, há um momento na trama em que o personagem principal e herói do filme, Marty McFly (Michael J. Fox) está em um túnel sob a ameaça de ser atropelado pelo rival e vilão, Biff Tannen (Thomas F. Wilson). Biff acelera o carro, mas o mantém parado, intimidando seu rival. Escutamos um rugido sobreposto ao motor do carro, reforçando o aspecto bestial da máquina e da ameaça. Este filme, diferentemente de Incontrolável, é uma comédia- aventura, mas o recurso expressivo de articulação som-imagem e seu sentido são os mesmos. A máquina que ameaça a vida de Marty e a máquina que ameaça a vida da cidade de Incontrolável são “monstros” e devem ser percebidos adequadamente. Outro exemplo poderia ser o filme Minority Report: a nova lei (Minority Report, 2002), de Steven Spielberg. Neste filme, o astro Tom Cruise faz o papel de Jon Anderton, policial que atua na instituição Pré-Crime, a qual detém criminosos que estão em vias de cometer um crime. Anderton se vê como próximo detento sem saber o porquê, já que a vítima do assassinato que cometerá nas próximas 36 horas lhe é desconhecida. Jon era casado, mas perde seu filho em um rapto não resolvido, o que o faz entrar para a Pré-Crime. Durante seu processo de luto, “perde” também a esposa. Posteriormente, descobrimos que a acusação que pairava sobre ele não passava de uma armação de seu próprio chefe para eliminá-lo, uma vez que ele descobriria a grande falha do sistema pré-crime que levaria ao fim do mesmo. Ao final, após desvendar toda a trama, o casal se vê re-unido, ela grávida (o retorno do laço afetivo e a garantia de sua continuidade no casal), ao som de uma trilha musical emotiva que nos conduz rapidamente à beira do pranto. O tema da redenção do personagem principal, os inimigos que terá que vencer, as marcas sonoras dos monstros e opositores, bem como as músicas emotivas se repetem em inúmeros filmes contemporâneos. Não precisamos pensar, somos conduzidos pela mão nestas batalhas maniqueístas entre o bem e o mal, através dos sofrimentos dos nossos queridos protagonistas, até alcançarmos, junto com eles, o bem maior. Tudo isso acompanhado pela boa música orquestrada e suas variações em acordo com os tons das situações dramáticas que as tramas nos trazem. Frank Barnes, Marty McFly e Jon Anderton enfrentarão inúmeros percalços no trajeto para sua redenção; vencerão seu rival e garantirão um final feliz para as narrativas que compartilham conosco, sejam elas dramáticas, cômicas, ou pertencentes a outros gêneros. 66 Assim, podemos dizer que os princípios identificados por Gorbman, bem como as práticas de uso da voz, dos ruídos e do silêncio tomados como padrão, se tornaram um sistema enrijecido de proposição de territórios de escuta no cinema. Procedimentos repetidos de articulação entre imagem e som solicitam redes interpretativas já estabelecidas pelas práticas recorrentes do próprio sistema de produção das obras, criando uma circularidade na criação/interpretação dos filmes que está sempre submetida às regras definidas pelo próprio sistema. A catarse pensada por Aristóteles nas construções das tragédias é proporcionada, dentro de certo limite: as narrativas permitem que os espectadores construam identificações com os personagens que vivem dramas, vitórias, transformações, redenções, fantasias, etc. e saiam do cinema com um sentimento de realização, de preenchimento, de solução, em si mesmos. A capitalização da sensibilidade realizada pelo cinema de massa (mantendo o conceito de Serroy e Lipovetsky) garante o retorno do público, a compra da trilha musical, dos objetos de merchandising associados ao filme e, é claro, a sensação catártica que ele provoca. A capitalização da sensibilidade é justamente a venda, a oferta da mercadoria da sensibilidade (ou da emoção) enlatada, garantida – ou seu dinheiro de volta. No entanto, não só não podemos localizar geograficamente a produção cultural de massa, com suas variações repetidas, como tampouco podemos deixar de mencionar a enorme quantidade de criações cinematográficas de todo o globo que não repetem fórmulas prontas e experimentam possibilidades de criação imagético-sonora que se distanciam dos padrões repetidos. Mesmo dentro do que se denomina indústria do cinema Hollywoodiano temos exemplos de filmes que se tornam referência para o pensamento e a criação cinematográfica fora do padrão, com diretores como Tim Burton, Alfred Hitchcock, Roman Polanski, Martin Scorcese, Joel e Ethan Coen, Spike Jonze, entre outros tantos. Da mesma forma, no Brasil podemos citar diretores como Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Leon Hirszman, João Moreira Salles, Eduardo Coutinho, Kleber Mendonça Filho, Karim Aïnouz, Cao Guimarães, e a novíssima safra de diretores como Sérgio Borges, André Novais Oliveira, Marília Rocha, entre outros. Por fim, vale dizer que o fato de haver um pensamento hegemônico não quer dizer que ele não funcione ou não seja capaz de atingir o que se propõe – claramente ele o faz e é 67 bastante efetivo. Choramos e rimos com os filmes de Steven Spielberg em seus momentos de ápice dramático e suas composições musicais que nos conduzem por toda a película; sentimos as pulsações e as mudanças de ritmo da narrativa tanto nas imagens como em sua banda sonora. Da mesma forma, filmes como M., o Vampiro de Düsseldorf (1931), de Fritz Lang, utilizam o leitmotiv (no caso a curta melodia assobiada pelo assassino) de forma marcante e extremamente funcional e dramática. Pensamos a abertura para outras possibilidades, para a diversidade e para a co- influência de campos díspares de criação artística como provocação de outras sensibilidades e outros sentidos – como resistência à padronização. Em vez da catarse já pronta, com a condução do espectador pelos passos necessários do movimento dramático, com a construção de ápices e reviravoltas marcadas pelos sons (voz, ruídos e música) que os acompanham e tornam todo o processo eficiente – provocar o inesperado. E não necessariamente qualquer identificação. Talvez até mesmo o desgastado estranhamento que a arte moderna em alguns momentos tanto enfatizava. Mas certamente o deslocamento, a necessidade de realização de outras conexões, outras redes múltiplas que em parte são solicitadas pelas próprias obras e em parte são constituídas no encontro entre ouvinte e obra. Estas propostas não vêm em substituição aos princípios da indústria de cinema – trata-se de outros campos cinematográficos e artísticos. A indústria continuará a fazer aquilo que sabe fazer e alcançar a dimensão planetária que o capital deseja. Pensando a resistência à padronização capitalista, Félix Guattari elabora o conceito de “microprocessos revolucionários”, que transformam nossas formas de estar e atuar no mundo, podendo tanto ter sua origem nas relações sociais que estabelecemos quanto em outros campos: “Os microprocessos revolucionários podem não ser da natureza das relações sociais. Por exemplo, a relação de um indivíduo com a música ou com a pintura pode acarretar um processo de percepção e de sensibilidade inteiramente novo” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 47). O mesmo pode se dar na experiência do som no cinema, na constituição de territórios de escuta. A percepção e a sensibilidade nova transformam o indivíduo e seu modo de estar no mundo, de se relacionar com as coisas, objetos e com os seus pares. Quebram padrões de subjetivação e permitem que se realizem processos que se distanciam da reprodução de estruturas e formas de ser padronizadas, ou seja, provocam processos de “singularização” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 45), denominação dada pelo 68 filósofo à apropriação “expressiva” (próprias, particulares) das subjetividades em circulação realizada pelas pessoas. O último autor que gostaríamos de abordar, tendo em vista sua contribuição para esta pesquisa, é o norte-americano Noël Burch. Em um capítulo de seu livro Theory of Film Practice, intitulado On the Structural Use of Sound (1981), o autor critica a ausência de experimentação e de criatividade no uso do som cinematográfico. Além de apontar problemas, Burch procura identificar caminhos que nos ajudem a pensar a relação som e imagem, bem como exemplos de obras que demonstram inovação neste campo. Embora haja no texto a apresentação de categorias sobre o som que, em parte, se assemelham a categorias identificadas por Bordwell e Thompson, não as abordaremos nesta apresentação por acreditarmos que outras questões discutidas no texto são mais relevantes para a contribuição que o autor nos dá. Burch afirma não fazer distinção entre música, ruídos e diálogos – todos os elementos fazem parte, com igual importância, da composição sonora do filme, e todos deveriam ser tratados desta maneira na tecedura das relações entre som e imagem. Esta perspectiva é central para o nosso conceito de territórios de escuta. Há uma multiplicidade de aspectos, características, relações sensoriais, históricas, e culturais que todos os sons presentes na banda sonora de um filme podem revelar e/ou provocar que muitas vezes são esquecidos. O autor cita Os Amantes Crucificados (Chikamatsu Monogatari, 1954), de Kenji Mizoguchi, como um filme pioneiro nesta direção. Uma das razões para o interesse na banda sonora deste filme vem, segundo o autor, da própria estruturação timbrística da música japonesa – a presença de uma série de instrumentos de percussão sem altura definida realiza uma aproximação entre música e ruídos e permite um diálogo mais rico entre ambos os elementos. Percebemos neste filme a realização de uma orquestração e a ritmização dos ruídos realistas em certas passagens, com a posterior introdução de elementos musicais com timbres próximos a estes ruídos, que manifestam claramente este diálogo. Podemos perceber, como o autor aponta, certa analogia entre os elementos imagéticos, associados aos ruídos e os timbres da música. 69 No filme de animação Amongst Black Orchids (2003), de Kin Shin e Buan Leng, em uma cena em que objetos cilíndricos, que lembram brocas, perfuram a parede da sala em que a personagem se encontra, escutamos sons produzidos pela fricção de instrumentos de corda que sugerem, por suas características timbrísticas, o som que a perfuração faria – em um adjetivo genérico: rascante. A música desta animação não foi composta para ela, pois se trata de uma obra de Krzysztof Penderecki, compositor contemporâneo polonês, o qual possui sua própria linguagem e pesquisa particulares. Porém, a associação entre som e imagem na cena se faz a partir de uma proposta de analogia que se aproxima da ideia de Burch (através de um procedimento identificado por Michel Chion como síncrese, que definimos acima). Burch defende a utilização de música contemporânea nas bandas sonoras cinematográficas, principalmente a música serial, pois acredita que procedimentos de estruturação de ruídos que observa em filmes como Os Amantes Crucificados, se assemelham, em sua orquestração de sons sem altura definida, a procedimentos daquele estilo musical. Burch vê a música serial como a “[...] forma mais aberta na história da música ocidental, com sua liberdade rítmica sem precedentes e sua utilização de timbres considerados por músicos clássicos como ruídos vulgares”44 (BURCH, 1981. p. 99, tradução nossa). Seu uso no cinema traria a possibilidade de uma revolução na articulação entre banda sonora e imagens, uma vez que a música serial “[...] parece singularmente adequada para realizar uma integração dialética entre música e efeitos sonoros, assim como com a imagem filmada”45 (BURCH, 1981. p. 99, tradução nossa). Acreditamos que as pesquisas musicais fornecem procedimentos e formas de pensar o som que transformam sua interação com as imagens no cinema. No entanto, não nos limitamos à música serial, pois pensamos que outras propostas no campo da música contribuem para a criação de articulações entre som e imagem distantes da hegemonia da indústria cinematográfica. Diversas obras audiovisuais (cinema e seus campos próximos – 44 No original: “[…] the most "open" form in the history of Western music, with its unprecedented rhythmical freedom and its use of timbres that classical musicians considered vulgar noises”. 45 No original: “[...] seems uniquely suited to organic, dialectical integration of music with sound effects, as well as with the filmed image”. 70 vídeo, videoarte, cinema experimental, etc.) se articulam às mudanças no pensamento sobre o som e a música que se originaram nos movimentos de ruptura musical do século XX. Não queremos dizer com isto que estas propostas de territórios de escuta no audiovisual façam uso direto de propostas originadas nos pensamentos musicais de ruptura em questão, mas que expressam apropriações de certos procedimentos e formas de pensar o som que estes movimentos trouxeram para seu campo artístico e para nossa relação cotidiana com o universo sonoro. O início do século XX é marcado pelas vanguardas artísticas, identificadas mais fortemente nas artes visuais, mas que afetaram todos os campos artísticos, inclusive a música e o pensamento sobre o som. O futurismo e a figura de Luigi Russolo, ainda entre 1910-1920; o pensamento de Edgard Varése; as pesquisas de Schoenberg e o serialismo dodecafônico. Estes “movimentos” tiveram como consequência provocar redefinições do conceito de música e uma reflexão sobre o que seriam sons musicais. Posteriormente, entre as décadas de 1930 e 1950, diversos outros “movimentos” e experimentações alteraram ainda mais este pensamento: as pesquisas de Pierre Schaeffer e do Groupe de Recherche Musicales; o pensamento de John Cage; a música eletrônica, entre outros. Essas práticas, e os percursos delas decorrentes, trouxeram uma infinidade de propostas e pesquisas em relação à música e ao som que se imiscuíram em outros campos artísticos e permitiram, inclusive, o aparecimento de formas artísticas novas, como a Arte Sonora. Além disso, reverberaram na experiência cotidiana da escuta, alterando nossa sensibilidade e nossa relação com os sons que escutamos no mundo. No cinema, podemos encontrar obras que buscam estabelecer coordenadas de territórios de escuta fora de um pensamento mais codificado, como dissemos acima. Tais obras propõem outras formas sensíveis, solicitam sensibilidades diferentes e interpretação/experiência/construção de sentido modificadas através de suas poéticas – ou seja, delineiam territórios de escuta cinematográficos singulares, resistindo às estruturas de composição som/imagem repetidas. Pensamos que os territórios de escuta propostos por certas obras cinematográficas, a partir da influência das transformações do pensamento sonoro-musical do século XX, são campo de microprocessos revolucionários no cinema e resistência a padrões estabelecidos pelo cinema clássico (padrões reafirmados em muitas das produções contemporâneas do cinema global) propondo outras formas de sensibilidade. 71 Não devemos pensar a resistência de forma negativa, como um entrincheiramento, mas de forma positiva, como a criação e/ou proposição de alternativas. Nas próximas páginas, discutiremos aspectos das poéticas que identificamos no campo do som buscando destacar aquelas que consideramos mais significativos na construção dos territórios de escuta cinematográficos de ruptura que analisaremos no último capítulo desta pesquisa. 72 5 Territórios de escuta + pesquisas musicais M úsica também tem órgãos música também quer chão morrer em paz, música não é ideia, é c omo o cão que a borracha engole. Música late. (RAMOS, 2011, p.69) O século XX, agora, de certa forma, distante, ficou marcado como o século das vanguardas. Fala-se de um período dos manifestos, a primeira metade daquele século, onde cada grupo advogava a sua prática como a expressão do que deveria ser considerado como arte em detrimento de práticas anteriores ou contemporâneas às suas – “o manifesto define um certo tipo de movimento, e um certo tipo de estilo, e mais ou menos proclama-o como o único tipo de arte digno de consideração” (DANTO, 2010, p. 32). Embora o campo da música não esteja repleto de manifestos (ao menos enquanto manifestos formais), aparecem, naquele período, impasses colocados pelo desenvolvimento técnico e estilístico da música, principalmente com relação ao cromatismo e às dissonâncias, e em relação ao sistema que regia a composição musical, o sistema tonal. Diversos compositores buscam formas de alterar, expandir, subverter, ultrapassar e redefinir o papel do sistema tonal para a composição musical. Os movimentos pela renovação da música fazem com que as referências anteriores de fruição, compreensão e julgamento das obras se enfraqueçam frente a novos modelos de articulação dos sons musicais. Rompe-se a história da música como percurso linear de evolução de critérios e normas de organização sonora oriundas na antiguidade e aprofundadas ao longo dos séculos, em um paralelo com a história das artes visuais: “De agora em diante não existe mais nenhuma evolução artística imanente! Isso acabou junto com uma história da arte dotada, de algum modo, de sentido lógico, 73 e o que surge agora já está aí: o sincretismo confuso de todos os estilos e possibilidades, a pós-história” (GEHLEN apud BELTING, 2006, p. 271). Seria, assim como em outros campos artísticos, infrutífero buscar percursos lineares e causas e consequências diretas entre as escolhas e formas que estas pesquisas e propostas tiveram, embora diversas “histórias” da música sublinhem certos autores e certos caminhos como marcantes em relação ao que se seguiu nas pesquisas musicais. Por outro lado, gostaríamos de destacar alguns aspectos do pensamento sobre a música e sobre o som, decorrentes das explorações realizadas pelos compositores ao longo do século XX, que se estenderam para além de seu campo, alcançaram outras artes e, dentre elas, o cinema. Embora não possamos localizar estes aspectos em um ponto específico da história, pois não possuem uma causa única e direta, podemos “escutá-los” sendo aos poucos construídos ou tornados explícitos ao longo desta história (ou destas histórias). Os aspectos que queremos destacar são: 1) a criação de princípios de organização sonora pessoais, com o distanciamento das referências de organização compartilhadas – não necessariamente um ponto explorado por todos os compositores, mas por muitos deles, como resposta à perda da referência que garantia unidade às composições musicais – o sistema tonal; 2) o uso dos sons considerados não-musicais, os ruídos, nas composições – tanto através da montagem (collage), como da escuta do mundo como música; 3) o uso da tecnologia para a criação de sons não existentes na natureza, a manipulação dos constituintes do som, e sua utilização nas composições musicais. 74 5.1 A arte da organização sonora No final dos anos 1980, iniciei meus estudos de violão clássico. A novidade sonora com que tomei contato não veio necessariamente do instrumento, mas do universo da música erudita como um todo do qual passei a fazer parte. Lembro-me de escutar pela primeira vez a peça The Unanswered Question (1908) de Charles Ives em um curso introdutório à análise musical na Fundação de Educação Artística, ministrado por Dante Grela, compositor e professor argentino. A peça tocou-me profundamente, não só pela diferença que carregava em relação ao que eu estava acostumado a escutar como música, mas pela separação/articulação em sua própria estrutura da antecipação das questões centrais à música do século XX entre tonalismo e atonalismo. Gravei-a em fita K7, juntamente com diversas outras peças comentadas nas aulas, e esta se tornou minha fita de cabeceira por um bom tempo. A estruturação das composições, a partir de procedimentos e princípios individuais dos compositores, as torna um campo sensorial diferente, ou uma reordenação das coordenadas sensoriais que transcendem a experiência comum e solicitam outras sensibilidades. Os territórios de escuta que a partir daí se desenham, abrem-se para outras articulações, outras constelações de sensações e pensamento que se distanciam dos consensos da cultura de massa: “Não obstante os progressos da técnica de reprodução, das regras e das especialidades, não obstante a pressa agitada, o alimento que a indústria cultural oferece aos homens permanece como a pedra da estereotipia” (ADORNO, 2002, p. 47, grifo nosso). Buscando sair do estereótipo, o artista organiza um conjunto de vetores que permitem o cruzamento de forças em articulações incomuns. Ou seja, a partir da criação de territórios de escuta de resistência, provoca microprocessos revolucionários - solicita outras formas de sensibilidade, outras formas de interação e outras construções de sentido na experiência das obras. A experiência da música é reconstruída ou ao menos encontra outras formas de se constituir: 75 Já que os fenômenos não mais estão concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente, cabe ao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de relações inexauríveis, escolhendo, por assim dizer, ele próprio (embora ciente de que sua escolha é condicionada pelo objeto visado), seus graus de aproximação, seus pontos de encontro, sua escala de referências; é ele, agora, que se dispõe a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduações e dimensões possíveis, a dinamizar, a multiplicar, a estender ao máximo seus instrumentos de assimilação (POUSSER apud ECO, 1997, p. 49). E, como consequência, não só a percepção da obras muda, mas também o mundo comum passa a ter, a partir da escuta modificada, novos sentidos. Ainda na transição entre os séculos XIX e XX, a busca por novidade começa a se tornar mais intensa, e múltiplos são os caminhos em busca de frescor para a composição musical. A música exótica do oriente, com suas escalas, sonoridades, ritmos e formas diferentes das praticadas no ocidente, se torna um grande atrativo e inspiração para experimentações musicais européias. Compositores como Claude Debussy, Maurice Ravel, Albert Roussel, entre outros se inspiraram em melodias, sonoridades, narrativas e ambiências provenientes do oriente em algumas de suas composições – demarcando novos territórios de escuta com “toques exóticos”. Da mesma forma, a história revisitada se torna fonte de ideias e práticas que poderiam ser reapropriadas tendo em vista achar caminhos que abrissem novas possibilidades musicais dentro do esgarçamento dos limites do próprio sistema tonal que vinha acontecendo. Os modos gregorianos, em parte abandonados ao longo do fortalecimento do sistema tonal, são retomados por alguns compositores, buscando nas melodias e harmonias modais o que crêem poder trazer abertura para suas criações. Erik Satie, assim como Debussy, Fauré, Ravel e Dukas “experimentaram aspectos modais em suas composições fundamentalmente diatônicas, assim como mais tarde Francis Poulenc e Olivier Messian46” (FRAZIER, 2002, p. 15, tradução nossa). Em um movimento semelhante, mas com o ouvido focado em outra direção, muitos compositores recorreram a uma pesquisa da música popular, tradicional e folclórica de seus países e regiões, para colherem elementos a serem utilizados em suas obras. Béla Bártok, 46 No original: “[...] experimented with modality in their fundamentally diatonic compositions, as later would Francis Poulenc and Olivier Messian”. 76 Manuel Defalla, Heitor Villa-Lobos, Leos Janáceck, Igor Stravinsky, entre outros, utilizaram ideias melódicas, harmonias, ritmos e instrumentação impetradas nas músicas populares de seus próprios países. Essa mescla entre o que era então considerado erudito e o que era visto como popular permite o estabelecimento de toda uma outra constelação de relações e de experiências sensoriais – territórios de escuta que atravessam campos e aproximam diferenças. As experimentações que provocavam as “barreiras” do sistema tonal iam além das inspirações externas. Composições onde não havia uma tonalidade claramente definida, onde duas ou mais disputavam o centro de referência com a mesma força começaram a ser parte das práticas compositivas de muitos músicos no inicio do XX. Griffiths (1996) observa que a composição Prélude à L’après-midi D’un Faune (apresentada em 1894) de Claude Debussy não é clara quanto à tonalidade em algumas de suas passagens, sinalizando a perda de importância que a harmonia tonal iria sofrer nos anos que se seguiram. No mesmo caminho, Arnold Schoenberg compõe peças atonais – onde não há um centro ordenador determinado por uma altura específica, o tom – ainda na primeira década do século XX, percebendo-se empurrado pela necessidade histórica, tendo em vista as rupturas e quebra dos limites do sistema tonal que via em seus predecessores. Tratava-se ali de uma “suspensão do sistema tonal”, como aponta o compositor e crítico Pierre Boulez ao se referir à obra Três Peças para Piano, opus 11, de Arnold Schoenberg (BOULEZ, 1968, p. 169). Schoenberg observa que suas pesquisas apontavam para a necessidade de alteração das técnicas de composição centradas, até então, nas teorias do sistema tonal. Para ele, a harmonia de Wagner e as “harmonias denominadas impressionistas, especialmente as praticadas por Debussy” já haviam destronado o tonalismo “na prática, se não na teoria” (SCHOENBERG, 1950, p. 104, tradução nossa). Alban Berg e Anton Webern, alunos de Schoenberg, o seguiram em experimentações com o atonalismo. Havia, como dissemos, uma procura por elementos culturais e propostas pessoais que pudessem trazer novidades para o campo musical, frente a um enfraquecimento da coesão do sistema tonal pelas próprias pequenas corruptelas e ampliações dos limites que os compositores foram provocando ao longo da história. Aos poucos se via a necessidade de encontrar outros parâmetros ordenadores, outros centros de referência para a composição 77 musical, já que o campo de possibilidades se ampliava cada vez mais e, para alguns compositores, já era possível vislumbrar “[...] que não havia qualquer regra em se tratando de música, que todo o mundo dos sons estava disponível para experimento e utilização” 47 (GRIFFITHS, 1996, p 52, tradução nossa). Após diversas composições atonais, Arnold Schoenberg sente a necessidade de um pensamento que acompanhasse suas descobertas, uma organização de princípios que pudesse tomar o lugar das regras do sistema tonal e garantir a unidade das obras compostas por ele. Após alguns anos, chega a um procedimento que dava ao compositor controle consciente sobre a organização formal a partir de regras novas. Schoenberg o denominou Método de Composição com Doze Tons que se Relacionam Apenas uns com os Outros: “Este método consiste basicamente no constante e exclusivo uso de um conjunto de dozes tons diferentes. Isso significa, é claro, que nenhum tom se repete na série e que ela faz uso de todos os doze tons da escala cromática, embora em uma ordem diferente” 48 (SCHOENBERG, 1950, p. 107, tradução nossa). A série tem como função substituir as escalas e a tonalidade, atuando como fator ordenador nos níveis micro e macro das obras. Para Schoenberg, a série garantiria a unidade da obra, organizada logicamente a partir de um novo centro de referência, múltiplo (já que nenhum tom dos doze tem precedência sobre os demais) e coerente, o qual se manifestaria na melodia, na harmonia, e na possibilidade de variação que o sistema permitiria nas composições. A série poderia ser compreendida como uma norma admitida como princípio, que aponta direções, mas não determina percursos específicos. Desta maneira, o serialismo propunha novos territórios de escuta a partir das coordenadas criadas pelo sistema de referências dos doze sons, sua sequência, sua utilização na montagem de acordes, bem como os demais percursos e encontros entre sons que os seus princípios poderiam produzir. 47 No original: “[...] there were no rules in music, that the whole world of sound was open for experiment and use”. 48 No original: “This method consists primarily of he constant and exclusive use of a set of twelve different tones. This means, of course, that no tone is repeated within the series and that it uses all twelve tones of the chromatic scale, though in a different order”. 78 Por outro lado, o uso de procedimentos composicionais originados em momentos anteriores da história da música, como o cânon, as variações da série de dozes sons iniciais pela sua inversão, sua transposição, e sua retrogradação (modos de variação da série de dozes sons inicial propostos por Schoenberg), estabeleceriam, ainda, uma relação com a tradição musical – ao menos é o que seus críticos pensaram. Embora a série fosse instrumento racional de afastamento em relação à tradição que precisava ser “desnaturalizada”, ainda não conseguira ultrapassá-la por completo, já que construía seu discurso com elementos de uma retórica tradicional. Para conseguir a total autonomia e a completa separação em relação às representações tradicionais, Pierre Boulez, compositor francês, propõe a serialização de todos os aspectos construtivos da música: o timbre, a altura, o ritmo e a intensidade. Assim, todos os elementos e toda a retórica de construção da música se tornariam racionais e intramusicais, ao menos este era o pensamento de Boulez. Assim como Schoenberg e Boulez, outros compositores buscavam princípios que pudessem servir à estruturação de suas obras, criando estilos particulares, inicialmente, e verdadeiros sistemas de composição com o correr do tempo. As experimentações continuaram se aprofundando e muitos compositores abrem caminho para propostas musicais que expressam sua própria forma de pensar, independente de um sistema de referências comum a todos as obras, como era o sistema tonal. Ainda no final do século XIX, para além das pesquisas realizadas com a harmonia modal, Erik Satie explorava campos novos, até mesmo com propostas extremas, como a peça Vexations (1893), com apenas uma página de partitura, sem indicação de compasso ou tom – apenas um pequeno trecho para piano. No topo da página, a seguinte instrução: “Para se tocar este motivo 840 vezes em sucessão, é aconselhável uma preparação prévia, no mais profundo silêncio e solene imobilidade” 49 (SATIE, Erik, tradução nossa). Já nos anos 1960, John Cage resolve experimentar uma execução literal da peça, totalizando mais de 18 horas 49 No original: “Pour se jouer 840 fois de suite ce motif, il sera bom de se préparer au préalable, et dans le plus grand silence, par des immobilités sérieuses”. 79 e utilizando dez pianistas em revezamento para completar a proposta. Não sabemos se o autor esperava que alguém seguisse à risca sua proposição... Ao longo do século XX surge uma série de procedimentos e formas composicionais que buscam explorar possibilidades de construção de obras musicais a partir de novas referências. Muitas dessas propostas criam estruturas matemáticas para inventariar possíveis organizações de elementos musicais em termos de altura, de distribuição timbrística, intensidade e/ou suas combinações possíveis, como a técnica de Pitch class sets (conjuntos de classes de altura); as composições estocásticas (onde há uma abertura para o acaso, embora controlado matematicamente); ou o uso de princípios matemáticos de distribuição rítmica oriundos de outras culturas e transpostos para formas controladas de variação; entre outras. Muitos buscam os sistemas como forma de relação entre os diversos níveis das obras, além de modos de controle sobre a organização sonora. Outros usam os sistemas como possibilidade de abandono do controle e imprevisibilidade do resultado. John Cage começa a compor a partir de estruturas de duração, que precediam as composições e definiam organizações temporais nas quais os sons se dariam ainda nos anos 1940. Em seu texto Composition as Process, publicado na coletânea Silence (CAGE, 1973), Cage fala da estrutura das Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado e descreve como em uma delas, a de número quatro, a estrutura foi formada por “[...] cem compassos de dois por dois, divididos em dez unidades de dez compassos cada. Estas unidades foram combinadas na proporção de três, três, duas, duas, para dar à peça seções maiores [...]” 50(CAGE, 1973, p. 19, tradução nossa). Posteriormente, Cage procura abdicar do controle sobre a composição e tentar apagar a figura do compositor a partir do uso de procedimentos que inserem o acaso em suas obras: “Eu utilizo operações de acaso, algumas derivadas do I Ching, outras da observação de imperfeições no papel sobre o qual eu estou escrevendo” 51( CAGE, 1973, p. 17, tradução nossa). 50 No original: “[…] one hundred measures of two-two time, divided into ten units of ten measures each. These units were combined in the proportion three, three, two, two, to give the piece large parts […]. 51 No original: “I myself use chance operations, some derived from the I Ching, others from the observation of imperfections in the paper upon which I happen to be writing. 80 Wilkins (2006) comenta a estrutura de construção da obra Mantra (1970), de Karlheinz Stockhausen, a partir de detalhes descritos pelo compositor no livro de Jonathan Cott intitulado: Stockhausen: Conversations with the Composer (1974). O “mantra” é formado por quatro frases, separadas por pausas. São utilizadas treze alturas (doze diferentes e a repetição da primeira ao final). Cada uma das treze notas possui características determinadas: 1ª nota – repetição regular; 2ª nota – acento no final; 3ª nota – normal; 4ª nota – appoggiatura; 5ª + 6ª notas – tremolo; 7ª nota – acento no início; 8ª nota – cromática (glissando embrionário); 9ª nota – staccato; 10ª nota – repetição irregular (código morse embrionário); 11ª nota – trinado embrionário; 12ª nota – sforzato (eco embrionário); 13ª nota – arpeggio (WILKINS, 2006, p. 27, grifos da autora, tradução nossa) 52 . A série de 13 sons e suas articulações é a base para as treze sessões da peça. Há uma “evolução” do mantra em cada uma das treze sessões a partir da combinação de notas da “série” em escalas musicais que provêem a transformação do mantra inicial. Desta forma, há um plano inicial complexo que constitui uma rede de princípios, uma série de coordenadas para o desenho do território de escuta que se expressa na composição, bem como para a utilização dos elementos em seu desenvolvimento. 52 No original: Note 1: regular repetition Note 2: accent at the end Note 3: normal Note 4: appoggiatura Note 5 + 6: tremolo Note 7: accent at the beginning Note 8: chromatic (embryonic glissando) Note 9: staccato Note 10: irregular repetition (embryonic morse code) Note 11: embryonic trill Note 12: sfz (embryonic echo) Note 13: arpeggio. 81 Outro exemplo apresentado por Wilkins (op. cit.) é a composição Verbelendungen (1982-1984), de Kaija Saariaho. Neste caso, a estrutura musical é organizada a partir de concepções gráficas, tanto da forma inicial da peça, quanto dos modos de uso dos elementos composicionais durante a obra. Saariaho partiu de uma ideia inicial que correspondesse a uma pincelada de tinta em uma tela, com grande adensamento inicial e rarefação ao longo do desenvolvimento do traço. Além desta imagem inicial, a compositora desenhou estruturas gráficas que definiriam o desenvolvimento dos seguintes elementos na peça: orquestra, polifonia, taxa de progressão harmônica, extensão das alturas, dinâmica, homofonia e a utilização de gravações em fita magnética. Abaixo estão reproduzidas as imagens utilizadas na definição dos parâmetros da composição53. As formas gráficas seriam superpostas na obra, de forma a articular os elementos entre si ao longo do tempo de desenvolvimento da composição. Vemos que a questão é apenas a dimensão ocupada pelo elemento definido no gráfico em relação aos demais componentes da obra, pois se trata do “grau de importância” daquele elemento em determinadas passagens, o destaque ou a presença que terá e como esta presença se desenvolve ao longo do tempo da peça. 53 Estas imagens gráficas não integram a partitura da peça, mas formam o modelo para estruturar a composição. 82 Fig. 1 – Representações gráficas do desenvolvimento dos elementos escolhidos pela compositora Kaija Saariaho em sua obra Verbelendungen (1982-1984). A referência ou pensamento que estrutura a obra não precisa necessariamente ter sua origem no universo musical. Há compositores que buscam outras áreas de conhecimento como origem para propostas composicionais. O português Jaime Reis utilizou a biologia como ponto de partida para uma série de obras (Synthesis) tendo como ponto principal de referência a cadeia de DNA. A complementaridade presente na sequência de aminoácidos na cadeia helicoidal foi o primeiro aspecto, a primeira coordenada de seu sistema, seguida pela ideia de derivação direta de elementos a partir de uma origem comum. O compositor exemplifica o procedimento referindo-se a células rítmicas que deram origem a outras células por derivação; unidades rítmicas derivadas e complementares às primeiras; distribuição das células rítmicas pelos timbres utilizados na composição; articulações contrapontísticas do material em diálogos entre vozes e timbres tendo como referência as cadeias duplas de DNA, entre outros54. Desta forma, vemos um movimento na direção da construção de conjuntos de princípios pessoais de organização dos sons em composições musicais, independentemente de um sistema de referências compartilhado. Muitas peças apresentam suas propostas de organização enquanto se manifestam – ou seja, são a manifestação de um grupamento de princípios de organização sonora específicos daquela própria obra. Cada obra solicita uma relação específica do ouvinte a partir de sua construção peculiar – solicita a tecedura de um território de escuta que articule as relações que as obras realizam interna e externamente. O aparecimento de princípios de organização sonora que expressam pensamentos e conexões muitas vezes individuais dos compositores conduz à abertura e à criação de novas possibilidades de composição com os sons, bem como solicita novas redes de sensibilidade. Este pensamento atravessa fronteiras e influencia artes que lidam com o som, para além da música. No cinema, vemos a tecedura de territórios de escuta que revelam a criação de 54 Anotações referentes à palestra do compositor ministrada no curso Seminários em Música Eletroacústica, da Escola de Música da UFMG em 2014. 83 princípios autorais de articulação entre som e imagem que são particulares a um determinado diretor ou mesmo a um determinado filme. Podemos encontrar em filmes como 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle (1967), de Jean- Luc Godard, princípios de relação entre som e imagem que se distanciam das práticas hegemônicas e delimitam uma proposta de resistência que se expressa nesta e em outras obras do cineasta, como veremos mais adiante. Estes sistemas fazem frente às práticas de uso do som no cinema tornadas hegemônicas pelas indústrias de massa. Em seu primeiro longa-metragem, Matéria de Composição (2012), Pedro Aspahan aborda a composição musical para o cinema e traz três compositores mineiros cujos procedimentos composicionais, a maneira como pensam as relações som/imagem no cinema e as formas de organização de seus materiais sonoros para articulação com as imagens propostas pelo filme são completamente diferentes. Cada um cria um universo de articulação som/imagem próprio, assim como uma composição musical cujo material base, procedimentos composicionais e organização final demonstram um pensamento particular a cada um. 84 5.2 A collage55 dos ruídos e o mundo como música Ainda no final dos anos 1980, pude escutar peças musicais compostas unicamente com sons do mundo. Não me lembro do nome da primeira que escutei, mas me lembro que foi em uma aula em que a peça, de um compositor sul-americano, foi comentada pelo professor quanto a sua estrutura. A organização das camadas de sons (a harmonia), bem como sua construção temporal (a interação entre sons no tempo, bem como sua variação dinâmica) revela uma cuidadosa composição no sentido musical, com adensamentos, repetições, variações, etc. que nos conduziam dentro daquele universo inusitado. A partir dela, pude escutar diversas outras peças compostas com o que denominávamos – sons não- musicais – e passei a entender que, como dizia John Cage, a música está presente o tempo todo no mundo, apenas esperando por ouvidos que a escutem... A palavra ruído possui significações diversas que se conectam a campos de pesquisa, momentos históricos e interpretações valorativas referentes a sistemas específicos de organização sonora. O ruído é compreendido em acepções diferentes que o localizam ora como o par oposto (e complementar) à informação (a interferência que atrapalha o processo comunicacional, embora seja necessária); ora como o não musical (que não se enquadra nos sistema de organização de sons denominado música – até o início do século XX, como veremos adiante); ora como o incômodo (em uma perspectiva ecológica onde ruído é um fenômeno a ser erradicado ou minimizado para uma eufonia ambiental); ora como o erro (aquilo que deve ser evitado, pois não se coaduna a um sistema de valores específico). No entanto, propostas de ressignificação do ruído se difundiram ainda no século XX e provocaram o surgimento de poéticas musicais diversas que lançaram mão desses sons 55 A escolha do termo collage faz referência às práticas da arte moderna de colagem de materiais de fontes diversas em um suporte, originada nas práticas de papier collé de George Braque e Pablo Picasso. Nesta pesquisa, a collage se refere à colagem de materiais sonoros de origens diversas em um mesmo suporte – fita magnética, película ou disco. 85 como elementos composicionais. Esse movimento em direção ao ruído é um fenômeno que se dá através de uma articulação complexa entre percepção, contexto social, significação, simbologia e tecnologia. As transformações histórico-sociais e o percurso das tecnologias em sua hibridização crescente ao humano trouxeram novos modos de produção e percepção dos sons nos espaços urbanos, uma vez que as cidades viram a transformação de suas sonoridades no decorrer da revolução industrial com o aparecimento de máquinas que amplificavam a presença de ruídos no espaço comum – como discutimos no Capítulo 3, novos territórios de escuta são desenhados a partir destas transformações. Além disso, havia uma abertura crescente dos sistemas de referência musicais, principalmente com o questionamento da centralidade do sistema tonal nas composições. Assim, compositores começaram a repensar o lugar do ruído e sua possível relação com a escuta estética. Para além da influência dos sons ambientes e da tecnologia, as próprias pesquisas musicais abrem caminho para explorações de uma paleta sonora mais ampla do que os timbres produzidos pelos instrumentos convencionais. Muitos optam por compor para instrumentos e grupos de percussão, uma vez que estes, em sua maior parte, são instrumentos que produzem sons sem altura definida e eram pouco explorados por não poderem executar melodias ou harmonias tradicionais. Ionisation (1929 – 31), de Edgard Varèse, foi composta para um grupo de 13 músicos tocando 40 instrumentos de percussão, incluindo duas sirenes. John Cage compõe diversas peças para percussão ao longo de sua trajetória, incluindo Quartet (1935) para quatro percussionistas e Trio (1936) para três – compostas no início de sua carreira. Posteriormente, Cage cria o piano preparado: piano que recebe uma série de intervenções em suas cordas – parafusos com e sem porcas, pedaços de borracha, entre outros elementos. Estas intervenções transformam o piano em um instrumento de percussão com uma diversidade de timbres ao alcance de um só instrumentista. Bacchanale, de 1938-40, foi sua primeira peça para o instrumento, e foi especialmente composta para o 86 espetáculo de dança de mesmo nome de Syvilla Fort56. Outros compositores, como Henry Cowell, buscavam extrair novas sonoridades dos instrumentos convencionais através de alterações na maneira de tocá-los. Cowell explora a realização de clusters no piano57 ou tocar as cordas do piano diretamente com as mãos ou objetos. O piano passa a compor novos territórios de escuta a partir destes novos agenciamentos em que toma parte – a intervenção em sua constituição e a nova gestualidade envolvida em sua execução traçam linhas de fuga que desterritorializam este que foi um dos mais simbólicos instrumentos da música tonal e da afinação temperada. O deslocamento e a atribuição de novos sentidos para os ruídos do mundo se desenvolvem conjuntamente a propostas de novas formas de relação com o espaço comum onde esses sons acontecem. Um exemplo é o Manifesto Futurista (1909), nas palavras de Marinetti e sua reverberação na Arte dos Ruídos (1913), de Luigi Russolo, também integrante do movimento. Ambos os autores refletem sobre o mundo que os rodeia e sobre o compartilhamento do espaço cada vez mais povoado por máquinas que propicia novas experiências (inclusive sonoras) e novas formas de perceber esse mesmo mundo. Russolo propõe novos modos de lidar com os sons do ambiente e novas configurações de entrelaçamento eu/mundo – novos territórios de escuta. Russolo foi um dos primeiros compositores a experimentar o uso dos ruídos como música. Em seu manifesto ele expressa a necessidade de voltarmo-nos para o mundo para reaprender a escutá-lo (ver sua proposta de “caminhada” no capítulo 2 desta pesquisa). A partir da reflexão sobre o lugar desses sons e a construção, no próprio manifesto, de um pequeno grupo de categorias58 em que os ruídos podiam ser estruturados, Russolo cria os 56 Na verdade, Cage conta a história do piano preparado relatando que o espaço reduzido do teatro onde seria realizado o espetáculo de Fort, impedindo a presença de muitos músicos, o levou a criá-lo, uma vez que desejava compor para um grupo de percussão. A inserção dos objetos transformou o instrumento no grupo que desejava. Este relato se encontra no livro Empty Words:writings ’73-’78 (1979), de Cage. 57 O cluster é realizado pelo ato de pressionar uma série de teclas adjacentes no piano usando as mãos, parte dos braços ou objetos. 58As categorias parecem ter a finalidade de organizar o material para uso a partir de sua forma de produção e são traduzidas por Padovani da seguinte maneira: “1) roncos, troadas, explosões, bramidos, estrondos, estalados; 2) assobios, apitos, sopros; 3) cochichos, murmúrios, resmungos, sussurros, gorgolejos; 4) estridores, rangidos, farfalhares, zumbidos, guizos, esfregações; 5) ruídos obtidos com percussão de metais, madeiras, 87 Intonarumori: objetos produtores de ruídos diversos, a partir da manipulação simples, que seriam inseridos em suas composições e performances musicais, trazendo para a sala de concerto as sonoridades das ruas. Alguns compositores começam a utilizar objetos mecânicos em suas obras, como Georges Antheil em seu Ballet Mécanique, de 1924 – a peça incluía sete campainhas elétricas, uma sirene e três hélices de avião. Logo vemos experimentos com o som registrado, tornado possível pela tecnologia do fonógrafo. A manipulação destes registros aparece no uso de gramofones e na montagem dos sons registrados na película cinematográfica a partir do sistema movietone. O movietone era um sistema que permitia a gravação ótica da banda sonora dos filmes na película, com a finalidade de manter a sincronização som/imagem. Porém, em uma apropriação particular do sistema movietone, Walter Ruttmann produziu uma das primeiras (se não a primeira) músicas “eletroacústicas” da história em Wochenende (Fim de Semana - filme que possuía apenas a banda sonora, sem imagens), de 1930. O diretor utiliza sons gravados no mundo e os rearranja em uma collage de timbres de instrumentos musicais, máquinas, pessoas, animais e objetos que ganham novos sentidos. Wochenende, diferentemente das propostas iniciais de Russolo, realiza efetivamente a organização dos sons do mundo em uma nova articulação, retirando-os do espaço cotidiano da escuta, onde sua interpretação não seria, a princípio, musical. Ruttmann propõe, como autor, outra possibilidade de orquestração dos ruídos para ser apreciada pelos espectadores. Enquanto Russolo deposita no ouvinte a possibilidade de harmonizar os ruídos do mundo em sua caminhada pela cidade, Ruttmann exerce o papel de organizador da experiência estética a partir da apropriação da tecnologia que lhe permite essa manipulação do som. Ruttmann conviveu com a criação de sistemas tecnológicos que registravam sons do mundo e permitiram novas formas de percepção do que seja a escuta e novos modos de apreciação dos sons – um território de escuta que emerge a partir de sua obra. No entanto, escolheu uma relação e uma situação particular de escuta (e de visão), o cinema, para pedras, cerâmicas, etc.; 6) vozes de animais e de homens: gritos, berros, gemidos, urros, uivos, risadas, estertores, soluços. (PADOVANI, s.d., p. 5). 88 desviar o programa de sua função inicial: o centro não é, nessa obra cinematográfica, o olhar, mas o ouvir, já que nada há para ser visto. Ao mesmo tempo, o isolamento acústico e a penumbra do cinema ampliam a imersão sonora do espectador na proposta de Wochenende, transformando a experiência no que hoje denominaríamos de uma “instalação sonora”. Essa obra de Ruttmann é bastante peculiar, pois a imagem não está em movimento para ser vista, mas é posta em movimento na memória e na imaginação do espectador através de uma experiência auditiva (estética e ao mesmo tempo, parcialmente, realista). O território de escuta que aqui se desenha articula o isolamento do cinema e sua carga simbólica (a função, o que se espera vivenciar ali, a imobilidade do corpo, etc.) à experiência musical dos sons do mundo. Hans Richter, contemporâneo e amigo de Ruttmann, se expressou desta forma sobre a obra: “Foi uma história de um fim de semana, do momento em que o trem deixa a cidade até que os amantes, em meio a suspiros, são separados pela multidão de pessoas que se aproximam em seu caminho para casa. Foi uma sinfonia de sons, fragmentos de fala e silêncio tecidos em um poema”59 (RICHTER apud CORY, p. 341, tradução nossa). Realizando uma estruturação estética dos sons do mundo de forma ainda mais intensa e com uma construção complexa de relações entre imagem e som, Dziga Vertov realiza Entuziazm (Simfonija Donbassa) em 1931. O filme trata das transformações advindas da revolução, com a queda do czarismo e da religião, o primeiro Plano de Cinco Anos de Stálin, o início da industrialização na União Soviética, centrada na região carvoeira da bacia do rio Don (Donetskyi basein ou Donbass - Ucrânia), e da participação ativa e central do proletariado nessa “revolução” industrial. Vertov utiliza uma série de procedimentos de alteração dos sons pela manipulação da película, incluindo alterações de velocidade e direção, bem como uma collage complexa de elementos sonoros – todos os sons do filme foram gravados pelo cineasta e sua equipe em diversas locações. Entuziazm cria um território de escuta peculiar, a partir do qual os diversos campos de sentido que o filme alcança se estruturam. Analisamos este filme em nossa dissertação de mestrado (PESSOA, 59 No original: “It was the story of a weekend, from the moment the train leaves the city until the whispering lovers are separated by the approaching home-struggling crowd. It was a symphony of sound, speech- fragments and silence woven into a poem”. 89 2011) e, portanto, não iremos discuti-lo aqui, mas vale ressaltar sua importância como uma das primeiras obras cinematográficas que usa os ruídos de forma expressiva e central em sua narrativa. As primeiras pesquisas com a possibilidade de utilização do som gravado e a tecnologia de reprodução dos gramofones para composições musicais acontece ainda nas primeiras décadas do século XX. Ali já temos uma introdução de sons que não faziam parte do universo musical até então: sons com mudança da velocidade de sua reprodução, sons invertidos (tocados de trás para frente), glissandos temporais ao mesmo tempo em que de altura, etc. Um exemplo são as composições de Hindemith e Toch apresentadas no Festival da Nova Música de Berlim, em 1930. Mais tarde, já com John Cage (Imaginary Landscape #1, 1939) e Pierre Schaeffer (Études de Bruits, 1948), ampliar-se-ão suas possibilidades expressivas para a composição musical com sons pré-gravados. Schaeffer experimentava com as potencialidades expressivas do rádio, tendo criado um “laboratório de experimentos em produção radiofônica, o Studio D’Essai da Radiodifusão Nacional [francesa]” (PALOMBINI, 1999, p. 2). O compositor já vinha produzindo uma reflexão sobre as possibilidades do que denominava artes relé (rádio e cinema). Rádio e cinema não só transformariam a experiência da imagem e do som como, por suas características, mostravam-se capazes de “informar as artes clássicas” (SCHAEFFER apud PALOMBINI, 2009, p.28, grifo do autor). A escuta já aflora como aspecto fundamental da relação entre artista e meio tecnológico na visão de Schaeffer, assim como a importância do aspecto concreto do material frente a seu caráter simbólico: A atitude fundamental no início de toda a concepção radiofônica é, portanto, de escuta e não de escrita, de construir com os materiais sonoros e, caso se use palavras, de considerar primeiro o barulho que elas fazem, sua matéria, seu peso de realidade e não sua significação intelectual (SCHAEFFER apud PALOMBINI, 2009, p. 83). Podemos ver que a perspectiva de Schaeffer se distancia do formato que o rádio veio a assumir e desenvolver ao longo do século XX, como vimos no capítulo 3. A pesquisa do compositor com os sons do mundo (ruídos) seria trazida a público posteriormente, em 1948, com a difusão dos cinco Études de Bruits: Étude aux tourniquets (Déconcertante); Étude aux chemins de fer (Imposée); Étude pour orchestre (Concertante); 90 Étude pour piano (Composée); Étude aux cassarole (Pathétique). As obras se originam de seu trabalho de experimentação no então renomeado Club D’Essai de La Radiodiffusion- Télévision Française, onde teve acesso a equipamentos que permitiram uma maior manipulação do material registrado: toca-discos, misturadores, torno para corte de discos, filtros de áudio, câmara de eco, entre outros. O Étude aux chemins de fer (Imposée), foi criado a partir do registro de diversas locomotivas na estação Batignolles, em Paris. Schaeffer considerava os sons gravados e reconhecíveis das locomotivas como não musicais e sim dramáticos, apontando para os eventos do mundo e suas implicações (sentido, localização, etc.). Através da repetição dos fragmentos gravados, variando sua matéria (alterações em suas características sonoras por filtros, inversão, entre outros), o compositor encontrou uma maneira de distanciar os sons de seu referente e aproximá-los do universo musical na composição. Para a produção deste estudo, Schaeffer utilizou materiais gravados, manipulando-os através do uso de diversas tecnologias e procedimentos: variação da velocidade de reprodução; reprodução de trás para frente; corte; fechamento em anel de um sulco gravado (sillon fermé), fade in, fade out, entre outros. A partir destes diversos modos de alteração do registro, Schaeffer selecionou e organizou a montagem, ou a collage, do material na composição musical resultante. Nos demais estudos, Schaeffer utilizou técnicas semelhantes de registro, recorte, manipulação e montagem sonora dos elementos registrados e processados. O compositor, em relação ao Étude aux Tourniquets (Déconcertante)60, afirma que “as ideias musicais da partitura original desapareceram quase que por completo, uma vez que os cortes produziram novas estruturas que não tinham qualquer relação com a intenção inicial da composição. [...] Assim, a ploriferação de formas anula a forma, que se torna matéria novamente”61 (SCHAEFFER apud PALOMBINI, 1993, p.5, tradução nossa). Ou seja, o recorte dos sons registrados os transforma em novos sons, retirando-os de suas relações prévias 60 Este estudo é composto a partir da gravação de uma composição de Gaston Litaize para instrumentos de percussão e peças de brinquedo. 61 No original: “The musical ideas of the original score almost entirely disappeared, for the cuts engendered new structures which had no relation with the former compositional intention. […] Thus, the proliferation of shapes annuls the shape, which becomes matter again”. 91 definidas pela composição musical inicial e permitindo que entrem em novas relações, como matéria à qual se dará nova forma através da composição concreta. A montagem se torna tão importante quanto o registro e o recorte do material sonoro, pois o organiza em novas formas e permite que se constituam relações entre os elementos utilizados que não se manifestam da mesma maneira fora da composição concreta. Aqui vemos os territórios de escuta propostos pela música concreta emergirem: o material deslocado solicita nova sensibilidade e tanto se integra em novas redes como solicita novos movimentos e conexões de sentido. Schaeffer solicita uma escuta renovada que aceite a ampliação radical do material à disposição do compositor e do efeito resultante de sua manipulação e colagem. Os territórios de escuta que a música concreta delimita incluem novas formas de habitar o espaço sonoro, novas conformações destes em territórios de escuta. Há que se apreciar esteticamente os sons do mundo, mas não necessariamente como sons que disparam nossas lembranças, mas sons que possuem características particulares, não encontradas nos instrumentos musicais, sons que se misturam de formas distintas, onde não há lugar para a harmonia tonal ou para os movimentos melódicos. Constituir estes territórios a partir da provocação do compositor dispara novas redes de articulação entre os sons e entre sons e sentido. Da mesma forma, Cage advogava o uso das tecnologias para ampliar o campo dos sons disponíveis para a composição musical. Em um de seus mais famosos textos, The Future of Music: credo (1937), ele enfatiza o desejo de “capturar e controlar estes sons” 62(CAGE, 1973, p. 3, tradução nossa). Os ruídos estão no mundo e ocupam a maior fatia de nosso campo auditivo em qualquer lugar que estejamos, porque não utilizá-los em composições musicais? “Quando escutamos [estes ruídos], os consideramos fascinantes. O som de um caminhão a cinquenta e cinco milhas por hora. A estática entre as estações [de rádio]. Chuva 63(CAGE, 1973, p. 3, tradução nossa). 62 No original: “We want to capture and control these sounds”. 63 No original “When we listen to it, we find it fascinating. The sound of a truck at fifty miles per hour. Static between the stations. Rain”. 92 Cage realiza composições com o uso de fita magnética e sons pré-gravados de origens diversas: Imaginary Landscape nº 5 (1952) foi escrita para um grupo de quarenta e dois discos quaisquer. Estes discos forneceriam os sons que seriam gravados em fita magnética e editados de acordo com as indicações da partitura. Esta era composta por oito linhas de gráficos com blocos organizando as durações. Cada um dos blocos teria a duração equivalente a três segundos de fita magnética. Outra obra para gravadores de fita magnética, Williams Mix (1952), indica os tipos de sons a serem utilizados: A – sons da cidade; B – sons do campo; C – sons eletrônicos; D – sons produzidos manualmente; E – sons produzidos pelo vento; e F – sons “pequenos”, necessitando de amplificação (Fonte: johncage.org). Estes sons seriam registrados em oito fitas magnéticas, as quais seriam cortadas e remontadas de acordo com as indicações da partitura, num processo complexo de collage de sons de fontes diversas. Cage explica que a partitura, de 192 páginas, indica os cortes a serem realizados e apresenta reproduções em tamanho real das fitas magnéticas e das dimensões e formas dos cortes a serem feitos. John Cage foi um dos compositores mais influentes da música do século XX e suas propostas alcançaram diversos campos artísticos. Ele foi um artista que subverteu valores e transformou constantemente seu próprio pensamento e fazer musical. Ele fez parte de diversos “movimentos” de renovação da música: a busca por novos sons e a inclusão dos ruídos nas composições musicais; a experimentação com o registro tecnológico dos sons e sua manipulação; o uso de toca-discos como fonte sonora para a composição; o apagamento do autor/compositor e a ampliação da participação do performer nas decisões composicionais; o uso do acaso como forma de organizar o material sonoro; a realização de eventos com múltiplas linguagens em diálogo, ampliando o sentido do campo musical e dos gestos musicais; a defesa do silêncio como fator central para a compreensão do som e para a composição musical; a defesa de uma escuta isenta de pré-conceitos, principalmente oriundos da formação musical, e a busca de uma escuta “pura” que deixasse os sons “serem eles mesmos”. O interesse pelos sons do mundo o conduz a pensar que para que se possa realmente apreciar estes sons, seria necessário que nos aproximássemos deles sem ideias pré- concebidas. Isto incluiria, principalmente, ideias musicais – afinal, são estas ideias que definem o campo dos sons interessantes e apreciáveis, e o diferenciam do campo dos sons 93 desinteressantes64 e não apreciáveis – os ruídos. Esta perspectiva é expressa no texto de 1957, Experimental Music: “[...] pode-se desistir do desejo de controlar os sons, limpar nossas mentes da música, e partir para a descoberta de modos de deixar os sons serem eles mesmos em vez de veículos para teorias construídas pelos homens ou expressão de sentimentos humanos” 65(CAGE, 1973, p. 10, tradução nossa). No entanto, isto não quer dizer, ao menos neste ponto, que se busca uma limpeza e esvaziamento completo da mente e de associações ou sentimentos que possam surgir no indivíduo: Escutar os sons sendo somente sons imediatamente faz com que a mente teórica teorize, e as emoções dos seres humanos são continuamente provocadas pelos encontros com a natureza [...]. A emoção acontece na pessoa que a tem. E sons, quando são autorizados a serem eles mesmos, não necessitam que aquele que os escuta o faça sem emoção 66 (CAGE, 1973, p. 10, tradução nossa). Ou seja, a questão são justamente as ideias preconcebidas, que antecipam o sentido ou a experiência dos sons. Mas a experiência provoca associações, pensamento, emoções e conexões individuais, territórios de escuta que se desenham no contato com os sons. Posteriormente, Cage compõe 4’33’’ (1952), peça em que busca a ausência de produção intencional de sons pelo performer e a abertura para os sons que possam acontecer no ambiente da performance. Os gestos criados pelo intérprete para marcar as três seções que compõem a música, marcam o seu silenciamento. A música eclode no entorno próximo e distante de cada ouvinte na platéia. A composição musical se abre para o ambiente, podendo mesclar sons produzidos intencionalmente a sons produzidos sem intenção, tanto pelo performer quanto pelos espectadores. A ideia de silêncio se aproxima 64 Poderíamos dizer também funcionais – sons que nos auxiliam em nosso dia-a-dia, mas que não se enquadram na categoria dos sons que apreciaríamos como música. 65 No original: “[…] one may give up the desire to control sound, clear his mind of music, and set about discovering means to let sounds be themselves rather than vehicles for man-made theories or expressions of human sentiments”. 66 No original: “Hearing sounds which are just sounds immediately sets the theorizing mind to theorizing, and the emotions of human beings are continually aroused by encounters with nature. […] Emotion takes place in the person who has it. And sounds, when allowed to be themselves, do not require that those who hear them do so unfeelingly”. 94 dos sons não controlados, dos sons que acontecem, os sons que são eles mesmos, sem intenção ou pré-determinação: Anteriormente, o silêncio era o lapso de tempo entre os sons, útil para uma série de finalidades, dentre as quais o arranjo ‘de bom gosto’, onde ao se separar dois sons ou dois grupos de sons [pelo silêncio], suas diferenças ou relações podem ser enfatizadas. [...] Onde nenhum desses objetivos está presente, o silêncio se torna outra coisa – nada de silêncio, mas sons, os sons do ambiente 67 (CAGE, 1973, p. 22, tradução nossa). Sons são fenômenos vibratórios. Se pudermos criar máquinas que sejam capazes de amplificar os mais ínfimos fenômenos vibratórios68, compreenderemos, para nosso espanto, de que há sempre sons acontecendo ao nosso redor. Desta maneira, não há porque delimitar o uso dos sons em musicais e não-musicais. A proposta de deixar os sons serem eles mesmos atua na composição de peças musicais onde não se tem controle sobre a origem dos sons, nem tampouco se faz distinção entre os que podem ou não fazer parte delas. No entanto, o aspecto que nos interessa neste percurso é justamente a valorização estética dos sons do mundo. Não é necessário, segundo Cage, a situação de performance musical para que a música se faça: Eu duvido que a gente possa encontrar um objetivo mais alto, ou seja, que a arte e nosso envolvimento nela nos introduzam de alguma forma na própria vida que estamos vivendo e que então sejamos capazes de sem partituras, sem executantes, simplesmente ficar sentados, escutar os sons que nos cercam e ouvi-los como música (CAGE, 2013, p. 42). Claro que para ele um processo seria necessário: o aprendizado que conduziria à apreciação dos sons naturais do mundo como música. Para ele, seu trabalho seria justamente a tentativa de construir este percurso. Já no meio dos anos 1960, Max Neuhaus, percussionista norte-americano, cria uma peça-processo em que as pessoas, ao chegarem à sala de concerto, eram colocadas em um 67 No original: “Formerly, silence was the time lapse between sounds, useful towards a variety of ends, among them that of tasteful arrangement, where by separating two sounds or two groups of sounds their differences or relationships might receive emphasis. […] Where none of these or other goals is present, silence becomes something else-not silence at all, but sounds, the ambient sounds”. 68 Ver menção ao projeto Dark Side of the Cell, no capítulo 3. 95 ônibus e transportadas para lugares onde poderiam ter outras experiências sonoras. Cada um recebia um carimbo com a palavra “ESCUTE” na palma das mãos e eram conduzidas para locais com sonoridades particulares como estações de metrô, subestações de energia elétrica, entre outros (NYMAN, 1999). Neste caso, a música sai da sala de concerto e se revela no próprio mundo, bastando para tanto, a mudança de atitude do próprio ouvinte – de certa forma, uma realização das ideias iniciais sugeridas por Russolo em seu manifesto. Os territórios de escuta são ampliados nestes encontros entre sons habitualmente não percebidos esteticamente e ouvidos que se tornam sensíveis a eles. Neste caso, o recorte é físico, móvel e define de antemão o campo em que os sons se darão, mas não o que será recortado pelas escutas. Posteriormente, diversos compositores exploram as collages sonoras e os ruídos do mundo em composições que ganharam uma diversidade de denominações: sound-based compositions69, música acusmática, soundscape compositions70, spectralisme, música eletroacústica, entre outros (LANDY, 2007). Alguns autores, como Chris Cutler (CUTLER, 2007), percebem conexões entre práticas mais recentes (e menos high art) como os plunderphonics de John Oswald ou as diversas correntes do turntabalism (uso dos toca- discos em diferentes práticas que envolvem composição, improvisação, performances, alteração do próprio objeto tecnológico – e mesmo sua destruição) e as pesquisas com os ruídos e a collage sonora. O processo de criação dos plunderphonics se baseia no recorte e na montagem de composições alheias, utilizando práticas de colagem sonora e deixando clara sua origem. O aspecto político da reapropriação e ressignificação do material é um dos pontos centrais do procedimento. O nome, plunderphonics, retrata justamente este aspecto – pilhagem sonora. A compositora Katharine Norman faz uma diferenciação entre a música eletroacústica e a que ela (e outros compositores atuais) realiza, cuja denominação seria 69 Preferimos deixar o termo em inglês utilizado por Leigh Landy (2007), uma vez que sua tradução não nos remete ao seu objeto principal: os sons do mundo. Uma tradução literal seria: composições baseadas em sons – o que todas as composições musicais, num sentido amplo, são. 70 Da mesma forma, as soundscape compositions não possuem um termo adequado em português, sendo a tradução aproximada de seu sentido composições que utilizam paisagens sonoras como base. 96 Real World Music ou música do mundo real. As músicas do mundo real retiram elementos da experiência direta com o entorno: “Um trabalho com [sons do] mundo-real pode ser visto como um distanciamento em relação à realidade, mas através da própria realidade, que dá uma moldura à nossa experiência da música [que ouvimos]. E trabalhos com [sons do] mundo real provêm universos musicais ‘abertos’, uma vez que requerem nossa lembrança contínua da realidade; de como as coisas realmente são, ou parecem, ou foram, para nós” (NORMAN, 2005, p. 19, grifos da autora, nossa tradução). Há a permanência de certa referência e localização desses sons na experiência que provocou o seu registro (ou na possível experiência que cada um poderia ter em eventos semelhantes) embora haja manipulação expressiva pelo compositor em sua orquestração com outros sons e sua articulação temporal. Posteriormente, como legado das pesquisas com a collage sonora e com os ruídos do mundo, encontramos o aparecimento de pesquisas artísticas que se moldam em aspectos de seu pensamento no campo da Arte Sonora. O artista sonoro Fernando López trabalha com o registro dos sons do mundo e sua manipulação e recomposição para compartilhamento em situações específicas (performances, mostras de arte sonora, etc.). Para ele as gravações de sons do mundo não retratam a fidelidade às fontes sonoras, mas, além de “enformarem” os sons registrados, revelam uma dimensão interna do sonoro – “ela foca o mundo interno dos sons” (LÓPEZ, 1986, p. 85, tradução nossa). López usa o termo “matéria sonora” para falar de seu material de trabalho, uma vez que para ele matéria “reflete melhor a continuidade dos materiais sonoros que encontramos” (LÓPEZ, 1986, p. 85, tradução nossa). Vemos que cada artista/compositor ao abordar os sons do mundo, os ruídos do cotidiano, bem como sua manipulação e reorganização em formas estéticas acaba por delimitar um entendimento e uma prática próprios, um território de escuta, uma morada de onde escuta o mundo e traduz sua escuta em obras. No caso do cinema, na composição de territórios de escuta, a revalorização dos ruídos do mundo, bem como a collage sonora, aparecem em diversas obras. Em Plumb Line (1968-71) de Carolee Schneemann, há uma alternância de silêncio e colagem vertical e 97 horizontal71 de sons do mundo - vozes, vozes alteradas, ruídos elétricos, pássaros, sons não identificáveis, canções, variações de velocidade dos sons, sons de trás para frente, etc. Schneemann utilizava um material sonoro com múltiplas origens e características que são aglutinados em seu filme para constituir, a partir da collage, um território de escuta particular a esta obra. Plumb Line retrata a dissolução de uma relação afetiva e usa a fragmentação e colagem do material sonoro e imagético para fazê-lo. Os sons do mundo se manifestam com enorme força em filmes como Ruhr (2009) de James Benning (analisado mais a frente) – seis planos fixos com duração variada entre sete (sete) minutos e 1 hora, onde a imagem sofre pouca variação, mas o sonoro se manifesta em toda a sua riqueza e complexidade para ser apreciado. Da mesma forma, Notas Flanantes (2009), de Clarissa Campolina, que nos mostra planos fixos da vida em seu transcorrer banal, nos solicita uma escuta capaz de apreciar a musicalidade dos sons que fluem junto com a duração cotidiana. O trabalho do grupo O Grivo, belorizontino, com diversos diretores de cinema, como Cao Guimarães, Marcos Pimentel ou Marília Rocha, mescla uma construção sonora a partir dos ruídos com a escuta dos sons do mundo. O deslocamento intencional da perspectiva mais realista tradicional do cinema, em que o som acompanha o recorte da imagem, e a abertura para a entrada dos sons que estão para além do que o olho da câmera vê, já transforma o território de escuta dos filmes em que o grupo atua. Mas além desta alteração, está presente a composição de trilhas musicais com material sonoro que se relaciona de forma dinâmica com o as características do material filmado, ora se aproximando e ora se afastando deste - isto se dá tanto no aspecto material da possível relação entre ambos, quanto nos aspectos rítmicos, por exemplo. 71 Usamos os termos vertical e horizontal no sentido da organização dos sons: em sobreposição em um momento dado – vertical; e em sequência temporal – horizontal. 98 5.3 A síntese sonora e o som mínimo O primeiro grupo de música eletrônica que ouvi, assim como muitos jovens adolescentes dos anos 1980, foi Kraftwerk. Embora, em sua maioria, as músicas fizessem parte de um nicho pop de melodias inesquecíveis, havia espaço para experimentos que provocavam o ouvinte, como em Radioland ou Mitternacht. Dali para frente, inúmeros grupos passaram a usar instrumentos eletrônicos, mesmo que mesclados a instrumentos elétricos e acústicos, como guitarras e baterias. Desta safra veio o grupo que mais me chamou a atenção nos anos 1990: Stereolab. Lembro-me de assistir a um show do disco Dots and Loops (1997), em Londres, pouco após ser lançado. O disco exigia diversos instrumentos eletrônicos, samples e uma perfeita sincronia homens/mulheres/máquinas. Após muitos erros e recomeços durante esta apresentação, o grupo desistiu de utilizar aquela “parafernália”. O show seguinte a que assisti, me fez não ir a nenhum mais. A busca por novos sons, que pudessem abrir campos de criação sonora ainda não explorados, se torna intensa no início do século XX. Como dissemos, movimentos como o futurismo enfatizavam a necessidade de abrirmos nossos ouvidos aos sons que se originaram nas transformações do mundo pela tecnologia e os novos modos de vida em que ela tomava parte. As máquinas e seus ruídos introduzem novas sensibilidades, novos territórios de escuta e novas possibilidades de exploração musical. Para além dos ruídos do mundo, a criação de instrumentos que produzem sons faz parte de toda a história humana, desde as primeiras flautas de osso. No entanto, naquele momento de revolução tecno-industrial, imagina-se máquinas que poderiam criar sons que os instrumentos convencionais não seriam capazes de produzir ou máquinas que permitiriam o acesso a uma infinidade de sons diferentes ao alcance das mãos. Diversas experiências conduziram a criação de instrumentos eletroeletrônicos inusitados, que prometiam a ampliação dos timbres à disposição dos compositores. O 99 “telégrafo musical”, criado na década de 1870 por Elisha Grey, era capaz de produzir sons eletrônicos e reproduzir até duas oitavas, em sua segunda versão. O “arco cantante” de William Dudell, por volta de 1900, surgiu da constatação da variação elétrica em circuitos de iluminação e o ruído que produziam. Percebendo que poderia controlar a variação dos sons produzidos pelos circuitos através da modulação da corrente que passava por eles, Dudell criou um teclado que produzia uma variação controlada da corrente e permitia a afinação dos sons emitidos pelo circuito. Seguindo estas pesquisas, alguns instrumentos musicais eletrônicos surgiram: o Telharmonium, o Theremin, o Ondes Martenot, o Trautonium, entre outros. Cada um possuía características e níveis de complexidade particulares e permitia usos e explorações sonoras específicas. O Telharmonium, criado ainda no final do século XIX por Thaddeus Cahill, era um instrumento elétrico que iria difundir sua música, executada ao vivo, via linhas telefônicas. O instrumento utilizava tone wheels, rodas fônicas, que possuíam dentes e se acoplavam a motores para girarem e uma pick-up formada por um imã e uma mola que permitia sua mobilidade. A passagem dos dentes modificava a distância entre o imã e a roda, causando uma variação magnética que induzia uma corrente elétrica na mola. A constância, o número de dentes no disco e sua velocidade de rotação determinavam a frequência da corrente elétrica. O processo era realizado em diversos discos, cujas correntes resultantes transitavam em outros componentes e permitiam que as diversas frequências induzidas pelos discos gerassem sons compostos. Som composto é a denominação dada pela pesquisa acústica musical para sons formados pela mescla de frequências com relações específicas entre si que originam um som tônico – som cuja localização no campo das alturas é perceptível. Todos os sons naturais são formados por um som fundamental, seu som principal, e diversos outros, denominados harmônicos ou parciais – nem todos parciais são harmônicos, pois podem ter relações inarmônicas com o som fundamental, resultando em sons que não possuem altura definida. Diferentes produtores de sons, como os instrumentos musicais, fazem ressoar diferentes parciais e isto é parte da constituição de seu timbre particular. Para uma melhor compreensão da formação de sons compostos e acústica musical, ver o livro de Flo Menezes “Acústica Musical em Palavras e Sons” (2014, 2ª ed.). O Telharmonium, assim como os demais instrumentos eletroeletrônicos que foram criados naquele período e posteriormente, utilizava conhecimentos das pesquisas sobre o 100 som que o antecederam, como as de Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830), o qual formulou matematicamente a relação entre os sons fundamentais e os parciais que os compõem. O instrumento criava sons a partir de seus elementos básicos – as ondas senoidais – em um processo de síntese sonora, feito pela mescla de correntes elétricas em frequências específicas (gerando o som fundamental e parciais com intensidades determinadas) que eram posteriormente amplificadas para serem ouvidas. Havia um “misturador de tons” onde os componentes individuais dos sons poderiam ser controlados e balanceados para que se alcançasse o resultado desejado. A patente do Telharmonium o descreve como “um aparato com dispositivos elétricos de geração de tons, dispositivos de controle das intensidades para a construção e desenho dos tons individuais, um teclado para ativar o circuito de geração destes tons e um sistema de alto-falantes para reproduzir os sons [resultantes]” 72(HOLMES, 2008, p. 43, tradução nossa). Cahill era capaz de fazer o Telharmonium reproduzir, com certa fidelidade, instrumentos da orquestra como o violoncelo ou a trompa. A experiência, embora inicialmente cativasse diversos assinantes, não teve boa acolhida, pois o instrumento necessitava de enormes quantidades de energia elétrica para funcionar, ocupava “boa parte do prédio de uma fábrica onde estava localizado” (HOLMES, 2008, p. 46, tradução nossa) e utilizava linhas de transmissão que vinham sendo cada vez mais solicitadas para fins mais rentáveis do que este – na visão dos empresários da época. A falta de toda uma infraestrutura para que o instrumento pudesse ser realizado e utilizado da forma prevista pôs fim ao sonho de seu criador. O Theremin surgiu em 1919 e mostrou-se único em suas especificidades de execução - não se toca no instrumento para produzir-se sons, apenas aproxima-se e afastam-se as mãos de antenas que o compõem. O instrumento possuía um oscilador que produzia uma corrente elétrica fixa. Outro oscilador estava conectado à antena vertical e quando a mão do instrumentista entrava no campo magnético desta antena, havia alteração da corrente e, com isso, da frequência produzida pelo oscilador. As frequências dos osciladores se 72No original: “a device with electrical tone-generating devices, dynamics-controlling devices for building and shaping individual tones, a keyboard for activating the tone- generating circuitry, and a speaker system for reproducing the sound”. 101 mesclavam de forma que uma era subtraída da outra e a resultante era o tom emitido pelo instrumento – desta forma, produzia-se diferentes alturas, diferentes notas musicais. A antena horizontal produzia variação na amplitude da onda sonora, alterando o volume do som emitido. Num primeiro momento, teremistas famosos, como Clara Rockwell, especializaram- se em executar versões de composições conhecidas adaptadas para o Theremin. Posteriormente, compositores, como Bohuslav Marbnu, Edgard Varèse, Joseph Schillinger, entre outros, criam peças para o instrumento. Além disso, diversas produções cinematográficas tiveram composições para Theremin em sua trilha musical, como Quando Fala o Coração (Spellbound, 1945) de Alfred Hitchcock e trilha musical de Miklós Rósza, ou O Dia em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still, 1951) de Robert Wise e trilha musical de Bernard Hermann. Empresas como a Moog chegaram a produzir Theremins para a venda ao grande público por algum tempo e ainda hoje há grupos musicais que utilizaram o instrumento em algumas de suas composições, como o inglês Portishead ou o norte- americano Pixies. O Ondes Martenot teve sua primeira apresentação em 1928, executando as peças: Poema Sinfônico para Ondes Musicales (denominação inicial do instrumento) e Orchestra, de Dimitri Levidis. Posteriormente, teve obras especialmente escritas para ele por diversos compositores conhecidos como Olivier Messian, Darius Milhaud, André Jolivet, entre outros. Holmes (2008) aponta que, até os dias atuais, mais de 300 compositores escreveram para o instrumento – cerca de 100 peças para grupos de câmera, 50 óperas, 100 obras sinfônicas, balés e cerca de 500 músicas incidentais para o cinema. A produção do som foi inspirada pelo Theremin, embora a estrutura do instrumento fosse completamente diferente: era montado como um instrumento pequeno de teclas, um clavicórdio, por exemplo. Assim como o Theremin, o Ondes Martenot era monofônico e havia um anel que permitia a mudança de oitava durante a execução, ampliando a tessitura do instrumento. Além disso, havia controles para variações expressivas e filtros que podiam alterar a sonoridade do Ondes Martenot. Embora outros instrumentos semelhantes, como o órgão eletrônico em suas várias formas, tenham se seguido, a exploração da composição racional do próprio som, a partir de 102 princípios definidos pelo compositor, trouxe outro campo de criação e outro pensamento sobre o som eletrônico. A pesquisa com a estruturação do próprio som como parte do processo de composição musical, buscava articular sistemas que permitiriam a racionalização e a integração complexa entre os diversos níveis da organização sonora na música. Por volta dos anos 1950, a experimentação da composição serial do próprio som torna-se objeto de vários músicos ligados aos estúdios da Rádio da Alemanha Ocidental – WDR. As propostas iniciais circulavam em torno da possibilidade de articular os aspectos micro e macro das composições – tanto compor a sequência e organização temporal dos sons a partir de determinados princípios, como também organizar os próprios sons internamente a partir destes mesmos princípios. Compositores como Karlheinz Stockhausen, Herbert Eimert, Gottfried Michael Koenig, entre outros, começaram uma pesquisa com os próprios constituintes dos sons (fundamentais e parciais) e a possibilidade de sua serialização. Flo Menezes comenta a proposta de pesquisa desses compositores: Em estúdio eletrônico poder-se-ia compor o som, determinando com uma precisão absoluta sua constituição harmônica por meio da sobreposição de seus componentes senoidais, ou seja, definindo tanto o número quanto a amplitude exata de seus parciais: trata-se aí do que poderíamos designar por: Klangfarbenkomposition (composição do timbre). (MENEZES, 1996, p.34). Este grupo de compositores estava interessado na racionalização e no controle completo de todo o processo de composição, tanto da organização em nível macro da obra, quanto da organização em nível micro do som a partir de princípios seriais – o serialismo começa com o dodecafonismo de Schoenberg e se amplia com a ideia de que todos os parâmetros utilizados na composição musical poderiam ser serializados e resultar em uma coerência completa da obra. Stockhausen afirma: [...] obtém-se então um processo sonoro que pode tanto já ser conhecido como nunca ter sido ouvido antes. [...] É o princípio básico que constitui aí o dado mais significativo: o fato de ser aberta ao compositor a possibilidade de trazer princípios estruturais para as relações dos elementos mais simples de todo o universo sonoro, a saber, os sons senoidais, para através disso poder se compor diferenças sonoras dentro de uma obra – ou seja, formas variadas de combinações simultâneas de sons senoidais – enquanto variações sonoras seriais, relacionando-as nos processos de ordenação integral (STOCKHAUSEN, 1996, p. 63). A peça Studie I (1953) de Stockhausen é uma das primeiras a ser produzidas seguindo-se este método. Outras composições a seguiram e a pesquisa com a produção 103 eletrônica se espalhou por todo o globo: estúdios no Japão, na Itália, na América do Norte, entre outros, surgiram e uma diversidade de propostas de criação de sons eletrônicos começa a aparecer. Os sons novos, integrados em peças cujo pensamento também era novo, solicitavam novas sensibilidades e constituíam novos territórios de escuta. Os próprios ouvintes se transformavam juntamente com a transformação dos sons. Porém, após alguns anos, os músicos perceberam que a serialização do timbre – a utilização de métodos seriais para compor as parciais do som – não produzia os resultados esperados. O timbre não era unicamente definido por sua composição de harmônicos, havia outros elementos importantes nesta percepção. Além disso, em muitos casos a sobreposição de senoidais não era percebida como um timbre integrado, mas como um acorde – uma sobreposição de sons independentes: Apesar de ser um produto de um cálculo extremamente incisivo e totalizante, a resultante sonora das sobreposições senoidais apresentava-se como essencialmente casual. A esse respeito, os eventos estatísticos rebelavam-se contra toda e qualquer predeterminação pela sua própria natureza incontrolável (MENEZES, 1996, p. 38). Como resultado, outras formas de composição e outras formas de síntese começam a ser também exploradas. A síntese subtrativa aborda a composição dos sons de outra maneira: em vez de partir dos elementos mais simples – sons senoidais – para a composição de sons compostos ou complexos, parte-se de sons complexos73 ou ruídos e efetua-se sua modificação através de filtros de frequências. Em outros casos, a síntese utiliza uma diversidade maior de ondas como elemento base – ondas triangulares, quadradas, serrilhadas, bem como senoidais, mesclando processos – utilizando-se filtros, moduladores, câmaras de eco, reverberação, etc. Como isso, a complexidade e diversidade sonora produzida se ampliam significativamente. Além disso, compositores da música eletrônica começam a utilizar outros materiais em suas composições, como a voz modificada eletronicamente, e pesquisar outros aspectos 73 O som complexo é formado por uma mistura de sons com relação inarmônica entre si, o que faz com que eja percebido como uma massa sonora em que ainda é perceptível o destaque de certa frequência, dando-lhe certa localização no campo das alturas. O ruído é um som com grande saturação de componentes senoidais em uma banda de frequência, diferindo do som complexo, cuja saturação émenor. Entre um e outro, temos uma gradação que vai do não-saturado ao saturado e chega ao limite quando tivermos saturação em todas as bandas de frequência audiveis pelo homem – o ruído branco (MENEZES, 2004). 104 do som que poderiam ser explorados em suas composições. Um exemplo seria a espacialização do som como parte do processo compositivo. A distribuição espacial do som musical já possuía uma história, desde a própria organização dos instrumentos da orquestra e, posteriormente, em composições com as de Anton Webern, onde a espacialidade ganhava uma dimensão maior dentro da própria linguagem do compositor. No entanto, a eletrônica busca outras relações entre a estruturação das composições, as escolhas timbrísticas e a espacialização dinâmica do som. Poderíamos ver o aparecimento do surround no cinema como legado destas pesquisas, embora a finalidade não seja a mesma, uma vez que o surround busca a imersão do espectador, tentando fazer da sala negra do cinema um espaço ainda mais realista (em alguns casos, mais dramático). A indústria passa a produzir uma diversidade de instrumentos - sintetizadores portáteis - que produziam novos sons, já com uma gama de timbres previamente elaborados pelos seus criadores para o uso por parte de quem os adquirisse, mas permitindo, ao mesmo tempo, a criação de novos timbres pelo usuário. A síntese sonora passa a estar ao alcance das mãos de qualquer um. Os territórios de escuta que se desenham a partir do uso dos instrumentos eletrônicos e sua inserção em composições tanto populares quanto eruditas solicitam a abertura o ouvinte à novidade timbrística dos sons sintetizados, à possibilidade de ouvir sons nunca antes escutados fluindo tanto da residência de seu vizinho quanto das salas de concerto. Além disso, as composições eletrônicas dos músicos dos estúdios da rádio Nordwestdeutscher Rundfunk - NWDR (como a de muitos compositores de música eletrônica contemporânea) eram finalizadas em um meio de registro do som – fita magnética naquele caso e hoje arquivos digitais – e não possuíam execução que não fosse através deste meio. Assim, a sala de concerto se apresentava, por vezes, vazia de executantes. Nada havia para ser visto no palco. Restariam apenas ouvidos atentos às articulações entre os próprios sons sintetizados e manipulados eletronicamente. A música eletrônica deixa os estúdios experimentais e alcança definitivamente a música popular. Inúmeros sintetizadores são produzidos em série e suas características sonoras e possibilidades de uso demarcam territórios e estilos – diversos grupos usam os timbres fornecidos por certos instrumentos industrializados, dialogando entre si e criando 105 nichos pela própria escolha dos sons a serem utilizados em suas músicas. Como exemplo temos o denominado synth-pop dos anos 1980 ou a dance music dos anos 1990, entre outros. Posteriormente, a criação sonora passa a ser possível em software, com o uso de sintetizadores virtuais, ampliando ainda mais o alcance da música eletrônica: qualquer computador poderia sintetizar novos sons e permitir criações únicas de timbres dentro dos próprios quartos dos bedroom musicians – nome dado aos músicos com estúdios caseiros e computadores como instrumentos musicais. A síntese sonora aparece no cinema cedo, inicialmente por outro caminho: a possibilidade de inscrição na faixa óptico-sonora da própria película. Dissemos óptico- sonora, porque a forma do registro do som na película utilizada naquele momento para estas explorações e para a sincronização entre som e imagem era óptico. A captação do som pelos microfones produzia variações de corrente elétrica que eram transformadas em variações de luz, as quais ficavam registradas na película. A partir desta tecnologia, tornou- se possível realizar marcas visuais na faixa do som como substituto às marcas geradas pelos sons registrados. Tais marcas produziriam os sons desejados e bastava ter-se a compreensão de como as variações das marcas resultavam em variações nos sons para que se compusesse a trilha musical diretamente na película. Desta forma, alguns cineastas, como os irmãos Whitney, Norman McLaren, entre outros, exploraram a criação sonora através da inscrição gráfica na película cinematográfica. Os Five Film Exercises dos irmãos Whitney, criados ao longo da década de 1940, são experimentos que exploram “[...] composições gráficas abstratas com uma estrutura temporal semelhante à musical” 74(WHITNEY apud BIRTWISTLE, 2010, p. 141). Cada experimento articula as sonoridades sintetizadas na película pelos cineastas às formas simples geométricas e suas variações de cor, tamanho, movimento, etc. que compõem as imagens dos filmes de animação. De forma semelhante, também explorando a grafia do som na película, Norman McLaren criou obras como Synchromy (1971), em que formas geométricas aparecem, pulsam, se modificam, se sobrepõem, etc. acompanhando a trilha 74 No original: “[...] abstract graphic compositions with a time structure as in music”. 106 musical sintetizada por ele através da grafia na faixa sonora da película. Não cabe aqui uma discussão sobre a tecnologia envolvida nestas realizações, pois cada uma exige máquinas capazes de realizar marcas gráficas com dimensões e formas que resultem no som desejado (no caso de McLaren, sons tonais que dançam em escalas, melodias e acordes). Para tanto, pode-se consultar o capítulo 4 do livro de Birtwistle, Cinesonica (2010), onde há uma breve descrição do equipamento utilizado pelos Whitney Brothers para a produção de suas trilhas musicais dos Five Film Exercises. Mais tarde, Bebe e Louis Barron, donos de um dos primeiros estúdios de música eletroacústica nos Estados Unidos, não só atuaram como parceiros de diversos compositores, como John Cage, Earle Brown, Morton Feldman, entre outros, mas compuseram uma das primeiras trilhas musicais completamente eletrônicas para o cinema industrial: o filme Planeta Proibido (Forbbiden Planet, 1956), de Fred M. Wilcox, produzido pela MGM e considerado um dos grandes filmes de ficção científica dos anos 1950. O filme Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock é outro exemplo de filme produzido na grande indústria Hollywoodiana que utiliza a síntese em toda a sua trilha sonora. A música do filme foi produzida por Oskar Sala utilizando um instrumento denominado Mixturtrautonium e fita magnética. E mesmo os sons dos pássaros foram criados utilizando-se o instrumento musical (HOLMES, 2008). Posteriormente, inúmeros filmes dos gêneros de ficção científica e terror exploraram as possibilidades das sonoridades novas oriundas dos sintetizadores não só em suas trilhas musicais, mas na paleta de sons de seus efeitos sonoros. Vale ressaltar que a utilização dos sons sintetizados em filmes de ficção científica e filmes de terror no cinema parece indicar uma relação enviesada entre o que a síntese sonora pode oferecer e seu uso final – os sons novos, criados pela síntese estariam a serviço do transcendente ou do distante, ambos com tonalidades igualmente ameaçadoras. Birtwistle (2010) observa como os sons sintetizados da eletrônica foram utilizados nestes gêneros e em filmes em que a quebra de um estado de equilíbrio interior da própria psique era retratada (nas imagens e sons), como no caso de Quando Fala o Coração (1945) de Hitchcock e mesmo no Deserto Rosso: dilema de uma vida (Il Deserto Rosso, 1964), de Antonioni. Uma observação: no caso de Quando Fala o Coração, a trilha é composta para orquestra, como tradicionalmente era feita no período em Hollywood, mas em alguns 107 trechos, conectados a situações vividas pela personagem central e sua perda de memória e fragilidade mental, o Theremin se manifesta como instrumento central – trazendo o estranhamento em sua sonoridade, o qual se soma ao aspecto dramático da composição nestes trechos. Em outras passagens, o Theremin é logo substituído pelos instrumentos de corda para reforçar a emotividade presente na cena. No caso de Deserto Rosso: dilema de uma vida, somos lançados, logo nos créditos iniciais do filme, em um território de escuta composto por ruídos eletrônicos, sem altura definida ou movimento melódico. Em seguida, entra a melodia cantada pela voz feminina solo, acompanhada pelos ruídos e imagens das fábricas e recortes de seus componentes – tubos, encaixes, etc. Por fim, temos somente a voz até que ela é cortada pela imagem do fogo sendo expelido de uma chaminé em uma planta industrial e os ruídos cíclicos e intensos das máquinas. Os Barron também foram responsáveis pela música utilizada em Bridges Go Round (1958) de Shirley Clarke, filme montado a partir de trechos de filmes encontrados e modificados pela cineasta. O filme possui duas versões de trilha musical, a dos Barron e a jazzística de Teo Macero. A diretora, tendo em vista problemas com os direitos da trilha eletrônica, optou por encomendar a música de Teo Macero. No entanto, a veiculação do filme muitas vezes era dupla: ora com uma trilha, ora com outra. As relações que se constituem entre imagem e som em cada uma das versões, obviamente, são completamente diferentes – cada uma abre a possibilidade de um território de escuta que solicita distintas formas de acesso. O jazz, embora sincopado, aberto pela improvisação, ainda se filia a regras do sistema tonal e transita dentro de certos limites que aquele impõe. A música dos Barron não é tonal e não traz melodias no sentido clássico, nem tão pouco movimentos harmônicos, mas explora timbres, movimentos de adensamento e rarefação, ruídos e massas complexas que se desenvolvem de maneiras bastante distantes da música tonal, mesmo do jazz. 108 6 Territórios de escuta + imagens em movimento Neste capítulo abordaremos uma pequena seleção de filmes para tecer com eles territórios de escuta que articulam som e imagem em movimento. As obras escolhidas o foram por sua capacidade de trazer exemplos de diálogo entre as influências do pensamento sonoro e musical e a criação de territórios de escuta de resistência, que solicitam teceduras de redes múltiplas a partir de sua escuta – territórios de escuta que provocam microprocessos revolucionários. Os filmes escolhidos foram: Ceci est un Message Enregistré (1973) Jean-Thomas Bédard; Ordinary Matter (1972), de Hollis Frampton; In Order not to be Here (2002) Deborah Stratman; 2ou 3 Choses que Je Sais D’Elle (1967), de Jean-Luc Godard; Ruhr (2009) de James Benning e Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant. O contato com cada uma destas obras faz emergir um território de escuta particular, onde modos de escuta, universos de sentido, saberes sobre o mundo, territórios físicos e políticos se conectam. Como dissemos, os territórios de escuta se constituem a partir de um encontro entre obra e ouvinte/espectador – onde a memória, a sensorialidade e a história pessoal entram como parte de suas coordenadas. Desta forma, em nenhum momento devemos compreender os percursos que iremos propor como distantes daquele que os percorre/constitui. Ao contrário, há uma pessoalidade intrínseca a esses percursos, até mesmo uma afetividade, embora o caminho seja compartilhável. 109 6.1 Ceci est un Message Enregistré (1973) Jean-Thomas Bédard Em 2013, logo que entrei no mestrado, fiz um concurso para professor substituto para ministrar duas disciplinas sobre som no cinema no curso de graduação em Cinema de Animação e Artes Digitais. Ao me preparar para a prova, iniciei uma pesquisa sobre animações que me levou a assistir diversos filmes curtos que nunca havia visto. A pesquisa não tinha um foco geográfico e abarcava o cinema de animação produzido em diversos países e em diferentes momentos da história. Procurava animações cuja proposta de articulação entre som e imagem pudesse dialogar com minha pesquisa sobre o tema. Em meio a esta pesquisa, me deparei com esta animação dos anos 1970 e fiquei muito impressionado. O som não só era extremamente potente, mas indispensável para tornar o filme o que ele é. Assisti e o escutei em meu computador, com meus fones de ouvido, Behringer HPS 3000 de que gosto muito (embora não sejam ideais). Os fones garantiram certo isolamento acústico e o silêncio da noite ajudou o mergulho no filme. A animação Ceci est un Message Enregistré (Esta é uma mensagem gravada) de Jean- Thomas Bédard (1973), se compõe de colagens feitas a partir de recortes de inúmeros anúncios publicitários e imagens diversas da mídia impressa. O curta-metragem aborda a história da humanidade a partir do nascimento e crescimento do homem e da mulher (uma infinidade de imagens compõe cada gênero)75, seu encontro, a construção de uma relação inserida nos valores e modos de vida centrados na propriedade de objetos, até o desembocar na competição acirrada e nos conflitos inflamados que conduzem à guerra e ao extermínio da espécie - a crítica à construção de modos de vida a partir do imaginário publicitário e a marca capitalista da competição, culmina com a destruição da humanidade. 75 Ao mesmo tempo, não podemos deixar de pensar na origem dos gêneros em Adão e Eva, mito tao difundido em nossa cultura ocidental cristã. 110 Jean-Thomas Bédard é um cineasta canadense que entrou para o National Film Board do Canadá em 1973 e Ceci est um Message Enregistré é seu segundo filme de animação. O filme recebeu diversos prêmios em sua circulação, ainda nos anos 1970. O diretor realizou cerca de 10 filmes até o momento, dos quais a maior parte é composta por médias ou curtas-metragens - mas apenas três são animações, pelo que pudemos verificar. No entanto, Ceci est um Message Enregistré é uma animação inovadora para sua época e ainda hoje distante dos formatos padronizados da indústria cinematográfica contemporânea. A banda sonora deste curta-metragem, também fora dos padrões, é responsável por sua potência tanto quanto as imagens que o compõe. A banda sonora do filme ficou a cargo de Alain Clavier, compositor integrante (na época) do Atelier de Concepção Sonora do National Film Board canadense. A proposta do atelier, naquele momento (nos anos 1970), apontava para uma nova forma de pensar o som no cinema, partindo das concepções musicais da música concreta de Pierre Schaeffer. Um dos principais expoentes do NFB, Norman McLaren, já produzira experimentos imagético- sonoros em animações que realizara nos anos 1950 e 1960. Neste caso, há uma relação direta entre o pensamento musical e sua aplicação na construção do território de escuta do filme. A banda sonora de Ceci est un Message Enregistré é uma composição eletroacústica complexa, que mescla os mais diversos sons, bem como múltiplos tipos de tratamento para sua transformação em novos elementos: ruídos, tons eletrônicos, vozes, etc.; acrescidos de filtros, reverberação, alterações de velocidade, etc. Percebemos, inicialmente, o desenho de uma relação entre materiais utilizados nas imagens e na banda sonora: Clavier seleciona trechos de gravações que parecem originar-se em comerciais radiofônicos ou televisivos, os quais modifica radicalmente através de filtros. Esta escolha de material se alinha à escolha das imagens, partindo de uma mesma fonte, ponto de forte crítica do filme ao que construímos como imagem visual e sonora de nossa cultura. O próprio processo de colagem das múltiplas vozes de diferentes origens expressa uma relação direta com a montagem utilizada nas imagens do filme – a colagem de uma miríade de recortes de fontes externas. Desta forma, a proposta inicial é de diálogo material e formal, independente da conexão ponto a ponto – ou seja, antes de pensarmos como as 111 imagens entram em relação com os sons que as acompanham durante sua aparição na película, já temos uma articulação entre ambos os campos – visual e sonoro - que define esta relação numa perspectiva mais ampla. O território de escuta que começa a emergir em nossa relação com o filme, traça coordenadas que perpassam a fonte de seu material constituinte e a inserção deste material em nossa cultura. Os créditos iniciais são acompanhados por ruídos graves, numa ambiência reverberante, até aparecer a imagem de um bebê, de costas e de cabeça para baixo, acompanhada pelo letreiro que diz: Esta é uma mensagem gravada. Curtos ruídos eletrônicos parecem reproduzir o que seriam os ruídos de digitação em um computador ainda desconhecido – os primeiros computadores pessoais aparecem em 1975 – escrevendo a mensagem que lemos. Outros ruídos vão sendo acrescidos aos iniciais, ocupando campos de frequência mais agudos, e um movimento da câmera mostra uma mão que segura a perna do bebê – imagem tradicional e publicitária do nascimento: o médico segura as pernas do bebê após retirá-lo do ventre da mãe. A mão “se abre”76 e o bebê está em queda! A banda sonora é tomada por um ruído intenso, semelhante ao ruído branco, e um glissando lento que vai das frequências mais graves para as mais agudas, enquanto vemos uma mulher caindo e depois um astronauta de costas girando em queda rumo ao planeta Terra. À medida que se aproxima do solo, as imagens passam a ser de cidades, e a banda sonora recebe o acréscimo de sons distorcidos que parecem ser, inicialmente, de transmissões radiofônicas. Posteriormente, as imagens de multidões vistas de cima, nos fazem perceber que os sons parecem ser de manifestações públicas. A massa sonora formada pelos ruídos diversos sobrepostos vai perdendo velocidade e é substituída pelos sons de um batimento cardíaco, enquanto vemos imagens de bebês se alternarem rapidamente na tela. O bebê começa a “crescer” e ouvimos vozes alteradas que parecem emitir palavras de ordem, pelo seu tom. A cultura vai aos poucos desenhando um percurso através da “formação” daquele pequeno ser, e a sonoridade das vozes e palavras de ordem são a marca 76 Não há imagens em movimento no sentido tradicional neste filme, apenas recortes de fotografias publicitárias e da mídia de massa – jornais e revistas, cuja montagem em sequência constitui o movimento das imagens neste filme. 112 de suas primeiras limitações e exigências de sujeição. Futuramente escutaremos nossas “vozes interiores” a separar o certo do errado e o permitido do interditado. O contato com os objetos começa a se ampliar nas imagens, contato com a cultura capitalista do comprar e do ter – as vozes se ampliam e se diversificam, tocando agora o campo do desejo, mais do que o da moral. Ou, poderíamos dizer, constituindo o campo da moral mercantil, onde o valor está na mercadoria e em sua posse. As vozes vão se transformando até estarem mescladas a sons complexos que ocupam diversas faixas de frequência. Subitamente são cortadas e ficamos com um som eletrônico ritmado e rápido, que nos remete aos sons de relógios e a passagem do tempo – a imagem de uma infinidade de relógios reforça esta ideia. Em um salto temporal, vemos adultos envolvidos em diversas ações cotidianas, mas através dos olhos publicitários – banho, alimentação, diversão, etc. Cada uma com uma marca – brand – associada. As vozes retornam intensas, mais rápidas e vão se misturando cada vez mais entre si e a ruídos diversos, agudos, graves, percussivos, cíclicos, em um emaranhado que parece apontar para o emaranhado de desejos que o mundo produz em alta velocidade para o homem. A avassaladora pressão da cultura se faz sentir pela banda sonora de Clavier. Até que vemos imagens de homens tensos, incomodados, aturdidos. A banda sonora se esvazia, mantendo apenas ruídos esporádicos. Vemos imagens de mulheres de tempos remotos se alternarem na tela. Ao fundo nuvens azuladas e, depois, o sol, o mar e gaivotas, tudo em tons alaranjados fortes. Ela (s) caminha (m) para a direita, atravessando décadas, até chegarem à época do filme (década de 1970) e um ruído semelhante a um prato metálico (embora pareça sintetizado ou alterado eletronicamente) ressoar juntamente com a imagem do sol ocupando toda a tela. Passamos a acompanhar a trajetória feminina e as inúmeras reduções publicitárias atreladas às ditaduras estéticas – maquiagem, esmalte, batom, bobs, cuidados com a pele, com os cabelos, roupas, etc. As vozes, agora femininas, são alteradas intensamente pela manipulação eletrônica. Clavier, ao mesmo tempo em que sublinha o feminino através do que parecem ser as vozes “poderosas” da cultura, compõem movimentos e passagens estéticas entre os trechos – as vozes vão recebendo tratamentos sonoro-musicais que se alternam em fusões cuidadosas, acompanhadas por sons eletrônicos que estabelecem 113 passagens e fluxos sonoros entre os diversos “estilos” vocais que ouvimos. Há uma composição musical que se desenha nos ruídos e no tratamento dado às vozes que ultrapassa a mimese77 e caminha paralela à narrativa do filme. Clavier altera as vozes em alguns momentos de modo a dar-lhes um ritmo que se conecta ao ritmo da edição imagética, mas estabelece outros fluxos através da variação dinâmica ou da construção de glissandos mesclados a alterações concomitantes de suas características timbrísticas. As pulsações nos remetem ao fluxo das imagens, mas ao mesmo tempo constroem outros movimentos rítmicos, distantes dos movimentos imagéticos, que expandem o que vemos e o que ouvimos. Estes fluxos nos conduzem a novas sensibilidades na articulação entre som e imagem, tirando-nos da perspectiva rígida da sincronia ou da pontuação para fluxos paralelos entre os dois elementos/linguagens que ora se aproximam e ora se afastam. A sequência feminina culmina com o gradativo abandono dos objetos de desejo da cultura e seu desnudamento e mergulho no mar/piscina/etc. Ao mesmo tempo, o desnudamento feminino, é também ele objeto da condução publicitária dos afetos – foco do desejo masculino. O corte nos mostra um homem deitado na praia, em um anúncio de um produto da marca Johnson’s, olhando para a câmera, tudo em tons alaranjados fortes. Inicia-se uma sequência de “olhares” e, ao surgir a imagem de uma mulher intercalada, estabelece-se o nexo sugerido – o homem olha a mulher, seu objeto de desejo. A fotografa, exalta sua imagem – dentro dos padrões pré-definidos, é claro. Alternam-se imagens de fotógrafos e mulheres em inúmeras poses, com a sobreposição de fogos de artifício. A seguir, homens exibem seus corpos, sua força muscular, suas posses e sua masculinidade capitalista – principalmente seus veículos automotores. A trilha ganha ainda mais complexidade, mesclando vozes femininas e masculinas a ruídos intensos enquanto retrata as “qualidades” masculinas. 77 A mimese a que nos referimos aqui é a mimese das vozes em relação às imagens. 114 Em um momento, um novo glissando semelhante ao do início faz a passagem para o som cíclico e ritmado que nos remete ao tempo dos relógios. Vemos homens “atletas”, correndo; logo, super-heróis em movimento. A seguir, mulheres em biquínis saem da água, deixando-nos ver seus corpos. Os homens correm ainda mais, se transformam mais e mais nos estereótipos da cultura da publicidade e do capital. A banda sonora entra em um campo mais agudo, mantendo seu aspecto rítmico e seu andamento acelerado, até que ambos se encontram e a música ganha novas feições: vozes se repetem em curtos blocos, ouvimos melodias alteradas eletronicamente, os ruídos se alternam entre cíclicos e ritmados, e contínuos. Longos glissandos descendentes culminam em ruídos metálicos sustentados, enquanto vemos os corpos se desnudarem. O encontro sexual é marcado pela intensidade de ruídos percussivos até que uma massa sonora em diversos campos de frequência se alia a imagem giratória, primeiro dos corpos e, depois, de inúmeros símbolos da cultura ocidental. Ao término da sequência, somos deixados no vazio – a tela negra. Começam a surgir novos sons eletrônicos esporádicos acompanhados por uma textura sonora, em sutil variação. As imagens, primeiramente de homens mais velhos, vêm do fundo da tela e se desvanecem. São acompanhadas por palavras da mídia impressa, com estilos diferentes, que reforçam a perspectiva das forças que ditam nosso modo de vida. Palavras de ordem que nos atravessam e direcionam nossas escolhas. Há um adensamento sonoro e imagético – as camadas dos ruídos se somam e as imagens se tornam mais rápidas. Entram imagens de ódio, horror, enfrentamento, militarização. Inúmeros itens da vida consumista pululam pela tela. A eles se mesclam as transformações constantes dos rostos e das bocas que parecem expressar insatisfação e ira. Tudo se torna mais tenso e as imagens entram em um frenesi que inclui imagens de conflitos armados. A trilha não segue o mesmo ritmo das imagens nem as traduz em sons. Cria seu próprio universo de adensamento que mescla eletrônica, ruídos e vozes alteradas (material básico de toda a peça musical do filme). Este movimento de adensamento culmina em uma pausa. As imagens surgem lentas, um leve zoom; imagens de campos de concentração que já vimos inúmeras vezes, mas que nos chocam e aterrorizam todas as vezes que as vemos. 115 Os sons são graves, densos, com espaços vazios entre eles, silêncios que nos aturdem ainda mais. As imagens da morte e da dor ilimitadas frente às quais somente o silêncio tem lugar. O filme termina com imagens em movimento de gaivotas voando no céu e sobre o mar – seus piados estridentes e estrondos eletrônicos esporádicos compõem a banda sonora que as acompanha em seu voo. Há uma composição entre ruídos e vozes que se alternam como condutores do andamento sonoro e constituem momentos de velocidade e de lentidão que dialogam com o que vemos, mas não se subordinam ao que está posto nas imagens. A banda sonora constitui todo um campo de experiência estética que se compõem com as imagens, mas se distancia das formas tradicionais de estabelecimento deste diálogo: não há música emotiva, nem tampouco um estilo de composição já experimentado inúmeras vezes pelo cinema, com a condução melódica, os encadeamentos de acordes, os leitmotivs, etc. O que não exclui adensamentos, tensões, relaxamentos e movimento. Os ruídos não são realistas, mas expressivos – apropriados pelo compositor para desenhar seu próprio território de escuta. Articulam-se ao todo da banda sonora ora como pontuações da imagem (não há motivo para não usar formas tradicionais, mas motivo para não ser tomado por elas), ora como elementos que se relacionam a outros, musicalmente. As vozes não são o centro de nossa atenção e tampouco estão ali para servirem à compreensão do discurso, mas se tornam um elemento sonoro como os demais: “em uma abordagem eletroacústica da banda sonora, todos os sons – tanto as palavras quanto os ruídos realistas – são considerados como material passível de exploração musical” (DAOUST apud LA ROCHELLE, 1992, p. 30, tradução nossa). Desta forma, o território de escuta desenhado pelo filme solicita uma escuta que possa tanto perceber as relações metalinguísticas, se assim podemos dizer, entre forma e matéria de um e outro elemento/linguagem do filme (sons e imagens), mas também que possa apreciar esteticamente a composição de sons que se desenvolve ao longo da película: o movimento próprio dos sons e suas articulações temporais, morfológicas, e timbrísticas, tanto criando momentos específicos de síncrese, quanto continuidade e ruptura na própria condução da banda sonora, e perfazendo uma composição musical eletroacústica que dialoga com as questões políticas que o filme apresenta de uma maneira peculiar. 116 6.2 Ordinary Matter (1972), de Hollis Frampton Inicialmente, minha pesquisa de doutorado pretendia centrar-se no cinema documentário, seguindo o caminho que havia escolhido no mestrado. No entanto, algum tempo após o início, me pareceu que seria interessante abordar outros cinemas, tão potentes e políticos quanto o próprio documentário. Li livros sobre o que alguns autores identificam como cinema experimental e comecei a procurar cineastas e filmes online. Em um site que passei a adorar, encontrei muitos filmes disponíveis para download e um deles foi Ordinary Matter. Assim como diversos outros, o assisti/escutei em meu computador, com fones de ouvido. Para quem pesquisa o cinema não há como assistir um filme sem levar consigo tudo o que já pesquisou, leu e escreveu sobre o tema. E assim, assisti/escutei uma, duas, três e mais vezes o filme de Frampton, percebendo-me ser atravessado por ele e surpreendido pela ruptura do que me era já habitual. Matéria Ordinária. Matéria é aquilo de que são feitas as coisas, sejam elas seres ou objetos; sejam elas naturais ou produzidas; matéria é substância física, estofo das formas que habitam o mundo; substância primordial que recebe seu desenho/desígnio no ato de tornar-se forma; matéria é algo palpável, mesmo que invisível a olho nu, mesmo que inaudível aos nossos ouvidos; suporte (perene) da permanência (transitória) do compartilhado; movimento contínuo entre seu esfacelar-se e seu rearranjar-se em novas composições. O ordinário é aquilo que está sempre ali, ao lado, despercebido e desapercebido; o comum, o habitual, o vulgar; aquilo que não necessita ser notado, que não solicita atenção ou acolhimento. A matéria ordinária é tanto a matéria fundamental, a matéria originária, quanto à matéria comum, a matéria vulgar; tanto a substância essencial das coisas, quanto sua superfície mais desimportante. 117 Ao mesmo tempo, há a outra matéria que faz parte da tecedura do mundo: a linguagem. A linguagem é o conhecimento do mundo; o pensamento com e sobre as coisas; o compartilhamento e o solipsismo; o atravessamento e a mediação. A linguagem é a morada do homem78 tanto quanto o limite de seu mundo79. Ela mesma possui sua matéria ordinária, seus subconjuntos, modos de articulação e normas de funcionamento que delimitam seu alcance e suas possíveis manifestações. A matéria ordinária da linguagem está sempre ali, ao lado, despercebida e desapercebida. Ordinary Matter é um filme de Hollis Frampton realizado em 1972, quinto volume da série Hapax Legomena80 (composta por sete filmes). Ao realizar o filme, o diretor traz ainda outra matéria, a matéria cinematográfica: seus elementos constituintes (sonoros e imagéticos); suas formas ou modos de construção; seu sentido (ou sentidos); suas relações com o mundo, com as pessoas e com a própria linguagem. Ordinary Matter é um filme de 36 minutos de duração, onde vemos imagens de diversos locais: matas, campos, silos, riachos, poças d’água, a ponte do Brooklin em Nova Iorque, o claustro da catedral de Salisbury, o monumento neolítico de Stonehenge e plantações de milho. Ao longo de 22 dos 36 minutos do filme, escutamos a voz de Frampton recitando o silabário do sistema de transcrição de Wade-Giles para a língua chinesa. Frampton sintetiza o filme desta maneira em sua sinopse: A visão de uma jornada na qual o olho da mente mergulha de cabeça através do claustro da catedral de Salisbury (um monumento à clausura), a ponte do Brooklin (um monumento à conexão), Stonehenge (um monumento à interação entre a consciência e a luz)... Visitando no caminho campos diversos, silos, fontes de água onde agora resido; e terminando nos campos de milho que recordo de minha infância 81 (FRAMPTON, 1972, tradução nossa). 78 “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem” (HEIDEGGER, 1973, p. 347). 79 “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” (WITTGENSTEIN, 2001, p. 245, grifos do autor). 80 Expressão de origem grega, ἅπαξ λεγόμενον – apax legomenon, que significa “termo dos quais apenas um exemplo de uso é registrado” (dicionário online Oxford). Legomena é o plural de Legomenon. 81 No original: A vision of a journey, during which the eye of the mind drives headlong through Salisbury Cloister (a monument to enclosure), Brooklyn Bridge (a monument to connection), Stonehenge (a monument to the intercourse between consciousness and LIGHT)...visiting along the way diverse meadows, barns, waters 118 Ordinary Matter não é um filme narrativo. Não se trata de construir uma história que solicita a credibilidade e a identificação do espectador. Não se trata de ficcionar ou retratar o real. O filme é uma proposição, talvez não no sentido estritamente lógico do termo, mas uma proposição conceitual de construção de uma obra multisensorial que solicita diversas formas de apropriação e, com isso, múltiplas leituras. Trata-se de uma obra audiovisual que provoca o pensamento articulando camadas de signos para compor uma proposta ímpar. Nos primeiros minutos do filme somos tomados pelo silêncio que encapsula as imagens que vemos: um aglomerado de pedaços de madeira em uma imagem estática mostrada por cinco segundos; a tela escura como ruptura da possível sequência por um segundo; a mesma imagem dos pedaços de madeira invertida em seu eixo horizontal por mais cinco segundos; a tela escura, mais uma vez; os pedaços de madeira em sua posição original. Seguem-se imagens dos pedaços de madeira filmados em movimento rápido e oscilante em um travelling que desliza por cima dos objetos por dez segundos (o movimento não está no objeto, mas na câmara); a inversão da imagem em seu eixo vertical e em seu sentido temporal; a repetição da imagem em seu eixo e percurso temporal inicial. Após um rápido tilt para cima, acompanhamos a câmara em seu trajeto pelos campos, em ritmo acelerado, atravessando folhagens, beirando descampados, arremessando-se para a direita, para a esquerda, para frente, para trás, em uma montagem frenética de inversões horizontais, verticais e de sentido temporal que vão apresentando a matéria ordinária do mundo, em formas que parecem querer revelar algo que não percebemos inicialmente: uma massa quase amorfa, permeando os espaços e unindo-os em um todo ao mesmo tempo fragmentário e uno. Uma pausa se dá na beira de um riacho. Vemos a água tremular com o vento, refletindo sutilmente a luz do sol. O movimento se desloca da câmera para o mundo. Hollis Frampton começa a recitar o silabário de Wade-Giles. Sua voz soa grave, acompanhada por forte reverberação, em ritmo lento e pausado. Parece falar de fora do mundo, transcendendo imagem, realidade, percepção. Ficamos observando, estáticos, o sutil movimento do mundo, quase imperceptível, por alguns segundos. A câmera faz uma lenta, where I now live; and ending in the remembered cornfields of my childhood. The soundtrack annexes, as mantram, the Wade-Giles syllabary of the Chinese language. 119 mas curta, panorâmica para a direita, e segue-se uma pausa abrupta; um tilt lento para baixo e segue-se outra pausa abrupta. Corte para outra imagem de água tremulante, a câmera estática por alguns segundos. Uma panorâmica lenta para a esquerda; uma pausa abrupta; um lento e curto tilt para baixo; uma pausa abrupta. Corta para a sequência anterior, que se repete na íntegra. A câmera retoma seu movimento oscilante e nossa viagem pela mata se reinicia. Por volta dos 8 minutos, as imagens mudam sem aviso para o solo nu. Diferentes texturas se alternam: terra, asfalto, pedras, cascalhos, sulcos no solo e, de alguma, forma, a natureza socializada através de rastros da presença humana, embora ainda mínimos. Mais a frente efetua-se a transição efetiva da natureza para a cultura, através da aplicação dos procedimentos de apresentação e variação das imagens (inversões, rotações, etc.) em um frame dividido, meio a meio, entre solo e negrume. Entramos no claustro da Catedral de Salisbury. Compreendemos que há um procedimento padrão (com suas próprias possibilidades de variação) para a construção das sequências de imagens, seguindo os princípios apresentados pelo diretor logo no início do filme: a apresentação de planos, cenas ou sequências e sua variação por retrogradação, inversão, rotação, etc. Poderíamos fazer uma ligação entre a ordenação das imagens, sua estrutura de montagem e, ao menos parcialmente, as práticas serialistas da música (as escolhas de apresentação do material em sua forma normal e suas inversões, retrogradações, etc. – ver Schoenberg, op. Cit.). Frampton expressa sua admiração pela música serial em entrevista a Deke Dusinberre e Ian Christie, curiosamente intitulada “Episódios de uma História Perdida do Serialismo Fílmico”: Tenho uma predileção pela obra de Schoenberg, Berg e Webern, a qual seus sucessores deram continuidade. Passamos a entender um compositor não-serial de forma diferente da que entendíamos. Gosto de coisas que são tensas como uma bolha de sabão, que dão conta de si mesmas de forma completa 82 (FRAMPTON, 2004, p. 113, tradução nossa). 82 No original: I have a predilection for that work of Schönberg, Berg and Webern, and that which their successors have continued. We understand a non-serial composer differently than we would have before. I like things that are as tense as a soap bubble, that account for themselves completely”. 120 Os irmãos Whitney, ao falarem da criação dos seus Five Film Exercises, afirmam uma relação direta entre movimentos das formas em suas animações e a técnica serial de Schoenberg: Nós criamos uma impressora óptica na qual o filme podia ser refotografado em uma película colorida com o uso de filtros, tanto na direção normal ou retrógrada, no sentido vertical original ou invertida, ou espelhada. Graficamente, ali estava um paralelo para as transposições, inversões e retrogradações da técnica dos doze sons 83 (WHITNEY apud BIRTWISTLE, 2010, p. 141, tradução nossa). Talvez possamos pensar que Frampton parte dos mesmos princípios e, de certa forma, se articula tanto ao serialismo musical quanto aos experimentos dos irmãos Whitney. Poderíamos ainda, observar outra forma de contato entre o pensamento musical e o trabalho do artista neste filme: assim como diversos compositores propõem relações entre conceitos de áreas diversas e as estruturas musicais que criam, Frampton organiza trechos e passagens através de procedimentos que mesclam a linguagem falada e a cinematográfica. A montagem se dá através de um deslizamento aparentemente sintagmático, com uma série de elementos diferentes em sequência – a própria característica ontológica da construção do movimento no cinema. Por outro lado, as sequências apresentam conexões associativas, que aproximam as imagens devido a sua materialidade, localidade, textura, etc. Frampton aproxima linguagem e imagem, montando seu filme a partir de sequências que exploram as duas esferas linguísticas identificadas por Saussure em sua obra principal, Curso de Linguística Geral (2006) – a sintagmática e a associativa. A esfera sintagmática “se compõe sempre de duas ou mais unidades consecutivas [...] [onde] um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos” (SAUSURRE, 2006, p. 142). Já na esfera associativa, “as palavras se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam relações muito diversas” (SAUSURRE, 2006, p. 143). Desta forma, “a relação sintagmática existe in praesentia; repousa em dois ou mais termos igualmente presentes numa série efetiva. Ao contrário, a relação associativa une termos in absentia numa série mnemônica” (SAUSURRE, 2006, p. 143, grifos do autor). Frampton de certa forma subverte a diferenciação temporal entre as esferas e explora a flexibilidade das 83 No original: “We devised an optical printer in which this film strip could be rephotographed onto colour film using colour filters, either in normal direction or retrogression, right side up or inverted, or mirrored. Graphically, here was a parallel to the transpositions and inversions and retrogressions of the twelve-tone technique”. 121 justaposições imagéticas para além das estruturas da língua/fala. As sequências sintagmáticas se aglutinam a partir de suas relações associativas, mas, ao mesmo tempo, criam relações tanto de semelhança quanto de diferença entre elas. Estas sequências vão e vem, com as alternâncias de sentido e posição acima citadas, até o aparecimento de uma variação temática marcada por rupturas técnicas específicas (enquadramento fixo; tilts, travellings, etc.). Após assistirmos às diversas variações do claustro da Catedral, um travelling para o centro do jardim nos transporta para o próximo tema: a ponte do Brooklin. Acompanhamos a caminhada acelerada da câmera (e, é claro, de quem a conduz) pela ponte, cruzando com pessoas a pé, de bicicleta, grupos, famílias. Até que, em um dado momento, vamos em direção a uma coluna de sustentação central da pista de pedestres em que estamos. A câmera “mergulha” na coluna e passamos a ver sua matéria ordinária: a textura do concreto, pedras sobrepostas, camadas de pedra e cimento, em uma sequência que aborda as possíveis variações do material de que se compõem as estruturas construídas pelo homem (semelhantes àquela). O tempo todo somos acompanhados pela enunciação pausada, densa, lenta e reverberante de Frampton lendo o silabário de Wade-Giles. As sequências da ponte e dos “mergulhos” se sucedem, até que entramos em uma passagem subterrânea e, com isso, no breu. Seguem-se imagens de fragmentos de janelas, aberturas que permitem a passagem de luz, desenhando formas geométricas contra o fundo negro em que estamos imersos. As inversões, retrogradações, mudanças de eixos de posição e tempo se alternam. A participação da voz de Frampton parece mudar, ganhando certa territorialização ao mesclar- se ao negrume e ao vazio que as imagens nos trazem. Parece não mais transcender o que vemos, mas imiscuir-se em algum recôndito daquele espaço, de onde enuncia enfaticamente uma mensagem (ela sim, transcendente) que revela uma profundidade (emanada da sonoridade de sua voz) cujo sentido nos escapa. Ficamos ali imersos pela aparente eternidade vendo fragmentos de luz que adentram o negrume através de formas geométricas, como vitrais de igrejas que habitam nossa memória cristã. Retomamos em seguida nosso trajeto pela ponte. O diretor, em uma curta sinopse do filme, fala da ponte do Brooklin como um “monumento à conexão”. Talvez possamos pensar na conexão entre 122 lugares, entre homens, entre homem e natureza, e entre homem e o transcendente, trazida tanto pelas imagens e quanto, com o perdão do trocadilho, pela conexão entre voz e imagem. Seguindo os mesmos procedimentos de construção de suas sequências de imagens, Frampton nos leva pela grama (em suas inúmeras formas), pelo monumento de Stonehenge e pelos campos de milho de sua infância. O filme termina abruptamente enquanto percorremos em velocidade os milharais, chocando-nos com as plantas e “sentindo” o sol por elas filtrado e refletido. A banda sonora deste filme de Frampton é composta pelos cerca de 20 minutos de sua leitura do silabário de Wade-Giles – parte do sistema de tradução gráfica e sonora dos ideogramas chineses para o aprendizado ocidental criado por Thomas F. Wade e revisado por Herbert A. Giles, ambos britânicos. O entrelaçamento entre som e imagem do filme, o território de escuta que propõe, foi pensado para articular diversas camadas de sentido, tanto por sua inserção em contextos de significação (linguísticos, históricos e estéticos) quanto pela forma de sua enunciação no filme. Cada uma das sílabas recitadas por Frampton soa como uma revelação, o desvelamento de uma verdade inaudita reservada àqueles capazes de decifrá-la. A voz enfática, mas distante, parece enunciar a própria profundidade desconhecida da linguagem. A textura da voz, marcada pelo aspecto metálico da reverberação acentuada que a acompanha, nos envolve em sua densidade. Seu ritmo pulsado, em andamento lento, se opõe à pressa das imagens. A linguagem tem seu ritmo próprio, diferente do ritmo das coisas. Talvez possamos pensar que se revela lenta em sua própria formação, em seu balbucio recorrente, incapaz de acompanhar o fluxo ininterrupto do mundo em seu contínuo transformar-se: “A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias” (LISPECTOR apud PINTO, 2005, p.21). A linguagem é constituída, esculpida, amalgamada. As coisas do mundo nascem e perecem em um movimento inexorável. A enunciação de Frampton não busca ancorar as imagens, extrair-lhes ou atribuir-lhes um sentido. A fala não se impõe sobre as imagens, mas flui em paralelo: cria pontos de contato, aproximações e afastamentos em acordo com as interações rítmicas e encontros que ambas realizam ao longo do filme. A voz Inicia-se junto 123 com a imagem da água, como se brotasse das profundezas do riacho ou corresse junto com suas águas, tremulando tanto quanto a superfície que vemos: uma língua aquosa que escorre por toda a superfície da imagem, penetra as frestas, umedece a concretude do visível. Desta forma, percebemos que para a proposta de Frampton, os aspectos estéticos da voz são tão importantes quanto seu conteúdo para construção de sentido. Além disso, concluímos pelas interações que ambas realizam, que não há hierarquia entre voz e imagem, mas diálogo. Não se sabe há quanto tempo os caracteres chineses existem. Sabe-se que a língua chinesa possui um sistema de escrita altamente desenvolvido há pelo menos 3.300 anos. A escrita chinesa não usa um alfabeto, como sabemos, mas símbolos constituídos para abrigar significados, bem como sons que indicam significados. Há um aspecto imagético marcante na escrita da língua chinesa, que parece sugerir uma conexão diferente com a realidade em relação às línguas que utilizam alfabetos. De fato, há um arcabouço múltiplo em sua própria forma: imagens que simbolizam; sons que significam; articulações entre símbolos; fusão de sons e imagens; etc. Havia, no início da história conhecida da escrita chinesa, seis tipos diferentes de caracteres que representavam a língua (YIN, 2006): 1) caracteres pictográficos – criados a partir de desenhos que representavam objetos; 2) caracteres indicativos – originados a) de desenhos de símbolos abstratos para indicar um conceito ou b) a partir da modificação de um caractere pictográfico para indicar um novo conceito; 3) caracteres associativos - criados a partir da combinação de um ou mais elementos pictográficos para criar um novo sentido; 4) caracteres pictórico-fonéticos – criados a partir da combinação de componentes pictográficos (trazendo a categoria do sentido) e caracteres que indicavam a sonoridade do símbolo; 124 5) caracteres explicativos – criados a partir de um componente que traz o sentido e o som do símbolo e a adição de um caractere pictográfico para auxiliar a compreensão do sentido; e 6) caracteres de “empréstimo” fonético – caracteres criados para representar um conceito, mas emprestados a outros conceitos com a mesma pronúncia. Desta forma, percebemos que a escrita chinesa é composta por uma rede complexa de imagens, símbolos, sons, sentidos e articulações pouco comuns em outras línguas. A escolha da língua chinesa por Frampton - os múltiplos aspectos de sua grafia, de sua articulação complexa entre som e imagem, e de sua relação pictórico-sonora (de certa maneira) com o mundo – carrega em si propostas particulares de encontro entre imagem e fala, e com isso coordenadas específicas para o desenho deste território de escuta. Uma das questões centrais para Frampton84 em sua pesquisa artística era justamente os possíveis liames entre imagem e linguagem; o uso de uma para ampliar as possibilidades de sentido da outra. Seu filme Zorns Lemma (1970) lança mão de referências conceituais externas ao audiovisual para determinar sua estrutura e sentido, mesclando teoria matemática, linguagem e filosofia, embora praticamente não possua banda sonora. Na segunda parte de Zorns Lemma “as sequências e subsequências […] são determinadas por um sistema de substituição e progressão ordenado pelas vinte e quatro letras do alfabeto da língua inglesa (simplificado) [usado no livro denominado The Bay State para ensino de crianças]” (WEISS, 1985, p. 120). Em Ordinary Matter o chinês é fator de construção de sentido ao propor uma reflexão sobre o estatuto da linguagem frente às imagens e vice-versa. Além disso, a língua chinesa é uma das mais antigas línguas existentes ainda em uso, mesmo que modificada. Este caráter da língua chinesa, de certa forma originário em relação à linguagem humana, dialoga diretamente com o tema do filme. Este silabário traz a matéria ordinária de uma das primeiras linguagens faladas (e escritas) pelo homem de que se tem registro. O desenvolvimento de seus símbolos gráficos é contemporâneo a outras formas originárias de 84 Hollis Frampton nasceu em 1936 e faleceu em 1984. 125 escrita, como a dos egípcios ou mesopotâmicos. Além disso, Frampton escolhe recitar o sistema de traduções dos símbolos chineses (sonoro-pictográficos) em símbolos ocidentais (sonoro-abstratos) em sua manifestação sonora. Há uma cadeia de traduções entre imagem, sinal gráfico (cujo sentido se dá dentro de um sistema de oposições específico) e sons que se expressam na escolha do diretor – som, imagem e linguagem deslizam uns sobre os outros. O sistema de Wade-Giles foi uma das primeiras tentativas ocidentais de transcrição do chinês para o alfabeto latino. Thomas F. Wade foi embaixador britânico na China entre 1871 e 1883. Desenvolveu o sistema de transcrição a partir do dialeto de Pequim (uma das versões do mandarim). Herbert A. Giles, funcionário da embaixada britânica na China, aprimorou o sistema de Wade. No entanto, há uma série de questões quanto às escolhas realizadas pelos autores na construção de seu sistema: diversas formas de grafia de diferenças sonoras da língua não são funcionais, permitindo erros na interpretação das sílabas e das palavras compostas a partir delas. Hoje já se têm sistemas mais aprimorados e com menos possibilidades de indução ao erro que o de Wade-Giles, embora este último ainda seja muito usado. Assim, o silabário de Wade-Giles, presente em Ordinary Matter, é um sistema que aproxima formas diversas de pensar a linguagem (o oriental chinês e o ocidental inglês), mas é, também, um sistema que permite erros, interpretações equivocadas, misreadings - termo que Frampton adapta do pensamento Poundiano (a partir da discussão sobre a necessidade de desfazer (desaprender – unlearning) o pensamento conceitual criativo do passado de modo a compreendê-lo e ampliá-lo (FRAMPTON, 1976). Estes erros se originam justamente das representações dos sons da língua chinesa criados por Wade-Giles, podendo induzir o emissor a sonorizar equivocadamente fonemas ou interpretar sons em sentidos incorretos. Frampton acreditava que toda interpretação do trabalho artístico da tradição passa pela sua compreensão (reading) e pela sua incompreensão (misreading) ou sua compreensão equivocada: “a leitura incorreta ou o desmembramento equivocado das hipóteses composicionais permanecerão assombrando o espaço intelectual usurpado pelo sucessor [do artista antepassado]”85 (FRAMPTON, 1976, p. 107, tradução nossa). 85 No original: The incorrectly read or imperfectly disentangled compositional assumption invariably remains to 126 Ao tentarmos compreender trabalhos artísticos produzidos a partir da leitura equivocada do arcabouço conceitual dos artistas do passado (podemos falar também, como Frampton, da “subestrutura axiomática” das obras), somos obrigados a efetuar o “duplo esforço” de reading e misreading “simultaneamente”, na tentativa de dar conta de propostas que mais “[...] omitem que enfatizam as articulações entre os elementos e operações pelos quais são compostas”86 (FRAMPTON, 1976, p. 107, tradução nossa). Desta forma, a presença do sistema Wade-Giles talvez possa ser lida como uma afirmação teórica e um possível comentário sobre o próprio filme, apontando para a necessidade de um duplo esforço para compreendê-lo: a leitura correta e a leitura do equívoco, buscando apreender a multiplicidade que se refugia em seu trabalho: “'[...] o processo é um contínuo diálogo, um constante reabrir-se a questões com as quais eu possa abarrotá-lo, por assim dizer. E é precisamente ao nível da interferência das operações [sobre o próprio trabalho], ao nível da disjunção entre o aparato de significação e aquilo a que necessariamente ele se liga, que o diálogo acontece”87 (FRAMPTON, 2004, p.117). Neste território de escuta, as escolhas de articulação entre voz e imagem são definidas pela sobreposição de camadas de sentido que encadeiam não só diretamente imagem, som e linguagem, mas ultrapassam o imediato e conectam pensamentos, reflexões e leituras intertextuais teóricas sobre o próprio fazer artístico. Frampton se distancia das práticas hegemônicas de articulação entre som e imagem, opondo-se a formas narrativas onde cada elemento já possui função pré-definida. A cada trabalho, cabe-lhe utilizar procedimentos específicos de cerzidura entre som e imagem que manifestam sua forma de pensar e criar, e propõem leituras múltiplas e complexas. A voz é o elemento que ocupa toda a banda sonora de Ordinary Matter, como vimos. Mas sua presença não se conecta às imagens como nos diálogos ou monólogos do cinema clássico, nem tampouco é uma explicação para elas, como nas narrações documentais tradicionais. A voz é portadora de linhas de significação que se entrelaçam, mas deixam pontas múltiplas, haunt the intellectual space usurped by its successor. 86 No original:[…] that elides, rather than emphasizes, the articulations among the elements and operations of which it is composed. 87 No original: process is one of continuous dialogue, a constant re-opening of as many questions as I can cram into it, so to speak. And it is precisely at the level of the self-interference of operations, at the level of disjunction between the signifying apparatus and what it is perforce linked to, that that dialogue takes place. 127 linhas de fuga, que solicitam percursos, jornadas (como a do filme), saltos entre campos de saber, criação e pensamento diversos. O território de escuta que se desenha em nosso encontro com Ordinary Matter é fruto do cruzamento de diversas linhas tanto sensoriais, quanto de pensamento e sentido. A estruturação imagética e as escolhas temáticas de Frampton em Ordinary Matter são parte de um processo de criação artística e reflexão sobre o próprio fazer artístico que se manifestam na costura de sons e imagens. Frampton parte de propostas de pensamento sobre as relações entre as matérias ordinárias de seu fazer artístico ao mesmo tempo em que aborda a matéria ordinária do mundo (que não deixa de ser também matéria da criação artística) definida a partir de seu olhar/ouvir, em um processo de referências cruzadas, sobredeterminações e articulações que fundem apreciação estética, escritura artística, produção de pensamento e construção de múltiplos sentidos. Frampton cria territórios de escuta que estão em choque com a previsibilidade reforçada pela máquina e pela indústria cinematográfica. Trata-se de uma experimentação de formas que se distanciam das práticas cinematográficas clássicas. Ao lançar mão dos procedimentos e perspectivas na estruturação de relações entre som e imagem que comentamos acima, Frampton nos faz engendrar percursos que fazem emergir um território de escuta de resistência à padronização da sensibilidade capitalista. O artista mistura em seus trabalhos referências em pensamentos tão díspares quanto à matemática, a literatura, a música e a filosofia. Frampton define suas propostas para o cinema da seguinte maneira: “Nós propomos outra morfologia, radicalmente nova... onde não se veja o filme partindo de fora, como um produto para ser consumido, mas de dentro, como um código em evolução dinâmica que responda e seja responsável, como qualquer outro código, frente ao supremo mediador: a consciência” (FRAMPTON, 1974, 109, tradução nossa). Assim, o artista busca distanciar suas práticas da repetição irrefletida e automática, do código pronto utilizado pelos “funcionários das máquinas”, buscando formas de ruptura frente aos programas pré- definidos pelas máquinas culturais e tecnológicas. 128 6.3 In Order not to be Here (2002) Deborah Stratman In Order not to be Here não apareceu logo no início da pesquisa. Após muitas visitas a sites, filmes assistidos, organizações que auxiliavam a diferenciação e a compreensão do material que estava explorando, encontrei Deborah Stratman. Li um pouco sobre a artista (pois se trata de uma multiartista que utiliza diferentes suportes e formas para expor seu trabalho) e pude assistir alguns de seus filmes. A situação de escuta, mais uma vez, não era a ideal e não se tratava de estar na sala escura, confortável, isolada e, em alguns casos, acusticamente preparada do cinema. Sentado em minha velha cadeira desconfortável, na minha mesa de trabalho, em minha casa... Contando com o silêncio da rua após as 22:00 e de minha família, foi como assisti/escutei este filme. Embora o deslocamento possa ter provocado uma experiência particular, a intensidade do filme não foi afetada. Nem tampouco sua capacidade de transformar quem o assiste. It is not necessary to be someplace else in order not to be here. Esta é a primeira frase que lemos no letreiro do filme de Deborah Stratman e que permanece ressoando em nossa cabeça após ver/ouvir o filme. Sua tradução poderia ser: Não é necessário estar em outro lugar para não estar aqui. Ficamos pensando em o que significa estar aqui, o que significa a presença. In Order not to be Here é composto, em sua maior parte, por cenas onde não há pessoas. Não há corpos. O início e o final do filme nos mostram os únicos corpos em movimento que fazem parte do filme: corpos perseguidos pela polícia, vistos através de câmeras de visão noturna e vigilância, que os procuram para acercar-se deles, detê-los e, se possível, confiná-los. Sua presença não é uma presença frente ao outro seu semelhante, mas frente ao dispositivo de vigilância e controle cuja função é eliminar a presença, recolher os corpos que não pertencem a um determinado espaço, que não têm o direito de fazer dele território. A crítica e historiadora Bérénice Reynaud (2003), comentando o filme, destaca que esta frase é uma pequena alteração de uma frase do livro Suburbia (1990) de Paul Founel, membro do grupo Oulipo. A frase original 129 seria: “It is not sufficient to be elsewhere in order to be here” – não é suficiente estar em outro lugar para estar aqui. In Order not to be Here começa com a tela negra e vozes que conversam pelo rádio. Ouvimos as trocas de mensagens, acrescidas dos ruídos tecnológicos que por pouco não as tornam completamente incompreensíveis. Um dos interlocutores parece sugerir ações e dar indicações para o outro. Ele diz: “você vai entrar com o cachorro?”; “Em 15 metros você o alcançará”; “Entre com o cachorro”, etc. Não conseguimos compreender as falas do outro interlocutor, mescladas aos ruídos intensos e múltiplos da transmissão e de interferências. Em seguida, vemos as primeiras imagens de um helicóptero que parece sobrevoar uma cena policial. Um acorde eletrônico (quase um massa sonora) em um crescendo sutil faz a transição do negro para as imagens em “visão noturna” vistas do helicóptero. Homens armados e um cachorro caminham em meio a um bosque. Entendemos pouco do que é dito, mas o bastante para compreendermos que o rádio do helicóptero orienta a captura de pessoas que estão lá embaixo, procuradas pelos policiais armados que não enxergam seu entorno. A visão natural não se presta a ação, somente a visão mediada pela tecnologia de vigilância. O indivíduo procurado não é uma pessoa, mas uma forma identificável pela leitura diferencial de tons que a câmera produz. O policial não precisa sequer vê-lo, pois neste momento não importa quem seja, mas sua existência deslocada – o fato de ocupar um espaço que não lhe é autorizado. Continuamos ouvindo a troca de mensagens pelo rádio e a oscilação sutil da massa sonora. O policial no helicóptero orienta cada movimento de seus companheiros que estão na mata: “Caminhe diretamente para as árvores e você vai encontrá-lo”; “Vá para a esquerda”; “Está a 12 metros a sua esquerda”; “Isso. Siga em frente e o encontrará”. Vamos acompanhando as formas esbranquiçadas movendo-se lentamente nas imagens, como se fosse um espaço irreal onde ações fictícias têm lugar. Vemos formas que parecem ser homens com armas em punho caminharem em direção a outra forma esbranquiçada que parece estendida no chão, até que a alcançam. A ação termina com um bip do rádio e nos vemos novamente na tela negra. Os sons do rádio e da massa sonora permanecem até a inscrição It is not necessary to be someplace else in order not to be here aparecer e desaparecer. 130 Inicia-se uma série de tomadas curtas de muros, cercas e paredes do espaço urbano vistos de fora. Alguns iluminados pelas lâmpadas dos postes, outros em quase total escuridão. Tijolos, madeiras, pedras, metal, etc. Diferentes texturas, formas e cores compõem as cenas ocupadas pelos bloqueios e recortes do espaço que garantem o isolamento e a exclusão. Cada local traz sua sonoridade particular: ruído do tráfego (embora não visto); grilos, vento, rangidos metálicos, ruídos das lâmpadas elétricas – mesclas de natureza e intervenção humana. No entanto, nenhum corpo é visto. Apenas as limitações ao seu deslocamento livre: seja de fora para dentro, seja de dentro para fora. Os enquadramentos são relativamente fechados, não nos deixando ver mais do que os próprios muros e cercas. As sonoridades que ouvimos nos ajudam a tecer territórios de escuta que nos situam em espaços ora mais e ora menos urbanos. Apreciamos esteticamente as variações dos ruídos que ouvimos: a diversidade de ritmos, a diversidade de frequências emitidas pelas lâmpadas elétricas, a diversidade de elementos que compõem cada ambiência – neste momento, apreciamos os sons “em si mesmos”. Após a sequência dos muros, um ruído eletrônico agudo e cíclico se alia a imagens de um facho de luz que se movimenta na escuridão, deixando entrever recortes da paisagem. A grama, a parede de tijolos marrons avermelhados, a janela branca de uma casa, a calçada, a porta de madeira. Outros ruídos se articulam ao inicial, compondo harmonias não tonais e acrescentando novos ritmos. Stratman mescla os “sons por eles mesmos” com composições eletrônicas que nos remetem aos objetos tecnológicos – elemento presente de forma intensa no filme. Não são objetos representantes de um mal transcendente, mas objetos cotidianos que, livres da presença humana, existem em toda a sua potência dominadora. A ameaça aqui não é o desconhecido aterrorizante (como nos filmes de terror ou ficção científica), mas o poder e os valores que estão imanentes nestas máquinas e nas relações que através delas são estabelecidas. Um corte abrupto nos situa em uma sala de estar. Vemos uma poltrona vazia cercada de objetos domésticos – vasos de plantas, quadros, um abajur – em silêncio. Os objetos em sua quietude natural aguardam alguém para utilizá-los. Corte - Um livro de receitas está apoiado sobre a bancada em cerâmica da cozinha. Novo corte – um relógio está sobre a mesa de cabeceira e um som eletrônico pulsante agudo, quase como um alarme disparado, ocupa o lugar de seu tique-taque. A câmera se move lentamente e revela um rosto 131 dormindo sobre a cama. Esta é a única imagem de um corpo ocupando o espaço de forma autorizada – excetuando-se os integrantes dos sistemas de controle e repressão. No entanto, ele não se move – está isolado e preservado do mundo externo. Ao mesmo tempo protegido e domesticado – docilizado – pelas mesmas estruturas de vigilância e disciplina – “É dócil um corpo que pode ser submetido [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 118). Inicia-se uma sequência de inscrições nos muros e no espaço urbano. The Knolls, North Bluffs, Ashbury – cada um com seus característicos tipográficas próprias e circundados pelos sons do ambiente. Cada um destes títulos se refere a condomínios e conjuntos de apartamentos construídos por empreiteiras para venda ou locação. Condomínios que podem garantir o sono tranquilo de seus moradores, cercado por muros e, provavelmente, controlados por guaritas e seguranças. As imagens vão se alternando em cortes secos e duram poucos segundos. Surgem espaços internos de locais comerciais: prateleiras, vitrines abertas, geladeiras – todos self service, sem a necessidade de troca entre pessoas para realizarem suas funções. Espaços de estacionamento vazios, embora iluminados. Sinais luminosos de diversos drive through: lanchonetes, farmácias, restaurantes. Imagens de caixas eletrônicos em seu funcionamento automático aguardando pessoas. As mensagens eletrônicas que piscam na tela expressam convites diversos aos usuários ausentes. Os sons que conformam os espaços são, aqui, os das máquinas e os das vozes transmitidas via tecnologia: rádios que preenchem o ambiente, conversas através de alto- falantes dos drive through. Não se vêem pessoas. Apenas espaços e máquinas. Em cada cena, percebemos as variações de intensidade, ritmo e campo de frequências ocupado pelos sons que elas produzem. Cada espaço é habitado pelo não-humano que com suas sonoridades próprias desenham estes territórios de escuta. Nós, de nossa parte, penetramos, conduzidos por Stratman, nestes territórios para fazê-los de alguma forma nossos. Mesmo que o viés do estranhamento seja a nossa primeira porta de entrada. Em uma cena o letreiro luminoso sintetiza parte das questões que o filme levanta. Lê- se na fachada: Touchfree. Touchfree é um espaço fechado onde máquinas executam o serviço de lava jato sem a necessidade de pessoas, mas marcando seu território com sonoridades intensas e de amplo espectro. Touchfree: sem toque, ou literalmente, livre do 132 toque. A estrutura urbana se desenha, à noite, horário em que se passa o filme, pela ausência do toque, pela ausência do contato humano, pela proliferação dos espaços vazios, território das máquinas, do tráfego de veículos – máquinas-casa que se fecham ao mundo e garantem o isolamento daquele que as habita, mesmo que temporariamente. A insegurança do espaço aberto, comum, solicita o enclausuramento atrás dos muros e a vigilância contínua. Por volta dos 15 minutos de filme uma cena inesperada revela um rastro da presença humana: um carrinho de supermercado vermelho derrubado se mostra na imagem. Escutamos um alarme intenso que parece indicar que alguém esteve ali em uma ação não assentida. Mas a cena dura pouco mais de um segundo. Logo voltamos à ausência de qualquer sinal da presença humana. Apenas a delegação de funções às máquinas e às estruturas arquitetônicas. Aos 16’40”, ao vermos um sinal luminoso que diz Target, recomeçam as conversas através dos rádios da polícia. Um policial parece sem fôlego, falando com pressa e alarmado. Parece perseguir alguém em fuga enquanto se reporta à central, que fala com calma e faz algumas perguntas. Target é o nome da empresa identificada pelo luminoso, mas também quer dizer alvo. A polícia procura seu alvo e o persegue, imiscuindo-se física e sonoramente no espaço das máquinas e tecendo com elas um território de escuta particular onde reinam os sons não-humanos da delegação e do controle. Podemos perceber que muitos dos luminosos que vemos em In Order not to be Here funcionam como trânsito entre imagem e som: são imagens, coloridas e brilhantes, mas são imagens acústicas, sons que podemos ouvir internamente cujo sentido desliza entre sua localização na paisagem e o modo como se insere sonora e poeticamente no território de escuta do filme. Lembremo-nos do Touchfree mais acima. Enquanto escutamos o rádio policial, nossos olhos percorrem paisagens desoladas do centro urbano vazio: estacionamentos; portas de vidro indicando “saída”, mas fechadas; passagens escuras, etc. O policial parece pedir reforço e vemos um carro de policia que passa por uma rua. A central pergunta se já conseguiram capturá-lo. Respondem que o têm sob custódia. A tela fica negra e ouvimos uma melodia de poucas notas, executada em um som eletrônico. Surgem imagens de um cão policial feroz, latindo e mostrando os dentes 133 para a câmera. A música vai ganhando camadas, com ruídos agudos, metálicos, até que um corte abrupto muda a cena. Vemos uma câmera de vigilância presa a uma parede que gira lentamente em seu eixo horizontal. Seu movimento é ritmado por um ruído agudo cíclico. Mais um corte seco e estamos em uma sala de controle – centro da vigilância composto por uma grande quantidade de telas. As imagens são de uma empresa: corredores, salas, entradas e saídas. A composição eletrônica ganha novos contornos com a entrada de um som grave pulsante. Passamos a ver as imagens que as câmeras enviam para o controle. Espaços vazios, estanques, onde nada acontece. Os espaços estão à espera. As câmeras estão à espera. O controlador está à espera. Mas o que parece suspensão é ação continuada e tensa da vigilância e do controle, alcançando os mais recônditos espaços do prédio. Outros ruídos vão entrando e complexificando a composição musical. Um novo corte seco. Os sistemas de vigilância tecnológicos atuais são um aprofundamento do Panopticum de Jeremy Bentham, cujo projeto veio a público ainda em 1791. O projeto previa uma estrutura em anel em cujo centro esta uma torre com janelas que deixam ver a face interna do anel. Esta construção em anel é dividida em celas que possuem uma janela voltada para a torre e uma do lado oposto, voltada para fora. Assim, a luz atravessa a cela e permite que quem estiver na torre tenha ampla visão do que lá se passa. Da cela não é possível ver quem está na torre ou se há realmente alguém lá, mas a possibilidade de estar sendo observado continuamente faz com que o corpo do preso seja domesticado, docilizado. As câmeras, ostensivamente presentes nas áreas públicas e nas fachadas de muitas casas e prédios são os olhos do poder que controlam continuamente a população, embora não haja sempre, necessariamente, um olhar por trás destes olhos. O panóptico não é apenas uma estrutura arquitetônica que visa o controle de presidiários. É um dispositivo de poder capaz de ser destacado de seu uso, pois é passível de ser inserido em diversos contextos de controle: “O esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos” (FOUCAULT, 2008, p. 170). 134 A seguir, somos lançados no silêncio e vemos um letreiro iluminado ao longe. Logo aparecem os ruídos do que parece ser o tráfego, embora não vejamos movimentos. Retomamos nosso percurso pelos espaços vazios, externos e internos, vistos pelas janelas, paisagens invertidas emolduradas pela câmera. De súbito uma sirene dispara. Seu arco sonoro conecta as imagens que continuam em sua sequência indefectível. Ao final da sequência vemos um local com árvores sob a luz da lua. A sirene ganha a companhia do som de um alarme (semelhante aos alarmes de carro). Vemos uma rua vazia, coberta pela neve. A intensidade da sirene cresce juntamente com um ruído que se movimenta em um campo amplo de frequências. Um corte seco. Somos inundados por conversas de rádio sobrepostas e seus ruídos intensificados. As falas são incompreensíveis e se transformam em uma massa sonora movente, com ritmos fraturados que acompanham as imagens de um homem correndo pelas ruas. As imagens são de “visão noturna”, vistas de um helicóptero que o acompanha. Tudo leva a crer que nosso personagem está em fuga. Começamos a ouvir a voz de uma jornalista televisiva que descreve uma situação: “estas são imagens da casa, com gás lacrimogêneo saindo pelas janelas. Houve um tiroteio...”. Sua fala é apagada por outra que diz que há chamas saindo pelas janelas da casa. “Inicialmente pensamos que era fumaça de gás lacrimogêneo, mas esta casa está realmente em chamas”. Enquanto acompanhamos a fuga do homem, do ponto de vista do helicóptero policial, escutamos uma série de gravações de reportagens televisivas sobre um acontecimento policial. As notícias falam do homem que ao ser abordado para uma averiguação de rotina, atirou nos policias e feriu (ou matou) um deles, entrou em casa e recusava-se a sair. Posteriormente, colocou fogo na própria casa e as chamas vão subindo, assim como a fumaça. Os repórteres dizem que conversaram com os vizinhos e que estes estão chocados, pois se tratava de um cidadão amigável, participativo na comunidade de Santa Clarita, Califórnia. Enquanto isso, nosso personagem corre por áreas vazias, pontuadas por torres de eletricidade. Os ruídos ganham intensidade em alguns momentos, mas logo continuamos ouvindo os comentários da repórter que fala “ao vivo” sobre a situação que os espectadores acompanham. No nosso caso, as falas se sobrepõem à fuga que vemos. Até que em um 135 ponto, aos 29 minutos, há uma conexão entre ambos: “Parece ser possível que nosso suspeito tenha fugido e esteja vagando pela vizinhança”; “Há a possibilidade de que ele tenha sobrevivido ao fogo”. Enquanto isso, o homem em fuga é acompanhado pelo helicóptero até que salta em um lago ou em um rio. Ficamos somente com uma massa de ruídos diversos, agudos e graves, tônicos e percussivos, que impõem seu ritmo frenético à cena. O homem nada até chegar à outra margem e adentrar uma área densamente arborizada e desaparecer sob as copas das árvores. A câmera tenta em vão reencontrá-lo, circulando em diversas direções, mas não é capaz. Um bip marcado acompanha a massa sonora pulsante. Um zoom para traz e um corte seco marcam o final do filme. Deborah Stratman é uma artista que pesquisa “paisagens e sistemas”, como ela diz em seu site. A maior parte de seu trabalho lida com a relação entre os espaços físicos e a “luta humana pelo poder e controle” que ali tem lugar. A artista já realizou mais de 30 filmes e diversas obras em diferentes linguagens. Normalmente, Stratman é designer sonora de seus próprios filmes. In Order not to be Here não é construído a partir de uma estrutura narrativa tradicional. Seria simples dizer que se trata de um filme experimental, como se esta categoria fizesse mais claras suas propostas e seu modo de constituição. O filme lida com questões importantes para Stratman, mas procura envolver o espectador nestas questões utilizando o que este meio traz como potência: a articulação entre imagem e som. Como vimos, o filme é composto de inúmeros fragmentos de espaços vazios, locais planejados para evitar o contato humano, estruturas arquitetônicas, sociais e tecnológicas de restrição e controle da liberdade de circulação. Estes fragmentos entram em um processo cuidadoso de montagem que aos poucos nos conduz às reflexões que o filme pode/deseja provocar. As características sonoras de cada recorte se manifestam com intensidade em suas diferenças e semelhanças. Ao mesmo tempo em que nos trazem fragmentos do mundo e construções eletrônicas de Stratman e Drumm88, em sua riqueza imagético-sonora, os recortes constituem pequenos blocos sonoros (um conjunto de sons que acontecem ao 88 Os créditos indicam Kevin Drumm como o compositor da música eletrônica do filme de Stratman. A câmera, a montagem e o design sonoro ficam a cargo da diretora. 136 mesmo tempo, mesmo que não intencionalmente, e se tornam micro organizações de timbres e ritmos) que nos envolvem, inicialmente, e nos fazem sentir a dimensão do vazio humano – baseado no medo – que o filme discute, assim como a proliferação das máquinas que, em muitos casos, tomam o lugar do homem nos espaços de troca. O território de escuta constituído pelo filme no faz habitar espaços de conflito político, que são também conflitos sensoriais – diz respeito a como a sensibilidade se organiza, como os afetos (e quais afetos) circulam naquela comunidade (ou comunidades). Os bloqueios, os distanciamentos, a intervenção tecnológica, os aparatos e instrumentos de controle, as ironias e paradoxos são revelados pela montagem dos curtos blocos imagético- sonoros – grupamentos densos de som e imagem – em sequências que nos inserem intensamente naquele espaço. Mas, além disso, a intervenção enfática das sonoridades e dos modos de emissão vocal dos policiais e dos meios de comunicação é parte central da construção das redes sensoriais e de sentido que compõem este território de escuta. A polícia tem como finalidade a manutenção da ordem jurídica, o que incluiria a proteção de direitos previstos em lei e a repressão de atos que contra ele atentem. Para a execução de suas tarefas, a polícia lança mão de tecnologias de vigilância e repressão – aparelhos de ampliação da visão e da escuta, armas as mais diversas, e um código lingüístico e jargões próprios das “corporações” policiais – com a finalidade de oprimir e subjugar os divergentes e tornar suas estratégias opacas aos que não fazem parte de sua estrutura. Ao mesmo tempo, o poder de polícia, que não é exercido unicamente pelas polícias militares ou civis, é definido pelo artigo 78 do Código Tributário Nacional da seguinte maneira: “considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do poder público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. Esta definição amplia o campo de ação e o alcance do poder de polícia estatal. A televisão reconstrói a realidade, assim como outras mídias o fazem. Através a montagem sonora e imagética, da construção narrativa e da escolha da linguagem e tom de 137 suas transmissões, a televisão é capaz de sugerir leituras de mundo a partir de um único ponto de vista, com foco na espetacularização dos eventos e da sedução (a partir do desejo, do medo, da empatia, ou qualquer sentimento que possa explorar) do seu espectador/ouvinte. Mais do que convencer, a televisão atrai, cativa, fascina – e cria estruturas interpretativas que conduzem ações calcadas em equívocos, preconceitos e padronização do mundo. In Order to be Here nos deixa escutar de outra maneira o discurso televisivo – desvinculado da montagem dramática habitual, e atrelado às imagens de perseguição vistas do helicóptero policial, o discurso televisivo se revela, ainda com mais força, como arma da manutenção do controle e da opressão à divergência – arma que integra o sistema policial. A abertura e o fechamento de In Order not to be Here são centradas em dois elementos sonoros: a linguagem policial e a linguagem das reportagens televisivas. A linguagem policial, bem como os sons característicos das tecnologias de controle e das redes comunicativas que estabelecem como sistema de repressão aos “desajustes” ocupam a banda sonora do filme e nos tomam de assalto. A violência das ações policiais e a linguagem impessoal andam de braços dados em suas intervenções contra “suspeitos”, “indivíduos” e “meliantes”. A mídia incorpora a linguagem impessoal, despersonaliza os indivíduos e os torna parte do fluxo de encontros e desencontros entre objetos do mundo – paradoxalmente, procura resgatar aspectos humanos dos “suspeitos” quando estes podem trazer dinamismo aos dramas transmitidos, de preferência “ao vivo”. A despersonalização está expressa na linguagem e em sua cadência, assim como a violência – ambas ora subjazem ora estão explícitas nas imagens que vemos. Não esqueçamos que a própria despersonalização é em si mesma violência. 138 6.4 2ou 3 Choses que Je Sais D’Elle (1967), de Jean-Luc Godard O primeiro contato que tive com os filmes de Jean-Luc Godard foi no extinto Savassi Cine Clube, ainda adolescente. Este cinema, um dos poucos em seu gênero na cidade, era uma espécie de oásis onde se podia assistir a inúmeros diretores ausentes de muitas outras salas de Belo Horizonte: Federico Fellini, Ingmar Bergman, Bigas Luna, Maurice Pialat, François Truffaut, Win Wenders e tantos outros. Mais tarde, seduzido pela possibilidade de ter acesso online a inúmeros filmes de diversos diretores, confesso que baixei boa parte da filmografia de Godard, principalmente entre 1960 e 1980. Pude rever este, e outros tantos, no DVD player, confortavelmente sentado na sala de minha casa. Porém, sem a experiência, tão deliciosa, da imersão na sala de cinema. Para escrever, o assisti/escutei novamente, com cuidado e anotações, em meu computador. Do silêncio mergulhamos sem aviso nos sons de máquinas, veículos e motores em giro ritmado. Como um letreiro luminoso que ocupa os espaços públicos das grandes cidades piscam na tela os dizeres: 2 (azul) ou (branco) 3 (vermelho); seguidos por Choses que Je Sais D´Elle (verde); e depois Elle | La Région Parisienne (em vermelho, azul e branco). Silêncio súbito sobre as imagens de um viaduto em construção. A câmera está posicionada em cima dele, mas vemos, graças a sua curvatura, o que se passa no espaço sobre o qual ele se assenta. A voz sussurrada do narrador relata a publicação de um ato normativo do estado que diz respeito à região administrativa de Paris. Vemos as imagens da construção, mas ouvimos unicamente seu sussurro. Inesperadamente somos invadidos mais uma vez pelo som avassalador da cidade: carros, motos, caminhões, motores, máquinas – a câmera sob o viaduto observa o tráfego que o ladeia. No próximo plano, o silêncio emoldura dois prédios altos como que circundados pelo viaduto. O narrador retoma sua fala sussurrada sobre a recém-criada unidade administrativa de Paris. Sob sua voz (único som que escutamos) as imagens de um vão de um prédio onde vemos pessoas a caminhar. 139 No primeiro plano, uma mulher que olha para a câmera. Ela parece estar na varanda de um apartamento ou no corredor aberto que leva a uma série de apartamentos. Escutamos sons ao fundo com certa reverberação. O narrador sussurra seu nome (o nome da atriz), Marina Vlady, e a descreve de forma superficial. Ela fala para a câmera, citando Brecht: “[o ator deve] falar como que citando a verdade”. Ele diz: “Agora, ela vira o rosto para a direita, mas isso não é importante”. O mesmo plano se repete. O narrador sussurra o nome da personagem, Juliette Janson, que vive ali, e a descreve de forma superficial. Ela fala como se conversasse com quem está atrás da câmera, mas não ouvimos as intervenções desta pessoa. Ao final, o narrador diz: “agora ela vira a cabeça para a esquerda, mas isso não é importante”. Mais uma vez somos lançados nos ruídos da construção em um plano curto de um guindaste que se move. Esta é a descrição dos três primeiros minutos do filme 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle (1966) de Jean-Luc Godard. O filme aborda a Região Parisiense, como diz o título, mas também a vida cotidiana de Juliette Janson, jovem dona-de-casa de Paris que se prostitui. No entanto, o filme não se restringe a estes temas, pois expressa uma reflexão calcada em fragmentos de som e imagem acerca da sociedade capitalista, valores, publicidade, imperialismo norte-americano, diferenças de gênero, guerra, linguagem, linguagem cinematográfica, imagem, sexo, entre outros temas. O cineasta Jean-Luc Godard é apontado como um dos mais inovadores diretores da New Wave francesa e da história do cinema, com um estilo único que se renova ao longo de sua carreira. 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle é seu 13º longa-metragem, em uma lista que beira quase cem produções (entre curtas e longas-metragens e produções em mídias diversas), e faz parte de seus “mais ambiciosos trabalhos” (STERRITT, 1999, p. 27), como um filme ensaio que não se enquadra em nenhum gênero tradicional. 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle em seus três primeiros minutos, descritos acima, já traz algumas pistas sobre o modo de articulação entre as matérias-primas básicas na construção de seu discurso. O primeiro aspecto das propostas que se manifestam no filme, e que podemos observar já aqui, é que os sons são matéria de construção expressiva que se aliam às imagens para constituir campos de sentido, não se restringindo a acompanhar as imagens ou trazer o mundo objetivo para a tela. 140 A partir deste pensamento, Godard libera o som de suas amarras realistas, tornando irrelevante a dicotomia, já clássica, entre sincronia e assincronia. A questão passa a ser tratar o som como matéria poética, como matéria que constitui planos estéticos junto com as imagens. As oposições ou diferenças se constroem entre os planos sonoros e a partir daí constituem sentidos que não estão em cada um separadamente. Logo no início do filme saltamos do silêncio para a grande intensidade sonora das máquinas acompanhadas pelos letreiros tremeluzentes – somos lançados de nossas cadeiras para o centro da massa sonora opressora da vida em comum nos centros urbanos, marcada pelos ruídos do mundo moderno e pela publicidade – som e imagem que se amalgamam em universos simbólicos, mas ao mesmo tempo imanentes. Dali, sem aviso, vemos uma imagem da cidade: a aridez do concreto armado que constrói monumentos às máquinas e ao capital. Imagem já antecipada pelo som, mas envolvida pelo silêncio súbito que a torna ainda mais árida do que nos parece em sua realidade cotidiana: monumento ao vazio, ao nada. Robert, marido de Juliette, escuta o rádio com fones de ouvido ao lado de seu amigo Roger. Ele relata o que ouve: o presidente americano falando sobre sucessivos bombardeios justificados pela falta de atendimento do oponente a suas demandas. Ao final da sequência, escutamos os sons das bombas em um fortíssimo atrelado às imagens dos componentes do rádio. A dupla articulação - meios de comunicação de massa e imposição violenta de uma perspectiva – é utilizada aqui como espelho da sociedade capitalista contemporânea. Os donos do poder usam todos os meios disponíveis para a imposição de uma perspectiva, para criar uma hegemonia que se expressa e é reforçada no ataque real, bélico, e nos ataques forjados pela mídia de massa. O narrador sussurra. Ele não quer se impor sobre a imagem, sobre o nosso pensamento, sobre a massa sonora que a cidade já constitui. Ele se opõe sonoramente ao espaço opressor sobre o qual fala a partir da relação sonora que estabelece com ele. O narrador fala aos nossos ouvidos; ele fala com a boca colada aos nossos ouvidos, como alguém que solicita nossa atenção e nos transfere o dever de capturar o que é dito; ele fala quase de dentro de nossos ouvidos, como voz da consciência que talvez deseje despertar. O narrador se depara com a atriz. Sua enunciação reproduz a imagem sem, no entanto, ser capaz de dominá-la – diríamos que a descreve. Algo escapa. Algo está a menos e 141 a mais na imagem e na enunciação. Ele termina a frase com “Eu não tenho certeza”. A fala, expressão sonora de uma percepção (nesse caso), se restringe a nomear o que vê a partir de quem enuncia, criando um espaço paralelo (o espaço da linguagem) que não contém a imagem nem é contido por ela - a voz/discurso tem a função de “dançar” junto com a imagem. Não se impõe a ela, mas também não é dominada por ela. Ambas se entrelaçam em movimentos de aproximação e afastamento, tangenciando lugares simbólicos ao longo de seu percurso. A fala não é revelação da verdade oculta na imagem, pois “eu não tenho certeza” sequer de fatos aparentemente objetivos. Falar em 2 ou 3 Choses que Sais D’Elle é tão ensaístico quanto filmar. A atriz é identificada e se expressa olhando para a câmera como se conversasse conosco. Cita Brecht. O narrador a identifica novamente, agora como personagem. Ela fala, mais uma vez olhando para a câmera, mas responde a perguntas que não escutamos sobre si como personagem e sua vida pessoal. Os discursos estabelecem relações de proximidade e afastamento, atravessando espaços distintos e mesclando ficção e realidade ou, talvez, questionando a separação entre ambas. Aos 10 minutos de filme, o filho criança de Juliette conversa com ela sobre um sonho que tivera na noite anterior. Ele relata que sonhou que andava sozinho na beira de um penhasco, quando avistou dois gêmeos andando, lado a lado, em sua direção. Como o espaço era exíguo, ele se questionou sobre como iriam fazer para cruzar com ele. Então, um dos gêmeos foi em direção ao outro e ambos se fundiram em uma só pessoa. Logo ele descobriu que aquelas duas pessoas eram o Vietnã do Norte e Vietnã do Sul. Percebe-se aqui que todos podem ser o porta-voz das reflexões políticas que o filme realiza, independente da verossimilhança ou pertinência da enunciação em dado momento e contexto. Não há limites para o trânsito horizontalizado do discurso, nem tampouco para a bricolagem de temas, vozes, formas e sons. Logo após, o garoto pergunta para a mãe (Juliette): “O que é a linguagem?”. Ela responde, heideggeriana: “É a morada do homem”. Mais a frente no filme, por volta dos 17 minutos, Juliette está em uma loja de roupas. A câmera a acompanha, inicialmente, e passa a acompanhar uma atendente. Em um meio primeiro plano vemos a atendente que olha para câmera e diz: “Eu saio às sete horas, tenho um encontro com Jean-Claude às oito horas, vamos a um restaurante e depois ao cinema”. A 142 não hierarquização da voz se manifesta nas falas dos personagens secundários, ou melhor, dos figurantes, personagens quaisquer, que normalmente não têm voz – a presença-ausente de um corpo que só está ali para preencher espaço, criar contexto para as ações e emissões dos personagens importantes. Em 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle, os figurantes são alguém que tem uma vida para além do que vemos, uma densidade que não se revela na imagem, mas que faz parte de cada uma dessas pessoas. São personagens, mas são indivíduos que fazem parte da cidade, da região administrativa de Paris, parte da constituição das relações sociais tecidas nos espaços e nas formas possíveis de convivência dentro dos sistemas sociais que o filme aborda. A identidade não se revela na imagem, numa metáfora à visibilidade/invisibilidade das pessoas no espaço político. A figuração aqui não diz respeito apenas ao filme, mas à própria realidade. Os figurantes, no filme, solicitam a possibilidade de enunciação como parte da constituição de si, de seu lugar no mundo, como alguém que pode falar e que será ouvido – aqui lhes é concedida. A escuta se torna escuta do outro: “A injunção do escutar é a interpelação total de um indivíduo a outro: coloca acima de tudo o contato quase físico desses dois indivíduos (pela voz e pelo ouvido): cria transferência: 'escute-me' quer dizer: toque-me, saiba que eu existo” (BARTHES, 1990, p. 222, grifos do autor). Por volta dos 36 minutos, uma mulher, aparentemente registrada de forma documental, fala das dificuldades de conseguir um emprego adequado devido a sua idade e qualificação. O discurso transita entre a ficção e o documentário, mesclando a mise-en-scène dos atores à auto mise-en-scène do indivíduo filmado, cujo corpo “[...] se destina ao filme, consciente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta à operação de cinematografia (COMOLLI, 2008, p. 85). As vozes saem do mundo real ou da ficção? Até que ponto a diferença afeta o sentido do que dizem? Serão realidade e ficção territórios distantes? E se as vozes forem expressão de ambos ao mesmo tempo? Um pouco mais à frente, Juliette está no cabeleireiro e, enquanto lava os cabelos e conversa com pessoas ao seu redor, mescla pensamentos que ouvimos como se fossem ditos em voz alta e os diálogos que estabelece com os demais personagens: Manicure: - Que bronzeado, onde você andou? 143 Juliette: - Rússia. Manicure: - Onde? Juliette: - Silêncio. Leningrado. Manicure: - Os russos são agradáveis? Juliette: - Felicidade. São como todo mundo. Manicure: - Estava só perguntando... Juliette: - Eles são simpáticos. Alguns ruídos. O discurso transita entre o dentro e o fora, mescla superfície e profundidade; a fragmentação do pensamento interno e a trivialidade da conversa casual. Não há uma distribuição hierárquica da voz/discurso: a voz pode ser parte da narrativa, mas pode também ser uma reflexão sobre a narrativa; pertencer ao narrador, distribuir-se entre os personagens; partilhar o pensamento com todos os envolvidos; dar voz àqueles que não têm voz; articular o que está separado pelos limites da tela, por dentro e por fora; afirmar que o cinema é uma construção, mas é também realidade. Por volta dos 24 minutos de filme, Juliette está em um café e encontra uma amiga. Conversam rapidamente. Enquanto as acompanhamos, sons fortes da máquina de pinball que vislumbramos rapidamente quando ela entra no café. Ela sai da mesa para comprar um cigarro e a câmera a acompanha até encontrar outra personagem que começa a falar de si nos olhando de frente. Durante sua fala, ouvimos os ruídos do pinball, dos veículos cruzando a rua em que se encontra o café, bem como os ruídos das outras pessoas e de ações diversas que não vemos (mas que se dão ali dentro) em intensidade igual ou maior à voz que enuncia. Percebemos que não há hierarquia entre os sons, todos têm o mesmo valor. O mundo está repleto de sons que se combinam, se sobrepõem, se conectam. A voz e os ruídos são alguns deles, e podem ser intercambiados – o cinema não tem que excluir ou reduzir os sons do mundo para que a voz se sobressaia, pois qualquer som é parte integrante da totalidade, com igual importância. 144 Após as primeiras cenas do filme, vemos o silêncio tornar-se cada vez mais parte da banda sonora. Ao longo da película acompanhamos diversas cenas da cidade e das construções, em seu movimento contínuo e ritmos múltiplos, acompanhadas pelo silêncio da banda sonora. Parecem fazer-nos mergulhar ainda mais no fluxo sonoro-imagético construído pela collage de Godard: as intensidades, modulações, multiplicidades. A presença do silêncio ressalta a convocação à escuta feita pelo filme: “não há silêncio que não esteja repleto de sons” (CAGE, 1973, p. 135). Colocamo-nos à escuta, na disponibilidade para apreender (sentidos, conexões, pensamentos?) o que se manifesta na ausência/presença do som “roçando” as imagens. Assim, nos damos conta de que o silêncio em 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle não é ausência de sons, mas uma eloquência muda que sua presença provoca. O silêncio nos fala, preenche, e não esvazia. Não se trata de pausa, ao menos não unicamente, mas de espaço para que o pensamento e a sensibilidade possam costurar as diferenças entre os sons, entre as ideias e entre as imagens. Aos quase sete minutos, vemos o cartaz de Made in USA (filme de Godard de 1966) enquanto ouvimos o narrador dizer: “Querido George Washington, que loucura te fez assumir o papel de William Pitt89”. Logo a seguir vemos um recorte de uma caixa de sabão em pó da qual só vemos o nome: PAX. Junto à imagem, o narrador fala: “Pax Americana: lavagem cerebral supereconômica”. Aqui e ali vislumbramos fragmentos de letreiros luminosos, de placas de identificação de companhias diversas. O letreiro Sunic é recortado pela câmera em Unic (equivalente sonoro de unique), enquanto escutamos a trabalhadora que descreve sua formação e experiência, mas diz não encontrar trabalho devido a sua idade. Robert, o marido de Juliette, a aguarda encostado a uma parede repleta de fragmentos de papel, resíduos de cartazes arrancados. Resta apenas um onde se lê/vê: Paz no Vietnã – Ações/Exigências. Juliette caminha em direção a ele. Ouvimos um som ensurdecedor que parece uma bomba explodindo. A cena se repete enquanto ouvimos a voz dela dizer: “O que devemos fazer”. Alguém responde: “Recomeçar”. 89 William Pitt foi estadista e líder informal do gabinete britânico durante a Guerra dos Sete Anos. Destacou-se por sua atuação política durante a guerra e por sua devoção incansável à vitória contra a França, vitória que reforçou a dominação inglesa sobre os assuntos mundiais. 145 Em certo momento, diz o narrador: “Há uma interação cada vez maior entre imagens e linguagem. Pode-se dizer que viver na sociedade hoje é quase como viver numa ampla tira de quadrinhos”. Mas os cartazes não aparecem unicamente como uma crítica a um modo de vida capitalista em que somos continuamente bombardeados por imagens e/ou mensagens que solicitam (ou criam) o desejo. Os cartazes aparecem compondo camadas de sentido que se dão em sua inserção como duplo: imagem e imagem acústica. Sob o cartaz de Made in USA, temos a crítica à violência americana impondo seu modo de vida (produzido nos EUA) sobre os outros países, principalmente a França, como William Pitt impondo a dominação inglesa na guerra dos Sete Anos contra os franceses. Sob o sabão em pó PAX90, a lavagem cerebral supereconômica americana, a paz sob o novo imperialismo do capital. O som pode tornar-se imagem e ao mesmo tempo ser som. A imagem acústica, que está nas palavras impressas, é este duplo – imagem e som (mesmo que interno). A sobreposição das imagens acústicas e das vozes que lhes dão novos contextos de sentido reforça a ideia de que não há hierarquia na relação som/imagem: há interações, deslizamentos, sobreposições e, até mesmo, troca de papéis. Vamos tecendo ao longo do filme, a partir destes marcos, dessas coordenadas, que provocam nossa sensibilidade e nosso pensamento, um território de escuta em que múltiplas relações entre imagens e sons nos retiram do território da obviedade, da estereotipia. Estas relações fazem emergir uma multiplicidade de articulações entre política, linguagem, som, imagens, estética, cinema, etc., que ultrapassam a simples discussão das questões, pois amplificam seu alcance para além do universo da razão. A música também aparece no filme de Godard distante de suas funções nas produções da cultura de massa. Por volta dos oito minutos de filme, Juliette relata para a câmera um fragmento de experiência em que ela escuta uma voz que lhe soa como um “tipo de prova de outra existência”. Ela diz: “Eu estava lavando os pratos. Comecei a chorar. Escutei uma voz que me disse: Você é indestrutível. Eu, eu mesma, todo mundo”. Por baixo da última parte de sua fala, um curtíssimo trecho de música em instrumentos de corda. Robert a chama em off. Ela continua: “Está tudo confuso. O tempo... Não sei... Não, uma definição não me vem necessariamente”. Robert: “Juliette! Roger está indo!”. 90 De acordo com o dicionário de inglês online dictionary.com, Pax significa “um período na história marcado pela ausência de guerras significativas, usualmente imposto por uma nação predominante” (tradução nossa). 146 Ao final de uma cena já descrita mais acima, onde o filho de Juliette lhe conta um sonho sobre gêmeos que representavam o Vietnã dividido, Juliette, ao final da cena, olha por um momento para a câmera, e a música de cordas soa por alguns segundos. Mais a frente, por volta dos 26 minutos, vemos Juliette em um close, dentro de um café. Vemos uma revista feminina sendo folheada. Vemos outra mulher, também em close. Novamente vemos imagens da revista sendo folheada. Sob as imagens, o narrador comenta: “Esta é a maneira com que Juliette, às 03h37min, folheou as páginas... De um objeto conhecido na linguagem jornalística como revista. E esta é a maneira como, 150 quadros depois, outra jovem mulher, sua gêmea, viu o mesmo objeto. Onde, então, está a verdade? De frente ou de perfil? Mas, primeiro, o que é um objeto?” Vemos a mulher, a “gêmea” de Juliette, olhar para esta última. Vemos, no silêncio, imagens da revista. Os rostos de uma de outra das mulheres. Juliette franze as sobrancelhas e inicia-se um pequeno trecho musical enquanto vemos seu rosto olhando para o lado. A música, embora tenha características associadas à emotividade (assim identificadas após um longo percurso na história da música e do cinema), nem sempre está conectada a situações em que a emoção que ela reforçaria se faz presente. Ora temos revelações de Juliette/Marina; ora uma afirmação filosófica; ora uma situação que solicita a reflexão. Neste filme, a música não é o “significante da emoção” (GORBMAN, 1987, p. 73, tradução nossa), nem tampouco se prende a momentos dramáticos, mas “passeia” com a imagem e se faz presente ocupando um lugar que poderia ser ocupado por outro som. Por outro lado, o fato de ser uma composição musical, em um determinado estilo, cuja história da própria linguagem cinematográfica e as práticas padronizadas de criação sonora no cinema identificam com uma certa função e reforçam sua eficiência em um determinado contexto, faz de seu uso aqui uma questão. Uma vez que não está em sua função habitual, embora num contexto cinematográfico, a que serve? Talvez Godard pretenda mostrar que serve ao que se desejar que sirva... Serve para marcar o que se quiser marcar, ou mesmo não marcar nada. Serve para ser escutada como música que acontece em um determinado momento... Desta forma, percebemos que as articulações entre som e imagem em 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle formam um arcabouço que tece uma proposta particular de território de 147 escuta. Não se trata unicamente de constituir relações inesperadas entre som e imagem, mas propor modos de sensorialidade e construção de sentido outros, que se dão através destas articulações. Os princípios que efetivam a tecedura do território de escuta que emerge neste filme de Godard podem ser costurados em uma proposta para a constituição de articulações entre som e imagem, ou coordenadas para o desenho de territórios de escuta semelhantes a espaços lisos (BOULEZ, 1972 e DELEUZE; GUATTARI, 2005). Os espaços lisos são espaços em que a distribuição de objetos, ou a realização de cortes no espaço, não são determinadas de forma rígida, mas permitem uma distribuição irregular. Seu par oposto, o espaço estriado, é marcado por um padrão, pela regularidade. Embora os princípios que localizamos neste filme delimitem articulações entre som e imagem (de certa forma criando um padrão no filme), a abertura que caracteriza tais princípios permite n possibilidades de distribuição dos materiais, n possibilidades de articulação entre eles e de níveis de intensidade de cada um. Assim, não se trata de uma organização hierarquizada, rígida, mas de uma cartografia possível de forças envolvidas no desenho destes territórios de escuta que podem variar ao infinito. Destacamos abaixo o que estamos denominando princípios – os quais desenham o território de escuta neste filme de Godard – para que tenhamos uma visão de seu conjunto: I - Sons são matéria de construção expressiva que se aliam às imagens para constituir campos de sentido, não se restringindo a acompanhar as imagens ou trazer o mundo objetivo para a tela; II–A voz/discurso tem a função de “dançar” junto com a imagem. Não se impõe a ela, mas também não é dominada por ela. Ambas se entrelaçam em movimentos de aproximação e afastamento, tangenciando lugares simbólicos ao longo de seu percurso. A fala não é revelação da verdade oculta na imagem; III - Não há uma distribuição hierárquica da voz/discurso: a voz pode ser parte da narrativa, mas pode também ser uma reflexão sobre a narrativa; pertencer ao narrador, distribuir-se entre os personagens; partilhar o pensamento com todos os envolvidos; dar voz àqueles que 148 não têm voz; articular o que está separado pelos limites da tela, por dentro e por fora; afirmar que o cinema é uma construção, mas é também realidade; IV - Não há hierarquia entre os sons, todos têm o mesmo valor; V - O silêncio não é pura ausência de sons, mas uma eloquência muda que sua presença provoca ao entrar em agenciamentos com as imagens. Não se trata de pausa, ao menos não unicamente, mas de espaço para que o pensamento e a sensibilidade possam costurar as diferenças entre os sons, entre as ideias e entre as imagens; VI - Não há hierarquia na relação som/imagem: há interações, deslizamentos, sobreposições e, até mesmo, troca de papéis; VII - A música não é o significante da emoção, nem tampouco se prende a momentos dramáticos, mas “passeia” com a imagem e se faz presente ocupando um lugar que poderia ser ocupado por outro som. Ao mesmo tempo, cria aporias em relação às suas funções tradicionais, colocando em xeque as expectativas padronizadas da cultura de massa. Estes sete princípios podem ser extraídos das relações entre som e imagem, e se manifestam em diversas formas no filme, como pudemos ver acima. Poderiam produzir um filme completamente diferente deste. Ou seja, não se trata de afixar valores imutáveis para aspectos do som ou tipos de sons presentes na banda sonora, mas de permitir que relações específicas possam ser constituídas a partir de princípios abertos a materializações díspares. Cada obra que viesse a lançar mão destes mesmos princípios poderia ser única. Estas características de pensamento sobre o som e seu uso neste filme de Godard, de certa forma nos remetem às criações de princípios de organização sonora pessoais pelos compositores da música do século XX. As propostas de relação entre som e imagem em 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle se opõe às práticas utilizadas nas narrativas clássicas (GORBMAN, 1987; BORDWELL, 1985). O filme de Godard se revela como uma resistência em relação à forma hegemônica de pensar tais relações, abdicando dos princípios da indústria cinematográfica quanto aos papéis específicos e modos de articulação determinados entre som e imagem, os quais vimos no capítulo 4. O território de escuta que tecemos junto com Godard, transforma nosso modo de 149 compreender as relações entre imagem e som no cinema, nos provoca a tecer outras redes que nos permitam dar forma ao que percebemos em 2 ou 3 Choses que Je Sais D'Elle. A voz neste filme é vacilante, reflexiva, circular, descentrada (já que se dilui entre narrador, personagens e atores). As formas com que se manifesta não se impõem sobre os demais elementos da banda sonora, nem tampouco conduzem as ações da narrativa. Conduzem a narrativa experimental reflexiva e divagante que Godard cria, em parte no improviso, para este filme. Os ruídos são elementos tão importantes quanto qualquer outro na banda sonora de 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle. Como dissemos, entram tanto de forma realista como poética. Deslizam em composições sensoriais e de sentido com outros elementos, sonoros e imagéticos. A música aparece tímida, pontuando momentos díspares, onde nem sempre encontramos a “emoção sugerida pela narrativa”, não dá unidade ao filme - já que esta é alcançada pelo pensamento fragmentário do narrador, das personagens e atores/atrizes - nem pontua momentos de mudança da narrativa. A estrutura do filme não evoca o drama clássico, a solução de conflitos e a realização de objetivos. Há percursos sem objetivo final, traços que conectam pontos de várias formas, fluxos que são apanhados momentaneamente em expressões de pensamento, sons e imagens. A resistência de 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle se dá também em relação às formas tradicionais de pensar através de sons e imagens. Mais do que fazer cinema, trata-se de constituir blocos poéticos que coordenam o sonoro e o imagético em manifestações do viver, do sentir e do pensar – um território de escuta que provoca microprocessos revolucionários. Este é um filme ensaio em que Godard reflete, com e através de seus personagens/atores, sobre “a prostituição; a região parisiense; o banheiro que 70% dos franceses não têm; as terríveis leis dos complexos habitacionais; o ato físico do amor; a vida hoje; a guerra no Vietnã; a garota de programa moderna; a morte da beleza moderna; a 150 circulação de ideias; a gestapo das estruturas”91 (LEVITIN, 2014, p. 236, tradução nossa); e para conduzir suas reflexões, articula som e imagem em uma obra que faz emergir um território de escuta complexo. O diretor afirma que neste filme ele está o tempo todo perguntando: “Eu me vejo filmando e você me ouve pensar alto. Em outras palavras, isto não é um filme, é uma tentativa de filmar e é apresentado como isto mesmo. Ele realmente faz parte de minhas pesquisas pessoais. Não é uma história. Mas, espero, um documento” (GODARD apud NARBONI, 1972, p. 239, tradução nossa). Eu jogo Você joga Nós jogamos No Cinema Você pensa que há Regras pra jogar Porque você é uma criança Que não sabe ainda O que é um jogo e o que está Reservado para os adultos O que você já é Porque você se esqueceu De que este é um jogo de crianças [Se esqueceu] no que ele consiste Há muitas definições Aqui vão duas ou três Olhando para si mesmo No espelho que são os outros Esquecendo e aprendendo Rapidamente e devagar O mundo E nós mesmos Pensando e falando Jogo estranho Esta é a vida (GODARD apud NARBONI, 1972, p. 242/243 tradução nossa). 91 No original: ““la prostitution;” “la region parisienne;” “the bathroom that 70% of French don't have;” “the terrible law of the housing complexes;” the “physical act of love;” “life today;” “the war in Vietnam;” the “modern call girl;” the “death of modern beauty;” the “circulation of ideas;” and “the gestapo of structures”. 151 6.5 Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant Assisti Paranoid Park pela primeira vez no cinema e me lembro de ter gostado muito do filme, embora as questões ligadas à banda sonora ainda não fossem parte de uma pesquisa ou formulação teórica para mim. Esta só veio alguns anos depois, no mestrado, em 2009. Só me dei conta da dimensão da banda sonora deste filme quando estava dando aulas como substituto na disciplina de Design Sonoro para o curso de Cinema de Animação e Artes Digitais na Escola de Belas Artes da UFMG, já em 2013. Por acaso me deparei com o filme na televisão a cabo, numa noite sem muito com o que me ocupar. A minha surpresa foi enorme e vi que tinha que assisti-lo novamente para compreender melhor sua potência sonora. Aluguei o DVD e fiz uma cópia para mim. Levei-o para a turma, para que pudéssemos analisá-lo e conversar sobre a participação do som no desenho da trama e do sentido do filme. Escrevi um trabalho para uma disciplina do doutorado sobre a metalinguagem presente através do som neste filme. Por fim, publiquei um artigo discutindo as relações entre imagem e som – uma versão reduzida do que aqui apresento. Gus Van Sant é um diretor norte-americano que já realizou 13 longas-metragens em sua carreira. Iniciou seu percurso atuando no mercado publicitário e posteriormente, a partir de financiamento próprio, realizou seu primeiro longa-metragem em 1985, intitulado Mala Noche. O filme obteve boa recepção, foi premiado em diversos festivais. O filme seguinte, Drugstore Cowboy (1989) foi bem recebido pela crítica e recebeu um Independent Spirit Award pelo roteiro. Van Sant é um diretor que transita ora em produções de grandes estúdios e ora em produções independentes. Em vários de seus filmes, o diretor aborda questões ligadas a pessoas (principalmente jovens) que vivem nos limites da sociedade por questões éticas, morais, sexuais, etc. Nascido no Kentucky, Van Sant reside em Portland, Oregon, desde o final dos anos 80. Alguns filmes de sua trajetória são: Um Sonho sem Limites (To Die For), 1995 (Columbia Pictures); Gênio Indomável (Good Will Hunting), 1997 (Independente); Procurando Forrester (Finding Forrester), 2000 (Columbia Pictures); 152 Elefante (Elephant), 2003 (independente e com não-atores - ganhou Palma de Ouro em Cannes e prêmio de melhor diretor); entre outros. Gus Van Sant destinou o faturamento da première americana de Elefante para a instituição Outside In, que cuida de menores que vivem na rua em Portland, Oregon. O filme que abordaremos, Paranoid Park, foi realizado em 2007. Assim como em Elefante, Van Sant seleciona um elenco composto por não-atores, oriundos da comunidade de Portland, no Oregon: skatistas, músicos, pessoas comuns (exceto por uma das personagens, Jennifer, interpretada pela atriz e musicista Taylor Momsen). O filme não segue uma narrativa linear, mas é composto pelos vai-e-vens das lembranças do personagem principal, Alex. Acompanhamos suas memórias, que se materializam em situações imagético-sonoras92 (e suas revisões) enquanto ele as registra em um caderno. A experiência que o acaso o faz viver, o lança em um percurso de reavaliação de seu modo de viver, seus valores e objetivos. Alex é um garoto skatista que vive dramas diversos, em acordo com sua idade: família, namoro, escola, sonhos. O envolvimento no homicídio acidental de uma pessoa, o faz ser retirado de seu lugar de conforto e ter que lidar com questões e fantasmas que passam a atormentá-lo. Paranoid Park é o retrato deste percurso rumo a si mesmo que o personagem faz, e se completa na solução que encontra para o drama que o incidente provoca. No entanto, não e um percurso onde vemos um objetivo claro, perseguido pelo personagem e a luta para alcançá-lo, mas uma errância, um lançar-se rumo ao desconhecido em si mesmo. O filme é baseado no romance homônimo de Blake Nelson, e se passa em Portland, Oregon, onde o filme foi realizado. 92 Dizermos apenas “cenas” seria menosprezar o valor extremamente importante que o som possui na construção da narrativa do filme e na materialização das memórias de Alex. 153 6.5.1 A unidade musical e os agenciamentos múltiplos que realiza O filme não possui uma composição musical especial, criada para a película. Van Sant optou por selecionar composições pré-existentes e conectá-las às situações narrativas utilizando uma compilação de diferentes estilos musicais que vão manifestando sua presença ao longo do filme. De fato, ouvem-se músicas que vão do rap a composições eletroacústicas, passando pelo pop, o folk, o clássico (no sentido histórico-musical do termo), entre outros estilos. Podemos apontar como primeiro aspecto de concepção das relações entre som e imagem no filme de Van Sant justamente esta collage de elementos musicais que se originam em universos diferentes e ganham em seu filme um novo contexto, onde tecem novas redes de significação (sem perder seus possíveis sentidos originários). Desta forma, a ideia de unidade musical em sentido amplo em Paranoid Park é estabelecida pelo procedimento da collage e não pelas linguagens ou estilos musicais escolhidos – uma vez que não há unidade estilística. Curiosamente, aqui não se trata da collage de sons, como aparece na música concreta, mas da colagem de estilos. Devemos ter em mente que a apreciação estética de obras sonoras e a elaboração de conexões e sentidos a partir desta escuta se constituem em momentos e contextos específicos – territórios de escuta emergem a partir de redes múltiplas. Desta forma, o deslocamento de composições populares ou experimentais de seus contextos tradicionais de apreciação propicia experiências estéticas renovadas que tecem novos territórios de escuta. A garantia de unidade dada pela música à montagem cinematográfica, a partir da estrutura de uma composição condutora, sua instrumentação, bem como a repetição de melodias e suas variações (perceptíveis como decorrentes da melodia base), é das características identificadas por Claudia Gorbman no cinema clássico Hollywoodiano (GORBMAN, 1987, p. 73). Como dissemos no capítulo 5, estas características são observadas, ainda hoje, em diversas produções da indústria cinematográfica de todo o mundo. Aqui, temos o exato oposto. A unidade surge da própria fragmentação – da diferença – na trilha musical de Paranoid Park. 154 Mas, para além da tecedura de uma rede de composições de estilos diversos, Van Sant seleciona compositores cuja biografia os conecta à cidade de Portland, centro geográfico da narrativa: sua carreira se inicia na cidade (Menoma, Cool Nutz, Ethan Rose), encontraram seu público principal nela (Elliot Smith), ou de alguma forma se inseriram em seu circuito musical (The ReVolts), o que provoca uma outra associação entre essas músicas e o filme. Ou seja, há um segundo nível de unidade musical que se dá através da localização geográfica e da história dos compositores escolhidos. A cidade de Portland se torna cifra geográfica de uma série de relações: é o local onde se desenrola a história (inclusive no romance que serviu de base para o roteiro), local onde o filme foi realizado e residência de Van Sant. Para o espectador cujo universo cultural engloba a produção musical da cidade, ou os grupos musicais que mantém com ela uma relação significativa, a escolha dos compositores demarca outra entrada neste território de escuta. A articulação de elementos díspares (biografia dos compositores, localização geográfica da trama, do filme, do diretor, etc.) é utilizada para criar agenciamentos que ultrapassam o universo musical, conectando som, geografia, cultura, espaço real e virtual – mundo e narrativa ficcional. 6.5.2 A música e a história do cinema Em algumas passagens do filme, Van Sant utiliza músicas compostas por Nino Rota para Julieta dos Espíritos, (Giulietta Degli Spiriti, 1965) e Amarcord (1973), do diretor Federico Fellini. As músicas aparecem como citações, através de fragmentos das composições originais utilizados em cenas do filme de Van Sant. Há uma referência à história do cinema que faz com que as músicas operem como substituições metonímicas dos filmes a que originalmente se conectavam. Paranoid Park começa com um trecho musical de Julieta dos Espíritos, La Porticina Segreta. O título da peça utilizada, cuja tradução seria “A Porta Secreta”, parece nos dizer que abrimos, junto com o diretor, a porta secreta que nos introduz neste espaço de vida que passamos a “bisbilhotar”, como espectadores e, de certa forma, voyeurs. Mas, além disso, 155 ao percebermos que a composição é uma citação de outro filme, passamos a buscar relações possíveis entre Paranoid Park e o filme de Fellini. Julieta dos Espíritos narra a história de uma mulher de meia idade, rica e casada com um promotor de eventos bem sucedido. Vive em seu mundo, numa casa no campo, isolada de qualquer problema que o mundo possa trazer-lhe, mesmo de seus vizinhos. No entanto, acontecimentos inesperados começam a abalar sua vida pacata (a suspeita da traição do marido e seu conflito entre seu desejo e sua formação religiosa rígida) e ela se vê obrigada a dar conta de seus fantasmas (os espíritos do título do filme) para poder se reencontrar e redefinir sua vida. A busca da personagem de Giulietta (personagem principal do filme de Fellini) se assemelha à busca de Alex (personagem principal de Paranoid Park), que também vê seu mundo abalado por fatos que estão fora de seu controle e, como ela, tem de lidar com seus fantasmas. Essa conexão mais ampla, que se dá através da história e do percurso dos personagens, articula a narrativa dos filmes através da trilha musical. No filme de Fellini, há uma cena em que Giulietta se depara com a sua Porticina Segreta, que libera a passagem de “fantasmas” de seu passado para sua consciência. Van Sant nos abre a “porta secreta” de Alex, para que mergulhemos em seu universo consciente/inconsciente, mesmo que a essa altura ainda não saibamos disso (já que a música aparece ainda nos créditos iniciais). Estabelece-se uma acentuação da conexão entre os personagens. Um pouco mais a frente no filme, aos 26 minutos, escutamos o trecho L’Arcobaleno per Giulietta (arco-íris para Giulietta). A música é extra-diegética e vemos Alex em câmera lenta caminhando pelo corredor do colégio. A presença da música nos remete à Giulietta e interpretamos o som, nesse nível de leitura, como subjetivo de Alex. Ele passa por Jennifer (sua namorada) que o chama. O som da voz de Jennifer, alterado por filtros de áudio, reforça a subjetividade do que ouvimos, centrada em Alex. Através da música, somos reenviados ao universo de Giulietta e seu mundo interno, conectando-a mais uma vez ao personagem. Nesse momento, Jennifer pode simbolizar o arco-íris de Alex, embora o seja apenas de sua perspectiva e não da dele. Ela exige dele o reconhecimento da importância que acredita ter em sua vida. 156 La Gradisca e Il Principe é o trecho da trilha musical de Nino Rota para o filme Amarcord (1973) escolhido por Van Sant. Gradisca é personagem de Amarcord, a mais bela garota da vila, cobiçada por todos, mas que acaba se casando com um oficial do exército italiano de outra localidade. No entanto, o ponto principal de aproximação entre os filmes é que Gradisca passa uma noite com um príncipe a serviço da cidade, obviamente inebriada com a situação (sequência em que a música aparece no filme). Após a noite de amor, nunca mais o vê e continua solteira, até o final da história, quando se casa com outra figura de poder, um oficial fascista (embora não à altura do príncipe)93. No filme de Van Sant, a música aparece em uma cena entre Alex, e Jennifer (que é líder de torcida). Ele a procura no campo de futebol e termina o namoro com ela. Não escutamos sua conversa, mas apenas a música extra-diegética La Gradisca e Il Principe. A música é romântica e parece sugerir, em uma leitura inicial, o amor que enlaça ambos os personagens. No entanto, a referência à história de Gradisca indica certa ironia e aponta para uma conclusão infeliz da história. Jennifer o acusa de ter usado a relação apenas para obter o que queria: sexo (não escutamos a sua voz, mas podemos ver sua expressão e ler, em parte, seus lábios). Alex não é o príncipe de Jennifer e ela, assim como Gradisca, viveu um momento de amor (para Gradisca, apenas romântico e esperançoso) não correspondido que se finda subitamente após a relação sexual. A citação de Amarcord através da música também ajuda a compor o perfil do personagem de Jennifer, retratando-a como sonhadora e romântica (de certo modo conectada a Gradisca), e pertencente a um universo distante do que se torna o universo de Alex após o acidente. Além das conexões diretas que são tecidas pelas trilhas musicais, Van Sant realiza outras formas de analogia entre Paranoid Park e os filmes de Fellini. Amarcord trata da memória do diretor, mesclando lembranças e imaginação: “Amarcord – uma palavra que no dialeto da cidade natal de Fellini, Rimini, significa ‘eu me lembro’ – é rico em memórias, desejo de memórias, memórias do desejo” (CARDULLO, 2012, p. 32). São fragmentos das 93Bondanella aponta a relação entre o personagem de Gradisca e a conexão entre a sexualidade contida e o regime fascista (BONDANELLA, 2002, p. 132), aspecto que aparentemente não entra na conexão entre Jennifer de Paranoid Park e a personagem de Fellini. Poderíamos propor uma ligação, tênue, entre o regime fascista de Fellini e a hegemonia heterossexual do universo de Jennifer, o futebol americano, mas isso poderia ser um salto pouco pertinente na construção da relação. 157 lembranças do diretor que são articulados em um todo a partir da fabulação que a própria memória é: “Fellini estabeleceu de uma nova maneira a comunhão primeva entre cinema e sonho, filmes e memória, exploração da psique e fabulação fílmica” (CARDULLO, 2012, p. 32). Paranoid Park não aborda a memória de Van Sant (o que manifestaria uma aproximação ainda mais direta ao filme de Fellini), mas de Alex, constituindo-se dos fragmentos que ele coleta em si mesmo e revê o tempo todo, transitando entre o real e o imaginário de suas experiências. De acordo com Cardullo, a filmografia de Fellini foi, aos poucos, transformando seu modo de criar e pensar sobre as narrativas que realizava: “não há história... [seus] filmes agora ultrapassaram a fase da narrativa em prosa e estão se aproximando mais e mais da poesia” (CARDULLO, 2012, p. 31). Vários de seus filmes “se movem para além de qualquer preocupação primordial com a representação da realidade social e concentram-se nas áreas subjetivas, normalmente irracionais, do comportamento humano, conectadas à psique ou ao inconsciente” (BONDANELLA, 2002, p. 42). Da mesma forma, a narrativa de Paranoid Park não diz respeito à descrição de fatos e eventos da realidade social, mas dos movimentos subjetivos conscientes e inconscientes do personagem central, bem como os deslizamentos de sua memória entre o real e a fabulação. Desta forma, as conexões entre os filmes abrangem mais do que as aproximações entre narrativas e personagens, mesclando o próprio modo de pensar o cinema felliniano e escolhas específicas de construção narrativa que reaparecem em Paranoid Park. O uso de trechos de músicas dos filmes de Fellini por Van Sant realiza uma conexão entre a história do cinema e Paranoid Park; entre as personagens de cada filme; entre os acontecimentos desenvolvidos em cada trama; entre o pensamento cinematográfico de cada diretor e a construção de suas narrativas, entre o cinema europeu e o cinema americano. Este aspecto multifacetado da música nos leva à conclusão de que, neste território de escuta, a música pode se comportar de como ponte que articula narrativas, personagens e modos de fazer filmes que busca na história do cinema. Com isso, cria coordenadas de decifração que nos remetem a universos próximos/distantes de Paranoid Park através desta história. 158 6.5.3 Cantar a história A trilha musical do filme de Van Sant inclui uma série de canções, as quais realizam conexões entre música e imagem semelhantes, em muitos aspectos, às composições instrumentais, mas possuem características que agregam possibilidades diferentes de articulação entre os dois materiais. A primeira delas é a presença da letra – este elemento discursivo pode tecer sentidos que não se dão unicamente através da instrumentação: “[...] canções têm acesso à linguagem, especialmente letras, que podem ser um meio bastante explícito de transmitir sentido (KALINAK, 2010, p. 87, tradução nossa). A segunda característica é a referência a um universo de práticas sócio-culturais associadas ao estilo das canções que provocam leituras que ultrapassam o espaço da narrativa e incidem sobre a cultura circundante: “O nível do estilo musical tem um alcance para além da narrativa fílmica e interage com outras competências, especialmente práticas sociais [...], uma vez que o estilo musical distingue aspectos de raça, gênero e outras características.” (RODMAN, 2006, p. 129, tradução nossa). No caso de Paranoid Park, as canções atuam através de suas características instrumentais e através de suas letras, realizando um trânsito entre tempos e desvelam elementos da narrativa em flashforwards musicais pouco comuns. A partir da fragmentação da memória de Alex, personagem principal, cuja tentativa de colagem dos cacos assistimos, a narrativa de Paranoid Park ganha certa opacidade, tornando cifradas algumas das questões que atravessam a experiência do personagem. As canções se tornam ali elementos que antecipam a decifração dos enigmas vividos por Alex, os quais ele mesmo tenta compreender, bem como relações que se estabelecem entre ele e outros personagens na trama. Curiosamente, as canções em Paranoid Park se tornam elementos de construção de fluxos temporais paralelos à narrativa, que a atravessam e ultrapassam, manifestando agenciamentos entre música, discurso e imagem que tecem este território de escuta peculiar. É importante ressaltar que boa parte das relações que a música costura com as imagens e a maneira como participa da narrativa de Paranoid Park pode passar despercebida em um primeiro momento, solicitando que voltemos ao filme para 159 compreendermos as múltiplas coordenadas que as canções representam em seu território de escuta. Ainda no início do filme, por volta dos sete minutos de projeção, Alex é chamado pelo alto-falante para ir à diretoria. Quando sai da sala, acompanhamos com um travelling seu andar balouçante pelo corredor do colégio. Escutamos a música I Can Help (1974) de Billy Lance Swan. A música parece acompanhar ritmicamente a caminhada de Alex, marcando seus passos, de forma brincalhona. Porém, ao prestarmos atenção a sua letra, a canção antecipa algo que ainda não sabemos: Alex tem um problema e precisa de ajuda. A letra diz repetidamente: Se você tem um problema Não importa o que seja Se necessita de uma mão Te asseguro Eu posso ajudar Eu tenho dois braços fortes Eu posso ajudar Com certeza me faria bem Fazer-te bem Deixe-me ajudar (tradução nossa). O problema de Alex é gravíssimo: ele cometera um homicídio não intencional. Neste momento da narrativa, o espectador ainda não sabe disso, mas o personagem já vive o peso desse acontecimento em sua vida. Portanto, a música aponta para uma situação interna vivida pelo personagem atenuando, em sua forma brincalhona e ritmo animado, a profundidade do problema vivido por Alex, sem, no entanto, prejudicar em sua essência o sentido do pensamento expresso. Para além do comentário retórico que podemos perceber em relação ao personagem, a música articula elementos da trama que ainda não foram trazidos à tona, manifestando-se como ponte narrativa que efetua diálogos entre passado, presente e futuro (do personagem e da própria narração). Desta forma, a canção atua de forma complexa, em diferentes níveis: ela ritma o movimento visto na imagem; revela questões internas ao personagem, à quais os espectadores ainda não tiveram acesso; e comenta tais questões. O aspecto mais forte da construção que se manifesta através da canção de Billy Lance Swan se dá na realização de uma espécie de elipse temporal ou flashforward, antecipando elementos da narrativa que 160 virão a ser revelados posteriormente, quando possuirmos parte dos estilhaços de memória de Alex e conseguirmos compreendê-los em suas conexões. Mais à frente, nos deparamos com uma passagem intricada, em que a fragmentação mescla tempos diversos em uma sequência curta de planos. Vemos Alex saindo à noite de carro e ele escuta o rap de Cool Nutz (rapper de Portland) se divertindo. Há um corte seco e vemos um plano com o mesmo enquadramento, mas em que está chovendo mais forte e Alex está com uma expressão triste, acompanhado por uma música melancólica que parece extra-diegética. Novo corte e o vemos comprando um sanduíche, ainda dentro do carro, mas sem a chuva forte e sem trilha musical. Mais um corte e retornam a chuva e a expressão tensa do personagem. A música que acompanha o quarto plano é Outlaw (2005) de Cast King. Sua letra diz: É melhor fugir, Sam, melhor fugir. Ele tem 21 balas em sua arma. Há a hora de fugir, a hora de ficar. Não posso combatê-lo, Morrerei como um homem, Morrerei como um homem (tradução nossa). A música de Cast King se manifesta como uma possível interpretação dos pensamentos do personagem - a impossibilidade de lidar com a situação em que se encontra e a vontade de fugir, bem como o sentimento de ser um fora-da-lei (outlaw) - e se torna, de certa forma, uma hipérbole da situação, exagerando a ameaça que paira sobre Alex e o peso moral e o sentido de sua (possível) decisão – uma leitura pessoal dele sobre sua situação. Nesta sequência misturam-se cenas anteriores e posteriores ao crime. No entanto, ainda não sabemos que Alex o cometeu e que assistimos a imagens deslocadas de sua ordem temporal. A fragmentação musical, usada como procedimento expressivo e narrativo, marca a quebra temporal, enfatiza as mudanças emotivas e se soma a outras pistas que sinalizam o trânsito abrupto entre tempos característico do vai e vem da memória de Alex (presença e ausência da chuva, por exemplo). Mas este trânsito temporal e esta articulação entre fragmentos ainda não está clara para o espectador, pois ele desconhece o principal evento dramático da trama. Esta complexa colagem de fragmentos sonoro-imagéticos (que se torna complexa devido ao que faz com a narrativa do filme) não é percebida em um primeiro momento, mas somente a partir de um retorno ao filme. 161 Em outra cena, acompanhamos o personagem principal em uma conversa com um detetive que vai à escola para tentar obter informações sobre um assassinato (a principal questão do filme) e conversa com skatistas (sabem que houve uma morte - talvez um homicídio - e alguém lançou uma prancha de skate no rio na mesma noite). Ao término da conversa, Alex deixa a sala ao som da música The White Lady Loves you More (1995) de Elliot Smith. Ainda não sabemos, mas toda a história que acompanhamos são as anotações que Alex faz para uma amiga, Macy. Ela, em uma cena que aparece próximo ao fim do filme, sugere a Alex que escreva sobre o problema que o importuna como se escrevesse para alguém. Esta seria uma forma de lidar com a questão, mesmo que ele nunca chegue a mostrar suas anotações à pessoa que escolher como interlocutor. Macy se preocupa com Alex e estabelece uma ligação afetiva que ele não parece perceber. A letra da canção de Elliot Smith diz: Você mantém suas coisas em um lugar escondido, Mas eu sei que estão ali, em algum lugar. E sei que é para lá que você irá hoje à noite. Ficarei de fora, como antes. A dama [garota] branca te ama mais [...] Estou olhando para um punhado de sonhos partidos. Estou cansado de não me importar. Você apenas deseja que ela mude algo em você. Tudo é permitido. Você acorda no meio da noite De um sonho do qual não se lembra, Pisca como uma lanterna policial E diz que ela está à espera E eu sei a espera do quê. A dama [garota] branca te ama mais (tradução nossa). A canção fala sobre Alex e sua relação com Macy, embora esta relação não esteja clara para ambos. A fragmentação da narrativa se justifica pela tentativa de Alex de redigir o que se lembra da cadeia de eventos que viveu e que afetaram fortemente sua visão de mundo, valores e consciência de si. Ele ainda está mergulhado nessa trama que o envolve e o coloca em mudança, tateando para reconstruir-se em um todo coerente. Ao mesmo tempo, a canção expressa uma relação entre os personagens (Alex e Macy) da qual nenhum dos dois está completamente consciente (e nós, como espectadores, sequer cogitamos neste momento da história). 162 A sequência chave do filme aparece no momento em que Alex consegue rememorar o que se passou na noite em que foi só ao Paranoid Park e que teve como desfecho a morte do ferroviário. A sequência começa em uma conversa entre detetives e skatistas do colégio em que ele estuda. Em um dado momento, fotos do homem morto circulam pela sala e quando chegam às mãos de Alex, disparam a lembrança. Inicia-se uma das composições de Ethan Rose – uma das composições eletroacústicas usadas no filme – e acompanhamos a narração do personagem que diz: “Tentei tirar essa parte da minha mente, mas a foto trouxe tudo de volta”. A composição nos remete ao Park e à relação quase imaginária que Alex tem com o local (como veremos mais adiante). Acompanhamos os skatistas na pista e o encontro de Alex e “Scratch”, personagem que o leva para “pegar carona nos trens”. A música se sobrepõe aos ruídos enquanto vemos os dois à distância nos trilhos. Os ruídos se elevam até que ficamos apenas com os sons do trem e o diálogo dos dois, falando sobre o prazer de fazer o que estão fazendo. Ao serem vistos pelo vigia, começamos a escutar o terceiro trecho do quarto movimento da sinfonia nº9 de Beethoven, coro que se inicia com a frase: Sintam-se abraçados, vocês todos! (nossa tradução). A cena se passa em câmera lenta, enquanto o vigia corre atrás do trem e bate nos rapazes com uma lanterna para que desçam. Alex revida com o skate. O vigia tropeça e cai nos trilhos vizinhos, onde outra locomotiva se desloca, em sua direção. Não vemos sua morte e a música é eclipsada pelo ruído extremamente intenso do trem. A seguir, Alex e Scratch descem e correm para ver o que houve. A música cresce e há um ponto fortíssimo quando vemos Alex observando o corpo do vigia partido ao meio tentando se arrastar, ainda inconsciente de sua morte iminente. O grito do vigia fora escutado aos 12 minutos de filme, na memória de Alex em sua entrevista com o detetive94. Aqui escutamos o coro e logo em seguida o silêncio. Depois, temos Beethoven conectando cenas da lembrança e do momento em que elas se unem para reconstituir o evento principal do filme. O coro fica ainda mais forte enquanto acompanhamos os planos de Alex, do vigia e do detetive. A sequência termina com Alex fugindo, entrando momentaneamente no carro do vigia, que se encontra 94 Nesta cena, não sabemos o que houve com o personagem e o grito que escutamos aguarda, naquele momento, elementos para tecer seu sentido. 163 estacionado próximo a via férrea. Ele permanece um momento sentado ao volante, parecendo ainda tentar entender o que houve e, novamente foge. Há toda uma orquestração de tensão e de sentido na estruturação dos tempos, intensidades e conexões entre trilha musical e imagem. Os trechos em fortíssimo do coro marcam a epifania (se assim podemos denominá-la) de Alex. Neste momento, a memória real do fato lhe vem à mente e ele compreende o que realmente ocorreu e que gostaria de esquecer. Há uma escolha de deslocamento do foco de tensão ao ouvirmos unicamente os ruídos do trem durante o acidente, criando certo suspense que se resolve com a imagem do corpo partido e a presença do coro seguida pelo silêncio. A câmera lenta e a música colocam a situação próxima ao sonho, a uma lembrança quase-fantasia de Alex, como se não fosse algo real que ele vivera. Mas, além desses procedimentos, a composição de Beethoven traz ainda um comentário irônico para a cena. O texto cantado no terceiro trecho do quarto movimento da sinfonia nº9 de Beethoven diz: Sintam-se abraçados, vocês todos! Esse beijo é para todo o mundo! Irmãos, para além da cúpula de estrelas deve residir um pai amoroso. Vocês o reverenciam, milhões? Você percebe seu criador, ó mundo? Procurem-no para além da cúpula de estrelas! Ele certamente reside para além das estrelas. Os pequenos gestos bruscos entre os homens representados naquele microcosmo sobre os trilhos é esquecimento de um poder maior de união e razão de um dano irreparável causado por um homem a outro. Enquanto Alex provoca o homicídio, pensando apenas revidar um ataque, escutamos o clamor pelo amor entre os homens e a Deus. Portanto, percebemos que as canções são vetores de tempo que transitam entre momentos da narrativa de forma livre, criando aproximações cifradas entre o interno e o externo ao personagem, entre personagens e entre acontecimentos; ao mesmo tempo, modulam intensidades e articulações expressivas das situações através de seus comentários, solicitando que acompanhemos, atentos, o território de escuta que desenham. De certa forma, o uso das canções, da maneira que Van Sant o faz, provoca rupturas nas práticas cinematográficas de cerzidura das imagens, realizando ações que transcendem a 164 narrativa, ultrapassam as expectativas e experiências prévias do espectador, e o fazem através de procedimentos centrados no som. Ou seja, a atuação das canções como narradoras dos eventos e dos sentidos que fatos da trama possuem, mas que não são expressos pela própria narrativa e, além disso, são cifrados pelo deslocamento temporal complexo que as canções representam, as colocam em um papel distante do que normalmente exercem no cinema. Neste território de escuta, as canções não são complementos diretos ao que as imagens apresentam, mas estabelecem relações complexas com elas e ultrapassam as pistas que a própria narrativa nos dá, sendo elas mesmas a acrescentar sentidos que de outra forma não serão percebidos no filme. 6.5.4 As composições eletroacústicas e a manipulação expressiva do som Podemos identificar outro aspecto essencial na constituição do território de Paranoid Park: o uso de composições eletroacústicas que mesclam timbres tonais e sons do mundo (ruídos e vozes), articulando sobreposições e diálogos entre elementos díspares da banda sonora (faixas de ruídos, música e voz). Gus Van Sant utiliza três compositores: Ethan Rose (de Portland), Robert Normandeau e Frances White. Um exemplo desse procedimento pode ser observado próximo ao início do filme, após vermos Alex rabiscar o título (e local principal da trama) em seu caderno. Um fade in traz à tona uma composição eletroacústica de Ethan Rose. Vemos skatistas deslizando em uma pista ampla, com curvas, paredes altas, descidas e obstáculos. A música faz uma articulação temporal entre as imagens, unindo-as numa sequência de grande beleza a que assistimos, registrada em super8. Mas, além disso, define uma ambiência que atrelada às imagens em câmera lenta dos skatistas, ganha uma atmosfera quase irreal – de sonho. No entanto, como não se trata de uma composição tradicional, sua interpretação abre-se a certa fluidez através tanto dos timbres e dos tratamentos dados a eles, quanto dos ritmos que são compostos pela própria fratura eletrônica dos elementos usados em sua estruturação. Temos a sensação de um “fora do tempo” de uma suspensão que poderia ser o espelhamento da vivência subjetiva de Alex, embora não tenhamos, neste momento do 165 filme, elementos para uma certeza (mais a frente, esta leitura será confirmada). Paranoid Park é uma pista de skate construída por garotos com estórias de vida de grande sofrimento, como afirma Alex enquanto a olha pela primeira vez. Local que ocupa seu imaginário como quase místico, onde imagina estar a razão de boa parte de seus interesses naquele momento. Mas ao mesmo tempo, o desconhecido e o diferente: “Ninguém está preparado para o Paranoid Park”, lhe diz Jared (seu amigo) em outro trecho do filme. Esse espaço é real e simbólico para o personagem, onde deposita seu prazer e o desligamento do mundo comum e, ao mesmo tempo, espaço que deseja e materialização daquilo que ele próprio já é, mas do que precisa tornar-se consciente – parte de seu processo de “tornar-se si mesmo”. A música inclui uma voz que diz textos em francês e nos deixa indecisos: tentamos entender o que é dito ou apenas fluímos, imersos, esta experiência sonoro-visual? Somos convocados a prestar atenção a essa composição pouco usual e no modo como ela se articula às imagens que vemos. As pequenas rupturas inesperadas da própria composição nos sobressaltam e nos deslocam repetidamente de nossa viagem: transitamos continuamente sobre as rodas dos skates entre a realidade e o sonho. Ao final, entram elementos de Walk through resonant landscape nº2 de Frances White, com sons de pássaros e um tom eletrônico em que percebemos um ritmo cíclico, repetitivo, que dura poucos segundos. A segunda composição musical realiza uma ponte entre o sonho que vivíamos e o universo físico, material, de Alex que vemos na cena que se inicia: ele andando pelo campo. A presença dos sons dos pássaros na composição nos ajuda a realizar a transição do sonho para a realidade, territorializando o fragmento musical na localização geográfica do descampado. As composições eletroacústicas escolhidas exigem uma escuta que abarque a mescla estética de ruídos e sons de instrumentos musicais, bem como o trânsito entre elementos com funções diferentes na banda sonora (música, ruídos e voz) provocados pela collage de sons diversos que as composições trazem. Percebemos claramente que não há qualquer pretensão de se colocar a música no papel coadjuvante, submissa ás imagens, nem tampouco seguir princípios clássicos como a inaudibilidade e a facilidade de assimilação da música pelo espectador (Gorbman, 1987, p.73). Além disso, as composições de Ethan Rose, que se conectam às imagens dos skatistas no Paranoid Park durante todo o filme, passam a identificar um espaço particular tanto pessoal (Alex) quanto político (quem construiu a pista 166 e a frequenta, bem como seu lugar no contexto social da cidade de Portland). Estas conexões nos provocam tanto do ponto de vista sensorial (a sofisticada junção som/imagem) quanto simbólico. Assim, percebemos que a composição musical pode transitar entre elementos tradicionalmente diversos na banda sonora – música, ruídos e voz – articulando esteticamente materiais díspares e modulando continuamente sua relação com as imagens (realismo, discurso, prazer estético, sentido). Voltemos ao início do filme, onde Alex começa a relatar sua conversa com Jared, seu amigo, sobre o parque. Ouvimos claramente sua narração e, por baixo desta, vozes distantes, que são de sua conversa com o amigo, tratadas com filtros sonoros (que alteram seu espectro). Não conseguimos entender o que dizem, mas sim o que Alex narra sobre as vozes da cena. Mais a frente, aos 32 minutos, vemos o que parece ser a mesma cena. Agora, ela começa com os sons dos skates no asfalto e segue o diálogo entre os dois com seus sons realistas. Percebemos que se trata do mesmo episódio (e das mesmas imagens) abordado de duas maneiras diferentes através do som, a partir da manipulação do espectro sonoro das vozes: parece-nos, através da escuta atenta às modulações dos sons, que a memória do evento foi se tornando mais clara para Alex, o que faz com que seja rememorado de forma mais “objetiva” por ele na repetição da cena. Aqui, procedimentos de tratamento e manipulação sonora, que surgem nas pesquisas das músicas eletrônica e eletroacústica, estão “deslocados” de sua origem e atuam na construção de sentido da narrativa de Paranoid Park. Aos quarenta e cinco minutos do filme, após acompanharmos a sequência da morte do ferroviário, vemos Alex andando na chuva e escutamos seus pensamentos. As primeiras falas, embora ditas pelo personagem, são acompanhadas de um longo eco, caracterizando a subjetividade do que escutamos. No entanto, logo a seguir, começamos a escutar três vozes espalhadas pelo campo estereofônico: no centro temos a voz acompanhada pelo eco, representando Alex que vivencia naquele momento a situação; em cada lado do estéreo, ouvimos Alex, com voz seca e falando para si mesmo a partir de diferentes perspectivas sobre o que ocorreu e propondo diferentes linhas de ação: Centro - Ele tentou nos matar! 167 Direita - Chamo a polícia? Centro - Calma Alex, você não está em apuros. Direita – Telefono para casa? Esquerda – Já tive problemas piores. Direita – Ligo para alguém? Centro – Foi legítima defesa. Esquerda – Se disser a verdade, as coisas apenas piorarão. Esquerda – Aquilo foi real? Centro – As pessoas se defendem todo o tempo. Direita – Eu tenho que contar para alguém... As vozes vão se sobrepondo, em uma verdadeira espiral sonora, até que ao final da cena se unem dizendo: “Meu corpo não liga. Meu corpo só quer uma coisa, que eu dê o fora daqui”. A materialização sonoro-espacial do turbilhão de pensamentos que o invadem naquele momento, traz uma força inesperada para a cena, retratando fisicamente o caos mental que o atravessa. Não se trata de identificar uma voz over subjetiva, que expressa o mundo interno do personagem, mas de perceber como a construção espacial e temporal dos sons (a espiral crescente) materializa o que Alex vive naquele instante. Vale lembrar que a experimentação com a espacialização eletrônica das vozes se inicia na música ainda nos anos 1950, a partir de pesquisas deste procedimento como parte da composição musical, como dissemos no capítulo 5. O filme nos mostra dois momentos de rememoração do que se passa com Alex logo após o acidente em que se envolve. Principalmente o tempo que passa na casa de seu amigo, Jared. Aos 24 minutos, vemos uma cena curta em que Alex entra no chuveiro e é acompanhado por um trecho da composição de Frances White. Logo há um corte e ele está na sala, fazendo uma ligação telefônica. Aos 47 minutos do filme, Alex relembra esse mesmo momento. No entanto, temos uma cena longa no chuveiro, onde acompanhamos seu 168 desespero profundo. A composição musical é a mesma, de Frances White, mas ela se inicia quando Alex liga o chuveiro e aos poucos, num crescendo, se imiscui na cena. A imagem está em câmera lenta, e ouvimos um som em um glissando para o agudo e em um crescendo contínuo, somado aos sons de pássaros que vão adensando a música. O som se torna ensurdecedor e ouvimos outros ruídos que se somam a ele enquanto vemos Alex com as mãos no rosto. Ao fim da cena, parece-nos que escutamos os ruídos do trem, com grande intensidade, até o seu ápice e o corte abrupto para o silêncio, ou melhor, para sons de insetos (cigarras). A repetição da cena, após vermos o acidente por completo, parece fazer com que a lembrança se torne mais clara para Alex. A trilha musical (que mescla elementos díspares como tons musicais e ruídos diversos, de forma semelhante à de Ethan Rose comentada acima), se relaciona de forma material com o que acompanhamos na imagem enquanto construção narrativa. O crescente desespero de Alex, traduzido parcialmente pela sua imagem no chuveiro, é trazido à frente com toda sua potência através do glissando para o agudo e o crescendo do som que ouvimos na trilha, bem como a mescla com sons não- musicais que nos atordoam ainda mais. Mais do que uma conexão emotiva costurada a partir de elementos musicais definidos por toda uma história da música e do cinema, há uma analogia entre narrativa e som utilizado, o qual, em sua forma, seu acontecer no tempo, expressa o que se passa internamente com o personagem. Poderíamos dizer que a morfologia de ambos é que estabelece a conexão – o crescente desespero se conecta ao crescendo, ao glissando para o agudo que os sons realizam, e ao adensamento da própria trilha musical. Ou seja, a materialidade e a morfologia sonoras podem ser utilizadas como elemento de construção narrativa e cerzidura entre som e imagem. Por volta dos 12 minutos de filme, Alex fora chamado à diretoria. Ao chegar à sala determinada, há um detetive que o aguarda. Ambos conversam sobre o que ele fez na noite em que a morte do ferroviário se deu. Em um determinado ponto da conversa, após o detetive revelar o porquê das perguntas (o acidente), ouvimos um grito ao fundo. Não há contexto aparente para a presença do som naquele momento. Ele será entendido quando acompanharmos a morte do ferroviário e entendermos o que se passou com Alex (o grito, como dissemos acima, não será escutado na cena de morte, mas somente nesta, deslocado de seu contexto real). No entanto, naquele momento ele funciona como um som subjetivo 169 do personagem, sua memória (ainda pouco definida) do que viveu, pois ele é o único personagem que o escuta, dentro de sua cabeça. O som do grito que escutamos nessa cena necessita que estejamos atentos a ele, à construção fragmentária da narrativa, à subjetividade sonora do filme centrada em Alex e aos percursos caóticos de sua memória para que o entendamos. Além disso, não é possível entender seu sentido logo que o escutamos – somente a posteriori. Desta forma, o ruído do grito ganha dimensões múltiplas: é um flashforward (em relação à construção fílmica) de um flashback subjetivo do personagem que não é acompanhado por imagens. Logo antes da cena em que ouvimos I Can Help, quando Alex é chamado pelo alto- falante, a fala do professor cuja aula assiste se conecta à situação de Alex, mais uma vez de forma antecipatória. No quadro negro se lê: “Corpos que sofrem uma força sobre eles”. O professor declara: “os corpos variam, alguns são como esse, divididos...”. A fala tanto pode dizer respeito a Alex, sofrendo a pressão e dividido pelo peso da questão com a qual tem de lidar, quanto ao acidente, no qual o vigia da ferrovia é literalmente partido ao meio por um trem. De certa forma, podemos pensar que nestes últimos dois casos, se trata da aplicação de um procedimento que vimos/ouvimos em relação às canções – o trânsito temporal livre efetuado pelas canções – aqui pelos sons – e a articulação entre elementos internos e externos aos personagens; entre personagens e entre acontecimentos. No primeiro caso temos uma sobreposição temporal de passado interno ao personagem e futuro da diegese que difere parcialmente da trama temporal realizada pelas canções. No segundo, temos uma articulação entre a voz, a palavra escrita (imagem acústica), e um comentário que transitam no terreno metafórico (referência a um assunto que se assemelha às situações dos personagens ou eventos) da mesma forma que as canções. Procedimentos de uso do som semelhantes a esse se encontram em diversas cenas de Paranoid Park, contribuindo para a complexidade de sentido que é construída no filme através da articulação entre imagem e som. Aqui a afirmação feita com relação a 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle também é válida: as propostas de uso da música e do som em Paranoid Park podem servir para a criação de obras completamente diferentes. Van Sant se distancia da maior parte dos 170 preceitos hegemônicos quanto à estruturação de relações entre som e imagem (GORBMAN, 1987): inaudibilidade da música; ruídos com índices da realidade; unidade do filme reforçada na unidade da composição musical – lembremos que a unidade musical em Paranoid Park se dá por um procedimento que aposta, paradoxalmente, na diversidade. Diversos aspectos das relações entre som e imagem neste território de escuta não são percebidos em uma primeira experiência desavisada. Não se trata, sob este aspecto, de uma obra para o espectador desinteressado. Há que se envolver, mergulhar no filme mantendo-se atento às múltiplas articulações que faz. Paranoid Park realiza uma dupla ruptura: em relação às práticas hegemônicas de uso do som em trabalhos audiovisuais e em relação à produção de obras de fácil consumo, de absorção sem crítica e desinteressada – “Quanto mais difícil de integrar uma publicação nas informações acumuladas, mais original ela é, ou seja, mais interessante. E quanto menos ‘original’ ela for, mais confortavelmente poderá ser incorporada”. Ao acessar obras que exigem sua crítica e sua decifração “as informações que ele [espectador] acumula (ou seja, ele próprio) serão assim modificadas” (FLUSSER, 2007, p. 156). 171 6.6 Ruhr (2009) de James Benning O primeiro filme de James Benning a que assisti foi One Way Boogie Woogie (1977), no meu DVD player e som estéreo de minha velha televisão CRT. Havia baixado o filme de um site da internet onde era possível encontrar grande parte da filmografia de Benning. Ruhr veio da mesma fonte. Vi stills do filme e depois li uma entrevista do diretor em que falava sobre a experiência de escuta que tivera no túnel que aparece nas primeiras cenas do filme. O assisti/escutei em meu computador, mais uma vez com meus fones de ouvido. Em alguns momentos, o volume estava no máximo, para evitar qualquer intromissão de sons indesejáveis do ambiente externo, e escutar os mais sutis aspectos sonoros que as características acústico-tecnológicas dos meus fones eram capazes de reproduzir. James Benning é cineasta e editor dos próprios filmes há mais de 40 anos, contando com uma filmografia com cerca de 60 obras, entre curtas e longas metragens. Ruhr (2009) é um de seus filmes recentes e seu primeiro longa-metragem inteiramente filmado em formato digital e fora dos Estados Unidos da América, sua terra natal. O filme possui características que fazem parte da poética de Benning – as longas cenas filmadas com a câmera parada e com uma composição fixa do quadro – mas especificidades que o destacam dentro de nossa perspectiva: a riqueza sonora dos fragmentos de mundo registrado que o filme revela. James Benning aposta na percepção das pequenas mudanças que o mundo deixa aflorar quando olhamos para ele por um longo período de tempo – a compreensão dos espaços vem da entrega do olhar e da escuta que concedemos a eles. O diretor diz acreditar que “[...] o aprendizado se dá através da concentração e da paciência, e você tem que treinar para ter paciência e perceber. [...] quando você olha algo por um tempo longo e você 172 vê minúsculas mudanças, aquilo te faz começar a aprender algo95 (BENNING, 2004a, tradução nossa). O diretor, além de realizador, montador e técnico de áudio dos próprios filmes, é professor e ministra um curso intitulado: Looking and Listening. “Eu e os alunos da classe praticamos o prestar atenção”, diz Benning. “Gradualmente aprendemos que nosso olhar e nossa escuta estão codificados pelos preconceitos, que nós interpretamos o que vemos através de nossas experiências particulares, e aprendemos que precisamos confrontar nossos preconceitos e aprender a ver e escutar de forma mais clara”96 (BENNING, 2010, tradução nossa). Este pensamento reflete, curiosamente, aspectos do pensamento de John Cage acerca da relação da escuta com os sons e com a música que apresentamos, sucintamente, no capítulo 5. O filme Ruhr é composto por sete cenas com duração que vão de sete a sessenta minutos. A primeira parte do filme, identificada numericamente, reúne seis das sete tomadas. A segunda parte aborda unicamente a sétima, com sessenta minutos de duração. A região do Ruhr é uma área urbana policêntrica localizada na Nordhein-Westfalen (Renânia do Norte-Vestfália), com população de mais de cinco milhões de habitantes. É a maior concentração urbana da Alemanha, formada por diversas cidades industriais, circundada pelos rios Ruhr, Rhine e Lippe. As cidades mais populosas da região são Dortmund e Duisburg. A maior parte das cenas do filme foi realizada nesta última. Após o letreiro curto, em completo silêncio, vemos a identificação da primeira parte do filme. O primeiro plano apresenta um túnel vazio. A câmera se localiza em uma curva, onde desenhos em linha se articulam entre o teto e o solo: diversas faixas brancas, pretas, cinzas, densas ou fragmentadas, percorrem o espaço se deslocando até onde a vista desta perspectiva permite. O recorte da imagem é preciso e a composição pensada com extremo cuidado. 95 No original: [...] learning comes through concentration and patience, and that you have to train yourself to have that patience and to perceive. […] when you watch something for a long time and you see very minimal changes: you start to learn from that. 96 No original: The class and I practice paying attention. […] We gradually learn that our looking and listening are coded by our own prejudices, that we interpret what we see through our own particular experiences, and we learn that we need to confront our prejudices and learn to see and hear more clearly. 173 Trata-se de um túnel, o Matenastraße, na cidade de Duisburg, o principal centro metalúrgico da região alemã do Ruhr. Construído no início do século XX, conectando os distritos de Meiderich/Beeck e Alsum, serviu para circulação de bondes, pedestres e, posteriormente, de carros entre os distritos. Alsum foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial e seu último habitante deixou a cidade nos anos 1960. O túnel está localizado, atualmente, sob instalações da ThyssenKrupp Steel Europe, e estava sob seus cuidados até ser tombado pelo patrimônio histórico recentemente. ThyssenKrupp é a principal produtora de aço da Alemanha e uma de suas plantas em Duisburg ocupa uma área de cerca de 10km2. Em 2013, quatro anos após o lançamento do filme Ruhr, o túnel foi fechado e não há mais trânsito de pedestres ou carros em seu interior. O primeiro som que ouvimos parece uma buzina longa, uma espécie de sinalização, mas não sabemos de que se trata. Os sons provenientes de um veículo em deslocamento vão crescendo e se modificando (diferentes faixas de frequência são destacadas pelas reverberações do túnel e pelas modificações dos filtros sonoros provocados pela sua estrutura e pelo ponto em que “estamos”) até vermos uma Van vindo em nossa direção e passar ao largo. Após sua passagem, ouvimos o rastro sonoro que sua relação com o espaço deixa para trás, até restar apenas o ruído de pequenos pedaços de celofane arrastados pelo vento provocado por sua passagem. O segundo veículo é antecipado por um som grave, um drone, produzido por seu motor e acentuado pelo espaço do túnel. Ele se movimenta no sentido contrário, percebemos tão logo cruza o lado direito da tela. Cada veículo que passa produz uma massa sonora que ocupa uma faixa ampla de freqüências, a qual se origina em seus motores, o contato dos pneus com o asfalto, a reverberação do túnel, etc. Sons de outro veículo que se segue a este, se conectam a seu rastro, sobrepondo frequências em movimentos dinâmicos opostos (aumento e redução de intensidade) e construindo sequências de variação do perfil espectral97 dos sons que ouvimos – uma composição complexa que o mundo produz naquele espaço. 97 O espectro sonoro diz respeito às diferentes frequências (e suas intensidades) que compõem um som. Os materiais utilizados na construção de espaços arquitetônicos reagem a determinadas frequências de forma diferente, refletindo ou absorvendo parte delas – a reflexão pode resultar em ondas com fases inversas, que se 174 Um caminhão carregado de materiais não identificáveis acrescenta o ritmo dos objetos que carrega ao território de escuta que viemos constituindo. Os objetos balançam e se chocam uns contra os outros e contra a sua carroceria. Há momentos de silêncio, de suspensão, em que escutamos – em ppp e ao fundo - o que poderiam ser sons das fábricas acima do túnel e que o fazem vibrar. No entanto, poderiam também ser registros sonoros dos veículos que cruzaram ou iriam cruzar o túnel cujas imagens foram retiradas na montagem final do filme98 mas cujos sons permaneceram compondo sua paisagem sonora. Após uma longa pausa, uma bicicleta passa ao lado da câmera. Os drones se tornam mais presentes e antecipamos o surgimento de um veículo que não aparece. A intensidade dos sons de baixa freqüência que fazem o túnel vibrar parece crescer. Novamente uma buzina longa, duas, três. Percebemos que não são buzinas, mas sons metálicos, tônicos, aparentemente sintetizados e sons que parecem de instrumentos de sopro - talvez possam ser uma referência às sirenes acionadas nas plantas metalúrgicas acima do túnel - com emissões em duas freqüências que se sobrepõem e sinalizam, juntamente com o som de um pequeno pedaço de papel que gira no asfalto, o fim do primeiro trecho. O segundo plano do filme, que se inicia aos 8’04’’, nos coloca, abruptamente, em um ambiente fabril. Grandes tubos de metal estão dispostos, apoiados em estruturas serrilhadas, alongando-se em direção ao fundo da cena. A imagem, um recorte interno da planta metalúrgica, se compõe em cortes paralelos e perpendiculares ao olhar, em uma diversidade de formas geométricas que se ladeiam e formam uma rede complexa de chapas e tubos de ferro. Estamos dentro de uma planta metalúrgica da Hüttenwerke Krupp Mannesmann, construída ao sul de Duisburg em 1909 pela Schulz-Knaudt e posteriormente adquirida pela atual HKM. A empresa produziu, em 2007, cinco milhões de toneladas de aço, anulam, ou com fases iguais, que se somam. Desta forma, interagem com o resultado sonoro percebido – o aumento e diminuição de intensidade das freqüências que compõem o som em questão, ou seu cancelamento. Além disso, a relação do movimento do som com o percipiente também altera, tanto pelo efeito doppler quanto pela posição da fonte em relação ao microfone - filtros resultantes das curvas de sensibilidade do microfone utilizado e suas características formais (omini-direcional, cardióide, etc.). Desta forma, diversos fatores entram na composição sonora que é registrada e percebida no túnel filmado por Benning. 98 O diretor afirma em entrevista a Michael Guillén (BENNING, 2010) que usou a edição para tirar cenas registradas tanto neste trecho quanto em outros do filme. Benning registrou o túnel da rua Matena por duas horas e na montagem final esta sequência ficou com cerca de 7 minutos. 175 aproximadamente 12% de toda a produção alemã no período, seguindo seu próprio slogan: Steel. This is us – algo como “Aço. Isto é o que somos”. Hoje, multinacional com 20% das ações pertencentes à francesa Vallourec. O ruído contínuo de máquinas está presente desde o início. Ao fundo vemos um tubo incandescente atravessar o quadro. Tão logo inicia seu movimento, os tubos que se alinham à visão da câmera começam a ser transportados lentamente da esquerda para a direita, emitindo sons rascantes, sons percussivos, e estalos no complexo balé executado pelas máquinas para sua locomoção. As estruturas serrilhadas se alinham paralelamente e alternam elevação e deslocamento para fazer com o que os tubos sejam transportados. Cada pequeno movimento provoca uma série de emissões sonoras que passam a se integrar à composição sonora que escutamos. Diversos tubos incandescentes vão se alinhando ao fundo e, de tempos em tempos, um deles é elevado por um grande guindaste com vários ganchos e transportado em nossa direção por alguns metros. Tão logo um número se acumula, são transportados da direita para a esquerda por estruturas circulares sobre as quais se deslocam. Os sons característicos dos metais e do funcionamento maquínico que escutamos ora são síncronos aos eventos que vemos e ora parecem ser emitidos, não sabemos por que fonte, apenas para compor a organização temporal e a tessitura dos sons desta composição complexa. A variação rítmica das imagens e dos sons nos mantém hipnotizados pelo balé fabril e pela música que eclode sem ideias pré-concebidas, originando-se dos próprios “sons do mundo” – uma composição aos moldes cageanos realizada pelas máquinas em seu funcionamento repetitivo e automático. A HKM, com sua massa arquitetônica, maquínica e sonora foi, desde sua origem há cerca de 100 anos atrás, uma das responsáveis pelo percurso que a região do Ruhr seguiu: a industrialização intensa, centrada na produção de coque e na metalurgia. Desta forma, a empresa fez parte da definição dos territórios visuais e acústicos do Ruhr, bem como os modos de vida que elas representaram e representam. Mesmo as crises econômicas, a consciência ecológica e a necessidade de transformação das relações entre máquinas, exploração e construção capitalista do espaço, e ocupação humana não conseguiram retirar a importância e o poder da indústria na região. O filme de Benning recorta espaços que 176 revelam esta história político-social da região mesmo que não os enfoque da maneira documental tradicional. Há uma relação complexa entre tecnologia e ecologia em seus mais amplos sentidos que se expressa através dos recortes sonoro-imagéticos que o filme realiza. Há uma potência de transformação na observação das imagens e na escuta atenta dos sons – na constituição destes territórios de escuta – a qual transita entre a apreciação estética e o temor do que a tecnologia aliada à busca do lucro capitalista é capaz de realizar. Aos 15’40’’, a tela recorta uma floresta, onde vemos trechos de troncos no primeiro plano e partes das copas à esquerda e direita da tela mais ao fundo. O céu azul que preenche todo o espaço por trás das árvores parece transformá-las, silhuetas negras, em traços de um desenho abstrato. A mudança sonora é brusca e provocativa: dos ruídos contínuos das máquinas e seus ritmos variáveis, mas cíclicos, caímos no silêncio da floresta, onde temos a impressão de escutar somente a brisa contínua e suave que não se manifesta na imagem – nenhuma folha tremula. Alguns pássaros pipilam esporadicamente escondidos nas folhagens. Lentamente, aos 17’15’’, escutamos um ruído crescente que se inicia agudo, mas aos poucos amplia sua intensidade e sua distribuição em faixas de freqüências diversas: um avião cruza a tela de baixo para cima. O rastro sonoro que deixa parece dançar, indeciso, em movimentos do grave para o agudo e vice-versa, em glissandos inesperados. Ao final, resta o movimento forte dos galhos mais finos e a queda de inúmeras folhas em resposta ao deslocamento de ar que provocara em sua passagem – os sons das folhagens tomam o lugar do rastro da máquina. Após, lentamente, o silêncio se restabelece. Nossos ouvidos se abrem e nos tornamos atentos a toda e qualquer variação sonora que possa surgir naquele contexto. Os ruídos graves, esporádicos e distantes começam a ser percebidos, para além da brisa e dos sons, quase inexistentes, da mata. Aos 21’30’, percebemos que outro avião se aproxima – o crescente que se inicia num ppp distante, vai lentamente se adensando até alcançar o fff. A câmera o revela, com todo o seu vigor sonoro, aos 22’25”. O longo rastro sonoro, os glissandos, os galhos e folhas revoltos se repetem, até que o ritmo da floresta se restabelece – talvez possamos pensar que o ritmo aqui é justamente o da relação entre o espaço natural e sua transformação pelo humano. Afinal, o ritmo deste trecho da mata se transforma em uma articulação contínua com o ritmo do 177 aeroporto vizinho. As passagens dos jatos, demarcadas por horários rígidos, integram os fluxos de movimentos da floresta – as árvores, os pássaros, a circulação do ar, os sons e a toda a biodiversidade que ali possa coabitar. A mata está próxima do Aeroporto Internacional de Düsseldorf, terceiro maior da Alemanha, por onde passaram, no ano de 2016, 23,5 milhões de passageiros. Este é o aeroporto mais próximo da cidade de Duisburg. O aeroporto completou 90 anos de existência naquele ano. Benning não identifica a região de mata em que se encontra, mas há, próximo à pista de pouso do aeroporto, áreas de floresta cortadas pela Rua Kalkumer Schlossallee e pelo ribeirão Schwarzbach. O filme segue mostrando-nos esta articulação, cuja força sonora é inquestionável, através das repetidas passagens dos aviões sobre a floresta, permitindo-nos a percepção sutil das variações que cada passagem provoca – a duração, a diversidade das freqüências e das amplitudes, o rastro sonoro e a reação das árvores ao final – cada passagem é e não é igual à anterior - cada uma é sutilmente particular em sua manifestação. Benning solicita uma atenção ampla, mas concentrada – uma escuta múltipla que seja capaz de apreciar as sutis variações sonoras dentro das aparentes semelhanças perceptivas; uma escuta que possa coadunar o todo das variações em uma composição com movimentos de tensionamento e relaxamento que o recorte feito pelo diretor nos dá a ouvir; uma escuta que se permita compreender os sons do mundo como possível composição musical – com toda a sua carga de sentidos e implicações possíveis; mas também uma escuta sensível às complexas relações que aquele espaço manifesta entre seres e formas de vida, as quais se manifestam aqui de maneira inexorável através dos sons. O pensamento cageano sobre a riqueza dos sons cotidianos, da música que está a nossa volta (dentro e fora das salas de concerto), está presente em Ruhr e seu diretor, James Benning, recorta um pequeno pedaço de mundo para que possamos, com a extensão da duração cinematográfica, constituir um território de escuta a partir dos “sons por eles mesmos”. Aos 33’43” deixamos a floresta e nos instalamos em meio a um culto religioso em uma mesquita. A Marxloh Merkez Camii é uma das maiores mesquitas da Europa Ocidental e a maior da Alemanha, com espaço para 1.200 pessoas e uma minareta de 34 metros de altura, também localizada em Duisburg. Pela primeira vez ouvimos vozes: a recitação religiosa do Imã. Mais próximo, a tosse de um ou outro participante da congregação. Inicia- se um canto ritual que ecoa pelo espaço, e todos, que estavam de joelhos, se levantam, em 178 um mar de movimentos corporais e emissões sonoras que misturam tons graves de suas realocações no espaço, o farfalhar das roupas, a aspereza dos sons de limpeza das gargantas e curtos comentários com os vizinhos. A tela fica escura, preenchida pelas costas dos homens. O canto prossegue, com pequenas pausas e ruídos esporádicos. Em um dado momento, aos 36’20’, todos estão em pé e se curvam – sons suaves em uma pequena onda de movimento. Logo se ajoelham e se curvam, apoiando suas cabeças no chão - a onda sonora complexa, ou melhor, esta massa complexa99 é mais intensa e ocupa faixas mais graves do espectro de frequências. Os homens se curvam encostando a cabeça no chão. Voltam a ficar de joelhos. Se curvam novamente. Ficam de pé. Entre cada um dos movimentos, o silêncio. O canto ritual e suas interrupções determina os movimentos e se articula às sonoridades produzidas pelos corpos em movimento. A sequência prossegue, alternando momentos de pé, porem-se de joelhos, curvarem- se até o chão, erguerem-se e assim por diante. Por volta dos 39’, após uma longa pausa, os homens, de joelhos, movimentam, após indicação do canto, suas cabeças para direita e para a esquerda. Esperamos sons dos movimentos, e, numa região muito grave e intensidade ppp, os ouvimos – é claro que, se são reais, só poderiam ser provocados por pequenas vibrações na estrutura de apoio do microfone (única explicação possível), mas se conectam aos movimentos de forma quase natural. Em seguida, os homens se levantam e começam a se retirar, com uma produção diversa de ruídos e ondas sonoras resultantes de suas vozes, movimentos, passos, tosses, o farfalhar de suas roupas e os pequenos esbarrões de uns nos outros. Poucos permanecem se curvando, ajoelhando-se, levantando, numa continuação da prece e do ritual individualizada – o balé se amplia e os movimentos corporais e suas respectivas sonoridades trazem novos ritmos para a cena. Aos 41’30”, os deixamos. A imigração turca para a Alemanha foi incentivada desde os anos 1960, com um boom econômico e a necessidade de trabalhadores para preencher vagas que não interessavam aos alemães – seriam considerados “guest workers”, trabalhadores convidados 99 Massa complexa é um conceito criado por Pierre Schaeffer para identificar sons aperiódicos (que não possuem formas de onda com ciclos regulares), mas que podem ser localizados em certa faixa de frequências, certo domínio de alturas, mesmo não sendo um som tônico - sons produzidos por instrumentos musicais com altura localizável – notas musicais (MENEZES, 2004). 179 a ingressar na Alemanha para trabalhos mal pagos nas fábricas, sem a necessidade de saber ler ou falar alemão. A expectativa era de que morariam próximos às fábricas, em dormitórios e retornariam a seu país em alguns anos. Talvez por estas razões, passou-se muito tempo sem que houvesse a construção de uma política de imigração com foco na integração dos turcos e concessão real de direitos como cidadãos alemães. Por volta dos anos 1970, foi encenado o fim do recrutamento dos Turcos, mas os que lá estavam, permaneceram e começaram a deixar os dormitórios e habitar bairros como o Marxloh em Duisburg ou Neukölln em Berlim. As políticas de integração começaram a ser implementadas há menos de 10 anos (BARTSCH; BRANDT; STEINVORTH, 2010). A maioria da população turca alemã faz parte de classes sociais menos favorecidas economicamente, com menos acesso à educação e em parte desempregada. Este recorte de Benning demonstra uma intensidade presente em um dos aspectos centrais na organização dos modos de vida dos turcos e seus descendentes alemães que abraçam a religião muçulmana (a maioria, se não a totalidade). A mesquita e seus ritos de fé são centro organizador da cultura desta minoria dentro da Alemanha – trabalhadores que fizeram parte da construção do “progresso” industrial da região do Ruhr, mas que se tornaram indesejados tão logo a economia em declínio redesenhara o significado da palavra tolerância. O território de escuta que a cena nos convida a habitar expressa um misto de veneração, respeito, obediência, resignação, entrega e união. Por outro lado, podemos observar a reprodução da opressão e a segregação dentro da própria cultura muçulmana: não há mulheres no culto, somente homens adultos. O quarto plano, aos 41’30”, é o de um homem limpando diversos grafites pintados sobre uma escultura de Richard Serra, Bramme für das Ruhrgebiet (1998), laje metálica de 14,5m de altura, 4,2m de largura e 13,5cm de espessura – pesando 67 toneladas. Embora financiada pelos fundos estatais alemães, não foi produzida na região, pois não havia mais fábricas para sua confecção quando foi encomendada. Diversas obras de Serra foram encomendadas a empresas localizadas na região do Ruhr e ali produzidas. A escultura está localizada no topo do monte Schurenbachhalde, local que servia como depósito para os rejeitos resultantes da extração de carvão produzido nas minas da região, principalmente de Zollverein. O monte se localiza na cidade de Essen – no centro da região do Ruhr. Vemos apenas cerca de quatro metros de altura da escultura, centralizada no enquadramento. De 180 ambos os lados, a terra resultante dos depósitos de carvão no monte, de aspecto quase lunar, e ao fundo vegetações apagadas pela neblina do dia. O homem está de pé, mais à esquerda da escultura, trabalhando em sua limpeza cuidadosamente. Acompanhamos sua ação lenta, guiando, centímetro por centímetro, uma mangueira de alta pressão sobre a laje. O ruído produzido pela máquina é intenso e parece ocupar principalmente duas faixas de freqüência com texturas diferentes: uma grave e outra aguda – muito embora a faixa aguda varie mais que a grave. Poucos minutos depois, há uma interrupção momentânea, e nosso personagem sai de cena. Escutamos o ruído grave da máquina contínuo em suas pequenas oscilações cíclicas. Ele volta, coloca o que parece ser gelo seco na máquina algumas vezes. Logo após, retoma seu trabalho em outro ponto próximo ao que limpava, mudando sua posição em relação à escultura e à câmera. Os ruídos agudos parecem ganhar uma textura mais crepitante, apesar de manterem as sonoridades resultantes da pressão de ar do tubo. Seguimos ouvindo as pequenas variações da massa complexa e da ação do homem sobre a escultura – ambos estão em consonância em seus ritmos e sua constância. A obra Bramme für das Ruhrgebiet de Richard Serra faz parte de um processo de renovação e revitalização da área industrial do Ruhr que vem sendo efetivada desde os anos 1980 pela Internationale Bauausstellung Emscher Park (IBA). O foco inicial do projeto fora a revitalização do rio Emscher, principal depositário dos rejeitos da indústria metalúrgica da região. A proposta visava a “[...] reversão do abuso ecológico, estético e social da paisagem que se tornara evidente no próprio rio Emscher”100 (SANER, 2011, p. 271, tradução nossa). Diversos pontos foram focos temáticos do projeto: o Parque Paisagístico do Emscher; a reconstrução da bacia do Emscher; desenvolvimento urbano e residencial; conservação dos monumentos industriais e da cultura da indústria; criação de novas instalações para atividades sociais, culturais e esportivas. A atuação do projeto se dá em diversos tipos de espaços abertos e sua transformação, dentre os quais, áreas de depósito de rejeitos da mineração, como o Schurenbachhalde. Uma das formas de revitalização foi a transformação dos espaços em 100 No original: “[...]reversing the ecological, aesthetic, and social abuse of landscape that was truly evident in the physical being of Emscher”. 181 áreas onde seriam instalados monumentos que demarcassem uma nova atitude para com o entorno, mas não deixassem que a memória do passado industrial agressivo e devastador se perdesse. A escultura de Serra é um exemplo: feita em aço e colocada no topo do monte em uma área que mantém em seu solo a memória da devastação da mineração, e permite a visão de toda a região próxima – incluindo áreas transformadas e áreas que ainda abrigam indústrias, como a ThyssenKrupp Steel Europe. O Emscher Park se situa defronte ao Schurenbachhalde, do outro lado do rio. Mas além do sentido dado pela escultura mostrada na cena, Benning recorta a ação do “restaurador” que atua sobre ela, com uma força sonora intensa, para restituí-la à sua forma original. Os grafites se impuseram sobre a escultura e a transformaram em suporte para outra forma de expressão artística que ocupa o espaço público, mas não é considerada, na maioria dos casos, sequer arte, quanto mais monumento. O embate entre duas formas artísticas – uma institucionalizada, encomendada, financiada; a outra ilegal, representativa de uma minoria, suprimida pelo poder público – talvez possa ser compreendido como parte do processo de transformação das paisagens do Ruhr e das relações que constituem estes territórios em disputa – pensamos em territórios geográficos e acústicos. Aos 51’10” nos encontramos em uma pequena rua, aparentemente suburbana, de Essen, a Fritzstraße. Não há trânsito e ela é fechada em uma de suas extremidades, no lado oposto ao que a câmera se localiza. Ela está próxima ao sopé do monte de Schurenbachhalde. Escutamos um piano sendo tocado à distância e um ruído com pouca intensidade do que poderia ser o tráfego em ruas próximas. A rua é ladeada por pequenas construções de dois andares, que parecem sobrados geminados (só vemos os fundos das construções). Alguns carros estão estacionados mais à frente nas calçadas de ambos os lados da rua. Um homem aparece entre duas casas, vai ate um carro e retorna. Quase ao mesmo tempo, como se ensaiados, uma mulher sai detrás de outra casa, no lado oposto da rua, mais à frente e anda na direção contrária à câmera, para o fundo da cena. Ouvimos seus 182 passos distanciarem-se. Ficamos algum tempo ouvindo a melodia do piano101, baixa, até que sobra apenas o ruído indefinível. Logo mais, ouvimos passos, com pequenos estalidos agudos, e vemos uma senhora cruzar a cena juntamente com seu cão. Ela segue pela calçada do lado direito da rua até que não ouvimos mais seus passos, mas a vemos desaparecer por trás de um arbusto e, finalmente, entrar entre duas casas. Ouvimos alguns pássaros isolados, parecendo corvos grasnando ao longe. Outra pessoa aparece do lado esquerdo da cena, saída de outra casa. Não ouvimos seus passos e ela desaparece entre outras duas construções. Um carro vem pela rua a partir de seu fim e entra entre duas casas. Quase não ouvimos seu motor. A partir de um foco maior da atenção nos ruídos e no que se passa ao longe na cena, podemos observar o tráfego em um elevado localizado para além do fim da rua, mas onde, com a devida concentração, podemos ver a passagem rápida de veículos que o sobem e os respectivos sons que produzem. A Fritzstraße é uma rua com cerca de 200 m de comprimento, situada no sopé do Schurenbachhalde e próxima à Bundesautobahn 42 – rodovia federal 42 – que liga diversas cidades da área do Ruhr. A rua contém cerca de 20 casas geminadas, com uma ponta terminando no sopé do morro e dando lugar a uma trilha para caminhada e ciclismo (vê-se a sinalização) e a outra em uma avenida, a Heßlerstraße. Não há nada de particular, além do citado acima, nesta rua. Mas ela parece retratar justamente o aspecto mais pitoresco da vida comum na região – um misto do comezinho e do grandioso, do singelo e do complexo, do pacato e do conturbado – uma vez que seu quase-isolamento está atrelado a um entorno que se mostra o exato oposto do que ela parece traduzir: a rua tranquila, com casas pequenas, de gente simples, em silêncio, sem movimento; o entorno em transformação, originado pela indústria e seu crescimento, o processo de revitalização, etc. Enquanto a Fritzstraße, com seu nome comum, quase insignificante, permanece parada, suspensa no tempo e no espaço. Ela parece um oásis acústico, um território isolado das sonoridades e 101 Em entrevista a Michael Guillén (BENNING, 2010), Benning diz que “trapaceou” neste trecho do filme. Após terminar a filmagem da rua, ele escutou alguém tocando piano. Porém, como não o gravara, pediu a um amigo para brincar no piano e o registrou em áudio. Posteriormente, inseriu o áudio neste trecho do filme. 183 sentidos imponentes do entorno – o poder do capital e da indústria de mineração e metalurgia expresso nas potentes emissões sonoras das máquinas. Aos 56’25”, a cena é invadida por um ruído intenso de altura não definida, semelhante a um ruído branco. No entanto, aos poucos observamos que é possível perceber áreas de concentração de suas alturas e certa variação constante nas freqüências graves e médias. Curiosamente, enquanto ouvimos o ruído, a rua permanece quieta, exceto pelo tráfico no elevado ao fundo sempre constante, mas pouco perceptível. Aos 58’50” o ruído é interrompido abruptamente e continuamos sem saber o que o provocou. Ouvimos o som de um portão metálico ou algo semelhante se fechando. Uma pessoa aparece saindo das casas à direita da rua e caminha em direção ao fundo, mas seus movimentos não produzem sons audíveis. Logo após seu desaparecimento, já com sessenta minutos e 19 segundos de filme, se finda a primeira parte. A segunda parte se inicia após um pequeno trecho em que a tela fica escura e vemos a identificação do segundo capítulo. A tela é ocupada por um recorte de uma torre de produção de coque – combustível derivado da hulha (carvão betuminoso) que é utilizado nos alto-fornos da metalurgia – cercada pelo céu azul com nuvens cinza e uma luz de fim de tarde. Trata-se da Kokerei Schwelgern (Duisburg), planta de beneficiamento do coque cuja torre de resfriamento e estabilização, que vemos na imagem, possui cerca de 70m de altura. Tão logo a imagem aparece, escutamos o ruído contínuo de máquinas funcionando, o ruído de motores que parecem veículos, alguns pássaros cantando e, aparentemente fora de contexto, o barulho de um avião cruzando os ares em algum lugar próximo. Logo soam sirenes (1h 1’30”) que vão crescendo e sendo dobradas, num quase coro. Alguns segundos após serem interrompidas, o vapor branco/cinza/avermelhado é lançado intensamente pela torre. Primeiro pelo seu topo, e depois a vemos envolvida no vapor em toda a extensão. Os ruídos se mantém, mas parecemos escutar a força do vapor em seu súbito deslocamento. Novas sirenes e a fumaça se amplia ainda mais, tornando a torre invisível e ocupando quase toda a tela. Ouvimos uma buzina intensa, novos ruídos que parecem veículos, ouvimos rangidos metálicos que se inserem na trama cíclica que vinha nos acompanhando. A fumaça vai aos poucos se dissipando, embora ainda haja jatos que vêm das partes baixas. Escutamos um baque seco, mas intenso e, neste momento, a fumaça já se dissipou bastante, 184 permitindo que vejamos a torre. Logo se seguem mais sirenes e a torre quase não expele mais nenhum vapor. Os pássaros parecem retornar, numa reorganização dos sons deste território de escuta – muito embora tenhamos continuamente o domínio dos sons cíclicos das máquinas que não vemos. 1h10’27” - vemos um pássaro cruzar a tela. Logo depois, novamente o som que parece de um pequeno avião passando – porém, parecemos perceber um rastro longo, que se localiza em bandas graves das freqüências que ouvimos. Logo retornam as sirenes (1h12’05”) e todo o processo que havíamos visto se repete. Percebemos então que o som que parecia um avião faz parte do maquinário invisível que produz as imagens e sons incríveis que vemos no processo de produção do coque. A torre agora está envolta pela fumaça avermelhada/cinza – a coloração está alterada pela luz do sol mais próximo de se por. Após outro baque seco, a 1h15’00”, sons que escutáramos no túnel reaparecem: sons tônicos, aparentemente sintetizados se misturam aos ruídos que ouvimos, e trazem certa atmosfera para a cena, tirando-a momentaneamente da realidade mais crua em que se encontrava. O mesmo processo se repete diversas vezes enquanto observamos as mudanças de tonalidade da torre, da fumaça, do céu e as mudanças sonoras que a noite que chega traz: não escutamos mais os pássaros, embora os ruídos das máquinas permaneçam. Em alguns trechos, parece que escutamos alto-falantes proferindo chamadas curtas e incompreensíveis. Em outros, escutamos freqüências agudas e baques menos secos que não pareciam fazer parte dos sons iniciais que ouvíramos. A torre vai perdendo sua coloração marrom/avermelhada pelo fim do dia, se tornando aos poucos púrpura, índigo, até ser tomada pelo azul marinho. Por volta de 1h54’ vemos a última repetição do ciclo, escutamos sons tônicos, novas sirenes, e vemos a torre, quase negra contra um fundo de azul escuro, coberta pelo vapor intenso que toma quase toda a tela. A fumaça vai se dissipando lentamente e tudo parece envolto em um azul escuro, quase negro. Abruptamente, a cena fica muda e negra e o letreiro diz: filmado no Distrito do Ruhr. A torre de resfriamento e estabilização do coque CSQ da ThyssenKrupp, com seus 70 metros é parte da história da região. O início da produção de coque na localidade se deu ainda em 1897 – numa planta construída junto com o primeiro alto-forno e com 185 fornecimento articulado da mina de Gewerkschaft Deutscher Kaiser, todas do mesmo proprietário: August Thyssen. A produção cresceu e em 1926 já se tratava da principal planta de coque da Europa – juntamente com o crescimento da produção metalúrgica da região. Nos anos 1990, as questões ecológicas e a proximidade de áreas residenciais geraram a necessidade de criação de uma planta menos poluente e mais distante das moradias. A torre que vemos é resultado destes fatores e iniciou sua atividade em 2003, próxima à metalúrgica da ThyssenKrupp, mais distante das residências e menos poluente, embora com dimensões bem maiores que as tradicionais torres de resfriamento do coque. A empresa ficou ligada à história da região e o desenho da paisagem produzido pelo processo de industrialização do Ruhr é em parte resultado de intervenções diretas sobre ela – tanto através do processo de extração e beneficiamento do carvão e da produção metalúrgica, quanto das próprias construções arquitetônicas que solicitam – bem como sua dinâmica de funcionamento. A presença destas gigantescas instalações e seu maquinário em contínuo funcionamento é parte central da organização sonora local – deste ponto de vista, um território de escuta marcado pela poluição sonora, um ambiente extremamente low-fi, embora rico em ritmos, timbres e variações de tonalidades e frequências também contínuas. Benning afirma em entrevista que buscou um equilíbrio entre o sonoro e o visual, pois “os sete planos que você vê em Ruhr foram escolhidos tanto pelo som quanto pela imagem”102 (BENNING, 2010, tradução nossa). Cada recorte e sua composição interna são cuidadosamente pensados e o desenvolvimento dentro destes recortes (movimentos, direções, ângulos, mudanças de tonalidade, etc.) atrai nossa atenção para os pequenos movimentos, as ínfimas alterações visuais que podemos perceber. Da mesma forma, o som nos absorve, com toda a sua multiplicidade e complexidade, bem como com as variações temporais e sua organização horizontal e vertical dentro de cada cena (mesmo que este aspecto se deva ao som encontrado na paisagem, não à montagem do diretor – embora não possamos deixar de afirmar que se trata de um recorte sonoro cuidadosamente pensado por ele). 102 No original: “Those seven shots that you see in Ruhr were chosen as much for sound as they were for the image. Perhaps the very first chapter was inspired by the sound of the tunnel itself”. 186 Para Benning, o túnel de Matenastraße lhe deu a sensação de estar “dentro do tímpano de uma pessoa” (BENNING, 2010, tradução nossa). A riqueza sonora produzida pelas passagens dos veículos ali dentro transformou uma experiência aparentemente desinteressante em uma composição musical aleatória e complexa, trazendo ritmos, pulsações, variações dinâmicas, variações de altura e timbrísticas que solicitam modos diversos de escuta na construção deste território de escuta: “talvez todo o primeiro capítulo tenha sido inspirado pelo som do túnel”, afirma Benning (BENNING, 2010). Para que o trecho nos alcance, precisamos perceber (com atenção) os fenômenos acústicos ligados à arquitetura do túnel; compreender as interações sonoras como apreciáveis esteticamente; acessar as organizações timbrísticas, rítmicas, frequenciais e temporais que se constroem neste território de escuta; compreender a ambiência sonora, mesmo que não natural (no caso do túnel), como capaz de nos seduzir com sua riqueza e complexidade; compreender a potência sonora como igual à potência das imagens na constituição dos espaços filmados, como Benning os denomina; por fim, realizar conexões entre imagens e sons e os sentidos que podem ter na própria constituição do espaço amplo objeto do filme: a região do Ruhr. É claro que cada ouvinte/espectador estabelecerá relações diversas com o filme e com sua banda sonora. Como dissemos nos capítulos anteriores, a percepção e a constituição de um território de escuta, como o que emerge a partir dos recortes de Benning em Ruhr, depende de aspectos culturais e individuais, biológicos e aprendidos; depende da habilidade de tecer redes a partir da escuta – as quais em parte são dadas naturalmente (como capacidades) e em parte desenvolvidas com a experiência (em suas mais diversas manifestações). Cada cena de Ruhr estabelece relações entre som e imagem que, embora semelhantes, apresentam diferenças. As composições de cores e formas, os locais vistos, os movimentos internos das cenas, o assunto que trazem e cada uma de suas ambiências sonoras se conectam de forma particular, criando pontuações, síncreses, articulações rítmicas entre som e imagem que desenham blocos de sensações e sentidos específicos para cada uma delas. Por outro lado, a força sonora do mundo, dos “sons neles mesmos” cageana está presente em todas elas. O silêncio ocupado pelos sons ambientes, sons que simplesmente se dão, como fruto de interações entre seres (sejam eles inanimados ou vivos) – sons aleatórios que compõem estas paisagens, sem intenção ou pré-concepção musical – 187 nos remetem diretamente à estetização dos ruídos e à apreciação dos sons por eles mesmos. Mais do que um projeto de construção de uma banda sonora que provoque o ouvinte, Ruhr lida com a abertura (do próprio diretor e de todo os ouvintes/espectadores) para uma escuta profunda de seu entorno de forma a encontrar nele a expressividade sonora capaz de arrebatá-lo – uma escuta capaz de desenhar um território de escuta a partir dos sons e das imagens do próprio mundo: “tento representar minha própria experiência com os lugares – tentando definir como me sinto em relação a eles. Não penso que possa estar certo ou errado; a representação é o lugar filtrado pelos meus próprios olhos e ouvidos”103 (BENNING, 2004b, tradução nossa). A sequência de espaços presentes na montagem da primeira parte do filme também pode ser lida a partir de uma ordenação sonora dos trechos: a primeira cena apresenta oscilações sonoras e diversidade de momentos, com variações dinâmicas, silêncios (mesmo que não absolutos) e adensamentos – vamos identificá-la como variante - V; a segunda cena é marcada pela intensidade sonora contínua dentro da fábrica, embora haja variações. Vamos identificá-la como contínua- C; a terceira, nos arredores do aeroporto, é caracterizada pelos sons de baixa intensidade e certo vazio sonoro com irrupções intensas das passagens dos aviões sendo, pois, também variante - V; a quarta cena, na mesquita, é mais silenciosa, ritmada pelo canto do imã, mas com presença de massas sonoras em alguns trechos – V; a quinta cena, no monumento de Richard Serra, é composta pelo som contínuo da máquina que atua sobre o grafite com grande intensidade - C; o sexto plano, na Fritzstraße, retoma a baixa intensidade sonora e certa variação, com um pequeno trecho de ruídos intensos e contínuos - V. Assim, podemos perceber uma estrutura equilibrada quando observamos as características de organização sonora das cenas: V, C, V, V, C, V. Embora Benning talvez não tenha pensado nisso, a estrutura nos conduz através de movimentos de rarefação e adensamento sonoro, como se fosse uma composição musical com sons do mundo. A segunda parte, separada da primeira, possui sua própria sequência de adensamentos e 103 No original: “I’m trying to re-present my own experience with place – trying to define how I feel about it. I don’t think I can be right or wrong; the presentation is how it’s filtered through my own eyes and ears”. 188 rarefações que se repetem ciclicamente, criando uma macroestrutura que também se assemelha a uma composição organizada intencionalmente. Mas, além disso, as escolhas de Benning, embora tenham como ponto central a articulação imagético-sonora dos locais filmados em Ruhr, tocam também em questões simbólicas e políticas, embora não siga formatos documentais costumeiros. Todos os locais filmados possuem um sentido dentro do universo que está sendo retratado: o mosaico constituído pelas cenas e locais selecionados compõe uma visão do que seria o Ruhr – principal distrito industrial alemão até os anos 1980, centrado na mineração e produção metalúrgica. As transformações que a região sofreu em seu processo de industrialização e após seu declínio são parte da temática do filme, mesmo que não estejam presentes explicitamente. Cada espaço escolhido por Benning traduz um aspecto que é tanto factual quanto simbólico dentro da estruturação da região. Cada território de escuta desenhado pelo encontro entre imagens, sons e ouvinte está saturado de sentidos. 189 Considerações Finais Chegar ao fim de um percurso. Voltar ao início. Dados os primeiros passos, as portas não se abrem mais para os mesmos espaços. Talvez possamos até mesmo pisar as mesmas pegadas. Mas talvez surjam, aqui e ali, novas pedras no sapato... Quando iniciei esta pesquisa, tentava articular uma infinidade de experiências pessoais em relação ao som e às imagens em movimento. Experiências que me conduziram por campos múltiplos, que incluíam escutas também diversas. Queria dizer algo da minha história que fizesse sentido para outros além de mim. Uma história onde a criação sonora e o pensamento sobre o som no cinema estiveram sempre presentes. Constitui inúmeros territórios de escuta nas ruas, em casa, no “solipsismo” de meu walkman, nos encontros com amigos, nas salas de cinema, nas exposições de Arte Sonora, entre tantos outros espaços. Carrego comigo estes territórios, como parte de uma memória que armazena as linhas que tecerão os que ainda estão por vir. Pensar os territórios de escuta no cinema me deslocou não só de um lugar de ouvinte treinado – tanto pelas referências teóricas quanto pelas obras em si – mas também de um lugar epistemológico. Percebi que há inúmeras maneiras válidas de se conhecer algo, assim como há inúmeras maneiras válidas de se pensar algo. O conceito de território de escuta é uma porta de entrada, que busca apenas aglutinar a multiplicidade de relações que se dão na e através da escuta. Pensar sua presença nas obras cinematográficas é propor uma maneira de escutarmos o cinema que nos permita que sejamos deslocados pelo que ouvimos, que procuremos espaços outros que se conectam, mesmo de forma quase improvável, ao que ali vivemos e escutamos. Os filmes que analisei nesta pesquisa são exemplos de experiências onde fui tocado pelas obras através da escuta – uma solicitação que me conduziu para espaços diversos e me fez tentar compreender a experiência criando territórios – portos seguros – que abrigassem a minha perplexidade. A presença do pensamento sonoro que se funda no campo da música, 190 mas ultrapassa fronteiras, é patente em todos os filmes investigados, assim como a densidade de temas e maneiras díspares de abordá-los por meio das articulações entre imagem e som. O curta-metragem Ceci Est Un Message Enregistré dialoga diretamente com as perspectivas da música eletroacústica, uma vez que sua banda sonora foi criada por um compositor deste estilo musical. Pudemos ver como a discussão política do filme é abordada sonoramente num território de escuta que tem como base a colagem de ruídos – na verdade, uma colagem de materiais específicos, selecionados cuidadosamente pelo compositor – e a mescla de criação sonora e manipulação eletrônica dos sons que realizam um diálogo provocador com as imagens, potencializando a narrativa. Ordinary Matter é uma proposta peculiar de território de escuta, na qual uma diversidade de conceitos e campos teóricos se conectam. A escolha do silabário de Wade- Giles e o modo de elocução estabelecem conexões com as imagens que deslocam a percepção de um e de outro – Frampton cria seu próprio sistema de articulação entre som e imagem que não só nos instiga, mas nos coloca em movimento, tanto no pensamento quanto na sensibilidade. In Order not to be Here traz os sons do mundo, a colagem de ruídos, a criação eletrônica e a exploração da sonoridade e do léxico104 do poder de controle como parte da constituição de seu território de escuta. As sutis composições sonoras que Stratman e Drumm inserem neste território são parte central do desenho de relações entre som e imagem e ampliam o poder da narrativa de nos provocar. Podemos extrair de 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle um conjunto de princípios sonoros que mesclam poética e política, distanciando-se das práticas convencionais de junção som/imagem. O pequeno sistema que podemos desenhar a partir da obra de Godard revela-se como uma contraposição à padronização capitalística, abrindo espaço para o inaudível, para o ensaístico sonoro (tanto quanto imagético), para o silêncio como expressão, bem como para o deslizamento entre os elementos díspares – imagem e som – 104 É importante não nos esquecermos que os jargões e o léxico utilizado por determinados grupos, como a policia e a mídia neste caso, manifestam características sonoras particulares: ritmos, cadências, andamento e sonoridades das palavras, frases e modos de elocução. 191 onde um pode ocupar o espaço do outro. Desta forma, há uma relação entre a proposta de território de escuta deste filme e a criação de sistemas musicais autorais. O filme Paranoid Park de Gus Van Sant propõe um território de escuta que conjuga a collage de estilos musicais, de referências cruzadas à história do cinema e suas trilhas musicais, de canções que atuam como narradores, bem como composições eletroacústicas e manipulações eletrônicas dos sons do mundo com fins expressivos e narrativos. Há uma pluralidade de modos de uso do som e de sua articulação às imagens que cria um território móvel, aberto a novas conexões e percursos de apreciação. Ao mesmo tempo, se conecta a diferentes aspectos do pensamento sobre o som que se origina nas pesquisas musicais do século XX. Ruhr é um filme que aposta na potência dos sons do mundo e em nossa capacidade de escutá-los e apreciá-los tanto esteticamente como simbolicamente – encadeando história, cultura, política, geografia e música. Embora a referência cageana se destaque, a pluralidade de sentidos que impregna estes sons, que se organizam em verdadeiras composições musicais aleatórias, é surpreendente. A maneira como nossa escuta é solicitada e a profundidade e atenção ao detalhe que o filme pede são transformadoras – nos lançam em modos pouco usuais de escuta que nos retiram completamente da passividade costumeira da escuta cinematográfica. Assim sendo, acredito que esta pesquisa possa contribuir com estudos que vem sendo realizados no campo do som no cinema e no campo da escuta, pesquisas que apontarão ainda outras maneiras e perspectivas de abordagem para estes temas. Mas acredito ainda mais que as discussões desenvolvidas neste trabalho tenham a capacidade de nos fazer tirar um pouco da poeira que se acumula em nossas orelhas e auxiliar-nos a desenvolver nossos territórios de escuta para além dos espaços que a padronização das indústrias culturais nos reservam. O que este trabalho propôs foi justamente sacudir um pouco esta poeira que nos atrapalha de escutar o que está à nossa volta. E principalmente, fazê-lo neste espaço único que é a sala de cinema. Penso poder entrar em uma sala de cinema e me permitir uma escuta sensível e aberta, onde as teorias emergem, mas não necessariamente antecipam o que encontrarei, como nos diz Cage. 192 Bibliografia ADORNO, T.W. Indústria Cultural e Sociedade. 2a edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2002. ADORNO, T.W. e EISLER, Hanns. El Cine y La Música. Madrid: Editorial Fundamentos, 1976. AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In Outra Travessia. Ilha de Santa Catarina, 2º semestre, 2005. ALTMAN, Rick. The Evolution of Sound Technology. In: WEIS, Elisabeth. e BELTON, John. (Orgs.). Film Sound: theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985, pp 44/53. BALÁZS, Béla. Theory of the Film: sound. In: WEIS, Elisabeth. e BELTON, John. (Orgs.). Film Sound: theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985, p. 116-125. BARTHES, Roland. A Escuta. In BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1995, pp 217-229. BARTSCH, Matthias, BRANDT, Andrea e STEINVORTH, Daniel. Turkish Immigration to Germany: A Sorry History of Self-Deception and Wasted Opportunities. Spiegel Online. 2010. Disponível em Acesso em: 26 set 2016. BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. BENNING, James. Ruhr: a few questions for James Benning. Darkest Americana & Elsewhere. 2010. Entrevista concedida a Michael Guillén. Disponível em Acesso em: 16 jul. 2017. BENNING, James. Sight and Sound Magazine interviews James Benning. 2004a. Entrevista concedida a Nick Bradshaw. Disponível em < http://www.bfi.org.uk/news-opinion/sight-sound- magazine/interviews/sight-sound-interview-james-benning> Acesso em: 16 jul. 2017. 193 BENNING, James. Think About Seeing: a conversation with James Benning. 2004b. Entrevista concedida a Danni Zuvela. Disponível em < http://sensesofcinema.com/2004/the-suspended- narrative/james_benning/> Acesso em 16 jul. 2017. BIRTWISTLE, Andy. Cinesonica: sounding film and video. Manchester: Manchester University Press, 2010. BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. BORDWELL, David. Narration in the Fiction Film. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985. BORDWELL, David e THOMPSON, Kristin. Fundamental Aesthetics of Sound in the Cinema. In: WEIS, Elisabeth. e BELTON, John. (Orgs.). Film Sound: theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985, pp 181-199. BOULEZ, Pierre. A Música Hoje. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. ______. Notes of an Apprenticeship. Nova Iorque: Knopf, 1968. BULL, Michael. The Audiovisual Ipod. In STERNE, Jonathan. The Audible Past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press, 2003, p. 197-208. BURCH, Noël. On the Structural Use of Sound. In BURCH, Noël. Theory of Film Practice. Princeton: Princeton University Press, 1981, p. 90-101. CAGE, John. Silence: lectures and writings by John Cage. Hanover: Wesleyan University Press: 1973. ______. De Segunda a Um Ano: novas conferências e escritos de John Cage. Rio de Janeiro: Editora de Livros Cobogó, 2013. CAMPOS, Haroldo. Bere’Shith: a cena da origem. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. CARDULLO, Bert. European Directors and Their Films: essays on cinema. Lanham, Toronto, Plymouth: The Scarecrow Press, 2012. 194 CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G. Gilli, 2013. CAVALCANTI, Alberto. O Som. In Filme e Realidade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957, p. 149-180. CHION, Michel. Audio-Vision: sound on screen. New York: Columbia University Press, 1990. ______. El Sonido: música, cine e literatura… Barcelona: Paidós, 1999. ______. La Voz em El Cine. Madrid: Ediciones Cátedra, 2004. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. CORY, Mark E. Soundplay: The polyphonous tradition of german radio art. In KAHN, Douglas; WHITEHEAD, Gregory. Wireless Imagination: sound, radio and the avant-garde. Massachusetts: The MIT Press, 1994, p. 331-371. COX, Christoph e WARNER, Daniel (Orgs.). Audio Culture: readings in modern music. Nova Iorque e Londres: The Continual International Publishing Group, 2004. CUTLER, Chris. Plunderphonia. In COX, Christoph e WARNER, Daniel (Orgs.). Audio Culture: readings in modern music. Nova Iorque e Londres: The Continual International Publishing Group, 2004, pp. 138-156. DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte: a arte contemporânea e os limites da história. 1ª reimpr. São Paulo: Edusp, 2010. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. reimpr. São Paulo: Editora 34, 2000. ______ Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. 2ª reimpr. São Paulo: Editora 34, 2005. ______ O Que é a Filosofia? 2ª reimpr. São Paulo: Editora 34, 1996. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. 195 DOANE, Mary Ann. A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço. In XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003, p. 457-475. ______. The Voice in the Cinema: The Articulation of Body and Space. In WEIS, Elisabeth. e BELTON, John. (Orgs.). Film Sound: theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985. ECO, Humberto. Obra Aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. EMMERSON, Simon. The Language of Eletroacoustic Music. Hampshire e Nova Iorque: Palgrave, 1986. FELD, Steven. Sound and Sentiment: birds, weeping, poetics, and song in Kaluli expression. 3rd ed. Duke: Duke University Press, 2012. FISCHER, Lucy. Enthusiasm: from kino-eye to radio-eye. In WEIS, Elisabeth e BELTON, John. (Orgs.). Film Sound: theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985, p. 247- 261. FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ______ O Universo das Imagens Técnicas: Elogio da Superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Michel Foucault. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. 3ª Ed. São Paulo: Forense Universitária, ______. Vigiar e Punir. 35a ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. FRAMPTON, Hollis. Episodes from a Lost History of Movie Serialism. Film Studies, n. 4, verão de 2004, p. 104-118. Entrevista concedia a Deke Dusinberre e Ian Christie. ______. Notes on Composing in Film. October vol. 1, Spring, 1976, p. 104-110. ______. On Ordinary Matter. 1972. Disponível em . Acesso em: 14 out 2015. 196 FRAZIER, James. In Gregorian Mode. In EBRECHT, Ronald (Org.). Maurice Duruflé, 1902- 1986: the last impressionist. Lanham, Maryland, and London: Scarecrow Press, 2002, p. 1-64. GARCIA, Marília. Engano Geográfico. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: narrative film music. Bloomington & Indiana: Indiana University Press, 1987. GRIFFITHS, Paul. Modern Music: a concise history. 1a reimpr. London: Thames and Hudson, 1996. GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 1996 HAESBAERT, Rogério. Concepções de Território para Entender a Desterritorialização. In SANTOS, Milton e BECKER, Bertha K. Território, Territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 2ª ed. Niteroi: DP & A, 2006. HANDZO, Stephen. Appendix: A narrative glossary of film sound technology. In WEIS, Elisabeth. e BELTON, John. (Orgs.). Film Sound: theory and practice. New York: Columbia University Press, 1985, p. 383-426. HEIDEGGER, Martin. Sobre o “Humanismo”. In Os Pensadores Vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 345-374. HERÁCLITO DE ÉFESO. Doxografia, Fragmentos e Crítica Moderna. In SOUZA, José Cavalcante (Org.). Os Pré-Socráticos. São Paulo: Victor Civita, 1973, p.79-142. HOLMES, Thomas. Electronic and Experimental Music: Technology, music and Culture. 3rd ed. Nova Iorque e Londres: Routledge, 2008. HOSOKAWA, Shuhei. The Walkman Effect. In STERNE, Jonathan. The Audible Past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press, 2003, p. 104-116. IHDE, Don. Listening and Voice: phenomenologies of sound. 2nd ed. Albany: State University of New York Press, 2007. 197 KAHN, Douglas. The Latest: Fluxus and Music. In KELLY, Caleb (org.) Sound. London/Cambridge: Whitechapel Gallery/MIT Press, 2011, p. 28-42. KALINAK, Kathryn. Film Music: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2010. KELLY, Michael R. Phenomenology and Time-Consciousness. Disponível em: . Acesso em: 30 out 2017. LA ROCHELLE, Réal. L’Atelier de conception et de réalisation sonores (ONF/1971-1980): partition sonore filmique pour un "nouvel opéra". 24 Images, n. 60. Montreal: 1992, p. 29- 31. LABELLE, Brandon. Acoustic Territories: sound culture and everyday life. Nova Iorque/Londres: Continuum International Publishing Group, 2010. LANDY, Leigh. Understanding the Art of Sound Organization. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2007. LAZZARINI, Victor. Elementos de Acústica. Apostila. Londrina: Universidade Federal de Londrina, 1998. LEVITIN, Jacqueline. One or Two Points About Two or Three Things I Know About Her. In CONLEY, Tom; KLINE, T. Jefferson. (Ed.) A companion to Jean-Luc Godard. Oxford e Malden: Wiley-Blackwell, 2014. E-book, pp 233-250. LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A Estetização do Mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. LÓPEZ, Fernando. Profound Listening and Environmental Sound Matter. In COX, Christoph e WARNER, Daniel (Orgs.). Audio Culture: readings in modern music. Nova Iorque e Londres: The Continuum International Publishing Group, 2004, p 82-87. MACHADO, Arlindo. Pré-Cinemas e Pós-Cinemas. Rio de Janeiro: Papirus, 2002. MARQUES, Ana Martins. A Arte das Armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. MENEZES, Flo. Música Eletroacústica: história e estéticas. São Paulo: Edusp, 1996. 198 ______. A Acústica Musical em Palavras e Sons. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. MINDLIN, Betty e Narradores Indígenas. Terra Grávida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999. MUSSER, Charles. The Emergence of Cinema: the american screen to 1907. Nova Iorque: Simon & Schuster Macmillan, 1990. NANCY, Jean-Luc. À Escuta. Outra Travessia. Florianópolis, n. 15, p. 159-172, 2013. NARBONI, Jean; MILNE, Tom (Ed.).Godard on Godard: critical writings by Jean-Luc Godard. Nova Iorque e Londres: Da Capo Press, 1972. NORMAN, Katharine. Real-World Music as Composed Listening. In A Poetry of Reality: composing with recorded sound. NORMAN, Katharine (Org.). Contemporary Music Review. Vol. 15, partes 1 e 2. Amsterdam: Overseas Publishers Association, 2005. NYMAN, Michael. Experimental Music: Cage and beyond. 2a ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. PALOMBINI, Carlos V. de L. Pierre Schaeffer Typo-morphology of Sonic Objects. Tese (Doutorado) Durham University, Durham, 1993. ______. A Música Concreta Revisitada. Revista Eletrônica de Musicologia. Vol. 4/junho de 1999. Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná. ______. A Noção de Arte-Relé em Pierre Schaeffer. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2017. ______. O Estabelecimento do texto do Ensaio sobre a rádio e o cinema: estética e técnica das artes-relé de Pierre Schaeffer a partir de documentos inéditos de 1941-1942. Cópia cedida pelo autor. Belo Horizonte, 2009. PENHA, Eli Alves. Territórios e Territorialidades: considerações histórico-conceituais. In Revista Brasileira de Geografia. v 59, n. 1, jan/jun, p. 7-21, 2005. 199 PINTO, Paulo Roberto Margutti. A dialética da linguagem e do silêncio em Ludwig Wittgenstein e Clarice Lispector. Disponível em . Acesso em: 18 mai. 2016. PLATÃO. A República. 3ª Edição. Belém: EDUFPA, 2000. PLUTARCO. Como Ouvir. São Paulo: Martins Fones, 2003. RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Editora Ática, 1993. RAMOS, Nuno. Junco. Rio de Janeiro: Editora Iluminuras, 2011. RANCIÈRE, Jacques. O Dissenso. In NOVAES, Adauto (Org.) A Crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 367-382. REYNAUD, Bérénice. Essay. 2003. Disponível em < https://hammer.ucla.edu/exhibitions/2003/hammer-projects-deborah-stratman/> Acesso em: 16 ago. 2017. REZNIKOFF, Iegor. Sound Resonance in Prehistoric Times: a study of Paleolithic painted caves and rocks. Disponível em . Acesso em: 15 ago. 2015. RODMAN, Ronald. The Popular Song as Leitmotif in 1990s Film. In Changing Tunes: the use of pre-existing music in film. POWRIE, Phil e STILWELL, Robynn. (Orgs.) Aldershot: Ashgate Publishing Limited, 2006, p. 119-136. RUSSOLO, Luigi. The Art of Noise: futurist manifesto, 1913. Nova Iorque: UbuClassics, 2004. SANER, Mehmet. Transforming the Industrial Landscape: large scale artworks in IBA Emscher Park. Disponível em . Acesso em: 14 jul. 2017. SANTOS, Milton. Da Totalidade ao Lugar. 1ª reimpr. São Paulo: EDUSP, 2008. 200 SAQUET, Marcos Aurélio. Abordagens e Concepções de Território. 3ª ed. São Paulo: Outras Expressões, 2013. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. SCHAEFFER, Pierre. Tratado de Los Objectos Musicales. 4ª ed. Madrid: Alianza Editorial, 2003. SCHAFER, R. Murray. A Afinação do Mundo. São Paulo: Editora UNESP, 1997. SCHOENBERG, Arnold. Style and Idea. Nova Iorque: Philosophical Library, 1950. STERNE, Jonathan. The Audible Past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press, 2003. STERRITT, David. The Films of Jean-Luc Godard: seeing the invisible. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. STOCKHAUSEN, Karlheinz. Da Situação do Metier. In MENEZES, Flo. Música Eletroacústica: história e estéticas. São Paulo: Edusp, 1996, p. 59-72. TAVARES, Gonçalo M. 1: poemas. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2005. TORRANO, Jaa. O Mundo Como Função das Musas. In HESÍODO. Teogonia: a origem dos Deuses. São Paulo: Iluminuras, 1992. 2ª ed, p. 11-101. TRUAX, Berry. Acoustic Communication. Norwood: Ablex Publishing Corporation, 1984. VANDSO, Anette. Listening to the world: Sound, media and intermediality in contemporary sound art. Sound Effects. Vol.1, n. 1, Dinamarca, 2011. VATIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. WEISS, Allen S. Frampton's Lemma, Zorn's Dilemma. October n. 32, 1985, p. 118-128. WILKINS, Margaret Lucy. Creative Music Composition. Oxon/Nova Iorque: Routledge, 2006. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 3ª Ed. São Paulo: Edusp, 2001. 201 YIN, John Jing-hua. Fundamentals of Chinese Characters. New Haven: Yale University Press, 2006. ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, 2004. Digitalização e disponibilização da versão eletrônica: Centro Interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação – Universidade de Campinas. Filmografia ANTONIONI, Michelangelo. Deserto Rosso: dilema de uma vida. Itália: 1964. 117 min. Color. Música eletrônica: Angelo Rizzoli. Música não eletrônica: Tonino Cervi. ASPAHAN, Pedro. Matéria de Composição. Brasil: 2013. 82 min. Color. Música: Guilherme Antônio Ferreira, Teodomiro Goulart e Oiliam Lanna. BÉDARD, Jean-Thomas. Ceci est un Message Enregistré. Canadá: 1973. 10 min. Color. Música: Alain Clavier. BENNING, James. Ruhr. Estados Unidos da América: 2009. 120 min. Color. Som: James Benning. CAMPOLINA, Clarissa. Notas Flanantes. Brasil: 2009. 47 min. Color. Som: O Grivo. CLARKE, Shirley. Bridges Go Round. Estados Unidos da América: 1958. 4 min. Color. Teo Macero e Bebe e Louis Barron. FELLINI, Federico. Amarcord. Itália: 1973. 123 min. Color. Música: Nino Rota. ______. Julieta dos Espíritos. Itália: 1965. 137 min. P&B. Música: Nino Rota. FRAMPTON, Hollis. Ordinary Matter. Estados Unidos da América: 1972. 35 min. P&B. Som: Hollis Frampton. GODARD, Jean-Luc. 2 ou 3 Choses que Je Sais D’Elle. França: 1967. 87 min. Color. 202 ______. Made in USA. França: 1966. 90 min. Color. Música: vários. HITCHCOCK, Alfred. Quando Fala o Coração. Estados Unidos da América: 1945. 111 min. P&B. Música: Miklós Rózsa. ______. Um Corpo que Cai. Estados Unidos da América: 1958. 128 min. Color. Música: Bernard Herrmann. MCLAREN, Norman. Synchromy. Canadá. 7 min. Color. Música: Norman McLaren. MIZOGUCHI, Kenji. Os Amantes Crucificados. Japão: 1954. 102 min. P&B. Música: Fumio Hyasaka e Tamezô Mochizuki. RUTTMANN, Walter. Wochenende. 10 min. P&B. SANT, Gus Van. Paranoid Park. Estados Unidos da América: 2007. 80 min. Color. Música: vários. SCHNEEMANN, Carolee. Plumb Line. Estados Unidos da América: 1968-71. 15 min. Color. Som: Carolee Schneemann. SCOTT, Tony. Incontrolável. Estados Unidos da América: 2010. 98 min. Color. Música: Harry Gregson-Williams. Desenho de Som: Ann Scibelli. SHIN, Kin e LENG, Buan. Amongst Black Orchids. Singapura: 2003. 6 min. Color. Música: Krzysztof Penderecki. SPIELBERG, Steven. Minority Report: a nova lei. Estados Unidos da América: 2002. 145 min. Color. Música: John Williams. STRATMAN, Deborah. In Order not to be Here. Estados Unidos da América: 2002. 23 min. Color. Música: Kevin Drumm. Desenho de Som: Deborah Stratman. STUART, Mel. A Fantástica Fábrica de Chocolate. Estados Unidos da América: 1971. 160 min. Color. Música: Leslie e Anthony Newley. WATT, Harry. North Sea. Reino Unido: 1938. 32 min. P&B. Música: Ernst Hermann Meyer. Som: George Diamond e Alberto Cavalcanti. 203 WHITNEY, James e WHITNEY, John. Five Film Exercises. Estados Unidos da América: 1943-44. 20 min. Color. Música: John e James Whitney. WILCOX, Fred M. Planeta Proibido. Estados Unidos da América: 1956. 98 min. Color. Música: Bebe e Louis Barron. WISE, Robert. The Day the Earth Stood Still. Estados Unidos da América: 1951. 92 min. P&B. Música: Bernard Hermman. WRIGHT, Basil e WATT, Harry. Night Mail. Reino Unido: 1936. P&B. Música: Benjamin Britten. ZEMECKIS, Robert. De Volta para o Futuro. Estados Unidos da América: 1985. 116 min. Color. Música: Alan Silvestri. Desenho de Som: Tak Ogawa.