UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PAULA YOSHINO VALÉRIO A ESPECIALIZAÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO NA TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS NO BRASIL BELO HORIZONTE 2012 1 PAULA YOSHINO VALÉRIO A ESPECIALIZAÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO NA TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS NO BRASIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre, elaborada sob orientação do Professor Doutor Humberto Theodoro Júnior. Área de concentração: Direito e Justiça. Linha de pesquisa: Poder e cidadania no Estado Democrático de Direito. BELO HORIZONTE 2012 2 PAULA YOSHINO VALÉRIO A ESPECIALIZAÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO NA TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS NO BRASIL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como exigência para a obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Direito e Justiça Linha de pesquisa: Poder e cidadania no Estado Democrático de Direito. Data de defesa: ______________________ Resultado: __________________________ BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Prof. Dr. Humberto Theodoro Júnior Universidade Federal de Minas Gerais _____________________________________ Prof. Dr. José Rubens Costa Universidade Federal de Minas Gerais _____________________________________ Prof. Dr. Fernando Gonzaga Jayme Universidade Federal de Minas Gerais 3 Aos meus pais. 4 “Os problemas que existem no mundo não podem ser resolvidos a partir dos modos de raciocínio que deram origem aos mesmos.” (A. Einstein) 5 RESUMO Trata-se de pesquisa desenvolvida no curso de Mestrado do Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Avançando no estudo do Direito Processual Coletivo, tem por objetivo demonstrar que as peculiaridades do objeto e do procedimento do mandado de segurança coletivo tornam indispensável a existência e a utilização preferencial desse instrumento específico de tutela, apesar de existirem outros instrumentos e técnicas genéricos aptos a resguardar, ao menos em tese, os mesmos direitos por ele tutelados. Tem como marco teórico a reafirmação da instrumentalidade processual, mais especificamente a idéia da especialização da tutela jurisdicional, teoria apresentada por Humberto Theodoro Júnior e também desenvolvida por José Roberto dos Santos Bedaque, que sustentam a necessidade de que a tutela jurisdicional seja diferenciada, a fim de propiciar ao jurisdicionado provimentos compatíveis com as exigências do direito material. A pesquisa tem caráter interdisciplinar, com investigações nos campos do Direito Constitucional, Direito Processual, Direito Processual Coletivo e Direito Comparado, a partir das vertentes jurídico-dogmática e jurídico-sociológica. Palavras-chave: Mandado de Segurança Coletivo – Direito Processual Coletivo – Especialização. 6 ABSTRACT This is the research developed in the course of the Master’s Degree Program of Law of the Federal University of Minas Gerais. Advancing in the study of Collective Procedural Law, it aims to demonstrate that the peculiarities of the object and procedure of collective writ of mandamus must exist and make preferential use of this specific instrument of protection, although there are other generic procedural possibilities and techniques able to protect, at least in theory, the same rights protected through it. It has as theoretical boundary reaffirming the instrumentality of procedure, more specifically the idea of specialization of the jurisdiction, the theory presented by Humberto Theodoro Jr. and also developed by Jose Roberto dos Santos Bedaque, supporting that the need for judicial protection is differentiated, in order to provide the citizen of results which are compatible with the requirements of substantive law. The research is interdisciplinary, with research in the areas of Constitutional Law, Procedural Law, Collective Procedural Law and Comparative Law, from the legal-dogmatic and legal- sociological aspects. Keywords: Collective Writ of Mandamus – Collective Procedural Law – Specialization. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10 PARTE I 1. TUTELA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A LUTA CONTRA OS EXCESSOS DO PODER PÚBLICO ........................................................................................................ 18 2. INSPIRAÇÕES DO DIREITO COMPARADO ............................................................ 23 2.1. Direito francês ................................................................................................................ 24 2.2. Direito anglo-saxão ........................................................................................................ 27 2.3. Direito norte-americano ................................................................................................ 30 2.4. Direito mexicano ............................................................................................................ 34 3. TRADIÇÕES LUSO-BRASILEIRAS ............................................................................. 38 4. INSUFICIÊNCIA DO PROCESSO TRADICIONAL BRASILEIRO ........................ 44 4.1. Dualidade de jurisdição ................................................................................................. 45 4.2. Utilização dos interditos possessórios ........................................................................... 47 4.3. Ação sumária especial .................................................................................................... 49 4.4. A doutrina brasileira do habeas corpus ........................................................................ 50 5. SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA ....................... 54 6. O MANDADO DE SEGURANÇA COMO INSTITUTO TIPICAMENTE BRASILEIRO ....................................................................................................................... 66 PARTE II 7. TUTELA DE DIREITOS OU INTERESSES COLETIVOS ........................................ 69 7.1. Direitos ou interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos . .................................................................................................................................................. 78 8. ANTECEDENTES LEGAIS E JURISPRUDENCIAIS DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO ................................................................................................. 89 9. SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO ..... .................................................................................................................................................. 94 10. DIREITO COMPARADO ............................................................................................. 98 8 11. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO ............................................................ 115 11.1. Objeto material do mandado de segurança coletivo ............................................... 116 11.1.1. Distinção entre direitos e interesses .......................................................................... 116 11.1.2. A polêmica em torno dos tipos de direito tuteláveis ................................................. 121 11.2. Relação entre legitimação e objeto material ............................................................ 133 11.2.1. Legitimação das organizações sindicais, entidades de classe e associações ............. 136 11.2.2. Legitimação dos partidos políticos ........................................................................... 146 11.3. Relação entre objeto material e coisa julgada ......................................................... 157 11.3.1. Limites subjetivos da coisa julgada do mandado de segurança coletivo .................. 161 a) Direitos individuais homogêneos – divisibilidade e coisa julgada ................................... 161 b) Direitos difusos e coletivos em sentido estrito – indivisibilidade e coisa julgada ............ 164 11.3.2. Modos de produção da coisa julgada do mandado de segurança coletivo ................ 170 11.3.3. Extensão da coisa julgada do mandado de segurança coletivo ................................. 172 11.4. Outros aspectos do regime do mandado de segurança coletivo ............................. 179 11.5. Problemas decorrentes da posição adotada e soluções ........................................... 186 11.6. Fundamentos da posição adotada ............................................................................. 197 12. O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO COMO NOVA GARANTIA CONSTITUCIONAL, ÚNICA NO DIREITO COMPARADO ..................................... 206 PARTE III 13. MODERNAS TÉCNICAS E INSTRUMENTOS PROCESSUAIS .......................... 215 14. EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL E ESPECIALIZAÇÃO PROCEDIMENTAL ........................................................................................................... 225 14.1. Maior adequação e eficiência do mandado de segurança ...................................... 245 14.2. Maior adequação e eficiência do mandado de segurança coletivo ........................ 249 PARTE IV 15. A PESQUISA ESTATÍSTICA ..................................................................................... 252 15.1. O objetivo da pesquisa e os dados analisados .......................................................... 254 15.2. As limitações da pesquisa .......................................................................................... 255 15.3. Amostra ....................................................................................................................... 256 9 15.3.1. Dados coletados ........................................................................................................ 256 15.3.2. Dados solicitados ...................................................................................................... 259 15.4. O caráter científico da pesquisa ................................................................................ 260 15.5. Outras questões observadas na coleta de dados ...................................................... 261 15.6. Resultados e conclusões da pesquisa estatística ...................................................... 264 15.6.1. Dados coletados ........................................................................................................ 264 15.6.2. Dados fornecidos ....................................................................................................... 269 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 272 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 278 ÍNDICE DAS TABELAS E GRÁFICOS (ANEXO) ........................................................ 292 10 INTRODUÇÃO O sistema brasileiro de garantias constitucionais recebeu grande incremento com o advento da Constituição Federal de 1988, que, além de ter deslocado o título que cuida de direitos e garantias fundamentais para o início da Carta 1 , incluiu os direitos coletivos no rol dos direitos fundamentais e ampliou sobremaneira os remédios constitucional-processuais, criando o mandado de segurança coletivo (art. 5°, LXX), o mandado de injunção (art. 5°, LXXI), o habeas data (art. 5°, LXXII), a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, §1º), ampliando o âmbito de cabimento da ação popular (art. 5°, LXXIII) e concedendo status constitucional a ação civil pública (art. 129, III). A plenitude de acesso à jurisdição no Brasil, garantida pela Constituição Federal de 1988 no seu art. 5º, inciso XXXV, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, é incrementada pela existência de inúmeras garantias de direitos fundamentais, dentre elas o mandado de segurança coletivo, sobretudo pela abrangência e âmbito de correção que essa garantia proporciona. O mandado de segurança é uma ação constitucional que serve para resguardar direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, que seja negado, ou mesmo ameaçado, por autoridade pública ou particular no exercício de atribuições do Poder Público. Na sua modalidade coletiva pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional ou organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados. Embora seja comum a afirmação de que o mandado de segurança é residual, uma vez que o próprio constituinte limitou seu âmbito de cabimento, o mandado de segurança é um dos mais importantes instrumentos de que dispõe o cidadão brasileiro na garantia de suas 1 Na Constituição Federal de 1946, o Capítulo II, “Dos Direitos e das Garantias individuais”, correspondia aos artigos 141 a 144 da Carta, do Título IV. Antes vinha o Título I, “Da Organização Federal”, composto pelo Capítulo I, “Disposições Preliminares”, Capítulo II, “Do Poder Legislativo”, Capítulo III, “Do Poder Executivo” e Capítulo IV, “Do Poder Judiciário”, o Título II, “Da Justiça dos Estados”, o Título III, “Do Ministério Público” e o Título IV, “Da Declaração de Direitos”, composto também pelo Capítulo I, “Da Nacionalidade e da Cidadania”. Em termos bastante semelhantes se apresentava a Constituição Federal de 1937, que continha, em seus artigos 122 e 123, a previsão “Dos Direitos e Garantias Individuais”. Também a Constituição Federal de 1934, no Título III, “Da Declaração de Direitos”, havia o Capítulo II, “Dos Direitos e das Garantias Individuais”, artigos 113 e 114. Na Constituição de 1891, somente no Título IV, “Dos Cidadãos Brasileiros”, havia a Seção II, “Declaração de Direitos”, artigos 72 a 78. E na Constituição Federal de 1824, somente no Título 8º, “Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros”, artigos 173 a 179. 11 liberdades. O universo de direitos tuteláveis por meio do mandado de segurança é bem mais amplo do que o dos demais remédios constitucionais, abarcando todos os direitos com exceção ao de liberdade de locomoção (de ir, vir, ficar e permanecer) e ao de obtenção ou retificação de informações ou de dados pessoais constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público. Desde, é claro, sejam violados por ato do Poder Público ou particular no exercício de atribuições públicas. Zaneti Júnior (2001, p. 27), referindo-se aos benefícios da maior amplitude da jurisdição brasileira, garante que o cidadão brasileiro é um dos mais aparelhados para o fortalecimento da democracia decorrente do controle do Poder Público através da revisão judicial e das tutelas específicas que lhe são disponibilizadas. O mandado de segurança é proclamado por muitos juristas como um instrumento único de controle jurisdicional da Administração Pública no Direito Comparado. Nesse caso, essa exclusividade do Direito brasileiro deve ser observada com mais intensidade no mandado de segurança coletivo. De acordo com Celso Agrícola Barbi (1996, p. 58), o mandado de segurança coletivo foi o instituto criado pela Constituição de 1988 que mais sofreu resistência dos grupos conservadores nos trabalhos da Constituinte, porque, conforme lhe informado pelo Deputado Bernardo Cabral, “eles perceberam que era um instrumento de grande eficácia para o cidadão se defender de exageros e ilegalidades praticadas por autoridades públicas”. Por outro lado, como garantiu Barbosa Moreira (1991, p. 194), o mandado de segurança coletivo foi a inovação mais sensacional da Constituição de 1988. O caminho percorrido até a consagração do mandado de segurança coletivo em nosso regime constitucional, no entanto, foi longo. O mandado de segurança tradicional foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição de 1934, suprindo a necessidade de um instrumento adequado a resguardar as liberdades pessoais. Antes disso, a doutrina havia tentado, infrutiferamente, se utilizar de diversos institutos para tutelar os direitos pessoais, que só vieram a ter efetiva guarida com a criação do mandado de segurança. Desde então o regime do instituto, com parca regulamentação legal, foi sendo construído pela doutrina e jurisprudência, resultando, nos dias atuais, num mecanismo com sistemática extremamente diferenciada e com utilização consolidada no ordenamento jurídico brasileiro. Somente no final do século XX, mudanças na sociedade e no âmbito do direito material exigiram mudanças no direito processual, resultando na criação de novos e variados mecanismos de tutela coletiva no Direito brasileiro. O Direito Processual, acompanhando a 12 profunda transformação sofrida pela sociedade moderna, que passou a vivenciar a experiência de relações massificadas, deixou para trás as tendências individualistas na resolução dos conflitos, em busca de uma efetividade maior do processo, em que se valoriza o acesso à justiça e, conseqüentemente, a solução coletiva dos litígios. Foi nesse contexto que surgiu o mandado de segurança coletivo. No Brasil, essa modernização do Direito Processual se deu, segundo Zavascki (2008, p. 15), em duas fases ou ondas bem distintas, uma primeira onda de reformas 2 , iniciada em 1985, caracterizada pela introdução de instrumentos destinados a dar curso a demandas de natureza coletiva e tutelar direitos e interesses transindividuais e a própria ordem jurídica abstratamente considerada; e a segunda onda reformadora, que se desencadeou a partir de 1994 e teve por objetivo, não o de introduzir mecanismos novos, mas o de aperfeiçoar ou ampliar os já existentes, por meio de reformas pontuais no Código de Processo Civil. O objeto do presente estudo, o mandado de segurança coletivo, sofreu impacto dessas reformas processuais. Se a consequência evidente foi a própria criação do instituto, esse não foi, no entanto, o único impacto das reformas. O regime do mandado de segurança coletivo também foi afetado pelas reformas pontuais do Código de Processo Civil, seja de forma positiva, ao ampliar a eficácia de seus provimentos, seja de forma negativa, ao potencializar a utilização de mecanismos substitutivos. Dentre os mecanismos implantados com as recentes reformas processuais se destacam a generalização da tutela antecipada, a ampliação do campo de tutelas específicas, incluindo a possibilidade de tutela inibitória atípica e o alargamento do campo de atuação dos instrumentos de tutela coletiva. O que era possível apenas em determinados procedimentos especiais, como no mandado de segurança, ações possessórias e outras, passou a ser admitido em qualquer ação, inclusive nas ações coletivas. Atualmente existem no ordenamento jurídico brasileiro instrumentos e técnicas processuais genéricos capazes de tutelar, de forma coletiva e célere, o particular contra o Estado, inexistentes no contexto de criação do mandado de segurança e da sua modalidade coletiva. A ação ordinária, potencializada pelo mecanismo da antecipação de tutela genérica e pelas tutelas específicas, passou a ser um substituto considerável do mandado de segurança 2 São marcos importantes dessa primeira etapa, citados por Zavascki (2008, p. 15), as leis regulamentadoras das chamadas “ações civis públicas”, a Lei nº 7.347/1985, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; a Lei nº 7.853/1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência; a Lei nº 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente; a Lei nº 8.078/90, que dispõe sobre a proteção do consumidor; a Lei nº 8.429/92, que dispões sobre a probidade na administração pública; a Lei nº 8.884/94, que dispõe sobre a ordem econômica; e a Lei nº 10.741/03, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso. 13 individual e coletivo. Embora existam no ordenamento jurídico brasileiro instrumentos e técnicas processuais genéricos capazes de resguardar, ao menos em tese, os mesmos direitos tuteláveis via mandado de segurança coletivo, acredita-se que tais instrumentos e técnicas não são tão adequados e eficientes quanto ele. O objetivo principal da pesquisa foi demonstrar que as peculiaridades do objeto do mandado de segurança coletivo e de seu procedimento tornam imprescindível a existência e utilização preferencial desse instrumento específico de tutela. Além disso, foi analisado em que medida questões de ordem histórica e sociológica podem ter influenciado na consolidação do instituto no Brasil e em sua ampla utilização, tornando-o mais especializado que os demais na tutela de direitos coletivos. O trabalho foi construído com base na idéia de especialização da tutela jurisdicional, posta em evidência pela atual fase da ciência processual, em que se questiona a efetividade do processo tradicional, em busca de um processo mais adequado e justo. Tratou-se o mandado de segurança coletivo como um instrumento processual especializado na garantia de determinado tipo de direito material coletivo, aquele violado ou ameaçado pelo Poder Público, possuidor de um regime adequado às necessidades desse direito e à importância que assume a tutela jurisdicional envolvida na sua defesa. Quanto aos setores do conhecimento nos quais se inseriu a pesquisa, foi adotada uma investigação interdisciplinar, com a coordenação de conteúdos pertencentes a disciplinas diferenciadas, dentre elas o Direito Constitucional, o Direito Processual, o Direito Processual Coletivo e o Direito Comparado. Essa união real de conteúdo auxiliou no tratamento do objeto do estudo, ao possibilitar uma análise global e completa do instituto do mandado de segurança coletivo. A união de conteúdo das diversas áreas do Direito pode ser observada em todos os capítulos deste trabalho. Em primeiro lugar, foi necessário estudar o mandado de segurança tradicional, atualmente previsto no art. 5º, LXIX da Constituição Federal de 1988. Quanto ao instituto tradicional, priorizou-se o contexto histórico-jurídico de sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro. O objetivo não era estudar o instituto jurídico do mandado de segurança tradicional, por essa razão não se deu atenção a aspectos importantes de seu regime, cujo tratamento seria indispensável em qualquer trabalho específico sobre o instituto, como a definição de sua natureza jurídica, requisitos constitucionais, hipóteses de cabimento, sistema recursal etc. Alguns desses aspectos, como seu objeto, principais características e procedimento acabaram sendo tratados, mas sem profundidade, na medida contribuíram para 14 a compreensão do regime do mandado de segurança coletivo. Assim, priorizou-se o contexto de sua criação e foram feitas referências pontuais ao seu regime, na medida em que pudessem contribuir para os objetivos da pesquisa. Num segundo momento, tratou-se da evolução da tutela dos interesses coletivos no Direito brasileiro e da criação da modalidade coletiva de mandado de segurança. Foram analisadas as peculiaridades do direito material resguardado pelo mandado de segurança coletivo, adentrando na polêmica questão das categorias de direitos por ele tutelados: se coletivos stricto sensu, individuais homogêneos e também difusos. As relações entre o objeto material, a legitimação e a coisa julgada do mandado de segurança coletivo também foram analisadas, além de outros aspectos pontuais do seu regime. Verificou-se se existem institutos similares ao mandado de segurança coletivo no Direito Comparado ou se realmente se trata de instituto único do ordenamento jurídico brasileiro. Tendo sido a conclusão no segundo sentido, também foram avaliados fatores de ordem social ou histórica a determinar essa exclusividade do Direito brasileiro. Foi empregada a investigação histórico-jurídica na análise do contexto de surgimento do mandado de segurança e de sua modalidade coletiva no ordenamento jurídico brasileiro. A importância da pesquisa da historiografia, fornecendo dados seguros destinados a subsidiar a exegese atual do conjunto sistêmico, é ressaltada por Leonel (2002, p. 40): O estudo da história do direito permite e objetiva, de certo, acompanhar desde o passado as instituições jurídicas, procurando verificar como surgiram, como evoluíram, como se transformaram e como desapareceram, dando a exata compreensão do que nelas surge de contingente, entrelaçado ao espaço territorial onde vigoraram as disposições normativas analisadas. É necessário ao historiador, tanto na pesquisa como na exposição, proceder atrelado pelo conhecimento do direito, sendo capaz de surpreender e de compreender suas diferentes manifestações de acordo com as peculiaridades de cada período e as características de cada sociedade, e consequentemente chegar à correta e adequada compreensão do momento atual nos estudos da ciência do direito. Além da investigação histórica, foi utilizada a investigação jurídico-comparativa na identificação de institutos jurídicos similares ao mandado de segurança individual e coletivo no Direito Comparado. O Direito Comparado enriquece as pesquisas históricas, contribuindo para o melhor conhecimento e aprimoramento do direito nacional. Se não podemos puramente transplantar sistemas jurídicos adequados, geográfica, cultural e politicamente a certo país, a outro situado em contexto absolutamente distinto (“imitação acrítica de modelos estrangeiros” – BARBOSA MOREIRA, 2004, p. 7), por outro lado “é justo tirar proveito dos conhecimentos 15 ali auferidos para cotejo e subsídio num outro sistema determinado” (LEONEL, 2002, p. 39). Tratar do instituto do mandado de segurança e não fazer referência aos institutos semelhantes existentes na Inglaterra, Estados Unidos e México empobreceria a pesquisa. No caso do mandado de segurança coletivo, indispensável a referência ao direito norte-americano das class actions, que muito contribuiu para a construção do nosso sistema de processo coletivo, na medida em que o legislador brasileiro colheu subsídios importantes desse sistema, particularmente no que diz respeito às ações destinadas à garantia de direitos individuais homogêneos. Por fim, na terceira parte, foram apresentados os instrumentos e técnicas processuais genéricos capazes de resguardar, de forma coletiva e célere, os direitos do particular contra o Estado. Foram identificados fatores que tornam, na visão da pesquisadora, o mandado de segurança coletivo instrumento processual mais adequado e eficiente para a tutela coletiva do particular contra o Poder Público. Nessa terceira parte é que se encontra o núcleo da dissertação. A relação do Direito Constitucional e do Direito Processual é evidente em todo o estudo e nos dois sentidos vetoriais da relação. De acordo com Dinamarco (2005, p. 27), a visão analítica das relações entre processo e Constituição se desenvolve em dois sentidos vetoriais: a) no sentido Constituição-processo, tem-se a tutela constitucional deste e dos princípios que devem regê-lo, alçados a nível constitucional; b) no sentido processo-Constituição, a chamada jurisdição constitucional, voltada ao controle da constitucionalidade das leis e atos administrativos e à preservação de garantias oferecidas pela Constituição (jurisdição constitucional das liberdades), mais toda a idéia de instrumentalidade processual em si mesma, que apresenta o processo como sistema estabelecido para a realização da ordem jurídica, constitucional inclusive. A tutela constitucional do processo tem o significado e escopo de assegurar a conformação dos institutos do Direito Processual e o seu funcionamento aos princípios que descendem da própria ordem constitucional. Dessa conformação deságua a idéia do justo processo, tratada na terceira parte deste trabalho. Por sua vez, no âmbito da jurisdição constitucional estão, além dos mecanismos destinados à verificação da constitucionalidade das leis, todos “os processos especiais destinados a assegurar a certos direitos fundamentais do homem uma tutela jurisdicional particularmente forte e diferenciada” (DINAMARCO, 2005, p. 30), dos quais, obviamente, faz parte o do mandado de segurança. 16 Dinamarco (2005, p. 32) também ressalta a instrumentalidade do processo em relação à Constituição: (...) toda a jurisdição constitucional se caracteriza como conjunto de remédios processuais oferecidos pela Constituição, para prevalência dos valores que ela própria abriga. Eis, então, de modo visível, a relação de instrumentalidade desses remédios para com a Constituição. É lícito concluir, ainda, que todo o direito processual constitucional constitui uma postura instrumentalista –, seja nessa instituição de remédios destinados ao zelo pela ordem constitucional, seja na oferta de garantias aos princípios do processo, para que ele possa cumprir adequadamente a sua função e conduzir a resultados jurídico-substanciais desejados pela própria Constituição e pela lei ordinária (tutela constitucional do processo). A instrumentalidade do processo foi aspecto de especial atenção neste trabalho, não apenas em relação à Constituição, mas à ordem jurídico-material como um todo. O reconhecimento da instrumentalidade do processo em relação ao direito material, posto em evidência na atual fase do Direito Processual, tem papel significativo na busca de uma maior efetividade da tutela jurisdicional, questão que foi tratada, com ênfase, na terceira parte do trabalho. A presente pesquisa teve a pretensão de obter resultados de caráter geral, de enfoque qualitativo, de modo a oferecer uma análise da especialização do mandado de segurança coletivo na tutela de direitos coletivos no Brasil. As análises empreendidas pautaram-se, sobretudo, na vertente jurídico-dogmática e na jurídico-sociológica, de modo a estabelecer bases teóricas consistentes e inserir o instituto em seu ambiente social mais amplo. A pesquisa teórica empreendida se utilizou de inúmeros livros de doutrina (dados secundários) sobre o mandado de segurança tradicional, mandado de segurança coletivo, processo coletivo, tutelas específicas, inibitórias, antecipatórias etc. Foi objeto de especial atenção na pesquisa a doutrina sobre a especialização procedimental do mandado de segurança, embora poucas fossem as obras que tratavam do instituto sob essa perspectiva 3 . Em relação ao mandado de segurança coletivo também faltam estudos no que toca a sua especialização procedimental, embora existam inúmeros manuais e livros recém lançados com comentários sobre a Lei nº 12.016/2009. Há obras tratando de importantes elementos tratados neste trabalho, com ênfase na necessidade de aproximação do direito processual às realidades do direito material, como, por exemplo, sobre a tutela inibitória coletiva (ARENHART, 2003; MARINONI, 2006) e sobre a tutela específica (MARINONI, 2001), 3 Há obra sobre o mandado de segurança individual (ANDRADE, 2010) que desenvolve a idéia da especialização procedimental, no entanto, com enfoque diverso do aqui adotado. A obra citada optou pela análise conjunta do moderno Direito Processual e do moderno Direito Administrativo e em estabelecer propostas para uma eventual atualização da legislação do mandado de segurança, antes da edição da Lei nº 12.016/2009. 17 que, no entanto, não se referem especificamente ao mandado de segurança coletivo, nos termos aqui propostos. Espera-se com este trabalho dar uma pequena contribuição para o estudo do Direito Processual e, especificamente, para o estudo do Direito Processual Coletivo como disciplina autônoma do Direito Processual, ao lado do Direito Processual Penal e do Direito Processual Civil. Até mesmo porque, além da utilização do raciocínio indutivo, em busca de constatações gerais a partir de dados particulares, utilizou-se o raciocínio hipotético-dedutivo, com a tentativa de refutação de teorias já existentes e experimentação de novas. Esse estudo não tem pretensão de inovar por inteiro, possui algumas interpretações talvez particulares e algumas propostas. Não é absolutamente original. Partindo do pensamento dos processualistas modernos, buscou colocar em evidência a instrumentalidade e efetividade do processo no estudo do mandado de segurança coletivo. A fim de enriquecer o trabalho, foi realizado um levantamento de dados primários, por amostra não probabilística, escolhida de forma intencional, a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre o mandado de segurança coletivo. Também foram solicitados dados ao mesmo Tribunal, que juntamente com os colhidos de forma independente pela pesquisadora, serviram para a construção de uma base estatística. Os resultados e conclusões dessa pesquisa estatística foram apresentados na parte IV, mas também inseridos em pontos esparsos do trabalho. As tabelas e gráficos se encontram no anexo. Com essa parte do trabalho, especificamente, espera-se contribuir para a maior difusão de dados estatísticos jurídicos, senão para a colocação em evidência da necessidade de uma maior produção e divulgação desse tipo de dados. Espera-se contribuir modestamente para o Direito Processual Coletivo, adequando-o as novas tendências do Direito Processual, com ênfase no instrumentalismo e na leitura constitucionalizada das normas processuais. 18 PARTE I 1. TUTELA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A LUTA CONTRA OS EXCESSOS DO PODER PÚBLICO A liberdade, segundo Sidou (1989, p. 2), é o apanágio mais genuíno do indivíduo, não tendo havido na história um só povo que se mostrasse indiferente ao imperativo de ser livre. Para ele, o anseio pela liberdade é de tal maneira inato ao homem que bem se poderia inverter os elementos da proposição dizendo que é o sentimento de liberdade que assegura a condição de ser humano: A liberdade não é um direito; é um conjunto de prerrogativas que nascem com o homem e se desenvolvem em obediência a seus anseios, apuramento e idiossincrasias. Não é um direito porque, independendo da coletividade humana e se propondo a qualquer inter-relação entre os homens, antecede, naturalmente, a manifestação primária da vida jurídica, e assim estará impregnada na criatura até o último alento do último indivíduo que merecer essa classificação biotipológica. Nutre-se, é verdade, do convívio social, mas em sentido empírico independe de qualquer relação humana. (SIDOU, 1989, p. 1) A vida em sociedade impôs limitações à ação humana na medida em que foi necessário estabelecer restrições à liberdade individual no interesse da segurança de todos. O indivíduo, apesar de se submeter voluntariamente a essa restrição de liberdade, continua livre na medida em que, participando da elaboração da ordem jurídica, faz coincidir a sua vontade com a vontade coletiva. Sidou (1989, p. 2) observa que no ideal de liberdade o indivíduo plasmou e apurou direitos que a reconheçam e mantenham, “num ideário que se encadeia e se confirma ao ponto de, em eliminação regressiva, poder assentar-se não haver direito sem que haja garantias e não haver liberdade se não houver direito”. Como se observa, o ideal de liberdade está indissociavelmente ligado à existência de direitos fundamentais que o preencham. E, por sua vez, esses direitos não existem sem que haja garantias que os tutelem. Daí a relação íntima entre liberdade, direitos fundamentais e garantias. Na lição de Alcorta, citado por Sidou (1989, p. 6), os direitos fundamentais do homem são todos aqueles que constituem a sua personalidade e cujo exercício lhe corresponde exclusivamente, sem outra extrema que o limite do direito recíproco. Vejamos o conceito de Pimenta Bueno, apresentado por Buzaid (1989, p. 16): 19 Os direitos individuais, que se podem também denominar naturais, primitivos, absolutos, primordiais ou pessoais, são faculdades, as prerrogativas morais que a natureza conferiu ao homem como ser inteligente; são atributos essenciais de sua individualidade, são propriedades inerentes à sua personalidade: são partes integrantes da entidade humana. Conceitos semelhantes a esses se encontram em todas as Cartas políticas das nações modernas, tendo por paradigma a tônica da Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, que, na interpretação de Sidou (1989, p. 6), proclama “a liberdade de fazer tudo ou deixar de fazer tudo o que não é proibido por lei”, levando em conta ser a lei produto do humano convívio e ser o homem o modelo cultural da sociedade em que se integra. Embora os primeiros sinais de preocupação com os direitos que hoje são denominados direitos humanos ou direitos fundamentais, remontem a momentos históricos mais antigos, ligados ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana 4 , o grande marco histórico na luta do indivíduo por seus direitos fundamentais foi, sem dúvida, a Revolução Francesa, iniciada em 1789, quando se retirou dos monarcas o poder de fazer as leis, atribuindo essa função aos representantes do povo. Antes disso, no século XVII, os direitos do homem já vinham sendo definidos, mas essa declaração estava banhada de um certo romantismo político, de efeitos mais ilusórios que reais, conforme observa Alcino Pinto Falcão (citado por BUZAID, 1989, p. 17): A declaração de direitos desprovida de garantias teria apenas a virtude de um manifesto político com promessas sedutoras, dificilmente cumpridas pelos detentores do poder; seria ao mesmo tempo uma fonte de alegria e de desengano. A sua força estaria no esplendor de ideais profundamente humanos que difundiria; mas a sua fraqueza, na ausência de um instrumento idôneo para sua realização. Outro grande fruto da Revolução Francesa foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na qual, embora não pela primeira vez na história 5 , mas com maior expressão, foram proclamadas, de forma sistematizada e com caráter universal, as liberdades e os direitos fundamentais do homem. Após a Revolução Francesa, iniciou-se o período de florescimento das Constituições, 4 O princípio da dignidade da pessoa humana, de onde se desdobram todos os direitos fundamentais, está previsto expressamente no artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988. Quanto a sua origem, nas palavras de Canotilho, “(..) a dignidade da pessoa humana baseia-se no princípio antrópico que acolhe a idéia pré-moderna da dignitas-homini (Pico Della Mirandola), ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu projecto espiritual” (CANOTILHO, 1998, p. 219). 5 A primeira das Declarações de Direito é a de Virgínia, de 12 de janeiro de 1776, anterior à Declaração de Independência dos Estados Unidos. 20 sendo que a idéia de auto-limitação do poder do Estado se tornou essencial para a proteção da liberdade individual. Sobre o advento das Constituições escritas, as lições de Barbi (1968, p. 34): Na luta multissecular pela defesa dos interesses individuais contra os excessos do poder público, alcançou-se importantíssima etapa com o advento das Constituições escritas, em que foram fixados e garantidos alguns direitos fundamentais dos cidadãos, os quais ficaram assim, protegidos contra as investidas das autoridades públicas. Essa garantia decorre da superioridade das normas constitucionais sobre as leis ordinárias, decretos e atos administrativos, os quais têm de se limitar ao campo a eles deixado pela Constituição. Sem prevalência prática da Constituição sobre aqueles atos de categoria inferior, seria ilusória a garantia fixada na Lei Maior. Daí a necessidade de meio eficazes para conter o legislador ordinário e a administração, fazendo prevalecer as normas constitucionais. Foi a constitucionalização dos Estados, mais propriamente que o advento das Constituições escritas, a grande conquista das liberdades individuais frente ao poder absoluto dos governantes. Isso porque o constitucionalismo surgiu associado à garantia dos direitos fundamentais. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a esse respeito, no seu art. 16, garante que “toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição.” Nesse contexto surgiu a primeira geração de direitos fundamentais, a dos chamados direitos civis e políticos, consagrados no século XVIII, com o advento do liberalismo. São direitos individuais contra a opressão do Estado, contra o absolutismo e as perseguições religiosas e políticas. São representados pelas tradicionais liberdades negativas, consistentes muitas vezes em meras abstenções do Estado, dentre elas o direito de locomoção, de propriedade, de segurança, de acesso à justiça, de opinião, de crença religiosa, de integridade física, de igualdade formal e de participação política 6 . 6 De acordo com classificação comumente aceita pela doutrina, a segunda geração é a dos direitos sociais, emergentes no final do século XIX e início do século XX. São todos aqueles direitos ligados ao mundo do trabalho, como o direito ao salário, à seguridade social, a férias, a horário de trabalho, à previdência etc., e outros de caráter social mais geral, como o direito a educação, à saúde, à habitação. São direitos marcados pelas lutas socialistas e da social-democracia, que desembocaram no Estado de Bem-Estar Social. Por isso possuem caráter econômico-social, sendo compostos por liberdades positivas, configuradas basicamente no dever do Estado de realizar políticas públicas que efetivamente tornassem acessíveis os direitos antes proclamados. A terceira geração é aquela que se refere aos direitos coletivos da humanidade, desenvolvidos a partir do século XX. Referem-se ao meio ambiente, à defesa ecológica, à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, à partilha do patrimônio científico, cultural e tecnológico. Direitos sem fronteiras, direitos chamados de direitos de solidariedade ou fraternidade. Quanto à existência de direitos humanos de quarta e quinta geração, a doutrina não se encontra pacificada. Mesmo para os que a admitem (BONAVIDES, 1997, p. 526), seriam apenas pretensões de direitos, que estariam surgindo em resposta à globalização dos direitos fundamentais e devido ao grau avançado de desenvolvimento tecnológico da humanidade. Dentro dessa geração estariam inseridos os direitos à democracia e a informação. 21 Com a institucionalização dos chamados Estados de Direito, surgiu a lógica preocupação jurídica de se criarem garantias dos direitos do homem, permitindo uma proteção em concreto desses direitos. Um sistema constitucional de garantias seria necessário para dar vigor e eficácia às declarações de direitos. Todos os direitos materiais estabelecidos nas Constituições, sejam escritas ou não, passaram a exigir mecanismos processuais de tutela, afinal “não podem vingar as meras declarações de direitos sem adequados sistemas instrumentais que as subsidiem” (SIDOU, 1989, p. 21). O autor prossegue dizendo há uma diferença profunda entre programar e cumprir, entre oferecer e dar. Evocando Pontes de Miranda, afirma que é a forma processual que dá ao direito a importância que ele possa ter como garantia; o direito substantivo estatui; o direito adjetivo realiza 7 . Os direitos, portanto, firmam-se somente quando têm garantias (1989, p. 26). Foi especialmente após a segunda metade do século XIX que o desenvolvimento dos direitos fundamentais pautou-se pelo fortalecimento da proteção do jurisdicionado perante o Estado, que passou a ser visto como adversário (MEDINA; ARAÚJO, 2009, p. 21). Os direitos fundamentais passaram a servir como uma barreira passiva, protegendo o cidadão também em relação ao Estado. Se encontra inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu art. VIII, que “toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.”. Independentemente se os direitos são violados por particulares ou pelo Estado 8 . 7 “Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam se objecto de um regime constitucional substantivo). Os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem- se.” (JORGE MIRANDA, citado por FIÚZA, 1990, p. 63) 8 “(...) o remédio constitucional, tal como recomendado pelas elocuções universais, distingue-se de todos os demais procedimentos e com eles pode coexistir, não devendo portanto ser encarado como remédio-exceção, ou meio extraordinário, mas como remédio-regra. Ele defende e protege, e assim sintetiza à excelência a defesa e a proteção do ente humano em seus direitos e liberdades frente ao Estado. Ademais, se está em guarda do estado- de-direito, não poderá resumir-se apenas em tutelar certas situações, certas definições constitucionais, mas todos os direitos, ainda mesmo aqueles que emanam do espírito constitucional, dado que direitos coletivos são todas aquelas situações subjetivas postas em benefício do indivíduo ou da coletividade pela Carta de princípios, e a que se agregam outros direitos e outras situações jurídicas constitucionalmente equiparadas. (...) O remédio de amparo por que clamam a Declaração dos Direitos Humanos e as mais respeitáveis vozes do mundo jurídico contemporâneo não é, pois, um instrumento apenas para a tutela de determinados direitos, mas de todos os direitos que defrontem com o Estado o homem, individual e socialmente encarado; os direitos fundamentais propriamente ditos e as situações jurídicas paramétricas, sempre que forem irreconhecidos por 22 De todas as formas de violação de direitos, uma parece ser mais absurda, aquela realizada pelo próprio Estado 9 . À Constituição, Lei Fundamental e de categoria mais alta, devem subordinar-se tanto os particulares como os agentes públicos no exercício de suas atividades. Os Poderes Públicos violam a Constituição ao produzirem leis e atos normativos incompatíveis com a imperativa norma constitucional, pela omissão em editar leis exigidas pela mesma, ou ainda, pela interpretação e aplicação do ordenamento jurídico em desacordo à norma fundamental. No Direito atual existem inúmeros mecanismos de proteção dos direitos fundamentais, variando de acordo com o sistema de jurisdição do país. Mesmo se considerados apenas os países com unidade de jurisdição, em que ao Judiciário também cabe o controle dos atos administrativos, como no Brasil, existem: meios processuais ordinários, meios objetivos e diretos (controle de constitucionalidade concentrado), meios subjetivos ou incidentais (exceções) e institutos de garantia (SIDOU, 1989, p. 22). Não obstante a importância dos mecanismos de controle de constitucionalidade e de outros meios processuais ordinários, são nos institutos de garantia que se vislumbra mais direta e claramente a tutela dos direitos fundamentais do cidadão. O mandado de segurança faz parte desses mecanismos. Trata-se de uma garantia constitucional ligada à garantia de liberdades do cidadão contra o Poder Público, que “com o peso do seu poder e da sua responsabilidade” poderia “desequilibrar a balança da justiça” (BARBI, 2002, p. 1). Daí a importância de um instrumento processual específico para garantir o equilíbrio nas demandas do indivíduo contra a Administração. Nas palavras de Medina e Araújo (2009, p. 21), fazendo referência às teorias de Jellinek, Haberlë e Canotilho, seu manejo está indissociavelmente atrelado ao status activus processualis e é manifestação do direito de resistência do cidadão contra os atos ilegais e abusos praticados pelo Poder Público. ato de império ou violados por atos antinormativos de qualquer agente do poder público.” (SIDOU, 1989, p. 38) 9“A ofensa à Constituição pode dar-se por ato privado ou do Poder Público. A primeira é de mínima repercussão e os males são reparados por diferentes modos. A segunda, ao contrário, fere profundamente toda a sociedade, que por isso mesmo deve reagir com dobrado vigor, pois dos que detêm o poder há de esperar-se o exemplo do cumprimento dos imperativos constitucionais. Ora, escreve RAMIREZ, se a organização que institui a Lei Suprema pudesse ser violado impunemente, os preceitos constitucionais não passariam de preceitos teóricos ou de mandamentos éticos. Não é possível aceitar tal coisa; se alguma lei deve ser cumprida observada, espontânea ou coercitivamente, é a Lei Suprema.” (BUZAID, 1989, p. 21) 23 2. INSPIRAÇÕES DO DIREITO COMPARADO A criação do mandado de segurança no Brasil pode ser contextualizada num grande movimento universal de garantia dos direitos fundamentais do cidadão. Como será analisado nos capítulos seguintes, o mandado de segurança surgiu num contexto de inexistência de instrumentos processuais específicos para proteger, de forma célere, direitos fundamentais diversos do direito de locomoção. No Pacto de São José da Costa Rica há dispositivo que garante que: Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo perante os juízes e tribunais competentes, que o ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei e pela presente Convenção, inclusive quando a violação seja cometida por pessoas que atuem no exercício de funções oficiais. – grifo nosso De acordo com Sagüés (citado por MEDINA, 2009, p. 150), qualificada doutrina vê nesse dispositivo a previsão de um “amparo internacional”, aplicável em todos os países que aderiram ao pacto, ainda que a legislação nacional não possua instrumento específico. Como a maioria dos países da América Latina possui institutos voltados para a garantia dos direitos fundamentais, como o amparo mexicano, o recurso de proteccíon chileno, a acción de tutela colombiana ou a mandado de segurança brasileiro, a regra do Pacto de São José acaba reforçando que esses institutos devem “ser capazes assegurar a toda pessoa um processo simples e rápido que a ampare contra atos suscetíveis de violar seus direitos fundamentais, qualquer que seja o responsável pela violação” (MEDINA, 2009, p. 152). Verifica-se que, no direito comparado, diversos são os sistemas adotados com o fim de proteger indivíduos especificamente contra os desmandos do Estado, destacando-se: (...) o sistema francês, em que o controle da Administração está a cargo da própria Administração, sem interferência direta do Judiciário, com aplicação do princípio da dualidade da jurisdição; o sistema inglês, no qual o controle é exercido, em regra, pelo Judiciário, por diversos writs, com base na common law, sem que haja previsão expressa em uma Constituição, já que na Inglaterra não existe Constituição escrita; o sistema americano, cujo controle é exercido, em regra, pelo Judiciário e também por diversos writs, com base na common law, admitindo-se, entretanto, o exercício desse controle por entes outros que não o Judiciário; enquanto o writ of habeas corpus está previsto na Constituição norte-americana, os demais writs são decorrentes da common law e do ordenamento jurídico infraconstitucional; o sistema mexicano, no qual o controle é feito por meio do juicio de amparo, previsto constitucionalmente, instituto esse que tem por fim a proteção dos direitos de forma ampla, tanto os relacionados com a liberdade de locomoção como quaisquer outros; e o sistema brasileiro, em 24 que o controle é feito pelo Judiciário, com fundamento constitucional, mediante habeas corpus, destinado exclusivamente à proteção da liberdade de locomoção do indivíduo, e o mandado de segurança e outros writs constitucionais, destinados à preservação dos demais direitos, não relacionados com a liberdade de ir, vir e ficar. (REMÉDIO, 2009, p. 20) Alguns desses sistemas inspiraram diretamente o legislador brasileiro na escolha do regime adotado e, posteriormente, na criação do mandado de segurança e de outros remédios constitucionais, por isso merecem análise mais pormenorizada. 2.1. Direito francês O problema da jurisdição em face da matéria administrativa não encontra solução única no Direito Comparado. Num sistema de dualidade de jurisdição a própria Administração possui órgãos para dirimir as controvérsias em que ela mesma seja parte, excluída aí a interferência do Poder Judiciário. As decisões desses órgãos têm eficácia vinculativa plena, ou seja, suas decisões transitam materialmente em julgado, não podendo o conflito ser reexaminado pelo Judiciário (REMÉDIO, 2009, p. 21). A França foi a criadora desse tipo de estruturação. O oposto se dá num sistema de unidade de jurisdição, que não difere o tratamento entre particulares e entes estatais, sendo ambos realizados pelo Judiciário. Como nos esclarece Barbi (2002, p. 5), tanto o sistema de unidade, como o de dualidade de jurisdição, tem em sua base teórica o princípio da separação dos poderes, ao qual, naturalmente, dão diversa interpretação e alcance. Para o direito francês, o Poder Judiciário não pode julgar as causas em que a Administração for parte, sob pena de sujeição desta àquele, violando o princípio da separação dos poderes. Em 1790, surge, na França, a Lei de Organização Judiciária, que, em seu art. 13, proíbe aos juízes, sob pena de prevaricação, conhecer das operações relativas aos órgãos administrativos. O Conselho de Estado, principal órgão dessa Justiça Administrativa, foi criado pelo art. 52 da Constituição do ano VIII. Embora, inicialmente, sua função fosse a de apenas dar parecer nas reclamações apresentadas pelos particulares contra atos da Administração, na medida em que o chefe de Estado sempre acatava o parecer do Conselho, este acabou se tornando a decisão final. Mesmo assim o Conselho continuou tendo também funções consultivas. Tal sistema teve consagração legislativa em 24.05.1872, denominando-se “justice deleguée”. 25 Além do Conselho de Estado, a Justiça Administrativa francesa conta com os Tribunais Administrativos, também com funções consultivas e contenciosas, oriundos da transformação dos Conselhos de Prefeituras, operada em 1953. O Conselho, além de atuar como juízo originário e único de certas contendas administrativas, também opera como juízo de apelação ou de cassação das decisões dos Tribunais Administrativos. Há ainda as Cortes Administrativas de Apelação, criadas em 1987, com o objetivo de concentrar a maior parte dos recursos e decisões oriundas dos Tribunais Administrativos. Barbi (2002, p. 6) esclarece que a competência da Justiça Administrativa se limita aos casos em que esteja em jogo “uma atividade de serviço público”. Em relação aos órgãos privados, desde que seus atos se refiram ao exercício de um serviço público, também serão de competência da Justiça Administrativa. Os atos da Administração relativos ao seu domínio privado são julgados pela Justiça Comum, competente também pelos julgamentos em que o serviço público pertencer ao Judiciário ou ao Legislativo. O Tribunal de Conflitos é o responsável pela solução dos conflitos de jurisdição entre as justiças administrativa e comum. As questões relativas à propriedade privada e às liberdades públicas são de competência da Justiça Comum, com duas exceções: no caso de domínio irregular e de via de fato (JEAN-MARIE AUBY, citado por REMÉDIO, 2009, p. 23). O acesso ao contencioso administrativo ocorria e continua a ocorrer, basicamente, sob duas formas na França, pelo recurso de jurisdição plena (recours de pleine juridiction) e pelo recurso por excesso de poder (recours pour excès de pouvoir). O recurso por excesso de poder busca a anulação do ato administrativo ilegal que tenha lesado não um “direito subjetivo”, mas um “interesse legítimo” do recorrente, direto e pessoal, econômico ou moral. O recurso por excesso de poder não se atém, em um primeiro momento, à situação subjetiva daquele que vem a juízo, tendo por objetivo maior a correção da ilegalidade. A doutrina considera-o um contencioso objetivo. Por seu caráter objetivo e de anulação do ato, tem efeito geral e irrestrito, erga omnes, atingindo a todos os envolvidos e interessados na realização do ato anulado. Remédio (2009, p. 24) referindo-se a ele: O recurso por excesso de poder, no dizer de Guy Braibant, é o instrumento mais original, mais importante e mais eficaz do controle jurisdicional da Administração, podendo ser definido como um recurso tendente à anulação de um ato administrativo. Trata-se de um recurso objetivo que se dirige não contra uma pessoa, mas contra um ato; portanto, não é somente um instrumento de defesa dos cidadãos contra a Administração, mas também um instrumento de defesa das coletividades territoriais e dos estabelecimentos públicos contra o Estado, ao mesmo tempo que exerce o controle de legalidade de suas ações. 26 O recurso de plena jurisdição, por sua vez, tem por pressuposto a violação de um “direito subjetivo”, vale dizer, diz respeito diretamente à situação jurídica do recorrente. Possibilita não apenas a anulação do ato, mas também reparação do direito subjetivo lesado mediante pagamento de quantia em dinheiro. É um processo entre partes e seus efeitos se limitam a elas. O recurso de jurisdição plena é usado mais comumente para questões envolvendo contratos e responsabilidade do Estado. Aplicam-se ao sistema de contencioso francês os seguintes princípios, relacionados por Barbi (2002, p. 7): a) o juiz não pode condenar a Administração a fazer ou não fazer alguma coisa; a condenação só pode ser a pagamento em dinheiro; b) o prejudicado deve sempre se utilizar previamente dos recursos administrativos, antes do recurso contencioso; c) o ato administrativo não tem sua execução suspensa pela apresentação do recurso, salvo casos excepcionais. O sistema francês, aos olhos dos países que adotam o sistema de unidade de jurisdição, como o nosso, pode parecer frágil ao atribuir à própria Administração o julgamento de seus atos. Barbi (2002, p. 8) garante, no entanto, que a Justiça Administrativa, ao contrário de diminuir as garantias individuais do cidadão, tem-se mostrado independente em seus pronunciamentos, contribuindo para o avanço do Direito Administrativo e para a proteção dos indivíduos e da moralidade administrativa. O autor destaca a proteção ampla dos interesses legítimos dada pelo sistema francês, através do recurso por excesso de poder, que, ao seu ver, não encontraram no sistema brasileiro adequada proteção jurisdicional durante muitos anos. Em exemplos de Jean Rivero citados por Barbi (2002, p. 238), o contribuinte ou habitante da cidade poderia pedir a anulação de decisões relativas ao funcionamento dos serviços ou à vida da comunidade e até impugnar despesas ilegais da administração local. Por meio do recurso por excesso de poder, mesmo quando a Administração, fugindo de seu dever, praticava atos contrários à lei, sem lesar direito subjetivo de algum indivíduo, era possível controlar seus atos e proteger o interesse prejudicado. Daí o pioneirismo do regime francês, destacado por Barbi. O Brasil experimentou, no período colonial, um sistema de dualidade de jurisdição, inspirado no modelo francês, o que será analisado no capítulo 4.1. 27 2.2. Direito anglo-saxão Não há dúvida que o direito anglo-saxão sempre ocupou posição de destaque quanto à proteção da liberdade individual, sobretudo pela construção do habeas corpus. No direito inglês, há também outros instrumentos jurídicos criados para a proteção da liberdade individual, como o writ of injuction, writ of mandamus, o writ of certiori, o writ of prohibition, o writ of error e o writ quo waranto. Antes de analisarmos as características dos variados writs anglo-saxões, é importante ressaltar a influência do direito romano clássico na configuração desses remédios como medidas de segurança sumárias, claramente inspiradas nos interditos. Como observado por Galeano Lacerda, até mesmo as fórmulas latinas usadas nos writs eram semelhantes às empregadas para os interditos. O direito romano, por exemplo, consagrava, como mecanismo de proteção da liberdade, o interditum de homine liberum exhibendo (Digesto 43, 29), com a fórmula “Quem liberum dolo malo retines, exhibeas”, que, segundo GANDOLFI, ordenava a exibição in iure de um homem livre perante o magistrado para permitir-lhe a vindicatio em libertatem (citados por TALAMINI, 2002, p. 302). Os primeiros writs que surgiram na Idade Média a partir do século XI, relacionados com a jurisdição da equity 10 , foram utilizados para as mais diversas finalidades, dentre elas, pôr em liberdade pessoa detida sob acusação de certos delitos graves, quando se apurava legítima defesa (writ de ódio et atia), pôr em liberdade mediante fiança prestada por terceiro (writ de mainprize) ou pôr o prisioneiro em liberdade provisória, para mediante fiança, defender-se solto (writ de homine replegiando). Sidou (1989, p. 92) aponta esses primeiros writs como sendo o embrião do habeas corpus. Esses, no entanto, tiveram aplicação precária e acabaram abolidos pelo desuso. Daqueles que sobreviveram, o mais conhecido e antigo de todos é o habeas corpus. Constituíram-se várias espécies de habeas corpus no direito anglo-saxão, sendo que alguns deles sequer funcionavam propriamente como medidas de proteção da liberdade propriamente dita, se relacionando apenas com a liberdade de julgamento ou com características processuais (SIDOU, 1989, p. 93). O termo “habeas corpus” provém de duas palavras iniciais de uma fórmula latina que significava, aproximadamente, “toma este corpo e leva-o ao tribunal”. Nesse sentido, havia habeas corpus com a finalidade de transferir o preso de um lugar a outro, a fim de vê-lo julgado pelo tribunal da respectiva jurisdição (habeas corpus ad 10 De acordo com Remédio (2009, p. 25), equity, na Inglaterra, não significa apenas equidade, mas também uma jurisdição especial, exercida pelo Tribunal de Chancelaria. 28 respondendum), a fim de transferi-lo após seu julgamento, já na fase de execução (habeas corpus ad satisfaciendum), para seu julgamento no foro em que fora cometido o delito (habeas corpus ad prosequendum, ad testificandum e ad deliberandum, dependendo de questões processuais), para que ele declinasse ao magistrado superior o dia a partir do qual e a causa pela qual estava preso (habeas corpus ad faciendum et recipiendum) e para, exibindo sua pessoa, restituir-lhe a liberdade física (habeas corpus ad subjiciendum). Sidou (1989, p. 94) garante que o habeas corpus ainda era um writ bastante vago à época de Eduardo I (último quartel do século XIII) e que evoluiu, nos séculos seguintes, de instrumento acessório de outros remédios, para um instrumento autônomo de libertação. Bem da verdade, como nos garante Sidou (1989, p. 91), é errado pensar que mesmo o habeas corpus teve aplicação em sua origem para garantir a liberdade contra o poder arbitrário do príncipe. Os primeiros writs existentes não serviam como garantias quando o opressor fosse rei ou alguém agindo em seu nome e ao sabor de suas conveniências, tendo alguma valia nos casos de prisão exercida por particulares ou por sua instigação. O writ of habeas corpus especificamente destinado à tutela da liberdade era o habeas corpus ad subjiciendum, pelo qual se levava o preso ao tribunal para que este apresentasse à corte as razões de sua detenção e para que esta verificasse o acerto da constrição. Em 1679, quando o Parlamento inglês aprovou o Habeas Corpus Act esse writ foi consolidado, criando- se, inclusive, sanções pecuniárias destinadas a garantir sua efetividade. Mais tarde, em 1816, foi editado novo Habeas Corpus Act, que tomou em conta a evolução pela qual o remédio havia passado, ampliando seu campo de atuação. Sidou explica como a Inglaterra exportou – não há no verbo qualquer sugestão semântica – o habeas corpus para as cinco partes do mundo: E isto se explica observando que é ínsito do Common Law, num princípio exaltado por Blackstone, seguir com os súditos ingleses aonde quer que esses demandem e se vão fixar. Se eles se instalam em terra inculta, despovoada ou de direito empírico, aplicam de imediato seu sistema jurídico, e tal ocorreu na América e na Oceania; se, ao contrário, emigram para uma terra onde se pratica um direito evoluído e obviamente dado ao sincretismo, nela o direito inglês infiltra-se, na medida em que o admite o aprimoramento jurídico, impõe-se, por seus principais institutos. (SIDOU, 1989, p. 99) Pontes de Miranda (citado por TALAMINI, 2002, p. 306) garante, no que tange ao habeas corpus brasileiro, que sua instauração foi anterior a influência norte-americana: “não o bebemos nos Estados Unidos, mas, diretamente, na Inglaterra”. No Brasil, desde cedo, havia receptividade para a habeas corpus, que é desdobramento, no tempo, de interditos 29 romanos que se aplicavam na Colônia para as causas de liberdade pessoal, conforme se verá a seguir. Entre os outros writs que prevaleceram destacamos o writ of injunction, que constitui direito posto à disposição da parte para exigir a execução específica de prestações negativas, ou seja, impedir em forma proibitiva a execução do ato ou da lei por pessoa ou categoria de pessoas, inclusive uma autoridade pública. Para tanto basta que o indivíduo prove a iminência de considerável prejuízo como resultado de ato supostamente ilegal da dita autoridade (FIÚZA, 1990, p. 51). Também pode ser obtida pelo Procurador Geral de Justiça (Attorney- General) em nome do povo. A desobediência de sua proibição é considerada contempt of court (desprezo pelo tribunal), sujeitando o recalcitrante a multa e prisão (BASTOS, 2007, p. 31). Para Aldo Frignani (citado por BUZAID, 1989, p. 39): (...) é um remédio específico da equity, definitivo ou provisório, por meio do qual uma parte que violou ou ameaça violar um “legal” ou equitable right recebe do juiz a ordem de não praticar, [não] continuar ou [não] repetir o ato de violação (se este se concretiza em um fazer), ou de exigir um ato positivo (se a violação consiste em um non fare), restabelecendo por tal forma a vítima ao status quo, salvo sempre o direito de damages por prejuízos efetivamente sofridos no passado. Historicamente, foi um dos primeiros meios empregados pelo chanceler do Rei para corrigir os efeitos das normas da common law. Era empregado pelo chanceler, sob forma de guardião da consciência do soberano, na interdição da execução de um julgamento ao seu beneficiário, quando ele próprio desaprovava a decisão (BUZAID, 1989, p. 35). Outro importante instrumento era o writ of mandamus, que visa a expedição de uma ordem por um Tribunal Real a uma Corte inferior, a um funcionário, à administração, a uma pessoa física ou moral, ou a uma coletividade, para executar um ato que lhe compete em razão de suas funções. Por meio dele determina-se peremptoriamente que se façam certas coisas particulares, especificadas na mesma ordem. O Tribunal o emitirá como meio suplementar em todos os casos em que não haja outro remédio específico para um direito subjetivo. De acordo com Fiúza (1990, p. 50), houve época em que seu alcance era confinado a uma classe limitada de casos relacionados à Administração Pública, sendo principalmente empregado para compelir tribunais inferiores a agirem dentro de sua jurisdição ou funcionários públicos a cumprirem seus deveres específicos. Com o tempo, o mandamus passou a ser invocado no campo privado contra empresas de serviços públicos. Na Inglaterra, o mandamus é admitido, sobretudo, em casos da área pública, uma vez 30 que o King‟s Bench (Tribunal Real) recusa-se geralmente a dar-lhe curso na apreciação específica de negócios jurídicos, quando não impliquem a feição pública do iure gestionis (SIDOU, 1989, p. 27). O mandamus também tem origem bastante antiga, desde a época de Eduardo III, quando o Rei, fonte da justiça e do poder, o expedia conforme lhe aprouvesse (BUZAID, 1989, p. 36). Inicialmente era uma carta dirigida pelo Rei à autoridade, a quem o ato era ordenado, depois passou a ser expedido pelo King‟s Bench, em nome do Rei. Quanto aos demais writs, vale trazer a colação as palavras de Remédio (2009, p. 28) citando por sua vez Francisco Antônio de Oliveira: O prohibition consiste em uma ordem emitida por um tribunal superior (King‟s or Queen‟s Bench Division) principalmente para evitar que tribunais inferiores excedam sua competência ou ajam contra as regras da justiça natural, podendo ser expedida contra qualquer tipo de tribunal inferior, até mesmo eclesiástico ou militar. Não pode ser usada contra entidade privada nem contra atos puramente legislativos ou executivos. O certiorari é expedido para remover um processo de um tribunal inferior para o King‟s or Queen‟s Bench Division da Corte Suprema, sendo aplicável somente em relação a atos judiciais. Pode ser usado antes que um julgamento esteja terminado, a fim de se evitar excesso de jurisdição, ou depois do julgamento, para anular um mandado que foi expedido sem jurisdição ou contra os princípios da justiça natural. O quo warranto é usado para impedir uma pessoa de exercer uma função ou ocupar um cargo público para o qual não esteja devidamente habilitada ou no qual não esteja devidamente investida. Os writs se prestam à proteção de direitos lesados para cuja reparação não haja, na lei, outros meios mais adequados. Como garante Caetano (1975, p. 29), era natural procurar neles exemplos de ordens do Judiciário para que autoridades executivas fizessem ou deixassem de fazer alguma coisa. É de se observar que os instrumentos do direito anglo-saxão desempenham papel ainda mais amplo que o mandado de segurança, pois não se opõem tão-somente a atos do Poder Público, mas também a violação de direitos por particulares. 2.3. Direito norte-americano A defesa do particular contra a Administração Pública encontra nos Estados Unidos meios variados e eficientes. Além das ações civis por perdas e danos, utilizadas, inclusive, 31 contra o funcionário que praticar o ato, existem os remédios judiciais extraordinários, herdados do direito inglês, os writs. O principal deles é o habeas corpus, que, nos Estados Unidos, obedece a requisitos processuais diversos, devido à regulamentação que à matéria dá cada Estado da Federação. Manteve, no entanto, as principais características do instituto inglês, constituindo basicamente em uma ordem judicial para que, quem mantém uma pessoa em custódia, demonstre à corte a justificativa legal para aquela privação da liberdade. O habeas corpus americano, como o inglês, não somente requer que a autoridade oficial apresente o prisioneiro à corte, mas também inicia o questionamento quanto à justificativa da prisão, podendo resultar numa ordem de relaxamento. Na América do Norte, o habeas corpus foi introduzido por meio da common law, desde o período colonial, por inspiração do Habeas Corpus Act inglês de 1679. Bem antes, portanto, da denominada “Declaração dos Direitos da Virgínia”, firmada em 1776. Os outros writs também foram rapidamente incorporados e alguns deles, como o certiorari, avigoraram- se na prática tribunalícia norte-americana para aplicações diversas daquelas existentes na Inglaterra. Sidou (1989, p. 27) nos esclarece o papel que cada um dos writs assumiu no direito norte-americano: O writ of mandamus constitui ordem judicial afirmativa, tendente a compelir alguém a executar certo dever que a lei impõe, mas para cujo incumprimento não haja estabelecido um remédio adequado na jurisprudência ordinária. Tudo aquilo a que o jurisdicionado tem incontestável direito e cuja execução depende de autoridades públicas ou de corporações, pode, na falta de outro meio jurídico eficiente e oportuno, ser tutelado mediante o mandamus, que admite o deferimento liminar. Pode ser alternativo, quando expedido no início da causa para que o indivíduo pratique o ato ou diga porque não o faz; ou peremptório, quando expedido após a audiência do indivíduo para que ele pratique o ato, sem alternativa. Não pode ser concedido contra o Presidente e só em casos excepcionais contra Secretário de Estado. Também não pode ser concedido contra atos legislativos, em relação aos atos discricionários ou políticos, e quando a prática do ato implicar conseqüências manifestamente contrárias ao interesse público. O direito a ser protegido deve ser certo, específico e completo, não cabendo o mandamus no caso de pretensões duvidosas ou condicionadas. Tanto a pessoa física como a jurídica possuem legitimidade para sua impetração, desde que tenham interesse legal, pessoal e direto (REMÉDIO, 2009, p. 31). 32 Nos Estados Unidos, o mandamus não distingue o direito assegurado, assim procede tanto nos casos da área pública, contra servidores, como em determinadas hipóteses é admitido também contra atos de particulares isolados. O writ of injuction, no propósito a que visa, vale por uma antítese do instituto precedente, porque serve para impedir em forma proibitiva a execução do ato ou da lei cujo resultado causaria dano irreparável a direito do autor. Embora geralmente sua forma proibitiva (prohibitory) seja posta em evidência, também pode assumir forma positiva (mandatory), para ordenar a prática de certo ato a fim de evitar o dano irreparável. Aplica-se tanto no campo contratual como na área delitual das obrigações e é o mais lídimo dos interditos. Usa-se pelo particular contra a Administração e vice-versa, assim também como entre particulares. É de efeito negativo; impede que a autoridade ou o particular viole a lei; potencia-se, inclusive, contra os efeitos da coisa julgada, para impedir a execução de sentenças dos tribunais quando ditadas sem a observância de formalidades essenciais. Sua desobediência importa em crime de responsabilidade (contempt of Court). Serve como medida preventiva e conservatória, com o intuito de manter o assunto em status quo e assim evita as futuras demandas por perdas e danos ante obrigações positivas ou negativas. Pode ser concedida sem audiência da parte contrária. É interlocutory, quando provisória ou liminar a medida, e, perpetual, quando, no final do julgamento, conhecido o mérito da relação, se faz definitiva. Posto em confronto com os institutos similares do Direito brasileiro, para proteção dos direitos reais (interditos possessórios) e dos direitos não reais (mandado de segurança), é um e outros ao mesmo tempo. Nos Estados Unidos, o Poder Judiciário faz largo uso da injunction e do mandamus, tanto na justiça federal como na justiça estadual, para as seguintes questões , citadas por Buzaid (1989, p. 44): a) para prevenir a prática ou continuação do mau uso da propriedade e da posse ou turbação da tranqüilidade; b) relativamente à poluição dos rios; c) em controvérsias do direito do trabalho e do direito sindical; d) para afastar dano decorrente da aplicação de lei inconstitucional, caso em que a injunction é decretada contra funcionário a quem compete aplicá-la; e) direitos autorais, patentes de invenção e marca registrada; f) preservação da propriedade, pendente o litígio; g) matéria tributária. O writ of certiorari visa a provocar a verificação do ato administrativo quanto à aplicabilidade e interpretação da lei e à capacidade funcional do agente. Tal como o mandamus só se admite quando não exista outro remédio legal. Tradicionalmente é utilizado para ordenar que tribunal inferior submeta a tribunal superior, em revisão, algum processo para examinar se houve ou não violação de direito e, sendo o caso, anular decisões 33 (avocação). Teve sua admissão bastante restringida na Justiça Federal depois que a Suprema Corte, em 1913, decidiu não poder ele ser usado para obter revisão de uma ordem administrativa. É muito utilizado na Justiça Estadual para rever atos da Administração de natureza quase judicial. O writ quo warranto é assegurador do direito ao exercício de uma função ou de um título legítimo, integrado no grupo dos direitos políticos; é o específico contra o abuso de poder. Apesar de adequado ao controle da Administração, não se destina a resguardar direito subjetivo. É geralmente pedido em favor e em nome do povo, para protegê-lo de uma usurpação ilegal de cargos públicos ou privilégios, como a concessão, licença ou alvará de serviço público. O objetivo não é adjudicar a alguém o direito à nomeação, mas apenas definir a ilegalidade do título do ocupante do cargo. O writ of prohibition é neutralizador da atuação judiciária ou administrativa quando invade atribuições cujo conhecimento escapa à sua esfera. Normalmente é utilizado para evitar que as Cortes inferiores julguem sem jurisdição. Raramente é utilizado para controle de ato de órgão da Administração Pública. O writ of error é espécie de cassação tendente a reapreciar atos dos tribunais dos Estados da Federação, eficaz em seus efeitos, mas entorpecido pela exagerada técnica procedimental, que é complicada, lenta e custosa, com exigências de legitimação da parte e sistema probatório análogo ao remédio ordinário. É, todavia, o típico recurso para efeito da inconstitucionalidade. Como se observa, o mandado de segurança brasileiro não é nenhum desses writs de per si. Como afirma Nunes (1980, p. 35): A todos resume: realiza a função do mandamus e da injuction, do certiori e do quo waranto. Por ele se proíbe ou se ordena a prática de certo ato. O ato é, em regra, administrativo, ainda que emanado das instâncias jurisdicionais da administração. Pode alcançar também o ato judicial (ato de jurisdição) na destinação que lhe deu o legislador, mas em hipóteses restritas. Não é remédio de equidade. Não corrige injustiças. É instrumento de contencioso, de legalidade. É meio de defesa do direito, como aqueles writs, por coerção direta. Previne ilegalidade, faz cessar violação, obsta a que continue a lesão – e desse ponto de vista é também tutelar do interesse geral, na defesa do erário, responsável pela reparação do dano que por ele se evita ou, pelo menos, do dano continuado que, por meio dele, se faz cessar. Ademais, os writs norte-americanos, com exceção ao habeas corpus, não são de competência exclusiva do Judiciário, uma vez que vários deles podem também ser conhecidos 34 por outros órgãos não judiciários (REMÉDIO, 2009, p. 30). Diferentemente do que ocorre no Brasil, os tribunais norte-americanos têm grande poder discricionário para receber ou rejeitar os pedidos de expedição dos writs, que, geralmente, só são concedidos quando não existe um remédio legal adequado. Referindo-se especificamente ao writ of mandamus, Sidou (1989, p. 27): A jurisprudência tem se fixado em que é a ausência de um remédio legal específico que enseja o writ, donde ser ele um meio suplementar conferido ao titular de um direito provável de plano, mas sem outro instrumento reparatório capaz de prevenir o malogro da justiça. É um remédio extraordinário, ao diverso do nosso mandado de segurança, que é remédio regra. Como ressaltado no final da citação, o mandado de segurança não se trata de remédio extraordinário. Apesar de seu campo de aplicação residual em relação ao habeas corpus e ao habeas data, ampara um universo muito amplo de liberdades, muito mais extenso do que o dos demais writs. Apesar de existirem instrumentos legais ordinários à disposição para proteger os mesmos direitos, ele pode ser utilizado como primeira alternativa. 2.4. Direito mexicano A experiência mexicana, no que diz respeito à garantia de direitos fundamentais do homem, também muito nos serviu para a construção do mandado de segurança. Parte da doutrina nacional, com destaque ao Ministro do Supremo Tribunal Federal Edmundo Muniz Barreto, já postulava, em meados de 1922, a criação em nosso ordenamento de ação similar ao juicio de amparo do Direito mexicano. O juicio de amparo foi criado no Direito mexicano na Constituição de 1857 e depois mantido na Constituição de 1917. No entanto, seus germes, de acordo com Barbi (2002, p. 15) se encontram: a) na Constituição de 1841 elaborada para o Estado de Yucatán por D. Manuel Crescencio Rejón 11 ; b) em projeto esboçado pela minoria da Comissão encarregada de fazer um projeto de Constituição em 1842, quando se sugeriu a criação de um instituto para dar à 11 “Artículo 53. Corresponde a este tribunal [la Corte Suprema de Justicia] reunido: 1º. Amparar en el goce de sus derechos a los que pidan su protección contra las providencias del Gobernador o Ejecutivo reunido, cuando en ellas se hubiese infringido el Código Fundamental o las leyes, limitándose en ambos casos a reparar el agravio en la parte que procediere. Artículo 63. Los jueces de primera instancia ampararán en el goce de los derechos garantizados [los individuales que antes enumera]a los que les pidan su protección contra cualesquiera funcionarios que no correspondan al orden judicial, decidiendo breve y sumariamente las cuestiones que se susciten sobre los asuntos indicados.” 35 Suprema Corte o poder de conhecer de reclamos dos particulares contra atos do executivo e do legislativo, violadores dos direitos individuais; e c) na Ata de Reforma de 1847, que, modificando a Constituição de 1824, atribuiu aos Tribunais Federais a garantia dos direitos dos indivíduos, violados por lei ou ato inconstitucional da União ou dos Estados, desde que os tribunais se limitassem à proteção do caso concreto, sem declarações gerais sobre a lei ou o ato motivador do pedido. A fórmula original do amparo foi criada por Otero na Ata de Reforma de 1847, contando com três ideias fundamentais (BUZAID, 1989, p. 55), quais sejam: I) fazer da queixa contra a infração um juízo especial e não um recurso; II) restringir só aos tribunais federais a competência para conhecê-la; e III) proibir qualquer declaração geral sobre a lei ou atos violadores da lei. Originariamente, o juicio de amparo servia apenas para o controle de constitucionalidade das leis e demais atos do Poder Público. Depois, ampliou-se também para o controle de legalidade dos atos das autoridades em geral, inclusive judiciárias. Ficou, então, a Suprema Corte com poder de revisão, através do amparo, das sentenças dos juízes de qualquer categoria, o que resultou na sua incapacidade para julgar todos os casos levados a seu conhecimento. Por essa razão foi realizada uma reforma constitucional em 1951 que, mantendo os princípios básicos do instituto, modificou questões relativas à competência, reduzindo a da Suprema Corte e ampliando a dos tribunais inferiores. Atualmente, trata-se de remédio constitucional ajuizado por qualquer pessoa, mas sempre particular, perante tribunais federais, contra atos ilegais e inconstitucionais que sejam ofensivos a direitos individuais praticados por autoridades, administrativas ou jurisdicionais. É essencial a existência de dano ou prejuízo pessoal, sendo dificilmente admissível em caráter preventivo. A execução da medida é tanto quanto possível específica e a autoridade que desobedecer a ordem judicial pode ser destituída do cargo pela Corte Suprema, além de ficar sujeita à pena de prisão. É admitida a suspensão do ato impugnado antes do julgamento final da causa, ex officio ou a pedido do autor, mediante caução, depois de ouvida a parte contrária e tomada de provas em audiência especial para o fim. Excepcionalmente pode o juiz, ao receber a inicial, determinar a suspensão do ato impugnado, mas, em seguida, processará o incidente para manter ou não a liminar. Diante da facilidade de utilização do amparo, sua lei comina pena de prisão de seis meses a três anos e multa ao autor que afirmar fatos falsos ou omitir fatos de que tenha conhecimento. 36 O amparo é incabível contra atos de particulares, além dos seguintes praticados por autoridade pública (REMÉDIO, 2009, p. 38): a) autorização discricionária aos particulares para distribuição de educação primária, secundária e normal; b) resoluções presidenciais dotatórias ou restituitórias de terras ou águas em benefício dos camponeses, a não ser que os afetados possuam certificados de desafetabilidade; c) expulsão de estrangeiros indesejáveis ordenada discricionariamente e sem necessidade de juízo prévio, pelo Executivo da União; d) atos de natureza estritamente político-eleitoral, sempre que não afetem outros direitos fundamentais do queixoso; e) atos da Suprema Corte de Justiça e resoluções ditadas nos juízos de amparo ou na sua própria execução; f) atos consumados de forma irreparável. Existe uma maior completude e complexidade do amparo mexicano frente ao mandado de segurança brasileiro, uma vez que o remédio mexicano é ajuizável por qualquer pessoa e exerce quatro funções diversas, citadas por Fix-Zamudio (1963, p. 65): a) instrumento protetor de direitos fundamentais, estabelecidos na Constituição Federal, com procedimento simples e breve, marcado pela flexibilidade, concentração e oralidade (Constituição, art. 107, II, XII, c/c Lei Regulamentar, art. 10); b) meio de combater leis inconstitucionais, por meio de sua não aplicação ao caso concreto, por meio de ação ou recurso (Constituição, art. 103, I, II, III, c/c Lei Regulamentar, art. 1, II e III); c) recurso de cassação de decisões, que tem por finalidade o exame da legalidade das resoluções de última instância de todos os tribunais do país (Constituição, art. 107, III, V, d, segunda parte, VIII); d) forma de impugnação dos atos da administração ativa, que violem garantias individuais (Constituição, art. 103, I, c/c Lei Regulamentar, art. 1, I), causando dano não reparável mediante algum recurso ou meio de defesa (Constituição, art. 107, IV). Embora o mandado de segurança também seja instrumento protetor de garantias fundamentais, possa servir para declaração incidental de inconstitucionalidade e para a correção de atos judiciais de forma excepcional, para Fix-Zamudio, a última espécie é a que apresenta maior similaridade com ele, na medida em que se destina a impugnar atos da Administração que atinjam direitos individuais. 37 Medina ressalta a grande diferença entre os institutos, o objeto múltiplo do juicio de amparo, comparado à especificidade do objeto do mandado de segurança: Um estudo comparativo entre o juicio de amparo mexicano e o mandado de segurança brasileiro poria em destaque, certamente, outros pontos de discrepância. O maior deles já foi por nós indicado: é o que resulta da circunstância de o juicio de amparo possuir objeto múltiplo, enquanto o mandado de segurança apresenta como traço característico a especificidade de objeto. Aliás, trata-se, no caso, de mais que um ponto de discrepância, de um verdadeiro fosso que se abre entre os dois institutos, situando-os em margens distintas. (MEDINA, 2009, p. 168) Outro diferencial entre os remédios do amparo e do mandado de segurança é que o amparo, em muitos dos países que existe 12 , acabou evoluindo para a tutela de direitos difusos. Já o mandado de segurança se limita à tutela de direitos individuais, ao passo que sua modalidade coletiva apresenta diversa legitimação ativa, o que a distancia muito do amparo, em que o ajuizamento exige a titularidade do direito invocado. Nesse sentido, não podemos dizer que o mandado de segurança tenha evoluído para amparar direitos difusos, pois, ainda que se admita a tutela de direitos difusos pelo mandado de segurança coletivo, somos forçados a admitir que foi criado instrumento paralelo, com legitimação diversa, para esse fim. Outra diferença é que o amparo “tanto pode revestir a forma de ação quanto a de recurso” (MEDINA, 2009, p. 154). Já o mandado de segurança é reconhecidamente uma ação, que “têm por finalidade precípua proteger o autor da ação contra ameaças ou lesões a seus direitos individuais ou, conforme o caso, coletivos”. Como ação, o amparo admite ampla produção de provas, inclusive com realização de audiência, enquanto no mandado de segurança inexiste dilação probatória, já que a ação tem como pressuposto a existência de direito líquido e certo. Por outro lado, esses dois instrumentos correspondem, nas suas origens, às criações mais genuínas do Direito dos dois países do continente americano (MEDINA, 2009, p. 150), o que levou Fix-Zamudio a garantir que: Ambas as instituições, a mexicana e a brasileira, são profundamente nacionais, porque não obstante terem tomado idéias libertárias de outros países, as transformaram, essencialmente, no crisol de sua nacionalidade, conformando-as de acordo com as necessidades e aspirações de seus povos respectivos. (...) Por essa razão, não se pode falar de preeminência de 12 Além do México, Uruguai, Argentina, Bolívia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela adotam o amparo. No Chile existe o “recurso de proteccíon” e na Colômbia, a “acción de tutela”. Na Costa Rica, Chile, Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia, Equador, Uruguai e Colômbia, as ações também alcançam atos de violação de direitos originários de particulares, em maior ou menor extensão. 38 validamento ou supremacia, de uma garantia constitucional sobre outra, mas sim de uma compenetração recíproca, aproveitando as mútuas conquistas alcançadas nos dois países americanos. (1963, p. 64) Medina (2009, p. 152) também ressalta que Belaunde, a partir de pesquisas históricas do instituto mexicano, constatou que o embrião do atual amparo estaria num instrumento de caráter interdital de origem espanhola. Também o mandado de segurança brasileiro tem raízes nos interditos possessórios, como será visto a seguir, o que lhes dá uma afinidade de origem: Ambos os institutos juntam-se nas raízes históricas que lhes são comuns. Cresceram, é certo, em terrenos distintos, ao influxo de exigências peculiares ao direito de suas respectivas Nações. E, embora animados pelo mesmo espírito [proteção jurídica aos direitos fundamentais do homem], que lhes dá vida, ostentam concepções diversas em sua estrutura e seu procedimento. Por isso, cada um deles permite que se orgulhe e sua própria história. (MEDINA, 2009, p. 169) 3. TRADIÇÕES LUSO-BRASILEIRAS Não há dúvidas de que os institutos similares adotados, principalmente, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no México, foram de substancial valia na criação do mandado de segurança no Brasil. A maioria dos autores, muito preocupados em encontrar as raízes do mandado de segurança nos institutos do direito comparado, se esquecem de pesquisar os possíveis antecedentes do instituto no direito português, que foi a base sobre a qual construído o Direito brasileiro. Não obstante a importância dos institutos do direto comparado, é necessário ressaltar a existência de raízes nacionais do instituto, antiquíssimas tradições do Direito luso-brasileiro, que, se não foram a inspiração direta para a criação do mandado de segurança, foram a base sólida na qual ele se fortaleceu. No direito português podemos observar a formação dos primeiros institutos de defesa dos direitos pessoais sob forte influência do direito canônico, que, por sua vez, segundo Talamini (2002, p. 287), havia buscado nos interditos romanos sua inspiração, retomando-se o emprego de um modelo de tutela sumária, apta à rápida expedição de mandados 13 . 13 “Por meio do interdito, o pretor expedia ordem a pedido de um particular para que outro fizesse (interdito restituitório e exibitório) ou deixasse de fazer algo (interdito proibitório). A medida revestia-se de caráter preponderantemente público. Justificava-se como instrumento de manutenção da ordem pública, ainda quando voltado a disciplinar relações privadas. A cognição era sumária. Para a concessão do interdictum, partia-se do 39 A parte fundamental da legislação portuguesa anterior ao século XIX foi compilada em códigos chamados “Ordenações”14. Embora desde a primeira delas existissem inúmeros dispositivos prevendo formas de interditos 15 , foi na terceira dessas Ordenações, as Ordenações Filipinas, como observou Sidou (1989, p. 170), que se destacou uma previsão, elaborada em termos mais sintéticos que nas demais, de que o juiz daria segurança se alguém temesse de outro que o quisesse ofender em sua pessoa ou sem razão ocupar e tomar suas coisas. Seguravam-no com um mandado e tanto os direitos pessoais como os corpóreos eram protegidos. No Livro III das Ordenações Filipinas, que trata de processo civil, Título 78, sobre recursos contra autoridades não judiciais e procedimentos de jurisdição voluntária, §5º, dos chamados “autos extrajudiciais cominatórios”, em exemplo trazido pela própria legislação, já se apresentavam os termos “mandado” e “segurança”, que haveriam de ser utilizados futuramente: (...) se alguém se temer de outro, que o queira ofender na pessoa, ou lhe queira sem razão ocupar e tomar suas coisas, poderá requerer ao juiz, que segure a ele e às suas coisas do outro, que o queira ofender, a qual segurança lhe o juiz dará; e se depois dela ele receber ofensa daquele de que foi seguro, restituí-lo-á o juiz, e tornará tudo o que foi cometido e atentado depois da segurança dada, e mais procederá contra a que a pressuposto de que as alegações de fato formuladas pelo requerente eram verdadeiras, por meio de um juízo de verossimilhança. Tal sumariedade impedia que o interdito concedido se tornasse definitivo. Caso não fosse cumprida a ordem nele contida – por não se entenderem presentes os pressupostos de fato em que se baseou o pretor –, instaurava-se o procedimento pela via ordinária. Daí atribuir-se-lhe caráter condicional. O descumprimento da ordem fazia surgir a necessidade de se investigar a existência dos motivos que deram origem à sua decretação.” O jurista prossegue analisando o direito medieval comum e canônico e expõe um detalhe curioso. Segundo ele, os glosadores da Idade Média desconheciam a grande extensão da tutela interdital em suas origens romanas, tendo notícia de seu uso estritamente possessório na cognitio extraordinária. Por essa razão, teriam ampliado artificialmente o conceito de posse (teoria da posse de direitos pessoais), a fim de conferir remédio sumário e eficaz para um grande número de situações alheias a conflitos verdadeiramente possessórios (TALAMINI, 2002, p. 289). 14 A primeira compilação data do meado do século XV, reinando o Rei D. Afonso V, e denomina-se Ordenações Afonsinas. A segunda, que foi a primeira divulgada pela imprensa, é dos começos do século XVI (duas versões: a de 1512 e a de 1521) e presidiu, portanto, aos primeiros ensaios da colonização do Brasil: são as Ordenações Manuelinas.A terceira, que é mera reforma da anterior, foi publicada em 1603, reinando Filipe II e ficou sendo chamada de Ordenações Filipinas (CAETANO, 1975, p. 30). 15 Fiúza (1990, p. 44) localiza nas Ordenações Afonsinas um remédio para as espécies que hoje são examinadas na ação de mandado de segurança, trata-se da apelação extrajudicial. No seu Livro III, Título LXXX, parágrafo 1, se previa um recurso direto ao Rei ou a seus sobre-juízes contra os atos de entidades que ferissem o indivíduo, com exceção daqueles atos de caráter definitivo. Desses não cabia o recurso de apelação, mas o indivíduo poderia agravar para o rei “por simples querela”, isto é, por meio de uma queixa, um instrumento público ou carta testemunhável, na qual figurasse a sustentação da decisão por parte da “autoridade”. A parte passiva da apelação extrajudicial eram as chamadas “universidades”, no sentido clássico de universitas personarum, ou seja, um conjunto de indivíduos com personalidade jurídica atuando mediante seus órgãos, assembléia geral ou colegiado representativo, como, por exemplo, a Vereação municipal. Do parágrafo 3, que previa o cabimento da apelação também contra atos de partidores e avaliadores de alguma cidade ou vila, poderia se extrair o caráter de medida excepcional contra um representante do Poder Público e sua natureza de ação, embora chamada de apelação. 40 quebrantou e menosprezou seu mandado, como achar por Direito. – grifos nossos Enquanto a primeira parte “se alguém temer de outro, que o queira ofender na pessoa” constitui proteção tipicamente pessoal, destinada a impor prestação de fatos positivos ou negativos; a segunda “ou lhe queira sem razão ocupar e tomar suas coisas” consagra garantia real, destinada a ser protegida por interditos proibitórios. Além dos dois casos exemplificados, as Ordenações regulavam o processo e os efeitos civis da segurança e da sua quebra, podendo extrair de seus dispositivos os atributos essenciais da medida, “intimamente vinculados aos remédios interditais e à tutela específica” (TALAMINI, 2002, p. 295), que acabariam sendo aplicados em outras situações. Segundo Talamini, esses atributos são: possibilidade de caráter preventivo da tutela, cognição sumária, expedição de verdadeira ordem pelo juiz, imposição de um comportamento específico, restituição ao status quo ante em caso de transgressão (e não a simples compensação pelo equivalente pecuniário), a transgressão posterior era qualificada como afronta à autoridade judicial. Não somente a origem onomástica pode ser buscada nas Ordenações Filipinas, como garantiu Sidou, mas também ali se encontram várias das características hoje apresentadas pelo mandado de segurança, como também observado por Fiúza (1990, p. 49). Embora houvesse quem sustentasse o caráter restritivo da norma, muitos eram os doutrinadores que afirmavam seu caráter não exaustivo, ao ponto de empregarem fórmula mais ampla “coisas” e “direitos”, no lugar de “coisas” e “pessoa”. De acordo com Talamini (2002, p. 297): Conquanto a Ordenação parecesse indicar apenas uma tutela impositiva de dever de abstenção e a exemplificação nela contida concernisse apenas à proteção da integridade pessoal e da posse, estabeleceu-se largo domínio de emprego de preceitos cominatórios. Afirmava-se o caráter não exaustivo da regra. Era bastante conhecida a compilação feita por Lobão de vinte e dois casos, além dos dois expressos na Ordenação, em que “o Direito, e a Praxe permittem taes preceitos para diversos fins”. Nesse rol, encontravam-se hipóteses de proteção de direitos reais, hereditários, obrigacionais etc. Havia até mesmo, caos em que a tutela tinha caráter preventivo e instrumental em relação a uma outra pretensão (por exemplo, o “décimo quanto”, “décimo quinto” e “décimo sexto” casos, atinentes a conservação jurídica de coisa litigiosa). Ademais – e eis o aspecto mais importante –, as situações protegidas abarcavam inclusive inúmeras prestações de fatos positivos (deveres de fazer). A ação de preceito cominatório, prevista no Livro III, Título 78, §5º, das Ordenações Filipinas, vigorou por longo período no processo luso-brasileiro para tutela de diversos 41 deveres de fazer e não fazer, com características de interdito. Nesse período, foi freqüente a indistinta atribuição da natureza possessória tanto ao interdito proibitório quanto ao preceito cominatório destinado à garantia de deveres de fazer e de não fazer 16 . Somente mais tarde, se estabeleceria a distinção entre hipóteses verdadeiramente possessórias das demais, de modo a reservar apenas as primeiras a tutela interdital. Caetano (1975, p. 30), contrariando Sidou, localiza no Livro V, que trata da matéria penal, Título 128, o assento principal da segurança nas Ordenações Filipinas. Nele se encontram reguladas as Seguranças Reais. As Seguranças Reais consistiam em uma ordem dada por juízes em nome do Rei para prevenir ou evitar uma ameaça aos direitos de alguém a pedido do ameaçado. Extrai-se de Caetano o conceito, a fórmula prevista nas Ordenações e explicação sobre o campo de incidência e eficácia da medida: Segurança real geralmente se chama a que pede às Justiças a pessoa que se teme de outra por alguma razão.” (...) (...) “se a Justiça da terra, a quem for pedida, for informada que a pessoa que pede esta segurança tem razão justa de se temer, mandará vir perante si aquele de que pede segurança, ou irá a ele, ou mandará lá o Alcaide, segundo a qualidade da pessoa for, e requer-lhe-á da nossa parte que segure aquele que dele pede segurança; se o segurar, mandar-lhe-á dar disso um instrumento público ou carta testemunhável, segundo for o julgador. (...) Mas a Ordenação prevê a seguir a hipótese de o ameaçador se recusar a dar a segurança pedida. Em tal caso, determina a lei, „o Julgador o segurará (ao ameaçado) da nossa parte, de dito e feito e conselho, e além disto castigará o que per seu mandado não quiser dar a dia segurança pelo desprezo, que lhe assim fez, e a pena será segundo a qualidade da pessoa, e a razão que tiver e disser porque não fez seu mandado. (CAETANO, 1975, p. 30) Como pode se extrair da fórmula, o ameaçado dirigia-se ao juiz com jurisdição local e expunha-lhe as razões do seu temor. Se o juiz considerasse justificadas essas razões citava o ameaçador, variando os modos de citação com a categoria social da pessoa citada. E requeria, em nome do Rei, ao citado, que segurasse o ameaçado, isto é, que desse ao ameaçado a garantia de que não lhe faria mal. Depois disso surgiam duas possibilidades: se o ameaçador consentisse em garantir que não faria mal ao ameaçado, o juiz entregava ao ameaçado uma carta ou documento oficial em que constava a segurança; se o ameaçador se recusasse a dar a segurança pedida, então era o 16 Tal indistinção, segundo Talamini (2002, p. 298) era resquício do alargamento do conceito de posse, procedido pelos praxistas na Idade Média (conforme nota 11). 42 juiz que dava a segurança ao ameaçado e punia o ameaçador. Essa pena dependeria da “qualidade da pessoa”, podendo consistir em multa, degredo da vila ou cidade e, até mesmo prisão, se fosse plebeu. O desrespeito à segurança imposta era uma agravante do crime e dobrava a pena. Como garante Caetano (1975, p. 30) não se tratava apenas de desacatar uma ordem expedida em nome do Rei, mas de castigar um elemento perigoso, que com sua conduta renitente em ameaçar outrem, punha em risco a vida ou os bens de uma pessoa e a própria paz pública. Também neste caso Talamini (2002, p. 304) identifica atribuições interditais na fórmula empregada pela Ordenação, que seriam: seu caráter preventivo, cognição sumária, emissão de ordem, descumprimento da ordem gerando afronta à autoridade e implicando na incidência de sanções específicas. Como o Título 128 do Livro 5º não diz qual a “qualidade da pessoa” que poderia assumir o ameaçador, Caetano entende que a segurança podia ser impetrada contra qualquer pessoa, fosse nobre ou plebeu, autoridade pública ou simples particular. Essa interpretação é confirmada pelo §2º, ainda do Título 128, que se refere expressamente às ameaças dos detentores de autoridade: Porém, se alguém pedir segurança do senhor da terra onde viver ou de pessoa que tenha sobre ele jurisdição, não lhe será dada carta (de segurança real) senão com grande e justa razão e mostrando primeiro por escritura pública ou por algum sumário conhecimento ter dele recebido tais agravos por que lhe deva com razão ser concedida a segurança. (CAETANO, 1975, p. 30) Nesse parágrafo encontramos similaridades com a exigência do “direito líquido e certo” para a concessão do mandado de segurança nas expressões “com grande e justa razão” e “mostrando primeiro por escritura pública ou por algum sumário conhecimento”. Para Talamini (2002, p. 303), as Seguranças Reais, aliás, já presentes nas Ordenações anteriores, constituem, juntamente com a “apelação extrajudicial” e as “cartas de seguro” o preciso suporte de que se valeu o habeas corpus para conseguir vingar no Direito brasileiro. As cartas de seguro eram concedidas aos acusados de crime e não aos indivíduos ameaçados (como as cartas de segurança) e se destinavam a permitir que os réus, debaixo de certas condições, se eximissem da prisão até a conclusão da causa. Só eram concedidas “negando o réu o facto ou confessando-o debaixo de legítima defesa”, como citado por Fiúza (1990, p. 49), tendo sido muito utilizadas no Brasil contra os capitães-gerais e autoridades delegadas, de modo a evitar prisões ordenadas sem mandado judicial. A subsistência de resquícios tão fortes do direito comum e canônico no processo 43 brasileiro foi explicada por Liebman com base em razões históricas (citado por TALAMINI, 2002, p. 292). Segundo ele, Portugal teria, muito cedo, compilado nas suas Ordenações as regras e princípios vigentes no direito comum. Depois disso, por estar inteiramente voltado para as questões de suas colônias, teria permanecido alheio às vicissitudes da vida européia, fazendo com que seu direito se mantivesse estável. Com a invasão francesa no início do séc. XVIII, os códigos napoleônicos substituíram o direito comum em Portugal, ficando o Brasil, no entanto, imune, diante da fuga da família portuguesa para o Rio de Janeiro. As razões suscitadas por Liebman, parecem ser a causa, segundo Talamini, do processo civil brasileiro tem se mantido fiel à linha dos interditos. As Ordenações vigoraram no Brasil durante os séculos XVII e XVIII e foram substituídas gradativamente, após a independência, pelas leis administrativas, os Códigos Penal e de Processo Criminal do Império, as leis de processo e o Código Civil de 1917. Os primeiros legisladores do Império conheciam bem as Ordenações, pois tinham, na sua maioria, estudado em Coimbra. Era natural, portanto, que as primeiras leis que surgiram após a independência sofressem forte influência do direito português. Os termos de segurança, que permaneceram até o Código Processual Criminal de 1832, refletem essa forte influência. O artigo 12 do Código enumerava a competência dos juízes de paz, nos §§ 2º e 3º lhe dando poderes para obrigar a assinar termos de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados, prostitutas e turbulentos; e termos de segurança aos “legalmente suspeitos da pretensão de cometer algum crime, podendo cominar neste caso, multa de até 30.000 réis, prisão até trinta dias e três meses de casa de correção ou oficinas públicas.”. O Código regulava esses termos nos artigos 121 a 130 17 , estabelecendo o processo para 17 “Art. 121. O Juiz de Paz a quem constar que existe no respectivo Districto algum individuo em circumstancias dos que se acham indicados nos §§ 2º e 3º do art. 12, o mandará vir á sua presença com as testemunhas, que souberem do facto: se a parte requerer prazo para dar defesa, conceder-se-lhe-ha um improrogavel; e provado, mandará ao mesmo individuo que assigne termo de bem viver, em o qual se fará menção, na presença do réo, das provas apresentadas pró, ou contra; do modo de bem viver prescripto pelo Juiz, e da pena comminada, quando o não observe. Art. 122. Quebrado o termo, o Juiz de Paz, por um processo conforme ao que fica disposto no artigo antecedente, imporá ao réo a pena comminada, que será tantas vezes repetida quantas forem as reincidencias. Art. 123. Todo o Official de Justiça poderá ex-officio, ou qualquer cidadão, conduzir á presença do Juiz de Paz do Districto a qualquer, que fôr encontrado junto ao lugar, onde se acaba de perpetrar um crime, tratando de esconder-se, fugir, ou dando qualquer outro indicio desta natureza, ou com armas, instrumentos, papeis, e effeitos, ou outras cousas, que façam presumir cumplicidade em algum crime, ou que pareçam furtadas. Art. 124. Se o Juiz perante quem fôr levado o suspeito entender que ha fundamento razoavel (depois de ouvil- o, e ao conductor) para acreditar-se que elle tenta um crime, ou é cumplice, ou socio em algum, o sujeitará a termo de segurança, até justificar-se. Art. 125. O mesmo póde fazer o Juiz toda a vez que alguma pessoa tenha justa razão de temer que outra tenta um crime contra ella, ou seus bens. Art. 126. O conductor, ou as partes queixosas devem dar juramento, e provar com testemunhas (ou documentos, quando lhes fôr possivel) sua informação escripta; o accusado póde contestal-a verbalmente, e 44 expedição e assinatura dos mesmos. No direito atual essas figuras não mais existem, tendo sido substituídas por outros instrumentos de tutela de liberdades. Não obstante esse fato, historicamente, tais figuras tem grande relevância na construção de uma cultura jurídica receptiva a defesa dos direitos fundamentais no Brasil. Segundo Talamini (2002, p. 305), a sobrevivência de elementos com caráter interdital na ordem processual brasileira garantiu um ambiente propício para a introdução do habeas corpus pelo Código de Processo Criminal e para sua consolidação no Direito brasileiro. De acordo com o autor, foram esses resíduos de tutela interdital que possibilitaram, por exemplo, que em 1871, o habeas corpus assumisse também uma dimensão preventiva, que não lhe era inicialmente atribuída pelo direito inglês, mas já estava presente nos interditos. Citando Castro Nunes, ele garante também que esse mesmo atributo da tutela interdital presente no habeas corpus e no mandado de segurança desde sua criação, a possibilidade de injunções contra a administração, era exceção no Direito continental europeu, em que a restauração do direito individual violado pelo Poder Público se operava, naquele mesmo contexto, em regra, sob a forma reparatória. Tudo isso revelaria a importância da sobrevivência dos interditos em nossa tradição processual. 4. INSUFICIÊNCIA DO PROCESSO TRADICIONAL BRASILEIRO Durante todo o período que o Brasil esteve sujeito ao domínio português, as fórmulas interditais previstas nas Ordenações, acima descritas, eram as únicas medidas de que dispunha o indivíduo para ver seus direitos pessoais garantidos. Não obstante sua importância como antecedente histórico, já afirmada, não podemos deixar de ressaltar que a monarquia lusitana, como as demais naquele contexto, tinha caráter absoluto, com um Poder Executivo que absorvia em si todos os Poderes. Assim, dificilmente, o particular conseguiria ver satisfeitos seus direitos se eles se encontrassem sendo obstacularizados pelo Poder Público. Barbi provar tambem sua defesa antes que o Juiz resolva; e por isso no segundo caso deve ser notificado para vir á presença do mesmo Juiz. Art. 127. O Juiz, se a gravidade do caso o exigir, porá a parte queixosa sob a guarda de Officiaes de Justiça, ou outras pessoas aptas para guardal-a, em quanto o accusado não assigne o termo. Art. 128. Se o accusado destróe as presumpções, ou provas do conductor, ou queixoso, o Juiz o mandará em paz, mas nem por isso fica o conductor, ou queixoso sujeito a pena alguma, salvo havendo manifesto dolo. Art. 129. Estes termos de segurança seguem todas as regras estabelecidas para as fianças dos réos que se pretenderem livrar soltos. 45 acentuava que o Rei podia avocar as causas que pendiam perante juízes e tribunais judiciais e promover como entendesse conveniente. Citando o Visconde do Uruguai: Nem qualquer autoridade ia ou podia ir de encontro ao que o Governo achasse de interesse público. Tinha este muitos meios para a fazer embicar no caminho que convinha, e era tão forte que não podia ser, e não era, contrariado. Eram o juízes seus delegados e instrumentos e não havia divisão entre o Poder Judicial e Administrativo, que jaziam confundidos. (BARBI, 2002, p. 26) De acordo com Carlos Alberto Pimentel Uggere (1999, p. 39): Na fase do Brasil-Colônia, em face da submissão à Monarquia Portuguesa (regime absolutista), que se aplicava ao território d‟além mar, recém descoberto, não havia, por esse motivo, evidentemente, qualquer previsão do meio, de natureza processual, que ensejasse obstáculo aos atos abusivos praticados pelos agentes da Coroa lusitana no desenvolvimento de seu mister. Era bastante claro que não havia espaço para a proteção dos direitos fundamentais se era o Poder Público o agente violador desses direitos. Mesmo após a Independência, quando o Brasil e o mundo já haviam alcançado os bons ventos espalhados pela Revolução Francesa, ainda não havia instrumentos efetivos para a tutela de liberdades contra o Poder Público no Brasil. Além do caráter incontestável que os atos das autoridades públicas assumiam no período, as normas do processo existentes, construídas para atender a litígios entre particulares, não conseguiam dar adequada e eficaz solução aos conflitos entre o particular e a Administração. Do caminho da dualidade de jurisdição esboçada na época imperial, passando pela utilização dos remédios possessórios – rápidos e dotados de execução específica – e do habeas corpus, por influência de Rui Barbosa, diversas foram as tentativas da doutrina brasileira de encontrar no ordenamento vigente a solução para esse problema. 4.1. Dualidade de jurisdição Por um breve período, o Brasil experimentou um sistema de dualidade de jurisdição, inspirado no sistema francês. No entanto, o contencioso administrativo brasileiro “era um Art. 130. Estes termos serão escriptos pelo Escrivão, assignados pelo Juiz, testemunhas e partes; e quando estas não queiram assignar, ou não souberem escrever, o fará por ellas uma testemunha.” 46 instituto mal delineado, impreciso, em via de formação”, nas palavras de Nuno Pinheiro (citado por NUNES, 1980, p. 30). Em decreto de 22.11.1823, o Imperador criou um Conselho de Estado, composto por dez membros, inspirado pelo modelo francês. A Constituição de 1824 manteve esse conselho, mas com funções políticas e administrativas. Em 1842, foi expedido o Regulamento nº 124, que continha o Regimento do Conselho de Estado. Considerando a dificuldade de fixação dos limites entre a jurisdição dos tribunais judiciais e do contencioso administrativo, em parecer aprovado pelo Imperador em 22 de dezembro de 1866, o Conselho de Estado garantiu o caráter excepcional de sua atuação, o que diferenciava nosso sistema do modelo legítimo: A regra geral e protetora da ordem social é que toda questão contenciosa, todo o litígio de direitos, mormente individuais ou civis, que por isso mesmo demandam julgamento, pertencem à alçada do Poder Judiciário e do juízo comum. Para isso é que foram constituídos esse poder e esse foro. O Contencioso Administrativo, que é excepcional, só se compõe das questões que, ou por atenção à sua natureza ou por conveniência do serviço, são destacadas „expressamente‟ por lei do domínio do foro ordinário para a competência dos tribunais administrativos, com limitação especial daquela norma ou princípio geral. Garantida a excepcional atuação do Contencioso Administrativo, Barbi (2002, p. 28) conclui pela predominância das formas processuais da justiça comum para proteção do particular contra os atos ilegais do Poder Público. Predominância, não exclusividade, como admite o autor. O Conselho de Estado continuaria atuando nas causas em que a lei expressamente lhe cometia a função de dirimir contendas da Administração e os particulares, como nas “questões de presas e indenizações”, hipótese fixada no art. 7º da lei que criou o Conselho. Como o Conselho tinha a possibilidade de interpretar o alcance da lei, acabava ficando a seu cargo decidir os atos que impunham sua atuação. Proclamada a República e vigente a Constituição de 1891, o Brasil enveredou no caminho da unidade de jurisdição. Assim, todo direito lesado por ato administrativo passou a encontrar reparação exclusivamente em tribunais judiciários, o que hoje decorre do art. 5º, XXXV da Constituição. O Direito Processual brasileiro não difere o tratamento entre particulares e partes estatais, nos dois casos ao Poder Judiciário cabe solucionar o conflito e dar a palavra definitiva, daí resultando a preponderância que se reconhece a esse Poder em tais países, como bem observado por Nunes (1980, p. 27), o que não exclui a possibilidade de controle da administração sobre seus próprios atos. 47 Abolido o Contencioso Administrativo, os julgamentos entre particulares e a Administração passou a ser regido tão somente pela legislação processual civil. Os primeiros procedimentos adotados pela legislação processual, no entanto, quer no Império, quer nos primeiros anos da República, como garante Barbi (2002, p. 29) não eram suficientemente rápidos e eficazes para a proteção dos direitos dos indivíduos. O principal defeito era sua incapacidade para atender aos casos em que o direito violado não pudesse ser reparado de forma pecuniária. Nesse período, de grande relevância, foi o esforço empreendido pela doutrina para fazer encontrar no ordenamento jurídico brasileiro meio idôneo a ensejar a proteção jurisdicional dos direitos vinculados às liberdades. Depois da abolição do contencioso administrativo, Pacheco (2002, p. 127) aponta as seguintes teses utilizadas na tentativa de buscar um instrumento efetivo de garantia das liberdades pessoais: a) a ação sumária, que acabou se mostrando insuficiente por carecer de procedimento rápido e expedito; b) o habeas corpus, porque se restringia aos casos de violação ou ameaça da liberdade de locomoção; c) os interditos, que tiveram aplicação restrita à proteção da posse das coisas corpóreas. Vejamos cada uma delas. 4.2. Utilização dos interditos possessórios No final do século XIX, diante da inexistência de instrumentos adequados e eficazes para a garantia das liberdades no Direito brasileiro, procurou-se novamente através dos interditos possessórios, ações com feição mandamental, garantir a tutela dos direitos pessoais de forma célere 18 . A Rui Barbosa coube representar a doutrina brasileira que retomou a teoria canônica da extensão da proteção possessória aos direitos pessoais, o que fez em artigos publicados no Jornal do Comércio em 1896 e, mais tarde, no livro “Posse de direitos pessoais”, editado pela 1ª vez em 1900. Savigny, realizando uma análise histórica profunda do direito canônico 19 , já havia defendido a possibilidade de utilização das ações possessórias para objetos jurídicos 18 Para Talamini, embora o caminho adotado tenha sido o da ressurreição da antiga idéia de que os direitos pessoais eram passíveis de posse e, assim, passíveis de tutela pelos interditos, talvez se pudesse ter buscado idêntico resultado mediante a demonstração de que não se justificava, dos pontos de vista histórico e prático, a limitação da força interdital às relações possessórias (conforme notas 11 e 14). 19 Sidou constata a defesa rudimentar da posse dos direitos pessoais antes do direito canônico: “Muito embora não se possa dizer que o direito romano clássico conheceu a posse dos direitos pessoais, é sensato admitir que as ficções jurídicas nele engenhadas da quase-posse e da possessio iuris aplicada às servidões, para cujo exercício havia o animus mas inexistia o corpus, abriu caminho ao seu futuro reconhecimento. 48 incorpóreos justamente em razão do incremento do direito material sem a correspondente existência de mecanismos processuais específicos para tutelá-los (citado por MEDINA e ARAÚJO, 2009, p. 24). Embora a posse, na fase mais primitiva do direito romano, tivesse como objeto apenas coisas corpóreas, segundo Savigny, ocorrendo a turbação de um direito no seu exercício, poderia ele ser tutelado por um interdito, já que o interdito, ao proteger o exercício do direito de propriedade, também protegeria, por analogia, o exercício do direito turbado (citado por REMÉDIO, 2009, p. 163). Tomando como referência histórica a teoria da posse de direitos pessoais, desde o direito canônico, passando também pelo direito português, Rui Barbosa, em incansável defesa em favor da tese da adequação dos interditos possessórios à proteção dos direitos pessoais, pontificava: Não obstante a sua imaterialidade, pois, isto é, o seu caráter de simples direito, contraposto ao de realidades corpóreas, esses bens são objeto de posse. E, desde que o são, vêm a entrar, pela definição do art. 585, na categoria de coisas. Não é, logo, de jurisconsultos a inferência que liga à palavra coisas, no texto da Ordenação, o pensamento exclusivo de objetos corpóreos. Ao menos os jurisconsultos portugueses nunca lhe enxergaram este intuito. A opinião geral deles foi sempre que o espírito manifesto do texto era proteger, não só o gozo legítimo da propriedade real, senão os direitos privados ou públicos, inerentes à pessoa. (BARBOSA, 1959, p. 19) A jurisprudência, antes do Código Civil de 1916, apesar de dividida, chegou a acolher a tese da proteção de direitos por meio de interditos algumas vezes, como na exploração de serviços funerários, em 1873, em favor da empresa funerária; na suspensão do fornecimento de gás, a favor dos consumidores; na manutenção de posse de 16 lentes da Escola Politécnica, suspensos em 1896 20 . Já o Supremo Tribunal Federal não acolheu a tese, limitando a proteção No direito do século IV já se esboçava um conceito empírico de posse não necessariamente de coisa, e duas constituições do ano 302, uma de Diocleciano, outra de Maximiliano, evocando a praescriptio longoi temporis (C., 7.22, leis 1 e 2), falam em „posse da liberdade‟. (...) No direito germânico antigo, o instituto da garantia – Gewähr – protegia tanto direitos reais (iura in re dos romanos) como pessoais (iura ad rem). Mas foi o direito canônico o agente ampliador por excelência desta modificação notável na idéia de posse, estendeu a quase-posse aos direitos episcopais, aos dízimos, às tarifas aduaneiras e a outros direitos, daí resultando progressivamente a sua extensão a outros direitos pessoais, cuja proteção na praxe civil acabou sendo admitida.” (SIDOU, 1989, p. 107) 20 Nesse pleito foi advogado Rui Barbosa, quando os lentes da Escola Politécnica impetraram ao Juízo do Distrito Federal “manutenção de posse no exercício desses cargos, de que ilegalmente os suspendeu por três meses, com perdas dos vencimentos, o ministro da justiça e negócios interiores, por ato de 15 do corrente”. De acordo com Buzaid (1989, p. 27), Rui Barbosa demonstrou que a suspensão ilegal importava em turbação na posse do direito, daí a possibilidade de utilização dos interditos possessórios, instrumentos judiciários de tutela 49 possessória para defesa da posse das coisas materiais e quase-posse dos direitos reais (REMÉDIO, 2009, p. 164). De acordo com Nunes (1980, p. 5), ao citar Alcântara Machado, o Poder Legislativo deu razão até certo ponto à tese, decidindo ampliar o interdito proibitório e a manutenção da posse à defesa dos contribuintes contra a cobrança de alguns impostos ilegais (Lei nº 3.185, de 1904). A polêmica se acirrou após a vigência do Código Civil, que não estendia, em seu art. 485, a posse aos direitos pessoais. Após um período de instabilidade, sedimentou-se a jurisprudência pela inadmissibilidade da proteção interdital dos direitos pessoais, embora com pequena recaída após a restrição expressa do âmbito cabimento do habeas corpus com a Reforma Constitucional de 1926, que será tratada a seguir. Atualmente, a matéria não comporta maiores discussões. Entende-se, hoje, que, sendo a posse a exteriorização da propriedade 21 e correspondendo esta a um direito eminentemente patrimonial, não se pode, em conseqüência, utilizar-se os interditos possessórios para realizar a pretensão de tutela a direitos pessoais ou obrigacionais, de conteúdo extrapatrimonial. Ademais, caracterizando-se a posse como um fato positivo que vincula uma pessoa a uma coisa, é da sua natureza recair sobre coisas tangíveis, porque só assim haverá a exterioridade da propriedade. Assim, para a doutrina atual, a proteção possessória de direitos pessoais é incondizente com a detenção de coisa, corpórea, material. 4.3. Ação sumária especial Outro mecanismo de tutela específica de liberdades públicas do indivíduo que existiu no ordenamento jurídico brasileiro foi a chamada ação sumária especial. Prescrevia o art. 13 da Lei 221, de 1894, que dispunha sobre a organização da Justiça Federal: “os juízes e tribunais federais processarão e julgarão as causas que se fundarem na lesão de direitos individuais por atos ou decisão das autoridades administrativas da União”. O enorme potencial da lei, que no §7º do seu art. 13 previa, inclusive, a possibilidade de suspensão da execução do ato impugnado antes de findo o pleito, não foi bem percebido pela doutrina. Evidenciando a timidez com que os estudiosos da época trataram do instituto, afirmava Gastão da Cunha, citado por Facci (2003): “a competência definida no art. 13, par. 9º, ofende flagrantemente o princípio básico da divisão de poderes, que o art. 15 da do direito que, sem mudar de natureza, se vão adaptando, com a evolução jurídica, às novas aplicações da posse, às necessidades ulteriores de sua proteção. 21 Doutrina preconizada por RUDOLF VON IHERING, a qual se filiou o nosso Código Civil de 1916 (art.485) e o atual Código Civil (art. 1.196). 50 Constituição quer harmônicos e independentes entra si”, protestando contra a possibilidade de anulação do ato de autoridade administrativa pelo Judiciário. Alcântara Machado (citado por NUNES, 1980, p. 4) revelou que: Ou pela incompreensão dos juízes ou pela inércia dos interessados, ou pela imperfeição do sistema, a verdade é que, na prática, a ação especial se mostrou destituída da eficiência reclamada pela própria natureza dos direitos em causa. De acordo com Themístocles Brandão Cavalcanti, a restrição de seu âmbito de cabimento aos atos ou decisões puramente administrativas, denunciava-lhe a falta do “caráter genérico dos remédios eficientes”, o que fez com que os resultados que dela se esperavam fossem deficientes, senão nulos (citado por REMÉDIO, 2009, p.166). Além disso, embora tivesse rito sumário, sem dilação probatória, seu processamento se mostrou demorado na prática, o que não condizia com as exigências de celeridade, já almejada naquela época. De acordo com Barbi (2002, p. 30): Vários motivos são apresentados para explicar seu insucesso, tais como o pouco preparo dos juízes, a inércia dos interessados ou defeitos no sistema, que permitia a suspensão inicial do ato impugnado, mas não levava a uma rápida decisão da causa, o que acarretava ponderável desvantagem para a Administração. A força da necessidade obrigou então os advogados a tentar obter por outros meios a adequada proteção dos direitos violados pela Administração. Ressalte-se que, com a Lei nº 1.939/1908, a ação sumária especial teve seus efeitos estendidos aos atos e decisões das autoridades administrativas dos Estados e Municípios. Vários códigos estaduais adotaram os mesmos princípios. Ainda assim, foram insuficientes os resultados obtidos nas tentativas de utilização do instituto. Não obstante sua incipiente utilização, reconhece-se a importância da ação sumária especial para a construção doutrinária que, mais tardiamente, se realizaria em sede de controle jurisdicional de atos de autoridade (FACCI, 2003). As críticas que lhe foram levantadas serviram para demarcar o que se esperava de um instrumento de proteção do indivíduo diante do Poder Público, que fosse célere e contra atos de autoridades amplamente consideradas. 4.4. A doutrina brasileira do habeas corpus O habeas corpus foi o primeiro remédio processual de tutela específica dos direitos e garantias individuais que surgiu no Direito brasileiro. A Constituição Federal de 1891, em seu 51 art. 72, §22 dispunha: “dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder”. Foi a ausência de menção à liberdade de locomoção no dispositivo constitucional que deu ensejo à chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”. Em nível infraconstitucional22, o habeas corpus já havia sido previsto pelo art. 340 do Código de Processo Criminal de 1832, que, de forma mais restritiva, garantia: “todo cidadão que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em, sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de – habeas corpus – em seu favor”23. Em razão da distinção do tratamento dado ao instituto pela Constituição, a doutrina, também incentivada por Rui Barbosa, percebeu a possibilidade de um alargamento da utilização do habeas corpus, para garantir não simplesmente a liberdade de locomoção, mas também a liberdade individual em sentido mais amplo. Bem da verdade, três correntes de interpretação surgiram. A primeira, capitaneada por Rui Barbosa, defensor incansável das liberdades públicas, afirmava que com a ampliação dada ao habeas corpus na Carta Republicana, o remédio não estaria mais apenas circunscrito aos casos de constrangimento corporal e que poderia ser pedido e concedido em todos os casos de ilegalidade ou abuso de poder e que resultasse em qualquer tipo de violência ou coação, ainda que meramente moral. Se a Constituição não havia particularizado os direitos, que, com o habeas corpus, queria proteger, estaria claro seu propósito em garantir qualquer direito. Foi nesse contexto que Rui Barbosa criou a escola anglo-saxônica, que se encarregou de interpretar as instituições constitucionais dos Estados Unidos do Brasil, sobretudo o funcionamento do federalismo político e do sistema judicialista, a partir das normas da América do Norte e da Grã-Betanha (CAETANO, 1975, p. 29). Arnold Wald (1968, p. 34), também citado por Leyser (2002, p. 39) dizia: (...) a ampliação do remédio processual não foi mera especulação de jurista romântico, nem teve sentido demagógico. Estava muito intimamente ligada ao desenvolvimento político de nosso povo. Visava assegurar ao Brasil, dentro de certos limites, os respeito aos direitos individuais, restringindo o arbítrio do executivo e dando ao judiciário a função 22 A Constituição de 1824, embora contivesse capítulo relativo aos direitos individuais, por influência da Declaração dos Direitos do Homem, não contemplou o habeas corpus, que foi introduzido no ordenamento jurídico por lei ordinária. 23 Vale ressaltar que durante o Império, embora limitado a garantir a liberdade física, o habeas corpus foi empregado não apenas no campo do direito criminal, mas também na esfera cível. Em exemplo de Pontes de Miranda, Talamini (2002, p. 306) se refere a dois interessantes acórdãos em que concedida a ordem para assegurar a liberdade de escravos libertos por meio de cartas de alforrias duvidosas e remetidas às partes interessadas às vias ordinárias para provar que o ato de libertação havia sido indevido. 52 fiscalizadora da aplicação da Constituição e das leis, que lhe pertence dentro de nosso sistema. A discussão teórica não constituíra, pois, mera figura ou sutileza jurídica, mas tivera destacada repercussão política na realidade viva do Brasil, como posteriormente haveria de suceder com o mandado de segurança, que iria moldar a realidade orgânica de nossas instituições. A segunda corrente restringia o habeas corpus à exclusiva defesa da liberdade de locomoção. Já a terceira corrente, intermediária, sustentava que o habeas corpus poderia proteger não apenas a liberdade de locomoção, mas também todas as situações em que a ofensa à liberdade de locomoção fosse meio de afronta a outro direito. Tinha como um de seus defensores mais importantes o Ministro do Supremo Tribunal Federal Pedro Lessa, que trazia a seguinte situação como exemplo no HC 3.567, de 1º/07/1914: (...) a restrição à liberdade religiosa efetivada mediante proibição de ingresso no templo seria atacável por habeas corpus; no entanto, este remédio não poderia ser utilizado para combater afronta à mesma liberdade de religião que se concretizasse pela destruição de objetos de culto, pois, nessa segunda hipótese, não se cogitaria de violação a direito de ir, vir ou ficar. (citado por TALAMINI, 2002, p. 308). Diante da ausência de previsão legal pelo ordenamento jurídico brasileiro de outros remédios, específicos para a tutela de direitos de natureza diversa do direito de locomoção, a jurisprudência passou a oscilar entre as teses de Rui Barbosa e de Pedro Lessa, o que se justificava, inclusive, pelo fato de nenhuma outra ação possuir a rapidez e eficiência do habeas corpus. Alguns exemplos da utilização do habeas corpus naquele contexto são trazidos por Arnord Wald, são eles: em favor dos bicheiros e meretrizes, a fim de impedir o exame de livros comerciais e o segredo da escrita comercial, para garantir a liberdade profissional e o exercício de cargos públicos eletivos, a fim de permitir a prática de culto espírita, para garantir direito de reunião, a fim de reformar sentenças, para permitir a mulher que seguisse o marido em seu domicílio não obstante a oposição dos seus pais (citado por REMÉDIO, 2009, p. 167). Outros exemplos, citados por Talamini (2002, p. 307), foram: combater indevidos cancelamentos de matrículas em escola, assegurar a realização de comícios eleitorais, fazer circular jornal, e, uma ordem obtida pelo próprio Rui Barbosa em seu favor, para, como parlamentar, poder publicar seus discursos no Congresso também em outros jornais, que não o Diário Oficial. 53 A ausência de menção à liberdade de locomoção no dispositivo referente ao habeas corpus da Constituição de 1981 e a sua conseqüente utilização na tutela de outros direitos levou Sidou a sustentar que o mandado de segurança nasceu nessa Constituição e não na Constituição de 1934 24 . Os Tribunais, com o tempo, porém, diante da crescente demanda dos casos submetidos à apreciação do Judiciário com ampliação do habeas corpus a outros direitos individuais, passaram a enfrentar o assunto com cautela, voltando a limitar sua utilização aos casos de violação à liberdade de locomoção. Por fim, as discussões sobre o âmbito de cabimento do habeas corpus esvaziaram-se na Reforma Constitucional de 1926, que deu nova redação ao §22º do art. 72, nos seguintes termos: “dar-se-á o hábeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar em iminente perigo de sofrer, violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção”. A Constituição passou, portanto, a restringir expressamente seu âmbito de cabimento à proteção da liberdade de locomoção. Parte da doutrina, sem recursos argumentativos diante da clareza do texto constitucional, buscou ressuscitar a tese da utilização dos remédios possessórios para tutela de direitos pessoais, o que, todavia, não mostrou muito êxito. A restrição do habeas corpus à sua função histórica tornou urgente a criação de outro remédio constitucional que preenchesse a lacuna deixada pela destruição que a reforma constitucional tinha operado sobre a obra jurisprudencial até aí realizada (CAETANO, 1975, p. 29). 24 “De quanto ficou exposto sobre a consagração constitucional do habeas corpus, pode-se induzir que o primeiro constituinte republicano erigiu um instituto protetor dos direitos coletivos cimentado em histórico suporte, filiando-se assim ao sistema monista da garantia dos direitos sem buscar modelos nem se inspirar na contribuição alóctone. Não se limitou a elevar o habeas corpus de sua condição de remédio penal a recurso constitucional. Criou um instituto em defesa da liberdade pessoal e, consequentemente, de todos os demais direitos que por meio dela se exercitam, o qual exigia naturalmente curso célere, e neste propósito, neste único propósito, aplicou-lhe o nome prestigioso, marcado inequivocadamente pela característica da celeridade. Se é certo que ninguém jamais entendera de aplicar o habeas corpus a não ser para proteger a liberdade corpórea, também não admite desacordo sério afirmar ao lado de Kent que todo constrangimento à liberdade do indivíduo equivale, aos olhos da lei, à prisão, qualquer que seja o meio utilizado para efetivar a coação. Não cremos tenham-se excedido os constituintes republicanos do fim do século passado utilizando o nome do habeas corpus para o garantidor brasileiro da liberdade. Short-Mellor definem o habeas corpus – „processo legal que se aplica para fazer valer sumariamente o direito de liberdade pessoal, quando ilegalmente restringido, processo extensivo a todos os casos de prisão ilegal, por ordem de autoridade pública ou violência de um particular‟. Do enunciado só é possível concluir que a liberdade pessoal é um continente, conceito amplo, capaz de ser restringido ilegalmente inclusive, conceito restrito, por prisão. A filosofia em que o princípio assenta é velhíssima. Já sentenciava Venulejo, nos Interdictorium (D., 43.29.2): „Não se diferenciam muito dos escravos aqueles a quem não se dá a liberdade de ir por onde queiram.‟. Portanto, à luz do entendimento extraído dos próprios mestres de idioma inglês, o habeas corpus pode ser ampliado na medida em que se exija dele garantir a liberdade individual. Apenas o que não pode é ter restringida a condição sumária em seu deferimento.” (SIDOU, 1989, p. 170). 54 O problema só seria superado com a Constituição de 1934, com a criação do mandado de segurança. Nas palavras de Theodoro Júnior (2010, p. 5), em determinada fase histórica, o direito constitucional brasileiro assumiu a consciência de que não apenas o direito de ir e vir era merecedor da tutela por um remédio jurisdicional específico contra as arbitrariedades dos agentes do Poder Público, também era necessária a reparação imediata e enérgica das violações de outros direitos, a par da liberdade pessoal. 5. SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA De grande importância toda a tentativa da doutrina – e mais notadamente do esforço de Rui Barbosa – no sentido de se encontrar solução à falta de remédio idôneo e eficaz para proteger prontamente as liberdades individuais. O maior mérito desses debates, sem dúvida, foi pôr em evidência o descompasso entre o direito material e os mecanismos processuais então existentes, incapazes de tutelá-lo de forma satisfatória. Nas palavras de Facci (2003): O fato de admitir parte da doutrina e, muitas vezes, até mesmo a jurisprudência, a imprópria utilização de institutos jurídicos históricos, tal como se sucedeu com o habeas corpus e com os interditos possessórios, nos evidencia o sentimento de desamparo que, à época, acometia o operador do Direito e afligia o indivíduo ante ao Estado. Esta vulnerabilidade, de fato, possuía sua razão de ser. A discussão da utilização dos interditos possessórios para a proteção de direitos pessoais, neste sentido, muito menos se tratou de uma questão meramente de dogmática jurídica do que de uma busca legítima para munir o cidadão de garantias – que este não encontrava no ordenamento – contra possíveis desmandos do Poder Público. Tendo se mostrado infrutíferas as tentativas de amparar o indivíduo com o uso dos instrumentos processuais então disponíveis 25 , voltaram-se os juristas da época para a criação de uma medida judicial específica, de rito sumário. Muitos projetos surgiram neste sentido. Historicamente, o primeiro projeto que faz referência – ainda que por associação – ao mandado de segurança como ação especial, é de Alberto Torres. No apêndice de sua obra “A Organização Nacional”, publicada em 1914, ele elaborou um projeto de reforma constitucional, que incluía o mandado de garantia entre as garantias constitucionais, no seu art. 73, que assim previa: 25 Resumindo o que foi dito no capítulo anterior, Pacheco (2002, p. 127) garante que: “a) a ação sumária era insuficiente por carecer de procedimento rápido e expedito; b) o habeas corpus restringia-se aos casos de 55 (...) é criado o mandado de garantia, destinado a fazer consagrar, respeitar, manter ou restaurar preventivamente, os direitos individuais ou coletivos, públicos ou privados, lesados por ato do poder público, ou de particulares, para os quais não haja outro recurso especial. (citado por REMÉDIO, 2009, p.168) Observe-se o pioneirismo da proposta no que toca à garantia, inclusive, de direitos coletivos e uma similaridade com os institutos do direito comparado, já que o instituto também se propunha a tutelar direitos violados por particulares e não apenas pelo Poder Público. Nas considerações iniciais ao seu projeto, Alberto Torres teceu judiciosas considerações, citadas por Sidou (1989, p. 172): Como garantia judiciária à liberdade e à segurança individual, não se pode desejar mais do que o instrumento que a Constituição consagra. O habeas corpus é uma proteção judiciária à liberdade, como em nenhum outro país se encontra. Já o mesmo não se dá com a propriedade e os direitos patrimoniais em geral. A Seção da Declaração de direitos consagra-os, diz que os assegura, coma forma solene e peculiar a todas estas reedições constitucionais da “Declaração dos Direitos do Homem”; mas a forma prática da garantia judiciária deixou de corresponder à veemente promessa. Era natural que a Constituição cogitasse de tornar efetiva a garantia que proclamava, criando para estes direitos o recurso para o Supremo Tribunal, equivalente ao conferido ao habeas corpus. Outra proposta que também não fazia distinção entre ato de autoridade pública ou ato privado foi a do Ministro do Supremo Tribunal Federal Edmundo Muniz Barreto, em Congresso Jurídico de 1922, promovido pelo Instituto dos Advogados Brasileiros em comemoração ao centenário da Independência. Nela o Ministro sustentava a carência de um remédio semelhante ao recurso de amparo mexicano, já traçando todos os principais contornos do instituto, tal como definitivamente acabou sendo cunhado: Do que necessitamos é de um instituto semelhante ao recurso de amparo, criado no México, com procedimento todavia mais sumário, que compreenda tanto o agravo ao direito que provenha da autoridade pública, como do proveniente do ato privado. Exposto o fato na petição, provado com documentos que façam prova absoluta, e citada a lei que se diz violada com esse fato, o juiz mandará que o indicado ofensor responda em prazo breve, instruindo a resposta com os instrumentos que tiver. Tal como se fosse um processo de habeas corpus, o juiz julgará sem demora a causa. Se verificar que o fato alegado não é certo e líquido ou não está provado, mandará que o requerente recorra aos juízos comuns. (...) violação ou ameaça da liberdade de locomoção; c) os interditos tinham aplicação restrita à proteção da posse das coisas corpóreas, sendo repelida a teoria que lhes atribuía a faculdade de amparar outros direitos.”. 56 O incremento da vida judiciária e a necessidade de solução rápida de certas situações de anormalidade, apreciáveis de plano pelos tribunais e incabíveis no remédio do habeas corpus, exigem a criação de um instituto processual capaz de reintegrar o direito violado. (citado por SIDOU, 1989, p. 173 e por NUNES, 1980, p. 3) O parlamentar Gudesteu Pires apresentou um projeto de lei, em 1926, prevendo mandados de proteção e de restauração, para proteger todo direito pessoal, líquido e certo, fundado na Constituição ou em lei federal, contra quaisquer atos lesivos de autoridades administrativas. O Projeto de Gudesteu Pires parece ter sido o primeiro a restringir a utilização do remédio às relações de direito público, uma vez que nas sugestões anteriores o remédio tinha amplitude maior, protegendo direitos públicos e privados, lesados por atos de autoridades ou por particulares. Disso podemos extrair que a preocupação inicial da doutrina não era a de criar um mecanismo específico para proteger o cidadão contra os desmandos do Poder Público, mas a de criar um instrumento célere para a proteção de liberdades pessoais. Logo, o mandado de segurança teria nascido para suprir uma deficiência do sistema vigente quanto à inexistência de mecanismos eficientes para tutelar o indivíduo, mas não particularmente contra o Estado. Essa característica exclusiva de proteção contra os desmandos do Poder Público se deu por influência do regime do habeas corpus e acabou se tornando elemento essencial e de distinção do mandado de segurança frente aos outros instrumentos existentes no Direito Comparado, como se verá a seguir, no capítulo 6. O projeto de Gudesteu Pires previa também o comparecimento da autoridade coatora frente à autoridade judiciária em 48 horas e decadência no prazo de seis meses. Esses mandados tiveram sua terminologia alterada pelos substitutivos da Comissão de Justiça, tornando-se mandados de reintegração, manutenção e proibitório. Esses qualificativos foram “meramente expletivos, para efeito de tipificar o agravo de direito ameaçado, tentado ou violado”, como garante Sidou (1989, p. 175). Além disso, os substitutivos dispensaram o comparecimento da autoridade coatora, substituindo-o pela prestação de informações, que poderiam ser documentadas e diminuiu o prazo decadencial para 30 dias. Previram, ainda, que, uma vez indeferido o pedido, não poderia ser renovado pela mesma via, sendo lícito intentar a ação sumária especial ou a ordinária. O projeto de lei de Gudesteu Pires, apesar de amplamente modificado, juntamente com outros de autoria dos parlamentares Matos Peixoto, Odilon Braga, Bernardes Sobrinho, Clodomir Cardoso e Sérgio Loreto, foram debatidos em épocas distintas, mas não chegaram sequer a ser votados em Plenário. Esses projetos continham previsões diversas, algumas 57 pouco relevantes e que não vingaram, como a possibilidade de depoimentos de testemunhas, em prejuízo a sumariedade do procedimento do instituto, a impossibilidade de utilização na cobrança de dívida fiscal ou contra ato judiciário; outras de grande relevância, como a medida liminar, o recurso obrigatório nos casos de concessão; cada qual atribuindo ao instituto nome diverso: ação de manutenção, ordem de garantia, mandado proibitório, mandado asseguratório ou recuperatório. Questões de grande relevância foram debatidas, como nos garante Nunes (1980, p. 6), citando Alcântara Machado: Esta, por exemplo, das mais interessantes: se o remédio processual devia ser aplicado a todas e quaisquer infrações de direitos individuais, partissem elas de onde partissem, ou se devia amparar o indivíduo tão- somente contra os atos de agentes do Poder Público. Outra, de igual relevância: quais, dentre os direitos individuais, os que mereciam essa proteção particular. Antes, Arthur Bernardes, em 1924, como Presidente da República, já havia encaminhado mensagem ao Congresso anunciando sua intenção de reforma da Constituição, na qual deveriam ser fixados os limites do instituto do habeas corpus e criadas “ações rápidas e seguras que o substituam nos casos que não sejam de ilegal constrangimento ao direito de locomoção e à liberdade física do indivíduo.” (citado por CAETANO, 1975, p. 29). A implantação da medida pretendida pelo Presidente foi defendida por Herculano de Freitas, relator-geral do projeto da Reforma Constitucional de 1926, segundo o qual “Se as nossas leis processuais se acham desprovidas de meios rápidos e eficazes para reparar a ofensa a respeitáveis direitos, é o caso de se criarem e regularem esses remédios jurídicos, sem desvirtuar o habeas corpus” (citado por SIDOU, 1989, p. 174). Apesar do apoio, a proposta não vingou imediatamente, só vindo a ser debatida na Assembléia Constituinte reunida em novembro de 1933, após o período conturbado da Revolução de 1930. A Comissão responsável pela elaboração do Anteprojeto Constitucional foi presidida pelo Min. Afrânio de Melo Franco, sendo que o relator da parte atinente ao mandado de segurança foi o deputado João Mangabeira, autor da denominação “mandado de segurança” e da fórmula: (...) toda pessoa que tiver um direito incontestável ameaçado ou violado por ato manifestamente ilegal do Poder Executivo, poderá requerer ao Poder Judiciário que a ampare com um mandado de segurança. O Juiz, recebendo o pedido, resolverá, dentro de 72 horas, depois de ouvida a autoridade coatora. E se considerar o pedido legal, expedirá o mandado ou proibindo esta de praticar o ato ou ordenando-lhe de restabelecer 58 integralmente a situação anterior, até que a respeito resolva definitivamente o Poder Judiciário. (citado por REMÉDIO, 2009, p. 170) Esta redação originária sofreu emendas, antes mesmo do Anteprojeto ser enviado à Assembléia Nacional. Outras emendas também foram apresentadas na Assembléia, que tornaram a fórmula mais sintética, restando no texto derradeiramente aprovado, constante da Constituição de 1934, em seu art. 113, inciso 33: Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes. Vale relembrar que, embora a maioria esmagadora da doutrina sustente que o mandado de segurança nasceu somente com a Constituição de 1934, conforme já ressaltado, Sidou (1989, p. 177) garante que: O que fez a Carta de 1934 foi restaurá-lo, banido como havia sido de nossa sistemática jurídico-constitucional quando a Reforma Bernardes deu sentido clássico ao habeas corpus, não permitindo que este nome latino se aclimatasse a um reclamo caboclo. A denominação dada ao instituto, como garantem Sidou (1988, p. 177) e Talamini (2002, p. 311), é histórica e fiel ao desenvolvimento do direito pátrio, remetendo às antigas “Cartas de Segurança” e às “Seguranças Reais” das Ordenações. De acordo com esse, a denominação e a ressalva ao uso de ações petitórias na parte final do dispositivo demonstram a inegável filiação do instituto às origens interditais, o que facilitaria o reconhecimento pela doutrina de características interditais ao instituto, como a sumariedade do procedimento, a mandamentalidade e a produção de tutela específica. Em nível infraconstitucional o instituto foi regulamentado pela Lei nº 191/1936, com projeto de Alcântara Machado, embora fosse auto-aplicável desde sua criação, pelo princípio da auto-executoriedade que acompanha as garantias de direitos 26 . Antes de sua regulamentação legal, o mandado de segurança acabou se utilizando da técnica do habeas corpus, com seu procedimento especial e célere, principalmente pela eliminação da fase probatória. Esses seus primeiros contornos, de procedimento nitidamente documental, com utilização de prova pré-constituída, foi extraído do regime emprestado do habeas corpus. 26 Esse princípio é previsto expressamente na atual Constituição em seu art. 5º, §1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 59 A Lei nº 191/1936 previa que “Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado, por ato manifestamente inconstitucional, ou ilegal, de qualquer autoridade.”, excluindo de seu âmbito a liberdade de locomoção, a questão puramente política e o ato disciplinar, além de seu uso quando o ato impugnado fosse passível de recurso administrativo, independente de caução, fiança ou depósito. Mais do que qualquer previsão legal, foram a jurisprudência e a doutrina as responsáveis pelo delineamento das características e requisitos principais do instituto. Prova disso são as inúmeras súmulas de tribunais superiores sobre a matéria. Assim, quando a primeira regulamentação entrou em vigor, um ano e meio depois da Constituição criar o instituto, já o encontrou em acirrado debate tribunalício. Sidou (1989, p. 181) garante que o primeiro mandado de segurança foi impetrado horas depois de promulgada a Constituição, na Comarca de Limoeiro, Estado de Pernambuco, pelo Juiz Dr. Pedro Cabral de Vasconcelos, tendo como paciente o funcionário público Alfredo da Silva Mota e tendo sido impetrado pelo advogado Manuel Cavalcanti. A segurança teria sido concedida. Como nos garante Nunes, no início, os tribunais receberam com cautela o instituto, temendo o risco de o transformar na “panacéia para todos os males”, o que foi, inclusive, argumento para justificar sua denegação ou não conhecimento: Os tribunais, sem excetuar o Supremo, receberam com grandes reservas o novo instituto. Para isso terão concorrido circunstâncias várias: em primeiro lugar, a novidade do remédio, criação nossa, surgido inopinadamente em nosso meio jurídico sem estudos preparatórios sobre sua índole ou natureza, em termos que permitissem situá-lo no quadro das ações com o seu caráter injuncional ou monitório até então desconhecido fora dos interditos e do habeas corpus, e nisso consistia a maior dificuldade de o compreender e lhe demarcar o campo de aplicação; em segundo lugar, o próprio texto constitucional no seu enunciado, que convieram em entender muito ao pé da letra, tornando quase impossível a concessão a ser admitida somente quando claro, transparente e cristalino o direito reclamado, pois só assim seria certo e incontestável, perdendo-se de vista que direito ajuizado é por definição direito litigioso, que precisa ser desembaraçado do cipoal das impugnações sofísticas ou desarrazoadas para ser proclamado; em terceiro, a lei do menor esforço, a tendência para fugir às questões difíceis, arredá- las, protraí-las, remetendo o pleiteante para as vias ordinárias, e o mandado de segurança se admitido em medida mais larga, ainda que sem sair do limite intransponível das suas possibilidades como via processual, obrigaria a decidir, de pronto, questões às vezes de alta indagação jurídica. (NUNES, 1980, p. 10) 60 O mandado de segurança encontrou a todos em estado de perplexidade, desafiando os advogados e os magistrados na difícil tarefa de esboçar algumas teses fundamentais como critérios doutrinários a seguir na utilização do instituto. Mas foi o que acabou acontecendo: As primeiras aplicações jurisprudenciais, adstritas ao rito do “habeas corpus”, o figurino processual, como diria mais tarde o deputado Valdemar Ferreira, traçaram rumos que o legislador não seguiu, nos moldes largos que criou para o writ, estendendo-o aos atos judiciais (e quiçá legislativos) e ampliando a órbita dos atos do Executivo até alcançar as pessoas privadas na execução de serviços públicos, no entendimento que deu à locução atos de qualquer autoridade. (NUNES, 1980, p. 9) A Carta Constitucional de 1937 não contemplou o mandado de segurança como garantia constitucional, se cogitando, por esta razão, até mesmo da extinção do remédio do ordenamento pátrio. Apesar disso, mesmo no Estado Novo, mandados de segurança continuaram a ser impetrados com base na legislação infraconstitucional, embora com diversas restrições a seu alcance. O Decreto-Lei nº 6/1937 reafirmou a vigência da Lei nº 191/1936, todavia, proibiu a utilização do mandado contra os atos do Presidente da República e dos ministros de Estado, Governadores e Interventores. Restrição semelhante se deu com o Decreto-Lei nº 96/1937, determinando o seu art. 21 não caber mandado de segurança contra atos da Administração do Distrito Federal. Como bem observado por Nunes (1980, p. 11) não haveria mesmo como admitir o mandado de segurança contra atos do Presidente e dos Ministros de Estado “porque competente para expedi-lo teria de ser o Supremo Tribunal, cuja competência originária não poderia o legislador ampliar além do expresso no texto fundamental”. Tais restrições acabaram sendo parcialmente contidas pela interpretação jurisprudencial no sentido de admitir a garantia contra quem executava ou mandava executar o ato ilegal. Se a autoridade que mandava executar o ato era uma daquelas previstas nos Decretos, estava imune ao controle jurisdicional, mas havendo uma autoridade executante, para seu ato o mandado de segurança tinha azo. Ironicamente, como nos garante Sidou (1989, p. 183), o instituto destinado a ser exatamente o coroamento do Estado de Direito no Brasil tomou seus principais contornos num Estado ditatorial. A despeito da constrição que lhe foi imposta nos seus primeiros três anos de vida, o mandado de segurança nunca teria deixado de “alçar-se em acentuada linha ascendente, com verticalidade de certas palmeiras, com auso eloqüente e sem se vergar ao vendaval da ditadura”. 61 Apesar da omissão do texto constitucional, também o Código de Processo Civil de 1939 relacionou o mandado de segurança entre seus processos especiais, em seus arts. 319 a 331, com disciplina semelhante a da Lei nº 191/1936, com a ressalva feita pelo Decreto-Lei nº 06/37: Dar-se-á mandado de segurança para defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional, ou ilegal, de qualquer autoridade, salvo o Presidente da República, dos Ministros de Estado, Governadores e Interventores. O Código manteve os princípios existentes na época, restringindo, no entanto, ainda mais seu campo de atuação, ao impedir sua utilização também quando se tratasse de impostos ou taxas, salvo se a lei, para assegurar a cobrança, estabelecesse providências restritivas da atividade profissional do contribuinte. Com o retorno do regime democrático, a Constituição de 1946, em seu art. 141, §24, restabeleceu o mandado de segurança como garantia constitucional, ampliando o seu alcance e eliminando as restrições impostas pelo tratamento infraconstitucional do regime anterior, senão vejamos: “para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder”. Por interpretação conjunta com o art. 141, §23, que previa o habeas corpus, o mandado de segurança era cabível “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação”. A expressão “direito certo e incontestável” foi substituída pela “direito líquido e certo”, que permanece na fórmula atual. Inspirada pela Constituição de 1946, surgiu a Lei nº 1.533/1951, que alterou as disposições do Código de Processo Civil referentes ao mandado de segurança, passando a regulamentar o instituto até o ano de 2009, ainda que com diversas alterações legislativas posteriores. Ela previa que: Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus, sempre que, ilegalmente, ou com abuso de poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça. Grande parte das alterações legislativas pelas quais passou a Lei nº 1.533/1951 ou que alteraram parcialmente sua aplicação decorreu da preocupação do Poder Público em estabelecer uma “auto-imunização” quanto à eficácia do mandamus (MEDINA e ARAÚJO, 2009, p. 26). 62 A Lei nº 2.410/1955 vedou a suspensão liminar em mandados de segurança ajuizados para requerer o desembaraço de bens vindos do exterior sem licença ou com licença falsa e criou garantias ao Poder Público para o desembaraço em situações específicas. De modo semelhante a Lei nº 2.770/1956. A Lei nº 2.644/1955 criou apelação obrigatória, de ofício, das sentenças condenatórias em ações que se pleiteiam direitos dos funcionários dos serviços administrativos das Câmaras Legislativas ou dos Tribunais Federais ou em que seja controvertida qualquer matéria constitucional ou regimental. A Lei nº 4.166/1962 alterou a Lei nº 1.533/1951, aumentando o prazo para a apresentação de documento pela autoridade coatora de 5 para 10 dias e para apresentação de informações de 10 para 15 dias. A Lei nº 4.348/1964 trouxe importantes modificações, como o prazo para apresentação de informações pela autoridade coatora, fixação de prazo para a duração da liminar, casos de caducidade desta, proibição de concessão de liminares sobre certos assuntos relativos a servidores públicos, proibição de execução de sentenças não transitadas em julgado e nova regulamentação das hipóteses de suspensão da execução de liminares ou sentenças. A Lei nº 4.357/1964 proibiu a concessão de liminar em mandados de segurança requeridos contra a Fazenda Nacional em decorrência de aplicação de assuntos como a correção monetária nos débitos fiscais para com a União, modificação do imposto de renda, emissão de letras do tesouro etc. Durante a ditadura militar, que foi de 1964 até o dia 15 de março de 1985, prosseguiram-se as alterações do regime do mandado de segurança por leis esparsas. Neste período, o Estado entra num regime de exceção altamente excludente dos direitos individuais do cidadão, mas o mandado de segurança não foi abolido formalmente. A Lei nº 4.862/1965 revogou a Lei nº 4.357/1964 na parte em que se referia ao mandado de segurança e fixou prazo para a vigência de liminares concedidas contra a Fazenda Nacional. A Lei nº 5.021/1966 dispôs sobre o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias asseguradas em sentenças concessivas de mandado de segurança a servidor público civil. A Constituição de 1967 previu, em seu art. 150, §21, o mandado de segurança “para proteger direito individual líquido e certo não amparado por habeas corpus, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder”, acrescentando a palavra individual ao enunciado. 63 Neste último eclipse de democracia foram excluídos de apreciação pelo Poder Judiciário, em qualquer tipo de ação, todos os atos praticados com base nos Atos Institucionais então editados. O mais conhecido e pior deles, o Ato Institucional nº 5, de 1968, determinou o recesso do Poder Legislativo, a cassação de mandatos parlamentares, a supressão dos direitos políticos de cidadãos, a suspensão de numerosas garantias constitucionais ou legais, as penas de banimento e confinação, o confisco de bens e tornou inócuo o habeas corpus. Mesmo assim, muitos tribunais, quase estranguladas pela ditadura militar dos generais, continuaram a conceder mandados de segurança para corrigir os desmandos praticados durante esse período. O Ato Institucional nº 6/1969, ao modificar o art. 114, item III, alínea a, da Constituição de 1967, suprimiu o recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal em mandado de segurança, até então cabível quando denegatória a decisão de tribunais locais ou federais, em única ou última instância. A Emenda Constitucional nº 01, de 1969, no §21 de seu art. 153 restaurou a forma da Constituição de 1946, nos seguintes termos “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder”, excluindo a palavra “individual”. O vigente Código de Processo Civil, Lei nº 5.869/1973, não disciplinou o remédio constitucional, ao contrário do que fizera o Código de 1939, mas alterou normas de procedimento que se aplicam subsidiariamente ao mandado de segurança, como será visto no capítulo 13. A Lei nº 6.014/1973 também modificou a Lei nº 1.533/1951 para adaptá-la ao Novo Código de Processo Civil, tal como a Lei nº 6.071/1974, referindo-se ambas ao recurso cabível na esfera ordinária, a apelação, ao duplo grau de jurisdição e a suspensão da execução de sentença. A Emenda Constitucional nº 7/1977 trouxe algumas modificações em matéria de competência dos Tribunais para processar e julgar mandados de segurança. A Lei Complementar nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) atribuiu competência aos Tribunais para, originariamente, julgar mandados de segurança contra seus atos, ou dos respectivos Presidentes e os de suas Câmaras, Turmas ou Seções. Deu também competência às Seções dos Tribunais de Justiça e de Alçada para processar e julgar mandado de segurança contra ato de Juiz de Direito. 64 A Lei nº 6.978/1982 alterou a Lei nº 1.533/1951 considerando autoridades coatoras também os representantes de órgãos partidários políticos, além dos administradores ou representantes das entidades autárquicas e das pessoas naturais ou jurídicas com funções delegadas do poder público, somente no que entende com essas funções. O mandado de segurança é previsto na atual Constituição da República de 1988 “para proteger líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público” (art. 5º, LXIX). Trata-se de cláusula pétrea, sendo vedada, portanto, sua supressão do texto constitucional, conforme §4º do art. 60 da Constituição. A própria Constituição elenca os requisitos necessários para a impetração do mandado de segurança, quais sejam, o direito líquido e certo, a afirmação de ilegalidade ou abuso de poder e o ato (ou omissão) de autoridade pública ou pessoa jurídica equiparada. Também fixa o âmbito de cabimento residual do instituto. A Constituição atual inova ao prever não só o mandado de segurança individual, como também o coletivo, conforme se destacará a seguir. Outra importante criação da Constituição atual foi a do recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal contra denegação de mandado de segurança julgado em única instância pelos Tribunais Superiores. E para o Superior Tribunal de Justiça contra denegação de mandado de segurança julgado em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados. Esse recurso já existira, em termos parecidos, nas Constituições de 1946 e 1967, tendo sido suprimido pelo Ato Institucional nº 6/1969. A Lei nº 8.076/1990 dispôs sobre as hipóteses nas quais estaria suspensa a concessão de liminares e sobre o reexame necessário da sentença concessiva. A Lei nº 8.437/1992 impediu a concessão de liminares em mandado de segurança coletivo sem oitiva prévia, com prazo de 72 horas, do representante judicial da pessoa jurídica de direito público interessada. Além disso, previu a possibilidade de suspensão de liminar da sentença em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. A Lei nº 9.259/1996 passou a considerar autoridades os representantes ou administradores das entidades autárquicas e pessoas naturais ou jurídicas com funções delegadas do Poder Público, somente no que entender com essas funções. A Medida Provisória nº 2.180/2001 acrescentou o art. 2º-A a Lei 9.494/1997, prevendo que a sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os 65 substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator. Exigiu que nas ações coletivas propostas contra a Fazenda Pública a petição inicial estivesse obrigatoriamente instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços. Além disso, condicionou ao trânsito em julgado a execução da sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores. Ao modificar a Lei nº 8.437/1992, inclui o §5º no seu art. 1º, garantindo não ser cabível medida liminar contra o Poder Público que defira compensação de créditos tributários ou previdenciários. Somente em 2009 foi instituída uma nova lei do mandado de segurança, a Lei nº 12.016/2009. O projeto que deu origem a Lei nº 12.016/2009 é de autoria da Presidência da República. Tem como origem portaria conjunta da Advocacia-Geral da União, à época comandada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Ferreira Mendes. A proposta foi feita por Comissão de Juristas presidida pelo professor Caio Tácito e que teve como relator o professor e advogado Arnoldo Wald e como revisor o ministro do Supremo, Carlos Alberto Menezes Direito. Também integraram a comissão os professores e advogados Ada Pellegrini Grinover, Luís Roberto Barroso, Odete Medauar e o ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin. O grande papel da lei foi o de consolidar em um único texto normativo os aspectos mais relevantes sobre o tema, já consagrados pela jurisprudência, sobretudo pelas súmulas dos tribunais superiores, e pela legislação esparsa. Poucas foram as inovações da lei, que teve a jurisprudência como norte, conforme foi esclarecido em sua própria Exposição de Motivos, da qual se extrai alguns trechos: 2. Decorridos mais de sessenta e cinco anos da introdução do instituto do mandado de segurança no direito processual pela Carta Política de 1934 e quase meio século após a edição da Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951, que o regulamentou de modo sistemático, evidenciou-se a necessidade de atualizar a legislação sobre a matéria, considerando as modificações constitucionais acerca do tema e as alterações legais que sofreu. Não bastasse isso, o mandado de segurança gerou ampla jurisprudência sobre seus mais variados aspectos, que está sedimentada em súmulas dos tribunais. 3. Nesse contexto, o projeto se integra no movimento de reforma legal que busca a maior coerência do sistema legislativo, para facilitar o conhecimento do direito vigente aos profissionais da área e ao cidadão, mediante a atualização, por consolidação em diploma único, de todas as 66 normas que regem a mesma matéria. (citado por THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 79) Como já observado, mais do que a disciplina legal básica, foram a jurisprudência e a doutrina responsáveis pela verdadeira regulamentação do instituto e por sua tão fértil utilização no Direito brasileiro. 6. O MANDADO DE SEGURANÇA COMO INSTITUTO TIPICAMENTE BRASILEIRO O mandado de segurança, embora tenha se inspirado em institutos do direito comparado, segundo Menezes Direito (1999), é criação tipicamente brasileira, construída por força da necessidade, diante da inexistência de mecanismos eficientes para tutelar os direitos fundamentais. Não obstante o reconhecimento de que os nossos estudiosos se serviram de legados jurídicos de outros povos para a sua construção – o que inevitável e inegavelmente ocorreu –, o mandado de segurança constitui-se verdadeiramente em criação jurídica brasileira, que “não encontra instrumento absolutamente similar no direito estrangeiro” (MORAES, 2002, p. 163). Desta forma, como ressalta Barbi, ainda que tenha havido influência externa na inserção do mandado de segurança na Constituição de 1934, foi o esforço da doutrina e da jurisprudência, atendendo às necessidades práticas da realidade brasileira, que conferiu ao mandado de segurança as feições jurídicas que hoje este instituto possui: E a necessidade que havia nesse instituto era de tal ordem que, apesar de ter sido redigido apenas no inciso 33 do art. 113, os advogados, e após eles os juízes, extraíram dessas poucas palavras do texto constitucional um instituto de Direito Processual, que é uma das coisas mais eficientes, mais elogiáveis, mais notáveis que o meu conhecimento de Direito permitiu encontrar. Porque não nos inspiramos em nenhum Direito estrangeiro na interpretação dos textos – talvez por falta de consultas a obras de difícil acesso de outros países, onde havia alguma coisa parecida com isso – o trabalho dos advogados e juízes é que foi desenvolvendo o instituto, que, partindo das poucas palavras da Constituição, acabou realmente num processo tão importante, tão útil e tão prestigiado pelo povo, que é com prazer que, algumas vezes, engraxando os sapatos, ouço o engraxate dizer que vai requerer o mandado de segurança. (BARBI, 1996, p. 59) Nunes (1980, p. 1) também ressalta o memorável esforço de adaptação realizado pela 67 jurisprudência em torno do habeas corpus, para não deixar sem remédio certas situações jurídicas que não encontravam no quadro das nossas ações a proteção adequada. Os elementos centrais que fixam os contornos do mandado de segurança são de criação brasileira, já dizia Buzaid (1989, p. 25). Sidou (1989, p. 181) garante o mesmo: Quanto ao mandado de segurança, comparativamente com outros institutos similares, não é o amparo do sistema latino-americano, nem qualquer dos writs do sistema anglo-saxônico, nem qualquer dos institutos europeus (alemão, suíço e austríaco). É simplesmente mandado de segurança; brasileiramente mandado de segurança. E do mesmo modo como tem recebido a contribuição forânea para sua formação e aprimoramento, tem também subsidiado com preciosos elementos próprios muitas leis de amparo de outros povos, o que o direito comparado registra. O objeto do mandado de segurança é a tutela de direito líquido e certo violado ou ameaçado pelo Poder Público. De acordo com Remédio (2009, p. 182), o mandado de segurança tem como objeto a correção de ato de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, comissivo ou omissivo, maculado por ilegalidade ou por abuso de poder, ofensivo a direito líquido e certo, individual ou coletivo. O grande diferencial do mandado de segurança frente aos demais instrumentos do direito comparado é a especificidade de seu objeto, restrito a proteção contra o Poder Público. Há proteção de um setor específico dos direitos pessoais, aquele atingido por ato abusivo ilegal praticado pelos agentes estatais investidos de parcela do Poder Público. Trata-se de uma ação especial que: (...) destina-se o mandado de segurança à proteção, apenas, de direitos públicos subjetivos, ou seja, de direitos que devam ser invocados em face do Estado ou de quem exerça funções delegadas do Poder Público. O particular, salvo quando estiver na condição referida, não poderá ser sujeito passivo na ação de mandado de segurança. Com relação aos atos dos Poderes Públicos, seja qual for o órgão de que emanem, serão suscetíveis de impugnação por via do mandado de segurança. Nem mesmo os atos de caráter jurisdicional, consistentes em decisões do Poder Judiciário, se eximem totalmente do controle peculiar a essa ação. É certo que a Lei 1.533/1951 [e hoje a Lei 12.016/2009] exclui do cabimento do mandado de segurança despacho ou decisão judicial „quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição‟ (art. 5, II). Mas em caráter excepcional, notadamente nos casos de urgência, em face de decisões que não comportem recurso com efeito suspensivo ou com relação às quais o recurso cabível não seja recebido com esse efeito, não se poderá negar a admissão do mandado de segurança. (MEDINA, 2009, p. 165) 68 Essa nota distintiva, como já afirmado, não foi idealizada de antemão, uma vez que se buscava um mecanismo célere de garantia de direitos pessoais e muitos das propostas anteriores criavam mecanismo que protegia direitos lesados por atos de autoridades e particulares, indistintamente. O mandado de segurança nasceu para suprir uma deficiência do sistema vigente quanto à inexistência de mecanismos eficientes para tutelar o indivíduo, mas não particularmente contra o Estado. Essa característica surgiu pela aproximação do instituto com o habeas corpus e acabou se tornando o grande diferencial do mandado de segurança em relação aos outros institutos existentes no direito comparado. O mandado de segurança constitui, hoje, ao lado do habeas corpus, a principal garantia que se pode valer o indivíduo ante os desmandos do Poder Público. Nas palavras de Buzaid (1961, p. 227), (...) nele está expressa a mais solene proteção do indivíduo em sua relação com o Estado e representa, em nossos dias, a mais notável forma de tutela jurídica dos direitos individuais que, por largo tempo, foi apenas uma auspiciosa promessa. O modo como nasceu e prosperou, sob o impulso de livrar o cidadão de arbitrariedades de autoridades públicas (PACHECO, 2002, p. 128), marcou o enquadramento do instituto, “nem sempre acertado, no âmbito do direito administrativo, quando, na realidade, trata-se, apenas, de instituto público, mas de natureza processual”. Essa natureza processual do mandado de segurança não pode ser deixada de lado, conquanto atualmente se proponha uma aproximação do direito processual ao direito material, que, no caso, será o Direito Administrativo e o Direito Tributário, sobretudo. Tal aproximação entre Direito e Processo será analisada no capítulo 14 deste trabalho. 69 PARTE II 7. TUTELA DE DIREITOS OU INTERESSES COLETIVOS Os direitos humanos de terceira geração, também denominados direitos de solidariedade ou de fraternidade, surgiram a partir do século XX. Transcendendo a titularidade individual, tendem a proteger, mais do que indivíduos, os grupos humanos e a coletividade, caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva e difusa. A terceira geração de direitos tem por finalidade básica a coletividade, resguardando o bem-estar dos membros de determinados grupos, que, muitas vezes, são indefinidos e indeterminados. São dados como exemplos clássicos desses direitos, o direito ao meio ambiente, à qualidade de vida e os direitos do consumidor 27 . Apesar de direitos “da coletividade” existirem e, até mesmo, serem tutelados há mais tempo 28 , o grande passo para a identificação e fortalecimento desses novos direitos deu-se com o advento da Revolução Industrial 29 e sua expansão pelo mundo, quando se constatou que os valores tradicionais puramente individuais não sobreviveriam por muito tempo frente a verdadeira sociedade de massa que surgia. Mauro Cappelletti foi um dos primeiros juristas a constatar a mudança nas relações jurídicas e nas violações de direitos dessa nova sociedade: (...) não é preciso ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (podemos usar a ambiciosa palavra civilização?) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, bem como de conflitos ou conflituosidades de massa (em matéria de trabalho, de relações entre classes sociais, entre raças, entre religiões, etc.). Daí deriva que também as situações de vida, que o Direito deve regular, são tornadas sempre mais complexas, enquanto que, por sua vez, a tutela jurisdicional – a “Justiça” – será invocada não mais somente contra violações de caráter individual, mas sempre mais freqüente contra violações de caráter 27 Como se verá a seguir, no capítulo 7.1, neste trabalho questiona-se a classificação do direito com base na matéria. 28 São consideradas antecedentes remotos das ações coletivas as ações romanas em defesa das “rei sacrae e rei publica”, pelas quais era atribuído ao cidadão o poder de agir em defesa da coisa pública. 29 “A necessidade de criação de canais de tutelas dos direitos massificados tem como causa social, consoante já assinalado no tópico anterior, a massificação dos conflitos sociais. A origem e o verdadeiro ponto de partida dessa emergência social é a Revolução Industrial do século XVIII na Inglaterra, que se espalhou por todo o mundo com a industrialização e a criação da classe operária. Os conflitos sociais aumentaram atingindo comunidade de pessoas. Como consequência, vieram a surgir vários segmentos sociais como sindicatos, associações de bairros, associações de defesa do meio ambiente e do consumidor, especialmente no século que se passou, após a Segunda Grande Guerra Mundial, o que fez com que começassem a ser criados instrumentos legais para a tutela, em juízo, dos interesses ou direitos coletivos.” (ALMEIDA, 2003, p. 44) 70 essencialmente coletivo, enquanto envolvem grupos, classes e coletividades. Trata-se, em outras palavras, de “violações de massa”. (CAPPELLETTI, 1977, p. 130) A sociedade de massa trouxe novos problemas resultantes da crescente industrialização, urbanização e globalização, como os danos causados a milhares de consumidores por defeitos em produtos, a fraude publicitária, a adulteração de alimentos, a poluição do ar, do solo e das águas pelas indústrias, a destruição de belezas naturais ou de objetos de valor histórico etc (BARBI, 2002, p. 238). Muitos dos direitos violados por essa nova sociedade não pertenciam aos indivíduos isoladamente considerados, mas a membros de toda coletividade ou de grupos dela. Tratavam-se dos habitantes de determinada região, dos consumidores de determinado produto, dos expostos a uma propaganda e, em casos extremos, de todos os habitantes do planeta, até mesmo os vindouros. O Direito deixou de se preocupar somente com situações jurídicas individuais e voltou sua atenção para os indivíduos agrupados em grandes classes ou grupos, que passaram a ser assim normatizados. Como garante Belinetti: (...) com a sociedade de massa, é necessária outra perspectiva, que encara situações jurídicas, em que a preocupação não é propriamente estabelecer regras que protejam os direitos subjetivos das pessoas envolvidas, mas sim fixar normas que preservem determinados bens ou valores que interessam a um grupo (determinado ou indeterminado) de pessoas, estatuindo o dever jurídico de respeito a esses bens ou valores, e conferindo a determinados entes da sociedade o poder de acionar a Jurisdição para fazer cumprir tais deveres. (BELINETTI, 2000, p. 125) Fruto da própria Revolução Industrial, também o sindicalismo contribuiu para a massificação da sociedade e dos direitos. O trabalhador, constatando a força do poder capitalista, uniu forças para melhor reivindicar seus direitos. Lucília Bastos (2007, p. 18) esclarece que a liberdade de associação era restringida nos primórdios do liberalismo, uma vez que os governos não viam com simpatia as facilidades que os grupos organizados ofereciam à contestação: Do ponto de vista político, temia-se que tais entidades pudessem se interpor entre o indivíduo e a coletividade como um todo. Do ponto de vista econômico, as associações eram suspeitas de causar prejuízos à economia de mercado, fundada sobre os contratos individuais e a livre concorrência. Gradativamente essa situação teria se alterado, primeiro garantindo-se o direito de associação exercido por profissionais (sindicatos e entidades de classe) e, somente mais tarde, para fins políticos (partidos políticos). Ainda assim, de acordo com Theodoro Júnior (1997, p. 71 118), se foi fácil, no plano material, a declaração do direito à livre associação civil, o mesmo não se deu com a defesa dos interesses jurídicos dos grupos nas vias judiciais, uma vez que o liberalismo, ainda vigente à época, implantara uma concepção individualista de acesso à justiça. Como bem pontuou Grinover (1984, p. 33), somente em épocas recentes, os corpos intermediários da sociedade civil começaram a se proliferar, vez que os indivíduos passaram a tomar consciência de sua comunhão de interesses, de suas necessidades e de sua fraqueza individual, e a perceber que, só unidos e organizados, poderiam ter alguma chance contra as tiranias do mundo contemporâneo (tiranias dos governantes, opressão das maiorias, interesses dos grandes grupos econômicos, indiferença dos poluidores, inércia, incompetência ou corrupção dos burocratas). Assim, teriam surgido e se multiplicado as associações (como meios de expressão) para defesa de direitos civis, de consumidores, de defesa da ecologia, de amigos de bairros, de pequenos investidores etc. Como entidade autônoma, o grupo passou a ser merecedor de especial valoração jurídica (THEODORO JÚNIOR, 1997, p. 118). Não se pode negar que os direitos coletivos existiam há mais tempo, no entanto, somente recentemente 30 este tema vem sendo elaborado de forma autônoma e sistemática 31 . Dentro de uma concepção individualista que dominava a cultura jurídica, é bem compreensível que passassem despercebidos certos interesses que se caracterizam pela inviabilidade de apropriação individual, como os interesses ligados ao meio ambiente. Chegou-se, noutros tempos, a se afirmar, inclusive, que se um interesse concerne a todos, não pertence a ninguém, e, assim, não seria tutelável. É importante ressaltar que, mais do que a soma dos interesses individuais ou do que o interesse pessoal do grupo, o direito ou interesse coletivo trata-se de uma realidade nova, que, conquanto tenha como titular o indivíduo (que o usufrui em sua esfera subjetiva), é compartilhado em termos idênticos por uma série de pessoas, algumas vezes insuscetíveis de determinação. Por isso se diz que tem natureza transindividual, pois pertence aos indivíduos, mas também aos membros da coletividade a qual se integram. 30 De acordo com Theodoro Júnior (1997, p. 122), foi no Direito alemão que surgiram os primeiros ensaios de ações coletivas para a defesa dos interesses de membros de grupos, mesmo sem texto expresso na Constituição reconhecendo essa possibilidade, mas diante da sua autorização implícita no direito de liberdade de associação. 31 “A existência de interesses que superem o corte simplesmente individual decorre da própria vida em sociedade e das relações nela concebidas. Não é possível imaginar que em uma comunidade ocorram apenas conflitos de natureza individual. De outro lado, não é correto pensar que conflitos de índole coletiva só tenham surgido recentemente. Em verdade, sempre existiram. Seu tratamento processual coletivo, este sim, é que guarda origem e evolução recente, pois do ponto de vista da própria Administração Pública tais interesses sempre, necessariamente, receberam tratamento de certa forma organizado.” (LEONEL, 2002, p. 30) 72 Mancuso (2004, p. 54) tem uma conhecida conceituação de interesse coletivo, como aquele resultante de uma síntese de interesses: Não se trata da defesa de interesse pessoal do grupo; não se trata, tampouco, de mera soma ou justaposição de interesse dos integrantes do grupo; trata-se de interesses que depassam esses dois limites, ficando afetos a um ente coletivo, nascido a partir do momento em que certos valores individuais, atraídos por semelhança e harmonizados pelo fim comum, se amalgamam no grupo. É síntese, antes que mera soma. Concorda-se em se tratar o interesse coletivo como uma síntese dos interesses dos indivíduos que compõem o grupo ou a própria coletividade, mas se deve ressaltar que não se trata sempre de uma síntese de interesses ou direitos individuais. O fato dos indivíduos usufruírem o direito coletivo em sentido estrito e difuso em sua esfera subjetiva não muda sua natureza de direito coletivo para individual. Assim, uma ação coletiva que versa sobre direitos difusos ou coletivos em sentido estrito nunca poderá ser considerada uma síntese de ações individuais. Apenas no caso dos direitos individuais homogêneos, podemos considerar a ação coletiva como uma síntese (e não mera soma) de ações individuais, na qual a “pretensão do legitimado concentra-se no acolhimento de uma tese jurídica geral, referente a determinados fatos, que pode aproveitar a muitas pessoas” (DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR, 2011, p. 80). Na ação que versa sobre direitos individuais homogêneos há mais do que uma soma de interesses individuais em jogo, exatamente porque o fenômeno assume, no contexto social, um impacto de massa, ou seja, uma relevância social 32 apta a justificar o tratamento diferenciado (MANCUSO, 1998, p. 75). Barbosa Moreira (1991, p. 188), embora não utilize o termo “síntese”, afirma que “há casos em que a soma é algo mais do que simplesmente o conjunto de parcelas, exatamente porque o fenômeno assume, no contexto da vida social, um impacto de massa”. Isso revelaria (...) a possibilidade de que uma soma eventualmente seja maior, isto é, tenha uma significação jurídico-social maior do que aquela que poderíamos atribuir-lhe se nos limitássemos a adicionar as várias parcelas uma às outras. 32 Sobre a exigência de “relevância social” para o ajuizamento de ações coletivas (DONIZETTI; CERQUEIRA, 2010, p. 17). 73 A mera soma de interesses individuais dá origem a uma ação individual com litisconsórcio ativo, não se tratando de ação coletiva 33 . Essa questão será melhor analisada no capítulo 11.2.1. Os interesses coletivos, como nova categoria, se situam entre os interesses públicos e privados, numa zona intermediária, superando a clássica dicotomia entre Direito Público e Direito Privado. Eles transcendem o particular, sem se tornarem públicos (OLIVEIRA, 1990, p. 141). Eles têm natureza transindividual, possuindo contornos próprios, que os diferenciam dos interesses puramente individuais e do interesse público, como explica Bulos (1996, p. 55): Diferentemente dos interesses individuais, os interesses transindividuais constituem autêntica categoria distinta daqueles e mesmo do interesse público, atingindo grupos de pessoas relacionadas entre si por uma situação de fato comum, que necessita de tratamento jurídico compatível. São os interesses transindividuais espécies do gênero interesse social – da comunidade como um todo – distintos dos interesses do particular, sendo que, todavia, pode ter identidade de necessidades com aqueles. Distinguem-se do interesse público secundário, atinente às necessidades privadas do Estado, por serem interesses coletivos, o que equivale dizer: não são interesses públicos nem interesses privados. Os interesses transindividuais ou metaindividuais são interesses concernentes a um número expressivo de pessoas, importando salientar que uma quantificação mínima não deve ser efetuada para sua constatação, mas, sim, à aferição de uma conflituosidade que envolva a comunidade, grupos, categorias, ou indivíduos com comunhão de interesses e titularidade de direitos subjetivos. Com o surgimento e fortalecimento dessa nova realidade, o processo civil clássico 33 As ações coletivas ajuizadas erroneamente, quando há mera soma de interesses individuais, ou seja, quando não há homogeneidade do direito e relevância social, podem ser denominadas “pseudocoletivas” (ARAÚJO FILHO, citado por WATANABE, 2006, p. 28). As ações pseudocoletivas devem ser extintas sem julgamento de mérito (DONIZETTI; CERQUEIRA, 2010, p. 66). Por outro lado, as ações individuais ajuizadas quando há homogeneidade do direito e relevância social podem ser chamadas “pseudoindividuais”. De acordo com Watanabe (2006, p. 34), essas ações são aquelas cujo resultado gera, necessariamente, efeitos sobre a esfera de toda comunidade de modo unitário e isonômico, razão pela qual a ação coletiva seria mais apropriada. Para ele, essas ações, que “se inserem homogêneas na situação global”, acaso fossem admissíveis, “e não o são”, devem ser decididas de modo global, atingindo todos os usuários, em razão da natureza unitária e incindível da relação jurídica substancial. Como as ações pseudoindividuais acabam sendo ajuizadas, em detrimento de ações coletivas, o Direito brasileiro parece ter criado alguns mecanismos de julgamento, a fim de garantir a uniformidade de suas decisões, como as súmulas vinculantes (art. 103-A da Constituição), o julgamento liminar de ações repetitivas (art. 285-A do CPC), o julgamento do recurso especial em causas repetitivas (art. 543-C do CPC) e a repercussão geral das questões constitucionais (art. 102, §3º da Constituição; arts. 543-A e 543-B do CPC). Existe também proposta de criação de um incidente de resolução de causas repetitivas no Projeto do Novo Código de Processo Civil. Ressaltamos que, nem sempre, o ajuizamento de ações coletivas é mais conveniente, ainda que a origem do direito seja a mesma. Sem duvida o será em alguns casos, como, por exemplo, quando o vulto do prejuízo individual não é bastante para justificar a ida ao Judiciário de cada um dos prejudicados isoladamente. Mas em outros casos, como, por exemplo, naqueles em que a execução da sentença coletiva pode trazer dificuldades relacionadas a peculiaridades do caso concreto, o ajuizamento de ações individuais é mais conveniente. Daí o mérito, a nosso ver, do sistema brasileiro, no qual a tutela individual coexiste com a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos. 74 mostrou-se insuficiente para solucionar os novos conflitos que surgiam 34 , que envolviam interesses transindividuais, mas também a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, fazendo surgir uma variedade de mecanismos diferenciados de tutela jurisdicional. Bedaque (2009, p. 64) enfatiza que, de nada adiantaria o reconhecimento da titularidade dos direitos coletivos, sem que houvesse mecanismos apropriados para sua efetivação. Assim, como no campo das relações substanciais verificou-se a existência de novos direitos e de situações não abrangidas pelo processo clássico, foi preciso criar instrumentos adequados à sua proteção. Afinal, O processo, como meio para a satisfação dos anseios sociais decorrentes das crises na vida de relação, se modifica e aprimora na mesma dimensão e intensidade da evolução das demais facetas da vida em sociedade. Como instrumento, não seria apto a seu fim se não acompanhasse a renovação natural que ocorre nas relações humanas. Este movimento é constante e não encontra termo ou finalização. O dinamismo de nossos tempos torna-se potencializado pela globalização, que traz conseqüências em todos os setores do pensamento e da atividade do homem. E o processo coletivo é manifestação, no plano da ciência jurídica, das modificações que acompanham a sociedade. Evolui o instrumento para fazer frente às novas necessidades da existência coletiva. (LEONEL , 2002, p. 420) A diversidade de mecanismos de tutela jurisdicional hoje existente, segundo Zavascki (2008, p. 23), é reflexo dos novos tempos, marcados por relações cada vez mais impessoais e coletivizadas, que propiciaram o surgimento de um subsistema processual bem caracterizado, que se pode, genérica e sinteticamente, denominar de processo coletivo 35 . A natureza e a importância do direito tutelado no processo coletivo levaram à necessidade do estabelecimento de instrumentos processuais diferenciados para sua proteção, rompendo definitivamente com o modelo tradicional de processo, privado e individualista. É o que Benjamin (1991, p. 64) chamou de “socialização do processo civil”, que, antes de ser um fenômeno isolado, seria o reflexo de duas características da sociedade 34 “Bem se vê, pois, que a estrutura original do Código de 1973, moldada para atender demandas entre partes determinadas e identificadas, em conflitos tipicamente interindividuais, já não espelha a realidade do sistema processual civil.” (ZAVASCKI, 1997, p. 177), idéia retomada mais tarde: “(...) Tomou-se consciência, à época, da quase absoluta inaptidão dos métodos processuais tradicionais para fazer frente aos novos conflitos e às novas configurações de velhos conflitos, especialmente pela particular circunstância de que os interesses atingidos ou ameaçados extrapolavam, em muitos casos, a esfera meramente individual, para atingir uma dimensão maior, de transindividualidade. Conforme constataram Cappelletti e Garth, em 1978, “uma verdadeira revolução está-se desenvolvendo dentro do processo civil” com foco de preocupação centrado “especificamente nos interesses difusos”, uma vez que “a concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção” desses interesses: “O processo era visto como um assunto entre as partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais” (ZAVASCKI, 2008, p. 31) 35 O termo mais apropriado seria Direito Processual Coletivo, segundo Almeida (2003, p. 16). 75 industrial: a coletivização das relações humanas (conglomerado de interesses) e a supraindividualidade danosa dos processos de produção e comercialização modernos. O processo civil brasileiro teve de ser repensado, já que possuía a ação individual como base de seu sistema, denotando seu viés eminentemente privatista. Utilizando-se das expressões cunhadas por Watanabe (1992, p. 15 e 17), não poderia mais haver o “tratamento atomizado” disposto no art. 6º do CPC como “técnica de fragmentação de conflitos”, quando a nova realidade exigia um “tratamento molecular dos conflitos coletivos lato sensu”. Perante esses novos tipos de direito, as velhas regras processuais referentes à legitimação, ao interesse de agir, à representação, à substituição processual, à garantia do contraditório, aos limites subjetivos e objetivos da coisa julgada tiveram que ser repensadas e adaptadas 36 . Nesse sentido, de acordo com Cappelletti e Garth: (...) a concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares (...), sendo que a visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se difundindo com uma concepção social, coletiva. Apenas tal transformação pode assegurar a realização dos direitos públicos relativos a interesses difusos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49). Como observado por Cappelletti e Garth, o processo coletivo envolve categorias de interesses – difusos e coletivos – que sequer foram considerados pelo regime do Código de Processo Civil. Além deles, o processo coletivo também envolve a possibilidade de tutela coletiva dos chamados interesses individuais homogêneos que, pela dimensão que assumem, podem ser tratados coletivamente. Trata-se de tutela jurisdicional de direitos novos e de novas situações jurídicas, que surgiram com a evolução tecnológica, social e cultural das modernas sociedades. A possibilidade da tutela coletiva dos interesses individuais homogêneos trouxe, pelo menos, duas grandes vantagens, como nos garantem Alvim, A. A. e Alvim E. A. (2008, p. 6). 36 “É claro que complicações graves surgem para a dogmática do processo, tradicionalmente elaborado e sistematizado em função quase que exclusiva dos interesses e conflitos individuais. Destarte, conceitos clássicos, como o de legitimação e interesse, têm que ser readaptados para a análise dos pressupostos e condições das ações coletivas ou de grupo. Se a nova ideologia do direito coletivo de ação abalou os conceitos tradicionais de legitimidade ad causam e interesse de agir, não menos intenso foi o seu reflexo sobre a teoria dos limites subjetivos da coisa julgada. Era evidente a necessidade de alargar o espectro de atuação da coisa julgada na ação coletiva ou de grupo.” (THEODORO JÚNIOR, 1997, p. 121). 76 A primeira teria sido permitir que uma parcela expressiva da população, economicamente alijada do acesso ao Judiciário, pudesse se beneficiar das ações coletivas. Mas, além disso, teria possibilitado que questões que, isoladamente consideradas não teriam grande repercussão, chegassem ao Judiciário. Tratadas em conjunto, elas apresentariam relevância tal que justificaria a atuação dos entes legitimados, beneficiando, assim, um imenso número de pessoas, que, sozinhas, muito possivelmente não bateriam às portas do Judiciário para dirimir questões individuais de pequena importância. Além disso, como bem observado por Barbosa Moreira (1991, p. 199), a ação coletiva constitui um fator de correção ou pelo menos de atenuação de certa desigualdade substancial entre as partes, afinal o princípio de igualdade das partes no processo deve ser mais que uma simples equiparação formal. O litigante individual, que ele chama de acidental, sofre certas desvantagens, sobretudo quando luta contra adversários de grande poder político ou econômico, daí a importância dos litigantes coletivos, que podem estar mais bem preparados para os litígios que envolvem interesses de massa. Leonel (2002, p. 110), citando Mancuso, também identifica algumas vantagens da tutela coletiva de direitos individuais homogêneos: prevenir a proliferação de numerosas demandas individuais com mesmo pedido e causa de pedir; obstar a contradição lógica de julgados, que desprestigia a justiça e diminui a credibilidade dos órgãos jurisdicionais e do próprio Poder Judiciário; garantir resposta judicial equânime e de melhor qualidade para situações análogas, conferindo efetividade à garantia constitucional da isonomia; possibilitar alívio na sobrecarga do Poder Judiciário, com redução de custos materiais e econômicos na prestação jurisdicional; e possibilitar o transporte útil da coisa julgada coletiva para as demandas individuais. Com o advento das ações coletivas passou-se a se discutir num só processo, e, por isso, com grande economia processual, o interesse de um grande – por vezes até indeterminado – número de pessoas, que foram substituídas por um ente atuante no processo. Em consonância com a “política processual contemporânea voltada para a celeridade e efetividade da prestação jurisdicional” (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 7), o Direito Processual criou mecanismos que permitem em uma só decisão atingir um universo maior de interessados. Economia processual, maior eficiência e coerência das decisões, maior celeridade da tutela jurisdicional, acesso à Justiça etc, muitas foram as vantagens apresentadas pela tutela coletiva, que, por outro lado, apresenta poucos riscos de prejuízo individual, vez que, no 77 Brasil, os efeitos de sua coisa julgada só se estendem a esfera de direitos individuais dos substituídos se vierem em seu benefício 37 . Mancuso (1998, p. 69) observa que o desenvolvimento e fortalecimento do processo coletivo, na medida em canaliza para o Poder Judiciário grandes temas sociais, também propicia uma releitura da trilogia ação-processo-jurisdição, tornando-a mais próxima do jurisdicionado e ensejando um esforço comum por uma melhor qualidade de vida e por uma gestão eficaz da coisa pública. No Brasil, as ações coletivas ganharam força e notoriedade com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), embora leis anteriores, como a Consolidação das Leis Trabalhistas (Decreto-Lei nº 5.452/1943), em seus arts. 513 e 856, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil de 1963 (Lei nº 4.215/1963), a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985), já tivessem, de certa forma, rompido com a estruturação básica do Código de Processo Civil, voltado à solução de conflitos individuais. O advento da Constituição de 1988 foi essencial para essa mudança de paradigma, ao atribuir aos direitos coletivos o status de direitos fundamentais. Foi deslocado para o início da Constituição o “Título II”, que cuida dos direitos e garantias fundamentais, sendo que, logo em seu “Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, foram incluídos os direitos coletivos no rol de direitos fundamentais. O princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário ou da universalidade da jurisdição, agora estampado no art. 5º, XXXV da Constituição, foi renovado e ampliado, passando a abranger também a tutela coletiva. O sistema norte-americano das class actions foi, sem dúvida, o modelo prático que mais influenciou a construção do sistema brasileiro de tutela coletiva. Esse será analisado com mais atenção no capítulo 10. No entanto, como garantem Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 29), as ações coletivas se fortaleceram no Brasil por influência direta dos estudos dos processualistas italianos da década de 70. Isso porque, embora as ações coletivas não tenham se desenvolvido, na prática, nos países europeus, os congressos, artigos e livros publicados naquela época forneceram elementos teóricos para a criação das ações coletivas brasileiras e para a identificação das ações coletivas já existentes (v.g., a ação popular). O Brasil vivia, naquela época, o período da redemocratização, com grande valorização da atividade do Ministério Público, ambiente propício para a proteção de novos direitos. Esse contexto histórico propício, aliado à predisposição cultural brasileira de “aceitação da „boa razão‟ dos povos civilizados, tanto com importação doutrinária, quanto com transplante legislativo de 37 Isso não significa que o julgamento de improcedência do mandado de segurança coletivo não faça coisa julgada, conforme será melhor analisado no capítulo 11.3. 78 normas alienígenas” (2011, p. 31), teria garantido o êxito dessa grande reforma processual provocada pelas tutelas coletivas no Brasil. Hoje se pode dizer, quase sem objeções, que existe um “microssistema processual de tutela coletiva” no Brasil, formado pela completa interação entre a parte processual do Código de Defesa do Consumidor, sobretudo o Título III, e da Lei da Ação Civil Pública, com aplicabilidade, no que for compatível, do Código de Processo Civil. Além deles, também fazem parte desse microssistema os diversos diplomas específicos de tutela coletiva, tal como a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei de Ação Popular, o Estatuto da Criança e do Adolescente etc. A ruptura com as regras fundamentais do Código de Processo Civil se manifestou em relação a novas categorias de direito a serem protegidas e, consequentemente, na legitimidade para o ajuizamento de ações e nos efeitos das suas decisões. Objeto material de tutela, legitimidade para agir e regime da coisa julgada. Como é facilmente perceptível, sobretudo nesses três elementos houve um rompimento 38 com as regras cardeais do Código de Processo Civil, concebido e voltado à solução de conflitos individuais. Ademais, o estudo de um não pode ser feito sem as projeções no estudo dos demais. Assim, embora o foco deste trabalho seja o objeto do mandado de segurança coletivo, esses outros elementos, legitimação e coisa julgada, serão tratados, superficialmente, em diversos momentos da pesquisa, na medida em que possam contribuir para a definição do objeto do mandado de segurança coletivo. 7.1. Direitos ou interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos Como observado, o processo coletivo envolve categorias novas de direitos ou interesses, além da possibilidade de tutela coletiva dos chamados direitos ou interesses individuais homogêneos que, pela dimensão que assumem, podem ser tratados coletivamente. Trata-se de tutela jurisdicional de direitos novos e de novas situações jurídicas. O Código de Defesa do Consumidor trouxe a seguinte definição desses direitos ou interesses, por ele amparados, no seu art. 81, parágrafo único: 38 Theodoro Júnior (1997, p. 121) ressalta a necessidade de readaptação dos conceitos clássicos de legitimidade e interesse na tutela coletiva, com repercussões na coisa julgada. Donizetti e Cerqueira (2010, p. 14) também apontam esses três elementos como os principais diferenciadores do processo coletivo em relação ao individual. 79 A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. A definição codificada constituiu expressão de conceitos doutrinários assentados, se aplicando para quaisquer outras matérias de direito, não apenas para os direitos do consumidor. Embora tenha méritos 39 , tal conceituação possui falhas e omissões, que serão observadas a seguir. Além disso, a distinção, ao menos na prática, entre essas categorias de direito não é tão simples. Zavascki (2008, p. 40) ressalta a importância do estudo da categoria dos direitos individuais homogêneos de forma separada dos direitos coletivos e difusos; enquanto no segundo caso haveria verdadeira tutela de direitos coletivos, no primeiro existiria apenas tutela coletiva de direitos. Essa, no entanto, não é a posição da doutrina majoritária, nem deste trabalho, que tende a tratar os direitos coletivos, num sentido amplo, como gênero do qual fazem parte os direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos. Feita essa ressalva sobre a posição de Zavascki, tomaremos como referência sua classificação, feita a partir da conhecida definição feita pelo Código de Defesa do Consumidor, na medida em que apresenta relevantes distinções entre essas categorias de direitos. Sob o aspecto subjetivo, os direitos difusos são transindividuais, com indeterminação absoluta dos titulares, ou seja, eles não têm titulares individualmente determinados e a ligação entre os vários titulares decorre de mera circunstância de fato; os direitos coletivos em sentido estrito são transindividuais, com determinação relativa dos titulares, ou seja, eles não têm titulares individualmente determinados, mas são passíveis de determinação, e a ligação entre os vários titulares decorre de uma relação jurídica-base; já os direitos individuais homogêneos, como decorre da própria nomenclatura, são individuais, ou seja, há perfeita identificação do sujeito, assim como da relação dele com o objeto do seu direito, e a ligação que existe com outros sujeitos decorre da circunstância de serem titulares de direitos de 39 “Embora as definições pequem por ausência de completude, pois os fenômenos sociais não podem resumir de forma definitiva e estanque, a caracterização legislativa dada aos interesses em estudo teve méritos, na medida em que pacificou a incerteza conceitual então existente, e abrangeu praticamente todas as características mais marcantes desta espécie jurídica.” (LEONEL, 2002, p. 99) 80 “origem comum”. Segundo Gidi (1996, p. 111), a impossibilidade absoluta de identificar os titulares do direito difuso, individualizando-os, não significa que não haja titulares e não titulares, nem que todos sejam titulares do direito difuso. Nem sempre todos os habitantes do planeta são titulares do direito difuso (GIDI, 1996, p. 109). Ao citar o exemplo da propaganda enganosa como caso típico de violação a direito difuso, garante que, se ela foi veiculada pela televisão de apenas um único Estado, terá como “comunidade lesada” apenas os moradores e os transeuntes daquele Estado. Não fará parte da “comunidade lesada” nenhuma pessoa que não foi exposta à propaganda, ou seja, efetiva ou potencialmente lesada. Mesmo assim, o direito lesado continuará sendo difuso 40 . Por essa razão, não é tecnicamente adequado dizer que os titulares do direito difuso sejam sempre todos os membros da coletividade. Em alguns casos serão, como na maioria dos casos de proteção do direito ao meio ambiente saudável, mas não em todos os casos de tutela de direito difuso. Em relação aos direitos coletivos em sentido estrito, a relação jurídica entre os membros do grupo (“affectio societatis”) ou com a parte contrária é permanente e preexistente à lesão ou ameaça de lesão, não podendo ser assim considerada aquela nascida da própria lesão ou ameaça de sua ocorrência, como garante Silva Dinamarco (2002, p. 691). Uma ligação com a parte contrária que surja com a lesão e não de vínculo precedente, por exemplo, a decorrente de publicidade enganosa, não faz surgir direito coletivo em sentido estrito. Já nos direitos difusos, inexiste qualquer liame jurídico entre as pessoas membros do grupo ou entre elas e a parte contrária, que se ligam apenas por circunstâncias momentâneas, efêmeras. Esse é um dos elementos diferenciadores entre direito difuso e coletivo em sentido estrito, além da (im)possibilidade de determinação dos titulares do direito. A simples dificuldade prática de identificar os titulares dos direitos individuais homogêneos não pode ser confundida com a inexistência de titular individual. Os direitos individuais homogêneos têm titulares individuais juridicamente certos, “embora a titulação particular de cada um deles possa, na prática, ser de difícil comprovação” (ZAVASCKI, 2008, p. 43). Sob o aspecto objetivo, os direitos difusos são indivisíveis, ou seja, não podem ser satisfeitos nem lesados senão de forma que afete a todos os possíveis titulares; os direitos coletivos em sentido estrito também são indivisíveis; já os direitos individuais homogêneos são divisíveis, ou seja, podem ser satisfeitos ou lesados de forma diferenciada e individualizada, satisfazendo ou lesando um ou alguns, sem afetar os demais. 81 A característica da indivisibilidade, inerente aos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, se caracteriza pela impossibilidade de sua divisão, mesmo ideal, em quotas atribuíveis individualmente a cada um dos titulares do direito. De acordo com Gidi (1996, p. 27), citando Barbosa Moreira, entre os titulares do direito 41 se instaura uma união tão firme, que a satisfação de um só implica, de modo necessário, a satisfação de todos e a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão de todos os membros da coletividade. É na indivisibilidade que “reside o ponto fulcral na distinção entre os direitos superindividuais e os individuais homogêneos” (GIDI, 1996, p. 27). Gidi (1995, p. 24) acrescenta um terceiro critério na identificação dos direitos coletivos, a origem, além dos critérios subjetivo e objetivo, citados por Zavascki, que já havia inserido a origem no seu critério subjetivo. Sob o aspecto origem, nos direitos difusos, as pessoas que compõem a comunidade não são ligadas por nenhum vínculo jurídico prévio, mas por meras circunstâncias de fato (fatores conjunturais, acidentais e mutáveis); nos direitos coletivos, os indivíduos que compõem a coletividade são ligados por prévia relação jurídica- base que mantém entre si ou com a parte contrária; e nos direitos individuais homogêneos, as pessoas que compõe a comunidade são ligadas por uma origem comum, que nada mais seria que circunstâncias de fato, como nos direitos difusos. A indeterminação dos sujeitos titulares do direito difuso, para Mancuso (1989, p. 173), deriva, em grande parte, do fato de que não há um vínculo jurídico que agregue os sujeitos afetados: eles estariam aglutinados ocasionalmente, em virtude de certas contingências, como o fato de habitarem determinada região, de consumirem certo produto ou viverem numa certa comunidade. Observamos, no entanto, que também os titulares de direitos individuais homogêneos não estão ligados por relação jurídica base e, ainda assim, são determinados. Por isso consideramos que a indeterminação dos sujeitos titulares do direito difuso deriva da própria natureza do direito e não de sua origem comum, como propõe Mancuso. Grinover (2002, p. 31), referindo-se a origem comum dos direitos individuais homogêneos, garante que não se trata necessariamente de uma unidade factual e temporal. Citando Watanabe (1992, p. 18), garante que: As vítimas de uma publicidade enganosa veiculada por vários órgãos da imprensa e em repetidos dias de um produto nocivo à saúde adquiridos por vários consumidores num largo espaço de tempo e em várias regiões têm, como causa de seus danos, fatos de homogeneidade tal que os tornam a “origem comum” de todos eles. 40 Ressalvada a existência paralela de violação de direitos individuais homogêneos dos efetivamente lesados. 41 Substituímos a expressão “interessados” por “titulares do direito”, uma vez que discordamos da posição de Gidi quanto à titularidade do direito material em jogo nas ações coletivas, conforme se verá a seguir. 82 No exemplo citado, o direito à retirada da publicidade enganosa ou à paralisação da produção do produto nocivo seriam direitos difusos, enquanto que o direito à indenização dos moradores pelos danos causados pelos produtos nocivos adquiridos são individuais homogêneos. Nos dois primeiros casos, os titulares são indeterminados (todos os expostos à publicidade e os consumidores em potencial do produto) e no terceiro caso são determinados (somente aqueles que efetivamente adquiriram o produto e sofreram danos), mas as circunstâncias contingenciais de fato que uniram todos esses titulares são as mesmas. Gidi (1996, p. 30), referindo-se aos direitos individuais homogêneos, apresenta outras características importantes de sua tutela, relacionadas a sua origem, que merecem destaque: Tal categoria de direitos representa uma ficção criada pelo direito positivo brasileiro com a finalidade única e exclusiva de possibilitar a proteção coletiva (molecular) de direitos individuais com dimensão coletiva (em massa). Sem essa expressa previsão legal, a possibilidade de defesa coletiva de direitos individuais estaria vedada. A homogeneidade decorre da circunstância de serem os direitos individuais provenientes de uma origem comum. Isso possibilita, na prática, a defesa coletiva de direitos individuais, porque as peculiaridades inerentes a cada caso concreto são irrelevantes juridicamente, já que as lides individuais, no que diz respeito às questões de direito, são muito semelhantes e, em tese, a decisão deveria ser a mesma em todos e em cada um dos casos. (...) As peculiaridades de cada caso individual são aferidas apenas na fase de liquidação da sentença coletiva, que é verdadeira ação individual em que cada titular do direito individual deverá provar não somente o montante de seu crédito, como que efetivamente faz parte da comunidade de vítimas do evento submetido e julgado na referida sentença. Em decorrência de sua natureza, Zavascki (2008, p. 42) apresenta as seguintes características: os direitos difusos e coletivos: a) são insuscetíveis de apropriação individual; b) são insuscetíveis de transmissão, seja por ato inter vivos, seja mortis causa; c) são insuscetíveis de renúncia ou transação; d) sua defesa em juízo se dá sempre em forma de substituição processual (o sujeito ativo da relação processual não é o sujeito ativo da relação de direito material), razão pela qual o objeto do litígio é indisponível para o autor da demanda, que não poderá celebrar acordos, nem renunciar, nem confessar (CPC, art. 351), nem assumir ônus probatório não fixado na Lei (CPC, art. 333, parágrafo único, I). A diferença é que nos difusos, e) a mutação dos titulares da relação de direito material se dá com absoluta informalidade jurídica (basta alteração nas circunstâncias de fato); enquanto nos coletivos, e) a mutação dos titulares ativos da relação jurídica de direito material se dá com relativa informalidade jurídica (basta a adesão ou a exclusão do sujeito à relação jurídica- 83 base). Já os direitos individuais homogêneos, para Zavascki (2008, p. 42), são a) individuais e divisíveis, fazem parte do patrimônio individual do seu titular; b) são transmissíveis por ato inter vivos (cessão) ou mortis causa, salvo exceções (direitos extrapatrimoniais); c) são suscetíveis de renúncia e transação, salvo exceções (v.g., direitos personalíssimos); são defendidos em juízo, geralmente, por seu próprio titular. A defesa por terceiro o será em forma de representação (com aquiescência do titular). O regime de substituição processual dependerá de expressa autorização em lei (CPC, art. 6º); e) a mutação de pólo ativo na relação de direito material, quando admitida, ocorre mediante ato ou fato jurídico típico e específico (contrato, sucessão mortis causa, usucapião etc). Não podemos deixar de citar, pela crítica que opõe às definições legais dadas pelo Código de Defesa do Consumidor, as lições de Gidi (1995, p. 22) a respeito da titularidade do direito material das três categorias de direito: direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Para ele, quanto à titularidade do direito material (aspecto subjetivo), o direito difuso pertenceria a uma comunidade formada por pessoas indeterminadas e indetermináveis; o direito coletivo em sentido estrito pertenceria a uma coletividade (grupo, categoria, classe) formada por pessoas indeterminadas, mas determináveis; e os direitos individuais homogêneos pertenceriam a uma comunidade formada de pessoas perfeitamente individualizadas, que também são indeterminadas e determináveis. Para Gidi (1995, p. 22), ao contrário do que se costuma afirmar, não são vários, nem indeterminados, os titulares dos direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Para ele, há (...) apenas um único titular – e muito bem determinado: uma comunidade no caso dos direitos difusos, uma coletividade no caso dos direitos coletivos ou um conjunto de vítimas indivisivelmente considerado no caso dos direitos individuais homogêneos. O indivíduo que compõe a comunidade ou coletividade seria portador tão somente de um interesse, enquanto quem tem o direito público subjetivo à prestação jurisdicional seria a comunidade ou a coletividade, através das entidades legalmente legitimadas a propositura da ação coletiva. De acordo com esse raciocínio 42 , seria inadequado e tecnicamente impreciso dizer que “os titulares do direito difuso são pessoas indeterminadas”, como faz o Código de Defesa do Consumidor no art. 81, parágrafo único, inciso I, mas estaria correto o inciso II, 84 que atribui a titularidade do direito coletivo ao grupo, categoria ou classe de pessoas. Discordamos da posição adotada por Gidi quanto à titularidade do direito material, que acreditamos pertencer às pessoas, individualmente consideradas, mesmo quando não se possa identificá-las, sejam elas pertencentes a toda a comunidade ou a determinadas coletividades. Ainda que ajuízem a ação coletiva envolvendo a defesa de seus interesses institucionais, os entes coletivos buscam tutelar direitos materiais de outras pessoas, de seus integrantes. Por esse outro raciocínio, inadequado é o inciso II do parágrafo único do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, que deveria se referir aos membros do grupo, categoria ou classe como titulares do direito coletivo. Além disso, inadequado também o art. 1º da Lei nº 8.884/1994, que regulamenta a proteção ao abuso da concorrência, ao garantir que “A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei.”. Os membros da coletividade é que são titulares dos bens jurídicos protegidos pela lei. O mesmo é defendido por Carreira Alvim (2010b, p. 331). Se didaticamente é fácil classificar os diversos tipos de direitos, opor-lhes qualidades, características, diferenças e semelhanças, na prática tal tarefa não é tão fácil. Os conceitos e institutos jurídicos concebidos no plano teórico e para fins didáticos, em seu estado puro, nem sempre se amoldam tão harmoniosamente à realidade social, dinâmica e multiforme (ZAVASCKI, 2008, p. 44). A importância da correta classificação do direito é observada por Watanabe, quando ele reclama para a identificação de uma ação coletiva seja indicada qual espécie de direito que ela visa proteger. Em suas palavras: Nessa análise dos elementos objetivos da ação, é, particularmente importante saber com que fundamento e em que termos é postulada a tutela jurisdicional, pois tal seja a colocação feita pelo autor, podemos estar diante de autêntica demanda coletiva para tutela de interesses ou direitos “difusos”, ou coletivos, de natureza transindividual e indivisível, ou senão a hipótese poderá ser de tutela de interesses individuais, com a incorreta denominação de “demanda coletiva” (eventualmente, poderá tratar-se de tutela coletiva de interesses individuais homogêneos). (...) Em suma, a natureza verdadeiramente coletiva da demanda depende não somente da legitimação ativa para a ação e da natureza dos interesses ou direitos nela veiculados, como também da causa de pedir invocada e do tipo e abrangência do provimento jurisdicional postulado, e ainda da relação de adequação entre esses elementos objetivos da ação e a legitimação ad causam passiva. (WATANABE, 1992, p. 20 e 23). Nelson Nery Júnior (1992, p. 111) enfatiza o equívoco de se buscar categorizar o 42 Raciocínio compartilhado por Donizetti e Cerqueira (2010, p. 45). 85 direito de acordo com a matéria, ao se dizer, por exemplo, que o direito ao meio ambiente é direito difuso, o do consumidor é coletivo e o de indenização por prejuízos sofridos é individual. Para ele, o que determina a classificação de um direito é o tipo de tutela jurisdicional pretendida com o ajuizamento da ação: O mesmo fato pode dar ensejo a pretensão difusa, coletiva e individual. O acidente com o “Bateau Mouche IV”, que teve lugar no Rio de Janeiro no final de 1988, poderia abrir oportunidade para a propositura de ação individual por uma das vítimas do evento pelos prejuízos que sofreu (direito individual), ação de indenização em favor de todas as vítimas ajuizada por entidade associativa (direito individual homogêneo), ação de obrigação de fazer movida por associação das empresas de turismo que têm interesse na manutenção da boa imagem desse setor da economia (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo Ministério Público, em favor da vida e segurança das pessoas para que seja interditada a embarcação a fim de se evitarem novos acidentes (direito difuso). Em suma, o tipo de pretensão é que classifica um direito ou interesse como difuso, coletivo ou individual. Ressaltamos também o equívoco de se categorizar o direito pelo legitimado ativo. Nem sempre o Ministério Público busca defender direito difuso, tal como, nem sempre, a Ordem de Advogados do Brasil busca defender direito coletivo. Uggere (1999, p. 90) toma como base o enfoque de Nelson Nery Júnior na distinção entre interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, mas dele discorda ao afirmar que o que faz nascer uma ou outra espécie de interesse metaindividual é o fato jurígeno, que, ao produzir efeitos de relevância jurídica, fere este ou aquele direito. Embora a conclusão de Uggere não nos pareça adequada, de classificação do direito a partir do fato, sua argumentação é de especial interesse nesse trabalho e por isso será melhor analisada. Uggere concorda com a afirmação de ser impossível a categorização do direito com base na matéria, mas garante que a escolha do tipo de pretensão jurisdicional a ser buscada não esgota a possibilidade de outros direitos serem reconhecidos com base no mesmo fato, garantindo o equívoco da classificação do direito de acordo com a tutela jurisdicional que se pretende obter: Com isto, vale dizer que, em estado latente, subsistiriam, por força de um fato ocorrido, o direito difuso e o coletivo, acaso presentes os elementos que os caracterizam, ainda que a escolha da tutela jurisdicional no ato da propositura da ação judicial venha demonstrar a pretensão do seu autor de ver exclusivamente reconhecido o direito individual homogêneo de determinada coletividade, igualmente vulnerado pelo acontecimento. (...) A classificação, portanto, de um direito como difuso, coletivo, individual homogêneo e individual puro não está adstrita à matéria com que 86 está relacionado, nem com o tipo de tutela jurisdicional que se pretende, tendo em vista a existência do elemento que o faz surgir como marco determinante para essa classificação, significa dizer o fato de relevância jurídica produzindo efeitos, ferindo este ou aquele direito. Assim sendo, ainda que seja apontado o tipo de tutela jurisdicional que se pretende, com o ingresso da correspectiva ação judicial, é a classificação do direito vulnerado preexistente à demonstração em juízo da pretensão deduzida pela parte, sendo o fato o elemento que permite essa classificação, a ser feita com base na compatibilização dos critérios já fixados, das características pertinentes a cada um dos direitos aqui abordados, com acontecimento de repercussão jurídica. (UGGERE, 1999, p. 36) Se do mesmo fato pode resultar violação a direito difuso, coletivo e individual, e consequentemente o surgimento de pretensões da mesma natureza, não será o fato que permitirá a classificação do direito. No entanto, a pretensão, o pedido veiculado numa específica ação permitirá a identificação do tipo de direito ali tutelado, ainda que subsistam, fora dela, outros direitos em estado latente. Por essa razão, embora sejam relevantes os argumentos expendidos por Uggere, sobretudo a importância que ele atribuí ao fato jurígeno, não se admite sua conclusão, preferindo-se a proposta de Nelson Nery Júnior. A existência e a classificação do direito, sem dúvida, é preexistente à formulação de qualquer pretensão, seja ela a interdição da embarcação (pretensão difusa), uma obrigação de fazer (pretensão coletiva) ou a indenização pelos danos sofridos (pretensão individual) 43 . O que se afirma, no entanto, é que a classificação do direito pode ser revelada pela análise do pedido. É o que também sustenta Leonel: Não obstante passível de críticas este raciocínio, por vincular a definição do interesse ao pedido formulado em juízo, o que figura como inversão de termos por atrelar o fenômeno (interesse) à sua consequência meramente eventual (pedido formulado em juízo), quando na verdade o primeiro existe independentemente do segundo, o fato é que fornece critério prático de considerável utilidade para fins de distinção. (LEONEL, 2002, p. 101) Observemos o seguinte diagrama: 43 Tanto que Bedaque (2009, p. 45) garante não ser correto “afirmar seja a tutela jurisdicional pleiteada o elemento apto a determinar a natureza do interesse deduzido em juízo. Ao contrário, é o tipo de direito que determina a espécie de tutela. (...) Tudo vai depender das circunstâncias do caso. Aliás, se não fosse assim, chegaríamos ao absurdo de afirmar que inexistem interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos fora do processo. Eles surgiriam apenas com a formulação da tutela jurisdicional. Evidentemente, não está correto o raciocínio, que parte de premissa falsa. O interesse ou direito é difuso, coletivo ou individual homogêneo, independentemente da existência de um processo. Basta que determinado acontecimento da vida o faça surgir. De resto, é o que ocorre com qualquer categoria de direito. Caso não se dê a satisfação espontânea, irá o 87 P1a / – D1 – P1 FATO – D2 – P2 – D3 – P3 Se o pedido é que seja impedido o despejo de lixo em local de reserva natural (P1), o direito será difuso (D1), ainda que o lixo tenha causado danos individuais, que também podem ser pleiteados (P3). Por outro lado, se o pedido for de indenização pelos danos individualmente sofridos (P3), o direito será individual homogêneo (D3), ainda que subsista, fora da ação, um direito difuso latente (D1). Ressalte-se que o mesmo direito pode dar origem a vários pedidos da mesma natureza. No exemplo, D1, o direito a um meio ambiente saudável, poderia também originar o pedido de recuperação da área pelo agente poluidor (P1a). Gidi (1995, p. 21) concorda que o critério científico na identificação do direito “não é a matéria, o tema, o assunto abstratamente considerados”, mas aponta como critério a análise do próprio “direito subjetivo específico que foi violado”. Como ele próprio garante, dissente ligeiramente da tese de Nelson Nery Júnior, primeiro porque o direito subjetivo material teria sua existência dogmática autônoma, sendo possível e recomendável analisá-lo e classificá-lo independentemente do direito processual. Segundo, porque há casos em que o tipo de tutela jurisdicional pretendida não caracteriza o direito material amparado. Como exemplo ele dá o da retirada de publicidade enganosa do ar, que poderia ser obtida tanto por meio de ação coletiva em defesa de direitos difusos, como de ação individual proposta por empresa concorrente. A despeito da coerente fundamentação de Gidi, não podemos concordar que o critério para a identificação do direito material tutelado seja o próprio direito. Nesse caso, as dificuldades práticas de identificação e classificação só com base nas características/qualidades do direito persistiriam. Preferimos a proposta de Nelson Nery Júnior da identificação do direito pelo tipo de tutela jurisdicional pretendida, o que não pode ser feito, no entanto, sem considerar quem formulou o pedido, se o próprio titular do direito legitimado bater às portas do Judiciário para pleitear a tutela jurisdicional, ou seja, a proteção àquele interesse metaindividual, preexistente ao processo.”. Concordamos inteiramente com sua posição. 88 material ou um substituto processual. Assim, conjugando o critério apresentado por Nelson Nery Júnior com a ressalva oposta por Gidi, acreditamos encontrar uma fórmula interessante de classificação do direito. Em primeiro lugar, deve-se observar se quem ajuíza ação é o próprio titular do direito material (ação individual) ou um substituto processual, em nome próprio, mas na defesa de direito de titularidade de terceiros (ação coletiva). Depois, tomando como base o pedido, deve-se observar quem (aspecto subjetivo) e como (aspecto objetivo), no caso de provimento, a ação irá beneficiar. Se não for possível identificar de forma determinada os beneficiários, que compõem toda a coletividade, o direito será difuso. Se os beneficiários puderem ser identificados, temos que observar se eles podem ser beneficiados de forma diferenciada e individualizada – satisfazendo uns e lesando outros –, quando o direito será individual. Ou se eles podem ser beneficiados somente de forma conjunta – satisfazendo ou lesando todos –, quando o direito será coletivo em sentido estrito. Enquanto o que diferencia os direitos difusos dos direitos coletivos sentido estrito é a (in)determinabilidade dos sujeitos titulares, o que diferencia os coletivos sentido estrito dos individuais homogêneos é a (in)divisibilidade do direito. Daí a pertinência do critério estabelecido por Marcelo Abelha Rodrigues para estabelecer a distinção entre os direitos coletivos: Se o objeto tutelado for divisível, o interesse será sempre individual homogêneo. Já se for indivisível, poderá ser difuso ou coletivo em sentido estrito. Neste caso, deverá ser analisado o sujeito, pois, se ele for indeterminável, o interesse é difuso; sendo determinável, o interesse é coletivo em sentido estrito. (citado por DINAMARCO, 2002, p. 692) Quanto à possibilidade de uma ação individual obter o mesmo resultado de um provimento coletivo, isso ocorre porque o mesmo fato, como já observamos, pode gerar violação de direitos de diversos tipos. No caso da retirada de publicidade enganosa do ar pela empresa concorrente, há violação a direito individual puro, a ser resguardado num processo individual, mas que, por via reflexa, no mundo dos fatos, também atinge direito difuso. É importante ressaltar, como fez Almeida (2003, p. 496), que há verdadeira ação individual, com apreciação de direito individual puro, que, por estar ligado às mesmas circunstâncias de fato geradoras do direito difuso, “acaba beneficiando, repita-se – no mundo dos fatos e não do direito, pois o direito difuso não poderá ser objeto de ação individual –, a respectiva comunidade de pessoas (...).” 89 A fusão dos pensamentos de Gidi e Nelson Nery Júnior, embora não nos mesmos termos aqui apresentados, é proposta por Zaneti Júnior (2001, p. 70), que exige a correta individualização pelo advogado do pedido imediato e da causa de pedir, incluindo os fatos e o direito coletivo aplicável na ação. Donizetti e Cerqueira (2010, p. 58) também apresentam uma metodologia semelhante, a partir de indagações, para a identificação dos direitos caso a caso. Seus questionamentos são: 1) Em benefício de quem a tutela é postulada? De um indivíduo ou de uma massa de indivíduos?; 2) Há divisibilidade do direito pleiteado?; 3) Qual a origem do direito coletivo postulado? Há prévia relação jurídica? A partir das respostas dadas a essas perguntas seria possível identificar se o direito é difuso, coletivo em sentido estrito, individual homogêneo ou individual puro. 8. ANTECEDENTES LEGAIS E JURISPRUDENCIAIS DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO Barbi bem que tentara, em 1962, em Conferência proferida no Instituto dos Advogados do Brasil, alargar o âmbito de atuação do mandado de segurança tradicional para permitir a tutela de direito coletivo. De acordo com Barbi (1996, p. 61), embora por longo período o Direito brasileiro somente amparasse direitos subjetivos, quando se elaborou a primeira regulamentação do mandado de segurança na Lei nº 191/1936, previu-se a tutela de interesse legítimo no §1º do seu art. 6º, assim redigido: Sempre que o direito ameaçado ou violado seja certo e incontestável, mas não se tenha individualizado o titular respectivo, cabendo, indeterminadamente, a uma ou mais dentre determinadas pessoas, qualquer destas poderá impetrar mandado de segurança para que o mesmo direito seja garantido a algumas delas. 44 Barbi (2002, p. 57) chegara mesmo a sustentar que uma melhoria de redação do §2º do art. 1 da Lei nº 1.533/1951 seria suficiente para garantir a tutela dos interesses legítimos pelo mandado de segurança. Para ele bastaria a substituição da palavra “direito” por “interesse”: 44 Na justificação do texto legal foi dado o exemplo de cinco pessoas aprovadas em concurso para certo cargo público. Na época, a legislação do Estado de Minas Gerais tinha normas diferentes em matéria de concursos, havendo casos em que a lei dispunha que o Governador teria que nomear um dos aprovados, não importando a ordem de classificação. Surgindo uma vaga, a autoridade, em vez de nomear um dos cinco, nomeia outra pessoa não concursada. Nesse caso havia ilegalidade, mas nenhum dos candidatos aprovados tinha direito subjetivo à nomeação. 90 “Quando o direito [interesse] ameaçado ou violado couber a várias pessoas, qualquer delas poderá requerer o mandado de segurança.” A primeira dessas normas não teve aplicação nos tribunais e a segunda nunca teve a interpretação desejada por Barbi, tendo prevalecido a interpretação mais restritiva quanto ao cabimento do mandado de segurança. Tanto que na atual legislação existe a mesma previsão de que “Quando o direito ameaçado ou violado couber a várias pessoas, qualquer delas poderá requerer o mandado de segurança” (art. 1º, §3º da Lei nº 12.016/2009), sendo que tal dispositivo é considerado hipótese de mandado de segurança individual. De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 6), o dispositivo garante que quando o direito ameaçado ou violado couber a várias pessoas não será necessário litisconsórcio ativo para sua tutela em juízo. Qualquer um dos titulares pode impetrar mandado de segurança individual e, se fizerem em conjunto, o litisconsórcio será apenas facultativo. O exemplo dado é o da Súmula 628 do STF: “Integrante de lista de candidatos a determinada vaga da composição de tribunal é parte legítima para impugnar a validade da nomeação de concorrente”. Somente em 1965, com a regulamentação da ação popular pela Lei nº 4.717/1965, os interesses legítimos passaram a ter inequívoca proteção no Brasil. De acordo com Barbi (2002, p. 58), embora essa lei se destinasse a resguardar o patrimônio público, no seu art. 4º considerava nulos diversos atos que não lesavam esse patrimônio, mas a outros interesses legítimos. Seria somente após a Segunda Grande Guerra, no entanto, com o grande desenvolvimento industrial, que a preservação de valores ambientais, históricos, artísticos e culturais exigiria a criação de instrumentos processuais para a tutela de interesses legítimos, que, nessa época, já eram chamados de interesses difusos. Os interesses legítimos do Direito francês teriam se transformado e na sua ampliação ganhado o nome de interesses difusos, mas ainda não eram passíveis de proteção pelo mandado de segurança. A necessidade de uma ação mandamental coletiva surgiu de uma dificuldade prática, a de se processar mandados de segurança com litisconsórcio ativo composto por centenas ou milhares de pessoas. Na prática forense surgiram inúmeros casos em que um grande número de pessoas possuía direitos afins, ligados por um ponto comum, como a origem na mesma norma legal ou num mesmo fato. Essas pessoas passaram a agir em litisconsórcio ativo facultativo para reduzir as despesas com advogados e custas. Os inconvenientes práticos dessa medida eram muitos, como a necessidade de nome e qualificação de todos os autores, outorga de procuração de todos, contratação de serviços individualizada etc. Barbi cita exemplos desses casos: 91 Um dos primeiros problemas que surgiram foi o da multiplicidade de demanda do mesmo tipo. A primeira vez que apareceu foi logo após a Segunda Grande Guerra, quando começou a chamada importação de cadillacs dos Estados Unidos; o governo, com ou sem razão, queria impedir essas importações e não liberava as entregas dos veículos. Começou, então, o mandado de segurança, que se chamava coletivo, mas que, no fundo, era apenas um processo de mandado de segurança com duzentos, trezentos, quatrocentos autores, pessoas diferentes, requerendo a liberação de veículos em litisconsórcio ativo, porque era um modo de fazer economia de atividade processual, despesas de advogado etc. Mais tarde isso se repetiu quando o governo federal criou uma gratificação por triênios de serviço; começaram a surgir demandas com dois, três mil funcionários reclamando pagamento dessas gratificações. E a prática foi mostrando que essa demanda coletiva, sob certo aspecto, era extremamente complicada, difícil para o advogado, difícil para a parte; era preciso arranjar soluções mais simples. (BARBI, 1996, p. 59) A solução encontrada foi a criação de uma modalidade verdadeiramente coletiva de mandado de segurança, no qual uma única pessoa substituísse todas aquelas centenas ou milhares de litigantes, ajuizando e conduzindo a ação em benefício delas. O exercício conjunto da ação por diversas pessoas não configura ação coletiva, embora esse equívoco ainda seja cometido por inúmeros juristas, estando presente inclusive em decisões judiciais, conforme se observou na pesquisa estatística (parte IV). O cúmulo de diversos sujeitos em um dos pólos da relação processual configura apenas litisconsórcio, figura já antiga na processualística romana, como garantem Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 34): “O litisconsórcio representa apenas, na disciplina originalmente prevista pelo CPC, a possibilidade de união de litigantes, ativa ou passivamente, na defesa de seus direitos subjetivos individuais”. Já a ação coletiva, cuida de outro tipo de matéria litigiosa45 e um de seus objetivos é justamente o de evitar a ocorrência de um litisconsórcio multitudinário que dificulte o andamento do processo. O Supremo Tribunal Federal havia, antes da Constituição de 1988, reconhecido à Ordem dos Advogados do Brasil legitimidade para impetrar mandado de segurança em prol dos interesses da classe advocatícia, fazendo-o, na ocasião, com base no parágrafo único do art. 1º, da Lei nº 4.215/1963 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), que dispunha: “Cabe à Ordem representar, em juízo e fora dele, os interesses gerais da classe dos advogados e os individuais, relacionados com o exercício da profissão”. No MS 20.170/DF, julgado em 08/11/1978, a Ordem insurgia-se contra a nomeação 45 De acordo com Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 35), a matéria litigiosa veiculada nas ações coletivas refere-se geralmente a novos direitos e a novas formas de lesão que têm uma natureza comum ou nascem de situações arquetípicas. Para eles, é a matéria litigiosa discutida no processo e não sua estrutura subjetiva o elemento significativo na classificação da ação como coletiva. 92 do Dr. Aluysio Simões de Campos para vaga no Tribunal Superior do Trabalho, sob alegação de faltar a esse, quando da edição do decreto presidencial, a condição de advogado “no efetivo exercício de profissão”. Nele o Min. Décio Miranda garantiu a legitimidade da Ordem e de sindicatos para impetração do mandado de segurança no interesse de seus integrantes: Quando a Ordem ou os sindicatos “representam”, em Juízo, os interesses gerais da classe, em verdade, não exercitam direitos alheios individuais, somados num feixe, mas uma categoria própria de direitos, a que foi conferida proteção unitária, com o conseqüente direito de ação. Não vejo, pois, como negar a essa categoria de direitos o amparo do mandado de segurança que a Constituição assegura ao “direito líquido e certo não amparado por habeas corpus”, sem exigir que corresponda a pessoa física, individualmente considerada. Também os sindicatos possuíam base legal para atuar em nome de seus filiados pelo art. 513, “a” da Consolidação das Leis Trabalhistas46, que hoje está constitucionalizado pelo art. 8º, III, da Constituição 47 . Além dos interesses gerais da respectiva categoria ou profissão liberal, o sindicato poderia proteger interesses individuais dos associados relativos à atividade ou à profissão exercida (o que hoje se conhece como direitos individuais homogêneos). O que acontecia, no entanto, era que os tribunais reconheciam a legitimidade do sindicato e associações de classe apenas no juízo trabalhista, não permitindo a sua atuação em outros juízos e, especialmente, para o mandado de segurança. Pacheco (2002, p. 325) cita alguns julgados de tribunais interpretando a legitimação dos sindicatos de forma restritiva, apenas para o juízo do trabalho, como os do Supremo Tribunal Federal no MS 20.332 e no RE 116.206-6. Oliveira (1990, p. 139) também cita o MS 18.428, em que o Supremo teria admitido a impetração do writ coletivo por Sindicato dos Corretores de Navios do Estado da Guanabara. Zavascki (2008, p. 225) também sustenta que o mandado de segurança tradicional já possuía características e base constitucional para tutelar direitos coletivos, bastando que o impetrante estivesse legitimado, como era o caso da Ordem dos Advogados do Brasil e dos sindicatos. Para Bueno (2002, p. 348), a existência de antecedentes legais de substituição por determinadas entidades “são prova contundente que o mandado de segurança coletivo, definitivamente, nada mais é que uma forma constitucionalizada de substituição processual”. 46 “Art. 513. São prerrogativas dos sindicatos: a) representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias os interesses gerais da respectiva categoria ou profissão liberal ou interesses individuais dos associados relativos à atividade ou profissão exercida;” 93 Às demais entidades de classe, associações e corporações civis, no entanto, faltava legitimidade para atuarem em nome de seus membros, como garante Sidou: (...) decorria que as corporações civis e sindicais só podiam buscar a segurança se a lesão de direito recaísse sobre a corporação em si, sem ser particularmente incidente sobre os membros ou associados, um, alguns ou todos. Por mais que se erguesse seu interesse, as entidades associativas não tinham legitimidade para pleitear o remédio de segurança em defesa do direito próprio de seus integrantes, pois só a esses incumbia pleiteá-lo. Essa restrição perdurou até agora, se bem que, há muito, respeitáveis vozes de juristas se alçaram na tentativa de obterem reconhecimento da legitimatio ad causam as corporações, tal como era reconhecido à Ordem dos Advogados do Brasil, dado que seu estatuto (Lei nº 4.215, de 1963) lhe faculta pleitear em juízo e fora dele os interesses gerais da classe dos advogados e os individuais, relacionados ao exercício da profissão (art. 1º, parágrafo único). E mais recentemente, a Lei nº 7.347, de 1985, disciplinando a ação civil de responsabilidade por danos causados ao consumidor, conferiu às associações de consumidores a legitimação causal para promoverem o reconhecimento dos interesses de seus associados. Coube agora à Constituição de 1988 estabelecer a isonomia, criando, ou melhor, ampliando o instituto de garantia, a que deu o nome específico de mandado de segurança coletivo e tratamento em item autônomo do art. 5º (...). (SIDOU, 1989, p. 199) De acordo com Cretella Júnior (1997, p. XXIV), quando a Constituição de 1967, em seu art. 150, §21, incluiu o vocábulo individual na fórmula do mandado de segurança, o objetivo do constituinte era de impedir que pessoas jurídicas pudessem recorrer ao writ para defesa de direitos de seus membros ou associados. Assim, quando, por exemplo, as entidades de classe se insurgissem contra o aumento do imposto de circulação de mercadorias incidente sobre as atividades de seus filiados teriam que recorrer à ação declaratória, pois para o mandado de segurança lhes faltaria legitimação ativa. Só que, desde a Emenda Constitucional nº 1/1969, havia sido excluída a palavra “individual” da fórmula do instituto. Zaneti Júnior (2001, p. 59) garante que poucos foram os casos em que foi aceita a legitimação extraordinária da Ordem dos Advogados do Brasil ou de sindicatos na defesa de seus membros. De acordo com ele, a jurisprudência antes da Constituição de 1988 era coesa no sentido de impedir a defesa de direitos coletivos pela via do mandado de segurança, o que teria feito Barbosa Moreira (1991, p. 194) garantir que: Até o dia 4.10.88, podemos afirmar, com absoluta certeza, que o Mandado de Segurança, pelo menos de acordo com a versão que dele se consagrou na jurisprudência, era instrumento de defesa de direitos individuais. 47 “Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: (...) III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.” 94 Assim, o caráter individual do mandado de segurança foi conservado até a Constituição de 1988, que “sob o influxo das idéias coletivizantes da última quadra do Século XX” (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 5) criou o mandado de segurança coletivo. 9. SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO O sistema de garantias constitucionais recebeu grande incremento com o advento da Constituição Federal de 1988, que, ao deslocar o título que cuida de direitos e garantias fundamentais para o início da Carta e incluir os direitos coletivos no rol desses direitos fundamentais, renovou e ampliou o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário ou universalidade da jurisdição. Operou-se verdadeira transformação no âmbito dos direitos e garantias constitucionais, decorrente da transposição do enfoque individual para o social, momento propício para a criação do mandado de segurança coletivo, com o qual se buscava fortalecer as organizações classistas e os partidos políticos, desonerar o Judiciário em relação ao julgamento de questões idênticas, tornar mais célere a atuação jurisdicional e facilitar o acesso à Justiça (REMÉDIO, 2009, p. 510). Sundfeld (1990, p. 193) ainda acrescenta alguns objetivos do mandado de segurança coletivo, como o de tornar viável a defesa de interesses economicamente pouco relevantes, quando tomados isoladamente, mas relevantes, quando somados; e de tornar mais frequente, pela via de colaboração mútua, o questionamento das lesões de direito, sobretudo quando produzidas pelo Estado. No julgamento do RE 175.401, o Min. Ilmar Galvão, citando Barbosa Moreira e Michel Temer, aponta quais os principais objetivos que se buscou alcançar com a criação do mandado de segurança coletivo: (...) conforme lição de Barbosa Moreira, invocada por Carlos Velloso (in “Do Mandado de Segurança e Institutos Afins na Constituição de 1988”, ed. Saraiva, 1990, pág. 97), “quis que se julgasse, num único processo o conjunto de todos os litígios entre os integrantes de determinado grupo ou categoria e o Poder Público, evitando-se a pluralidade de processos que têm por objetivo a mesma pretensão e ajuizados por iniciativa de diversos indivíduos, pleitos que, tramitando separadamente, correm o risco de serem decididos de modo conflitante. Com o mandado de segurança coletivo tudo fica simplificado, 95 pois, em vez de dezenas ou centenas de processos, apenas um se realizará, movido pela entidade coletiva, com resultado extensivo à toda categoria interessada.” De idêntica opinião, Michel Temer, para quem “a criação do mandado de segurança coletivo tem dois objetivos: a) fortalecer as organizações classistas; e b) pacificar as relações sociais pela solução que o Judiciário dará a situações controvertidas que poderiam gerar milhares de litígios com a consequente desestabilização da ordem social” (Elementos de Direito Constitucional, pág. 207). Na verdade, a instituição do mandado de segurança coletivo em nosso sistema jurídico-processual foi uma medida de inestimável alcance no combate aos efeitos da chamada “crise no Judiciário”, caracterizada, principalmente, por uma avassaladora desproporção entre o número de processos e o número de juízes, que ameaça tornar impraticável a função jurisdicional, entre nós. O legislador da Constituição de 1988 teve dificuldades na construção de uma fórmula coletiva do mandado de segurança. Diversas sugestões foram apresentadas, sendo que, no Anteprojeto de Constituição da Comissão de Sistematização, o instituto era apenas um parágrafo do artigo que se referia ao mandado de segurança. Foi nesse contexto de dúvida quanto a melhor fórmula para o instituto que a Constituição da República de 1988 previu o mandado de segurança coletivo no seu art. 5º, LXX, alíneas a e b, não formulando seu conceito, mas garantindo apenas a possibilidade de ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional e por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados: LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados; O constituinte excepcionou a regra geral de legitimação ordinária prevista no art. 6º do Código de Processo Civil, autorizando que certas entidades pleiteassem, em nome próprio, direito alheio, encerrando fenômeno da substituição processual em nível constitucional. O mandado de segurança coletivo, embora criado em 1988 pela Constituição Federal, até o ano de 2009, ainda não tinha sido disciplinado pela legislação ordinária. Diante da ausência de objeto definido pela Constituição, de requisitos para seu ajuizamento, forma do procedimento, dentre outros, o mandado de segurança coletivo se utilizou da legislação, doutrina e jurisprudência aplicáveis ao mandado de segurança 96 tradicional. No entanto, dado o caráter individualista que permeava a Lei nº 1.533/1951, o que a tornava deficiente à regulação de uma ação coletiva, foi necessário aplicar, subsidiariamente, ao mandado de segurança coletivo a disciplina das ações civis públicas e ações coletivas em geral, especialmente a Lei nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) e a Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), sobretudo seu Título III. Referindo-se a ausência de regulamentação específica para o mandado de segurança coletivo, Fux afirma: Por esta razão, tornou-se extremamente importante o exercício exegético desenvolvido pela doutrina e pela jurisprudência no sentido de conferir segurança e operacionalidade ao Mandado de Segurança Coletivo, enquanto o mesmo não fosse regulamentado, tendo em vista o seu enquadramento no importante microssistema de tutela coletiva. (FUX, 2010, p. 133) Foi assim que, também no caso do mandado de segurança coletivo, sua construção acabou sendo paulatinamente realizada pela doutrina e jurisprudência, que lhe conferiu contornos próprios e adequados ao seu escopo, alguns dos quais somente em 2009 seriam acolhidos pela legislação infraconstitucional, Lei nº 12.016/2009. Esse desafio empreendido pela doutrina e jurisprudência foi bem resumido por Zavascki (2008, p. 223) na necessidade de “aliar a aplicação subsidiária das normas do mandado de segurança individual às regras e aos princípios que regem a ação coletiva”. O que poderia parecer fácil resultou num grande número de problemas e questões polêmicas, “nem sempre solucionadas a contento, nem muito menos de maneira uniforme”, como garante Theodoro Júnior: Por falta de explicitação na Constituição de dados que pudessem facilitar a sujeição do mandado coletivo às particularidades das ações coletivas já existentes, alguns pontos exegéticos se tornaram bastante polêmicos, principalmente porque o legislador infraconstitucional demorou muito a promover a regulamentação da nova espécie do mandamus. Coube à Lei nº 12.016/2009 o preenchimento da lacuna regulamentar, com a conseqüente superação das divergências em que se embatiam a doutrina e a jurisprudência, quanto á maneira de estender ao mandado de segurança coletivo a disciplina e os princípios próprios das ações coletivas. (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 8) O Projeto de Lei nº 5.067/2001, que deu origem a Lei nº 12.016/2009, recebeu apenas dois vetos do Presidente, não relacionados ao mandado de segurança coletivo, cuja parca regulamentação está nos arts. 21 e 22: 97 Art. 21. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial. Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser: I - coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica; II - individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante. Art. 22. No mandado de segurança coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante. § 1º O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva. § 2º No mandado de segurança coletivo, a liminar só poderá ser concedida após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas. Antes mesmo de ser publicada, a legislação do mandado de segurança coletivo já era alvo de críticas, seja pela exclusão aparente da tutela dos direitos difusos, seja pela não ampliação do rol dos legitimados a sua impetração, com inclusão do Ministério Público e da Defensoria Pública. Foram louvados alguns avanços da lei, que positivou entendimentos jurisprudenciais e se posicionou sobre alguns assuntos controvertidos. A nova lei, no entanto, manteve algumas controvérsias e criou outras, como se verá detalhadamente nos capítulos seguintes. Por ora, apenas se apresenta a regulamentação específica do mandado de segurança coletivo na nova lei. O art. 21, caput, especificou duas formas de atuação do partido político, uma na defesa de interesses legítimos relativos a seus integrantes, outra na defesa de interesses relativos à sua finalidade partidária. Para as organizações sindicais, entidades de classe ou associações, foi dispensada a autorização especial para a impetração da ação, garantida a possibilidade de defesa de direitos de parte dos membros e exigida a pertinência temática entre o objeto da impetração e as finalidades do impetrante. 98 No parágrafo único foi permitida a impetração do mandado de segurança coletivo para a defesa de direitos coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, apenas. O art. 22 estabeleceu que a coisa julgada será limitada aos membros do grupo substituídos pelo impetrante. Com essa opção, evitou-se atribuir efeitos erga omnes ou ultra partes à coisa julgada, tal como fizera o Código de Defesa do Consumidor e, ao mesmo tempo, afastou-se a limitação territorial da eficácia das decisões coletivas, prevista no art. 2º- A da Lei nº 9.494/1997. Seu §1º prevê que não há litispendência entre o mandado de segurança coletivo e ações individuais, de forma semelhante ao art. 104 do Código de Defesa do Consumidor. No entanto, de forma diversa do Código de Defesa do Consumidor, garante a necessidade de desistência (e não suspensão) do mandado de segurança individual para que o impetrante se beneficie da decisão coletiva. No §2º a lei garante a impossibilidade de concessão de liminar em mandado de segurança coletivo sem audiência prévia do representante judicial da pessoa jurídica de direito público. 10. DIREITO COMPARADO Antecedentes históricos das ações coletivas são identificados já no período da Roma antiga, quando ao cidadão era atribuído o poder de defender a coisa pública, origem remota da ação popular. Apesar da importância histórica das ações romanas, o modelo das class actions, de origem anglo-saxã, antecedente mais próximo, é considerado o grande modelo prático de influência na construção da maioria dos sistemas de tutela coletiva existentes atualmente no Direito Comparado, inclusive do brasileiro. As class actions, apesar de terem surgido na Inglaterra, ganharam maior efetividade nos Estados Unidos, onde a proteção dos interesses massificados evoluiu de forma mais expressiva. A class action é instituto originário do direito inglês, criado pelo Bill of Peace, em fins do século XVII, inicialmente com cabimento admitido apenas diante da Court of Chancery em juízos de equidade (TUCCI, 1990, p. 11). Pelo Bill of Peace era permitido que uma única pessoa pudesse propor ou sofrer uma ação por intermédio de partes representativas (representative parties), com resolução final vinculante a todas. Com a fusão dos sistemas da law e da equity, decorrente do Court of Judicature Act, 99 de 1873, o instituto se estruturou com características atuais, passando a ser utilizada nos demais países em que vigorava a common law, com a seguinte formulação básica, prevista na Regra 10 do diploma unificador: Havendo multiplicidade de partes comungando do mesmo interesse em uma controvérsia, uma ou mais das partes podem acionar ou serem acionadas pela Corte para litigar em benefício de todas as demais. A class action permite o julgamento de uma demanda proposta por (ou em face de) um grande número de pessoas (indivíduos ou organizações) que tenham interesses correlatos, em situações em que é mais eficiente o julgamento em termos coletivos que individuais. Está- se diante de uma class action, segundo Tucci (1990, p. 12), quando: a) o número de pessoas interessadas fosse muito grande, desde que houvesse possibilidade de agrupamento; b) todos os membros do grupo tivessem o mesmo interesse na questão litigiosa; c) as partes em juízo representassem adequadamente o interesse dos ausentes. 48 Almeida (2003, p. 121) afirma que a primeira codificação sobre a matéria, nos Estados Unidos, ocorreu em 1842, através da Federal Equity Rule 48. Depois dela, a matéria foi regulamentada pela Federal Equity Rule 38, de 1912, apesar da existência de inúmeras normas sobre o instituto em legislações estaduais. Embora existissem regramentos anteriores, a class action adquiriu importância inequívoca, de acordo com Tucci, com a edição da Regra 23 das Federal Rules of Civil Procedure, de 1938. Tal regramento tem aplicação genérica, na esfera de competência dos Tribunais Federais americanos, tanto às ações fundadas na equidade, como àquelas escudadas na lei. Trata-se da primeira definição normativa daquelas ações, o que foi feito pela indicação de seus requisitos essenciais e hipóteses de cabimento. Naquele momento eram concebidos três tipos de class actions, dependendo do caráter do direito tutelado, do que resultavam efeitos diversos do julgamento. De acordo com Leonel (2002, p. 68): 48 Para Bueno (1996, p. 93), “A class action do direito norte-americano pode ser definida como o procedimento em que uma pessoa, considerada individualmente, ou um pequeno grupo de pessoas, enquanto tal, passa a representar um grupo maior ou classe de pessoas, desde que compartilhem, entre si, um interesse comum. Seu cabimento restringe-se àquelas hipóteses em que a união de todos que poderiam ser partes em um mesmo processo (que se afirmam titulares da lide levada ao Estado juiz, portanto) não é plausível (até porque seu número poderia chegar a milhões) ou porque sua reunião, em um só processo, daria ensejo a dificuldades insuperáveis quanto à jurisdição e à competência. Há precedentes jurisprudenciais onde se verifica que, precisamente pela grande dispersão territorial dos afetados, justificou-se a instauração e o processamento daquela pretensão como class action.” 100 (...) na true class action, o direito era absolutamente comum a todos os membros do grupo; na hybrid class action, o direito era comum em razão de várias demandas sobre um mesmo bem; e na spurious class action, inúmeras pessoas, possuindo interesses diversos, reuniam-se para litigar em conjunto. Dito de outro modo, poder-se-ia falar em true, hybrid, ou spurious class actions, conforme o grau de comunhão entre os interessados, com relação ao objeto da demanda, fazendo derivar, da identificação de uma ou outra categoria, conseqüências distintas. Em 1966, foi implantada uma profunda reforma da Rule 23, pondo fim às inúmeras divergências de interpretação que pairavam sobre a identificação das class actions, naquele contexto instituto já tradicional e amplamente utilizado nos Estados Unidos. Essa reforma buscou acabar com a “discrepância de interpretação pretoriana no tocante ao correto enquadramento dos vocábulos joint, common e several [natureza dos direitos objetos da controvérsia], e a diversidade de tratamento no que se refere à legitimação e à coisa julgada para cada uma das espécies de class action (...)” (TUCCI, 1990, p. 14). De acordo com a Regra 23, após a reforma de 1966, alínea a, são: (a) Pré-requisitos para a ação de classe: Um ou mais membros da classe podem demandar, ou serem demandados 49 , como legitimados, no interesse de todos, se (1) a categoria for tão numerosa que a reunião de todos os membros se torne impraticável; (2) houver questões de direito ou de fato comum ao grupo; (3) os pedidos ou defesas dos litigantes forem idênticos aos pedidos ou às defesas da própria classe; e (4) os litigantes atuarem e protegerem adequadamente os interesses da classe. (TUCCI, 1990, p. 14) Esses seriam os pressupostos de admissibilidade da class action. São cumulativos, ou seja, todos devem estar presentes como pré-requisitos ao ajuizamento de class actions. O primeiro deles, grande número de membros do grupo, não explicita quantitativos fixos, estipulando como parâmetro apenas a impossibilidade prática de reunião de todos eles. No que diz respeito à impossibilidade de formação de litisconsórcio, não é preciso demonstrar a inviabilidade absoluta de sua formação, mas sim que sua formação torne extremamente difícil ou inconveniente o prosseguimento da demanda. Se for observado que a controvérsia pode ser resolvida por meio de ação individual, ainda que com litisconsórcio multitudinário, não será adotado o processo da class action, que é mais complexo e, muitas vezes, mais dispensioso. Leonel (2002, p. 73) garante que, nessa avaliação, o juiz observa dados, além da simples questão da abrangência numérica da classe, como a natureza e complexidade da 49 Sem adentrar no exame da matéria, ressalte-se apenas que a doutrina majoritária rejeita o cabimento da ação coletiva passiva no ordenamento brasileiro. 101 demanda, a grandeza das reclamações individuais e a localização geográfica dos membros da classe. O segundo pressuposto exige que o objeto da relação jurídica litigiosa seja comum a todos os integrantes. O terceiro pressuposto reflete a necessidade de que a atuação do(s) representante(s) esteja em harmonia com os interesses de toda a classe. No Direito brasileiro esses dois últimos requisitos não são exigidos, já que nas ações coletivas e especialmente no mandado de segurança coletivo pode haver tutela de interesse de parte dos membros do grupo, como se verá adiante. O último desses pressupostos de admissibilidade, o da representatividade adequada, se tornou de grande importância no sistema da class action, sendo substancialmente diverso do adotado no modelo brasileiro. Nele a escolha do(s) representante(s) da classe é feita, no caso concreto, pelo juiz do tribunal (ope judicis), sendo objeto de permanente controle jurisdicional. Questionada sua condição de integrante da classe ou sua adequada representação, o tribunal poderá determinar a intervenção de outro integrante da classe. Mesmo depois de finda a ação coletiva, um membro da classe que não participou do processo pode questionar a representação da class action. Nesse caso, se atestada a inadequação da representação, subentendem-se não estendidos a ele os efeitos da sentença e da coisa julgada 50 . Daí porque, até a parte contrária, tem interesse em zelar pela adequação do representante (GIDI, 2002, p. 67). A representatividade adequada é de grande importância no sistema americano, uma vez que os representados, mesmo não participando do processo, serão diretamente atingidos pelos efeitos, positivos e negativos, da coisa julgada. Somente é possível a manutenção da ação de classe se os representantes puderem, adequadamente, proteger os interesses dos membros ausentes. É a adequada representação e a notificação dos interessados que garante a observância do devido processo legal (due process 50 Observe-se exemplo citado por Bueno (1996, p. 106): “Bastante interessante sobre o tema e útil para o aclaramento das premissas de direito positivo, é o caso Gonzales versus Cassidy. Tratava-se de ação movida no interesse de todos os motoristas de taxi do Texas que, sem seguro, tiveram suas licenças cassadas quando envolvidos em acidentes de trânsito sem condições de pagar os danos causados. A decisão que encerrou a class suit foi de invalidade daquele comando administrativo, sendo certo que, somente para o autor da ação, foi determinada a retroatividade da decisão, com a liberação de sua licença. Para os demais membros da classe, a decisão poderia ser invocada somente para as suspensões de licença ocorridas após sua proclamação. Diante disto, uma nova ação foi proposta por um membro ausente da primeira ação (non-named), Gonzales, cuja licença tinha sido suspensa antes daquela decisão ser proferida e cuja extensão do benefício, portanto, havia sido negada. O debate que se travou foi no sentido da falta da fair representation naquela ação coletiva - e, como conseqüência, falta de extensão de seus efeitos e da coisa julgada - posto que seu autor, favorecido plenamente com a decisão, não recorreu em prol dos demais membros (ausentes) que se encontravam na mesma situação fática.” 102 of law 51 ) no modelo norte-americano, afinal as vantagens da eficiência e economia judiciais não podem afetar as garantias constitucionais do processo. Segundo Bueno (1996, p. 104), a doutrina elenca, para a verificação do que seja a adequacy of representation, a necessidade da concorrência de três elementos: os membros presentes e nomeados na ação devem demonstrar que têm efetivo interesse jurídico na promoção daquela demanda; deve ser atestada a competência dos advogados que conduzirão a ação, sua bona fides e sua competência técnica; e a inexistência de qualquer conflito interno no interior da classe. Como esclarece Gidi (1996, p. 63): As qualidades pessoais do candidato a representante devem ser cuidadosamente investigadas. Além de ser possuidor de uma higidez financeira que o habilite a uma boa condução do processo, o autor deve demonstrar que pela sua atitude, determinação, disponibilidade, seriedade e outras qualidades psicológicas tem condição de representar os interesses do grupo em um processo judicial. Até mesmo a escolha do advogado, por parte da entidade, é levada em conta na aferição do seu desempenho, devendo recair em profissional com experiência na área e prestígio na comunidade. Leonel (2002, p. 74) também garante que são observados, na análise da adequação da representação, dados como a experiência dos advogados contratados, sua especialização na matéria a ser discutida em juízo, a qualidade de seus trabalhos e petições apresentadas, a qualidade propriamente dita das partes nomeadas, os motivos que as trazem ao litígio, seu aporte financeiro ou econômico para fazer frente aos custos da demanda e sua capacidade de formular uma defesa séria e vigorosa. A princípio, a “representatividade adequada” 52 no sistema brasileiro é fixada pela lei (ope legis), que define expressamente quais são os legitimados ativos das ações coletivas e quais os requisitos eles devem preencher. De acordo com Bueno: No Brasil, entretanto, não há lugar para que se verifique se aquele que se apresenta perante o Estado-juiz, pautado na letra da lei, como adequado representante de determinada lide que diga respeito a diversas pessoas, seja pessoa apta, efetivamente, para exerce aquele munus. O sistema da representatividade adequada no Brasil, seja o estabelecido na Constituição 51 Há exigência constante da quinta (1791) e da décima quarta (1868) emendas à Constituição americana de que ninguém será privado de seus bens sem o due process of law. O problema da garantia do due process of law nas class actions, segundo Tucci (1990, p. 23) foi profundamente debatido pelas cortes americanas nos casos Hansbery versus Lee e Eisen versus Carlisle & Jacquelin, nos quais consagrado que o due process of law estaria garantido pela adequacy of representation. Assim, essa garantia estaria presente sempre que aos membros da classe, estranhos ao processo, fosse assegurado que os representatives estejam em condições de defender o interesse comum do modo mais satisfatório possível. 52 No regime brasileiro não é correto usar a expressão “representatividade adequada”, uma vez que o fenômeno envolvido não é representação, mas substituição processual, conforme será observado no capítulo 11.2. Tal equívoco foi observado por Donizetti e Cerqueira (2010, p. 166). Ainda assim, tal expressão foi utilizada neste trabalho, entre aspas, quando relacionada ao regime brasileiro de controle da legitimação ativa. 103 Federal, seja o estabelecido no ordenamento infraconstitucional, é presumido: todos aqueles que preencham os requisitos previstos, em abstrato, na norma jurídica, devem ser considerados aptos para o regular desenvolvimento de uma ação denominada coletiva. (BUENO, 1996, p. 130) Para evitar abusos e imperfeições o legislador brasileiro fez algumas exigências, que os legitimados devem preencher. Há, por exemplo, o requisito da pré-constituição para as associações, de que ela seja constituída há pelo menos 1 ano, para ajuizar a ação coletiva. A condição de eleitor para o ajuizamento da ação popular. Há também, para os partidos políticos, a exigência de possuírem representação no Congresso Nacional para impetração do mandado de segurança coletivo. Esses requisitos, juntamente com o da pertinência temática, serão melhor analisados no capítulo 11, a fim de demonstrar que o julgador brasileiro, embora não de forma tão ampla quanto o americano, também faz o controle da legitimação ativa no caso concreto, com base em critérios previstos em lei, no entanto. A grande diferença é que, no sistema americano, a partir de um grupo enorme de potenciais legitimados, que podem ser tanto pessoas físicas como jurídicas, o magistrado faz um exame amplo e detalhado, escolhendo o(s) representante(s) adequado(s) com base em critérios bastante subjetivos. No sistema brasileiro, a lei já restringe os legitimados (ou capacitados) a propor a ação coletiva, cabendo ao juiz fazer um controle mais objetivo da efetiva legitimidade daquele que ajuíza a ação. Além disso, no Brasil, os efeitos da coisa julgada só se estendem de forma benéfica ao plano dos direitos individuais dos substituídos, que sempre terão aberta a possibilidade de ajuizamento de ações individuais em caso de insucesso da ação coletiva 53 . Dessa forma, a garantia 54 constitucional do devido processo legal, prevista no art. 5º, LIV, da Constituição, de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, também fica resguardada. Outra diferença do sistema norte-americano, em relação ao modelo brasileiro de ações coletivas, é que o representante da classe sempre se apresenta como legitimado ordinário, uma vez que também busca resguardar interesse próprio, ao lado do interesse dos membros componentes da classe de que faz parte. No sistema brasileiro, a nosso ver, isso só ocorre, de 53 Conforme será melhor analisado no capítulo seguinte, “Não significa dizer, em uma generalização desautorizada, que as ações coletivas sempre beneficiam e nunca prejudicam. Só não são prejudicados, observe- se, os correspondentes direitos individuais, mas o direito objeto do processo coletivo já não poderá ser discutido em outro processo. Correto, todavia, seria dizer que, no que concerne à sentença e à coisa julgada em ações coletivas, a regra é sempre beneficiar (CDC, art. 103, I a III) e jamais prejudicar (CDC, art. 103, §§1º a 3º) os correspondentes direitos individuais.” (GIDI, 1996, p. 126) 54 Theodoro Júnior (1997, p. 99-100), citando Grinover, assinala ser importante tratar as regras que tutelam o devido processo legal como garantias e não como simples direitos subjetivos, pois possuem índole assecuratória, visam tutelar o exercício de outros direitos, guardando com eles uma relação de instrumentalidade. 104 modo assemelhado, na ação popular. A Regra 23 também apresenta pressupostos de desenvolvimento da class action na alínea b, são eles: (b) Prosseguimento de uma ação de classe: Uma ação pode desenvolver-se como class action desde que satisfeitos os pressupostos da alínea a, e, ainda, se: (1) o ajuizamento de ações separadas por ou em face de membro do grupo faça surgir risco de que (A) as respectivas sentenças nelas proferidas imponham ao litigante contrário à classe comportamento antagônico; ou que (B) tais sentenças prejudiquem, ou tornem extremamente difícil, a tutela dos direitos de parte dos membros da classe estranhos ao julgamento; ou se (2) o litigante contrário à classe atuou ou recusou-se a atuar de modo uniforme perante todos os membros da classe, impondo-se um final injunctive relief ou um declaratory relief em relação à classe globalmente considerada; ou se (3) o tribunal entende que as questões de direito e de fato comuns aos componentes da classe sobrepujam as questões de caráter estritamente individual, e que a class action constitui o instrumento de tutela que, no caso concreto, mostra-se mais adequado para o correto e eficaz deslinde da controvérsia. Na análise de todos esses aspectos, o tribunal deverá considerar: (A) o interesse individual dos membros do grupo no ajuizamento ou na defesa da demanda separadamente; (B) a extensão e o conteúdo das demandas já ajuizadas por ou em face dos membros do grupo; (C) a conveniência ou não da reunião das causas perante o mesmo tribunal; (D) as dificuldades inerentes ao processamento da demanda na forma da class action. (TUCCI, 1990, p. 14) Os pressupostos de desenvolvimento são alternativos, ou seja, ocorrendo qualquer um dos casos (1), (2) ou (3), a class action pode prosseguir. Assim, mais do que pressupostos, na tradução de Tucci, podemos considerar que a alínea b apresenta os três tipos de class actions que podem se desenvolver no direito norte-americano. Os primeiro tipo (b) (1) visa garantir a coerência das decisões no ordenamento jurídico, ao se evitar o risco de decisões contrárias ou contraditórias (A) ou que decisões individuais possam prejudicar outros membros (B). O segundo tipo (b) (2), evita o tratamento desigual dos membros da classe. Esses objetivos também são próprios das ações coletivas brasileiras. Já o terceiro tipo (b) (3) ocorre quando o tribunal considera as questões comuns da classe mais relevantes que as de caráter individual (prevalência) e que a class action é mais adequada para o correto e eficaz deslinde da controvérsia (superioridade). Nessa avaliação de 105 prevalência e superioridade ele deverá se utilizar dos parâmetros dispostos nas letras (A), (B), (C) e (D). Esses parâmetros contêm situações que poderiam tornar o ajuizamento de ações individuais mais adequado, mesmo diante da eficiência e economia processual trazidas com o uso da ação coletiva. Tomando como subsídio o critério da prevalência (das questões de direito e de fato comuns sobre as questões de direito e de fato individuais), da Regra 23 das Federal Rules, Grinover (2002, p. 31) analisa o regime brasileiro das ações que tutelam direitos individuais homogêneos. Conclui que, inexistindo prevalência dos aspectos coletivos, os direitos serão heterogêneos, ainda que tenham origem comum (remota), hipótese em que não será cabível a tutela coletiva. Assim, a prevalência das questões comuns sobre as individuais, que é condição de admissibilidade no sistema da class action for damages norte-americanas, também o seria no nosso ordenamento 55 . Nas palavras de Bueno, o terceiro caso (b) (3) em que a class action é possível (e conveniente), volta-se para aquelas hipóteses em que os valores envolvidos considerados individualmente não justificariam a propositura de ações individuais: A última hipótese de situação fática a dar ensejo ao cabimento de uma class action é a prevista na Rule 23(b)(3). É, como dá notícia a doutrina americana, a hipótese mais comum destas ações coletivas, sendo certo que este é o modelo importado para os artigos 91 a 100 do nosso Código do Consumidor. Para esta ação, há necessidade de que, caso a caso, a Corte identifique questões comuns de fato ou de direito para todos os membros da classe. Tais questões devem ser predominantes sobre quaisquer outras referentes a meros interesses individuais, considerados isoladamente. Ainda, a ação será cabível se a Corte acreditar ser a ação coletiva a melhor forma disponível para que se dê um julgamento eficiente para a controvérsia, de forma a se sobrepor ao julgamento de ações individuais. Trata-se, não há dúvidas, de típica aplicação do princípio da eficiência e da economia processuais encampado e tão encarecido pela Rule 23. (BUENO, 1996, p. 98) Esse terceiro caso é o das class action for damages not mandatory, que corresponde à ação brasileira em defesa dos interesses individuais homogêneos, na espécie reparatória dos danos individualmente sofridos. Esse inciso (b) (3) não existia nas Regras Federais de 1938, sendo a grande novidade das Federal Rules de 1966 (GRINOVER, 2002, p. 23). Na alínea (c), a Rule 23 dispõe sobre o pronunciamento inicial da class action, 55 A autora também faz a correlação entre a exigência da superioridade (da tutela coletiva sobre a individual, em termos de justiça e eficácia da sentença) das class actions for damages com a exigência, em nosso sistema, do interesse de agir (utilidade e adequação do provimento) e da efetividade do processo (GRINOVER, 2002, p. 32). Criticando o entendimento de Grinover, Donizetti e Cerqueira (2010, p. 54) não consideram a superioridade da tutela coletiva como fator determinante para caracterizar a homogeneidade do direito, para qual bastaria a origem comum. 106 notificações, efeitos da sentença e demandas parcialmente conduzidas como class action: (c) Pronunciamentos sobre a possibilidade de processamento na forma de “class action”: notificação, sentença, demandas parcialmente conduzidas como “class action” (1) Na primeira oportunidade, logo após o ajuizamento de uma class action, o tribunal deverá determinar se a demanda pode desenvolver-se como class action. Tal decisão pode ser condicional e pode ser alterada ou revogada antes da sentença de mérito. (2) Em qualquer class action, fundada na alínea b (3), o tribunal deverá ordenar sejam notificados da existência da demanda todos os componentes do grupo. A notificação poderá ser pessoal àqueles cuja identificação seja possível com razoável esforço, e deverá ser a mais eficaz dentro das circunstâncias. Pela notificação, os componentes do grupo deverão ser informados de que: (A) podem requerer, no prazo fixado pelo tribunal, a exclusão da classe; (B) a sentença, favorável ou contrária, será vinculante para todos os componentes do grupo que não requererem a sua exclusão; (C) qualquer componente da classe, que não requereu fosse excluído, pode, se desejar, intervir no processo, representado por seu advogado. (3) A sentença proferida em uma class action fundada na alínea b (1) ou b (2), favorável ou contrária, será vinculante a todos aqueles que o tribunal declarar serem integrantes da classe. A sentença proferida em uma class action fundada na alínea b (3), favorável ou contrária, será vinculante a todos aqueles que o tribunal declarar serem integrantes da classe, bem como àqueles que foram notificados na forma da alínea c (2), e não requereram a sua exclusão. (4) Se for entendido oportuno (A) uma demanda pode ser ajuizada e processada como class action apenas para certas questões; ou (B) uma classe pode ser dividida em subclasses, e cada uma destas será tratada como autônoma, aplicando-se-lhes as normas desta lei. (TUCCI, 1990, p. 15) O primeiro pronunciamento judicial, a certificação da ação como uma class action, é ato discricionário do tribunal, que, examinando cada caso concreto, decide, se aquela pretensão pode, ou não, assumir a forma de ação coletiva. Para tanto ele observa, dentre outros, a presença dos requisitos de admissibilidade previstos na alínea (a) e de uma das hipóteses da alínea (b) da Rule 23. O resultado positivo da certificação não é definitivo, pois eventos futuros podem ocasionar a revisão desta decisão pelo tribunal, revertendo-a antes do julgamento de mérito da ação (BUENO, 1996, p. 112), com determinação de que sejam propostas ações individuais. Como será observado adiante, no regime das class actions há espaço para a atuação do juiz com grande margem de discricionariedade. Nessa decisão, além de declarar a existência de uma class action, o tribunal aprova uma determinada descrição da classe, define qual será o objeto da ação coletiva e aponta quem será(ão) o(s) representante(s) da classe. 107 Existem class actions em âmbito federal e estadual. De acordo com Almeida (2003, p. 126), os tribunais estaduais, apesar de algumas diferenças em razão da peculiaridade da legislação de cada Estado, têm sido mais flexíveis na admissibilidade dessas ações. No regime brasileiro não é o juiz que avalia se cabe ou não ação coletiva a partir de critérios casuísticos. Caberá ação coletiva se houver violação ou ameaça a direito coletivo em sentido lato, desde que ajuizada por ente legitimado pela lei, que preencha os requisitos legais. Há, sem dúvida, um campo de atuação do juiz, já que ele pode extinguir o processo por ausência de condições da ação e pressupostos processuais, mas essa atuação é bem mais restrita que no sistema norte-americano. No terceiro tipo de class action há expressa previsão da necessidade de notificação dos componentes do grupo, que poderão requerer sua exclusão, permanecer na classe e, até mesmo, intervir no processo, desde que o tribunal entenda que o interveniente possa trazer subsídios importantes para o deslinde da causa. Em que pese a literalidade do artigo, fazendo crer que a exigência da notificação só seja efetivada nas ações do terceiro tipo, isto é, nas damage class action, a jurisprudência americana, atenta à necessidade da incidência do vetor do devido processo legal em todas as manifestações judiciais, tem estendido este ônus para todas as class actions (BUENO, 1996, p. 107). Sobre tal requisito: De caráter tão fundamental quanto à adequada representação é a notificação adequada a todos os interessados na demanda coletiva (os membros da class) identificáveis a partir de um esforço mediano. Essa preocupação do direito norte-americano reflete um especial cuidado em assegurar as vantagens do julgamento coletivo proporcionado pela class actions, sem que isso importe o sacrifício em massa dos direitos individuais dos membros do grupo e sem excluir-lhes o direito de fiscalizar e controlar a conduta do representante em juízo ou mesmo o direito ineliminável de acesso individual ao Judiciário. (GIDI, 1996, p. 238) De acordo com Bueno (1996, p. 107), a jurisprudência americana mais atual, tem exigido a notificação individual e pessoal para todos os membros da classe que possam ser identificados e encontrados com um esforço razoável, mesmo que a classe seja formada por milhões de pessoas. Em caso célebre da jurisprudência da Suprema Corte Americana (Eisen versus Carlisle & Jacquelin, de 1974), diante da inércia do autor coletivo em promover a cientificação da existência da class action tal qual determinada pela Suprema Corte, o que lhe custaria alguns milhares de dólares, houve desistência e a ação foi julgada extinta sem julgamento de mérito. A ação foi proposta no interesse de três milhões e meio de aplicadores da Bolsa de Valores de Nova Iorque, que teriam sido lesados pela imposição de sobretaxas 108 com relação a operações individuais, levadas a termo por agentes da Bolsa (LEONEL, 2002, p. 79). A Corte estadual havia estipulado forma de notificação com intimação pessoal de todos os agentes da Bolsa, dos bancos através dos quais implementadas as transações, dos membros da classe que tivessem efetuado mais de dez operações em certo período de tempo (cerca de duas mil pessoas) e de cinqüenta mil membros da classe escolhidos aleatoriamente entre aqueles que a identidade pudesse ser mais facilmente individualizada. Isso resultaria num custo aproximado de vinte mil dólares, bem menos que os quatrocentos mil dólares para a notificação individual de todos os membros da classe (que fossem identificáveis com razoável esforço) exigida pela Suprema Corte. Em outro precedente, citado por Tucci (1990, p. 25), o Richland versus Cheatham, por outro lado, em razão do elevadíssimo número de integrantes da categoria, o Tribunal permitiu que a notificação fosse feita pelo correio. No precedente Booth versus General Dynamics Corp., demonstrada a desproporcional despesa necessária para a notificação de todos os contribuintes, o Tribunal autorizou a notificação por edital, uma vez que já havia sido considerável o esforço para a identificação pessoal dos interessados. Como se observa, como tudo no sistema das class actions, a aferição da adequação da notificação é feita pelo magistrado diante do caso concreto, o que pode resultar na exigência de notificação pessoal, por carta, de todos ou por amostragem, inclusive divulgação na TV ou rádio. No modelo norte-americano há interesse da participação dos membros da classe no contraditório, uma vez que sofrerão seus efeitos positivos ou negativos. No entanto, como esse interesse é mitigado pela representatividade adequada, somente em casos excepcionais essa intervenção é aceita nos tribunais. No Direito brasileiro é diferente. Quando se estão em jogo direitos individuais homogêneos, os substituídos podem intervir formalmente na ação coletiva, mas, nesse caso, sofrerão os efeitos da lide, inclusive no caso de improcedência (CDC, art. 103, §2º). Por essa razão, ainda que tenham requerido a suspensão de suas ações individuais, são estimulados a aguardar o deslinde da ação coletiva sem intervir, já que seus efeitos só lhes poderão ser benéficos. No que toca aos direitos coletivos em sentido estrito e difusos, somente outros legitimados ativos podem intervir como assistentes litisconsorciais e não os substituídos, que não têm legitimidade para ajuizar a ação coletiva. Os dois primeiros tipos de class actions apresentam um tratamento idêntico de coisa julgada, enquanto o terceiro tipo tem regime diferenciado, no qual os efeitos da sentença 109 alcançam os integrantes do grupo que, notificados, não requereram sua exclusão. Como já observado, o membro não participante do processo pode ter sua vinculação ao julgado afastada no caso da não adequação da representação da parte nomeada. Além da observância da representação adequada, Leonel (2002, p. 77) apresenta os seguintes requisitos para a ampliação dos efeitos da decisão no sistema norte-americano (binding efect): a oportunidade concedida aos membros ausentes da classe de serem ouvidos; a realização da efetiva notícia a respeito da propositura; a oportunidade de exercer o direito de exclusão, ou seja, o opt out. Não tendo sido observado qualquer desses pressupostos, não só o indivíduo ausente, como o próprio demandado pode requerer sua não vinculação ao julgado, por inobservância do due process of law 56 . No item (4) (A) há a previsão de demandas parcialmente conduzidas como class action. Em exemplo citado por Tucci (1990, p. 30), a Suprema Corte dos Estados Unidos, a despeito de ter deferido o processamento da demanda em forma de class action no tocante à existência e à natureza dos danos resultantes de exposição de soldados a elemento tóxico, que consubstanciava questão comum, rejeitou o pedido em relação à quantificação do dano, entendendo que essa parte da lide deveria constituir objeto de demandas individuais. Encontramos no Direito brasileiro situação assemelhada nas ações civis coletivas que tutelam direitos individuais homogêneos, quando num primeiro momento só o núcleo de homogeneidade, composto pela existência da obrigação, pela natureza da prestação e pelo sujeito passivo, é julgado, deixando para um segundo momento, no caso de procedência, o julgamento do núcleo de heterogeneidade, composto pela identidade dos substituídos e pelo quantum devido a cada um. A divisão da classe tal qual apresentada inicialmente em tantas subclasses que se façam necessárias, cada qual com regime próprio de class action, visa assegurar a representatividade adequada, uma vez que não pode existir qualquer conflito interno no interior da classe. Havendo conflito, cabe ao tribunal dividir a classe. A Rule 23 prevê os pronunciamentos judiciais no curso da demanda na alínea d, são eles: 56 “No que toca à observância do devido processo legal – due process of law –, é evidente que nem todos os interessados serão ouvidos ou estarão presentes em juízo na class action. Mas isto não afeta a garantia, se assegurada a adequada representação e a possibilidade de manifestação, dos ausentes, a respeito da sua inclusão ou exclusão na classe representada. Assim, além da verificação feita inicialmente, no sentido das efetivas condições do autor e de seus patronos, de bem encaminhar a demanda, e ainda quanto ao aspecto de ser ou não o primeiro efetivamente integrante atual da classe, há obrigatoriedade da notificação, sobre a propositura da ação coletiva, a todos os integrantes da classe identificáveis com razoável esforço.” (LEONEL, 2002, p. 78) 110 (d) Pronunciamentos sobre a condução da demanda Durante o procedimento das demandas reguladas por esta lei, o tribunal pode: (1) disciplinar o curso do processo ou adotar medidas para evitar inúteis repetições ou delongas na apresentação da defesa e das provas; (2) dispor, para a tutela dos membros do grupo ou, ainda, para o correto desenvolvimento do processo, que todos ou apenas alguns componentes sejam informados, mediante notificação, do estado da demanda, ou da extensão dos efeitos da sentença, ou para saber se consideram a representação adequada e correta, para intervirem formulando pedido ou deduzindo defesa, ou, ainda, para participarem da demanda; (3) impor condições aos representantes e intervenientes; (4) dispor que dos autos sejam excluídas alegações referentes à tutela de membros ausentes do processo, e que a ação prossiga de conformidade com os termos da lei; (5) regular todas as questões procedimentais. Tais determinações devem ser tomadas em consonância com a Regra 16, e podem ser modificadas ou revogadas conforma exija o caso sob exame. (TUCCI, 1990, p. 16) A Rule 23 atribui amplos poderes discricionários ao órgão jurisdicional na admissibilidade e na condução da class action. De acordo com Tucci (1990, p. 22), são poderes inquisitoriais excepcionais para o sistema da common law, que permitem ao magistrado valorar, a todo momento, a legalidade e a oportunidade da ação, tornando-o o verdadeiro protagonista da ação. Como garante Gidi (1996, p. 64), não seria prudente atribuir apenas às partes do processo toda a responsabilidade pela condução de um processo que interessa, muitas vezes, a milhares de pessoas não integrantes da relação processual. Sustenta Gidi (1996, p. 241) que a necessidade imposta ao magistrado de controlar intensivamente todo o procedimento das class actions vai, frontalmente, de encontro à secular tradição liberal da common law, em que o processo é conduzido inteira e exclusivamente pelos advogados. Essa ampliação dos poderes do juiz é tendência recente no Direito brasileiro, podendo ser observada nos arts. 461, §5º e 461-A, §3º do CPC e 84 do CDC, que, com mais razão, deve ser aplicada no processo coletivo, cuja sentença tem eficácia além das partes litigantes. Nele se exige um papel mais ativo do juiz na dosagem dos meios de reequilíbrio entre litigantes desiguais, buscando prover de efetividade suas decisões judiciais: Nesse movimento de renovação do processo civil, não seria suficiente apenas a abertura de novas vias de acesso do cidadão à prestação jurisdicional, sem que, paralelamente, se redesenhasse o papel do juiz. Para um “processo de massa” não se busca um juiz preocupado somente com as repercussões “individuais” dos conflitos. Como já mencionamos em outra feita, o novo papel do juiz não decorre apenas de sua adaptação à nova realidade da “conflituosidade massificada”. Sua participação ativa no processo vem em socorro principalmente daqueles titulares de parcela do 111 direito ou interesse deduzido em juízo, os quais, exatamente pelo caráter de massa do conflito, estão incapacitados de adentrar ao tribunal e acompanhar in personam o desenrolar da disputa. (BENJAMIN, 1991, p. 65) Por fim, a Rule 23 trata da renúncia e da transação nas class actions em sua alínea e: “Os litigantes não podem renunciar ou transigir no âmbito da class action sem autorização do tribunal, que disporá sobre a notificação na forma em que determinar, do conteúdo da renúncia ou da transação a todos os membros do grupo.” A proposta de acordo deverá ser acompanhada da demonstração de que sua finalidade atinge da melhor maneira possível os interesses dos indivíduos que estariam sujeitos aos efeitos de eventual decisão. Outro vetor, apontado por Bueno (1996, p. 116), considerado para a aprovação de acordos em class actions, é a observação da condição econômica do réu, como no caso Grunin versus International House of Pancakes (1975), em que, fosse outra situação, o acordo seria negado por ter sido considerado como economicamente pouco atraente. Esse vetor é utilizado no Direito brasileiro não na aprovação de acordos, mas na quantificação de condenações. A autorização do tribunal para renúncia ou transação tem como propósito assegurar que os interesses dos membros ausentes de cada classe sejam adequadamente protegidos. No Direito brasileiro, o único dispositivo assemelhado no que toca à transação se encontra no §6º do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, que faculta somente aos órgãos públicos legitimados tomarem compromissos de ajustamento às exigências legais, com eficácia de título executivo extrajudicial. A questão é que não se pode cogitar de seu caráter vinculante, ao menos para aqueles membros ausentes que discordarem dos termos da convenção. Para Almeida (2003, p. 545), os termos de ajustamento de conduta firmados pelo Ministério Público, seja na sua forma preventiva, seja na repressiva, não podem ser vistos como formas de transação, como se fosse possível a reciprocidade de concessões no Direito Processual Coletivo. Os termos de ajustamento de conduta seriam formas de reconhecimento prévio do pedido por parte do respectivo responsável pela ameaça ou lesão a direito coletivo. Nesses casos, poderia até haver transação formal acerca da forma ou prazo do cumprimento do que ficou estabelecido, mas quanto ao conteúdo do direito em questão, não poderia haver qualquer concessão (transação substancial) por parte do legitimado coletivo ativo. No mesmo sentido, Leonel (2002, p. 349). De acordo com Zavascki (2008, p. 42), os direitos difusos e coletivos são insuscetíveis de renúncia ou transação; como sua defesa em juízo se dá sempre em forma de substituição 112 processual (o sujeito ativo da relação processual não é o sujeito ativo da relação de direito material), o objeto do litígio é indisponível para o autor da demanda, que não poderá celebrar acordos, nem renunciar, nem confessar (CPC, art. 351). E quanto aos individuais homogêneos, embora garanta que são suscetíveis de renúncia ou transação, salvo exceções (v.g., direitos personalíssimos), se refere a essa possibilidade frente aos próprios titulares do direito material; havendo substituição processual, o objeto do litígio será indisponível para o autor da demanda, que não poderá celebrar acordos, nem renunciar, nem confessar. No que toca à desistência da ação coletiva (e não renúncia a direito coletivo), Almeida (2003, p. 573) cita o “princípio da disponibilidade motivada da ação coletiva”. De acordo com esse princípio, a desistência infundada da ação coletiva ou o seu abandono serão submetidos ao controle por parte dos outros legitimados ativos e especialmente pelo Ministério Público, que poderão assumir a titularidade da ação, de acordo com o art. 5º, §3º da Lei de Ação Civil Pública. Para Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 115), esse princípio seria melhor denominado “princípio da indisponibilidade da demanda coletiva”, com ênfase para a determinação de continuidade, embora admitam não ser ele integral, uma vez que a obrigatoriedade seria “temperada com a conveniência e a oportunidade”. Também para Leonel (2002, p. 350), nem mesmo o Ministério Público estaria obrigado a assumir a titularidade ativa das ações coletivas, já que podem existir demandas temerárias, mal ajuizadas, sem provas, equivocadamente fundamentadas ou fruto de colusão de partes para fraudar a lei, para as quais a melhor solução seria a extinção sem julgamento de mérito. Daí porque Donizetti e Cerqueira (2010, p. 107), o denominam “princípio da indisponibilidade temperada e continuidade da demanda coletiva”. Tucci (1990, p. 28) enumera as questões mais freqüentes que constituem objeto das class actions: mais de 50% das ações referem-se a direitos fundamentais do cidadão, geralmente relacionados à discriminação religiosa, racial, de sexo e de cidadania, por empregadores e sindicatos; uma singela parcela de class actions se relaciona a violações de leis securitárias e societárias federais; outra parcela importante envolve questões contra monopólio, visando, por exemplo, o ressarcimento de danos sofridos em razão de práticas ilegais; as class actions para proteção dos direitos do consumidor não perfazem volume significativo, como poderia se imaginar, dada a incompetência das cortes federais para grande parte da matéria relacionada; por fim, não obstante a dificuldade de enquadramento da class action em matéria de meio ambiente, ela vem sendo admitida para ressarcimento de 113 prejuízos 57 . No Direito brasileiro, o mandado de segurança coletivo é utilizado, de acordo com os resultados obtidos na pesquisa estatística (Gráfico 5), sobretudo, para a garantia de direitos relacionados ao sistema remuneratório e outros direitos dos servidores públicos e à matéria tributária. Apesar das profundas diferenças axiológicas e estruturais existentes entre os sistemas da common law e da civil law, o instituto da class action se pauta pelos escopos de acesso à justiça, economia processual e coerência das decisões, também presentes no regime do mandado de segurança coletivo. Essa semelhança de objetivos foi observada por Tucci: O instituto da class action, cuja prática vem sendo aperfeiçoada há várias décadas pelo direito norte-americano, mesmo tendo espectro de incidência consideravelmente mais amplo, persegue também objetivos assemelhados ao writ configurado pelo inc. LXX do art. 5º da Constituição Federal em vigor. (TUCCI, 1990, p. X) A class action proporciona aos cidadãos cultural e economicamente mais fracos o acesso aos tribunais, como na ação Hynes v. Logan Furniture Mart Inc., citada por Tucci (1990, p. 10), em que garantida a conveniência da class action, na medida em que, dada a condição econômico-social de muitos dos litigantes, dificilmente se disporiam a demandar individualmente. Em casos como esse, a ação coletiva é conveniente, principalmente se houver relação de subordinação econômica ou de qualquer outro tipo entre as partes lesadas e a demandada. Além disso, a class action é a única solução em casos em que os danos individualmente sofridos são de pequena monta ou mesmo insignificantes, mas a soma deles representa um valor considerável. Nesses casos, o eventual proveito da causa é muito pequeno frente ao custo global do litígio, desestimulando demandas individuais. Tratadas coletivamente há evidente redução de custo e tempo. Objetivos semelhantes alcançam as ações coletivas brasileiras, dentre elas o mandado de segurança coletivo, na tutela de direitos individuais homogêneos, conforme já observado no capítulo 7. Diante da estrutura, da natureza e das amplas finalidades das class actions, como observa Tucci (1990, p. 35), não há nenhum sucedâneo completo no Direito Processual brasileiro. Além das diversas diferenças já apontadas entre os dois institutos, não se pode 57 No caso Biechele versus Norfolk and Western Railway Company, a ação foi proposta no interesse de residentes de Sandusky, Ohio, em face de empresa causadora de poluição proveniente da poeira de carvão. O tribunal 114 deixar de notar que, ao contrário do que se verifica na experiência processual brasileira, estas ações envolvem, na maioria das vezes, as clássicas liberdades públicas contra particulares e não somente contra o Estado, como é o caso de nosso mandado de segurança coletivo. De acordo com Leonel (2002, p. 69), o sistema norte-americano das class actions trata o processo de forma absolutamente diversa do nosso, não obstante dados nele coligidos tenham sido aproveitados pelo legislador brasileiro. Outro instituto de proteção dos interesses supraindividuais existente nos Estados Unidos são as “public interest actions” (ações de interesse público). São mecanismos de prestação coletiva destinados à tutela de interesses difusos que, via de regra, buscam reprimir o uso ilegal ou inconstitucional do poder por parte de um ramo da Administração (BENJAMIN, 1991, p. 66). São ações que podem ser propostas contra atos administrativos ilegais, tanto pelo indivíduo isolado, como por entidades ou órgãos intermediários. Na maioria dos casos, mesmo quando propostas por órgãos públicos, permite-se a atuação do cidadão. Exatamente porque não há representação de interesses de uma classe definida nas public interest actions, nelas não se manifestam os problemas, comuns às class actions, de intimação dos ausentes (BENJAMIN, 1991, p. 66). Dentre as public interest actions se encontra a chamada “citizen action” (ação do cidadão), que tem sido muito utilizada para fins ambientais, a fim de obrigar, judicialmente, os poluidores e o próprio Estado a respeitarem a legislação ambiental. A citizen action beneficia diretamente a comunidade e não o particular ou entidade ecológica que a propõe, não buscando, em sua maioria, indenização por danos individuais, mas uma atuação preventiva-coletiva. De acordo com Benjamin (1991, p. 67), o instituto só ganhou assento legal em 1970, com a “Lei do Ar Puro”. Embora tenham se levantado inúmeras vozes contrárias no início, as leis ecológicas se proliferaram nos Estados Unidos, permitindo uma ampla utilização das citizen actions. Traços comuns nas diversas ações populares ambientais, apontados por Benjamin (1991, p. 68) são: a exigência de notificação prévia dirigida ao órgão ambiental e ao poluidor; a legitimidade para se propor a ação contra empresas privadas abrangidas no âmbito da lei ambiental e contra os próprios órgãos públicos encarregados do controle ambiental, quando deixam de atuar conforme a lei; concessão de honorários advocatícios ao cidadão-autor, como forma de estimular sua atuação, o que é exceção no direito americano. considerou como membros da classe as pessoas que habitavam numa determinada área próxima à mina de carvão (SIDOU, 1990, p. 30). 115 Apesar da clara proximidade com a ação popular brasileira, diante da legitimidade conferida ao cidadão, a citizen action também se aproxima de outras ações coletivas brasileiras, como da ação civil pública (o que foi observado por BENJAMIN, 1991, p. 70) e do mandado de segurança coletivo (admitindo-se a possibilidade de utilização do writ para a tutela de direitos difusos). Nesses dois últimos casos, a proximidade existe, é claro, quando ajuizada por entidades ou órgãos intermediários. Não é comum buscar reparação através das citizen actions, a regra, que admite exceções, é buscar a condenação do Estado ou do poluidor a fazer ou não fazer alguma coisa. No mandado de segurança coletivo ocorre o mesmo, já que ele não é substitutivo de ação de cobrança (capítulos 11.1.2 e 11.3). Encerrando esse capítulo que trata do Direito Comparado, resta observar que existem outros países de tradição anglo-saxônica que adotam regimes semelhantes ao norte-americano de controle da representação adequada, como a Austrália e o Canadá, por exemplo. Gidi (2002, p. 67) ressalta que na Europa continental inexiste controle da adequação do representante, sendo que o sistema de Direito Processual Coletivo desses países é muito pouco desenvolvido frente ao sistema brasileiro, que serviria como lição para todo o mundo de civil law. Observa, porém, que, na Itália e na França, as associações passam por um procedimento administrativo que as capacita à propositura de ações coletivas, no qual há um reconhecimento oficial de sua seriedade e utilidade pública. 11. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO De acordo com Remédio (2009, p. 182), o mandado de segurança tem como objeto a correção de ato de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, comissivo ou omissivo, maculado por ilegalidade ou por abuso de poder, ofensivo a direito líquido e certo, individual ou coletivo. Resumidamente, podemos afirmar que o objeto do mandado de segurança é a tutela de direito líquido e certo violado ou ameaçado pelo Poder Público. Buscando fixar o objeto do mandado de segurança coletivo, Fux (2010, p. 133) afirmou sê-lo “sempre a correção de ato ou omissão de autoridade, desde que ilegal e ofensivo de direito coletivo, líquido e certo do impetrante”. A definição do objeto do mandado de segurança coletivo, no entanto, não tem se 116 mostrado tão simples. Isso porque a doutrina e a jurisprudência são controvertidas a respeito de que tipos de interesses ou direitos podem ser amparados pelo mandado de segurança coletivo, o que, convencionalmente, se chama objeto material do instituto, embora verdadeiramente o objeto do mandado de segurança, individual ou coletivo, seja a correção do ato ou omissão de autoridade. Como já foi dito, existem três pontos importantes neste trabalho, que se ligam umbilicalmente, fazendo com que o estudo de um não possa ser feito sem as projeções no outro: o objeto material do mandado de segurança coletivo, sua legitimação e sua coisa julgada. Assim, embora não sejam o ponto central do estudo, é imprescindível fazer referências à legitimação e à coisa julgada na análise do objeto do mandado de segurança coletivo. 11.1. Objeto material do mandado de segurança coletivo No que toca ao objeto material do mandado de segurança coletivo, cumpre ressaltar, primeiramente, que o texto constitucional limitou-se a criar o mandado de segurança coletivo, explicitando-se as hipóteses de legitimação, sem, contudo, definir seu objeto. Disso resultou grande polêmica na doutrina. 11.1.1. Distinção entre direitos e interesses A primeira questão duvidosa levantada com a criação do mandado de segurança coletivo foi se ele tutelaria apenas interesses e não direitos, o que adveio da redação do inciso LXIX do art. 5º da Constituição, que prevê o mandado coletivo como instrumento de entidades associativas para “defesa dos interesses de seus membros” (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 9). Primeiramente, vale observar que, independente da posição que se adote quanto à compreensão do termo “interesses”, contida no inciso LXX do art. 5º da Constituição, esse termo nunca se contrapõe a outra expressão, “direito líquido e certo”, contida no inciso LXIX. Tanto a modalidade individual, como a coletiva de mandado de segurança, tem o “direito líquido e certo” como um dos seus requisitos de admissibilidade. Daí porque consideramos despropositada a diferença de tratamento feita no caput do art. 21 da Lei nº 12.016/2009, ao vincular a atuação do partido político à defesa de “interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária” e a dos demais legitimados à impetração do mandado 117 de segurança coletivo à defesa de “direitos líquidos e certos (...) dos seus membros ou associados”. A impetração do mandado de segurança coletivo, independentemente de qual seja o legitimado, sempre exige direito líquido e certo. O que a doutrina contrapõe não são, simplesmente, os conceitos de “interesse” e “direito”, mas os de “interesses legítimos” e “direitos subjetivos”. Logo de início, alguns doutrinadores entreviram na redação constitucional uma abertura para o emprego do mandado de segurança coletivo também na tutela de interesses difusos e coletivos, dada sua proximidade com a noção de “interesses legítimos” advinda do direito francês e italiano 58 . Esse foi o caso de Barbi (1990, p. 73): Em favor dessa tese existe também a circunstância de o texto legal referir-se expressamente à “defesa dos interesses” dos membros ou associados. Se o legislador usasse a expressão direitos, poder-se-ia entender que a proteção seria apenas de direitos subjetivos. Mas como a palavra empregada é interesses, não vemos razão para dar-lhe interpretação restritiva, como se referisse apenas a direitos subjetivos. Em conseqüência, entendemos que o mandado de segurança coletivo pode ter por objeto os direitos subjetivos ou os interesses legítimos, difusos, ou coletivos. Por mais que se admita que o instituto previsto no inciso LXX do art. 5º da Constituição possa tutelar interesses coletivos em sentido lato, incluindo os difusos, essa conclusão não advém da simples colocação do termo “interesses” no inciso, mas da legitimação sem ressalvas conferida a certas entidades para atuarem em regime de substituição processual, ou seja, em nome próprio, defendendo direito de outrem, seus membros ou associados, como se verá no capítulo 11.2. Por que então o constituinte teria usado a expressão “interesses” no inciso LXX e não “direitos”? Certamente não foi para garantir a proteção de “simples interesses”, como já sustentava Cretella Júnior (1997, p. 61). Para o autor, não se poderia interpretar o dispositivo constitucional como endereçando o mandado de segurança coletivo à proteção de simples interesses, mas apenas daqueles que, tendo merecido a tutela da lei, se apresentam como direitos. Para o autor, o interesse reside na pretensão da parte, em sua perspectiva individual, 58 O sistema francês já foi referido no capítulo 2.1. Já o italiano, segundo Pacheco (2002, p. 132) também garante a tutela do “interesse legítimo”, conectado ao bem comum, por meio de recurso à justiça administrativa. Essa justiça administrativa não pode condenar, apenas declarar ou constituir atos formais da Administração. Havendo lesão a direito subjetivo, decorrente de violação de expressa norma legal, caberá ação perante à justiça comum, que, por sua vez, só pode dar prestação condenatória de ressarcimento ou declaratória de ilegalidade, não podendo constituir ou desconstituir atos administrativos. Não obstante a existência de outras diferenças, típicas dos regimes que adotam essa distinção, a nota essencial para este estudo é que “enquanto o direito subjetivo se vincula diretamente ao indivíduo, protegendo seu interesse individual, os interesses legítimos se dirigem ao 118 passível de ser divisado em favor de todas as pessoas, já o direito representa pretensão protegida pela norma jurídica: Nunca a expressão “em defesa de interesses” poderia ser interpretada como explicativa do fundamento do mandado de segurança coletivo, que, por ser coletivo, não perde nenhuma das características de sua natureza intrínseca: a proteção de “direito”, jamais a de “interesse”. Além disso, todos, absolutamente todos os meios ou instrumentos processuais, de que se valem os interessados, nunca tutelam “interesses”, pela razão única de que o Poder Judiciário aprecia apenas o “ilegal”, o “inconstitucional”, e em hipótese alguma o “inoportuno”, o “inconveniente”, o “injusto”, apreciável, tão-só, na via administrativa, mediante a interposição dos recursos hierárquicos. (CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. XXXVII) Dessa forma, para o autor, o interesse, por si só, não enseja a impetração de mandado de segurança, quer singular, quer coletivo, a não ser que o interesse se reconheça como qualificado, caso em que se erigiria à categoria de direito (CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. 83). Acabou se consolidando na doutrina o entendimento de que a distinção entre direitos e interesses no nosso ordenamento jurídico não tem sentido, já que a Constituição dispensa proteção indiscriminada a uns e outros: (...) a distinção entre direito subjetivo e interesse embate-se hoje e perde consistência, exatamente na medida em que os ordenamentos jurídicos da atualidade se preocupam em dar a mesma proteção a uns e outros, independentemente de sua divisibilidade e de sua precisa titularidade. A distinção, que no sistema jurídico brasileiro é inteiramente descipienda, pois nem mesmo a justifica o critério de competência estabelecido nos países que adotam o contencioso administrativo, seria retrógrada e não levaria em conta as modernas tendências do direito e do processo. Não é por outra razão, aliás, que a doutrina mais atualizada prefere falar em direitos e não em interesses difusos e coletivos. (GRINOVER, 1990 b, p. 79) De acordo com Zaneti Júnior (2001, p. 62; 2008, p. 164), a distinção não merece prosperar, seja porque não existe diferença prática, seja porque os interesses difusos e coletivos são constitucionalmente garantidos como direitos no Brasil. Teria havido uma transposição, da doutrina italiana, da expressão “interessi legitimi”, que, no Brasil, encontrou aproximação nos interesses difusos. A diferença é que no Brasil não há espaço para a distinção entre “interesses legítimos” e “direitos subjetivos”, pois, diante da unidade de jurisdição, ambos se tornam concretos como “direitos à tutela jurisdicional”: interesse geral e favorecem o indivíduo apenas como componente, como membro do Estado.” (ZANETI JÚNIOR, artigo extraído do site da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC)). 119 O direito subjetivo e o interesse legítimo são, portanto, direitos. Não se justifica a distinção da doutrina italiana no ordenamento brasileiro que prevê a unidade de jurisdição. Ocorre que o legislador nacional foi fortemente influenciado pela doutrina italiana, melhor dizendo, a doutrina nacional acha-se fortemente influenciada pela doutrina italiana, onde as categorias de direitos coletivos e direitos difusos encontram-se em território gris, sendo constantemente referidas como “interessi diffusi” e “interessi collettivi” até mesmo pela sua aproximação, por vezes, do que se entende por “interessi legitimi”. Como visto, tal não pode prosperar em nosso sistema que não admite a categoria de interesses legítimos, e onde a categoria „interesses‟ não tem a menor operacionalidade prática. (ZANETI JÚNIOR, 2001, p. 62) Gidi (1995, p. 17) garante que a distinção entre direitos e interesses seria um ranço individualista da dogmática do século XIX, ressaltando a inadequação em não se designar o interesse como merecedor de proteção jurídica e como um direito subjetivo em sentido amplo: O que se percebe nas teorias daqueles que diferenciam o direito subjetivo do interesse superindividual é o ranço individualista que marcou a dogmática jurídica do século XIX: o preconceito ainda que inconsciente em admitir a operacionalidade técnica do conceito de direito superindividual. Isto porque os direitos superindividuais, pela indivisibilidade de seu objeto e “imprecisa” determinação de sua titularidade, se não enquadrariam exatamente na rígida delimitação conceitual do direito subjetivo como fenômeno de subjetivação do direito objetivo. À falta de terminologia rigidamente adequada, preferiu-se optar por chamar „interesse‟ essa situação de vantagem. Almeida (2003, p. 486) nos esclarece que a concepção de direito subjetivo sempre foi vinculada a um titular determinado ou pelo menos determinável, o que impediu por muito tempo que os interesses de toda uma coletividade (e de cada um de seus membros) pudessem ser concebidos como juridicamente protegíveis. Em razão da estreiteza da concepção tradicional de direito subjetivo, vinculada ao indivíduo, impedia-se a tutela jurisdicional dos interesses massificados, hoje também concebidos como direitos subjetivos em sentido amplo. Citando Watanabe, ele esclarece que essa realidade se alterou: Com o tempo, a distinção doutrinária entre “interesses simples” e “interesses legítimos” permitiu pequeno avanço, com a outorga de tutela jurídica a estes últimos. Hoje, com a concepção mais larga do direito subjetivo, abrangente também do que outrora se tinha como mero “interesse” na ótica individualista então predominante, ampliou-se o espectro de tutela jurídica e jurisdicional. Agora, é a própria Constituição Federal que, seguindo a evolução da doutrina e da jurisprudência, usa dos termos “interesses” (art. 5º, LXX, b), “direitos e interesses coletivos” (art. 129, III), como categorias amparadas pelo Direito. Essa evolução é reforçada, no plano doutrinário, pela tendência hoje bastante acentuada de se interpretar as disposições constitucionais, na medida do possível, como atributivas de direitos, e não como meras metas programáticas ou enunciações de princípios (...). 120 Como ressaltado pelo autor supracitado, a Constituição usa os termos interesses e direitos sem apresentar distinção entre eles, como nos arts. 127, 129, incisos III e V, tal como também fez o Código de Defesa do Consumidor, nos incisos do parágrafo único de seu art. 81, que enumera e qualifica os tipos de direitos passíveis de tutela coletiva, e na Lei de Ação Civil Pública, no seu art. 1º, inciso IV. Para Leonel (2002, p. 83), sequer existe diferença ontológica entre os conceitos de “direito subjetivo” e “interesses” no plano processual59. Este trabalho compartilha do entendimento de que no Direito brasileiro não há razão para a distinção entre direitos e interesses. Ainda que exista uma distinção ontológica entre eles, proveniente de outro ordenamento jurídico, o interesse a que a ordem jurídica brasileira protege e que dispõe de instrumentos legais para sua satisfação é interesse configurador de direito. Essa é a conclusão a que chega Leonel (2002, p. 89): Assim, para o processo coletivo – pela ausência de distinção axiológica, pela falta de relevância prática, e pelo tratamento dado pelo legislador –, válido é o exame indistinto das posições ou situações concretas de vantagem protegidas juridicamente, como “direitos” ou “interesses” supra-individuais. As consequências no plano normativo substancial e processual, para a tutela jurisdicional, serão as mesmas. Além disso, Calmon de Passos dá explicação interessante à aparente incongruência dos incisos LXIX e LXX da Constituição. De acordo com o autor, a Carta precisava esclarecer como seria a atuação desses legitimados, não bastando que tivesse dito que partidos políticos, organizações sindicais, associações e entidades de classe poderiam impetrar mandado de segurança, porque esses já eram legitimados a impetrar o writ na tutela dos direitos de que fossem titulares como pessoas jurídicas. Se a Constituição dissesse que tais entidades poderiam impetrar mandado de segurança coletivo em favor de seus membros, sem nada acrescentar, poderia levar a interpretação errônea de que seria caso de representação e não substituição processual. Por sua vez, o uso da expressão “direitos” no inciso LXX poderia levar a interpretação de que qualquer direito do associado pudesse ser defendido por meio de mandado de segurança coletivo impetrado pela associação. Para impedir essa interpretação excessiva, o constituinte teria preferido a expressão “interesses”, de forma a reduzir a atuação dos 59 “Haveria, portanto, diversidade ontológica quanto a ambos os conceitos no plano processual? A resposta é negativa. De fato, se a identificação da categoria jurídica serve à melhor compreensão e instrumentalização de um fenômeno (premissa maior), e, no caso, a identificação de categorias diversas leva ao mesmo resultado 121 substitutos à tutela de direitos que guardam relação com os fins da associação, ou seja, com os motivos que levaram os substituídos a associar-se: Vale dizer, a legitimação diz respeito não à defesa dos “direitos” dos seus membros ou associados, tot court, mas sim dos “direitos” dos seus membros ou associados cujo substrato material seja um “interesse de membro” ou “interesse de associado”. (PASSOS, 1989, p. 12) Nesse caso a utilização da palavra “interesse” no inciso LXX já indicaria a necessidade de pertinência temática do objeto do mandado de segurança com os fins da entidade, o que será melhor analisado no capítulo 11.2. Oliveira (1990, p. 142) também relaciona a destinação do mandado de segurança coletivo à “defesa dos interesses de seus membros ou associados” à presença do vínculo associativo, capaz de transformar indivíduos em membros ou associados, pressuposto da affectio societatis e caracterizador da transcendência dos interesses de cada um deles. 11.1.2. A polêmica em torno dos tipos de direito tuteláveis Definido que direito e interesses são sinônimos no sistema brasileiro de tutela coletiva, é importante definir que tipos de direitos ou interesses podem ser objeto do mandado de segurança coletivo. Inicialmente se pensou que o mandado de segurança coletivo se destinava apenas à salvaguarda de direitos coletivos, tese, hoje minoritária, que chegou a ter adeptos no Superior Tribunal de Justiça. Atualmente, com relação aos direitos ou interesses coletivos stricto sensu e aos individuais homogêneos 60 há certo consenso jurisprudencial e doutrinário quanto ao cabimento. Já no que toca a proteção dos direitos ou interesses difusos, parte da doutrina não entende a possibilidade de utilização do mandado de segurança coletivo. Essa foi a opção aparentemente acatada pelo legislador ordinário, embora o texto constitucional não faça tal limitação. Dentre os que não enxergam a defesa de interesses ou direitos difusos pelo mandado de segurança coletivo estão Ernani Fidélis dos Santos, Athos Gusmão Carneiro, José Rogério (premissa menor), chega-se à idéia de que não há diferença de natureza quanto a ambas as categorias (conclusão).” (LEONEL, 2002, p. 83) 60 Existiam, até pouco tempo, os que sustentam a impossibilidade de utilização do mandado de segurança coletivo para tutela de direitos individuais homogêneos, como Sérgio Ferraz (1996), para quem somente os direitos coletivos e difusos seriam objeto do mandado de segurança coletivo. Com o advento da Lei nº 12.016/2009, que prevê expressamente tal possibilidade, não se sabe se o jurista mantém sua posição. 122 Cruz e Tucci, Ovídio Baptista da Silva e Uadi Lamêgo Bulos. Os principais argumentos seriam que o mandado de segurança coletivo só seria apto para proteger direito subjetivos individuais e não interesses, que só um direito subjetivo poderia ser líquido e certo e que a tutela de direitos difusos já se daria por meio da ação civil pública. Santos firma-se no sentido de que tal instrumento de proteção serviria apenas para contestar ato que afeta de maneira individualizada a esfera jurídica de alguém: O que, na verdade, aconteceu é que a lei constitucional, ao admitir o “mandado de segurança coletivo”, não lhe deu extensão tal que também passasse a ser forma de proteção de interesses difusos propriamente ditos. Continua o mandamus a ser forma própria para deduzir pretensão de reconhecimento de “direitos individuais”, podendo apenas haver a proteção de tais direitos dimensionados coletivamente, isto é, direito que o indivíduo, parceladamente, com pretensão própria, pode defender, mas que, em visão conjunta, revela interesse de todo um grupo determinado, ainda que seja toda a coletividade. (SANTOS, 1990, p. 132) No mesmo sentido, Tucci (1990, p. 41) exclui a tutela de interesses difusos pelo mandado de segurança coletivo, pois esses não se apresentariam concretos e delimitados em sua configuração legal e no correspondente estabelecimento de respectivos direitos subjetivos. Para Bulos (1996, p. 64), impertinente a utilização do mandado de segurança coletivo para amparar interesses difusos, os quais seriam perfeitamente protegidos por outros meios processuais, com destaque a ação civil pública. Além disso, garante que a certeza e liquidez do direito, cuja verificação judicial só se faz possível por meio de prova documental, descartaria a hipótese dos direitos difusos serem resguardados pelo mandado de segurança coletivo: “Cremos que os interesses difusos, por serem espalhados „desorganizados‟, muito amplos, fluidos e amorfos, não podem ser comprovados, documentalmente, na petição inicial.” (BULOS, 1996, p. 65) Também para Ovídio Baptista (1990, p. 137), o mandado de segurança, enquanto processo sumário e documental, não se coaduna, em seu limitadíssimo campo probatório, com uma situação contenciosa ilíquida por definição e incerta, como seria o caso do interesse legítimo. A impetração na forma coletiva dependeria das características de liquidez e certeza dos direitos, o que dificilmente seria verificável nos diretos difusos, já que incabível assegurar um direito líquido e certo para um grupo indeterminado de pessoas. Não seria possível a comprovação documental da violação dos direitos difusos, que estariam espalhados por toda a sociedade. Como garante Carneiro (2009, p. 12): 123 Devemos sublinhar que para o ajuizamento do mandado de segurança coletivo são exigíveis os mesmos pressupostos do mandado de segurança individual, a começar pela afirmação da existência de “direito líquido e certo”, sendo o writ de todo inadmissível relativamente aos chamados “direitos” ou “interesses difusos”, para cuja tutela deve ser utilizado remédio jurídico outro, a ação civil pública. A jurisprudência majoritária se posiciona no sentido da impossibilidade de tutela de direitos difusos via mandado de segurança coletivo. No Supremo Tribunal Federal, o MS 2.129-1/DF, Min. Celso de Mello, DJ 27/10/1995; no Superior Tribunal de Justiça, o MS 11.399/DF, Min. João Otávio Noronha, DJ 12/02/2007; RO em MS 2.423/PR, Min. Luiz Vicente Chernicchiaro, DJ 22/11/1993; entre outros. Para Celso Agrícola Barbi, Gregório Assagra de Almeida, Carlos Alberto Pimentel Uggere, Hermes Zaneti Júnior, Lúcia Valle Figueiredo e Ada Pelegrini Grinover, numa interpretação compreensiva e abrangente da Constituição, não se poderia considerar excluída do campo de proteção do mandado de segurança coletivo a tutela dos direitos transindividuais, incluindo aí os difusos. Para eles, independente da categoria de direito a ser protegido, se forem precisamente comprovados os pressupostos processuais atinentes ao writ, como fatos absolutamente incontroversos e com a respectiva comprovação documental, não haveria razão para desconhecê-lo. Logo, se um direito difuso a ser objeto de um writ configurar estes requisitos não há razão para sua negativa. Barbi (1996, p. 61), identificando a origem histórica da tutela dos direitos difusos pelo Direito brasileiro no interesse legítimo do Direito francês, referido no capítulo 2.1, garante a possibilidade de proteção desses direitos pelo mandado de segurança coletivo, juntamente com os direitos coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Para Barbi, se o principal objetivo da Constituição é proteger o cidadão contra abusos do Poder Público, não pode haver interpretação restritiva do cabimento do mandado de segurança coletivo. Referindo-se a opinião de Grinover e Watanabe, ele assim esclareceu sua posição com relação à tutela de direitos difusos via mandado de segurança coletivo: (...) o mandado de segurança coletivo, sendo um tipo de procedimento criado pela Constituição, é de eficácia potenciada. Quer dizer, é um procedimento mais forte, tem mais valor do que os outros procedimentos criados por leis ordinárias, e, sendo de eficácia potenciada por origem constitucional, suas palavras e normas devem ser interpretadas ampliativamente e nunca restritivamente. Essa argumentação me parece boa, apoio-a inteiramente e ainda acrescento alguma coisa, indo às finalidades da Constituição. Se olharmos, ao longo da história, para que se fizeram as Constituições, vamos verificar 124 que dos objetivos, o principal é garantir o cidadão contra abusos do Poder Público: esse é o primeiro objetivo, a primeira finalidade de uma Constituição. (...) Apesar dessa ampliação, das garantias constitucionais, elas de modo algum diminuíram a finalidade básica da Constituição, que é garantir o cidadão contra o Poder Público. No caso brasileiro, a nossa tradição é de abuso de Poder Público; infelizmente, toda a tradição latino-americana é assim. Acho um peso especial nessa finalidade da Constituição, de ser protetiva do cidadão contra o Poder Público. Ora, quando a Constituição cria o mandado de segurança, que é um procedimento contra o Poder Público, e diz que lê poderá ser requerido por sindicatos, entidades de classe, associações, etc. para defesas de interesses de seus associados, encontramos a palavra interesses Logo, não estamos querendo criar uma ampliação, encontramos lá a palavra, onde não se fala em direito dos seus associados, mas em interesse. Além dessa argumentação puramente gramatical de destacar a palavra interesse, relembremos que a mais importante finalidade do procedimento constitucional é garantir o cidadão contra o Poder Público. Se o cidadão vê uma administração municipal retrógrada, ou às vezes por questão de inimizade pessoal, ou político- partidária, prejudicando o meio-ambiente do local, como negar aos cidadãos o poder de, através de associações, sindicatos, etc. usar o mandado de segurança? Não vejo realmente como dar interpretação restritiva a textos que se destinam a combater ilegalidades e garantir direitos. Então, digo, insisto e repito: como as Constituições se destinam a assegurar direitos contra o Poder Público, acho que só isso já é uma diretriz suficiente para nós interpretarmos a Constituição no sentido de que entre os objetivos do mandado de segurança coletivo estão os interesses difusos. Esta é minha conclusão. (BARBI, 1996, p. 65) Além disso, a verificação da existência de liquidez e certeza do direito seria tipicamente processual, existente quando os fatos em que se fundar a pretensão puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo, o que normalmente se dá quando a prova for documental (BARBI, 2006, p. 53). Havendo prova exclusivamente documental haveria uma demonstração imediata e segura dos fatos, configurando a liquidez e certeza do direito, não importando se ele fosse individual, coletivo ou difuso. É impossível negar que o conceito de direito “líquido e certo” e de sua anterior formulação, “direito certo e incontestável”, tenham passado por longa evolução histórica no Direito brasileiro. As primeiras decisões a esse respeito, inclusive do Supremo Tribunal Federal (NUNES, 1980, p. 57), chegaram a garantir que seria ele o direito contra o qual não se poderiam opor motivos ponderáveis, mas sim meras e vagas alegações, cuja improcedência o magistrado poderia reconhecer imediatamente. Em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, o Min. Edmundo Lins afirmou que não poderia considerar certo, líquido e incontestável o direito negado por cinco jurisconsultos notáveis pelo saber e cultura, evidenciando a exigência de indiscutibilidade do direito para sua caracterização como “líquido e certo”. Essas primeiras decisões restringiam excessivamente o uso do mandado de 125 segurança, tornando-o instrumento inócuo. Chegou-se também a afirmar que eventual complexidade das questões (fáticas e jurídicas) redundaria no não cabimento do mandado de segurança por ausência de liquidez e certeza do direito. Hoje é pacífico que a expressão “direito líquido e certo” deve ser compreendida como expressão integral, não cabendo a análise isolada de seus termos com base no Código Civil. Não é aquele direito certo quanto à sua existência e líquido quanto ao seu valor. É aquele cuja existência e delimitação são claras e passíveis de demonstração puramente documental. Que, submetido a julgamento, dispensa qualquer dilação probatória, porque os fatos são induvidosos, independente de instrução. A expressão “direito líquido e certo”, como garante Bueno (2002, p. 13), relaciona-se intimamente ao procedimento célere, ágil, expedito e especial do mandado de segurança, em que, por inspiração direta do habeas corpus, que lhe serviu de modelo, não se admite qualquer dilação probatória. O impetrante deve demonstrar com os documentos trazidos com a inicial no que consiste a ilegalidade ou abusividade alegada, não havendo espaço para tanto em momento posterior do procedimento, com única exceção para o caso do §1º do art. 6º da Lei 12.016/2009. Para Carvalho (1993, p. 85), “essa admissibilidade pode ser perfeitamente executada no trato de direitos difusos, pois o que é „líquido e certo‟ para o indivíduo, pode também sê- lo para a coletividade”. Como garantiu o Min. Sepúlveda Pertence, no RTJ 133/1314, o direito líquido e certo, pressuposto constitucional de admissibilidade do mandado de segurança, é “requisito de ordem processual, atinente à existência de prova inequívoca dos fatos em que se basear a pretensão do impetrante e não à procedência desta, matéria de mérito” (citado por DIREITO, 2003, p. 67), razão pela qual parece proceder o argumento de Barbi quanto à possibilidade de direitos difusos também poderem se configurar como líquidos e certos. Dizer que os direitos difusos são “espalhados”, “desorganizados”, “muito amplos”, “fluidos” ou “amorfos” não podendo, por isso, ser comprovados, documentalmente, na petição inicial, indica uma concepção individualista do processo, como se tais direitos não dispusessem de garantias concretas para tutelá-los. Almeida (2003, p. 278) também sustenta que todas as espécies de direito, individuais puros, individuais homogêneos, coletivos em sentido estrito e inclusive difusos, podem ser resguardados pelo mandado de segurança. A seu ver, é o que se extrai da combinação dos incisos LXIX e XXXV do art. 5º da Constituição, pois em tais dispositivos não há restrição de 126 tutela de qualquer direito. Para o autor, o inciso LXX do art. 5º da Constituição veio, simplesmente, para expressar hipótese de legitimação coletiva para a impetração de mandado de segurança, não criando instituto novo. Daí a preferência do autor em se referir a “mandado de segurança para tutela de direitos coletivos” e não a “mandado de segurança coletivo” (2003, p. 284). O entendimento de Almeida é condizente com o “princípio da não-taxatividade da ação coletiva” (ALMEIDA, 2003, p. 575; DONIZETTI; CERQUEIRA, 2010, p. 103), de acordo com o qual qualquer tipo de direito coletivo, em sentido amplo, poderá ser amparado por intermédio das ações coletivas, decorrendo disso que limitações levadas a efeito pela jurisprudência e pela legislação infraconstitucional são inconstitucionais. Esse mesmo princípio também é apresentado por Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 126) como “princípio da atipicidade da ação e do processo coletivo”. Zaneti Júnior (2001, p. 76), rebatendo os argumentos de que “interesses” não poderiam ser tutelados pelo mandado de segurança coletivo, que exigiria “direito líquido e certo”, relembra que a distinção entre direitos e interesses no nosso ordenamento é equívoca e que a expressão “direito líquido e certo” é de cunho processual, representando a prova pré- constituída: Afirma-se, portanto que pode o mandado de segurança coletivo tutelar direito difuso (compreendido na categoria de direitos coletivos lato sensu), não sendo cabível qualquer distinção decorrente da natureza do direito material afirmado, por complexo que seja, visto ser a expressão “direito líquido e certo” de cunho eminentemente processual, referente à prova pré- constituída e não à qualidade do direito objetivo deduzido em juízo. O direito, quando existe, é sempre líquido e certo, v.g., o direito ao meio ambiente equilibrado. Havendo prova (suficiente) da ilegalidade ou abuso de poder (que se afirma) é possível a apreciação pelo juiz para a concessão ou denegação da segurança (julgamento de mérito). (ZANETI JÚNIOR, 2001, p. 81) Além disso, garante também que o mandado de segurança coletivo tutela direitos coletivos lato sensu, não cabendo restrição onde a Constituição previu prodigamente. (ZANETI JÚNIOR, 2001, p. 78; 2008, p. 164) Uggere (1999, p. 81) também afirma, pelos mesmos motivos acima expostos, que a aferição do direito como líquido e certo não pode ser óbice à tutela de direitos difusos pelo mandado de segurança coletivo. Em seguida, ele se utiliza do seguinte exemplo para demonstrar que os interesses difusos, desde que presentes os requisitos de ordem material, são passíveis de proteção pela via do mandado de segurança coletivo: 127 (...) um determinado estado-membro de federação adota lei ambiental que traga a previsão em seu corpo a vedação de instalação de toda e qualquer indústria, em seus limites territoriais, que emita para o meio ambiente agente poluente. Apesar de previsto o fato, indústria notoriamente poluente consegue autorização do executivo estadual para ali se instalar, iniciando sua produção, emitindo, consequentemente, grande quantidade de agentes poluidores para o meio ambiente. (UGGERE, 1999, p. 81) O autor então questiona se seria possível a impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de defesa do meio ambiente na defesa do interesse difuso (meio ambiente saudável), contra o ato ilegal praticado pela autoridade pública: Como ficaria a questão dos direitos subjetivos, em face da indeterminação dos sujeitos e da indivisibilidade do objeto, à luz do direito difuso contemplado na hipótese? Não parece suportar maiores percalços esta dúvida. Os direitos subjetivos decorrem do próprio legítimo interesse guardado pela norma daquele estado-membro – que oferece obstáculo à instalação de toda e qualquer indústria promotora da violação ao direito de todos, e não só dos residentes naquele território limitado, mas também os que por ali passam, de ter um meio ambiente sadio – deflagrados in casu (porquanto se apresenta a hipótese de mandado de segurança coletivo como a via mais célere para cessar os efeitos do ato ilegal praticado), por outrem, legitimado, para tanto, na forma do Texto Constitucional. (UGGERE, 1999, p. 82) Com isso o autor pretendia mostrar que não há necessidade de ser apontado o detentor do direito material para que se estabeleça o exercício do direito subjetivo. Ainda que não se possa identificar o titular do direito material, como é o caso dos direitos difusos, existe direito subjetivo, só que numa concepção mais larga, tal como observado no capítulo anterior. Os indivíduos, mesmo que indeterminados, também usufruem do direito coletivo em sentido estrito e do direito difuso em sua esfera subjetiva. Grinover é daquelas que mais ampliam o campo de incidência do mandado de segurança coletivo, não estabelecendo quaisquer restrições no que tange às espécies de interesses ou direitos que possam ser nele veiculados. De acordo com a autora (1990 b, p. 79), podem ser tutelados pelo mandado de segurança coletivo: direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, de parte ou de todos os membros, exclusivos da categoria ou não, inclusive os que não digam respeito aos objetivos institucionais da impetrante, como se verá a seguir. Os projetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos, tanto o apresentado pelo Ministério da Justiça de autoria de Ada Pellegrini Grinover, como o coordenado por Aluísio 128 Gonçalves de Castro Mendes (UERJ/Unesa) 61 , embora não tenham vingado no Congresso Nacional, apresentavam regulamentação expressa de cabimento de mandado de segurança coletivo para resguardar direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Essa posição é defendida pela jurisprudência minoritária (v.g., STF, AgRg/MS 266- DF; STJ, MS 267-DF), pela qual “Os interesses difusos e coletivos são protegidos pela ação civil pública, pela ação popular e pelo mandado de segurança coletivo, sem que um tenha o condão de substituir ou de ser pressuposto do outro.” Calmon de Passos é sempre citado como um dos autores que não admite a tutela de direitos difusos pelo mandado de segurança coletivo. No início de sua obra ele realmente sustenta que “os direitos que podem ser objeto do mandado de segurança coletivo são os mesmos direitos que comportam defesa pelo mandado de segurança individual” (PASSOS, 1989, p. 8). Segundo ele, solução diversa só resultaria em “balburdiar desnecessariamente o instituto do mandado de segurança, sem disso resultarem benefícios de ordem prática”. No entanto, na mesma obra, após garantir a impropriedade da exclusão dos interesses transindividuais da categoria de direitos subjetivos 62 , o autor garante que: Afigura-me, portanto, de todo impertinente o problema dos mal denominados interesses difusos (na verdade, interesses transindividuais, substrato, hoje, em determinadas circunstâncias, de direitos subjetivos públicos e privados), no que diz respeito ao mandado de segurança coletivo. Estará sempre em jogo nele, um direito subjetivo. O direito subjetivo da entidade ou associação a fazer valer, em nome próprio, o direito subjetivo individual de associados seus, quando tenha esse direito subjetivo individual nexo com o interesse que opera como vínculo associativo. Se se cuida de interesse desta ou daquela natureza pouco importa. E se algum mal denominados interesse difuso se situar no esquema acima, há possibilidade de se impetrar mandado de segurança coletivo em favor de interesses coletivos ou transindividuais. (PASSOS, 1989, p. 16) O autor ainda exemplifica com o caso de associação que tenha entre suas finalidades 61 “Art. 39. Conceder-se-á mandado de segurança coletivo, nos termos dos incisos LXIX e LXX do art. 5º da Constituição Federal, para proteger direito líquido e certo relativo a interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 3º deste Código).” Projeto Ada Pellegrini Grinover – Apresentado pelo Ministério da Justiça (CBPC-APG) e mesma redação só que art. 45 do Projeto UERJ/Unesa – Coordenado pelo professor Aluísio Gonçalves de Castro Mendes (CBPC-UERJ/Unesa). Zaneti Júnior (2007, p. 389) garante que ambos têm origem nos trabalhos do Código Ibero-Americano de Processos Coletivos, proposto pelo Instituto Ibero Americano de Direito Processual. 62 Passos chama atenção para o conteúdo de direitos, inclusive em sua dimensão subjetiva, com que se revestem os interesses coletivos:“(...) nem por serem transindividuais ou coletivos, ou sociais, esses interesses deixam de ser conteúdo de direitos, inclusive em sua dimensão subjetiva.” (PASSOS, 1989, p. 11). E ainda “Nenhum interesse é dissociável do sujeito que o experimenta ou manifesta. Mesmo quando adquire uma dimensão social (que não se confunde com o público-estatal), permanece também interesse individual, que só é social porque experimentado em comum por um grande número.” (PASSOS, 1989, p. 22) 129 institucionais a proteção do meio ambiente 63 . Essa associação estaria legitimada a ajuizar ação civil pública num caso de poluição ambiental. Se essa poluição, no entanto, fosse oriunda de ato do Poder Público ou ele fosse co-responsável, havendo prova documental suficiente da ilegalidade ou abuso de poder, a entidade preferiria o rito do mandado de segurança coletivo. Para Calmon de Passos, para a impetração do mandado de segurança coletivo não é relevante ser ou não ser interesse transindividual, “porque qualquer direito público subjetivo é suscetível de tutela pelo writ, satisfeitos os pressupostos desse remédio constitucional” (PASSOS, 1989, p. 18). Vale a pena ser destacada, ainda, a posição de Silva Dinamarco (2002, p. 693) sobre o tipo de direito que pode ser objeto de mandado de segurança coletivo. Essa posição também foi adotada antes da edição da nova lei, portanto, não se sabe se foi mantida após a regulamentação legal do instituto. Para o autor, nenhum dos legitimados a ajuizar mandado de segurança coletivo pode agir na defesa de interesses difusos, transcendentes à categoria. Muito menos para defender interesses individuais homogêneos. A legitimidade estaria adstrita aos interesses coletivos em sentido estrito, comuns a todos os membros de uma categoria qualquer. No que toca a tutela de direitos individuais homogêneos pelo mandado de segurança coletivo, ele questiona: De fato, como poderia o mandamus coletivo visar à proteção de interesses individuais homogêneos, se a defesa desses interesses está ligada basicamente à reparação de danos causados a pessoas (consumidores, segundo questionável jurisprudência do STJ) e se qualquer mandado de segurança não pode ter fins ressarcitórios? O que não percebe o autor é que nas demandas versando sobre interesse individual homogêneo a condenação não é necessariamente pecuniária, embora possa assumir tal condição. A própria Lei nº 12.016/2009 garante isso em seu art. 14, §4º ao estabelecer que o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias asseguradas em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial. Além disso, também é possível no 63 Esse mesmo exemplo é dado por Para Mancuso (1992, p. 193):“Não deve, pois, impressionar o intérprete o fato de se cuidar de interesses metaindividuais, de largo espectro social, que em princípio poderiam mostrar-se antiéticos em face da ideia de liquidez e certeza: estando incontroverso o fato (v.g., a extração devastadora e criminosa das reservas de mogno na Amazônia, como reconhecido interna e internacionalmente); sendo o meio ambiente um interesse a ser defendido por todos e pelo Estado; sendo, v.g., a OIKOS uma associação ambientalista de reconhecida atuação nessa área, da conjugação desses fatores resultará a liquidez e certeza do interesse (relevantíssimo) passível de tutela por mandado de segurança coletivo, impetrável pela OIKOS ou por outra congênere igualmente idônea.” 130 processo coletivo, de acordo com o art. 83 do Código de Defesa do Consumidor, condenações em obrigações de fazer e não fazer, ou meramente declaratórias ou constitutivas. A maioria dos processos extraídos da jurisprudência do Tribunal de Justiça mineiro, conforme observado na análise estatística (Tabela 3), amparam direitos individuais homogêneos, que tiveram sua tutela expressamente garantida por meio do mandado de segurança coletivo de acordo com a nova lei. O que não se pode é querer transformar o mandado de segurança coletivo em ação de cobrança (v.g., AC 1.0145.03.068367-9/001, referente à cobrança de 13º salário não pago em ano anterior). A Lei nº 12.016/2009, ao regulamentar o inciso LXX do art. 5º da Constituição, restringiu a utilização do mandado de segurança coletivo no seu art. 21, parágrafo único: Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser: I - coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica; II - individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante. Após a nova lei continuam a existir autores a defender que os direitos difusos podem ser tutelados pelo mandado de segurança coletivo. Dentre eles, Fux (2010, p. 136), apenas no caso do partido político, vez que a Constituição fez distinção entre a legitimação dos partidos na alínea a (mais ampla por sua própria natureza, sem restrições) da dos demais entes legitimados, na alínea b (restrita aos interesses de seus membros ou associados). Também Arruda Alvim (2010a, p. 105): Interpretação diferente angustiaria indevidamente a importância que o legislador constituinte conferiu ao mandado de segurança e, em particular, ao mandado de segurança coletivo. Com efeito, não há porque negar o cabimento do mandado de segurança coletivo para impugnar, por exemplo, ato administrativo que provoque danos ambientais. Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 231) reputam o art. 21 da Lei nº 12.016/2009 fragrantemente inconstitucional: A Constituição reconhece expressamente a existência dos direitos e deveres individuais e coletivos como direitos e garantias fundamentais, sendo que o writ do mandado de segurança está previsto exatamente neste capítulo. Ter um direito sem ter uma ação adequada para defendê-lo significa não poder exercê-lo, o que fere de morte a promessa constitucional e a força 131 normativa da Constituição que dela decorre. Seria o equivalente a tornar flatus vocis, boca sem dentes, as garantias constitucionais. (...) Trata-se de violação ao princípio da inafastabilidade (art. 5º, XXXV, CF/88), que garante que nenhuma afirmação de lesão ou de ameaça de lesão a direito será afastada da apreciação do Poder Judiciário. Esse princípio garante o direito ao processo jurisdicional, que deve ser adequado, efetivo, leal e com duração razoável. O direito ao processo adequado, o que nos remete ao andado de segurança, direito fundamental para a tutela de qualquer situação jurídica lesada ou ameaçada, que garante o direito. Agasta-se a possibilidade de o direito difuso ser tutelado por mandado de segurança, um excelente instrumento processual para a proteção de direitos ameaçados ou lesados por ato de poder. O direito difuso seria, então, o único direito que, sendo líquido e certo, não poderia ser tutelado por meio de mandado de segurança. Isso não tem justificativa constitucional. Autores como Gomes Júnior e Favreto (2009, p. 192), consideram a omissão do legislador em deixar de incluir os direitos difusos no rol do art. 21 da lei do mandado de segurança irrelevante, tendo em vista a inexistência de restrição no texto constitucional e a existência do art. 83 do Código de Defesa do Consumidor, que garante a possibilidade de proteção de direitos difusos por meio de qualquer ação capaz de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Donizetti (2010, p. 10), apesar de considerar que o mandado de segurança coletivo não foi concebido para a tutela dos direitos metaindividuais, mas para proteger uma pluralidade de direitos individuais, considera cabível o writ para a tutela de direitos difusos (DONIZETTI, 2010, p. 42). Zavascki, antes da nova lei, apresentava teoria bem diversa das demais já analisadas. Com base na sua citada distinção entre “defesa de direitos coletivos” e “defesa coletiva de direitos”, Zavascki considerava que a inovação do mandado de segurança coletivo seria a tutela do segundo caso, ou seja, de um conjunto de direitos individuais. A proteção de direitos coletivos ou mesmo difusos, desde que líquidos e certos, contra ato ou omissão de autoridade, seria feita através do regime processual do mandado de segurança tradicional. Com a edição da nova Lei, que previu expressamente a proteção de direitos coletivos em sentido estrito pelo mandado de segurança coletivo, Zavascki (2010, p. 282) considerou que a Lei nº 12.016/2009 teria ampliado os limites estabelecidos na Constituição: Isso, convém esclarecer, não significa que seja inconstitucional a ampliação. É que, ao dispor sobre o tema, o constituinte estabeleceu os limites mínimos da legitimação dos entes associativos (ou seja, fixou limites não suscetíveis de redução pelo legislador ordinário), não os seus limites máximos, cuja fixação, consequentemente, insere-se no âmbito de discrição de política legislativa ordinária. 132 Ainda assim continua sustentando que a tutela de direitos coletivos continuaria sujeita a regime semelhante ao do mandado de segurança comum (ZAVASCKI, 2010, p. 283). Quanto aos direitos difusos, Zavascki, apesar de considerar difícil compatibilizá-los com a natureza do mandado de segurança, não considera a limitação imposta pelo legislador ordinário uma proibição ou impedimento: Não se pode, assim, descartar inteiramente a hipótese de tutela de direitos difusos por mandado de segurança. Para que isso possa ocorrer, todavia, será indispensável a configuração simultânea de dois pressupostos essenciais: a) que a tutela do referido direito objeto da impetração se comporte no âmbito material da legitimação do impetrante e b) que a lesão ou ameaça ao direito por ato ilegítimo de autoridade seja suscetível de demonstração por prova documental pré-constituída. (ZAVASCKI, 2010, p. 287) Em sentido contrário, Theodoro Júnior, após a nova lei, sustenta que: Não me parece que a Lei nº 12.016 tenha incorrido em inconstitucionalidade ao excluir os direitos difusos da área do mandado de segurança coletivo. A Constituição previu um remédio coletivo de tutela, mas nada dispôs quanto aos direitos a que a tutela se aplicaria. Nada impedia que o legislador ordinário cuidasse da matéria, à luz de critérios que, a seu juízo, atendessem não só ao caráter coletivo da demanda, mas também às peculiaridades dos direitos tradicionalmente protegidos pelo mandado de segurança. Dessa conjugação foi que resultou a definição dos direitos coletivos merecedores de tutela mandamental, sem que entre eles figurassem os direitos difusos. (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 15) Ressalta o autor que os direitos difusos não ficariam desamparados da tutela das ações constitucionais, “pois para sua especial e particular proteção a própria Constituição cuidou de instituir a ação civil pública”. Referindo-se aos diretos difusos: Ao não incluí-los, portanto, na esfera do mandado de segurança coletivo, o que fez o legislador infraconstitucional foi uma interpretação sistemática das ações constitucionais, que redundou numa opção política de definir para o mandado de segurança coletivo um objeto que não se superpusesse por completo sobre a ação civil pública. Como inexiste disposição constitucional que defina o objeto da ação mandamental coletiva, aberta ficou a tarefa definidora para o legislador ordinário. A meu ver, isto se fez sem violar regra ou princípio constitucional algum. (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 16) Também apoiando a regulamentação legal restritiva, inúmeros autores já se manifestaram, dentre eles André Ramos Tavares e Fernando da Fonseca Gajardoni (referidos por THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 18). 133 Há até mesmo quem acate a restrição da lei com pesar e proponha a utilização do mandado de segurança individual para a defesa de interesse (legítimo) difuso por fundação, associação ou qualquer entidade, cujos estatutos ou atos constitutivos tenham dentre os seus objetivos a sua proteção (ALVIM, 2010b, p. 335). O que, para nós, é absolutamente inviável, uma vez que a impetração do mandado de segurança individual pressupõe que o impetrante seja titular do direito individual. Existem casos em que o mesmo provimento pode ser obtido com uma ação individual, por exemplo, a retirada de publicidade enganosa do ar (que poderia ser obtida, tanto por meio de ação coletiva em defesa de direitos difusos, como de ação individual proposta por empresa concorrente). No entanto, a ação individual protegerá direito individual da empresa concorrente e não o direito difuso daquelas pessoas expostas à publicidade, como já analisado no capítulo 7. Retornando a definição do objeto do mandado de segurança coletivo de Fux, com a qual iniciamos esse capítulo: “O objeto do Mandado de Segurança coletivo é sempre a correção de ato ou omissão de autoridade, desde que ilegal e ofensivo de direito coletivo, líquido e certo do impetrante” (FUX, 2010, p. 133), só podemos concluir pela exatidão de seus termos se concordarmos com a posição mais ampla de cabimento do mandado de segurança coletivo, a que admite a tutela de direitos difusos, coletivos “stricto sensu” e individuais homogêneos pelo instituto. Nesse caso na locução “direito coletivo” da definição de Fux estaria implícita a sua caracterização como “lato sensu”. Adotando-se, por outro lado, a posição mais restritiva, consagrada pela nova lei, a definição de Fux estaria incompleta, vez que excluídos os direitos individuais homogêneos da tutela do writ. Optando-se por uma definição de mandado de segurança coletivo que contém seu objeto mais claramente delimitado, temos Gidi (1996, p. 79), para o qual o mandado de segurança coletivo é “ação genuinamente coletiva, que visa à proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, quando a lesão, causada por ato ilegal ou abusivo de autoridade, tiver prova documental pré-constituída.” 11.2. Relação entre legitimação e objeto material A escolha de um legitimado (passivo ou ativo, pessoa física ou jurídica, de caráter público ou privado) que atue na defesa de direitos dos membros do grupo de forma adequada é um dos aspectos mais polêmicos da tutela jurisdicional coletiva, como assinalam Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 197). 134 No Brasil, a legitimação ativa para as ações coletivas é fixada, em princípio, pela lei, ou seja, somente são legitimados para ingressar com ação coletiva aqueles que o legislador expressamente permitiu em algum texto normativo. Há, no entanto, alguns parâmetros objetivos a serem exigidos de alguns dos legitimados, tal como a representação no Congresso Nacional para os partidos políticos e a existência legal e pré-constituição de pelo menos um ano para as associações. A pertinência temática também é um desses parâmetros exigidos para a configuração da legitimidade, conforme se verá a seguir. Além de exclusiva, porque somente aquelas entidades expressamente previstas em lei poderão propor ação coletiva, a legitimação é concorrente, porque todas as entidades são simultânea e independentemente legitimadas para agir, isto é, a legitimidade de uma não exclui a da outra, e disjuntiva, porque qualquer das entidades pode propor sozinha a ação coletiva, independentemente da vontade dos demais co-legitimados. Neste trabalho prefere-se não adentrar na polêmica sobre a natureza da legitimidade nas ações coletivas, se extraordinária (BARBOSA MOREIRA, 1991, p. 190), ordinária (na defesa de interesses institucionais, WATANABE, citado por GRINOVER, 1990 b, p. 77), autônoma (NERY JÚNIOR; NERY, 2006b, p. 246) ou própria (THEREZA ARRUDA ALVIM, citada por LEYSER, 1997, p. 366). O trabalho limita-se a defender que, em todos os casos de ação coletiva, há verdadeira substituição processual, o que ocorre quando uma pessoa, que não é titular do direito material em jogo, tem legitimidade para, em nome próprio, defendê-lo em juízo. No caso do mandado de segurança coletivo, a entidade impetrante defende, em nome próprio, direito material de titularidade dos seus membros. Mesmo no mandado de segurança coletivo impetrado pelo partido político na defesa de interesses relacionados à sua finalidade partidária, ele defenderia interesses de seus substituídos, nunca os seus próprios. Theodoro Júnior (2009, p. 55) também sustenta a ocorrência de substituição processual no mandado de segurança coletivo, acrescentando que “pouco importa ao direito processual moderno o excesso de classificações e a multiplicidade de categorizações, quase sempre de mais interesse acadêmico do que prático.” São três as técnicas de legitimação mais utilizadas em ações coletivas e que foram adotadas no Brasil: a) legitimação do particular (cidadão na ação popular); b) legitimação de órgãos do Poder Público (Ministério Público, por exemplo, na ação civil pública); c) legitimação de pessoas jurídicas de direito privado (associações, sindicatos, partidos políticos, por exemplo, no mandado de segurança coletivo). 135 Especificamente em relação ao mandado de segurança coletivo, parte da doutrina (TUCCI, 1990, p. 41; DINAMARCO P. da S., 2002, p. 688; JAYME, 2011, p. 165) considera que o inciso LXX do art. 5º da Constituição e a Nova Lei do Mandado de Segurança apresentaram um rol taxativo de legitimados. A atribuição de legitimação às entidades ali previstas teria tido um sentido determinado, o de fortalecer esses entes intermediários da sociedade, que tem papel significativo na construção de uma democracia participativa. Além disso, a redação do inciso não admitiria interpretação extensiva, sendo semelhante à redação de outros dispositivos constitucionais com rol taxativo reconhecidamente aceito, como o do art. 103 da Constituição. Por outro lado, parcela considerável da doutrina (ALMEIDA, 2003, p. 273; ZANETI JÚNIOR, 2007, p. 388; SILVA e LEHFELD, 2010, p. 165; DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR, 2011, p. 361 64 ; REMÉDIO, 2009, p. 574; UGGERE, 1999, p. 87; LEYSER, 2002, p. 164) admite a impetração do remédio constitucional também pelo Ministério Público, em razão da legitimação dada ao órgão para as ações coletivas em geral pelos arts. 127, caput, e 129, da Constituição, combinados com o art. 83 do Código de Defesa do Consumidor. A existência de disposição normativa autorizando o Ministério Público a ajuizar ações coletivas já seria suficiente para lhe conferir legitimidade também para o mandado de segurança coletivo. Além disso, considerando o atual papel da instituição na realidade brasileira, sobretudo diante da inércia de muitos legitimados coletivos, somaria a sua atuação e a efetividade da justiça a possibilidade de utilização da via mandamental, com rito sumário e célere. Há algumas decisões judiciais nesse sentido, como do Superior Tribunal de Justiça, REsp 586.307/MT, REsp 637.332/RR, RESp 736.524, REsp 427.140/RO, REsp 817.710/RS e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, AC 1.0628.05.000206-0/002 e AC 1.0120.06.000637-2/001. Donizetti e Cerqueira (2010, p. 431) defendem a legitimidade para impetração do mandado de segurança coletivo por qualquer um dos legitimados pelo microssistema processual coletivo, inclusive pelo cidadão, naquelas hipóteses em que estaria autorizado a ajuizar a ação popular. O Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos, não vingado, previa, além da legitimação do Ministério Público, a da Defensoria Pública para a impetração de mandado 64 Zaneti Júnior, em obra mais recente (2008, p. 195), assinala que não parece ser possível entender como legitimado o Ministério Público sem expressa menção em lei, mesmo que ordinária, apesar da respeitável postura em sentido contrário. 136 de segurança coletivo. Zaneti Júnior (2007, p. 388), referindo-se ao anteprojeto, louvava a inclusão desses novos legitimados, a fim de aumentar o espectro de atuação prática do mandado de segurança coletivo. Para ele, o sonho do constituinte de legitimar apenas os entes intermediários da sociedade não teria resultado no amadurecimento destes legitimados, uma vez que ainda são os órgãos públicos, especialmente o Ministério Público, que mais atuam na tutela coletiva. Ressalvando o entendimento de grande parte da doutrina pela possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo pelo Ministério Público, este trabalho trata apenas da atuação dos entes previstos no inciso LXX do art. 5º da Constituição. A atuação do Ministério Público envolve questões complexas que fogem aos propósitos deste trabalho, como a da possibilidade de proteção de direitos individuais homogêneos disponíveis no caso de interesse social relevante, a dos efeitos da coisa julgada nas ações por ele ajuizadas etc. 11.2.1. Legitimação das organizações sindicais, entidades de classe e associações A alínea b do inciso LXX do art. 5º da Constituição garante que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por “organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”. São as entidades previstas na alínea b do inciso LXX do art. 5º da Constituição as que mais impetram mandado de segurança coletivo, conforme observado na análise estatística (Gráfico 2), que demonstrou que 63,16% foram impetrados por sindicatos, 27,44% por associações, 4,14% por entidades de classe, 1,13% por partidos políticos e 4,14% por outros (Ministério Público, pessoas físicas e pessoas jurídicas não legitimadas). A própria Constituição prevê a necessidade da existência legal e da pré-constituição de, pelo menos, um ano das associações. Esses dois requisitos, embora haja vozes sustentando pela sua aplicação apenas para as associações (diante da redação do texto), a nosso ver, devem ser exigidos também dos sindicatos e entidades de classe. Nenhuma entidade seria legitimada sem existência legal. Não se trata de restringir a atuação dessas entidades, mas apenas de garantir que estas não sejam criadas com o fim exclusivo de ajuizamento da ação coletiva. Ademais, é cediço que o requisito da constituição ânua pode ser afastado pelo juiz quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido, nos termos do §5° do art. 5° da Lei n° 7.347/1985. 137 Para a impetração coletiva pela associação, sindicato ou entidade de classe é essencial que exista correspondência do interesse que se pretende tutelar em juízo com os fins institucionais do impetrante. É o que se designa por requisito da “pertinência temática”, terminologia retirada do controle concentrado de constitucionalidade 65 . Para Zaneti Júnior (2001, p. 125), apesar de discordar dessa exigência, três argumentos militam fortemente a favor dessa tese: 1) o argumento de que constitui elemento essencial a substituição processual o interesse do substituído; 2) o argumento da especialização, ou seja, de que uma entidade ecológica defende melhor, mais tecnicamente, uma questão relacionada à Ecologia e uma entidade de defesa dos consumidores, defende melhor uma questão relacionada ao consumo e ao mercado financeiro; 3) o argumento do desvio de finalidade, para o qual foi instituída a entidade, com conseqüente desvio do interesse de seus quadros, quando se defendem questões não atinentes a seus estatutos e a pessoas estranhas ao quadro social. Parte minoritária da doutrina e jurisprudência não concorda com esse requisito, sustentando que a vinculação do mandado de segurança coletivo à finalidade institucional não é prevista na Constituição, o que restringiria a garantia constitucional e reduziria seu potencial de eficácia como instrumento de tutela coletiva. Nesse sentido, Silva e Lehfeld (2010, p. 158), referindo-se às posições de Momezzo e Passos, E. N. C. de: Segundo nosso ver, tais posições sobre a questão mostram-se as mais acertadas tendo em vista que a tutela de direitos dos membros frente aos fins associativos consistiria o mínimo (que por certo não poderia ser negado) a se esperar da atuação das associações ao manejar o writ, tendo em vista o próprio objetivo motor de agregação com vista à defesa dos interesses de seus associados. Logo, não nos parece adequado e compatível com a garantia constitucional a redução do seu campo de proteção, pura e simplesmente, a este mínimo alcance consubstanciado no resguardo dos direitos dos membros diante dos objetivos institucionais estabelecidos pelo ente co-legitimado, pois aquele já constitui a finalidade impulsionadora da agremiação quando resolve pela sua criação e consequente atuação em juízo. Esse também é o entendimento de Grinover (1990 b, p. 77), para a qual há duas hipóteses de atuação das entidades da alínea b, uma de legitimação extraordinária (verdadeira substituição processual), quando a impetrante atua na defesa de alguns de seus filiados, 65 De acordo com Carreira Alvim (2010, p. 315), o termo “pertinência temática” foi cunhado pelo Min. Celso de Mello, na ADI 1.913-3-DF, associando o conceito de legitimidade ad causam (pertinência subjetiva da ação) a um segundo requisito de natureza processual, qual seja, o interesse de agir (necessidade e utilidade da prestação jurisdicional). Embora sem esse nome, a relação de pertinência entre a finalidade institucional da entidade e o conteúdo da lei ou ato normativo impugnado já era exigida em ADIs anteriores, como na ADI 42-DF. 138 membros e associados, para defesa de direito que não seja comum a todos, nem compreendido em seus objetivos institucionais. Outra ordinária, que seria a legitimação das associações, entidades de classe ou sindicatos quando agem na defesa de seus interesses institucionais. Houve até jurisprudência consagrando esse entendimento minoritário, pela desnecessidade de pertinência temática, como no RE 193.382/SP, Min. Carlos Velloso, DJ 20/09/1996: O objeto do mandado de segurança coletivo será um direito dos associados, independentemente de guardar vínculo com os fins próprios da entidade impetrante do writ, exigindo-se, entretanto, que o direito esteja compreendido na titularidade dos associados e que exista ele em razão das atividades exercidas pelos associados, mas não se exigindo que o direito seja peculiar, próprio, da classe. (o mesmo nos RE 181.438-SP e MS 22.132-RJ) – grifo nosso No entanto, a exigência da pertinência acabou se consagrando como essencial a atuação das entidades associativas para a impetração do mandado de segurança coletivo. Nesse sentido, do Superior Tribunal de Justiça, o AgRg no REsp 901936/RJ, Min. Luiz Fux, DJe 16/03/2009: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMATIO AD CAUSAM DO SINDICATO. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. PREJUÍZO INDEMONSTRADO. NULIDADE INEXISTENTE. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. 1. Os sindicatos possuem legitimidade ativa para demandar em juízo a tutela de direitos subjetivos individuais dos integrantes da categoria, desde que se versem direitos homogêneos e mantenham relação com os fins institucionais do sindicato demandante, atuando como substituto processual (Adequacy Representation). 2. A pertinência temática é imprescindível para configurar a legitimatio ad causam do sindicato, consoante cediço na jurisprudência do E. S.T.F na ADI 3472/DF, Sepúlveda Pertence, DJ de 24.06.2005 e ADI-QO 1282/SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 29.11.2002 e do S.T.J: REsp 782961/RJ, desta relatoria, DJ de 23.11.2006, REsp 487.202/RJ, Relator Ministro Teori Zavascki, DJ 24/05/2004. 3. A representatividade adequada sob esse enfoque tem merecido destaque na doutrina; senão vejamos: "(...)A pertinência temática significa que as associações civis devem incluir entre seus fins institucionais a defesa dos interesses objetivados na ação civil pública ou coletiva por elas propostas, dispensada, embora, a autorização de assembleia. Em outras palavras, a pertinência temática é a adequação entre o objeto da ação e a finalidade institucional. As associações civis necessitam, portanto, ter finalidades institucionais compatíveis com a defesa do interesse transindividual que pretendam tutelar em juízo. Entretanto, essa finalidade pode ser razoavelmente genérica; não é preciso que uma associação civil seja constituída para defender em juízo especificamente aquele exato 139 interesse controvertido na hipótese concreta. Em outras palavras, de forma correta já se entendeu, por exemplo, que uma associação civil que tenha por finalidade a defesa do consumidor pode propor ação coletiva em favor de participantes que tenham desistido de consórcio de veículos, não se exigindo tenha sido instituída para a defesa específica de interesses de consorciados de veículos, desistentes ou inadimplentes. Essa generalidade não pode ser, entretanto, desarrazoada, sob pena de admitirmos a criação de uma associação civil para a defesa de qualquer interesse, o que desnaturaria a exigência de representatividade adequada do grupo lesado. Devemos perquirir se o requisito de pertinência temática só se limita às associações civis, ou se também alcançaria as fundações privadas, sindicatos, corporações, ou até mesmo as entidades e os órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica. Numa interpretação mais literal, a conclusão será negativa, dada a redação do art. 5° da LACP e do art. 82, IV, do CDC. Entretanto, onde há a mesma razão, deve-se aplicar a mesma disposição. Os sindicatos e corporações congêneres estão na mesma situação que as associações civis, para o fim da defesa coletiva de grupos; as fundações privadas e até mesmo as entidades da administração pública também têm seus fins peculiares, que nem sempre se coadunam com a substituição processual de grupos, classes ou categorias de pessoas lesadas, para defesa coletiva de seus interesses." in A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, Hugo Nigro Mazzilii, São Paulo, Saraiva, 2006, p. 277/278. Também na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como na AC 1.0000.00.158637-9/000, ficou garantida a falta de legitimidade dos impetrantes por ausência de pertinência temática. Tratava-se de mandado de segurança coletivo impetrado por diversas associações e sindicato visando garantir a matrícula de alunos aprovados em seleção na rede de ensino municipal, negada a pretexto de terem as vagas sido passadas para a responsabilidade da rede estadual de ensino. De acordo com o acórdão, não há qualquer vínculo entre os objetivos estatutários dos impetrantes (sindicato de servidores públicos municipais e associações de bairro) e os interesses dos alunos secundaristas de Contagem. Em exemplo de Calmon de Passos (1989, p. 7), de obediência ao requisito da pertinência temática, a Ordem dos Advogados do Brasil poderia impetrar o writ para assegurar aos seus associados o recebimento de processos, com vistas fora de cartório, afastando a ilegalidade de Provimento da Corregedoria, que determinou a permanência dos autos em cartório, vetando sua retirada pelos advogados em qualquer hipótese. Com a Lei nº 12.016/2009, a legitimação das organizações sindicais, entidades de classe e associações ficou prevista no art. 21, com expressa exigência de pertinência temática: O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado (...) por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial. – grifo nosso 140 Recordando as palavras de Barbi (2002, p. 244), não haveria razão para que uma associação ou entidade criada com determinadas finalidades e para defesa de interesses de seus membros passe a atuar com finalidades não previstas em seus estatutos. A exigência da pertinência temática, segundo Zavascki (2008, p. 230), é decorrência necessária da substituição processual que a lei conferiu a essas entidades. A entidade associativa se legitima a defender coletivamente os interesses individuais de seus associados porque, segundo seus estatutos, esses interesses se vinculam à sua finalidade institucional. Haveria uma comunhão de interesses entre a associação e seus associados. De acordo com Zavascki, é exatamente em razão do interesse jurídico da associação, fixado na relação de pertinência e compatibilidade entre o direito material afirmado em juízo e os fins institucionais da impetrante, que o ajuizamento do mandado de segurança coletivo dispensa qualquer espécie de autorização individual ou de especial de assembléia. Concordamos, nesse ponto, com a posição de Zavascki. A relação de pertinência garante que o ente coletivo somente possa atuar na defesa de interesses previstos em seus estatutos, ou seja, na defesa daqueles interesses que seus membros permitiram (autorizaram) sua atuação, implicitamente, ao se associarem, ou, explicitamente, ao aprovarem alguma alteração estatutária (o que, em geral, exige deliberação em assembleia). Por isso basta a autorização genérica, contida nos estatutos, de atuação judicial no interesse de seus membros. Em tais casos, como se trata de substituição processual e não representação, é desnecessária a autorização especial, como garantiu a nova lei. Garantir a possibilidade de atuação dos entes coletivos fora dos limites de seus fins institucionais poderia atentar contra o interesse legítimo dos seus membros, culminando numa “representação” inadequada. A hipótese do inciso LXX, do art. 5º, da Constituição da República é de substituição processual, diversa da do art. 5º, inciso XXI, também da Constituição da República, que cuida de representação processual, onde se lê que “As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”66. O inciso XXI trata de legitimidade das entidades associativas para agirem em nome de seus membros, inclusive num mandado de segurança, desde que individual. Quando se está diante de mandado de segurança coletivo, a associação age em 66 Como exemplo de representação processual, e não substituição processual, temos a AC 1.0000.00.258.009- 0/000, com exigência de autorização dos representados para que o sindicato atuasse em nome dos servidores. Tratava-se de mandado de segurança tradicional com litisconsórcio ativo impetrado contra o ato do Prefeito que determinou a remoção dos professores para prestarem serviços em escolas diversas daquelas aonde vinham prestando, ao argumento de que tal remoção, além de não motivada em base legal, seria fruto de perseguição política. 141 nome próprio, ainda que perseguindo afirmação de direito alheio, configurando substituição processual. O mandado de segurança coletivo não se trata de simples ação plúrima, baseada em litisconsórcio ativo facultativo, em que os titulares do direito estão desde logo identificados. Por isso, “não há direito coletivo a ser tutelado pela via do mandado de segurança coletivo quando se tratar de mera satisfação de interesses individuais, ainda que em conjunto” (UGGERE, 1999, p. 76). Ele é coletivo em sua essência e não na forma de exercitá-lo. Daí a razão da dispensa da autorização e da relação nominal dos membros do grupo, exigível quando se está diante de representação. Esse entendimento, que já havia sido garantido pela Súmula 629 do Supremo Tribunal Federal, também foi acatado pela Lei nº 12.016/2009 (parte final do caput do art. 21), pondo fim à polêmica trazida com a Medida Provisória nº 2.180/2001, que exigia autorização assemblear, relação nominal dos associados e seus endereços. Outra polêmica afastada pela Lei nº 12.016/2009 foi a possibilidade de o mandado de segurança coletivo ser utilizado para amparar direitos de parte dos membros da entidade coletiva. Isso não significa, contudo, que o mandado de segurança possa ser utilizado para a defesa individual de um ou outro membro, o que só pode ser feito mediante representação. O objeto do mandado de segurança coletivo deve corresponder a um direito que pertença a uma coletividade, ainda que não na sua totalidade 67 . O que é essencial para garantir a legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo das entidades enumeradas na alínea b do inc. LXX da Constituição será a coincidência entre os objetivos a serem perseguidos por aquelas entidades e os interesses que são objeto do mandado de segurança coletivo. Infere-se, portanto, que há a necessidade de esclarecimento do conteúdo dos estatutos sociais pela impetrante já na petição inicial, de modo que possam ser aferidos seus fins institucionais. Santos (1990, p. 133), com base na exigência de pertinência temática, traz algumas possíveis hipóteses de cabimento do mandado de segurança coletivo: (...) associação de bairro pode atacar ato que impôs restrição geral ao abastecimento de água e energia à região; a associação de pais e aluno pode contestar cobranças irregulares de contribuições escolares; a associação dos magistrados ou a dos membros do Ministério Público podem reclamar direitos que vêm em benefício geral da classe. 67 O Supremo Tribunal Federal, no RE 284.993/RS, Min. Ellen Gracie, DJ 04/03/2005, decidiu que na ação coletiva deve haver a defesa da categoria como um todo, ainda que a decisão possa afetar, negativamente, alguns integrantes da categoria. No caso analisado o objetivo era anular concurso público considerado ilegal, o que afetaria alguns integrantes da categoria aprovados. 142 Assim, se é essencial que o objeto do mandado de segurança guarde correlação com os fins da entidade impetrante, a legitimidade nunca poderá ser aferida em abstrato, mas somente no caso concreto, com base no direito pretensamente violado. Bueno (2002, p. 328) ressalta que a legitimidade (para o processo e, mesmo, a ad causam, pressuposto processual e condição da ação, respectivamente) é conceito transitivo, só podendo ser, adequadamente, aferida quando examinada a partir de outros elementos, dentre eles o objeto da ação. Essa transitividade do conceito de legitimidade pode ser claramente observada na exigência de pertinência temática, ou seja, de que seja demonstrada a relação entre o objeto da ação (o que se persegue em juízo) e os fins que justificam a existência jurídica daquele que ingressa com a ação. Essa transitividade também pode ser observada na possibilidade do juiz dispensar a constituição ânua das associações quando haja manifesto interesse social ou relevância do bem jurídico a ser protegido. Essa impossibilidade de se aferir a legitimidade para as ações coletivas em abstrato demonstra que o sistema brasileiro não é tão avesso ao controle da “representatividade adequada” pelo juiz no caso concreto. Mesmo no sistema brasileiro cabe ao magistrado fazer a avaliação da pertinência temática e, portanto, da legitimidade no caso concreto, embora não da forma como ocorre no sistema norte-americano, com amplo controle pelo juiz do legitimado, como foi analisado no capítulo 10 e será melhor analisado no capítulo 11.5. Como garantem Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 222): Para que se saiba se a parte é legítima, é preciso investigar o objeto litigioso do processo, a situação concretamente deduzida pela demanda. Não se pode examinar a legitimidade a priori, independentemente da situação concreta que foi submetida ao Judiciário. Não existe parte em tese legítima; a parte só é ou não é legítima após o confronto com a situação concreta submetida ao Judiciário. Por essa razão, eles não consideram o inciso LXX do art. 5º da Constituição como definidor de legitimidade ad causam ativa para a propositura do mandado de segurança coletivo. A legitimidade para o mandado de segurança coletivo seria aferida pelo juiz a partir da situação litigiosa nele afirmada (ope judicis). A norma constitucional só atribuiria capacidade processual (ope legis) aos partidos políticos e às entidades de classe para valer-se do procedimento do mandado de segurança coletivo (DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2011, p. 222). Apesar da relevância desses argumentos, neste trabalho nos referimos a hipótese de legitimação ao tratar do inciso LXX do art. 5º da Constituição, como faz comumente a doutrina, amparada nas lições de Nery Júnior e Nery: 143 As associações civis são legitimadas para a defesa em juízo dos direitos difusos e coletivos, desde que cumpridos os requisitos estabelecidos na lei: estar constituída há menos de um ano e incluir entre suas finalidades institucionais a defesa de um dos bens jurídicos indicados na LACP. (...) A legitimidade é aferível ope legis, bastando à associação preencher os requisitos contidos na lei para considerar-se legitimada ativa para a ACP, ao contrário da ação de classe (class action) norte-americana onde essa legitimidade é aferível ope judicis, cumprindo ao juiz verificar se a associação possui adequada representatividade dos membros e da classe que representa. As limitações à legitimação das associações para a propositura da ACP são apenas e tão-somente as estipuladas na norma ora comentada (constituição na forma da lei civil há pelo menos um ano; inclusão, entre suas finalidades institucionais, da defesa de um dos direitos protegidos pela LACP). Não tem lugar, por ser ilegal, outra exigência ou distinção, principalmente tendo em vista a qualidade da entidade, que restrinja a legitimação para agir das associações, fora das hipóteses expressamente enunciadas na norma em exame. – grifos nossos Conforme observado pelos autores, os requisitos para a legitimação coletiva estão previstos em lei, ainda que dependam de uma avaliação do magistrado no caso concreto (pertinência temática), não cabendo a imposição de outras exigências pelo juiz, relacionadas à qualidade da entidade, que restrinjam a sua legitimação. Assim, apresentados os requisitos necessários para a impetração de mandado de segurança coletivo pelas entidades previstas na alínea b do inciso LXX do art. 5º da Constituição, é importante frisar que tais requisitos são suficientes para a caracterização da “representatividade adequada” dos entes ali previstos. Como garante Mirra (2005, p. 46), outros requisitos, como os previstos em outros ordenamentos jurídicos estrangeiros, como número de membros associados, vinculação geográfica da entidade autora, natureza e importância das atividades praticadas efetivamente pela associação, prévio reconhecimento ou declaração pelo Poder Público, não foram contemplados pelo legislador brasileiro e não podem ser exigidos pelo juiz da causa. Para Calmon de Passos, conforme já anotado no capítulo 11.1.1, a razão da palavra “interesse” e não “direito” na alínea b se justifica justamente pela necessidade de pertinência temática. Com base na parte final da alínea b do art. 5º, LXX da Constituição, “em defesa dos interesses de seus membros ou associados”, Theodoro Júnior (2010, p. 15) exclui a possibilidade de tutela de direitos difusos pelos legitimados constantes dessa alínea: A interpretação doutrinária, superveniente à Lei nº 12.016 é induvidosa: para a propositura da segurança coletiva por associação não é necessário que se defenda um direito ou interesse da “categoria”, mas direitos dos associados “que sejam pertinentes às finalidades da 144 associação”. Portanto, o que a nova lei deixa bem claro é que haverá de o objeto do mandado se segurança guardar, sim, vínculo com os fins próprios da entidade impetrante. Se são direitos e interesses dos associados ou da categoria que a entidade associativa defende, fica evidente que, em princípio, os direitos coletivamente defendidos pelo mandado de segurança através das associações somente serão classificáveis como coletivos stricto sensu ou individuais homogêneos. Esse mesmo entendimento é compartilhado por Fux. Ao se referir às organizações sindicais, entidades de classe e associações, ele garante: Assim, é possível inferir-se que, concernentemente a estas instituições, os direitos difusos estão excluídos da proteção coletiva via Mandado de Segurança, uma vez que o direito a ser protegido deve pertencer ao grupo, classe ou categoria dos legitimados e não a uma coletividade indeterminada, restrição explícita constitucionalmente sem espaço para outra exegese. (FUX, 2010, p. 142) Discordamos, com a devida vênia, de que não haja outra exegese. A nosso ver, o que a Constituição impõe é que o mandado de segurança coletivo seja impetrado no interesse dos membros ou associados. Ou seja, deve haver relação entre o interesse tutelado no mandado de segurança coletivo e os fins institucionais do impetrante. Esse, no entanto, pode não ser apenas deles, ou seja, não ser exclusivo daquela classe ou categoria. Deve ser próprio da classe ou categoria, mas não precisa ser exclusivo, como será melhor analisado no capítulo 11.3.1. Assim, apesar de impetrado no interesse dos membros ou associados, sua decisão poderia atingir indiretamente outras pessoas, outros grupos, e, inclusive, toda a coletividade. Um bom exemplo dessa situação seria o de uma associação local pleiteiando a paralisação das atividades de uma fábrica, cujo funcionamento foi permitido por alvará que é contrário a legislação ambiental. Ainda que uma associação de moradores do local poluído impetre o mandado, o direito tutelado e as conseqüências de uma eventual concessão da segurança são de/para toda a coletividade, porque o interesse à proteção da natureza como um todo ultrapassa a órbita de atuação da associação. Logo, a pretensão é de natureza difusa, assim como o direito ali resguardado. Utilizando-se de exemplo de Dantas, Arruda Alvim também garante a possibilidade de impetração coletiva por associação versando sobre direito difuso: (...) uma entidade associativa de defesa do meio ambiente do patrimônio histórico, artístico e paisagístico, munida de pareceres e laudos técnicos, pode muito bem atacar um ato administrativo – digamos, um decreto – de Prefeito Municipal autorizador da demolição de um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional – v.g., um próprio municipal – para a construção de um novo terminal rodoviário. (ALVIM, 2010a, p. 109) 145 Exemplo semelhante é dado por Figueiredo (2004, p. 33), o de uma pessoa que obtém ilegalmente licença para demolir em área tombada. O ato administrativo que deu a licença pode ser impugnado por meio de mandado de segurança coletivo impetrado por associação de moradores local no interesse de seus associados. No entanto, concedida a segurança ela beneficiará indiretamente um número indeterminado de pessoas. A associação está atuando “em defesa dos interesses de seus membros ou associados”, como diz a alínea b do art. 5, LXX, mas na defesa de interesse de seus membros acaba defendendo indiretamente direitos coletivos ou difusos. Os interesses defendidos pela associação devem ser próprios dela, mas não precisam ser exclusivos. Daí outra razão para a colocação da palavra “interesses” e não “direitos” na alínea b do art. 5º, LXX, da Constituição. Nesse sentido, a jurisprudência do STJ no RO em MS 4.8821/RJ, Min. Edson Vidigal, DJ 31/05/1999: MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. ASSOCIAÇÕES. LEGITIMAÇÃO ATIVA. DIREITOS INDIVIDUAIS E DIFUSOS. ART. 5º, LXX, "b" da CF/88. 1. Não se pode aceitar como óbice à legitimação ativa da associação o fato de, também, estar defendendo direitos individuais dos seus associados e, dentre os interessados estarem pessoas estranhas aos seus quadros, pois, pelo alcance da norma contida no art. 5º, LXX, "b" da CF/88, a hipótese não é de representação, mas de defesa dos interesses de seus filiados e, também, da categoria. 2. Precedentes do STJ e do STF. 3. Recurso provido. Como observado por Grinover (1990 b, p. 78), a locução “em defesa dos interesses de seus membros ou associados” parece restritiva à primeira vista, sendo erroneamente interpretada no sentido de que os interesses tuteláveis seriam apenas os coletivos. Uma interpretação restritiva, no entanto, fugiria ao critério da maior amplitude do instrumento potenciado pela Constituição (capítulo 11.6). Não havendo necessidade de dilação probatória e sendo o ato praticado por autoridade pública, não existe qualquer óbice à impetração de mandado de segurança coletivo. Nesse caso, ainda que o direito violado seja difuso, se há defesa de interesses de membros ou associados do impetrante, como exige a Constituição, cabe o writ coletivo. 146 11.2.2. Legitimação dos partidos políticos A legitimação dos partidos políticos é definida de forma sucinta pela alínea a do inciso LXX do art. 5º da Constituição: “LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional”. Antes da edição da nova lei, muitos sustentavam a possibilidade de que a segurança concedida em mandado de segurança impetrado por partido político transcendesse o universo dos seus filiados, envolvendo, por exemplo, assunto de interesse nacional. Essa posição ampla era defendida por Barbi (1996, p. 67) e Grinover (1990 b, p. 79) e se baseava no fato de que a Constituição não restringe a legitimidade dos partidos políticos, nem cria nenhuma limitação, como o faz na alínea b: Estabelecida pela Constituição quais as pessoas legitimadas, surge o problema: quando os partidos políticos são legitimados para requerer o mandado de segurança coletivo? Dentro dessa mesma linha liberal que sempre adotei, penso que os partidos políticos, desde que tenham representação no Congresso nacional, podem requerer o mandado de segurança coletivo para proteger quaisquer interesses difusos ou direitos subjetivos de pessoas. Essa posição ampla defendida por mim e por Ada Grinover, baseia-se em princípios mais liberais e também no fato de que a Constituição não restringe, nem cria nenhuma limitação. (...) Podemos pensar que, às vezes, o partido está fazendo aquilo não por pureza ou altruísmo, mas apenas para somar pontos junto ao eleitorado. Mas acho que é perfeitamente normal, dentro da atividade política, um partido político defender interesse de um grupo que, a seu ver, está espezinhado pela autoridade administrativa. O papel razoável, muito correto, e acho que o partido político deve fazer isso mesmo. Apesar do respeito que tenha pela opinião do Prof. Barbosa Moreira e do Min. Gusmão, continuo na tese liberal: deve-se reconhecer aos partidos políticos, principalmente pela amplitude do campo que agem, uma liberdade muito grande para reclamarem, através de mandado de segurança coletivo, quanto à ilegalidade que lese direitos ou interesses difusos. (BARBI, 1996, p. 69) – grifo nosso Zaneti Júnior (2001, p. 123) também adotava a posição pela legitimação ampla dos partidos políticos, seja no aspecto subjetivo (quanto aos sujeitos que substitui), seja no aspecto objetivo (quanto à matéria), garantindo que eles só poderiam sofrer restrição expressa pelo texto constitucional, qual seja, a falta de representação no Congresso Nacional. Essa posição era minoritária na jurisprudência, o que se observa em decisão do Supremo Tribunal Federal, RE 196.184, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 18/02/2005, no voto vencido do Min. Marco Aurélio. Calmon de Passos (1989, p. 22), embora garantisse que o mandado de segurança coletivo impetrado por partido político não se dirigia especificamente a interesse de seus 147 filiados, “alcança[ndo] os cidadãos que de um modo geral se ach[a]m na situação jurídica posta como tema para a decisão do writ”, somente admitia a atuação do partido político de forma excepcional, supletiva, quando não existisse entidade representativa ou com concordância desta. Havia também os que sustentavam que os partidos políticos estariam sujeitos a restrições semelhantes às das organizações sindicais, entidades de classe e associações, somente podendo atuar para garantir direitos dos seus filiados. Meirelles adotava tal posição, garantindo que o mandado de segurança coletivo impetrado por partido político só serviria para a defesa exclusiva de seus filiados em questões políticas, quando autorizado pela lei e pelo estatuto (MEIRELLES, 2008, p. 33). Nesse sentido, do Superior Tribunal de Justiça: EDcl no MS 197, Min. Garcia Vieira, DJ 15/10/1990: A exemplo dos sindicatos e das associações, também, os partidos políticos só podem impetrar mandado de segurança coletivo em assuntos integrantes de seus fins sociais em nome de filiados seus, quando devidamente autorizados pela lei ou por seus estatutos. Não pode ele vir a juízo defender direitos subjetivos de cidadãos a ele não filiados ou interesses difusos e sim direito de natureza política, como por exemplo, os previstos nos artigos 14 a 16 da Constituição Federal. RMS 2423, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 22/11/1993: O mandado de segurança coletivo visa a proteger direito de pessoas integrantes da coletividade do impetrante. Distinguem-se, assim, da ação constitucional que preserva direito individual, ou difuso. O partido político, por essa via, só tem legitimidade para postular direito de integrante de sua coletividade. O mesmo no MS 256, MS 1235, 1253 e RMS 1348; MS 1.252/DF, Min. Américo Luz, DJ 13/04/1992. Com a Lei nº 12.016/2009, a legitimação do partido político ficou definida pelo art. 21: “O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, (...)”. A Lei abriu duas possibilidades de atuação do partido político: 1) na defesa dos interesses legítimos de seus membros; 2) na defesa de interesses relacionados à finalidade partidária. Essa posição intermediária já era sustentada por Barbosa Moreira (1997, p. 197): (...) o partido político pode defender, pelo Mandado de Segurança Coletivo, não apenas os interesses de seus membros, daqueles que integram seus quadros, como também os de todas as pessoas que sejam destinatárias de algum ponto de programa do partido. 148 A segunda parte do dispositivo garante que caberá mandado de segurança coletivo impetrado por partido político, desde que os objetivos colimados por essa via digam respeito às finalidades dos partidos políticos. As finalidades dos partidos políticos se encontram estampadas no art. 17, da Constituição: “a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana”68. Nesse passo, convém referir-se ao art. 1º da Lei 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), que dispõe que os partidos políticos destinam-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais, tais como definidos e assegurados pela Constituição Federal. No RMS 10.131/PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, Min. Francisco Peçanha Martins, DJ 18/02/2002, foi concedida a segurança impetrada por partido político para exibição de documentos de interesse coletivo em geral, não protegidos por sigilo legal. Do acórdão pode se extrair que o partido estaria atuando na defesa de interesses relativos à finalidade partidária, já que na ementa do acórdão ficou consignado que: 1. Dentre os Direitos e Garantias Fundamentais capitulados no art. 5º da Constituição Federal está inserido o de que “todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo em geral, que serão prestados no prazo de lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (inciso XXXIII). 2. Inequívoco que os documentos cuja exibição foi requerida pelos impetrantes não estão protegidos pelo sigilo prescrito no art. 38 da Lei 1.595/64, sendo sua publicidade indispensável à demonstração da transparência dos negócios realizados pela Administração Pública envolvendo interesses patrimoniais e sociais da coletividade como um todo. Além dos objetivos gerais dos partidos políticos, não podemos esquecer daqueles próprios de cada partido, previstos em seu estatuto partidário, “através do qual ele é livremente criado e no qual podem ser inseridos, pormenorizada ou sinteticamente, os fins e propósitos institucionais, assim como o programa de ação” (PACHECO, 2002, p. 338). Por essa razão, Pacheco aponta dois possíveis objetos do mandado de segurança coletivo impetrado por partido político: 68 Ao contrário de Carreira Alvim, consideramos que a defesa de direitos fundamentais está inserida na finalidade partidária, sendo desnecessária qualquer alusão expressa no art. 21 da Lei nº 12.016/2009 à defesa de direitos fundamentais pelo partido político. De acordo com o autor, “A nova lei do mandado de segurança restringiu, no caput do seu art. 21, inconstitucionalmente, o alcance do art. 1º da Lei dos partidos Políticos, pois os „direitos fundamentais da pessoa humana‟ são muitíssimos mais do que, simplesmente, „interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária‟.” (ALVIM, 2010b, p. 302). 149 a) direitos vinculados ao objeto social, constante do estatuto especialmente seus fins e propósitos, bem como o programa de ação; b) direitos vinculados à soberania, à cidadania, ao regime democrático, ao pluripartidarismo, à dignidade humana, a valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, à liberdade, à ordem econômica e social, às políticas urbana e agrícola, à educação e ao meio ambiente. Carvalho (1993, p. 85 e 93) também entende necessário o vínculo entre os estatutos do partido e sua atuação. Para ele “o objeto da impetração deverá estar contemplado, ainda que genericamente, no estatuto partidário”, como no exemplo: “Não deterá legitimação em comento, por exemplo, um partido que pregue a liberalização dos meios de produção e ajuíze mandado de segurança coletivo tendente a obstar um plano governamental de privatização de empresas estatais.” Como se pode observar, a pertinência temática nos mandados de segurança coletivos impetrados pelos partidos políticos será bem mais simples de ser constatada do que a das outras entidades legitimadas para a impetração, isso porque amplíssimas suas finalidades institucionais. Daí se extrai ser correto afirmar que o partido não tem seu campo de atuação via mandado se segurança coletivo restrito à defesa de direitos políticos. Sendo de grande amplitude o campo de atuação dos partidos políticos, também ampla sua legitimação para impetração do mandado de segurança, o que levou Figueiredo a sustentar que: Tudo que transcender o individual, pois reflexo para toda a coletividade, apresentar-se com caráter de liquidez e certeza e, ainda, tiver em vista o Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais traduzidos, lato sensu, nas liberdades públicas poderá ser objeto de mandado de segurança coletivo impetrado por partido político. (FIGUEIREDO, 2004, p. 44) Observemos os exemplos imaginados por Figueiredo (2004, p. 45) de hipóteses que autorizariam a atuação do partido político: a) recusa no fornecimento de informações por dado órgão ou secretaria (art. 5º, XIV, CF) – desde que não fosse caso de cabimento de habeas data; b) tergiversação ou qualquer forma de impedimento do exercício da liberdade de associação (art. 5º, XVII, CF) – desde que praticado por autoridade pública; c) violação do direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF) por qualquer lei ou medida provisória; d) exclusão ou tentativa de exclusão por lei da apreciação do Poder Judiciário de lesão a direito (art. 5º, XXXV, CF); e) ameaça ou constrangimento de privação da disponibilidade de bens sem devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) em relação a determinado grupo – desde que praticado por autoridade pública; 150 f) omissão no reajuste do salário mínimo (art. 7º, IV, CF), quando há perda do poder aquisitivo demonstrada de plano. Antes da nova Lei, Zavascki (2008, p. 228) já ressaltava dois motivos para uma interpretação mais ampla da atuação dos partidos políticos, não restrita à tutela de interesses de seus filiados. O primeiro era que a Constituição não estabeleceu limites quanto aos interesses tuteláveis pelo partido políticos na alínea a do art. 5º, LXX. O outro seria a singular natureza do partido político, substancialmente diversa daquela das demais entidades legitimadas: Com efeito as associações – sindicais, classistas e outras – têm como razão existencial o atendimento de interesses ou necessidades de seus associados. Seu foco de atenção está voltado diretamente para seus associados, que, por sua vez, a ela confluíram justamente para receber a atenção e o atendimento de necessidade ou de interesse próprio e particular. É natural, portanto, e apropriado à natureza dessas entidades, que, ao legitimá-las para impetrar segurança, o constituinte tenha estabelecido como objeto da demanda a defesa dos interesses dos próprios associados, limitação inteiramente compatível com o móvel associativo. O que ocorre nos partidos políticos, entretanto, é um fenômeno associativo completamente diferente. Os partidos políticos não têm como razão de ser a satisfação de interesses ou necessidades particulares de seus filiados, nem são eles o objeto das atividades partidárias. Ao contrário das demais associações, cujo objeto está voltado para dentro de si mesmas, já que ligado diretamente aos interesses dos associados, os partidos políticos visam objetivos externos, só remotamente relacionados a interesses específicos de seus filiados. (...) Por conseguinte, os filiados do partido são, na verdade, instrumentos das atividades e das bandeiras partidárias, e não o objeto delas. O objeto das atenções partidárias são os membros da coletividade em que atuam, independentemente da condição de filiados. É bem compreensível, pois, e bem adequada à natureza dos partidos, a sua legitimação para impetrar segurança coletiva, mesmo em defesa de direitos de não filiados. Assim, o partido político estaria legitimado para impetrar mandado de segurança coletivo com objetivos mais abrangentes, com a única limitação de estarem situados no âmbito de sua finalidade institucional e de seu programa: Em outras palavras, podem ser tutelados pelo partido político, por mandado de segurança, os direitos ameaçados ou violados por ato de autoridade, ainda que pertencentes a terceiros não filiados, quando a sua defesa se compreenda na finalidade institucional ou constitua objetivo programático da agremiação. (ZAVASCKI, 2008, p. 229) Observe-se o exemplo imaginado por Zavascki, antes da edição da lei, mas que se mantém próprio: É de se considerar adequado, sob esse aspecto, que um partido político cuja bandeira seja a proteção do meio ambiente natural impetre 151 mandado de segurança contra ato de autoridade lesivo ao equilíbrio ecológico. Tem-se aí, sem dúvida, hipótese de mandado de segurança para tutelar direito de natureza transindividual, sem titular certo, pertencente a todos, como assegura o art. 225 da CF. (ZAVASCKI, 2008, p. 226) Essa é a posição estampada no RE 196.184/AM, Min. Ellen Gracie, DJ 18/02/2005: A previsão do art. 5º, LXX, da Constituição objetiva aumentar os mecanismos de atuação dos partidos políticos no exercício de seu mister, tão bem delineado na transcrição supra, não podendo, portanto, ter campo restrito à defesa de direitos políticos, e sim de todos aqueles direitos difusos e coletivos que afetam a sociedade. (...) À agremiação partidária não pode ser vedado o uso do mandado de segurança coletivo em hipóteses concretas em que estejam em risco, por exemplo, o patrimônio histórico, cultural ou ambiental de determinada comunidade. Assim, se o partido político entender que determinado direito difuso se encontra ameaçado ou lesado por qualquer ato da administração, poderá fazer uso do mandado de segurança coletivo, que não se restringirá apenas aos assuntos relativos a direitos políticos e nem a seus integrantes. Não se está a excluir a necessidade do atendimento dos requisitos formais previstos nos estatutos dos partidos, tampouco afastando a necessidade de respeito aos pressupostos de cabimento do mandado de segurança, que, no presente feito, não foram objeto de impugnação no recurso extraordinário. A nosso ver, não há dúvida, pode o partido político impetrar mandado de segurança coletivo para proteger diretamente tanto interesses difusos, como coletivos e individuais homogêneos, desde que relacionados à sua finalidade partidária. Diante da amplitude da atuação dos partidos políticos, discordamos do exemplo dado por Carneiro (1991, p. 42) de hipótese de não cabimento do mandado de segurança coletivo impetrado por partido político. Ele diz que não seria cabível a impetração de mandado de segurança coletivo pelo partido em favor de mutuários do SFH, em tema de reajustes de prestações. A nosso ver, se tratando de pedido de afastamento de um reajuste geral que excedeu os limites legais (obrigações contratuais, mas que dizem respeito ao acesso ao direito à moradia, estabelecido no art. 6º da Constituição), haveria direito coletivo em sentido estrito e caberia impetração de mandado de segurança coletivo pelo partido. Após a edição da Lei nº 12.016/2009, Theodoro Júnior (2010, p. 12) parece admitir a tutela de direito difuso pelo partido político, embora inicialmente rejeite tal possibilidade: Se é verdade, porém, que os partidos políticos podem defender direitos fundamentais em prol de toda a comunidade, e não apenas de seus membros, isto, porém, não implica que, necessariamente, possa fazê-lo pela via sumária do mandado de segurança. Já estava assentado na jurisprudência anterior à Lei nº 12.016/2009 que os direitos fundamentais, pela via do 152 mandado de segurança, somente se submeteriam à tutela postulável pelos partidos, no âmbito de seus quadros. Mas é de se reconhecer que a regulamentação da Lei nº 12.016 vai além dos interesses dos filiados, para permitir que os partidos políticos usem o mandado se segurança coletivo também na defesa da comunidade, naquilo que corresponda à sua finalidade estatutária ou institucional. Mas isto não deve ser entendido como uma franquia a que qualquer direito difuso ou coletivo seja defendido pelos partidos políticos através do mandado de segurança coletivo. (...) Entretanto, podendo agir em defesa de toda a comunidade, dentro das suas finalidades institucionais, o partido político acaba podendo defender direitos ou interesses difusos, o que será feito pela via do mandado de segurança coletivo, se existir prova pré-constituída da lesão coletiva. Resta analisar a primeira hipótese prevista pela Lei nº 12.016/2009, de acordo com a qual o partido político poderá impetrar mandado de segurança coletivo na defesa de interesses legítimos relativos a seus integrantes. Nesse caso, sustentamos que, ainda que na defesa dos interesses de seus integrantes, o partido deverá agir dentro de suas finalidades institucionais 69 . A comprovação de pertinência temática também nesse caso seria obrigatória, como decorrência necessária da substituição processual que a lei conferiu a essas entidades, garantindo que os substituídos sejam adequadamente representados em juízo pelo impetrante. Além disso, é natural que, como pessoa jurídica de direito privado, os partidos, tal como as associações, sindicatos e entidades de classe, ajam de acordo com seus estatutos e com a lei. É da ratio das ações coletivas a exigência de pertinência temática. Como garante Calmon de Passos (1989, p. 20), nenhuma legitimação extraordinária é deferida pelo legislador de forma arbitrária e inconsequente: “O nexo entre o direito ou interesse do substituto e o direito ou interesse do substituído é indispensável”. Não basta legitimidade, é necessário também interesse processual na demanda coletiva, o que só existe se há pertinência temática. Para Zavascki (2008, p. 229), Esse elo de relação e de compatibilidade entre o direito tutelado e os fins institucionais ou programáticos do partido, além de representar o marco limitador do campo de abrangência da legitimação, constitui também requisito indispensável à configuração do interesse de agir em juízo. 69 Se o requisito da pertinência temática é inexigível aos partidos políticos no controle concentrado de constitucionalidade (ADIn 1096, Min. Celso de Melo), ou seja, podem eles impugnar qualquer ato normativo, independente de seu conteúdo material, isso se dá, a nosso ver, porque a preservação da supremacia normativa da Constituição condiz com a sua própria natureza e suas finalidades institucionais. Seria o mesmo que dizer que para os partidos políticos a pertinência temática estaria sempre presente. No sentido da desnecessidade da exigência de pertinência temática para os partidos políticos, existe o RE 196.184-6/AM, voto da Min. Ellen Gracie, no qual alguns Ministros não se manifestaram sobre essa questão, deixando-a em aberto para posterior manifestação da Corte, quando acionada especificamente para tanto. 153 Embora Silva Dinamarco (2002, p. 689) só admita o mandado de segurança coletivo para garantia de direitos coletivos em sentido estrito, exige também na atuação do partido político o requisito da pertinência temática, posição com a qual concordamos: A interpretação correta parece ser a intermediária, para admitir o mandado de segurança em favor de toda categoria, inclusive daqueles que não são associados, mas apenas nas questões ligadas aos objetivos contidos em seus estatutos (pertinência temática). Carneiro, embora rejeite a possibilidade de tutela de direitos difusos via mandado de segurança coletivo, também exige que no mandado de segurança impetrado por partido político seja exigida pertinência entre os fins do partido e os interesses das pessoas substituídas 70 : Parece-nos razoável e jurídico sustentar que a melhor solução será, ao menos como regra, a mantença do princípio da vinculação entre as finalidades, em termos gerais, da entidade substituta, com os interesses das pessoas substituídas. Os partidos políticos podem, destarte, atuar como substitutos processuais e, assim, ajuizar mandamus coletivo, se os direitos afirmadamente violados (ou ameaçados) forem aqueles sob direta e imediata tutela constitucional, ou seja, os direitos fundamentais relativos à generalidade dos cidadãos, acima de agrupamentos pertinentes a interesses de classe, profissionais e assim por diante. (...) É lícito ao partido político, portanto, através de seu Diretório Nacional, agir ajuizando mandado de segurança coletivo contra ato administrativo (lato sensu) que ofenda direitos políticos de seus filiados em geral, ou que viole a liberdade de manifestação do pensamento; ou a liberdade de culto; ou o sigilo da correspondência e das comunicações, nos termos da lei; ou que institua ilegais restrições à livre locomoção dentro do território nacional; ou que disponha sobre taxas confiscatórias da herança; ou que discrimine entre cidadãos por motivo de raça, cor etc. (CARNEIRO, 2009, p. 27) Também rejeitando a possibilidade de tutela de direitos difusos pelo mandado de segurança coletivo, mas exigindo pertinência temática dos partidos políticos, temos Tucci (1990, p. 50), garantindo que se mostra imperioso que o interesse em questão no mandado de segurança coletivo seja “atinente aos fins institucionais da associação, da categoria, ou do partido político, decorrendo necessariamente de um liame jurídico que une os integrantes, sujeitando-os a regime normativo próprio.” Assim, em qualquer das hipóteses previstas constitucionalmente, alíneas a e b, seria necessária a pertinência temática. 154 Na defesa de interesses legítimos relativos a seus integrantes, afirmamos ser a atuação do partido em tudo idêntica a atuação das entidades da alínea b do dispositivo constitucional, inclusive com exigência de pertinência temática. Também seria possível a proteção indireta de direitos, ou seja, embora atuando diretamente no interesse de seus integrantes, o partido poderia tutelar indiretamente o direito de outras pessoas estranhas a seus quadros, pertencentes a membros de classes maiores, inclusive de toda a coletividade (direito difuso). Embora não concordemos com a subsistência da distinção entre “direitos subjetivos” e “interesses legítimos” no ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade de tutela indireta de direitos difusos e coletivos pelo partido justificaria a colocação da expressão “interesses legítimos” no caput do art. 21 da Lei nº 12.016/200971. Afinal, de acordo com Carreira Alvim (2010b, p. 299), direito subjetivo é o interesse protegido direta e imediatamente pela norma jurídica, que o reconhece a um titular determinado; enquanto, no interesse legítimo, o objeto da tutela não é um direito subjetivo, mas, uma situação jurídica traduzida num interesse público, de forma que, resguardando esse interesse jurídico, a norma jurídica protege, reflexamente, o interesse dos particulares 72 . Citando Zanobini, ele completa “os particulares participam de tais interesses coletivos não ut singuli, mas uti universi, e não têm nenhum meio para pedir isoladamente a sua proteção e tutela.”. Tomemos o exemplo de um mandado de segurança coletivo contra alvará de instalação de indústria em desacordo com lei ambiental. O partido político poderia impetrá-lo, uma vez que faz parte de suas atribuições a proteção de direitos fundamentais, dentre eles o 70 Como consideramos esse requisito necessário para qualquer atuação do partido, preferimos dizer que deve sempre haver pertinência entre as finalidades do partido com o objeto do mandado de segurança coletivo (não só com o interesse das pessoas substituídas, que representa apenas uma das possibilidades de atuação do partido). 71 A menção a “interesses legítimos” no art. 21 da nova Lei poderia ter sentido também se contraposta à noção de “interesses simples”, feita por Cretella Júnior (1997, p. 61), já referida no capítulo 11.1.1, mas nunca contraposta a noção de “direito líquido e certo”, também exigível no mandado de segurança coletivo impetrado pelo partido político. Os “interesses legítimos” dos integrantes do partido político poderiam ser defendidos por meio do mandado de segurança coletivo, pois configuram verdadeiros direitos, enquanto seus “interesses simples” não teriam tutela jurídica. Seria uma outra forma de justificar a inserção da expressão “interesses legítimos” no art. 21 da Lei nº 12.016/2009. 72 Bem da verdade, Carreira Alvim garante que, na tutela de interesses legítimos, “a norma jurídica protege, reflexamente, eventuais direitos individuais a ele coligados” (2010, p. 299). Como os direitos não mudam sua natureza de difusos ou coletivos em sentido estrito para individuais só porque ocorre subjetivação do direito objetivo, preferimos afirmar que “a norma jurídica protege, reflexamente, o interesse dos particulares”. Exemplificando: para Carreira Alvim (2010b, p. 332), se a OAB impetra uma mandado de segurança coletivo para tutela de direitos coletivos (em sentido estrito) de seus membros, concedida a proteção ao interesse legítimo invocado como fundamento do mandamus, serão beneficiados todos os advogados afetados pela exigência ilegal, “enquanto titulares de interesse individual (direito subjetivo) indiretamente tutelado pela norma jurídica”. Discordamos que os advogados afetados pela exigência ilegal sejam titulares de interesse individual. A nosso ver, apesar de todos serem beneficiados pela concessão do mandamus, mesmo determinados, continuam titulares de direito coletivo. 155 direito à vida. Poderia impetrá-lo, pois há interesse legítimo de seus membros, mas acabaria protegendo direito difuso, de pessoas não filiadas. Que diferença haveria então entre as duas hipóteses de atuação do partido político previstas na lei? Afirma-se que nos dois casos se exige pertinência temática e se admite a tutela de direitos difusos. A diferença é que no primeiro caso, quando ele age na defesa de interesses legítimos relativos a seus integrantes, somente de forma indireta seria possível a tutela de direitos difusos. Já no segundo caso, quando ele age na defesa de interesses relativos à finalidade partidária, a tutela de direitos difusos pode ser direta (o partido político seria o único impetrante que pode tutelar diretamente direito difuso via mandado de segurança coletivo). A diferença da tutela direta e indireta fica mais evidente no seguinte exemplo. Um concurso público promove discriminação entre os sexos, ao impedir a participação de mulheres e o partido impetra mandado de segurança coletivo para anular cláusula do edital. O partido político poderia agir na defesa dos interesses de suas integrantes ou, ainda que não tivesse nenhuma filiada, na defesa de interesses relativos à sua finalidade partidária. Nos dois casos estaria protegendo direito difuso, só que no primeiro caso de forma indireta, já que o objetivo direto seria tutelar o interesse de suas integrantes, e no segundo caso de forma direta. Nos dois casos seria exigível pertinência temática, que estaria presente já que o partido político destina-se a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição, dentre eles o disposto no art. 5º, I da Constituição. Em outro exemplo, inspirado pela jurisprudência comentada por Bueno (2002, p. 343), o Partido dos Trabalhadores teria impetrado mandado de segurança coletivo visando alcançar a concessão do índice de 147,06% de correção monetária das aposentadorias (STJ, MS 1.235- DF, processo extinto por ilegitimidade 73 ). De acordo com a nova lei, o partido teria legitimidade para a impetração ainda que nenhum de seus filiados fosse aposentado. Nesse caso, estaria atuando na defesa direta de interesse coletivo relacionado à sua finalidade partidária, a de defender os direitos fundamentais definidos na Constituição, no caso os arts. 6º e 7º, XXIV da Constituição, ao contrário do que sustentou o acórdão. Se, por outro lado, algum de seus integrantes fosse aposentado, poderia atuar diretamente na “na defesa dos 73 “EMENTA: PROCESSUAL - MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO - PARTIDO POLÍTICO - ILEGITIMIDADE. Quando a constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim, quando autorizado por lei ou pelo estatuto. 156 interesses de suas integrantes” e indiretamente no interesse de todos os aposentados. O direito continuaria sendo coletivo em sentido estrito e não individual homogêneo, como dizia o acórdão. No mesmo sentido, Carreira Alvim (2010b, p. 308): Na verdade, os acórdãos proferidos nos MS 1.235 e 1.252 do STJ fizeram uma baita confusão, ao falarem em direitos individuais homogêneos, porque, tratando-se de mandado de segurança coletivo, o que estava em jogo não era o pagamento de 147,06% aos aposentados –, mesmo porque „o mandado de segurança não é substitutivo da ação de cobrança‟ (Súmula 269/STF) –, mas o interesse legítimo, em que fosse integrado aos proventos dos aposentados um índice de correção imposto por lei, garfado pelo Governo. (...) Nessas circunstâncias, o partido político não age motivado pela defesa de direitos subjetivos dos aposentados, mas, fundado num interesse legítimo em que a lei seja cumprida, caso em que o mandamus “destina-se à defesa da legalidade objetiva”, sendo os eventuais direitos subjetivos dos aposentados protegidos reflexamente ou por tabela. Almeida (2003, p. 493) observa que a jurisprudência pátria, em muitos julgados, não tem compreendido a distinção correta entre as categorias de direitos coletivos. Em muitos acórdãos o direito coletivo em sentido estrito é tratado como individual homogêneo ou mesmo difuso. O ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público para combater o critério de reajuste de mensalidades escolares teria sido considerado tutela de direito individual homogêneo pelo Supremo, no julgamento do RE 163.231/SP, e difuso pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na AC 102.437-1, quando, na verdade, se trata de garantia de direito coletivo em sentido estrito. Afinal, não se buscava a reparação na esfera individual de cada um dos alunos, o reajuste tem que ser idêntico para toda a classe de alunos. Por outro lado, existe a possibilidade de identificação dos titulares desse direito, que são pessoas que têm prévia relação jurídica base com a parte contrária. Por fim, o partido político também poderia atuar na defesa de direitos individuais homogêneos de seus integrantes, como, por exemplo, em questões políticas. Mas não na proteção de direitos individuais homogêneos de pessoas estranhas a seus quadros, como garantido no RE 196.184 74 , até mesmo porque os efeitos da coisa julgada, nesse caso, como será visto a seguir, se limitam aos membros substituídos pelo partido, no caso, seus filiados. Impossibilidade de dar a um partido político legitimidade para vir a juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são, em sua totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a impetrar mandado de segurança em nome deles.” 74 Os Min. Ellen Gracie, Carlos Britto e Carlos Velloso garantiram que o partido político pode impetrar mandado de segurança coletivo para tutela de direitos difusos e coletivos; quanto aos individuais homogêneos somente dos integrantes do partido. Os Min. Gilmar Mendes e Cesar Peluso votaram no sentido de que o partido político só pode atuar na defesa dos interesses coletivos e individuais homogêneos de seus filiados. O Min. Marco Aurélio pela legitimação ampla e irrestrita do partido político, que poderia tutelar direito difuso, coletivo e individual 157 Mesmo na defesa de direitos individuais homogêneos de seus integrantes, o partido político, a nosso ver, atua como substituto processual (agindo em nome próprio na defesa de interesses de terceiros) e não como representante processual (que age em nome e defesa de terceiros). Há quem discorde dessa posição, como Almeida (2003, p. 287) para quem o partido político atua como representante processual, nos termos do art. 5º, XXI, da Constituição, quando defende interesses individuais dos seus associados relacionados com as atividades políticas por eles exercidas. É a possibilidade de tutela de direitos difusos de forma direta que diferencia a atuação do partido político (alínea a) da atuação das associações, entidades de classe e sindicatos (alínea b), o que se coaduna perfeitamente a diferença redacional das duas alíneas na Constituição. Pela própria natureza singular do partido político, substancialmente diversa da dos demais legitimados a impetração do mandado de segurança coletivo, sua legitimação naturalmente é mais ampla do que a das associações, sindicatos e entidades de classe. Os partidos políticos destinam-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais, sendo objeto de atenção partidária todos os membros da coletividade, independente da condição de filiados ou não. 11.3. Relação entre objeto material e coisa julgada A coisa julgada é frequentemente caracterizada como a qualidade de imutabilidade do comando da sentença. De acordo com Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 365), considera- se coisa julgada como a situação jurídica que torna indiscutível as eficácias constantes do conteúdo de determinadas decisões jurisdicionais. A doutrina distingue a coisa julgada formal (imutabilidade da sentença no processo em que foi proferida, como conseqüência da preclusão dos recursos) da coisa julgada material (imutabilidade da sentença naquele processo e em qualquer outro). De acordo com Gidi (1995, p. 10), essa tradicional distinção merece ser repensada, a fim de se considerar ambos os fenômenos como espécies de preclusão. A coisa julgada formal seria simplesmente uma preclusão comum, gerada pela preclusão dos recursos ou dos prazos homogêneo, inclusive de pessoas que não integram partido. Os Min. Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim, embora formalmente acompanhando o voto da Relatora, manifestaram-se com “dificuldade” em aceitar a tutela de interesses difusos pelo mandado de segurança coletivo. 158 de recurso. A coisa julgada material ocorreria sempre que a lide (o mérito, que, em geral, se reporta ao direito substancial ou material) fosse julgada, daí a constante utilização da expressão coisa julgada substancial como seu sinônimo. Conforme já afirmado por inúmeras vezes, o regime jurídico da coisa julgada coletiva é bastante diferenciado do regime jurídico da coisa julgada individual. Juntamente com o objeto e a legitimação, configuram os elementos mais peculiares do processo coletivo: Mais do que a noção de coisa julgada nas ações coletivas, alterou-se, é certo dizer, o próprio espectro da eficácia das sentenças. Perceba-se que no processo tradicional esses efeitos circunscrevem-se as partes, via de regra, enquanto nas ações coletivas ter-se-á um processo que é idealizado, justamente, para atingir quem não é parte no processo. (...) Diversamente, coloca-se o sistema próprio das ações coletivas, e que atualmente se encontra regulado com minúscias na parte processual do Código de Defesa do Consumidor, rompendo com essa idéia nuclear que informa o Código de Processo Civil, e na linha do que vimos acima. Aquilo que é exceção no Código de Processo Civil (a coisa julgada atingir quem não tenha atuado no processo) é a regra em se tratando de ações coletivas. Mais do que isso, é a própria essência das ações coletivas. A alteração profunda do âmbito subjetivo dos efeitos da ação coletiva e da noção de coisa julgada, que subsistem no processo tradicional, tais como sempre foram regulados, está imbricada com a alteração da legitimidade nas ações coletivas.” (ALVIM, A. A.; ALVIM, E. A., 2008, p. 5) Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 365) explicam que o regime jurídico da coisa julgada pode ser visualizado a partir da análise de três dados: a) os limites subjetivos – quem se submete à coisa julgada, havendo coisa julgada “inter partes”, “ultra partes” ou “erga omnes”; b) os limites objetivos – o que se submete aos seus efeitos; e c) o modo de produção – como ela se forma, se “pro et contra”, “secundum eventum litis” ou “secundum eventum probationis”. A coisa julgada inter partes, regra geral para o processo individual, é aquela a que somente se vinculam as partes que figuraram no processo. A coisa julgada ultra partes é aquela que atinge não só as partes do processo, indo além delas. De acordo com os autores, é o que ocorre normalmente nos casos em que há substituição processual, em que os substituídos apesar de não terem figurado como parte na demanda, terão suas esferas de direitos alcançados pelos efeitos da coisa julgada. E a coisa julgada erga omnes é aquela cujos efeitos atingem a todos, o que acontece nos processos de controle concentrado de constitucionalidade. Quanto aos limites objetivos, só se submete à coisa julgada material o conteúdo do dispositivo da sentença, sendo que questões incidentes não se submetem aos seus efeitos. Nesse aspecto a coisa julgada coletiva nada tem de especial. 159 A coisa julgada pro et contra é aquela que se forma independentemente do resultado do processo ter sido de procedência ou improcedência. A coisa julgada secundum eventum litis é aquela que somente é produzida quando a lide for julgada procedente. Se a demanda for julgada improcedente, ela poderá ser reproposta, pois a decisão não produziu coisa julgada material. E a coisa julgada secundum eventum probationis é aquela que só se forma em caso de esgotamento de provas. A demanda julgada improcedente por falta de provas não formará coisa julgada material, já que não houve enfrentamento do mérito. Assim, somente a decisão de procedência e a improcedência com suficiência de provas farão coisa julgada material, o que a torna também pro et contra. A própria configuração das ações coletivas exige a extensão da coisa julgada, ao menos, além das partes do processo, afinal os entes coletivos agem na defesa de direitos de seus integrantes (substituição processual). No modelo norte-americano, já analisado no capítulo 10, a extensão da coisa julgada a quem não foi individualmente parte no processo, mas nele foi adequadamente representado, não é verdadeiramente uma ampliação da coisa julgada ultra partes. Isso porque os adequadamente representados não são propriamente terceiros (GRINOVER, 1990b, p. 80). O regime jurídico da coisa julgada coletiva no Brasil se encontra estampado no art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, que serve como regra geral do microssistema de tutela coletiva, sendo aplicável, portanto, ao mandado de segurança coletivo. A nova lei do mandado de segurança não se referiu expressamente à aplicação do CDC, mas “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor” (art. 21 da Lei nº 7.347/1985, incluído pela Lei nº 8.078/1990). Diz o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor: Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81. 160 Como se observa, o Código de Defesa do Consumidor se utiliza das expressões latinas “erga omnes” e “ultra partes”, já referidas acima, para caracterizar os limites subjetivos da coisa julgada coletiva. Assim, sob o aspecto subjetivo, a coisa julgada coletiva seria: erga omnes, para os direitos difusos e individuais homogêneos, e ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, para os direitos coletivos em sentido estrito. De acordo com Gidi (1996, p. 110), se necessário adotar essas expressões, mais técnico e preciso seria considerar a coisa julgada coletiva ultra partes em todos os casos: Mais correto, mais preciso, mais técnico seria a utilização indiscriminada, nos três incisos do art. 103, da expressão ultra partes, já que, como procuramos haver demonstrado, o que diferencia os regimes jurídicos da coisa julgada nos referidos incisos não é, propriamente, a expressão latina utilizada, mas o texto que se lhe faz seguir e que lhe dá sentido. Poderia ser imaginada a possibilidade de o legislador haver optado pela utilização indiscriminada, não da expressão ultra partes como se disse acima, mas da expressão erga omnes. Afigura-se-nos que a utilização da expressão erga omnes seria atécnica, dado que erga omnes só mesmo a “eficácia natural da sentença”. Dizer ultra partes, i. e., além das partes em juízo, é suficientemente técnico e preciso. Como ressaltado pelo autor, é importante distinguir a eficácia natural da sentença (sua aptidão para produzir efeitos e sua efetiva produção), que é erga omnes (a todos se impõe), da autoridade da coisa julgada coletiva (qualidade de imutabilidade da sentença coletiva), que sob o ponto de vista subjetivo, é ultra partes (atinge não só as partes do processo, mas também terceiros). A imutabilidade do comando (coisa julgada) nas ações coletivas não atinge sempre a todos os seres humanos existentes no planeta, mas tão só e exclusivamente a comunidade lesada, mesmo no caso dos direitos difusos, como observado no capítulo 7. Embora concordemos que seja mais técnico e preciso considerar a coisa julgada das ações coletivas ultra partes, isso não facilita, na prática, a identificação (se for possível) daqueles que terão a esfera de seus direitos alcançados pelos efeitos da coisa julgada. Bem da verdade, estender seus efeitos além das partes em juízo é apenas decorrência lógica da substituição processual, já que a parte da relação processual não é titular do direito material discutido. Diante disso, propomos uma nova forma de identificação dos limites subjetivos da coisa julgada no mandado de segurança coletivo, a nosso ver mais esclarecedora, feita também de acordo com o tipo de direito tutelado (objeto material). 161 11.3.1. Limites subjetivos da coisa julgada do mandado de segurança coletivo O art. 22 da Lei nº 12.016/2009, que prevê a coisa julgada no mandado de segurança coletivo, dispõe apenas que a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante. A nova lei só prevê os limites subjetivos da coisa julgada, mas não diz como ela se forma, ou seja, qual o modo de produção da coisa julgada. Esse aspecto será tratado adiante, por ora vamos nos concentrar nos limites subjetivos da coisa julgada. Cumpre ressaltar que, especificamente no mandado de segurança coletivo para tutela de interesses difusos, caso assim se considere possível, não há como se limitar a coisa julgada aos membros da categoria ou grupo substituídos, já que, nesse caso, não haveria grupo ou categoria, mas interesses de membros da coletividade, que são indeterminados. a) Direitos individuais homogêneos – divisibilidade e coisa julgada Somente quando o direito for individual homogêneo, sendo divisível (pode ser satisfeito de forma diferenciada e individualizada, satisfazendo alguns sem afetar os demais), a coisa julgada abrangerá somente os membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante. Por exemplo, se o sindicato de servidores públicos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais pede que cesse a cobrança da contribuição de financiamento da saúde para os servidores que não usam os serviços de saúde, somente os servidores do TJMG se beneficiarão e não os demais servidores estaduais. Assim, quando o grupo de titulares do direito individual homogêneo (no exemplo, servidores estaduais) é maior que o grupo dos membros substituídos pelo impetrante (no exemplo, servidores do TJMG) – ocorre quando o direito dos membros não é exclusivo – ao se buscar tutela para os direitos de seus membros só a eles beneficiará, já que o direito individual homogêneo é divisível. Os membros do grupo substituídos pelo impetrante são apenas os servidores públicos do TJMG, mas não todos os servidores estaduais que também contribuem para o custeio da saúde e dele não se utilizam. O direito a que cesse a cobrança da contribuição de financiamento da saúde para os servidores que não usam os serviços de saúde é de todos os servidores estaduais, mas somente os servidores do TJMG se beneficiarão da decisão, pois o direito ali tutelado é individual 162 homogêneo, portanto, divisível e quem ajuizou a ação foi o sindicato dos servidores do TJMG. Diferente seria o caso do ajuizamento da ação pelo sindicato dos servidores públicos do Estado de Minas Gerais. Por essa razão, apesar do partido político poder atuar na defesa de qualquer tipo de direito, quando atua na defesa de direito individual homogêneo, por exemplo, para afastar a cobrança de determinado tributo, só beneficiará seus filiados. O Supremo Tribunal Federal, no RE 175.401/SP, Min. Ilmar Galvão, DJ 20/09/1996, alargou, a nosso ver corretamente, o entendimento, decidindo caber o mandado de segurança coletivo, desde que o direito se relacione à atividade que levou à formação do sindicato, não exigindo, contudo, que seja exclusivo da classe: Mandado de segurança coletivo impetrado por sindicato, objetivando a exoneração das empresas por ele agregadas, de contribuírem para o PIS 75 . Legitimação ativa. Art. 5.º, LXX, b, da Constituição. Legitimidade para a postulação em tela, porquanto evidenciado que se está diante de direito subjetivo, não apenas comum aos integrantes da categoria, mas também inerente a esta, concorrendo, de outra parte, uma manifesta relação de pertinência entre o interesse nele subjacente e os objetivos institucionais da entidade impetrante. Irrelevância da circunstância de não se tratar, no caso, de exigência fiscal referida, com exclusividade, à categoria sob enfoque. Recurso extraordinário provido. – grifo nosso O entendimento de que o direito não precisa ser exclusivo da categoria é defendido por parte da doutrina, como por Gomes Júnior e Favreto (2009, p. 179) e Moraes (2002, p. 160). Desse último: (...) o ajuizamento do mandado de segurança coletivo exige a existência de um direito subjetivo comum aos integrantes da categoria, não necessariamente com exclusividade, mas que demonstre manifesta pertinência temática com os seus objetivos institucionais. Na decisão do Supremo Tribunal Federal acima citada, a coisa julgada beneficiará as empresas que fazem parte do setor de indústria de artigos e equipamentos odontológicos, médicos e hospitalares do Estado de São Paulo, já que o impetrante foi o Sindicato da Indústria de artigos e equipamentos odontológicos, médicos e hospitalares do Estado de São Paulo (SINAEMO). As empresas de outros setores, que também contribuem com o PIS no exercício de suas atividades, não se beneficiarão da decisão, visto que se trata de direito individual homogêneo tutelado. 75 Pelo pedido constata-se que se trata de direito individual homogêneo (majoração de tributo configura direito individualizável, divisível RE 213.631) 163 O mesmo na jurisprudência do TJMG, na AC 1.0000.00.229788-5/000, em mandado de segurança coletivo impetrado pela OAB/MG para afastar a cobrança de taxa de limpeza pública. Ao conceder, em parte, a segurança, o Tribunal determinou que a autoridade coatora se abstenha de cobrar a taxa de limpeza pública apenas dos estagiários, advogados e pessoas jurídicas inscritas regularmente na OAB/MG, exigindo, ainda, a comprovação, pelos interessados, da exigência da taxa, sua regular inscrição no órgão de classe e que o imóvel tributado esteja vinculado ao exercício da advocacia. Não se trata de interpretação restritiva a de limitar os efeitos da coisa julgada aos membros da categoria substituídos pelo impetrante no caso de direitos individuais homogêneos (não garantindo seus efeitos a todos os titulares do direito material, como acontece nos direitos coletivos em sentido estrito e difusos, como será visto a seguir), mas uma decorrência da natureza do direito, que é divisível, aliada a possibilidade de uma “representação” mais adequada por parte de outros impetrantes que substituam os demais titulares do direito. No primeiro exemplo, do sindicato de servidores públicos que pleiteia o fim da cobrança da contribuição de financiamento da saúde para os servidores que não usam esse serviço, ressalte-se que todos os servidores do TJMG se beneficiarão, mesmo os não sindicalizados, pois fazem parte do grupo substituído pelo impetrante. O mesmo numa ação impetrada para defesa de direito individual homogêneo por associação de empresas da região Y. Todas as empresas da região Y se beneficiarão, mesmo as não associadas. A coisa julgada alcança todos os membros da classe ou categoria substituídos pelo impetrante, mesmo os não sindicalizados/associados, desde que façam parte do grupo substituído pelo impetrante, nos termos do art. 22 da nova lei. No mesmo sentido, Carreira Alvim (2010b p. 334). Posição diversa é adotada por Figueiredo (2004, p. 50), que faz distinção entre sindicatos e associações: No atinente à questão proposta acerca de a sentença atingir apenas os associados ou a categoria, há de se fazer distinção. Se o impetrante for sindicato, como lhe incumbe a tutela dos direitos de seus associados e da categoria (art. 513 da CLT), concluímos que a sentença atinge toda a categoria. Todavia, se estivermos diante de associações, a questão colocar-se-á de forma diversa. Às associações cabe tutelar os interesses e direitos de seus associados. Até porque há, ou pode haver, diversas associações de classe (v., por exemplo, o Instituto dos Advogados e a Associação dos Advogados). Se assim é, não nos parece pudesse se cogitar de a sentença transcender a esfera dos associados. Seria, mesmo, intromissão indevida. 164 O Superior Tribunal de Justiça possui acórdão (AgRg no AgIn 435.851, Min. Luiz Fux, DJ 19/05/2003) reconhecendo que a decisão proferida em mandado de segurança coletivo aproveita, não somente os associados, mas todos aqueles que integram “o grupo, a categoria ou classe que se beneficiou do writ coletivo”, nos seguintes termos: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. TRIBUTÁRIO. ICMS. CONSTRUTORAS. OPERAÇÃO INTERESTADUAL. DIFERENCIAL DE ALÍQUOTAS. DECRETO-LEI 406/68. 1. As empresas de construção civil não estão sujeitas ao ICMS Complementar ao adquirir mercadorias em operações interestaduais. (Precedentes da 1ª Seção) 2. O mandado de segurança coletivo constitui inovação da Carta de 1988 (art. 5º, LXX) e representa um instrumento utilizável para a defesa do interesse coletivo da categoria integrante da entidade de classe, associativa ou do sindicato. 3. Por ser indivisível, o interesse coletivo implica em que a coisa julgada no writ coletivo a todos aproveitam, sejam aos filiados à entidade associativa impetrante, sejam aos que integram a classe titular do direito coletivo. 4. A empresa que visa beneficiar-se de direito concedido em mandado de segurança coletivo anteriormente impetrado por entidade de classe ou associação deve comprovar tão-somente que pertence ao grupo, à categoria ou à classe que se beneficiou do writ coletivo, e não que é associada à entidade que atuou no pólo ativo do mandamus. 5. Agravo Regimental desprovido. – grifo nosso b) Direitos difusos e coletivos em sentido estrito – indivisibilidade e coisa julgada Diferente é o regime subjetivo da coisa julgada quando se trata de direitos difusos e coletivos em sentido estrito. Se o direito for difuso ou coletivo em sentido estrito, indivisível, portanto, não poderá ser satisfeito sem afetar a todos os seus titulares. Logo, a coisa julgada beneficiará a todos os titulares do direito material, sejam membros da coletividade ou de um grupo, que pode ser maior que aquele grupo substituído pelo impetrante. Por exemplo, se uma associação de moradores da região X impetra mandado de segurança coletivo visando a paralisação das atividades de uma fábrica, cujo funcionamento foi autorizado por alvará expedido em desacordo com lei ambiental, a decisão afeta outras pessoas, além daquelas moradoras da região X. Sendo a classe de titulares do direito difuso (coletividade) maior que a classe substituída pelo impetrante (no exemplo, moradores da região X) – ocorre quando o direito 165 não é exclusivo – ao buscar tutela para os direitos de seus associados acaba tutelando o direito de outros – já que o direito difuso é indivisível. Em outro exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil 76 impetra ação civil pública para retirar do ar uma propaganda enganosa 77 . Sendo a classe dos titulares do direito difuso (coletividade) maior que a classe substituída pelo impetrante (no exemplo, advogados) – ocorre quando o direito não é exclusivo do grupo – ao se buscar tutela para os direitos de seus associados acaba tutelando o direito de outros – já que o direito difuso é indivisível. Nesse sentido, Bueno (2009, p. 134): Pelas razões expostas pelo n. 57, supra, contudo, é caso de entender o mandado de segurança coletivo como medida jurisdicional apta à tutela dos chamados direitos difusos, a despeito do silêncio da nova lei. Assim, admitida a impetração para tais fins – que tem tudo para ser a corriqueira em se tratando de impetração de iniciativa dos partidos políticos –, é forçoso concluir que a coisa julgada dirá respeito a todos aqueles que estavam sujeitos ao ato questionado independentemente de se entender, como quer a lei, tratar-se de direitos coletivos ou individuais homogêneos (...). De qualquer sorte, a despeito de sua redação, o caput do art. 22 da Lei nº 12.016/2009 não poderá dar a (falsa) impressão de que o campo dos substituídos processualmente pelo mandado de segurança coletivo pode ser restringido. – grifo nosso O mesmo vale para direitos coletivos em sentido estrito. Quando a classe de titulares do direito coletivo stricto sensu é maior que a classe substituída pelo impetrante – ocorre quando o direito não é exclusivo dos membros da classe – ao se buscar tutela para o direito de seus associados acaba sendo tutelado o direito de outros, já que o direito coletivo strito sensu é indivisível. Logo, mesmo não fazendo parte da classe substituída pelo impetrante, se titular do direito coletivo, se beneficiará da decisão. Um exemplo seria o de ação coletiva ajuizada por sindicato de servidores públicos do TJMG para que seja fixado o índice de revisão geral anual em âmbito estadual (art. 37, X, da Constituição). Eventual concessão da segurança beneficia a todos os servidores públicos estaduais, não só os do TJMG, pois direito é coletivo em sentido estrito, portanto, indivisível. Se não é necessário nem mesmo a condição de integrante do grupo de substituídos pelo impetrante (é suficiente que faça parte do grupo titular do direito material), menos ainda a condição de associado. Assim, vale lembrar que também o titular de direito coletivo não 76 Possui a OAB, como uma de suas funções institucionais, a defesa do consumidor (art. 44, I, da Lei 8906/94, combinado com o art. 5º, XXXII, da Constituição da República). 77 Ressalte-se que o direito a retirada do ar de propaganda enganosa é classificado como difuso, porque abrange todos os que tiveram acesso à publicidade (Súmula do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo nº 2). No entanto, a propaganda enganosa também pode dar origem a violações de direitos individuais, como analisado no capítulo 7.1. 166 associado/sindicalizado é beneficiado, já que, mesmo não sendo filiado, é membro do grupo formado pelos titulares do direito material: Ademais, não raro haverá a proteção de pessoas não pertencentes ao quadro associativo do autor – mas desde que pertença à categoria –, tanto que a coisa julgada dar-se-á ultra partes limitadamente ao grupo, categoria ou classe (CDC, art. 103, II). (DINAMARCO P. da S., 2002, p. 691) Assim, se um edital de concurso exclui uma classe de profissionais, cuja filiação não seja compulsória, todos eles serão beneficiados pela anulação dessa cláusula do edital, mesmo os não filiados. Em mandado de segurança coletivo impetrado por associação de deficientes contra portaria de diretor de escola que impede a matrícula de alunos com deficiência, todos os deficientes serão beneficiados, ainda que não façam parte da associação impetrante. No exemplo do mandado de segurança coletivo impetrado por sindicato de servidores públicos para assegurar revisão geral anual, todos os servidores serão beneficiados, mesmo os não sindicalizados. Gidi (1996, p. 129), referindo-se a coisa julgada na ação coletiva em defesa de direito coletivo, ressalta que não importa se existem membros da coletividade que não façam parte da associação autora, eles também serão beneficiados pela sentença favorável: Assim, o relevante para a ação coletiva não é determinar quem é ou quem não é membro da associação autora, mas quem compõem a coletividade, i. e., quem compõe o grupo, a categoria ou a classe titular do direito coletivo violado. Qualquer pessoa que tenha sido violada pelo ato ilícito do fornecedor faz parte da coletividade e vice-versa. Poder-se-ia argumentar não haver uma “representação” adequada daqueles titulares do direito material que não pertencem à classe que o impetrante substitui, já que sofrerão os efeitos da coisa julgada dada a indivisibilidade do direito. Os titulares do direito material (coletivo em sentido estrito e difuso), mesmo não pertencendo à classe que o impetrante substitui, sofrerão os efeitos da coisa julgada pro et contra, como se verá a seguir. Para tal problema, aponta-se a mesma solução dada para o da possibilidade de pequena “representatividade” de alguns entes coletivos diante da grande abrangência das decisões coletivas, que será analisado a seguir, no capítulo 11.5. Resumidamente temos que: quanto aos limites subjetivos da coisa julgada, se o direito for individual homogêneo, a coisa julgada será conforme art. 22 da nova lei, ou seja, se limitará aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante. Se o direito for coletivo em sentido estrito, a coisa julgada beneficiará os membros do grupo ou categoria formado pelos titulares do direito material violado ou ameaçado. Se difuso, a coisa julgada 167 beneficiará a todos os membros da comunidade titulares do direito material violado ou ameaçado. Nos dois últimos casos, por mais que pareça desnecessário, somente está se dizendo que a coisa julgada atinge todos os titulares do direito material discutido em juízo. Titulares que são membros de um grupo, categoria ou classe de pessoas (direitos coletivos em sentido estrito) ou são membros indeterminados da comunidade, ligados por circunstâncias de fato (direitos difusos). Embora seja utilizada a expressão “se limitará” para os direitos individuais homogêneos, trata-se sempre de extensão da coisa julgada àqueles que, mesmo titulares do direito material, não são parte da relação processual coletiva 78 . Nesse caso, sempre que houver ação coletiva, seja para tutela de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, podemos dizer que a coisa julgada é ultra partes, ou seja, estendida para além das partes em juízo. Para os direitos individuais homogêneos trata-se de limitação apenas quando comparada a coisa julgada das ações que tutelam direitos difusos ou coletivos, que abrange todos os titulares do direito material. A coisa julgada das ações que tutelam direitos individuais homogêneos não abrange todos os titulares do direito material, mas apenas aqueles que pertencem ao grupo ou categoria substituídos pelo impetrante. Quando se diz que a coisa julgada para os direitos difusos e coletivos é mais ampla que para os direitos individuais homogêneos não significa que ela atinja um número maior de pessoas. É possível que a violação de um direito individual homogêneo atinja um volume significativamente maior de pessoas que a violação a um direito difuso. Como no exemplo citado por Gidi (1996, p. 110), a retirada de publicidade enganosa promovida nos auto- falantes do centro de uma cidade pequena tutela direito difuso de um número bem pequeno de pessoas, ao passo que o consumo de um alimento estragado em âmbito nacional violaria o direito individual homogêneo de milhares de pessoas. A extensão da coisa julgada nos direitos individuais homogêneos é mais restrita apenas porque não alcança todos os titulares do direito material, mas apenas aqueles titulares que façam parte do grupo substituído pelo impetrante. 78 De acordo com Leonel (2002, p. 271), sob a ótica coletiva, o legislador teria determinado não a ampliação dos limites objetivos ou subjetivos da coisa julgada, mas sua restrição. De acordo com o autor, os legitimados ao proporem ações coletivas não estão postulando direitos próprios, mas alheios. Assim, seria natural que os efeitos da demanda se projetassem para os titulares dos direitos postulados em juízo, pois embora não sejam partes da relação jurídica processual, são partes na relação jurídica de direito material. De acordo com esse raciocínio, no caso de improcedência da ação que tutela direitos difusos e coletivos em sentido estrito por insuficiência de provas e na hipótese genérica de improcedência da ação que tutela direitos individuais homogêneos há restrição da coisa julgada coletiva, a fim de preservar os titulares da relação material. Embora a linha de raciocínio do autor nos pareça coerente, neste trabalho mantivemos a linha tradicional no sentido de que há extensão da coisa julgada coletiva para além das partes em juízo. 168 A diferenciação da coisa julgada em se tratando de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos também é sustentada por Benjamin e Almeida (2010, p. 309), que propõe igualmente uma flexibilização do art. 22 da nova Lei do Mandado de Segurança: Considerando a relação de correta e perfeita adequação que deverá existir entre o direito material coletivo e o resultado da prestação jurisdicional, a coisa julgada coletiva também deverá possuir essas três dimensões, de forma a incluir os direitos ou interesses difusos, os coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos. Portanto, a coisa julgada no Mandado de Segurança Coletivo deverá atender às necessidades dos direitos matérias coletivos, abrigados na Constituição como direitos fundamentais. Logo, o art. 22 da lei nº 12.016/2009, que restringe a dimensão coletiva da coisa julgada, demanda e convida flexibilização judicial para admitir o instituto nas suas três dimensões, em perfeita relação de correspondência com as categorias do direito material coletivo consagradas no sistema jurídico brasileiro. A nosso ver, os efeitos da coisa julgada sofrem variações de acordo com a natureza do direito tutelado, daí o tratamento distinto da coisa julgada em se tratando de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Watanabe (1992, p. 18) observa que a natureza indivisível dos direitos ou interesses coletivos enseja, não raramente, a proteção de pessoas não pertencentes às associações autoras de ações coletivas. Por essa razão, a legislação, como fez no art. 103, II do Código de Defesa do Consumidor e agora no art. 22 da Lei do Mandado de Segurança, teria estabelecido limitações à coisa julgada coletiva. A nosso ver, é da natureza dos direitos transindividuais sua indivisibilidade, restando impossível, do ponto de vista prático, que a lei imponha limitações incompatíveis com essa indivisibilidade 79 . Nesse sentido é a posição de Donizetti e Cerqueira (2010, p. 149): Evidentemente, nas hipóteses em que o mandado de segurança coletivo for impetrado por associação em defesa de direito indivisível, a tutela jurisdicional alcançará todo o grupo lesado ou ameaçado de lesão, e não somente os associados. 79 “Aliás, tratando-se de interesses de natureza indivisível, o dogma processual dos limites subjetivos da coisa julgada teve de ceder à realidade, isto é, a absoluta impossibilidade de tais interesses serem cindidos, e, portanto, desdobrados em dois ou mais direitos subjetivos. (...) (...) A indivisibilidade do bem implica tratamento uniforme, o que afasta a possibilidade de decisões diferentes. Daí a necessidade de o disposto na sentença tornar-se imutável para todos É, pois, a indivisibilidade do objeto da demanda que determina a extensão dos limites subjetivos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes. A coisa julgada erga omnes, portanto, nos processos cujo objeto seja um interesse difuso ou coletivo, decorre de circunstancia inerente à própria natureza do direito, isto é, sua indivisibilidade. (...) Tais observações visam a demonstrar que o regime da coisa julgada tem peculiaridades nas demandas coletivas, em virtude da natureza da relação jurídica material, mormente do objeto dessa relação.” (BEDAQUE, 2009, p. 126) 169 Soluções que buscam diminuir artificialmente a abrangência das decisões em sede de ações coletivas, como a restrição da coisa julgada aos membros do grupo ou nos limites da competência territorial do órgão prolator, não podem ser admitidas. Nesse sentido temos o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública (modificado pela Lei 9.494/1997), em que introduzida limitação territorial à decisão judicial proferida em ações civis públicas e demais ações coletivas. Dispõe o mencionado art. 16 da Lei de Ação Civil Pública que: A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. Também é de se registrar que a Medida Provisória nº 2.180/2011 acrescentou o art. 2º- A à Lei 9.494/97, vazado nos termos seguintes: A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator. Diante da indivisibilidade dos direitos transindividuais, Watanabe (1992, p. 19) observa que não é admissível a limitação do pedido da ação em benefício de titulares de um Estado da Federação. Se o direito é indivisível, a ação alcança todos os titulares do direito violado, independente do Estado em que residam. Por essa razão, ajuizada uma segunda ação para tutelar os mesmos direitos em outro Estado haveria litispendência entre as ações propostas com o mesmo fim. De acordo com o autor, a não compreensão da amplitude da demanda coletiva tem ocasionado uma “inadmissível multiplicidade de demandas coletivas com o mesmo objeto”, como foi o caso do aumento de 147,06% nos benefícios dos aposentados, o que teria provocado contradição entre os julgados, uns concedendo a atualização aos inativos de alguns Estados e outros a denegando aos aposentados dos demais Estados. Restrições à abrangência da coisa julgada coletiva constituem retrocesso quanto à economia processual, ensejam a conflito lógico e prático entre julgados, violam o princípio constitucional da igualdade, confundindo a amplitude da demanda com a competência territorial e desconsiderando que a abrangência da coisa julgada coletiva é decorrência da natureza do direito violado. 170 Para Leonel (2002, p. 258), a coisa julgada e seus efeitos devem ser interpretados sem apego aos formalismos e com a preocupação voltada à compreensão do processo coletivo como pólo metodológico do instrumentalismo substancial, reconhecendo que a coisa julgada coletiva apresenta peculiaridades decorrentes da natureza da relação jurídica de direito material tutelada: A necessidade de reconhecimento de maior extensão aos efeitos da sentença coletiva é conseqüência da indivisibilidade dos interesses tutelados (material ou processual), tornando impossível cindir os efeitos da decisão judicial, pois a lesão a um interessado implica a lesão a todos, e o proveito a um a todos beneficia. É a indivisibilidade do objeto que determina a extensão dos efeitos do julgado a quem não foi parte no sentido processual, mas figura como titular dos interesses em conflito. (LEONEL, 2002, p. 259) Somente a correta formulação dos limites da coisa julgada coletiva tornará possível o alcance dos objetivos essenciais da tutela coletiva (LEONEL, 2002, p. 258), quais sejam: propiciar a solução dos conflitos de massa; a economia processual e a efetividade da prestação jurisdicional; o efetivo acesso à justiça de situações não tuteláveis individualmente; a pacificação social; o afastamento do conflito dos julgados etc. Conforme diz Watanabe (1992, p. 23), da correta propositura (e compreensão) das demandas coletivas depende o êxito de todo o instrumento processual colocado à disposição pelo legislador em matéria de processo coletivo. Apenas com a utilização do processo coletivo em todas as suas potencialidades, poderemos ter um processo realmente dotado de efetividade, capaz de tutelar adequadamente os direitos das partes e de possibilitar o resgate da imagem do Judiciário, pela redução do número de demandas atomizadas e pela maior uniformidade e eficácia das decisões dos tribunais. 11.3.2. Modos de produção da coisa julgada do mandado de segurança coletivo Falou-se até agora apenas do alcance subjetivo da coisa julgada no mandado de segurança coletivo. Além disso, é imprescindível combinar os efeitos aqui definidos com as técnicas de produção da coisa julgada apresentadas no art. 103 do Código de Defesa do Consumidor. De acordo com os incisos I e II do art. 103 do CDC, para os direitos difusos e coletivos em sentido estrito, há coisa julgada nos casos de procedência e improcedência, exceto a por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar 171 outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. Trata-se do regime da coisa julgada secundum eventum probationis. Uma leitura precipitada do inciso III poderia levar a conclusão de que para os direitos individuais homogêneos, há coisa julgada apenas no caso de procedência, ou seja, que a coisa julgada seria secundum eventum litis. Se assim fosse, a ação coletiva julgada improcedente não faria coisa julgada material e poderia ser reproposta por qualquer legitimado coletivo. Essa não é, entretanto, a interpretação correta do dispositivo. No inciso III, ao contrário dos incisos I e II, não há regramento da coisa julgada coletiva, mas apenas da extensão da coisa julgada coletiva ao plano individual. Observe-se bem: o inciso III não diz que só há coisa julgada no caso de procedência, mas que só há extensão da coisa julgada às vítimas e sucessores no caso de procedência. Diante da falta de regramento expresso da coisa julgada coletiva para direitos individuais homogêneos, a solução proposta por Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 371), e compartilhada neste trabalho 80 , é a de considerar que a ação que tutela direito individual homogêneo segue o mesmo modelo da coisa julgada de direitos difusos e coletivos em sentido estrito. Assim, se a ação coletiva for julgada procedente ou improcedente por ausência do direito, haverá coisa julgada no âmbito coletivo, impedindo o repropositura da ação coletiva, mesmo que por outro legitimado (mas não a propositura de ação individual, como será visto a seguir). E se a ação coletiva for julgada improcedente por falta de provas, não haverá coisa julgada no âmbito coletivo, permitindo-se sua repropositura, inclusive pelo mesmo legitimado, valendo-se de nova prova. Por isso não é correto, como ressaltam os autores, dizer que a coisa julgada coletiva é estritamente secundum eventum litis, pois o que é segundo o resultado do litígio é a extensão da coisa julgada, apenas para beneficiar os titulares dos direitos individuais. O regime jurídico da coisa julgada coletiva não é o único, no entanto, que deve ser aplicado ao mandado de segurança coletivo. Também o regime jurídico da coisa julgada do mandado de segurança tradicional é aplicável ao mandado de segurança coletivo. O mandado de segurança tradicional pode ser denegado com análise de mérito, por inexistir o direito material invocado ou não ter sido ilegal o ato praticado pela autoridade coatora (pretensão infundada), ou sem análise de mérito, por exemplo, por não ter sido comprovada a liquidez e certeza do direito. Nos dois primeiros casos há coisa julgada material, pois foi julgado o mérito, no último caso não, apenas há coisa julgada formal e o impetrante pode renovar o pedido, em novo mandado ou outra ação. É o que informam o §6º 172 do art. 6º da Lei nº 12.016/2009, que garante a impetração de novo mandado de segurança, e o art. 19 da Lei nº 12.016/2009, que garante o ajuizamento de qualquer outra ação (inclusive para pleitear efeitos patrimoniais não tuteláveis via mandado de segurança, anteriores ao ajuizamento da ação). Da conjugação do regime da coisa julgada coletiva com o regime do mandado de segurança resulta que, em qualquer caso de denegação da segurança coletiva que não tenha sido analisado o mérito (não apenas a insuficiência de provas ou ausência de direito líquido e certo), caberá a repropositura do mandado de segurança coletivo ou o ajuizamento de outra ação coletiva com idêntico fundamento, desde que com correção do vício. Assim, no mandado de segurança coletivo, independentemente do tipo de direito tutelado, há coisa julgada material nos casos de concessão e de denegação por ausência do direito. A denegação sem julgamento de mérito não faz coisa julgada material, apenas formal. 11.3.3. Extensão 81 da coisa julgada do mandado de segurança coletivo Os parágrafos 1º e 2º do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, ao ressalvarem que a coisa julgada da ação coletiva não impede o ajuizamento de ações individuais, também são aplicados ao mandado de segurança coletivo, de forma adaptada. A sentença coletiva de improcedência ou denegação não produz efeitos na esfera dos direitos individuais: § 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. § 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. De acordo com o §1º, a coisa julgada nas ações coletivas que versem sobre direitos difusos ou coletivos em sentido estrito não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. Adaptando-se ao mandado de segurança coletivo temos que: a denegação da segurança coletiva que verse sobre direitos difusos ou coletivos em sentido estrito não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. 80 Também por Donizetti e Cerqueira (2010, p. 361). 81 Para Donizetti e Cerqueira (2010, p. 364), em se tratando de direitos essencialmente coletivos, deve-se falar em “transporte” da coisa julgada e não em sua “extensão”. 173 Tomemos um fato que resulta ao mesmo tempo em violação de direito difuso e individual, por exemplo, um ato de diretor de empresa concessionária de energia elétrica que determinou a instalação de um mecanismo que gera poluição sonora acima de limite permitido em lei. A poluição sonora causa lesão a direito difuso daqueles moradores e transeuntes que são expostos a ela (há indeterminação absoluta dos lesados, não sendo possível identificar os expostos) e um legitimado coletivo pode pleitear, por exemplo, que a empresa seja impedida de usar o mecanismo ou que seja colocado um abafador do som. Por outro lado, a instalação do mecanismo também pode ter causado lesão à saúde de algumas pessoas. Mesmo que o mandado de segurança coletivo impetrado pela associação de moradores do local tenha sido denegado com análise do mérito (reconhecida a legalidade do ato), ainda assim o indivíduo que teve sua saúde afetada poderá ajuizar ação ordinária de indenização pelos danos sofridos. Vale ressaltar que, embora os direitos individuais dos integrantes do grupo não possam ser prejudicados, a esfera de direitos dos integrantes do grupo são alcançadas pelos efeitos prejudiciais da coisa julgada no caso de denegação por ausência do direito difuso ou coletivo em sentido estrito. Repetindo: há coisa julgada coletiva prejudicial, o que não há é extensão prejudicial da coisa julgada coletiva no plano individual. No exemplo citado, denegada a segurança com análise do mérito, não poderá ser reproposta nova ação coletiva e todos aqueles expostos à poluição sonora sofrerão os efeitos da coisa julgada (imutabilidade e indiscutibilidade do comando da sentença). Pelo §2º, em caso de improcedência da ação coletiva ajuizada para tutela de direito individual homogêneo, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. Adaptando-se ao mandado de segurança coletivo temos que: em caso de denegação da segurança de direitos individuais homogêneos, os substituídos que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ações a título individual, inclusive impetrar mandados de segurança individuais 82 . A denegação do mandado de segurança coletivo que, por exemplo, visava afastar a cobrança de taxa de incêndio dos substituídos do legitimado coletivo não impedirá o ajuizamento de mandados de segurança individuais ou ações ordinárias individuais pelos substituídos que não tenham intervindo na lide coletiva. A decisão denegatória coletiva 82 Salvo se operada a decadência prevista no art. 23 da nova lei: “O direito de requerer mandado de segurança extinguir-se-á decorridos 120 (cento e vinte) dias, contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado.” 174 servirá, sem dúvida, como precedente negativo, mas não dará margem a extinção dos mandados ou ações individuais por ocorrência de coisa julgada. Evidente que a posição adotada pelo legislador no §2º do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor desestimula a participação do indivíduo como litisconsorte na ação coletiva. Afinal, mais cômodo aguardar o deslinde da ação coletiva, sem nela ingressar, sendo beneficiado, mas nunca prejudicado por seus efeitos. Já o indivíduo que participe da ação como litisconsorte poderá ser prejudicado por eventual sentença de denegação com análise do mérito. Observemos a aplicação desse parágrafo em decisão do Tribunal estadual mineiro, na AC 1.0024.09.544398-2/002, em que reconhecida litispendência entre um mandado de segurança individual e um coletivo, no qual a parte configurou como litisconsorte ativo: Não há, em regra, litispendência entre o mandado de segurança coletivo e a ação individual que o associado tenha ajuizado, ainda que os objetos de ambas as causas sejam similares, como, aliás, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 1.091.597, rel. Min. Castro Meira, DJe 15/12/2008). No entanto, a causa tem a particularidade consistente em que, no primeiro processo já em tramitação nesta Corte - 1.0024.09.481719-4/001 - a ora apelante figurou como litisconsorte ativo. Sendo assim, não poderia reproduzir causa idêntica, cujo objeto e pedido são idênticos àqueles veiculados na primeira ação mandamental. O ajuizamento de ações individuais não poderia mesmo ser obstado pela coisa julgada coletiva, afinal a ação coletiva é essencialmente diversa das ações individuais, pois, ainda que decorrentes do mesmo fato, são diversos os autores, o pedido e seus fundamentos jurídicos. No caso dos direitos difusos e coletivos em sentido estrito até mesmo a natureza do direito tutelado é outra. Por isso, a coisa julgada da ação coletiva não impede (...) o ajuizamento de ações individuais, onde seja renovada a discussão sobre as mesmas questões de fato e de direito já examinadas no julgado coletivo, e que a conclusão a seu respeito seja diversa: a demanda será outra e não haverá modificação daquilo que foi julgado anteriormente, não havendo falar-se em incidência da coisa julgada, tampouco de sua eficácia preclusiva, verificando-se somente o conflito lógico de julgados, não o conflito prático. (LEONEL, 2002, p. 269) – grifo nosso Além disso, no ordenamento jurídico brasileiro não há extensão da coisa julgada coletiva ao plano individual de forma prejudicial. Somente há extensão da coisa julgada coletiva para o plano individual in utilibus, poupando os lesados de propor ações individuais, 175 “em reconhecível evolução em prol do efetivo acesso à justiça e à ordem jurídica justa” (LEONEL, 2002, p 275). Nas ações que tutelam direitos difusos e coletivos em sentido estrito, embora a sentença coletiva de procedência, tal como a de improcedência, não produza efeitos naturalmente na esfera de direitos individuais, ela (a sentença de procedência e tão somente ela) terá seus efeitos estendidos por expressa determinação legal. É o que garante o §3º do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, pelo qual o indivíduo poderá se valer da coisa julgada coletiva para proceder à liquidação e à execução da sentença, sem a necessidade de um novo processo. Como garantem Didier Júnior e Zaneti Júnior (20011, p. 373): Assim, uma sentença coletiva que verse sobre direitos difusos pode servir de título para uma execução coletiva e para uma execução individual, proposta pela vítima que se beneficiou do transporte in utilibus da coisa julgada coletiva Obviamente, antes de executar a decisão, o indivíduo deverá proceder à liquidação do seu crédito, em que deverá demonstrar, inclusive, a existência do dano e do nexo de causalidade entre a conduta do réu e esse prejuízo. No caso da ação coletiva para tutela de direito individual homogêneo essa extensão, dos efeitos positivos, já estava determinada pelo inciso III do art. 103, já referido. Nesse caso, a sentença coletiva, quando envolver reparação de danos, será geralmente genérica e a liquidação é considerada imprópria, já que não visa apenas apurar o quantum debeatur, mas também a titularidade do crédito, ou seja, a identidade dos substituídos titulares do direito. De acordo com Didier Júnior e Zaneti Júnior (20011, p. 387), a sentença poderá ser liquidada pela vítima e seus sucessores individualmente, que deverão habilitar o seu crédito em procedimento semelhante ao da falência, bem como pelo legitimado extraordinário coletivo, que deverá proceder à identificação dos credores individuais. Vale frisar que o regime do mandado de segurança também permite a condenação ao pagamento de quantia em dinheiro, o que não significa que o instrumento possa substituir a ação de cobrança. É o que se extrai do art. 7º, § 2º da Lei nº 12.016/2009, ao garantir que não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza. E o art. 14, § 4º, que determina que o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal somente 176 será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial 83 . O diferencial do mandado de segurança em relação às ações em geral é que seu regime de pagamento não se dará por meio de precatório, mas por simples mandado de pagamento 84 , ao menos no que diz respeito às parcelas vencidas a partir da sua impetração. Assim, embora o objeto principal do mandado de segurança coletivo seja a correção de ato ou omissão de autoridade que viole direito coletivo em sentido lato, a concessão da segurança pode ter como efeito necessário a condenação genérica do Poder Público ao pagamento de valores aos substituídos pelo impetrante. Temos, por exemplo, o caso de um mandado de segurança coletivo que reconhece a ilegalidade de determinado desconto efetuado sobre a remuneração de servidores públicos, afastando sua cobrança. A concessão da segurança coletiva garantirá, sem dúvida, o fim dos descontos dali em diante, mas também a responsabilidade do Estado pela restituição dos valores indevidamente descontados, pelo menos, a partir do ajuizamento da ação. No mandado de segurança coletivo haverá condenação genérica e os titulares dos direitos individuais homogêneos terão que liquidar e executar seus créditos individuais. Para as parcelas vencidas anteriormente à impetração do mandado de segurança coletivo, há extensão dos efeitos da decisão coletiva para o plano dos direitos individuais, como ocorreu na AC 1.0003.06.018407-8/001. No caso tratava-se de ação de cobrança julgada procedente para condenar o réu a pagar à autora as parcelas pleiteadas na inicial, acrescido de juros de 1% ao mês, a partir da citação e de correção monetária, pela tabela da CGJ, decotando-se as eventuais parcelas prescritas. O direito de recebimento das verbas relativas ao reajuste de 11,03%, incidentes sobre o vencimento básico dos servidores, retroagidos a 01/05/2000, foi reconhecido no mandado de segurança coletivo, interposto pelo sindicato dos servidores municipais: Inicialmente, torna-se desnecessária a discussão acerca da constitucionalidade da referida norma, pois tal ilegalidade já restou conhecida quando da apreciação do mandado de segurança coletivo, 83 De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 38), a jurisprudência tem abrandado o rigor legal para conferir, excepcionalmente, o efeito ex tunc ao deferimento do mandamus em face do caráter alimentar dos vencimentos do servidor público. 84 Theodoro Júnior (2009, p. 40) garante que há decisões do Superior Tribunal de Justiça tanto nesse sentido (REsp. 862.482, DJ 13/04/2009; REsp 904.699, DJ 02/02/2009; REsp 929.819, DJ 03/11/2008), como em sentido contrário (AgRg MS 11.840, DJ 03/11/2008; AgRG REsp 761.877, DJ 01/07/2009; AgRg AI 1.034.316, DJ 10/11/2008). A doutrina também diverge sobre o assunto, alguns defendendo a utilização do regime de precatórios, outros entendendo que tal regime seria lento demais e incompatível com a estrutura constitucional mandamental e com o rito célere do mandado de segurança. 177 impetrado pelo sindicato dos servidores públicos municipais de Abre Campo, tendo o mesmo transitado em julgado. Assim, resta patente que, em sede de mandado de segurança coletivo, a autora teve expressamente reconhecido seu direito de receber os valores, ora requeridos. Deste modo, tenho que o referido remédio reconheceu o direito da autora de receber o ajuste salarial, sendo correto a propositura da ação de ordinária para pleitear o ressarcimento das parcelas pretéritas. A propositura do referido writ teve condão de declarar direito futuro e interromper o prazo prescricional do pagamento de verbas pretéritas, que ora é pleiteado. Destarte, é certo que o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança, e sua concessão não produz efeitos patrimoniais, em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria. Dessa forma, constata-se que a autora usou corretamente dos instrumentos jurídicos, buscando primeiramente a declaração do seu direito e depois o ressarcimento, não podendo, agora, restabelecer discussão sobre a legalidade do reajuste. Por tudo isso se diz que, no direito positivo brasileiro, as ações coletivas são sempre um plus em prol do indivíduo, porque não há exclusão da possibilidade da tutela na forma individual, desde que o indivíduo não se associe à ação coletiva pendente, e porque há extensão benéfica da coisa julgada coletiva ao plano individual. É o que Almeida (2003, p. 575) chama de “princípio do máximo benefício da tutela jurisdicional coletiva comum”, pelo qual se busca o aproveitamento máximo da prestação jurisdicional coletiva, estendendo-se in utilibus o comando emergente do conteúdo da decisão de procedência da ação coletiva. Isso não significa – repita-se – que o julgamento de denegação do mandado de segurança coletivo não faça coisa julgada material. A denegação da segurança faz coisa julgada material, salvo a denegação sem análise do mérito. Só que os substituídos, integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe (que não tiverem intervindo, se for o caso de direito individual homogêneo) sempre terão aberta a possibilidade de ajuizamento de ação individual, inclusive mandado de segurança, se ainda couber, em razão dos mesmos fatos. Nesse sentido, Grinover (1990 a, p. 83): (...) a única técnica capaz de harmonizar, de constitutione lata, as peculiaridades da coisa julgada no mandado de segurança coletivo com as garantias do devido processo legal, é a extensão do julgado secundum eventus litis. Em caso de sentença desfavorável, os interessados poderão mover demandas pessoais, a título individual. Observemos a seguinte afirmação de Benjamin e Almeida (2010, p. 316): 178 Por outro lado, se houver denegação da segurança em seu mérito, com a improcedência do pedido formulado no mandado de segurança coletivo, a coisa julgada se formará no máximo ultra partes para atingir o impetrante, o impetrado e outros legitimados coletivos ativos, que não poderão propor novamente a mesma ação coletiva; entretanto, os seus efeitos não prejudicam os integrantes da coletividade, do grupo, da categoria ou classe. Discordamos em parte. A coisa julgada coletiva não prejudica os interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, grupo, categoria ou classe, mas denegada com análise do mérito a segurança em mandado que tutelava direito coletivo em sentido estrito ou difuso, seus efeitos alcançarão sim a esfera de direitos dos substituídos. Gidi (1995, p. 73) esclarece a diferença com precisão, demonstrando que a coisa julgada nas ações coletivas se forma pro et contra, sendo que secundum eventum litis é a extensão in utilibus da coisa julgada para a esfera individual dos membros da comunidade ou da coletividade: Rigorosamente, a coisa julgada nas ações coletivas do direito brasileiro não é secundum eventum litis. Seria assim, se ela se formasse nos casos de procedência do pedido, e não nos de improcedência. Mas não é exatamente isso que acontece. A coisa julgada sempre se formará, independentemente de o resultado da demanda ser pela procedência ou pela improcedência. A coisa julgada nas ações coletivas se forma pro et contra. O que diferirá, de acordo com o “evento da lide”, não é a formação ou não da coisa julgada, mas o rol de pessoas por ela atingidas. Enfim, o que é secundum eventum litis não é a formação da coisa julgada, mas a sua extensão “erga omnes” ou “ultra partes” à esfera individual de terceiros prejudicados pela conduta considerada ilícita na ação coletiva (é o que se chama extensão in utilibus da coisa julgada). Alguns autores, tendo em vista a segurança jurídica e o risco de exposição do réu (no caso o Estado) a infinitas ações, caminham no sentido da extensão da eficácia da sentença para os titulares de direito individual também no caso de denegação da segurança. O silêncio da nova lei quanto a técnica de produção dos efeitos da coisa julgada permitiria tal conclusão. Para eles, se a sentença denegar a segurança coletiva por entender infundada a ação, com exame de mérito da causa, portanto, ela também deveria estender seus efeitos ao plano individual. É o caso de Tucci (1990), Bueno (1996) e Gidi (2002), cujas posições serão melhor analisadas adiante, no capítulo 11.5. Referindo-se a essa posição, de considerar que o modo de produção de coisa julgada no mandado de segurança coletivo é pro et contra, inclusive na sua extensão para os titulares dos direitos individuais, garantem Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 379): Essa solução é inaceitável: a solução da lacuna deve ser buscada dentro do microssistema da tutela jurídica coletiva, e não fora dele, 179 mormente se a opção revelar-se pior do que o modelo geral de coisa julgada previsto no CDC. Não parece constitucional atribuir ao mandado de segurança coletivo, que é um direito fundamental, um modelo de coisa julgada mais prejudicial às situações jurídicas coletivas do que aquele previsto na legislação comum para a tutela coletiva. Um direito fundamental merece interpretação de melhor quilate. Embora Calmon de Passos (1989, p. 70) tenha afirmado que “Denegatória a decisão na segurança, a coisa julgada em favor do Poder Público seria oponível a todos os interessados, obstada, definitivamente a impetração de segurança individuais ou plurais (litisconsórcio)”, na mesma obra ele sustenta que, enquanto não regulado em outros termos pelo legislador ordinário, o mandado de segurança coletivo atende às normas previstas para o mandado de segurança individual e às normas pertinentes à substituição processual, coisa julgada etc, em ações coletivas (PASSOS, 1989, p. 58). O que justifica sua afirmação, já que sua obra foi publicada antes da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, que determinou a extensão dos efeitos da coisa julgada coletiva ao plano dos direitos individuais apenas no caso de procedência. 11.4. Outros aspectos do regime do mandado de segurança coletivo Como legislação aplicável ao mandado de segurança coletivo temos, em primeiro lugar, a Lei do Mandado de Segurança, Lei nº 12.016/2009. No entanto, tratando-se de processo coletivo, como já observado, aplica-se também o Título III do Código de Defesa do Consumidor, no que for cabível, de acordo com o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública. Por último, aplicam-se as disposições do Código de Processo Civil, naquilo em que não for incompatível com as regras contidas nas duas leis especiais. O art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, portanto, não pode ser aplicado ao mandado de segurança coletivo, uma vez que há previsão específica no art. 22, §1º da nova lei para tutelar a relação entre o mandado de segurança coletivo e outras ações individuais: § 1º O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva. – grifo nosso O Código de Defesa do Consumidor fala em suspensão e não desistência da ação individual (art. 104). 180 A desistência do mandado de segurança, embora não implique decisão de mérito, pode ocasionar a perda do direito fundamental ao mandado de segurança. Isso porque, em muitos casos, ele não poderia ser renovado, no caso de insucesso da ação coletiva, em razão do prazo de 120 dias previsto no art. 23 da nova lei. Em razão disso, essa exigência é considerada inconstitucional por grande parte da doutrina (JAYME, 2011, p. 173), que considera deva prevalecer a suspensão determinada pelo Código de Defesa do Consumidor (MEDINA; ARAÚJO, 2009, p. 223; DONIZETTI, 2010, p. 45). De acordo com Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 237), a tendência seria a não aplicação da desistência prevista na nova lei: O dispositivo tende a tornar-se letra morta. A tendência é a de a jurisprudência considerar que o mais adequado é a suspensão do processo individual, conforme a regra geral do microssistema. Esta interpretação pode, inclusive, fundamentar-se na relação de preliminaridade (a procedência da ação coletiva torna desnecessário o julgamento de mérito da ação individual) entre a ação coletiva e a ação individual, que autoriza a suspensão do processo individual com base no art. 265, V, „a‟, CPC. Há também quem sustente a possibilidade de opção do impetrante em requerer a suspensão ou a desistência do mandado de segurança individual, com base na combinação dos dispositivos legais a partir do diálogo das fontes (MAIA FILHO; ROCHA; LIMA, 2010, p. 321). Outra forma de se admitir a desistência em lugar da suspensão seria adotando a posição de Fux (2010, p. 151), de que a desistência não poderia prejudicar o titular do direito em caso de decisão desfavorável no mandado coletivo, uma vez que ele poderá propor, inclusive, novo writ sem os riscos da decadência interrompida pelo primeiro mandamus, na forma do art. 220 do CPC. O grande problema dessa argumentação é que grande parte da doutrina considera o prazo do mandado de segurança decadencial, ou seja, não se submetendo a suspensões ou interrupções próprias da prescrição (v.g, JAYME, 2011, p. 171). Embora a lei não fale em desistência de outras ações individuais, apenas do mandado de segurança individual, considera-se que o dispositivo deve ser aplicado, feita a ressalva acima, também no caso de outras ações individuais com o mesmo objeto. Quanto a dizer que não há litispendência entre o mandado coletivo e as ações individuais, pouca a relevância, uma vez que, além de tutelarem tipos de direitos diferentes, as partes não são as mesmas, não há identidade de causas de pedir (sobretudo da causa de pedir próxima) e nem os pedidos são idênticos, como já observado. Quando muito se pode admitir a existência de continência entre o mandado de segurança coletivo para defesa de interesses 181 individuais homogêneos e as respectivas ações individuais (LEYSER, 1997, p. 367; MANCUSO, 1992, p. 194) ou conexão (DONIZETTI; CERQUEIRA, 2010, p. 235), quando seria possível a suspensão/desistência das ações individuais, a pedido do autor da ação individual ou de ofício 85 , mas não a reunião dos processos coletivo e individuais. No julgamento do RN 1.0024.05.871655-6/001 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerias ficou consignado que não existe litispendência entre mandado de segurança coletivo e individual: A litispendência se configura quando há repetição de ação anteriormente ajuizada. A identidade de ações, por sua vez, se caracteriza pela coincidência de partes, causa de pedir e pedido, sendo expresso, nesse sentido, art. 301, §§ 1º e 2º, do CPC. No caso da tutela de direitos individuais homogêneos através de ação coletiva, ocorre uma espécie de legitimação extraordinária autorizada na legislação processual civil, que viabiliza a busca em nome próprio de direitos de terceiros, como exceção à regra do art. 6º do CPC. Isso ocorre no caso do sindicato que pode propor ações individuais em favor dos sindicalizados, atuando como substituto processual. A legitimidade do ente representativo da classe nesse caso, porém, não é exclusiva, é dizer, não impede que o interessado busque, individualmente, a tutela do seu direito, sendo concorrente. Esse entendimento decorre da natureza da pretensão que, ao contrário do que ocorre com os interesses difusos, é passível de divisão e individualização em relação ao proveito a ser destinado a cada sujeito específico. A ação coletiva em que se perseguem direitos individuais homogêneos visa, primordialmente, a economia processual e a coerência das decisões judiciais, unindo-se em uma mesma ação direitos uniformes, embora divisíveis. Assim, a tutela de direitos individuais homogêneos corresponde à soma de direitos individuais originados de fatos idênticos. Cuida-se de um instrumento processual que deve viabilizar o acesso à Justiça e à prestação célere e eficaz, não podendo essas finalidades serem sobrepostas ao direito fundamental de acesso à Justiça. Existindo um direito individual e divisível, não pode a pessoa capaz ser compelida a ser representada por outrem, sob pena de afronta ao art. 5º, XXXV, da CF/88, decorrendo que a representação de determinada massa de indivíduos por entidade autorizada para tanto, não exclui a propositura da ação individual. Mais importante teria sido disciplinar a litispendência entre mandados coletivos ou entre esses e outras ações coletivas, matéria sobre a qual a legislação coletiva ainda é omissa. Vale lembrar que nas ações coletivas, quanto à parte ativa, o que importa não é a identidade física, mas a identidade de condição jurídica. A dúvida suscitada pela doutrina é se deveria 85 Recentemente, em julgado inédito o Superior Tribunal de Justiça, garantiu-se a possibilidade de suspensão, de ofício, de todas as ações individuais, uma vez ajuizada ação coletiva atinente a mesma lide geradoras dos processos multitudinários (REsp 1.110.549/RS, Min. Sidnei Beneti, DJ 14/12/2009), diante da superveniência da Lei dos Recursos Repetitivos (Lei nº 11.672/2008). 182 ocorrer a extinção da ação coletiva, nos moldes do art. 267, V, do CPC (v.g., AC 1.0024.08.139626-9/001, AC 1.0043.06.008384-7/001), entendimento defendido por Donizetti e Cerqueira (2010, p. 248) ou reunião dos processos, em termos semelhantes ao disposto no art. 105 do CPC, aplicável no caso de conexão/continência (MANCUSO, 1992, p. 194). Por fim, o §2º do art. 22 da Lei nº 12.016/2009 subordina a concessão da liminar em mandado de segurança coletivo a audiência prévia do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas. Tal medida “se justifica pelo interesse público, ampliado, na espécie, pelos largos reflexos que a liminar pode provocar, pela natureza mesma dos direitos coletivos, sobre o exercício das funções do Poder Público” (THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 57). Ressalte-se que a lei que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público era mais flexível, ao dispor em seu art. 2º que: No mandado de segurança coletivo e na ação civil pública, a liminar será concedida, quando cabível, após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas. Previsões semelhantes a da nova lei, que criam restrições absolutas a concessão de liminares, acabaram sendo flexibilizadas pela jurisprudência, que admite que o juiz, em casos excepcionais, possa afastar a norma, diante de circunstâncias do caso concreto. Esse deve ser o caminho da nova previsão legal, sobretudo quando se verificar que a oitiva prévia do representante da pessoa jurídica possa causar dano irreparável ou de difícil reparação aos direitos coletivos. Nesse sentido, Theodoro Júnior (2009, p. 57): Embora a disposição legal seja rigorosa na exigência de prévia audiência da pessoa jurídica de direito público para se obter a liminar, a jurisprudência, já antes da Lei n. 12.016, vinha relativizando sua aplicação para que o juiz, diante das características do caso concreto, pudesse suspender o ato impugnado sem aguardar dita manifestação. Com efeito, na concepção de efetividade da tutela jurisdicional e da plenitude da garantia constitucional do mandado de segurança, não se deve apegar a exigências, ainda que legais, que possam reduzir ou anular a tutela dos direitos fundamentais. Quando, pois, o direito líquido e certo estiver sob risco imediato, e o dano dele oriundo não puder ser remediado pela tardia medida cautelar, não há outra saída senão a de deferir de pronto a liminar, afastando-se momentaneamente a regra do art. 22, §2º, da Lei n. 12.016, em nome dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. A liminar, especialmente no mandado de segurança, é cláusula ínsita do devido processo legal, sendo inconstitucional a norma legal que proíba, de forma generalizante, a sua 183 concessão. De acordo com Benjamin e Almeida (2010, p. 324), o Supremo Tribunal Federal não tem entendimento pacífico sobre o tema. Na ADI 223-6/DF firmou entendimento de que a lei que proíbe concessão de liminar não é abstratamente inconstitucional, o que não impediria de considerá-la inconstitucional diante de situações concretas, via controle difuso de constitucionalidade. Já na ADI 975-3 teria suspendido vários artigos de medida provisória, com fundamento em inconstitucionalidade, concluindo que a vedação à concessão de liminar impede o serviço da Justiça, cria obstáculos à obtenção da prestação jurisdicional e atenta contra a separação dos Poderes, ao colocar o Judiciário em situação de sujeição em relação ao Executivo. De toda forma, o que não se pode admitir é a restrição absoluta à concessão de liminares inaudita altera parte, mesmo contra pessoa jurídica de direito público. De acordo com Carreira Alvim (2010b, p. 347), o prazo de 72 horas é meramente recomendatório, pois, havendo uma situação de risco, que não permita ao juiz ouvir previamente a pessoa jurídica pública, nada impede que conceda a liminar, sujeitando-a a reexame após esse pronunciamento. Até mesmo porque, deferida a liminar contra o Poder Público, caberá agravo de instrumento (art. 7º, §1º) e suspensão de segurança, se a liminar causar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública (art. 15 da nova lei). Ou seja, existirão mecanismos para resguardar o interesse público acima do interesse coletivo, se o caso exigir. Diante dessa exigência, havendo pedido liminar, ao despachar a inicial, o juiz determinará a notificação da autoridade coatora para prestar informações e a intimação da pessoa jurídica interessada para que se manifeste sobre pedido liminar. Essa prévia audiência só diz respeito às pessoas jurídicas de direito público, não se estendendo aos casos de impetração contra particular no exercício de atribuições do Poder Público. Ressalte-se que, ainda que não haja pedido liminar, o juiz dará ciência ao órgão de representação da pessoa jurídica interessada, pública ou privada, para que, querendo, ingresse no feito, nos termos do art. 7º, II da nova lei. Conforme já observado, as disposições da Lei nº 12.016/2009 são aplicáveis ao mandado de segurança coletivo, que possui os mesmos requisitos constitucionais de impetração e procedimento do mandado de segurança individual. Assim, embora não específicas do mandado de segurança coletivo, algumas disposições da nova lei merecem ser comentadas, seja porque trouxeram inegáveis benefícios para a efetividade do processo, seja porque mantiveram retrógradas limitações à tutela jurisdicional. 184 A nova lei previu a possibilidade de utilização de meios eletrônicos para impetração e intimação de atos do processo (art. 4º). Embora essa possibilidade já estivesse prevista em outras legislações, sobretudo na Lei nº 11.419/2006, que dispôs sobre a informatização do processo judicial, é importante sua expressa previsão no mandado de segurança, a fim de garantir celeridade ao seu procedimento. Também visando a celeridade e a efetividade processuais, previu-se a possibilidade de se substituir o acórdão pelas notas taquigráficas nos casos de demora superior a 30 dias na publicação da decisão pelo tribunal, para o julgamento do mandado de segurança e respectivos recursos (art. 17); renovou-se a prioridade do mandado de segurança e respectivos recursos sobre todos os atos judiciais, salvo apenas o habeas corpus (art. 20), já prevista na Lei nº 1.533/1951; previu-se expressamente 86 o crime de desobediência no caso de não cumprimento de decisões proferidas em mandado de segurança (art. 26), sem prejuízo das demais sanções previstas em outras leis, inclusive no CPC. A ampliação de prazo para parecer do Ministério Público, de cinco para dez dias (art. 12, caput); para o juiz sentenciar, de cinco para trinta dias (art. 12, parágrafo único) e para conclusão, de 24 horas para 5 dias (art. 20, §2º) não representam, a nosso ver, prejuízo para a efetividade do processo. Trata-se apenas de adaptação dos prazos à realidade prática e aos regimentos internos dos tribunais. A nova lei também positivou restrições quanto à concessão de liminar e tutela antecipada e quanto à execução provisória para compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza (art. 7º, §§2º e 5º, art. 14, §3º). Possui também dispositivos de auto-imunização do 86 Não havia previsão legal na legislação anterior, embora boa parte da doutrina já defendesse a configuração do crime de desobediência em razão do caráter mandamental que a decisão pode assumir. Em âmbito jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 422073, Min. Felix Fischer, DJ 17/05/2004, garantira que “a autoridade coatora, mormente quando destinatária específica e de atuação necessária, que deixa de cumprir ordem judicial proveniente de mandado de segurança, pode ser sujeito ativo do delito de desobediência (art. 330 do CP).” De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 36) a sentença que defere a segurança pode apresentar qualquer um dos efeitos conhecidos para provimento de um processo de conhecimento: “Sua eficácia pode ser apenas declaratória, se, por exemplo, for suficiente a declaração de nulidade do ato de poder impugnado pelo impetrante; pode ser constitutiva, se a solução do caso deduzido em juízo exigir alguma modificação no relacionamento jurídico mantido entre o impetrante e o Poder Público; será condenatória, se alguma prestação positiva ou negativa houver de ser exigida da autoridade coatora; ou, enfim, será mandamental ou executiva lato sensu, se, para cumprir o mandamento sentencial, a autoridade coatora tiver de praticar ato administrativo próprio de seu ofício, como expedir certidão, alvará, efetuar ou cancelar registro, liberar bens ou serviços, e todos os demais atos de igual ou semelhante natureza. O caráter mandamental assume a força de ordem irresistível, porque seu descumprimento acarretará para o coator as sanções disciplinares e criminais do delito de desobediência (Código Penal, art. 330).” 185 Poder Público, semelhantes àquelas restrições previstas em legislações esparsas, como na Medida Provisória nº 2.180/2001, que alterou a Lei nº 8.437/1992, já referidas no capítulo 5. Para Mazzilli (2002, p. 125): (...) é como se o governante dissesse assim: como a Constituição e as leis instituíram um sistema para defesa coletiva de direitos, e como esse sistema pode ser usado contra o governo, então impeço o funcionamento do sistema para não ser acionado em ações coletivas, onde posso perder tudo de uma só vez. Sim, o fundamento é esse, pois, se, em vez da ação coletiva fosse usada a ação individual, cada lesado teria de contratar individualmente um advogado para lutar em juízo. Em caso de danos dispersos na coletividade, isso só seria com para o causador do dano, nunca para os lesados, já que, na prática, a grande maioria dos lesados não buscaria acesso individual à jurisdição, diante das dificuldades práticas (honorários de advogados, decisões contraditórias etc.) É com isso que contam os governantes (...). Como nos garante Leonel (2002, p. 175), tais restrições causam estupefação e descrença na boa-fé governamental, apontando a proteção da Administração Pública (mormente a Federal) contra eventuais investidas judiciais como o real motivo de suas criações. Essas disposições acabam ultimando abusos perpetrados a pretexto de reformas da previdência, da administração e tributária, que violam direitos e garantias fundamentais de acesso à justiça, como a inafastabilidade da jurisdição. É preciso, por fim, ressaltar a necessidade de cuidado na aplicação do Código de Processo Civil ao Direito Processual Coletivo de forma geral, não somente em relação ao mandado de segurança coletivo. Almeida (2003, p. 583) garante que a filosofia que constituiu o Código de Processo Civil e o Código Civil de 1916 é totalmente incompatível com o fenômeno de coletivização do processo. Todavia, tanto a Lei da Ação Civil Pública, como o Código de Defesa do Consumidor, preveem a aplicação subsidiária do CPC. Para que isso ocorra, o autor exige a existência de dupla compatibilidade: compatibilidade formal, marcada pela inexistência de disposição legal sobre a matéria no Direito Processual Coletivo; e compatibilidade material, pela qual a regra do CPC só será aplicável se não ferir o espírito do Direito Processual Coletivo e, portanto, não colocar em risco a efetivação da tutela jurisdicional adequada. O que não se pode perder de vista, a todo momento, é o papel da Constituição na aplicação dessas leis e códigos. Como garante Bulos (1996, p. 21), “Induvidosamente, um dos pontos de fundamental importância para o entendimento das peculiaridades do mandado de segurança coletivo é o da interpretação da Constituição, berço originário do novo instrumento de garantia.” 186 11.5. Problemas decorrentes da posição adotada e soluções À posição adotada neste trabalho podem ser opostas inúmeras críticas, sobretudo ligadas aos limites e a extensão da coisa julgada no mandado de segurança coletivo. Dentre elas merecem destaque, a nosso ver, as posições de Tucci (1990), Gidi (1995 e 2002) e Bueno (1996). Se muitos juristas pregam a utilização da experiência norte-americana como subsídio para a solução de questões que surgem no processo coletivo brasileiro ou mesmo para a formulação de propostas de alteração legislativa, contra o que nada temos a nos opor, esses autores foram além. No desenvolvimento de suas teorias eles acabaram propondo a utilização de um sistema semelhante ao norte-americano, que confie ao juiz brasileiro o exame da adequação e da capacidade dos legitimados ativos e, para Tucci e Bueno 87 , no qual ocorra a extensão dos efeitos da coisa julgada coletiva para a esfera individual de forma pro et contra. Para Bueno (1996, p. 132), a constituição prévia das associações e a exigência de pertinência temática para atuação dos legitimados coletivos nada mais são que indicadores para que o juiz, caso a caso, constate a ocorrência da inafastável “representatividade adequada”. Assim, o exame da “representatividade adequada” seria feito, entre nós, veladamente, sob o manto da extinção da ação (BUENO, 1996, p. 131). Como já analisado no capítulo 11.2.1, não discordamos de tal afirmação. O sistema brasileiro não é totalmente avesso ao controle da “representatividade adequada”. A questão é que, para além dos requisitos legais, o autor propõe que o juiz, analisando as circunstâncias específicas do caso, possa exigir das associações outros requisitos para considerar que os membros ausentes estariam bem representados em juízo, tais como sua credibilidade, seriedade, conhecimento técnico-científico, capacidade econômica, número de filiados etc. Acaso não constatada a “representatividade adequada” do autor, a ação deveria ser extinta sem julgamento de seu mérito. Gidi (2002, p. 70) afirma que os membros do grupo não deveriam ficar vinculados pelos atos de um representante inadequado, uma vez que um representante inadequado seria um não-representante. Utilizando-se da dicotomia entre poder e dever, garante que “o poder que tem um representante para tutelar os interesses do grupo deriva do dever de adequadamente representá-los em juízo”, assim seria a adequação que legitimaria e convalidaria a atividade do representante. 87 Gidi (2002) faz proposta de controle da adequação do representante pelo Direito brasileiro, mas não se posiciona especificamente sobre sua repercussão no regime da coisa julgada coletiva. 187 Alterado o regime de legitimação, por conseqüência, se alteraria também o regime da coisa julgada. A legitimação encontra-se intimamente ligada ao problema da extensão subjetiva da coisa julgada, de maneira que “qualquer alternativa tomada pelo legislador, quanto à primeira, tende a refletir-se na estrutura do processo e no seu resultado, determinando as pessoas que serão atingidas pela decisão judicial e para quem ela será imutável” (DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR, 2011, p. 205). Assim, Tucci e Bueno garantem que a solução mais apropriada e mais justa para todos os envolvidos em uma dada relação processual seria aquela valorada e feita pelo legislador americano, com ciência adequada das ações coletivas e extensão dos efeitos da coisa julgada também no caso de improcedência aos membros do grupo, que estavam adequadamente representados pelo legitimado coletivo: Denegada a segurança por não existir direito a ser amparado, a sentença, após o trânsito em julgado, torna-se imutável tão-somente para as partes, partes em sentido material, não podendo, assim, ser discutido o seu conteúdo pelo componente do grupo em mandado de segurança ou no âmbito de outro meio processual futuro. (TUCCI, 1990, p. 49) Da adequada representação decorreria a coisa julgada material tanto na procedência, quanto na improcedência da ação. Só assim o réu da ação teria a possibilidade de invocar a coisa julgada, decisão de improcedência da ação, portanto, que se formou em processo validamente instaurado (e, assim sendo, movido por representante adequado) em novas ações, ainda que individuais (BUENO, 1996, p. 134). De acordo com esses autores, o sistema atualmente adotado pelo legislador brasileiro violaria a igualdade e o devido processo legal com relação ao réu, pela inutilidade da sua defesa, já que, improcedente a ação coletiva, poderá a mesma questão ser rediscutida em novo processo, individual e, em alguns casos (insuficiência de prova), até mesmo coletivo. No desenvolvimento de sua argumentação, Bueno (1996, p. 142) salienta a importância de uma atuação mais ativa do juiz nas ações coletivas, de forma a incrementar a efetividade das decisões judiciais. Não discordamos da necessidade de se redesenhar o papel do juiz nas ações coletivas, mas da proposta feita pelo autor, de entregar ao juiz um controle amplo da legitimidade nas ações coletivas, transbordando os critérios previstos pelo legislador. Em primeiro lugar, conforme observado nos capítulos 10 e 11.2, o regime de legitimação do Direito brasileiro não é o mesmo adotado pelo Direito norte-americano. No texto final da Lei nº 7.374/1985 foi excluído o dispositivo constante do projeto inicial alusivo 188 à necessidade de demonstração da representatividade adequada pela associação que propusesse a demanda, como garante Mirra: Observe-se que o Projeto de Lei 3.034/1984, do Deputado Federal Flávio Bierrenbach, elaborado por Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Jr., do qual resultou, na sequência dos trabalhos, com outro (Projeto de Lei 4.984/1985), de autoria do Poder Executivo Federal, a Lei 7.347/1985, tinha disposição expressa que conferia ao juiz da causa a incumbência de verificar a representatividade adequada da associação civil no caso concreto, a partir de dados discriminados exemplificadamente no próprio diploma projetado (arts. 2 e 4). Contudo, tal disposição foi suprimida do texto final, segundo consta por temerem os parlamentares decisões arbitrárias por parte dos juízes nessa matéria. (MIRRA, 2005, p. 47) Tal como por diversas vezes reiterado neste trabalho, o Direito positivo brasileiro não se utiliza da técnica da coisa julgada secundum eventus litis. Julgada improcedente com resolução do mérito, uma ação coletiva não mais poderá ser reproposta. No sistema brasileiro apenas a extensão subjetiva da coisa julgada é secundum eventum litis, o que não gera qualquer violação aos princípios do devido processo legal ou da isonomia. Como garante Leonel (2002, p. 262), não há violação do princípio da igualdade ou do devido processo legal com relação ao demandado. Para o autor, a correta interpretação do princípio da igualdade aproxima-o da idéia de justiça, que consiste no tratamento igual para situações iguais e desigual para situações desiguais, na medida de suas desigualdades. Assim, o princípio da igualdade, no âmbito do processo, não deve ser interpretado como absoluta igualdade em toda e qualquer situação, variando de acordo com a situação concreta, de conformidade com as características da parte envolvida na demanda e da relação jurídica substancial. No processo coletivo, havendo uma série de elementos diversos do processo individual – tutela de interesses supra-individuais, legitimação restrita, impossibilidade concreta de interferência dos indivíduos –, se justifica o tratamento diverso da coisa julgada. O contraditório também não se encontra prejudicado para o demandado, pois ele tem condições efetivas de exercer sua defesa, “certamente com redobrado empenho e concentração de esforços pela importância e grandeza da controvérsia” (LEONEL, 2002, p. 263). Grinover (1990 a, p. 7; 1990 b, p. 81) também rebate o argumento de que o sistema brasileiro gera um desequilíbrio entre as partes, com um ônus excessivo para o réu. De acordo com a autora, apesar de o réu não poder opor a força da coisa julgada, somente em casos excepcionais o consumidor teria êxito numa ação individual cuja correspondente coletiva foi julgada improcedente. E no caso da excepcional procedência de ações individuais, estaria 189 definitivamente comprovada a necessidade da adoção da extensão a terceiros da coisa julgada apenas in utilibus. Há também alguns autores que propõem a extensão do julgado no caso de improcedência, mas com possibilidade de impugnação pelo indivíduo lesado durante determinado período de tempo (posição citada por LEONEL, 2002, p. 264). Afastando tal proposta, ele recorda que, se os interesses individuais de pequena monta muitas vezes não justificam um pleito individual, com maior razão não iriam justificar a impugnação da decisão coletiva por um indivíduo. Ele também opõe à proposta os altos custos de uma impugnação da sentença coletiva, a serem suportados individualmente, e a força da decisão coletiva já confirmada em segunda instância, que funcionaria como um precedente, para concluir que: Portanto, a adoção da sistemática sugerida – validade extensiva do julgado em qualquer caso e possibilidade de impugnação pelo indivíduo lesado – inviabilizaria quase completamente o acesso à justiça do interessado prejudicado, deixando uma estrada aberta para demandas coletivas mal formuladas, para conluio de partes com fim de fraudar a lei, e finalmente para a obtenção de sentença de “improcedência” como salvo- conduto para a implementação de condutas ilegais e lesivas. Além disso, como os réus do processo coletivo são normalmente dotados de maior potencial econômico (Poder Público e empresas), o descompasso entre a condição dos responsáveis pela lesão e dos lesados justifica carrear maior ônus aos primeiros: Se a extensão do julgado, em qualquer hipótese (improcedência ou procedência), a todos os indivíduos, significa provavelmente negativa de acesso à Justiça às pessoas isoladamente consideradas, a extensão do julgado só quando da procedência não configura negativa de acesso ao responsável pela lesão, mas só encargo eventual de suportar nova demanda sobre o mesmo assunto. Se algum preço deve ser „pago‟ para o alcance da economia processual e da pacificação rápida e uniforme dos conflitos coletivos, que seja o preço menor: onera menos o sistema a sujeição do responsável pela lesão a nova demanda, que a inviabilização do acesso à justiça por parte de indivíduo interessado. (LEONEL, 2002, p. 265) Apesar de existirem pontos de semelhança entre os sistemas da class action e das ações coletivas brasileiras, inúmeras são as diferenças, já apontadas no capítulo 10. O regime do Código de Defesa do Consumidor, aplicável a toda ação coletiva dentro o microssistema de tutela coletiva existente no ordenamento jurídico brasileiro, dá tratamento diferenciado a matéria, com maior amplitude e mais condizente com a garantia de acesso à justiça. O próprio Gidi afirmava que a opção do Código de Defesa do Consumidor seria mais “adaptada à realidade sócio-cultural de um país atrasado e sem qualquer tradição ou experiência com a defesa de direitos coletivos como o nosso.” (GIDI, 1996, p. 71), embora, 190 posteriormente (GIDI, 2002, p. 68), faça proposta de lege lata 88 para controle judicial da adequação do “representante” no Direito brasileiro. Ainda hoje, quando muitos dos operadores do Direito desconhecem o regime das ações coletivas (que sequer faz parte da grande maioria dos planos de curso das instituições de ensino), a população continua cultural e economicamente vulnerável, sobretudo frente ao poderio das grandes empresas e do Estado, que geralmente são os réus em ações coletivas. Daí a razão do regime adotado pelo legislador brasileiro: As ações coletivas nascem, no Brasil, com o intuito de reforçar os corpos intermediários da sociedade civil e de educar para a cidadania. Seria estranho, e na verdade condenável, que o legislador importasse um pacote pronto, de uma sociedade notoriamente mais desenvolvida, onde ocorrem injustiças, e com sistema judiciário completamente diverso, onde se inserem outras determinantes culturais. (ZANETI JÚNIOR, 2001, p. 43) Como observado pelo autor, é necessário fortalecer os corpos intermediários da sociedade brasileira, as associações, entidades de classe, sindicatos e partidos. Foi esse um dos objetivos da concessão de legitimidade a esses entes para a impetração do mandado de segurança coletivo. Infelizmente, até hoje, como diz Almeida (2003, p. 590), é muito tímida a atuação desses legitimados coletivos, que são responsáveis pelo ajuizamento de menos de 10% das ações coletivas propostas no Brasil 89 . O grande protagonista é o Ministério Público, 88 “Chegamos à parte final desta apresentação, em que devemos fazer uma proposta. Esta proposta, porém, não é de lege ferenda, mas de lege lata. Ou seja, é independente de reforma legislativa. Basta um juiz competente e interessado. Apesar de não estar expressamente previsto em lei, o juiz brasileiro não somente pode, como tem o dever de avaliar a adequada representação dos interesses do grupo em juízo. Se o juiz detectar a eventual inadequação do representante, em qualquer momento do processo, deverá proporcionar prazo e oportunidade para que o autor inadequado seja substituído por outro, adequado. Caso contrário, o processo deve ser extinto sem julgamento de mérito. Se o juiz, inadvertidamente, atingir o mérito da causa, a sentença coletiva não fará coisa julgada material e a mesma ação coletiva poderá ser reproposta por qualquer legitimado.” (GIDI, 2002, p. 68) Gidi também afirma que já havia chegado a essa conclusão desde a defesa de sua dissertação de mestrado em 1993, que foi publicada em 1995 (GIDI, 1995, p. 137), mas que ela teria sido expressa de forma demasiadamente tímida e atécnica. 89 No que toca a atuação dos legitimados ativos nas ações coletivas em geral, apesar das vantagens da tutela coletiva, os dados estatísticos colhidos por Gajardoni (2003, p. 179) demonstraram que, embora utilizada com regularidade crescente, as ações coletivas estariam sendo subaproveitadas. Os dados estatísticos mencionados pelo autor se referem a: 1 – levantamento efetuado no ano de 2000, na 1ª instância do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Centro- Norte-Nordeste), pelo qual, num universo de 253.272 ações, apenas 486 eram coletivas, o que corresponde a 0,19% do total. Ampliado o levantamento para os anos de 1996 a 2001 (maio), esse percentual era de 0,22%. 2 – levantamento efetuado no ano de 2000, na 1ª instância do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro-Espírito Santo), pelo qual, num universo de 117.252 ações, apenas 326 eram coletivas, o que corresponde a 0,27% do total. Ampliado o levantamento para os anos de 1997 a 2001 (junho), esse percentual era de 0,29%. 3 – levantamento efetuado pelo Ministério Público Estadual de São Paulo, em agosto de 2001, pelo qual havia 7.409 ações civis públicas ajuizadas pelo órgão em andamento no Estado de São Paulo, enquanto, no mesmo mês, apenas 570 ações civis públicas ajuizadas por terceiros em andamento. No mês de setembro de 2001, havia 7.239 ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público e apenas 620 ações civis públicas ajuizadas por 191 o que demonstra a fragilidade da democracia participativa no país e a necessidade de fomento à participação desses entes intermediários. Nem o sistema de representatividade adequada, nem o regime da coisa julgada das class actions foram adotados pelo legislador brasileiro. Como garante Grinover (1990a, p. 6), razões de ordem pragmática desaconselharam sua adoção: A deficiência de informação completa e correta, a ausência de conscientização de enorme parcela da sociedade, o desconhecimento dos canais de acesso à justiça, a distância existente entre o povo e o Poder Judiciário, tudo a constituir gravíssimos entraves para a intervenção de terceiros, individualmente interessados, nos processos coletivos, e mais ainda para seu comparecimento em juízo visando à exclusão da futura coisa julgada. Admitir o controle judicial específico, caso a caso, a respeito da efetiva “representatividade adequada” no Direito brasileiro seria subverter e desconsiderar uma opção clara e consciente do legislador sobre a matéria, substituindo os critérios legalmente previstos por outros, a serem descortinados pelos juízes nos casos concretos (MIRRA, 2005, p. 51). Por esse motivo, tal posição deve ser afastada, ao menos enquanto não sobrevier alteração da disciplina constitucional e infraconstitucional sobre a matéria. Bueno (1996, p. 120) também apresenta outras críticas ao sistema brasileiro atual, como a formulada através da seguinte situação hipotética de James Marins: Dentro desse regime, então qualquer mandado de segurança coletivo, impetrado, por exemplo, por uma associação, digamos, hipoteticamente com apenas três associados, que contestasse, por exemplo, a incidência do PIS, poderia resultar, absurdamente, em uma decisão com eficácia erga omnes, para todos os contribuintes do Brasil, em efeito prático idêntico ao de um julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. De acordo com o autor, a impetração de mandado de segurança coletivo pleiteando a inconstitucionalidade de tributo violaria a competência reservada, com exclusividade, ao Supremo Tribunal Federal para expurgar determinada norma porque contrária à Constituição terceiros em andamento. No mês de outubro/novembro de 2001, havia 6.698 ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público e apenas 670 ações civis públicas ajuizadas por terceiros em andamento. 4 – levantamento efetuado no Foro Central do Rio de Janeiro pelo qual do total de ações civis propostas entre 1987 e 1996 (285 ações) – analisadas 87 por amostragem – apenas 10% o foram por associações e organizações não-governamentais; 61% foram ajuizadas pelo Ministério Público estadual; e 29% foram ajuizadas pelo Município do Rio de Janeiro, Defensoria Pública e outras entidades públicas. Sua conclusão foi a de que “Os números indicam que muito em desobstrução das vias judiciárias e ganhos temporais poderia ser obtido com a atuação mais incisiva dos co-legitimados para as ações civis públicas – principalmente das associações – mormente se levarmos em conta que existe controvérsia jurisprudencial, ainda não superada, a respeito da legitimação do Ministério Público para a tutela dos interesses individuais homogêneos.” (GAJARDONI, 2003, p. 181) 192 (art. 102, inc. I, alínea a da Constituição). Além disso, percebe-se uma clara menção à possibilidade de pequena “representatividade” dos legitimados para a ação coletiva no Brasil na referência a uma “associação, digamos, hipoteticamente com apenas três associados”. No sistema proposto pelo autor só haveria espaço para a tutela coletiva de direitos exclusivos da classe ou do grupo (BUENO, 1996, p. 119 e 122), não sendo admitida, em hipótese alguma, a argüição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo via ação coletiva. Para Bueno (1996, p. 121), os únicos representantes adequados para expurgar uma norma inconstitucional com grau erga omnes seriam aqueles indicados no rol do art. 103 da Constituição. Gidi (2002, p. 62) questiona o mesmo ponto em situação hipotética: Imaginemos que uma pequena e desaparelhada associação proponha uma ação contra uma poderosa multinacional em um litígio complexo e de profundo impacto social. Durante o processo, o juiz percebe que o advogado da associação é incompetente ou não está demonstrando interesse pelo processo ou pelo grupo, ou que a associação não tem dinheiro suficiente nem para financiar as perícias necessárias, nem para contratar um bom advogado. Imaginemos, também, uma associação que conduza o processo em seu interesse próprio, seja esse interesse de natureza econômica, política ou ideológica. Não há nada de errado em que pequenas associações proponham ações coletivas importantes. Não é contra isso que este trabalho se insurge. Referimo-nos a uma ação coletiva proposta por uma associação manifestamente incapaz de tutelar adequadamente os interesses do grupo no processo, seja por incompetência, por falta de interesse real no litígio, por existência de interesses conflitantes, parcialidade ou mesmo má-fé. Na prática, o representante pode conduzir o processo de uma maneira inadequada para a tutela dos interesses do grupo (ou de uma parcela do grupo), ou simplesmente perder a causa propositadamente. Em defesa do atual sistema, acrescentamos aos argumentos já formulados, o fato de que os problemas apontados por Bueno não são exclusivos do mandado de segurança coletivo, existindo também na utilização da ação civil pública, com solução já apresentada pela doutrina e jurisprudência (v.g., REsp 403.355/DF, Min. Eliana Calmon, DJ 30/09/2002 90 . 90 “PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE - POSSIBILIDADE - EFEITOS. 1. É possível a declaração incidental de inconstitucionalidade, na ação civil pública, de quaisquer leis ou atos normativos do Poder Público, desde que a controvérsia constitucional não figure como pedido, mas sim como causa de pedir, fundamento ou simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal, em torno da tutela do interesse público. 2. A declaração incidental de inconstitucionalidade na ação civil pública não faz coisa julgada material, pois se trata de controle difuso de constitucionalidade, sujeito ao crivo do Supremo Tribunal Federal, via recurso extraordinário, sendo insubsistente, portando, a tese de que tal sistemática teria os mesmos efeitos da ação declaratória de inconstitucionalidade. 3. O efeito erga omnes da coisa julgada material na ação civil pública será de âmbito nacional, regional ou local conforme a extensão e a indivisibilidade do dano ou ameaça de dano, atuando no plano dos fatos e litígios 193 No que toca a declaração de inconstitucionalidade via mandado de segurança coletivo, a solução, tal como na ação civil pública, é pela sua possibilidade desde que não seja o pedido principal da ação, mas a causa de pedir. Até mesmo porque o mandado de segurança não é cabível contra lei em tese (Súmula 266, do STF), mas tão somente quando a lei possui efeitos concretos. Como garante Almeida (2003, p. 603), na ação civil pública o que se pede é a condenação, constituição ou declaração que possa ser suficiente para reparar o dano causado ou evitar que a ameaça de dano a direito coletivo se consume. A inconstitucionalidade da lei é deduzida na causa de pedir, como um dos fundamentos para o pedido de tutela de direito coletivo lesado ou ameaçado. Sendo questão prejudicial, não fica abrangida pela coisa julgada material, podendo ser reapreciada em demandas diversas, coletivas e individuais. Há outra diferença apontada por Leonel (2002, p. 401): Quando o Supremo Tribunal Federal, por via de ação, declara a inconstitucionalidade da norma, reconhece sua invalidade absoluta, retirando-a do mundo jurídico. Esta asserção produz efeitos a partir do momento da edição do próprio ato normativo, ou seja, ipso iure e ex tunc, pois não se pode admitir que tenha produzido efeitos ato incompatível com o texto constitucional. Já na ação coletiva com reconhecimento incidental de inconstitucionalidade, apenas certos atos serão atingidos, aqueles subsumidos à relação jurídica supra-individual discutida no feito, e a partir do momento da identificação dos efeitos lesivos tratados na impugnação. Não ocorrerá, como na ação direta de inconstitucionalidade, uma suspensão da eficácia da norma como se ela jamais houvesse produzido efeito algum, mas só a declaração de inviabilidade com relação àquela moldura fática, histórica e concreta (abrangente em virtude do caráter coletivo da demanda) delimitada pela inicial. A lei incidentalmente considerada inconstitucional permanece válida, com eficácia jurídica, não dispensando o ajuizamento de ação declaratória de inconstitucionalidade. Qualquer juiz pode exercer controle difuso de constitucionalidade no Brasil, não importando a natureza do direito tutelável, sem que haja usurpação de competência do Supremo. E isso pode ser feito, inclusive, no mandado de segurança coletivo: Importante consignar que a admissão do mandado de segurança contra lei de efeitos concretos ou contra lei autoexecutável, não significa possa ser o instituto utilizado como meio de impugnação da lei em tese. concretos, por meio, principalmente, das tutelas condenatória, executiva e mandamental, que lhe asseguram eficácia prática, diferentemente da ação declaratória de inconstitucionalidade, que faz coisa julgada material erga omnes no âmbito da vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado. 4. Recurso especial provido.” 194 Absolutamente. Na hipótese do mandado de segurança contra lei de efeitos concretos, impugna-se, isto sim, o ato administrativo veiculado pela lei, e que, travestido sob sua roupagem, não se reveste do caráter de generalidade e abstração que caracteriza a lei. Por isso, fala-se em lei „de efeitos concretos‟, ou seja, para o caso ou casos especificados na lei, não outros. De outra parte em caso de mandado de segurança contra lei autoexecutável ou autoaplicável, impugna-se sua aplicação concretamente, não impedindo, porém, que outros que possam vir a ser atingidos tenham necessidade de utilizar de mandado de segurança. (ALVIM, 1997, p. 147) Ressaltamos que, no nosso entendimento, somente será possível a argüição de inconstitucionalidade no mandado de segurança coletivo para garantir o direito de pessoas determinadas ou passíveis de determinação (ou seja, para tutela de direitos individuais homogêneos e coletivos em sentido estrito), quando os efeitos da coisa julgada se limitarão a elas 91 , não tendo eficácia erga omnes. E não quando se tratar de direitos difusos, pois, nesse caso, sendo impossível determinar os titulares do direito, a lei ainda não teria efeitos concretos. Nesse caso, dos direitos difusos, a inconstitucionalidade da lei, revestida de generalidade e abstração, seria o pedido da ação, hipótese que será cabível apenas o controle concentrado de constitucionalidade, com outros legitimados, competência exclusiva do Supremo e eficácia erga omnes 92 . O partido político, por exemplo, embora, a nosso ver, possa impetrar mandado de segurança coletivo para tutelar direito difuso diretamente, não poderia argüir a inconstitucionalidade de lei, pois, nesse caso, a lei ainda não teria efeitos concretos (lei em tese 93 ). Por outro lado, se a lei tem efeitos concretos e seus destinatários podem ser 91 Como no RN 1.0180.02.006648-6/001, concedida a segurança impetrada pela OAB, visando afastar a exigência relativa à Taxa de Renovação de Licença de Localização e Funcionamento em favor de seus inscritos – Advogados, Estagiários, e Sociedades de Advogados - aduzindo inconstitucionalidade e ilegalidade da exigência, por ferir o art. 145, II, § 2º da Constituição Federal e os arts. 77 e 78 do CTN, por incidir sobre serviços não divisíveis e inespecíficos e, ainda, por contrariar Súmula 157 do STJ. 92 O controle concentrado de constitucionalidade também é considerado instrumento de tutela coletiva de direitos (ALMEIDA, 2003, p. 157; ZAVASCKI, 2008, p. 61). 93 “Há quem entenda como lei em tese aquelas normas abstratas que, enquanto não aplicadas por ato concreto de execução, são incapazes de acarretar lesão a direito individual. Na verdade, porém, a lei deixa de ser em tese no momento em que incide. No momento em que ocorrem os fatos na mesma descritos, e que, por isto mesmo, nasce a possibilidade de sua aplicação. Não é o ato de aplicar a lei, mas a ocorrência de seu suporte fático, que faz com que a lei possa ser considerada já no plano concreto. Mandado de segurança contra lei em tese é mandado de segurança contra lei que ainda não incidiu. De outro modo, diz-se que há impetração contra lei em tese, se esta ocorre sem que esteja configurada a situação de fato em face da qual pode vir a ser praticado o ato tido como ilegal, contra o qual se pede segurança. Diz-se que a impetração é dirigida contra lei em tese precisamente porque, inocorrente o suporte fático da lei questionada, esta ainda não incidiu, e por isto mesmo não se pode falar em direito, no sentido do direito subjetivo, sabido que este resulta de incidência de lei. Aliás contra lei em tese descabe não apenas o mandado de segurança, mas toda e qualquer ação, salvo, é claro, a direta de inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal. Inexiste prestação jurisdicional contra lei que não incidiu, pois a atividade jurisdicional caracteriza-se, exatamente, por desenvolver-se em face de casos concretos.” (MACHADO, 2006, p. 255) 195 identificados, o direito não será difuso e, portanto, poderá ser tutelado pelo mandado se segurança coletivo, impetrado, inclusive, pelo partido político. Quanto ao problema da pequena “representatividade”94 de alguns legitimados do mandado de segurança coletivo diante da abrangência enorme que a decisão pode assumir, resultando numa “representatividade inadequada”, problema igualmente presente na ação civil pública, pode ser contornado com algumas formas de controle criadas pelo legislador brasileiro. Os requisitos da constituição ânua das associações e da pertinência temática já foram analisados. A constituição há mais de um ano garante, em princípio, a idoneidade da associação e o requisito da pertinência temática que a associação possua entre seus fins estatutários a defesa daqueles interesses envolvidos no litígio. Mas existem outros mecanismos que também servem para evitar os problemas decorrentes da pequena “representatividade” de algumas associações. O Ministério Público, quando não for parte, deverá atuar nas ações coletivas como fiscal da lei (Lei nº 7.347/1985, art. 5º, §1º, 3º e 15, e Lei nº 8.078/1990, art. 92) 95 . Há a possibilidade de outro legitimado assumir a condução do processo ou do recurso no caso de desistência ou abandono da ação coletiva, inclusive para promover a execução do julgado favorável, no caso do Ministério Público. Não há formação da coisa julgada coletiva em caso de improcedência por insuficiência de provas e, especificamente no caso do mandado de segurança coletivo, no caso de denegação da segurança sem análise do mérito. No que toca aos direitos individuais dos membros da classe ou categoria, conforme já analisado, a coisa julgada coletiva nunca os prejudicará. É verdade que será, a princípio, impedida a propositura de nova ação coletiva quando julgado o mérito improcedente, mas os direitos individuais dos membros do grupo nunca serão prejudicados. Mesmo para os legitimados da ação coletiva, podemos utilizar as lições adaptadas 96 de Calmon de Passos (1989, p. 70): 94 Por “representatividade” estamos nos referindo, em termos genéricos, a expressividade, credibilidade, seriedade, conhecimento técnico-científico, capacidade econômica, capacidade de produção de defesa processual válida etc. O termo se encontra entre aspas porque na tutela coletiva não há verdadeiramente representação, mas substituição processual, conforme já observado. 95 No caso do mandado de segurança coletivo, a atuação do Ministério Público é obrigatória (art. 12 da Lei nº 12.016/2009). 96 A adaptação se deu porque Passos afirmava, antes do advento do Código de Defesa do Consumidor, que a coisa julgada teria sua eficácia estendida a terceiros em caso de procedência e de improcedência da ação coletiva. A mudança da causa de pedir da ação, juntamente com a proposição de ação rescisória, eram medidas por ele pensadas para que os atingidos pela decisão prejudicial se esquivassem da incidência da coisa julgada. 196 Cumpre relembrar, entretanto, um velho brocardo – mínima differentia facti máxima inducit juris diversitatem. Um simples detalhe de fato conduz a uma conclusão jurídica completamente diversa da que se deu a caso análogo. E essa mínima diferença de fato pode importar em mudança na causa petendi em termos de torná-la diferente, afastada a tríplice identidade reclamada para a coisa julgada. Assim, no caso de improcedência da ação, com julgamento de mérito, qualquer outro legitimado coletivo, alterando a causa de pedir da ação, poderia obter tratamento diferenciado, escapando aos efeitos da coisa julgada que aparentemente o atingia. Além disso, existem outros mecanismos de sanção previstos na legislação processual, e mesmo na criminal, para as hipóteses de abusos ou fraudes. É verdade que Cappelletti (1977, p. 148) já ressaltava que a atuação dos corpos intermediários também poderia gerar abusos e tiranias “operando mais por interesses egoísticos ou até chantagistas que por interesses válidos e reais da coletividade”, mas para contornar tais problemas o legislador criou sanções, como para a hipótese de litigância de má- fé, não somente para a associação autora, mas também para os diretores responsáveis pela propositura da ação (CDC, art. 87, parágrafo único). Todos esses mecanismos e instrumentos servem para evitar uma “representatividade inadequada” e os prejuízos coletivos de uma lide temerária ou mal formulada. Mirra (2005, p. 48) também se questiona se os requisitos estabelecidos pela legislação para garantir a atuação dos legitimados coletivos asseguram, de fato, a “representatividade” desses entes como autênticos porta-vozes dos interesses de seus membros, cogitando da alteração da disciplina legal da matéria, para inclusão de outros requisitos ou até mesmo da atribuição ao juiz, no caso concreto, da tarefa de aferir a “representatividade adequada” da entidade. Embora também suscite tais questionamentos, o autor não desconsidera, no entanto, que a solução efetivamente adotada pelo legislador brasileiro foi a de enumerar em termos taxativos os requisitos de “representatividade adequada”, sem possibilidade de ampliação pelo juiz no caso concreto: Sem dúvida, não há como negar, o modelo brasileiro é pouco exigente no concernente aos requisitos de representatividade adequada das associações legitimadas para a ação civil pública, já que calcado em critérios meramente formais. Mas essa foi uma opção legislativa que encontra plena justificativa na necessidade de estimular os movimentos associativos a adotarem todas as providências ao seu alcance para a defesa do meio ambiente e de outros interesses difusos, inclusive pela via do Poder Judiciário. Por essa razão o ingresso em juízo nesse campo não pode ficar sujeito a controvérsias e questionamentos desnecessários quanto à admissibilidade da demanda coletiva e à representatividade dos entes legitimados, circunstância que, se se verificasse, constituiria fator de 197 desconfiança e temor para as organizações não governamentais, capaz de afastá-las das disputas judiciais. O sistema brasileiro de legitimação coletiva foi construído de forma a incentivar a participação judicial semidireta na defesa dos direitos coletivos, ou seja, a atuação dos entes intermediários da sociedade, mediante o preenchimento de requisitos taxativamente enumerados pela lei, mas, ao mesmo tempo, houve a preocupação em suprir as suas limitações. Tal sistema, conquanto apresente imperfeições, tem seus méritos e deve ser aplicado, ao menos até que sobrevenha alteração legislativa. 11.6. Fundamentos da posição adotada No contexto do Estado Democrático de Direito, em a garantia dos direitos fundamentais mais do que nunca se liga a idéia de democracia participativa 97 , questões como a dos interesses tuteláveis pelo mandado de segurança coletivo, da legitimidade para sua impetração e da extensão da sua coisa julgada, tornam-se objeto de especial interesse. É justamente frente aos interesses transindividuais e aos interesses individuais que podem ser tutelados coletivamente que se evidencia a superação da concepção de uma democracia representativa, para se ascender à chamada democracia participativa, onde a existência de representantes eleitos não exclui a participação dos cidadãos em geral, isolados ou em grupos (BARROSO, 2001, p. 131). Jayme (2011, p. 156) também ressalta a importância da garantia dos indivíduos contra os abusos do poder estatal, violadores de direitos fundamentais, no Estado Democrático de Direito: Desta maneira, a garantia dos indivíduos contra os abusos de poder estatal, violadores de direitos fundamentais, se realiza mediante a atuação da Jurisdição Constitucional das Liberdades, razão pela qual, assume caráter de imprescindibilidade para a legitimação política e jurídica do Estado Democrático de Direito. A transcendência dos direitos fundamentais decorre da circunstância desses direitos constituírem o patrimônio jurídico de toda a sociedade, tendo como único pressuposto para a titularidade a condição de ser humano. Esse caráter universalizante dos direitos fundamentais demanda, para lhes conferir efetividade, que os instrumentos destinados a assegurá-los sejam interpretados de modo a lhes conferir maior amplitude, porquanto destinados 97“Representando, como aponta Willis Santiago Guerra Filho, uma forma de superação dialética da antítese entre os modelos de Estado Liberal e de Estado Social (Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna – introdução a uma teoria social sistêmica), o Estado Democrático de Direito tem como principal escopo a transformação da realidade social rumo à igualdade substancial entre os indivíduos e ao exercício efetivo da cidadania, que se dá com a participação pública.” (ALMEIDA, 2003, p. 144) 198 a garantir, imediatamente, a eficácia da Constituição. Essa compreensão atribui significado concreto aos valores comuns superiores, consubstanciados na salvaguarda eficaz dos direitos fundamentais. Não podemos esquecer, como garantia Dinamarco (2005, p. 204), que um dos escopos políticos a serem atingidos com o exercício da jurisdição é o de canalizar a participação democrática na determinação dos destinos da sociedade política. Tal escopo está na base da ação popular, mas também na legitimação das associações para ajuizamento de demandas coletivas: Democracia é participação e não só pela via política do voto ou ocupação eletiva de cargos públicos a participação pode ter lugar. Todas as formas de influência sobre os centros de poder são participativas, no sentido que representam algum peso para a tomada de decisões; conferir ou conquistar a capacidade de influir é praticar democracia. (DINAMARCO, 2005, p. 208) Como bem observado por Mirra (2005, p. 41), a participação política por intermédio do Poder Judiciário tem plena justificativa como forma de assegurar vigilância e controle mais amplos sobre a legitimidade da ação ou omissão do Estado e de outras entidades, estatais ou não, no tocante aos interesses e direitos metaindividuais, cuja proteção ou sacrifício repercute inevitavelmente sobre toda sociedade. O autor ainda acentua que a atuação das associações, sobretudo as de interesse público ou social, demonstra a democratização da defesa de interesses coletivos, permitindo que outros entes da sociedade, que não somente entidades governamentais e o Ministério Público, tragam questões de relevância político-jurídica aos tribunais, auxiliando-os na solução de conflitos. Assumir uma postura democrática exige aceitar e promover o pluralismo na legitimação ativa das ações coletivas, estimulando a atuação dos corpos intermediários da sociedade, ou seja, das associações, entidades de classe, sindicatos e partidos políticos. Como já observado, atualmente, esses legitimados ajuízam um número muito pequeno de ações coletivas em relação ao Ministério Público. Além disso, como constatado no levantamento estatístico realizado (parte IV), muitas das ações por eles ajuizadas são extintas por ausência de legitimidade ativa, com base em interpretações bastante restritivas da atuação desses entes. São decisões que exigem autorização estatutária ou assembleiar, relação nominal dos associados, que o direito pleiteado seja exclusivo dos membros, seja de todos os membros etc. Os cidadãos, por meio das suas associações, podem participar dos destinos da sociedade política através da jurisdição, o que deve ser incentivado e não coibido, evitando-se interpretações restritivas quanto à legitimação ativa ou que criem exigências além daquelas 199 previstas pela lei, em desacordo com as regras básicas do processo coletivo e com a Constituição. Em acórdão do Supremo Tribunal Federal, MS 20.936, Min. Sepúlveda Pertence, DJ 10/09/1992, fica bastante visível o importante papel dos legitimados ativos do mandado de segurança coletivo na construção de uma democracia participativa: Trecho do voto do Min. Sepúlveda Pertence: É manifesto que as demandas reais da sociedade pluralista de massas deste século têm lançado por terra, mesmo no âmbito dos regimes capitalistas, alguns dogmas fundamentais do primitivo individual-liberalismo burguês, entre eles, particularmente, a aversão dos revolucionários do século XVIII às formações sociais intermediárias, que então se pretendeu proscrever, como intoleráveis resíduos do feudalismo. Hoje, ao contrário, o certo é que – dos sindicatos de trabalhadores às corporações empresariais e às ordens de diversas profissões, dos partidos às entidades de lobby de toda espécie, das sociedades de moradores às associações ambientalistas, dos centros de estudo aos agrupamentos religiosos, das minorias organizadas aos movimentos feministas – tudo, são formações sociais reconhecidas, umas e outras, condutos reputados imprescindíveis à manifestação das novas dimensões da democracia contemporânea, dita “democracia participativa” e fundada, não mais na rígida separação, sonhada pelo individualismo liberal de primeira hora, mas na interação cotidiana entre Estado e sociedade civil. Trecho do voto do Min. Celso de Mello: A nova Constituição do Brasil, ao deferir o direito de ação às entidades civis e associações comunitárias, acentuou o reconhecimento do Estado quanto à decisiva importância dos corpos intermediários na dinâmica do processo de poder. Essa postura do legislador constituinte traduz, de modo significativo, um aspecto central do momento político que vivemos, precisamente por ensejar, mediante instauração de processos coletivos, a participação democrática na gestão e proteção dos direitos, interesses e valores meta- individuais. Especificamente em relação aos partidos políticos, ressaltando a importância de sua atuação como corpos intermediários ante a sociedade civil e a sociedade política, o Min. Celso de Mello, na ADIn 1.407-2/DF, DJ 24/11/2000: Sabemos todos que é extremamente significativa a participação dos partidos políticos no processo de poder. As agremiações partidárias, cuja institucionalização jurídica é historicamente recente, atuam como corpos intermediários, posicionando-se, nessa particular condição, ante a sociedade civil e a sociedade política. Os partidos políticos não são órgãos do Estado e nem se acham incorporados ao aparelho estatal. Constituem, no entanto, entidades revestidas de caráter institucional, absolutamente indispensáveis à dinâmica do processo governamental, na medida em que, consoante registra a experiência constitucional comparada, “concorrem para a formação da vontade política do povo” (v. art. 21, n. 1, da Lei Fundamental de Bonn). 200 A legitimidade constitucional se dá na medida em que se institucionalizam na sociedade instrumentos democráticos, livres ao exercício da soberania popular. Daí a importância de que as normas referentes à categoria dos interesses, legitimação e extensão da coisa julgada no mandado de segurança coletivo sejam interpretadas da forma mais ampla possível, sem criar restrições que a própria Constituição não estabeleceu. A Constituição é norma fundamental, qualitativamente distinta de todas as demais normas por sua supremacia e fundamentadora de todo o ordenamento jurídico. A prevalência da Constituição sujeita a todos os cidadãos e Poderes Públicos, de modo que todo o ordenamento jurídico há de ser interpretado e aplicado em conformidade com os mandamentos constitucionais, principalmente os mais favoráveis aos direitos fundamentais 98 . Nesse sentido, Zaneti Júnior (2001, p. 397): A Constituição representa hoje um fundamento de validade de todas as normas tanto no critério de sua formação como na aferição de sua conformidade ex post factum com os ideais constitucionais no momento de sua aplicação prática. A Constituição substituiu o papel do Estado na expressão da soberania. Não é mais o Estado que controla as fontes do direito, por exemplo, na edição de leis ou Códigos, mas é a Constituição que orienta o ordenamento jurídico. Daí que Zagrebelsky fala em convergência para o centro, em conformidade do ordenamento jurídico com os direitos fundamentais expressos na Constituição, e não mais em uma pura e simples irradiação da força constitucional como vértice. A Constituição representa o ápice do ordenamento e o ponto de controle de sua coerência interna; são as leis que devem se movimentar no âmbito dos direitos fundamentais, não o contrário. Tais premissas refletem o nascedouro e a consagração do tão conhecido princípio da supremacia da Constituição, pedra basilar dos atuais Estados Democráticos de Direito, nos quais a Constituição, sendo um conjunto de normas fundamentais, alicerça toda a ordem jurídica do Estado. A garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, estabelecida nas Constituições, decorre essencialmente da superioridade das normas constitucionais sobre as leis ditas ordinárias e atos administrativos, que têm que obedecer rigorosamente aos ditames da Lei Maior. Por isso não se pode mais admitir o vício sinalizado por Freitas (2002, p. 678), frequentemente cometido no campo hermenêutico em nosso país, o de se interpretar a Constituição em face da lei, ao invés de se interpretar o ordenamento jurídico, em sua totalidade, à luz da norma constitucional. Da correção desse erro resulta uma importante 98 “Havendo dúvida, deve prevalecer a interpretação que, conforme o caso, restrinja menos o direito fundamental, dê-lhe maior proteção, amplie mais seu âmbito, satisfaça-o em maior grau.” (OLIVEIRA, 2004, p. 9) 201 mudança metodológica para o Direito Processual, a constitucionalização do processo, que para se operar em toda sua potencialidade, precisa, mais do que mera ênfase retórica na Constituição, que seja ela tomada como parâmetro para a aferição da legitimidade e validade das leis processuais. Nesse sentido Andrade (2010, p. 53-57): Diante das novas perspectivas constitucionais das garantias processuais, importante constatação, de plano, se impõe: a mudança metodológica na compreensão dos institutos processuais. Estes não mais se entendem com base na estruturação da legislação ordinária, ou com base no modelo “codicístico”. Os institutos processuais passam, agora, a ser entendidos e lidos sempre a partir da perspectiva da estrutura condicional do processo, ou seja, das garantias constitucionais mínimas do processo. Essa mudança metodológica – em que a compreensão do processo parte da Constituição ou da visão constitucional e não mais da legislação ordinária – importa em duas ordens de conseqüências: a supremacia constitucional condiciona, a) em primeiro plano, a atividade legislativa infraconstitucional de montagem, em abstrato, dos instrumentos processuais; e b) em segundo plano, a atividade de interpretação ou compreensão do arcabouço normativo infraconstitucional, promovida pelos operadores do Direito. (...) Em relação ao segundo ponto, opera-se importante modificação na leitura ou interpretação das normas processuais: primeiramente, deve-se conhecer o conteúdo constitucional do processo, as garantias que compõem o modelo processual adotado na Constituição. Isso porque o modelo constitucional condiciona, por completo, a leitura e interpretação do sistema processual montado na legislação ordinária. O modelo constitucional das garantias processuais, por meio do trabalho da doutrina e da jurisprudência, se articula para constituir um verdadeiro conjunto orgânico de normas – ou modelo constitucional – que vai além da literalidade das garantias processuais constitucionais isoladas, e se impõe, definitivamente, como modelo de referência para compreensão do sistema processual regulado na legislação infraconstitucional. Torna-se propriamente um modelo constitucional de processo que por si só se articula para formar núcleo de garantias autônomas – ou de conceitos fundamentais autônomos – o qual se irradia por todo o sistema jurídico e constitui o ponto de partida para interpretação e compreensão do ordenamento jurídico processual. (...) O sistema processual, portanto, deve ser sempre lido e entendido a partir da Constituição, ou seja, no sentido da Constituição para a legislação infraconstitucional. Qualquer problema de interpretação da legislação processual deve ser sempre resolvido a partir da Constituição para a legislação ordinária. Nunca o contrário, ou seja, da legislação ordinária para depois se remontar à Constituição. À Constituição, Lei Fundamental e de categoria mais alta, devem subordinar-se, não só os particulares, como os agentes públicos no exercício de suas atividades. Os Poderes Públicos violam a Constituição ao produzirem leis e atos normativos incompatíveis com a imperativa norma constitucional, pela omissão em editar leis exigidas pela mesma, ou ainda, pela interpretação e aplicação do ordenamento jurídico em desacordo à norma fundamental. Para essa última situação, o mandado de segurança é um dos instrumentos mais adequados 202 existentes em nosso ordenamento jurídico. O mandado de segurança, tal como o habeas corpus, o habeas data e o mandado de injunção, não são simples ações, uma vez que a Constituição atribuiu a esses mecanismos – na expressão cunhada por Watanabe – uma “eficácia potenciada”. Esse reforço de eficácia, que no mandado de segurança pode ser observado em circunstâncias diversas, como em seu procedimento abreviado, na restauração do direito in natura (e não pelo equivalente pecuniário) e no princípio da inviolabilidade do direito líquido e certo (GRINOVER, 1990b, p. 76), não pode ser desconsiderado na sua utilização. Grinover (1990b, p. 76) observa que, se no processo moderno é colocada em evidência a idéia de efetividade do processo (capítulo 14), isso é tanto mais verdade para os instrumentos potenciados pela Constituição, como o mandado de segurança. Assim, a regra que se impõe, para o legislador e o intérprete, na utilização dos instrumentos de eficácia potenciada, é a de que “somente serão consentâneos com a Lei Maior a norma e a exegese que consigam extrair do preceito constitucional a maior carga possível de eficácia e efetividade”. A Lei nº 12.016/2009, que agora faz parte do chamado “microssistema processual da tutela coletiva”, há de ser interpretada e aplicada, portanto, em conformidade com a Constituição, que dá unidade ao ordenamento jurídico. Ela deve ser aplicada de forma compreensiva e abrangente, tomando-se em conta os preceitos constitucionais, os demais diplomas legislativos que tratam do processo coletivo e não se olvidando dos avanços alcançados pela doutrina e jurisprudência. Com essas considerações que se dirigiu o trabalho ora apresentado. Para Álvaro de Oliveira (2004, p. 16), Já não se cuida, então, de mera interpretação conforme à Constituição, mas de correção da própria lei, orientada pelas normas constitucionais e pela primazia de valor de determinados bens jurídicos dela deduzidos, mediante interpretação mais favorável aos direitos fundamentais. Significa isto que, havendo dúvida, deve prevalecer a interpretação que, conforme o caso, restrinja menos o direito fundamental, dê-lhe maior proteção, amplie mais seu âmbito, satisfaça-o em maior grau. Nessa linha de raciocínio, evidentemente, o maior campo de utilização do mandado de segurança coletivo será a tutela de direitos individuais homogêneos, o que não quer dizer fique descartada a sua utilização em se tratando de direitos difusos ou coletivos stricto sensu. A técnica legislativa nos diz que quando a Constituição quer restringir ela expressamente o faz. 203 Ao criar o mandado de segurança coletivo, a Constituição inovou, não havendo razão para que esse novo instituto tutelasse os mesmos direitos tradicionalmente protegidos pelo mandado de segurança individual, ainda que sob uma perspectiva coletiva. Os casos que deram origem a criação do mandado de segurança coletivo realmente se tratavam de tutela de direitos individuais homogêneos, mas quando a Constituição criou o remédio não limitou sua utilização para a tutela desses. Em 1988, a necessidade de ampliação dos mecanismos de tutela dos direitos transindividuais, incluindo os difusos, estava em evidência. Já havia instrumentos para a sua tutela, mas o constituinte os considerou insuficientes. Dizer que o mandado de segurança coletivo tutela os mesmos direitos tuteláveis via mandado de segurança tradicional, apenas numa perspectiva coletiva, seria menosprezar o constituinte e o alcance que ele permitiu que o writ possuísse. Não é correto afirmar, a priori, que o mandado de segurança coletivo só possa ser usado para a tutela de um ou outro tipo de direito ou interesse. Não existe correlação necessária entre a legitimação, o tipo de direito e o instrumento a ser usada para sua tutela. Ocorrido o fato jurígeno, dependendo de seus efeitos, poderá se dizer tratar de um ou outro tipo de direito violado/ameaçado e, somente num momento posterior, será possível, se as circunstâncias do fato se enquadrarem no comando insculpido no art. 5º, LXX e LXIX, da Constituição, dizer que será cabível o mandado de segurança coletivo. Como demonstrado, a exigência de direito líquido e certo não constitui óbice para a tutela de direito difuso. O princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva, previsto no art. 83 do Código de Defesa do Consumidor, garante que “Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Esse princípio, aliado à garantia constitucional da inafastabilidade de acesso à justiça, disposta no inciso XXXV do art. 5º da Constituição, garante a possibilidade de tutela de direitos difusos através do mandado de segurança coletivo. O argumento de que a ação civil pública seria suficiente para a tutela dos direitos difusos não pode prosperar. Uma visão atual do Direito Processual não pode admitir que a existência de um tipo de ação (como instrumento) para tutela do direito violado/ameaçado exclua a possibilidade de outros instrumentos igualmente adequados para a tutela do mesmo direito. Nesse sentido, Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 29): 204 Queremos dizer: de uma mesma situação de direito material afirmada surgem diversas tutelas judiciais possíveis como corolário desta orientação, ou seja, a ação não é mais “uma” ou “una”. Ao contrário, antes traduz sua potencialidade em diversas eficácias voltadas à efetividade da tutela jurisdicional. Daí ser possível ajuizar, partindo do mesmo fato, da mesma lesão ao direito abstratamente considerado: uma ação civil pública para a tutela de um direito difuso, coletivo stricto sensu ou individual homogêneo, pleiteando, conforme o caso, a condenação genérica, uma tutela específica para retornar as coisas ao estado anterior (mandamental ou executiva) ou, ainda, o dano moral decorrente da lesão aos interesses da coletividade. O que importa é que a tutela seja adequada a realizar o direito afirmado e dar azo á efetividade da pretensão processual levada a juízo. O exemplo citado pelos autores é de um mesmo instrumento que permite a tutela de vários tipos de direito, mas da argumentação utilizada se extrai também que um mesmo direito possa dar margem a utilização de vários instrumentos processuais, como garantido por Silva e Lehfeld (2010, p. 150): Nesse sentido, não nos mostra procedente que um instrumento processual anule, exclua, afaste o uso de outro se o intuito deve ser exatamente o oposto, qual seja: o de dotar o ordenamento jurídico de instrumentos efetivos de tutela coletiva, mesmo que isso venha a implicar a existência de mais de um meio processual para a defesa dos mesmos direitos. Tratando especificamente sobre a utilização do mandado de segurança coletivo na tutela de direitos difusos, temos Uggere (1999, p. 86): Assim, não se pode conceber qualquer promoção no sentido de buscar justificativas para a não admissão do mandado de segurança coletivo na defesa dos interesses difusos, com suporte no incorreto juízo de que a ação civil pública, a ação popular e outros instrumentos processuais garantiriam esta defesa de interesses metaindividuais. O mandado de segurança coletivo é uma ação de procedimento especial, voltada à tutela de um tipo específico de direito violado, aquele violado ou ameaçado pelo Poder Público, e a existência de outros instrumentos processuais para a garantia desse mesmo direito não exclui a possibilidade de sua utilização. Assim, não vemos impedimento, por exemplo, de que seja impetrado mandado de segurança coletivo para impedir que determinado Município distribua remédios não aprovados pela ANVISA ou contra a concessão de alvará de demolição de imóvel localizado em área de proteção. Independente da categoria de direito a ser protegido, se forem precisamente comprovados os pressupostos processuais atinentes ao writ, como fatos absolutamente incontroversos e com respectiva comprovação documental, não há razão para desconhecê-lo. 205 Logo, se um direito difuso a ser objeto de um writ configurar esses requisitos, não há razão para sua negativa. Outras interpretações restritivas, já mencionadas, como obstáculos à legitimação e a amplitude da coisa julgada, também não podem ser admitidas, vez que retiram do instrumento a eficácia potenciada que a Constituição lhe atribuiu. As únicas restrições admitidas na utilização do mandado de segurança coletivo são aquelas que a própria Constituição prevê. Assim, é preciso combater também as limitações legais inconstitucionais, muitas veiculadas sob a forma de medidas provisórias, como a proibição de concessão de liminares em ações coletivas em determinas matérias, sobretudo tributárias e previdenciárias, impossibilidades absolutas de liminar inaudita altera parte, restrições territoriais da coisa julgada coletiva etc. Restrições, geralmente, criadas pelo Poder Público como mecanismo de auto-imunização de seus atos ou na defesa de interesses econômicos escusos. Agir noutro sentido configura resistência autoritária do Poder Executivo às conquistas do Direito Processual Coletivo (ALMEIDA, 2003, p. 591): Posturas ideológicas neoliberais autoritárias como essas, que atingem as conquistas do direito processual coletivo comum brasileiro – instrumento fundamental do processo de democratização –, não podem ser aceitas e precisam ser combatidas principalmente pelos operadores do Direito, pois isso mitiga o Estado Democrático de Direito e impede que o Ministério Público e o Poder Judiciário cumpram com o seu papel de legítimos órgãos constitucionais de efetivação dos direitos e garantias sociais fundamentais violados ou ameaçados de lesão. (2003, p. 598) O papel do Judiciário é fundamental, reconhecendo a inconstitucionalidade dessas medidas autoritárias e antidemocráticas, prestigiando a atuação das entidades associativas, facilitando o acesso à Justiça e dando a adequada dimensão aos modernos instrumentos de tutela coletiva. Para Theodoro Júnior (1997, p. 122), o Estado tem o dever de ampliar as bases democráticas da experiência social, criando organismos públicos para tutela das classes mais indefesas, hipossuficientes e incentivando a tutela coletiva. Deve o Poder Judiciário, inclusive, se afastar de sua neutralidade na resolução dos conflitos, adotando uma ideologia de proteção da parte fraca dentro de um confronto onde é inegavelmente agredido um interesse coletivo e se caracteriza uma situação de realidade social adversa. 206 12. O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO COMO NOVA GARANTIA CONSTITUCIONAL, ÚNICA NO DIREITO COMPARADO Uma das primeiras indagações trazidas com a criação do mandado de segurança coletivo na Constituição Federal de 1988 foi se o mandado de segurança coletivo seria uma nova ação constitucional ou apenas uma espécie do writ já presente em nosso direito público desde a Constituição de 1934. A maior parte da doutrina se posicionou no sentido de que não se trata de novo instituto, senão vejamos: A Carta Constitucional recentemente promulgada, em sua tendência de garantir direitos por meios diversificados, não criou, com efeito, um instituto novo. Nem mesmo ampliou o universo dos titulares do direito à garantia, dado que todos, brasileiros e estrangeiros residentes (com interesses) no Brasil, já podiam pleiteá-la. Limitou-se, isto sim, a grupalizar determinados indivíduos e dar ao grupo a capacidade processual. No mais, o mandado de segurança coletivo é o mesmo cinqüentenário mandado de segurança, adornado com um adjetivo. (SIDOU, 1989, p. 200) Não se cuida, cumpre desde logo dizer e fundamentar, de nova garantia constitucional. Estamos diante do velho mandado de segurança, ampliado em termos de legitimação para sua propositura, dessa legitimação nova resultando repercussões sobre a estrutura do procedimento e sobre a decisão de mérito nele proferida. (PASSOS, 1989, p. 7) O mandado de segurança coletivo nada mais é do que o mandado de segurança tradicional, criado em 1934, com algumas alterações, capazes de facilitar o processo das causas de interesse de muita gente e, também, alargar o campo do objeto do mandado de segurança. (BARBI, 1996, p. 60) Pelo que se vê, o mandado de segurança coletivo possui regime vinculado, pois, de acordo com a sistemática da Constituição de 1988, ele não se distancia das bases constitucionais do writ individual. O constituinte não criou um instituto independente e isolado, apenas ampliou a legitimidade ativa, aumentando o spectrum dos impetrantes. Não se trata, portanto, de uma figura completamente autônoma, estanque daqueloutra, porque, conforme se disse, o inc. LXX, do art. 5º, só pode ser entendido em íntima conexão com o inc. LXIX do mesmo dispositivo. (BULOS, 1996, p. 35) O MSC nada mais é do que a possibilidade de impetra-se o MS tradicional por meio de tutela jurisdicional coletiva. O adjetivo „coletivo‟ se refere à forma de exercer-se a pretensão mandamental, e não à pretensão deduzida em si mesma. O MSC se presta à tutela de direito difuso, coletivo ou individual. O que é coletivo não é o mérito, o objeto, o direito pleiteado por meio de MSC, mas sim a ação. (NERY JÚNIOR; NERY, 2006a, p. 139) A primeira afirmação, embora possa parecer um truísmo, é a de que não estamos frente a um novo instituto jurídico – o mandado de segurança 207 coletivo, mas sim a Constituição Federal de 1988 veio, principalmente, inovar quanto ao elenco das pessoas capacitadas ao ajuizamento da garantia mandamental, para tanto utilizando a técnica da substituição processual. (CARNEIRO, 2009, p. 10) Nenhum elemento novo foi invocado pela CF/88 que evidenciasse o intento de criar um writ substancialmente diverso daquele já existente e definido pelo inciso LXIX.”, ainda cita Eduardo Arruda Alvim: “o mandado de segurança coletivo representa uma inovação constitucional „apenas quanto à legitimidade‟, que, em lugar do titular dos direitos violados, passou a determinadas instituições associativas. (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 6) No mesmo sentido: Silva Dinamarco (2002, p. 688), Meirelles (2005, p. 25), Mancuso (1992, p. 192) e Tucci (1990, p. 36). Buzaid é criticado por ver no mandado de segurança coletivo um instituto novo para, logo após, afirmar a existência de duas espécies de mandado de segurança: o individual e o coletivo. Zaneti Júnior garante que se o mandado de segurança coletivo é espécie não poderia ser instituto novo, assim como não poderia ter objeto diferenciado. Trata-se, a seu ver, do mesmo instituto, alterado em relação à abrangência (agora também como ação coletiva) e com legitimação expressa em lei (ZANETI JÚNIOR, 2001, p. 56). Discordamos de Zaneti Júnior neste ponto, pois a simples qualificação do mandado de segurança coletivo como espécie de mandado de segurança não impede sua caracterização como um instituto novo. A nosso ver, a modalidade (ou espécie como se prefere chamar) coletiva de mandado de segurança deve ser considerada novo instituto, sobretudo para fins didáticos. Não se questiona que o mandado de segurança coletivo em nada difere do mandado de segurança individual, previsto no art. 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal, quanto aos requisitos que se fazem necessários ao seu ajuizamento e a grande parte de seu procedimento. Tal como se passa com o individual, caberá mandado de segurança coletivo para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. Realmente a forma de apresentação do mandado de segurança coletivo na Constituição, sem nada dizer que não sua legitimação ativa, conduz a esse entendimento. O mandado de segurança coletivo não se limita a tutelar somente os mesmos direitos que, no sistema constitucional anterior, poderiam ser reclamados individualmente por seus titulares. Ele tem objeto material diferenciado. Como visto, além dos direitos individuais homogêneos que poderão ser tutelados coletivamente, também os direitos coletivos em 208 sentido estrito e os difusos poderão ser tutelados pelo mandado de segurança coletivo. Daí a acertada nomenclatura do novo instituto, a nosso ver, considerando que o direito coletivo, em sentido lato, agrega todos os direitos tuteláveis pelo mandado de segurança coletivo. Como conseqüência do objeto material diverso, a legitimidade e a coisa julgada também são diversas no mandado de segurança coletivo, o que imprime ao instituto um regime extremamente diferenciado daquele do mandado de segurança individual. Embora Zaneti Júnior (2001, p. 57) não o considere instituto novo, apresenta como notas distintivas entre as duas espécies “não só a legitimação ou o direito tutelado, mas toda a gama de diferenças ontológicas que decorrem da alteração da legitimidade ativa e da tutela de direitos meta-individuais”. Também garante que “A afirmação de que apenas se alterou a legitimação ativa desconhece ou desvaloriza as profundas conseqüências procedimentais provocadas por tão „simples alteração‟.” (ZANETI JÚNIOR, 2001, p. 79). Ferraz vê no art. 5º, LXX da Constituição nova categoria de mandado de segurança: Divergimos desde uma posição de princípio quanto à natureza da ação (vemos, in casu, nova categoria de mandado de segurança com condições próprias da ação: legitimação ativa e passiva e interesse de agir especiais e peculiares; como até peculiar também o objeto da ação). (1996, p. 46) Uggere (1999, p. 63) argumenta que não é suficiente para a classificação do mandado de segurança coletivo como espécie da segurança tradicional “a simples identidade de pressupostos constitucionais aplicáveis aos dois institutos”, considerando-o uma “nova ação de natureza própria assecuratória de interesses sociais”. Para ele, a necessária observância dos pressupostos constitucionais do mandado de segurança tradicional ao se impetrar mandado de segurança coletivo não é fator determinante na classificação do instituto coletivo como simples desdobramento do instituto singular. Outras questões, mais relevantes, devem ser observadas, tais como a distinta legitimação ativa, o objeto, a natureza dos interesses tutelados e a posterioridade da criação do mandado de segurança coletivo. Para Gidi (1995, p. 78), (...) o fato de ser espécie do mandado de segurança tradicional não autoriza a conclusão a que muitos chegam de que a única diferença entre ambos está na legitimidade de agir, uma vez que essa ampliação de legitimidade resulta em grave repercussão na estrutura do próprio processo (assim como na ação e na jurisdição). Se é verdade que a CF não cuidou de delimitar o âmbito e a função do mandado de segurança coletivo, limitando- se a dispor sobre a legitimidade para sua propositura, não menos verdade é que, ao fazê-lo, alterou-lhe significativamente a estrutura, transformando-o em autêntica ação coletiva. 209 O mandado de segurança coletivo está tão distanciado do mandado de segurança tradicionalmente conhecido quanto uma ação coletiva está de uma ação individual. Se, por um lado, parte do procedimento e os pressupostos de admissibilidade são os mesmos para ambas as figuras, por outro lado, o mandado de segurança coletivo, como ação coletiva que é, deverá ter certas peculiaridades no que diz respeito ao pedido, ao procedimento, à sentença, à coisa julgada, à liquidação e à execução, por exemplo. Para Zavascki (2010, p. 279), mandado de segurança coletivo é mandado de segurança, mas também é uma ação coletiva, e isso faz toda diferença. A nova e importante aptidão conferida à ação constitucional tem conseqüências trancendentais no campo do processo, deixando a nova espécie com dupla face: a) a de uma ação sumária, que por isso mesmo deve guardar os contornos essenciais do mandado de segurança; mas também b) a de uma demanda coletiva que, sob pena de comprometer a peculiar natureza que assume com essa configuração, não se presta a exame particular e individualizado dos direitos subjetivos objeto da proteção. De acordo com o MS 21.098/DF, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, Min. Celso de Mello, o mandado de segurança coletivo “se subsume às mesmas exigências e aos mesmos princípios básicos inerentes ao mandamus individual”. A nosso ver, as exigências podem ser consideradas as mesmas, se tomadas como seus pressupostos de admissibilidade (condições da ação), mas os princípios aplicáveis ao writ coletivo não são aqueles inerentes ao mandamus individual. Conforme observado por Almeida (2003, p. 15), a doutrina não faz uso corrente da expressão Direito Processual Coletivo, porque ainda não se encontra, totalmente sedimentada, a idéia da existência de um ramo novo do Direito, com princípios e regras próprios. Acatamos a idéia proposta pelo autor de estudo do Direito Processual Coletivo como ramo autônomo do Direito Processual e, portanto, fundado em princípios e regras próprios, distintos daqueles que fundamentam o Processo Civil tradicional 99 . Essa idéia de Almeida não nega a unidade do Direito Processual, mas pretende que o Direito Processual Coletivo, tal como o Direito Processual Civil e o Direito Processual Penal, seja sistematizado dentro de um conjunto de princípios e regras próprias, que viabilizem a devida interpretação e aplicação das normas tuteladoras dos direitos massificados. Até mesmo porque o Direito Processual Coletivo está enquadrado no Direito Processual Constitucional, sobre o qual está fundamentada toda a Teoria Geral do Processo, incluindo: 99 Idéia também defendida por Donizetti e Cerqueira (2010, p. 26). 210 (...) o devido processo legal, o acesso à Justiça, o contraditório e outras regras e princípios constitucionais, que devem inspirar e informar todo o direito processual, especialmente o coletivo, que tutela os direitos e interesses primaciais da sociedade.” (ALMEIDA, 2003, p. 19) Assim, segundo a natureza da pretensão, o Direito Processual se dividiria em três ramos: Direito Processual Penal, Direito Processual Civil e Direito Processual Coletivo; os três ligados em uma unidade constitucional do processo. A ação, a jurisdição, o processo, a defesa, o procedimento, a coisa julgada, dentre inúmeros outros elementos, assumem características específicas na tutela jurisdicional coletiva, distinguindo-a das tutelas individuais civil e penal. Além disso, o objeto material do Direito Processual Coletivo, a tutela de direito coletivo em sentido amplo, é essencialmente diverso do objeto material do direito processual individual. Mesmo para aqueles que não consideram o processo coletivo ramo autônomo, como Leonel, garantem a importância da compreensão correta da abrangência do processo coletivo e de suas peculiaridades: Nos conflitos de massa que caracterizam a sociedade moderna e a cada dia incidem em maior intensidade, abandonando as típicas confrontações individualísticas entre sujeitos determinados, fica patenteada a imprescindibilidade de compreensão dos instrumentos postos pelo legislador à disposição dos interessados, a fim de que seja viável a adequada defesa de tais interesses ou direitos de natureza não individual. (LEONEL, 2002, p. 16) Em razão das especificidades das relações de natureza coletiva, há a necessidade de novas formas de tutela, como diz Leonel (2002, p. 23): Pode-se afirmar que essa necessária revisão de métodos e instrumentos não chega ao ponto de fundar-se uma nova ciência, mas simplesmente adaptá-la às necessidades identificadas no plano do direito substancial. (...) Em síntese, há que se ter em mente que, para uma adequada tutela coletiva, não se pode prescindir da consideração das especificidades das relações matérias tuteladas. Somente com a reaproximação do instrumento – processo coletivo – a seu escopo – atendimento das questões surgidas na vida de relação –, é que será possível conferir à evolução do ordenamento a justa dimensão, adequando o processo as suas finalidades. A nosso ver, se é imprescindível redimesionar os institutos que tiveram origem no processo clássico, “como a legitimação para agir, a extensão da coisa julgada, o objeto litigioso do processo, entre outros”, tal como afirmado por Leonel (2002, p. 26), um novo 211 ramo da ciência processual acaba surgindo, dada a importância desses institutos na relação jurídico processual. Almeida observa que a defesa do Direito Processual Coletivo como ramo próprio do Direito Processual é corroborada pela reaproximação entre direito material e direito processual, hoje defendida como necessária pela doutrina. Prova clara dessa reaproximação são as tutelas jurisdicionais diferenciadas, criadas pelo legislador na busca da efetividade do processo. Tal assunto será melhor analisado no capítulo 14. De acordo com o autor, não se justifica a ingerência indevida das concepções ortodoxas liberais individualistas do século XIX no Direito Processual Coletivo. Por longo tempo se tentou adaptar, ajustar as regras do processo individual ao processo coletivo, gerando problemas e polêmicas intransponíveis. A tentativa de utilização impensada do Direito Processual Civil clássico para dar resposta às tutelas jurisdicionais coletivas resultou em verdadeiras barreiras à proteção dos direitos coletivos. Daí a sua proposta de criar uma roupagem nova e exclusiva para o Direito Processual Coletivo. A autonomia do Direito Processual Coletivo como novo ramo do Direito Processual teria se consagrado a partir da Constituição de 1988, que conferiu, em vários dispositivos, dignidade constitucional aos direitos e interesses coletivos, ao mesmo tempo em que assegurou o acesso incondicionado e ilimitado à justiça, não mais o restringindo à tutela de direitos individuais. A Constituição consagrou expressamente a maioria das ações coletivas, além de permitir a utilização de inúmeras outras ações para a tutela de direitos coletivos (ações de natureza ambivalente). O Direito Processual Coletivo teria se reforçado ainda mais como novo ramo do Direito Processual com a entrada em vigor da Lei nº 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor, que estabeleceu, juntamente com a Lei de Ação Civil Pública e a Constituição Federal, um microssistema de tutela de direitos e interesses de massa. Da conjugação desses diplomas normativos se extrai que, hoje, qualquer interesse coletivo em sentido amplo poderá, em caso de lesão ou ameaça, ser tutelado jurisdicionalmente. Contribuindo para a sistematização desse novo ramo do Direito Processual, Almeida conceitua o processo e a ação coletiva, delimita o objeto formal e material do processo coletivo, enumera os elementos, as condições da ação coletiva e os seus pressupostos processuais, sintetiza o procedimento e enumera todos os princípios aplicáveis à tutela coletiva, sejam eles comuns a todos os ramos processuais (princípios constitucionais do processo) ou específicos do Direito Processual Coletivo. Tudo isso ressaltando sempre a necessidade de revisitação dos principais institutos processuais, “adequando-os à nova função 212 jurisdicional do Poder Judiciário, que, de órgão neutro de resolução de conflitos interindividuais, passa a assumir papel político fundamental para a transformação da realidade social com justiça.” (ALMEIDA, 2003, p. 609) O desenvolvimento desse novo ramo do Direito Processual, de acordo com Almeida (2003, p. 144), visa alcançar a adequada proteção e a efetividade dos direitos coletivos fundamentais, transformando a realidade social e contribuindo para a real implementação do Estado Democrático de Direito. A nosso ver, a autonomia do Direito Processual Coletivo como novo ramo do Direito Processual, defendida por Almeida, serve de embasamento para se sustentar a existência de uma nova espécie de garantia constitucional com a criação do mandado de segurança coletivo pela Constituição de 1988. É o que também sustenta Ferraresi: O mandado de segurança coletivo não é apenas um tipo de mandado de segurança em que se disciplinou expressamente a legitimação ativa. Trata- se de um modelo processual coletivo, que segue, porém, os pressupostos específicos do mandado de segurança singular – desde que não contrarie sua natureza coletiva, claro. Pensar que o legislador constitucional trouxe no inciso LXX do art. 5º apenas um mandado de segurança impetrado por entes coletivos, e só, consistiria em tornar letra morta o texto constitucional. (FERRARESI, 2010, p. 74) O mandado de segurança coletivo, essencialmente diverso do mandado de segurança tradicional, constitui figura autônoma, cujo estudo deve ser realizado pelo Direito Processual Coletivo 100 . Diante da autonomia do Direito Processual Coletivo, idéia compartilhada neste trabalho, a posição coerente é a de que o mandado de segurança coletivo se trata de novo writ, merecedor de tratamento autônomo. Não se trata de um simples jogo de palavras. Entre dizer “que é o mesmo com alguns aspectos diferentes” e “que é diferente com alguns aspectos comuns” há uma diferença essencial. Acredita-se que os aspectos diferentes (a legitimação ativa, o objeto material, o regime da coisa julgada), ao se relacionarem diretamente ao direito material tutelado e implicarem em drásticas alterações no regime jurídico processual, sejam mais relevantes do que os aspectos comuns. Os aspectos comuns, as condições da ação, previstas no inciso LXIX, e grande parte do procedimento, são, a nosso ver, de caráter nitidamente secundário. A legitimação ativa, longe de ser o simples diferencial do mandado de segurança coletivo, é implicação de seu objeto também diverso, que, por sua vez também produz diversa 213 coisa julgada, tornando esse remédio um instrumento único e diferenciado de tutela de direitos. A nosso ver, esses “traços diferenciadores impostos pelos caracteres particulares de toda e qualquer tutela coletiva”, a “legitimação extraordinária para sua propositura”, as “repercussões sobre a estrutura do procedimento e sobre o alcance e eficácia do respectivo julgamento” (THEODORO JÚNIOR, 2010, p. 7) fazem do mandado de segurança coletivo nova garantia constitucional. Não é o simples fato de estar em inciso separado do tradicional que torna o mandado de segurança coletivo nova garantia constitucional, a grande diferença entre eles está em sua natureza coletiva. Sobre a disposição espacial do mandado de segurança coletivo na Constituição, vale ressaltar que no Anteprojeto de Constituição da Comissão de Sistematização o instituto era um parágrafo do artigo que se referia ao mandado de segurança. Isso serve para corroborar o entendimento de que, dada a disposição diversa, em inciso isolado, na redação final da Constituição, o mandado de segurança coletivo se trata de nova ação, embora essa não seja a razão central de tal afirmação. Como garante Pacheco (2002, p. 322), no Título III sobre as garantias constitucionais, o mandado de segurança coletivo constava como parágrafo do dispositivo sobre mandado de segurança, o que lhe garantia a aplicação de todas as condições e requisitos estabelecidos no caput do artigo 101 . Dizia o art. 36: Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, individual ou coletivo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, seja o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado. E no parágrafo único que: O mandado de segurança coletivo, para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus, pode ser impetrado por partidos políticos, organizações sindicais, associações de classe e associações legalmente constituídas, em funcionamento há, pelo menos, um ano, na defesa dos interesses de seus membros ou associados. O mandado de segurança coletivo tem o mesmo objeto do mandado de segurança tradicional, ou seja, a tutela de direito líquido e certo violado ou ameaçado pelo Poder 100 Esse entendimento não é compartilhado por Almeida (2003, p. 272), que considera o inciso LXX da Constituição apenas uma regra de legitimação coletiva para a impetração de mandado de segurança. 101 Ressalte-se que transformado o parágrafo em inciso LXX do art. 5º, apesar de não repetidos os requisitos e condições do inciso LXIX, esses continuam sendo aplicáveis ao mandado de segurança coletivo: “A nova disposição, todavia, não elide a necessidade de ater-se aos pressupostos estabelecidos no item LXIX do art. 5º, que se referem ao mandado de segurança, sem distinção”. Para Pacheco (2002, p. 323), que não considera o instituto autônomo, melhor teria sido a disposição do instituto como parágrafo. 214 Público, mas os direitos por ele tutelados podem ser difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos (e isso faz toda a diferença). No entanto, por compartilharem o mesmo objeto, tudo o que foi dito acerca da especificidade do objeto do mandado de segurança, na tutela de direitos públicos subjetivos, serve também para o mandado de segurança coletivo. Assim, o mandado de segurança coletivo é instituto único no Direito Comparado, porque garante uma tutela sumária e exclusiva contra o Poder Público e, mais ainda, de forma coletiva. Note-se que houve tentativa de introdução no ordenamento jurídico brasileiro de um mandado de segurança contra ato de particulares. Era o que previa o art. 85 do Código de Defesa do Consumidor 102 . Tal dispositivo, no entanto, foi vetado pelo Presidente da República, sob argumento de que a ação de mandado de segurança deve destinar-se exclusivamente à tutela de direitos públicos subjetivos. O mandado de segurança coletivo apresenta objeto exclusivo e regime diferenciado de legitimação ativa e coisa julgada, fazendo com que ele não se confunda com nenhum outro instrumento existente no Direito Comparado, nem mesmo com as class actions norte- americanas. 102 “Art. 85. Contra atos ilegais ou abusivos de pessoas físicas ou jurídicas que lesem direito líquido e certo, individual, coletivo ou difuso, previsto neste Código, caberá ação mandamental, que se regerá pelas normas da lei do mandado de segurança.” 215 PARTE III 13. MODERNAS TÉCNICAS E INSTRUMENTOS PROCESSUAIS A concessão do mandado de segurança conduz a fruição plena, in natura e integral do direito ameaçado ou violado. Busca-se com ele, não a reparação de um direito já irremediavelmente lesionado, mas à conservação do pleno exercício, fruição e gozo do direito em seu estado puro, como garante Bueno (2002, p. 9). O mandado de segurança dirige-se à proteção do direito em si mesmo considerado e não no seu sucedâneo patrimonial 103 . A possibilidade de concessão de liminar no mandado de segurança, inclusive com efeitos antecipatórios do mérito, é característica inerente ao mandado de segurança. Somente por meio dela é possível impedir os efeitos da autoexecutoriedade do ato administrativo violador do direito. Como garante Celso Ribeiro Bastos (1978, p. 23), também citado por Leyser (2002, p. 91): A antecipação de tutela é uma providência cautelar destinada a preservar a possibilidade de satisfação, pela sentença, do direito do impetrante. Em outras palavras, visa a impedir que o retardamento da decisão final venha a torná-la inócua, em razão da irreparabilidade do dano sofrido. Em decorrência, sobretudo da autoexecutoriedade do ato administrativo, alterações podem ter lugar no mundo real, fenomênico, de molde a tornar inócua a decisão jurisdicional a final proferida. Por essa razão, no mandado de segurança, a liminar não é, na maioria dos casos, apenas uma satisfação antecipada do pedido, mas a única garantia de que o direito in natura possa ser prestado, tal qual como foi violado ou ameaçado. A possibilidade de concessão da liminar, aliada ao seu rito sumaríssimo, sempre foram os grandes diferenciais do mandado de segurança em relação a outros instrumentos processuais, como observado por Ovídio Baptista da Silva (1990, p. 135): A virtude do mandado de segurança e o lugar destacado que ele ocupa, dentre todos os outros instrumentos de tutela jurisdicional de direitos, decorre da simplicidade e presteza de seu procedimento, onde se destaca a possibilidade da tão sonhada medida liminar, capaz, em muitas 103 De acordo com Nunes (1980, p. 38): “O mandado de segurança dá ao titular do direito a prestação in natura. É um procedimento ad ipsam rem, que não comporta a substituição da prestação devida. O direito é assegurado, no seu exercício, e não pela forma indireta da equivalência econômica, princípio pela qual se define o ressarcimento da inexecução da obrigação, scilicet violação da lei. O ato violador é removido como obstáculo para que se restabeleça a situação jurídica preexistente, e não apenas anulado com os efeitos reparatórios conhecidos”. 216 circunstâncias de nossa experiência forense, de prestar imediata satisfação ao direito litigioso, num procedimento sem audiência, onde exclusivamente se admite a produção de prova documental. A partir de 1994, foram realizadas inúmeras alterações legislativas no Código de Processo Civil, todas voltadas à garantia de maior efetividade ao processo. O objetivo não foi o de introduzir novos mecanismos, como vinha ocorrendo até então 104 , mas de aperfeiçoar ou ampliar os já existentes, adequando-os às novas exigências da ciência processual. Para Ramos (2010, p. 241), (...) o regime do processo civil brasileiro, em seu período pós-reforma do CPC, verdadeiramente reformulou o processo estatal no qual se exerce a jurisdição civil, fazendo com que as peculiaridades tratadas em tipologias fechadas nos mais diversos procedimentos especiais fossem perdendo espaço para as novas técnicas de manejo e obtenção da tutela jurisdicional. Refiro- me, no particular, ao feixe normativo formado pelos atuais arts. 273, 461, 461-A, e respectivos parágrafos, todos do CPC. Este feixe normativo viabiliza ao jurisdicionado – e consequentemente dotam o juiz de poder para tanto – o alcance da tutela jurisdicional de seus direitos fundamentais ou não, através da via mais flexível, permeável e atípica, daquilo que desde 1994 chamamos de antecipação de tutela ou tutela antecipada, que por si só não encerra, a não ser pelo nomen juris, qualquer novidade entre nós, sendo que a própria liminar em mandado de segurança, a liminar possessória, dentre outros antigos exemplos esparsos, já representavam verdadeiras técnicas de antecipação de tutela restrita aos respectivos procedimentos. Dentre as modernas técnicas de aperfeiçoamento do sistema implantadas com as reformas, tem destaque a generalização da tutela antecipada, introduzida pela Lei nº 8.952/94 no art. 273 do Código de Processo Civil, que estendeu, a até então excepcional fórmula da antecipação de tutela, a todas as situações sujeitas ao processo cognitivo. O que era possível apenas em determinados procedimentos especiais, como no mandado de segurança, possessórias e outras, passou a ser admitido em qualquer hipótese, inclusive nas ações coletivas, desde que preenchidos os requisitos do art. 273 do CPC. De acordo com tal dispositivo: Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; 104 Zavascki (2008, p. 15) refere-se a duas fases de reforma do sistema processual civil brasileiro: uma iniciada em 1985, caracterizada pela introdução de instrumentos até então desconhecidos do direito positivo, destinados a dar curso a demandas de natureza coletiva e tutelar direitos transindividuais, as chamadas “ações civis públicas” e “ações civis coletivas”; e outra, desencadeada a partir de 1994, com as reformas pontuais do Código de Processo Civil, orientada para atribuir maior efetividade aos mecanismos processuais existentes. 217 A Lei nº 8.952/1994 também previu expressamente a possibilidade da antecipação de tutela nas obrigações de fazer, não fazer e entrega de coisa, nos arts. 461 §3º e 461-A, §3º. Leonel (2002, p. 297), referindo-se às modificações do Código de Processo Civil, pontua que: (...) tornou-se possível a concessão de qualquer espécie de medida provisória ou de urgência – cautelares conservativas ou antecipação – no âmbito do processo principal, sem a necessidade de demanda autônoma. Mas não deixou de ser possível a obtenção dos mesmos efeitos de forma autônoma no procedimento previsto para o “processo cautelar”. A inserção de tais dispositivos no diploma processual demonstra a preocupação com o problema da adequação da tutela jurisdicional, não apenas no aspecto da concessão de provimentos precisos, mas também de provimentos oportunos (LEONEL, 2002, p. 294). Leyser (2002, p. 17), citando Zavascki, garante que a maior preocupação com a efetiva tutela de direitos garantiu a introdução no sistema processual positivo da antecipação dos efeitos da tutela de mérito, “um dos mecanismos para obtenção de concordância prática, de formas de convivência, entre o direito fundamental à efetividade do processo e o direito fundamental à segurança jurídica”. Além da generalização da tutela antecipada, com as recentes reformas e modificações incorporadas no Código de Processo Civil, têm-se cada vez mais enfatizado os mecanismos de tutela específica, de forma a dar maior efetividade às decisões. Rompendo o dogma clássico de que o inadimplemento da obrigação conduz necessariamente às perdas e danos, a tutela específica ganhou gradativamente terreno e desenvolvimento no Direito brasileiro. E não há nenhum impedimento para injunções contra o Poder Público em nosso ordenamento (NUNES, 1980, p. 37). Soma-se a isso o sincretismo operado com as recentes reformas, que possibilita ao jurisdicionado, num único processo, a tutela completa de seu direito, sem a necessidade da instauração de outro processo para se obter a tutela executiva 105 . Nesse sentido, a Lei nº 8.952/94 também deu nova redação ao caput do art. 461, que trata do cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, prevendo que: 105 Com a Lei nº 11.232/2005 até mesmo as condenações a pagamento de quantia certa passaram a ser realizadas numa mesma base processual, sem necessidade de processo executivo autônomo. Para este trabalho, no entanto, essa alteração legislativa não tem grande relevância, uma vez que o cumprimento de sentença, incluído nos arts. 475-I a 475-J pela referida lei, não é aplicável contra a Fazenda Pública. Já as pessoas jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atribuições do Poder Público se submetem ao regime do cumprimento de sentença para pagamento de quantia certa. Para este trabalho, no entanto, mais relevante é o regime do cumprimento das 218 Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. – grifo nosso Como se observa pelos parágrafos do dispositivo, a reforma deu especial atenção à tutela específica, tornando a conversão em perdas e danos em medida última e criando medidas alternativas para estimular sua efetivação: § 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.” (Incluído pela Lei nº 8.952/94) “§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. (Incluído pela Lei nº 8.952/94 e com redação dada pela Lei nº 10.444/02) O art. 461-A e seus parágrafos, que estabelecem o regime de cumprimento da obrigação de entrega de coisa, foram criados pela Lei nº 10.444/2002, prevendo que: Na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação.” “§ 1º Tratando-se de entrega de coisa determinada pelo gênero e quantidade, o credor a individualizará na petição inicial, se lhe couber a escolha; cabendo ao devedor escolher, este a entregará individualizada, no prazo fixado pelo juiz.” § 2º Não cumprida a obrigação no prazo estabelecido, expedir-se-á em favor do credor mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse, conforme se tratar de coisa móvel ou imóvel. § 3º Aplica-se à ação prevista neste artigo o disposto nos §§ 1º a 6º do art. 461. O meio mais freqüente de forçar a efetivação da tutela específica é a aplicação de multa diária, conhecida como “astreinte”, meio coercitivo indireto de cumprimento das obrigações de fazer, não fazer ou entregar. Conquanto o Código preveja a incidência de multa pecuniária para o caso de descumprimento, o principal objetivo continua sendo a “obrigação de fazer ou não fazer”, “entrega de coisa” ou “abstenção da prática de algum ato, tolerar alguma atividade, prestar ato ou entregar coisa” (art. 461, §4º, com redação dada pela Lei nº 8.952/94; art. 461-A, §§2º e 3º, incluídos pela Lei nº 10.444/02; art. 287 do CPC, com redação dada pela Lei nº 10.444/02). Como garante Silva Dinamarco (2002, p. 712): obrigações de fazer, não fazer e entregar, também alterado pelas recentes reformas processuais no Código de Processo Civil. 219 Ela tem finalidade exclusivamente coercitiva, pressionando psicológica e economicamente o devedor a cumprir as obrigações de fazer ou não-fazer, sejam elas fungíveis ou infungíveis. São, portanto, meios coercitivos indiretos que exercem pressão na vontade do devedor. Não têm e não podem ter qualquer caráter de indenização ou penalidade. Além da multa diária, as recentes reformas introduziram novas formas de se buscar a efetivação da tutela específica ou o resultado prático equivalente. São medidas alternativas que o juiz pode aplicar caso considere necessárias no caso concreto: busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva e outras, até mesmo com uso de força policial. Tudo o que for necessário para a realização concreta e plena da decisão judicial. Como sustenta Leonel (2002, p. 292): (...) além do caráter exemplificativo da previsão legal, vigora na matéria o princípio da fungibilidade das medidas de coerção, havendo mitigação do princípio da congruência (ou correlação) entre o pedido e a sentença, propiciando liberdade ao magistrado para conceder não exatamente aquilo que foi postulado, mas a medida mais adequada à efetiva satisfação do direito material. Também a Fazenda Pública, conforme já observado, pode ser condenada ao cumprimento de tutelas específicas e sofrer medidas de coerção ou sub-rogação, não havendo distinção no regime brasileiro em função de peculiaridades subjetivas do demandado: Anote-se, também, que não há razão alguma para qualquer restrição quanto à possibilidade de concessão da tutela específica ou medida de sub- rogação equivalentes, na hipótese em que o poder público figura no pólo passivo da ação. A restrição que existe com relação à Fazenda Pública diz respeito somente à demanda satisfativa (executória), que trata de condenação pecuniária [pagamento por meio de precatório]. (LEONEL, 2022, p. 292) Outra previsão do Código de Processo Civil, citada por Silva Dinamarco (2002, p. 717) como destinada à efetivação dos provimentos jurisdicionais, é o parágrafo único do seu art. 14, que prevê como ato atentatório ao exercício da jurisdição o não cumprimento pelas partes ou qualquer um que participe do processo do disposto no inciso V: “cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final”. O dispositivo, incluído pela Lei nº 10.358/2001, prevê a aplicação de multa que, não sendo paga, será inscrita como dívida ativa da União ou do Estado. Como se observa, a possibilidade de execução forçada, inclusive contra a Fazenda Pública, ganhou grande terreno com as reformas legislativas, coadunando-se com a moderna 220 compreensão da tutela jurisdicional como instrumento de garantia plena e eficaz dos direitos do cidadão. De acordo com Bueno (2002, p. 8): Por tutela jurisdicional eficaz deve-se entender a tutela jurisdicional apta para assegurar àquele que se afirma lesionado ou ameaçado em seu direito a conservação in natura desse mesmo direito, isto é, a possibilidade de sua fruição integral e plena, afastando ou evitando o ato ou fato que motiva seu ingresso no Poder Judiciário. Tanto quanto se dá com o habeas corpus, em que se pretende a tutela do direito de locomoção em si mesmo e não sua substituição por qualquer outro bem, ou com os interditos possessórios, em que a tutela é dirigida à tutela da fruição plena da posse e não dos direitos patrimoniais dela decorrentes. No sentido de tutela jurisdicional eficaz apresentado acima, podemos considerar o mandado de segurança um instrumento de tutela jurisdicional eficaz do cidadão contra as arbitrariedades da Administração, que concede ao impetrante justamente aquilo a que ele tem direito. No entanto, com as recentes reformas processuais no Código de Processo Civil, também as ações ordinárias tem o potencial de se tornarem instrumentos de tutela jurisdicional eficaz, desde que se utilizem do arsenal criado pelo legislador para garantir a tutela específica e antecipada das condenações. Outra característica importante do mandado de segurança, que o distinguia dos inúmeros instrumentos de tutela existentes no ordenamento jurídico brasileiro era a possibilidade de sua utilização na forma preventiva. Para a impetração do mandado de segurança não é necessário que o ato já tenha sido praticado ou o dano já se tenha consumado. O art. 1º da Lei nº 12.016/2009, repetindo a antiga previsão da Lei nº 1.533/1951, dispõe expressamente que basta haver “justo receio” de sofrer violação para a impetração do mandado de segurança. No que toca à tutela preventiva nas ações em geral, merecem crítica o legislador e a doutrina brasileiros, que, por longo tempo, priorizaram as medidas reparatórias e sancionatórias, aplicáveis apenas quando o direito já sofreu lesão, algumas vezes de forma irreversível. No ordenamento jurídico brasileiro apenas poucos procedimentos especiais vislumbravam a possibilidade de tutelas preventivas. Além do procedimento do mandado de segurança, havia o do habeas corpus, da ação popular, do interdito proibitório e da nunciação de obra nova. O Processo Civil clássico não voltava sua atenção para as várias situações de direito substancial, algumas sem conteúdo patrimonial ou absolutamente invioláveis, para as quais o ressarcimento do dano não tem significação prática. São exemplos típicos desses direitos, citados por Bedaque (2009, p. 50), os direitos inerentes à personalidade, o direito à liberdade, 221 o direito a alimentos, o direito ao salário. Nem mesmo um processo sincrético, em que não há execução autônoma, apenas uma fase executiva no mesmo processo, confere tutela adequada a esses tipos de direito, pois o que necessitam é que seja prevenida ou impedida a continuidade da violação. Arenhart (2003, p. 193) garante que, antes da Reforma Processual de 1994 e, no plano coletivo, até a edição do Código de Defesa do Consumidor, o ordenamento jurídico nacional era absolutamente carente de meios de proteção preventivos, aptos a, de forma genérica, tutelar preventivamente os interesses jurídicos reconhecidos pelo direito material. A Constituição Federal de 1988 deixava claro, no entanto, que “nenhuma lei excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5.º, XXXV, Constituição), não restando qualquer dúvida de que era possível uma tutela efetivamente capaz de impedir a violação do direito. Somente a partir da década de 90, a doutrina brasileira, capitaneada por Marinoni, passou a se esforçar para a construção de um novo modelo processual que contasse com instrumentos de tutela preventiva atípica, que pudesse ser prestada por meio de processo de conhecimento, para impedir a prática, a repetição ou a continuação do ilícito. Tal tipo de tutela preventiva, denominada inibitória, seria prestada por meio de ação de cognição exauriente, com provimento definitivo e satisfativo e, assim, não ligada instrumentalmente a nenhuma ação que possa ser dita “principal”. O fato de ter cognição exauriente não impediria que a tutela inibitória fosse concedida antecipadamente, no curso da ação, afinal, é fácil perceber que, na maioria dos casos, somente uma tutela antecipatória pode garantir a efetividade da tutela inibitória. A tutela inibitória se volta contra a possibilidade do ilícito, ainda que se trate de repetição ou continuação, sem se preocupar com a probabilidade ou ocorrência do dano, que é uma conseqüência eventual do ato contrário ao direito: Imaginou-se por muito tempo que a lei, por obrigar quem comete um dano a indenizar, não diferenciasse ilícito de dano, ou melhor, considerasse o dano como elemento essencial e necessário da fattispecie constitutiva do ilícito. Entretanto, o dano não é uma consequência necessária do ato ilícito. O dano é requisito indispensável para o surgimento da obrigação de ressarcir, mas não para a constituição do ilícito. É óbvio que o dano não pode estar entre os pressupostos da inibitória. Sendo a inibitória uma tutela voltada para o futuro e genuinamente preventiva, é evidente que o dano não lhe diz respeito. Na realidade, se o dano não é elemento constitutivo do ilícito, podendo este último existir independentemente do primeiro, não há razão para não se admitir uma tutela que leve em consideração apenas o ilícito, deixando de 222 lado o dano. Da mesma forma que se pode pedir a cessação de um ilícito sem aludir a dano, é possível requerer que um ilícito não seja praticado sem a demonstração de um dano futuro. (MARINONI, 2006, p. 46) Não havendo tutela contra o dano, não têm relevo na ação inibitória os requisitos que comumente importam para a imputação da sanção ressarcitória. Assim, a demonstração de culpa ou dolo, requisitos para a definição de responsabilidade pelo dano (e não para a prevenção do ilícito), não pode ser exigida para a obtenção da inibitória, como garante Marinoni (2006, p. 50). A ação inibitória atípica é garantida constitucionalmente (art. 5.º, XXXV, da Constituição), mas também encontra fundamentos, na perspectiva dos instrumentos, de acordo com Marinoni (2006, p. 489), nos arts. 461 do Código de Processo Civil e 84 do Código de Defesa do Consumidor, “que são suficientes para permitir a prestação da tutela inibitória nas formas individual e coletiva”. Esses dispositivos, ao permitirem ao juiz impor um não fazer ou um fazer, sob pena de multa, na sentença ou na tutela antecipada, fornecem os subsídios processuais necessários para a prestação de uma tutela inibitória adequada. A superioridade da tutela preventiva, sobretudo quanto aos direitos sem conteúdo patrimonial, como grande parte dos direitos difusos e coletivos, é garantida por Arenhart (2003, p. 190): Esta forma de proteção judicial – admitida, sublinhe-se, expressamente, pela Constituição Federal – deve ocorrer antecedentemente à ocorrência à violação do direito, de maneira a mantê-lo íntegro, impedindo sua lesão. Evidentemente, trata-se de tutela de excelência e muito mais aprimorada que a repressiva, porque visa impedir que os interesses subjetivos das partes e o ordenamento jurídico como um todo sejam ofendidos, situação que se evidencia de maneira particular em relação a direitos sem conteúdo patrimonial. Também por Marinoni (2000, p. 32): Os direitos difusos e coletivos não podem ser efetivamente tutelados por meio da via ressarcitória e, portanto, não basta a eles a sentença condenatória, por definição correlacionada com a chamada „execução forçada‟, assim compreendida a execução por sub-rogação. Os direitos difusos e coletivos, em virtude da própria natureza, necessitam, na maioria das vezes, de uma tutela que possa inibir a prática, a repetição ou a ocorrência do ilícito, tarefa que não pode ser cumprida pela sentença condenatória. (...) Note-se, ainda, que, em se tratando de direitos difusos e coletivos, a situação ilícita configura-se, em regra, como atividade de natureza continuativa ou como pluralidade de atos suscetíveis de repetição, bastando pensar na poluição ambiental ou no uso reiterado de cláusulas abusivas em 223 contratos pactuados com os consumidores. Ora, a tutela inibitória, instrumentalizando-se através de uma ordem que impõe um não-fazer ou um fazer sob pena de multa, volta-se exatamente a evitar a prática, a continuação ou a repetição do ilícito. (MARINONI, 2000, p. 82) Assim, conclui-se que a ampla possibilidade de tutela específica, tanto definitiva quanto liminar, antecipatória ou cautelar, em qualquer tipo de ação, nas de natureza inibitória, inclusive, acaba tornando o mandado de segurança totalmente substituível por ações ordinárias. Nesse sentido, em tom de conclusão, Ramos (2010, p. 244) garante que: O que se pretendeu sustentar é que, além da via estreita do procedimento especial do mandado de segurança – verdadeira ação de fundamentação vinculada –, também será possível ao jurisdicional manejar o procedimento comum invocando-lhe as modernas técnicas de tutela de urgência para obter resultado equivalente ao que se alcança com este writ constitucional, não sendo de se falar em tipicidade no uso do mandado de segurança diante das regras procedimentais flexíveis permitidas pela idéia de processo sincrético em grau máximo. (...) Na perspectiva do processo sincrético em grau máximo, também poderão ser combatidos a ilegalidade e/ou abuso de poder contra direito líquido e certo através de procedimento comum manejado com a técnica para obtenção da tutela antecipada, de modo a salvaguardar, com a tutela específica adequada, a mesma urgência que o rito especial do mandado de segurança existe para tutelar. Quanto ao mandado de segurança coletivo, conforme observaremos a seguir, é substituível por outras ações coletivas somente em relação a algumas matérias. Antes disso, é preciso lembrar que todos os modernos mecanismos de tutela jurisdicional acima mencionados (antecipação de tutela, tutela específica e inibitória) aplicam- se à tutela coletiva, pois o Código de Processo Civil é aplicável subsidiariamente no processo coletivo, de acordo com o art. 90 do Código de Defesa do Consumidor. Se não fosse bastante, há previsões similares no CDC 106 . Além disso, se aplica a tutela coletiva o que Almeida (2003, p. 578) denomina “princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva 106 “Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1° A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. § 2° A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287, do Código de Processo Civil). § 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu. § 4° O juiz poderá, na hipótese do §3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5° Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.” 224 comum”, previsto no art. 83 do CDC, garantidor de que, na proteção jurisdicional dos direitos coletivos, são admissíveis todos os tipos de ação, procedimentos, medidas, provimentos, inclusive antecipatórios, desde que adequados para propiciar a correta e efetiva tutela do direito coletivo pleiteado. Salvo as matérias para as quais cabe ação civil pública (meio ambiente, consumidor, ordem econômica, livre concorrência e patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico 107 ), ação popular (atos lesivos ao patrimônio público, tais como a bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico) e outras em que há legislação específica prevendo o cabimento de ação civil coletiva (consumidor, idoso, criança e adolescente etc), não há qualquer instrumento coletivo genérico que possa substituir o mandado de segurança coletivo na tutela de outros direitos coletivos. Ficariam de fora da tutela coletiva as matérias de Direito Administrativo (servidor público, concurso público, atos administrativos etc) e Direito Tributário, em que ele é mais utilizado (Gráfico 5), uma vez que não haveria outro instrumento processual coletivo disponível para resguardar essas matérias. Embora Zavascki (2008, p. 187) sustente que a legitimidade prevista no art. 5º, XXI da Constituição habilite as entidades associativas a promover ações coletivas para tutela de quaisquer matérias, discordamos de sua posição, na medida em que acreditamos se tratar de representação processual prevista nesse inciso do art. 5º da Constituição e não de substituição processual, própria da tutela coletiva (capítulo 11.2.1). E mesmo para as matérias em que há previsão legal de tutela coletiva, nem todos os legitimados do mandado de segurança coletivo poderiam atuar, mas somente as associações (art. 82, IV, CDC; art. 5º, V, LACP; art. 210, III, ECA, art. 81, IV, Estatuto do Idoso) 108 . Os sindicatos, embora tenham autorização constitucional expressa para atuarem na tutela de direitos coletivos (art. 8º, III, da Constituição) não possuiriam instrumento coletivo que possibilitasse essa tutela em diversos casos fora da área trabalhista. 107 Embora o art. 1°, incisos IV a VI da Lei n° 7.347/1985 também preveja a possibilidade de tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, da “ordem econômica e da economia popular” e da “ordem urbanística” pela ação civil pública, o art. 5°, inciso V, que legitima as associações para o ajuizamento da ação, somente permite a atuação das associações para “proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. Os demais legitimados são o Ministério Público, a Defensoria e o próprio Poder Público, que não estão previstos expressamente na Constituição como legitimados para impetrar mandado de segurança coletivo. Quanto às pessoas jurídicas da Administração direta e indireta, obviamente, não impetrariam o writ contra os atos de seus próprios agentes. 108 Há que sustente que os sindicatos, entidades de classe (ALVIM, 2010b, p. 317) e, até mesmo, os partidos políticos (GOMES JÚNIOR; FAVRETO, 2009, p. 173; ALMEIDA, 2003, p. 520; CARVALHO, 1993, p. 78) possuem natureza jurídica de associações civis, podendo, portanto, ajuizar as mesmas ações coletivas para as quais as associações estão legitimadas. 225 O mandado de segurança coletivo ainda seria totalmente substituível por ações individuais, mas com claro prejuízo a celeridade e economia processuais. Feita essa ressalva em relação ao mandado de segurança coletivo, podemos afirmar que, atualmente, existem no ordenamento jurídico brasileiro instrumentos e técnicas processuais genéricas capazes de tutelar, de forma coletiva, célere e eficaz, o particular contra o Estado, inexistentes no contexto de criação do mandado de segurança e da sua modalidade coletiva. Acredita-se que essa seja a principal razão do crescimento menor na utilização do mandado de segurança em relação ao dos demais processos, observada na pesquisa estatística (Gráficos 16 e 17). A nosso ver, diante das inúmeras alterações legislativas no Código de Processo Civil e na legislação coletiva, no sentido de se dotar o processo de maior efetividade, podem ter sido ajuizadas outras ações para a tutela de direitos que tradicionalmente seriam tutelados via mandado de segurança. Ou seja, o mandado de segurança estaria sendo substituído por outras ações. 14. EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL E ESPECIALIZAÇÃO PROCEDIMENTAL Embora existam no ordenamento jurídico brasileiro instrumentos e técnicas processuais genéricos capazes de resguardar, ao menos em tese, os mesmos direitos tuteláveis via mandado de segurança, consideramos que tais instrumentos e técnicas não são tão adequados e eficientes quanto ele. A nosso ver, as peculiaridades do direito material tutelado no mandado de segurança coletivo e a sua forma de violação, aliadas a especificidade do seu procedimento, tornam imprescindível a existência e a utilização preferencial desse instrumento processual, mais adequado e eficiente que os demais. É o que se pretende demonstrar. Adotou-se como pressuposto, o conceito de adequação jurídica como a conformidade entre o direito processual e o direito material que ele visa tutelar (comunicação entre o direito e o processo). Eficiência jurídica como a qualidade de produzir efeitos com excelência, atribuível ao método, ao instrumento processual. Eficácia jurídica como a capacidade de cumprimento dos objetivos previstos na lei, no sentido não apenas de reconhecer direitos, mas de garantir sua satisfação plena. E efetividade jurídica como a aptidão para produzir 226 concretamente os resultados esperados pela lei. Tais pressupostos conceituais foram reconstruídos a partir do marco teórico, não havendo necessária coincidência com os conceitos tradicionalmente aceitos pela doutrina. O presente trabalho tem como marco teórico a reafirmação da instrumentalidade processual, mais especificamente a idéia da especialização da tutela jurisdicional, teoria apresentada por Theodoro Júnior e também desenvolvida por Bedaque, que sustentam a necessidade de que a tutela jurisdicional seja diferenciada 109 , a fim de propiciar ao jurisdicionado provimentos compatíveis com as necessidades da fiel realização do direito material. Tal teoria é tema do livro “Direito e processo: aprimoramento e modernização do direito processual” do Professor Humberto Theodoro Júnior (1997) e do “Direito e processo: influência do direito material sobre o processo” do Professor José Roberto dos Santos Bedaque (2009). De acordo com essa teoria, o vínculo existente entre direito material e processo é de intimidade, não se podendo pensar o direito processual como uma realidade técnica completamente isolada ou autônoma do direito material. Para Bedaque (2009, p. 65): O processo é instrumento e, como tal, deve ser moldado de maneira a melhor proporcionar o resultado pretendido pelos que dele necessitam. E isso somente é possível se for concebido a partir da realidade verificada no plano das relações de direito material. Não reconhecer o vínculo entre ius (direito) e iudicium (processo), como dizia Buzaid (citado por THEODORO JÚNIOR, 1997, p. 26), é quase tão grave quanto não saber fazer a distinção, criada para fins pedagógicos 110 e ligada ao período de construção da ciência 109 O sentido do termo “diferenciada” aqui utilizado não se refere à locução tutela jurisdicional diferenciada cunhada por Andrea Proto Pisani, utilizada para indicar, em contraposição ao procedimento ordinário de cognição plena e exauriente, as formas típicas de tutela sumária. Aqui se refere apenas a especialização procedimental, ou seja, modelos especiais de tutela com cognição plena para cada tipo de situação de direito material. Outro posicionamento que pode ser adotado a respeito da conceituação de “tutela diferenciada”, mencionado por Armelin (1992, p. 46), pelo prisma de sua cronologia no iter procedimental em que se insere (alteração ou redução), refere-se às variadas formas de antecipação de tutela, calcadas em cognição meramente superficial, que têm sua subsistência e eficácia reexaminadas ao final, por ocasião de prestação de tutela lastreada em cognição plena, sendo mantidas ou revogadas. Para o autor, essa técnica de diferenciação de tutela é a que melhor se harmonizaria com o sistema processual brasileiro, na medida em que poderia ser adotada sem maiores transformações em sua estrutura (o que, de fato, ocorreu, já que a Lei nº 8.952/94, alterando o art. 273 do Código de Processo Civil, estendeu a até então excepcional fórmula da antecipação de tutela a todas as situações sujeitas ao processo cognitivo). 110 “É certo que, para fins práticos e pedagógicos, se deve proceder à regulamentação e estudo do Direito Processual fora dos quadros do direito material, mas sem jamais perder a noção de que a existência do direito formal não se justificará, em hipótese alguma, a não ser como instituto prático ligado à necessidade de operar concretamente o direito material nas situações conflituosas.” (THEODORO JÚNIOR, 1997, p. 24) 227 processual. O Processo Civil, até meados do século XIX, era estudado e compreendido apenas como um aspecto do próprio direito material que, quando violado, se colocava em movimento de defesa. O estudo do direito processual era, portanto, o estudo do direito material, quando ofendido ou ameaçado. O processo assumia um caráter secundário em relação ao direito material, sendo indissociável deste. Era a fase imanentista ou sincretista. Começou no final do século XIX o desenvolvimento do Direito Processual, como direito autônomo e desvinculado, teoricamente, do direito material, quando se iniciaram as primeiras teorizações do direito de ação. Esse movimento se iniciou com o questionamento do conceito civilista de ação, afirmando-se sua grande diferença enquanto instituto de Direito Processual, não dirigida ao adversário, mas ao juiz e não tendo por objeto o bem litigioso, mas a prestação jurisdicional (DINAMARCO, 2005, p. 18). Foi nesse contexto que se afirmou a autonomia, não só da ação, mas dela e dos demais institutos de Direito Processual, que ganhou foros de disciplina autônoma, daí essa fase ser conhecida como “autonomista”: A partir desse debate [sobre o conceito da ação] teve nascimento um segundo momento da ciência processual, com a consciência da autonomia não somente da ação, mas também de todos os demais institutos que informam a existência e o modo de ser do processo. Ficou evidenciada a tomada de consciência para a autonomia da relação jurídica processual, distinguindo-a da relação de direito substancial pelos sujeitos, pressupostos e objeto. Foi o surgimento da fase autonomista, com a denominada teoria abstrata do direito de ação, passando o processo a ser reconhecido como ciência independente. (LEONEL, 2002, p. 19) O Direito Processual, enquanto ciência independente, com objeto, premissas metodológicas e estrutura sistemática definidas, chegou a um ponto de maturidade mais do que satisfatório, como garantiu Dinamarco (2005, p. 20). A ciência processual alcançou foros de universalidade, não obstante a existência de diversos sistemas processuais no mundo contemporâneo, com realidades históricas, culturais e políticas extremamente distintas. A evolução, no entanto, não parou por aí e a autonomia do Direito Processual acabou se excedendo. Começaram a surgir exageros, resultantes da rígida separação entre direito e processo, sendo que a técnica passou a imperar acima, até mesmo, do próprio direito material. O processo perdeu quase que totalmente a perspectiva de atuar o direito material, envolvendo-se em exagerado tecnicismo. Como afirma Bedaque (2007, p. 19), a técnica passou a imperar e ser considerada um valor absoluto, acima até do próprio direito material: “A observância das regras processuais era mais importante que a solução da questão substancial”. Havia um processualismo exagerado, no qual havia emprego inadequado da 228 forma – em sentido amplo –, “um dos grandes responsáveis pela demora do processo, pois o transforma em instrumento a serviço do formalismo estéril, não do direito material e da ordem jurídica justa.” (BEDAQUE, 2007, p. 32). Essa autonomia exagerada distanciou o processo de qualquer influxo do direito material, “transformando-o em instrumento absolutamente asséptico e inflexível” (ARENHART, 2003, p. 27). O autor ressalta que o processualista afastou-se das necessidades reais de tutela, estudando o processo como uma realidade desvinculada de qualquer fim extraprocessual. Interessava apenas o processo, os diversos institutos processuais, seus dogmas, diretrizes e princípios internos, sem necessidade de perquirição sobre a real eficácia social desse instrumento. Ocorreu o que a doutrina italiana chamou de “burocratização do processo e do juiz”, quando os institutos processuais, abstratamente considerados, se sofisticaram ao extremo e acabaram por perder, cada vez mais, o contato com a realidade do direito material e com suas necessidades de atuação (ANDADRE, 2010, p. 18). Todos esses exageros acabaram resultando numa nova revisão do papel do Direito Processual. Como acontece em todos os fenômenos de ação e reação, cria-se movimento pendular, com excessos nos extremos, sendo que o movimento tende, ao longo do tempo, a acomodar-se num ponto de meia distância dos extremos (THEODORO JÚNIOR, 1997, p. 27). Assim, o pêndulo voltou novamente para o lado do direito material, mas não totalmente, como ocorrera na fase imanentista: Chega-se, deste modo, ao denominado terceiro momento metodológico do direito processual, a fase instrumentalista, caracterizada pela consciência da instrumentalidade como importante pólo de irradiação de idéias e de coordenação de institutos, princípios e linhas de direcionamento no estudo e aplicação prática do processo. Há necessidade, nesta fase, de que o processualista desenvolva o estudo da sua ciência, mas de forma finalística ou teleológica, sempre tendo em mente os grandes problemas jurídicos, sociais e políticos coetâneos à sua existência, e que devem ser equacionados pelo instrumento que a tal fim se destina. Há imperiosa exigência de partir do conceitualismo vago e exageradamente técnico para ajustá-lo às peculiaridades reconhecidas na vida de relação, a serem amparadas, quando pertinente, pela prestação jurisdicional. (LEONEL, 2002, p. 20) Andrade (2010, p. 19) afirma que a situação de exageros e distorções da fase autonomista do processo começou a ser percebida com clareza após a Segunda Guerra Mundial, quando a processualística européia passou a se preocupar com a efetividade do processo. Concomitante a esse fenômeno ocorria a constitucionalização do Direito Processual. A partir da segunda metade do século XX, com o extraordinário desenvolvimento do 229 constitucionalismo, os princípios cardeais dos vários ramos do Direito passaram a ser positivados na Constituição. Com o Direito Processual não foi diferente, ele viu seus princípios mais importantes transformarem-se em princípios constitucionais. A conjugação de todos os princípios e garantias processuais na Constituição desaguou na idéia moderna de “justo processo”, que conjuga, coordena e harmoniza toda a matéria processual contida na Constituição (ANDRADE, 2010, p. 4). Para Bedaque (2007, p. 26): “(...) processo não é, e nem poderia ser, somente forma. Toda a organização e a estrutura desse mecanismo encontram sua razão de ser nos valores e princípios constitucionais por ele incorporados. A técnica processual, em última análise, destina-se a assegurar o justo processo, ou seja, aquele desejado pelo legislador ao estabelecer o modelo constitucional ou devido processo constitucional.” A visão moderna do Processo Civil, permeada pela principiologia constitucional do “justo processo” é de um processo atento ao direito material e às suas diferentes necessidades 111 . Essa visão dita a necessidade de o processo ser efetivo para tutelar o direito material, oferecendo àquele que necessita de tutela jurisdicional todo o instrumental adequado para a realização do direito material tal como se tivesse ocorrido o adimplemento voluntário. Tudo isso em tempo razoável e sem perder de vista o contraditório. Andrade (2010, p. 5) bem sintetiza o momento pelo qual o Direito Processual passa atualmente: No âmbito processual, o cenário moderno é evidente: o primeiro esforço doutrinário, a partir de meados do século passado, foi no sentido de estruturar o processo de garantias/princípios constitucionais, situando-o como instrumento do direito material, e instrumento efetivo. Agora, num segundo momento, cristalizadas as garantias constitucionais do processo, na fórmula-síntese do “justo processo”, parte a doutrina, abertamente, para pôr em prática, nos processos, o cenário constitucional. Noutras palavras, em sede de garantias constitucionais do processo, uma vez cristalizadas na Constituição, se deve partir para sua efetivação, concretização, ou seja, sair do mundo do dever-ser para o mundo do ser; sair do mundo jurídico para o mundo da realidade fática. Eis, como destaca a doutrina, um dos maiores problemas enfrentados pela comunidade jurídica neste início de século XXI: a incapacidade institucional para se realizar justiça efetiva. Hoje, quando a fase instrumentalista se encontra em evolução, reconhece-se que o direito da parte de exigir do Poder Judiciário a composição do litígio se deve, acima de tudo, à vontade da lei de que nenhuma lesão ou ameaça a direito seja subtraída da tutela jurisdicional. É inconteste a função do processo de tutelar direito material, sendo a relação de 230 instrumentalidade evidente. Nas palavras de Bedaque (2007, p. 20), hoje se busca “encontrar a técnica mais adequada a que o instrumento produza o resultado desejado”, ou seja, adequar a técnica à sua finalidade, relativizando o binômio direito-processo como meio de acesso à ordem jurídica justa. Para Theodoro Júnior (1997, p. 31, citando FAZZALARI): Múltiplos são os graus de cognição e acertamento dos direitos subjetivos nos diversos tipos de processo, mas é indiscutível que, em todos eles, o direito material influi como pressuposto em toda a série de atos que compõem a relação processual, desde a propositura da demanda, seguindo- se pela resposta do réu, passando pela instrução probatória, até, finalmente, a resposta jurisdicional. Essa nova fase reconhece a importância da fase autonomista do Direito Processual, indispensável para sua caracterização como ciência, dotada de objeto, institutos e princípios próprios. Consolidado como ciência, o Direito Processual precisava, no entanto, recuperar sua finalidade concreta, a de servir como instrumento útil na realização do direito material. A visão do processo como instrumento do direito material não lhe diminui a importância, nem lhe coloca em plano secundário, pois se trata de um instrumentalismo substancial e não formal. Tanto que, para Bedaque (2009, p. 16): Essa “revisitação” requer nova análise interna do sistema processual, para adaptá-la às necessidades externas. Trata-se de tomar consciência de que os institutos processuais são concebidos à luz do direito material. Implica reconhecer que a distância entre direito e processo é muito menor do que se imaginava e que a reaproximação de ambos não compromete a autonomia da ciência processual. O reconhecimento da necessidade de os institutos processuais serem concebidos a partir do direito material resulta da inafastável coordenação entre tais ramos da ciência jurídica.Preserva-se a autonomia do processo com a aceitação de se tratar de realidades que se referem a patamares dogmáticos diferentes. O importante é ver direito e processo como institutos interligados. Por isso, para Marinoni (2004, p. 27), a obviedade está em que o direito material e o processo não podem mais ser tratados separadamente 112 . Assim como o processo não é somente mero meio para a realização do direito, o direito não é apenas o resultado do processo. Não há como deixar de perceber, hoje, que entre o processo e o direito material há uma relação de integração. 111 Acerca do processo justo (THEODORO JÚNIOR, 1997, p. 50-52). 112 “Em outros termos, para analisar a efetividade do processo no plano do direito material e, assim, sua concordância com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, é imprescindível tomar consciência das necessidades que vêm do direito material, as quais traduzem diferentes desejos de tutela.” (MARINONI, 2004, p. 147) 231 No Brasil, essas idéias começaram a despontar somente no final do século XX, em meados da década de 80, merecendo destaque o estudo de Cândido Rangel Dinamarco, em sua obra “A Instrumentalidade do processo”, de 1987, na qual apresenta o processo como um instrumento eficaz para o acesso à ordem jurídica justa, por intermédio dos escopos da jurisdição (DINAMARCO, 2005). Dinamarco (2005, p. 23) ressalta na obra que, neste terceiro momento metodológico do Direito Processual, caracterizado pela consciência da instrumentalidade do processo, assoma o chamado aspecto ético do processo e não mais seus objetivos puramente técnicos. Ele garante ser o tempo de afirmação da permeabilidade do sistema processual aos valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material e do reconhecimento de sua inserção no universo axiológico da sociedade a que se destina (DINAMARCO, 2005, p. 24). Para ele, seria um erro considerar o processo como mero instrumento técnico e o Direito Processual como ciência neutra em face das opções axiológicas do Estado. Essa postura errada, a seu ver, seria a grande causa do descompasso, por vezes existente, entre a lenta evolução da ordem processual em relação à Constituição, o que tem servido de amparo para posturas e intuitos conservadores (DINAMARCO, 2005, p. 40). Dinamarco, já em 1987, vislumbrava a tendência de tratar o processo como instrumento a serviço dos valores que são objeto das atenções da ordem jurídico-substancial. Daí a importância que ele atribuía aos escopos da jurisdição (ou do processo, como sistema), ou seja, aos objetivos a serem alcançados mediante o seu emprego. Para ele, (...) a instrumentalidade do sistema processual é alimentada pela visão dos resultados que dele espera a nação. A tomada de consciência teleológica tem, portanto, o valor de possibilitar o correto direcionamento do sistema e adequação do instrumental que o compõe, para melhor aptidão a produzir resultados. (DINAMARCO, 2005, p. 183). Além de seu escopo jurídico, de atuação da vontade concreta do direito, o processo teria também escopos sociais, entre os quais se destaca o escopo magno de pacificação com justiça, e políticos. Entre os escopos políticos apontados pelo autor destacamos o de servir de canal de participação do cidadão, por si mesmo ou por meio de suas associações, nos destinos da sociedade. Esse escopo se relaciona a canalização da participação democrática na determinação dos destinos da sociedade política, aspecto de especial interesse neste trabalho. Abandonando a unidade teleológica tradicional, que buscava um único escopo da jurisdição, Dinamarco passa a falar dos seus escopos, no plural, buscando uma visão integrada da problemática, sob os aspectos social, político e jurídico. 232 O autor também já afirmava a necessidade de relativização do binômio direito- processo, já que esses institutos estariam interligados pela unidade dos escopos sociais e políticos da jurisdição. A seu ver, a visão do processo, interpretação de suas normas e solução empírica dos seus problemas deveria se dar à luz do direito material e dos valores que lhe estão à base (DINAMARCO, 2005, p. 389). Assim, o princípio da instrumentalidade poderia ser visualizado num duplo sentido: negativo, na medida em que se exige que se evitem os males do “exagerado processualismo”; e positivo, na visão do processo “como instrumento eficaz de acesso à ordem jurídica justa, apto a realizar os verdadeiros escopos jurídicos, políticos e sociais” (DINAMARCO, 2005, p. 450-451). Bedaque (2007, p. 17) também se refere a mudança radical de perspectivas verificadas nos últimos anos, quando o processualista deixou de se preocupar exclusivamente com as formas e conceitos, para se dedicar à busca de mecanismos destinados a conferir à tutela jurisdicional o grau de efetividade que dela se espera. Ele se refere ao processo atual como um processo de resultados, que, acima de tudo, deve proporcionar ao jurisdicionado que se encontra em posição de vantagem no plano jurídico-substancial a possibilidade de usufruir concretamente dos efeitos dessa proteção 113 . Assim, por efetividade do processo ele entende a sua aptidão para produzir concretamente os resultados dele esperados, pois o processo vale não tanto pelo que é, mas fundamentalmente pelos resultados que produz (BEDAQUE, 2009, p. 18). Uma visão teleológica, finalista é essencial à compreensão e correta aplicação da técnica processual. Como garante Dinamarco (2005, p. 273): Tem-se por técnica a predisposição ordenada de meios destinados a obter certos resultados. Toda técnica, por isso, é eminentemente instrumental, no sentido de que só se justifica em razão da existência de alguma finalidade a cumprir e de que deve ser instituída e praticada com vistas à plena consecução da finalidade. Daí a idéia de que todo objetivo traçado sem o aporte de uma técnica destinada a proporcionar sua consecução é estéril; e é cega toda técnica construída sem a visão clara dos objetivos a serem atuados. 113 “Pode-se dizer, pois, que o direito processual é ciência que tem por escopo a construção de um método adequado à verificação sobre a existência de um direito afirmado, para conferir tutela jurisdicional àquelas situações da vida efetivamente amparadas pelo ordenamento material. Trata-se de visão do direito processual preocupada com seus resultados e com a aptidão do instrumento para alcançar seus fins. Na concepção de direito processual não se pode prescindir do direito material, sob pena de transformar aquela ciência num desinteressante sistema de formalidades e prazos Sua razão de ser consiste no objetivo a ser alcançado, que é assegurar a integridade da ordem jurídica, possibilitando às pessoas, meios adequados para a defesa de seus interesses.” (BEDAQUE, 2009, p. 14) 233 Em busca dessa efetividade concreta, cabe ao Direito Processual instituir procedimentos que viabilizem a adequada tutela jurisdicional do direito material, dinamizando o processo, tornando mais efetivo o acesso à justiça e mais eficaz a função jurisdicional, de maneira a aprimorar seu caráter social de pacificação. A fórmula clássica de Chiovenda já preconizava que “o processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito tudo aquilo e exatamente aquilo que se tem direito de conseguir”, expressão que modernamente é denominada “postulado da máxima coincidência”, originária da transcrição “Il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha un diritto tutto quello e proprio quello ch‟egli ha diritto di conseguire” (citado por ZANETI JÚNIOR, 2001, p. 47). Essa máxima coincidência é o principal objetivo perseguido pela moderna ciência processual, o de repor o direito material como se não tivesse ocorrido o ilícito, debelando a crise de cooperação derivada da não realização espontânea do direito substancial. Para Dinamarco (2005, p. 365), é indispensável que o sistema esteja preparado para produzir decisões capazes de propiciar a tutela mais ampla possível aos titulares de direitos reconhecidos pelo juiz, superando o dogma da intangibilidade da vontade humana e permitindo a obtenção do resultado que existiria se a lei não fosse descumprida. Decisões meramente paleativas não são admitidas, ao menos como primeira opção, repudiando-se a facilidade com que tradicionalmente se aponta a conversão em pecúnia como solução para obrigações de fazer não cumpridas. Bedaque (2007, p. 34) afirma que o ideal é tornar possível, pelo processo, a obtenção de resultado idêntico, formal e substancialmente, ao adimplemento voluntário, garantindo a satisfação plena do direito material. Assim, uma tutela de direitos eficaz é aquela que alcança o resultado pretendido, que é, o mais próximo possível, semelhante àquele resultante da atuação espontânea das regras substanciais. Para Bedaque (2009, p. 58), enquanto a eficiência se relaciona ao método adotado pelo Estado para a solução de controvérsias, a efetividade se relaciona ao resultado dessa atividade, consubstanciado na tutela jurisdicional. Quanto mais eficiente o método adotado, maior a possibilidade de o resultado da atividade ser efetivo. Na seqüência de sua obra, podemos constatar que o autor também relaciona a eficácia ao resultado, à tutela jurisdicional: É necessário que o resultado da atividade jurisdicional, consubstanciado na tutela jurisdicional, seja eficaz, isto é, produza os efeitos desejados no plano material. Em suma: o instrumento precisa ser eficiente para proporcionar uma tutela jurisdicional efetiva e eficaz. E isto somente ocorre se ele for adequado ao fim pretendido. (...) O ordenamento jurídico é 234 eficaz não por prever de forma abstrata a existência de direitos, mas principalmente pela efetiva tutela destes.” (BEDAQUE, 2009, p. 74) Nesse mesmo sentido, garante Leyser (2002, p. 12), citando Marcelo Lima Guerra, que a tutela jurisdicional se revela efetiva ou eficaz, quanto menor for, dentro dos limites do praticamente possível, a diferença entre o resultado que ela proporciona à parte vitoriosa e o resultado que esta última obteria, em face do ordenamento jurídico, se não tivesse recorrido ao processo para obter esse mesmo resultado. Também Leonel (2002, p. 286): O processo estará próximo da sua máxima efetividade se fizer coincidir a situação concreta com a abstrata prevista na regra jurídica de direito material. Se afastará progressiva e perigosamente desse ideal se o resultado prático, obtido com sua implementação, diferir daquele que seria alcançado com o cumprimento espontâneo dos preceitos legais, sem a necessidade de recurso à tutela jurisdicional. Hoje é preciso encontrar a técnica mais adequada às variadas situações de direito material carentes de tutela, até porque o direito material influi como pressuposto em toda a série de atos que compõem o processo. Em nome da efetividade da tutela jurisdicional, buscada na 3ª onda renovatória de acesso à Justiça 114 (CAPPELLETTI e GARTH, 1988), os modelos procedimentais devem adequar-se às peculiaridades do fenômeno jurídico material e ser compatíveis com a natureza da tutela jurisdicional pleiteada. Nesse sentido, a efetividade do processo tem a especialização da tutela jurisdicional como um de seus pilares. A concretização do processo efetivo depende, em primeiro lugar, da criação de procedimentos especiais, mecanismos processuais próprios à tutela dos diversos direitos materiais em suas peculiaridades. Como diz Andrade: Uma das maiores tendências, na linha de concretização do princípio da efetividade processual, é o reconhecimento da falência do modelo ordinário como uma espécie de modelo padrão ou central do sistema para atuação de praticamente todos os direitos substanciais. As peculiaridades do direito material a ser atuado exigem a estruturação de modelos processuais diversos, de acordo com as características e as necessidades desse mesmo direito material que constitui objeto do processo. É a denominada idéia da especialização do procedimento, donde surgem os procedimentos denominados especiais. 114 O acesso à Justiça teria passado por três fases ou ondas renovatórias, de acordo com Cappelleti e Garth (1988). A primeira fase ligada à assistência judiciária aos menos favorecidos; a segunda fase, quando se possibilitou a representação dos direitos difusos ou coletivos; e a terceira fase que, abrangendo as anteriores, garante a necessidade de correlacionar e adaptar o processo à natureza do litígio. Essas ondas renovatórias do processo, para Dinamarco (2005, p. 38), se situam no contexto da sensibilidade do sistema processual aos influxos e mutações da ordem constitucional, pois seria natural que o instrumento se altere e se adapte às mutantes necessidades funcionais decorrentes da variação dos objetivos substanciais a perseguir. 235 Parte-se do reconhecimento de que os direitos materiais são os mais diversos e a necessidade de tutela varia de acordo com as peculiaridades do direito substancial, o que impõe ao Estado a montagem de remédios jurisdicionais diversos. Noutros termos, criação de procedimentos específicos, com tutelas específicas, a fim de que o processo administre remédios efetivos para debelar a patologia ou crise de cooperação havida em setores do direito material. É o sentido em que se colhe a função de processo como instrumento de atuação efetiva do direito material. (ANDRADE, 2010, p. 70) O modelo ordinário, caracterizado por ser um procedimento alheio ao que se passa no plano do direito material, estaria em falência. A neutralidade imposta pela ordinariedade se relaciona ao período autonomista do Direito Processual, já ultrapassado, quando a posição de neutralidade também do juiz era posta em evidência. Conquanto a utilização do modelo ordinário seja mais fácil do ponto de vista prático para os operadores do Direito, esse modelo não se atenta às peculiaridades do direito envolvido, o que acaba resultando em prejuízo ao titular do direito material. O termo acesso à justiça não significa apenas acesso ao Poder Judiciário, ou seja, ingresso em juízo, mas sim o direito de receber justiça. Acesso à justiça tem a conotação de garantia de proteção a toda espécie de direito, em um sentido essencialmente material e não exclusivamente formal. Daí a importância de uma nova postura que privilegie a perspectiva, não do aplicador do Direito, mas do consumidor do serviço judiciário, ou seja, do destinatário das normas jurídicas, que é o povo (FERRARESI, 2010, p. 79), a fim de se alcançar uma ordem jurídica justa. Na linha da especialização da tutela jurisdicional, Bedaque (2007, p. 45) se refere ao “princípio da adequação ou adaptação do procedimento”, como fundamental à correta aplicação da técnica processual. De acordo com esse princípio, não só os modelos procedimentais, mas também os poderes, deveres e faculdades dos sujeitos do processo devem, na medida do possível, adequar-se às peculiaridades do fenômeno jurídico material e ser compatíveis com a natureza da tutela jurisdicional pleiteada. A adaptação do processo a seu objeto se daria no plano legislativo, mediante elaboração de procedimentos e previsão de formas adequadas às necessidades do direito material, mas também no âmbito do próprio processo. Em obra mais recente, Bedaque (2009, p. 69) refere-se ao “princípio da adaptabilidade do procedimento às necessidades da causa”, também denominado “princípio da elasticidade processual”. Trata-se, segundo o autor, da concepção de um modelo procedimental flexível, passível de adaptação às circunstâncias apresentadas pela relação substancial. Não seria mais admissível um procedimento único, rígido, sem possibilidade de adequação às exigências do caso concreto. Daí a necessidade de tutelas concebidas para 236 diferentes realidades litigiosas: Talvez a noção mais importante do direito processual moderno seja a de instrumentalidade, no sentido de que o processo constitui instrumento para a tutela do direito substancial. Está a serviço deste, para garantir sua efetividade. A conseqüência dessa premissa é a necessidade de adequação e adaptação do instrumento ao seu objeto. O processo é um instrumento, e, como tal, deve adequar-se ao objeto com que opera. (...) Por isso, o direito processual deve adaptar-se às necessidades específicas de seu objeto, apresentando formas de tutela e de procedimento adequadas às situações de vantagem asseguradas pela norma substancial. (BEDAQUE, 2009, p. 22) Ele conclui que “(...) para cada tipo de situação de direito material deve existir uma tutela jurisdicional adequada, isto é, diferenciada pelo procedimento.” (BEDAQUE, 2009, p. 44). A técnica processual deve adequar-se, portanto, a grande diversidade de situações substanciais previstas pelo legislador material. Tutelas jurisdicionais devem garantir a exata correspondência entre o tipo de tutela e as diferentes situações da vida. Não há dúvida de que a temática da especialização procedimental, posta em evidência quando se questiona a efetividade do processo, seja uma das formas de se pensar a adaptabilidade da prestação jurisdicional. Não há razão para se manter um procedimento unitário quando são diferenciados os objetivos a serem buscados pela tutela jurisdicional. Instrumentos específicos para seus objetivos conferem maior efetividade ao processo. Nesse sentido, também Armelin (1992, p. 45): Realmente, presentes diferenciados objetivos a serem alcançados por uma prestação jurisdicional efetiva, não há porque se manter um tipo unitário desta ou dos instrumentos indispensáveis a sua corporificação. A vinculação do tipo da prestação à sua finalidade específica espelha a atendibilidade desta; a adequação do instrumento ao seu escopo potencia o seu tônus de efetividade. Não se pode falar em efetividade da tutela jurisdicional se o ordenamento jurídico não se encontra munido de mecanismos capazes de tutelar todos os tipos de direitos que afloram no seio da sociedade. Daí porque, é forte tendência do Direito Processual moderno criar procedimentos e técnicas diferenciados a fim de propiciar aos jurisdicionados provimentos compatíveis com as necessidades da fiel realização do direito material envolvido, com destaque aos mecanismos de tutela específica, dentre eles, os utilizados para a tutela inibitória. Nesse sentido, Leonel (2002, p. 286): 237 Há necessidade, no atual estágio da ciência processual, de afastar-se concepções ultrapassadas, que não mais atendem às reais e concretas exigências de tutela. Exemplificando, era tradicional a concepção de que a tutela jurisdicional deveria ter cunho reparatório ou ressarcitório, tendo em vista: a necessidade de definição do litígio por sentença de mérito só depois do esgotamento da cognição, garantindo-se, em tese, ao demandado somente ser compelido judicialmente após o acertamento definitivo da controvérsia; a impossibilidade da tutela específica das obrigações com fundamento no dogma de que ninguém pode ser coagido a prestar o próprio fato; a inviabilidade das tutelas inibitórias quando não tipificadas pelo legislador etc. A tutela jurisdicional específica, já referida como um dos modernos mecanismos do Processo Civil brasileiro (capítulo 13), é tema inteiramente vinculado ao direito material como determinador da amplitude da tutela jurisdicional efetiva. Através das tutelas específicas, “o processo se desenvolve com vista a proporcionar ao titular do direito material exatamente aquilo que ele obteria se houvesse o adimplemento espontâneo da obrigação” (BEDAQUE, 2009, p. 70), tornando-as mecanismos potencializados para o alcance do “postulado da máxima coincidência”. A tutela específica constitui afirmação enérgica da autoridade do próprio ordenamento jurídico-material (DINAMARCO, 2005, p. 366), dando elevado grau de efetividade ao sistema processual. Um tipo de tutela específica que merece destaque como garantidora da efetividade do processo é a tutela preventiva, sobretudo a inibitória, a qual também nos referimos no capítulo 13. Como observado, existem direitos cuja tutela condenatória seguida de execução forçada não é suficiente para protegê-los. Somente uma tutela preventiva é capaz de assegurá- los, pois eventual lesão pode ser irreversível. O fundamento da tutela preventiva é o próprio direito material. Se existem situações de direito substancial que, diante de sua natureza, são absolutamente invioláveis, é evidente a necessidade de instrumentos para protegê-las. Caso contrário, a garantia de pleno acesso à jurisdição, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição, seria letra morta. Como garante Bedaque (2009, p. 138), mais eficaz é a tutela preventiva, que visa a impedir a ocorrência de um dano antes que a ameaça de lesão a um direito se consume. Sob o ângulo da utilidade, a tutela ressarcitória é a menos efetiva de todas. A tutela ressarcitória, ao contrário da tutela preventiva, permite que a tutela jurisdicional seja pensada à distância do direito material. De acordo com Marinoni (2006, p. 31): 238 Na tutela ressarcitória, importando apenas a realização do direito de crédito que corresponde à lesão do direito, a técnica de sub-rogatória tem condições de atuar de forma completamente independente da natureza do direito material tutelado, o que não acontece quando se pensa na tutela específica e, evidentemente, na tutela preventiva. Por essa razão, de acordo com Bedaque (2007, p. 85): Não se pode ser esquecida a magnífica construção a respeito da tutela inibitória no Direito Brasileiro, que resultou na demonstração incontestável da existência de uma modalidade genérica de tutela preventiva, destinada a evitar a ocorrência do dano, e que se opõe à tutela reparatória. Trata-se de importantíssima contribuição para a efetividade do processo, entendida esta como aptidão do instrumento para tutelar os direitos que necessitam de proteção. A preocupação com a admissibilidade de uma tutela destinada a impedir a verificação do dano é resultado de concepção do sistema processual feita à luz do direito material. Além desses mecanismos diferenciados de tutela, não podemos deixar de citar os procedimentos diversificados em relação à matéria como demonstração de adequação do processo ao objeto de direito material, mais especificamente da especialização procedimental. Podem ser mencionados o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a redução de prazos, eliminação do preparo, preferência no julgamento; o Código de Defesa do Consumidor, com à inversão do ônus da prova; a Lei de Improbidade, com sua fase preliminar antes do recebimento da inicial; e os demais procedimentos especiais previstos no Livro IV do Código de Processo Civil, cada qual com suas diferenciações em relação ao modelo ordinário. Se um processo justo pressupõe adequação dos instrumentos de tutela jurisdicional dos direitos fundamentais, com mais razão devem existir procedimentos específicos de tutela coletiva, que possui um regime jurídico extremamente diferenciado em relação ao modelo tradicional. Assim, na atual fase instrumentalista de evolução do Direito Processual, também merece destaque o processo coletivo, como garante Leonel (2002, p. 21): Observada essa evolução [do direito processual], fica possível vislumbrar a inserção do processo coletivo dentro desse movimento fenomênico, cuja importância não pode ser negligenciada Do sincretismo ou imanentismo passou-se pela fase autonomista ou da concepção abstrata do direito de ação, e chegou-se ao instrumentalismo, hodiernamente reconhecido como instrumentalismo substancial, com a necessidade de fazer o processo valer pelo que propicia, a justiça substancial, a adequada aplicação do direito material, ou, ainda, o acesso à ordem jurídica justa. Neste último momento evolutivo vem inserido, com reconhecida notoriedade, o processo coletivo, na medida em que é instrumento destinado a tornar acessível a justiça para aquelas situações em que ocorram ameaças ou lesões a interesses e direitos que pelos métodos tradicionais do processo de cunho clássico ou individual não seriam tuteláveis. Se o processo é instrumento e deve funcionar de forma adequada a tutelar todas as situações 239 materiais, deve ser predisposto de modo a amparar igualmente as situações em que se façam presentes os direitos ou interesses coletivos, que crescem em nossos tempos em decorrência da evolução da sociedade e das relações de massa, e que não encontravam amparo, anteriormente, nos métodos tradicionais de solução judicial de conflitos. A necessidade de aperfeiçoamento da técnica processual exige também a criação de formas adequadas e eficientes para a tutela jurisdicional dos direitos coletivos (em sentido amplo), ajustadas às especificidades das relações e da matéria litigiosa de natureza coletiva. Afinal, na tutela coletiva há necessidade de se revisitar radicalmente institutos como a legitimidade, a coisa julgada, a litispendência, a liquidação de sentença, dentre outros, adequando-os à solução de conflitos massificados. No que toca especificamente a coisa julgada, já tivemos a oportunidade de demonstrar como a natureza do direito influi, decisivamente, na sua extensão objetiva e subjetiva, o que é garantido por Bedaque: Outro instituto que revela o nexo entre o processo e o direito material é, sem dúvida, a coisa julgada. Sua concepção e seus limites, objetivos e subjetivos, estão profundamente influenciados pela própria natureza do direito a que o provimento judicial diz respeito. Vale a pena, portanto, reexaminar este tema processual, principalmente à luz das modernas noções de interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos (...) O regime dos limites da coisa julgada, sem dúvida, deve ser considerado em função de o direito referir-se a apenas uma pessoa, a várias determinadas, ou a titulares indeterminados. (BEDAQUE, 2009, p. 124) Leonel (2002, p. 35) também garante que a legitimidade do instrumento responsável pela aplicação do direito objetivo se mantém na medida em que propicia, decisivamente, o oferecimento de respostas ajustadas aos problemas verificados na vida em sociedade. Assim, se o que se espera de toda atividade jurisdicional é “uma resposta de boa qualidade, ou seja: justa, jurídica, tempestiva e econômica”, merecem destaque as formas de tutela coletiva, “onde o largo espectro dos interesses em conflito potencializa a eficácia do comando judicial, projetado-o erga omnes ou ao menos ultra partes, em direção a vastos segmentos da sociedade, (...)” (MANCUSO, 1998, p. 69). Por fim, Leonel arremata o capítulo com as seguintes conclusões: Se o processo deve refletir as possibilidades de acesso à ordem jurídica justa, atendendo a todas as situações concretas que demonstrem sua necessidade, isto deve ocorrer também com relação aos conflitos coletivos, que crescem com a evolução do tempo e da humanidade. É o justo e adequado dimensionamento metodológico do processo coletivo, na sociedade moderna, com vertente do instrumentalismo substancial. (LEONEL, 2002, p. 38) 240 O processo coletivo, na visão do referido autor (LEONEL, 2002, p. 147), com a qual compartilhamos, nada mais é que uma vertente da idéia de adequação do procedimento e da tutela jurisdicional aos fins que objetivam e às peculiaridades das situações da vida trazidas ao conhecimento judicial. Exemplos da adequação procedimental aplicadas à tutela coletiva podemos encontrar no Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei de Ação Civil Pública, na Lei de Improbidade, na Lei do Portador de Deficiência, na Lei dos Investidores no Mercado de Valores Mobiliários, na Lei de Ação Popular e na Lei do Mandado de Segurança, todos também exemplos de adequação em relação à matéria. A necessidade de se conferir efetividade real ao processo coletivo, um princípio para Almeida (2003, p. 576), o “princípio da máxima efetividade do processo coletivo”, faz com que o Direito Processual Coletivo deva se revestir de todos os instrumentos e técnicas necessários para a plena satisfação do direito coletivo. Assim, no processo coletivo, além das tradicionais formas de tutela ressarcitórias, podem ser utilizados os diversos tipos de tutelas específica, preventiva, inibitória etc. Toda e qualquer tutela é admitida, desde que não vedada expressamente, do que resulta uma atipicidade da tutela jurisdicional (LEONEL, 2002, p. 290). O interesse social, sempre presente nas ações coletivas, impõe essa efetividade do processo coletivo. Referindo-se a necessidade de adequação e especialização da tutela jurisdicional, Theodoro Júnior (1997, p. 27) garante que sequer mereceria censura a afirmação clássica de que a cada direito corresponde uma ação que o assegura, disposta no art. 75 do Código Civil de 1916, desde que a ação fosse considerada não em sentido estrito, nos termos processualistas, mas como a proteção que a lei dispensa em concreto a todos os direitos. Essa idéia imanentista deve ser resgatada, porém com sonoridades modernas, como já propunha Barbosa Moreira (1983, p. 82). A diferença é que agora, toda afirmação de direito (e não um direito efetivamente existente) corresponde uma ação que o assegura e, como garantem Didier Júnior e Zaneti Júnior (2011, p. 29), não só o direito individual será assegurado e nem só haverá uma ação para cada direito, “mas direitos coletivos e todas as ações cabíveis para assegurar a sua adequada e efetiva tutela”. Arenhart (2003, p. 185), referindo-se especificamente a tutela preventiva, também salienta que as ações de direito material, decorrentes da proteção de determinado direito subjetivo, não se esgotam em uma única, podendo multiplicar-se, seja em razão da conveniência do titular do direito, seja ainda por particularidades inerentes à própria situação carente de tutela. Isso não excluiria, a seu ver, a possibilidade de existência de um tipo de 241 ação mais adequada para tutelar determinados tipos de direito: Dessa forma, um mesmo direito subjetivo (ou interesse) pode gerar inúmeras ações de direito material – enquanto “agir para realização do direito material” –, ligadas, cada qual, a uma pretensão que dele pode advir; de outra parte, pode também suceder que, diante de certa situação específica, a única forma de pretensão (a gerar a sobredita ação) cabível, porque única adequada, seja alguma determinada, excluindo a possibilidade de que o sujeito se valha de outra via para tutelar, de forma perfeita, seu direito. (...) Evidentemente, a ótica aqui desenvolvida toma em conta a noção de tutela jurisdicional adequada, vale dizer, reclamada pelo direito subjetivo. Não se exclui que outras modalidades de tutela possam ser utilizadas, diante da impossibilidade concreta de recorrer à forma mais perfeita. (...) Trata-se, todavia, sempre de meio paliativo, que não corresponde à realidade do direito material, servindo apenas como modalidade alternativa, como forma de não deixar sem nenhuma proteção o direito. – grifos nossos A existência de vários tipos de ação para tutelar o mesmo direito corrobora nossa afirmação de que a possibilidade de tutela de direitos difusos pela ação civil pública não pode ser um empecilho para a utilização do mandado de segurança coletivo para a defesa desses direitos em circunstâncias bem específicas, quando ameaçados ou violados pelo Poder Público e haja prova exclusivamente documental. Nessa hipótese, o mandado de segurança coletivo seria a ação mais adequada, não obstante possa também ser utilizada a ação civil pública. Outro fator relevante a fim de assegurar a efetividade do processo é a sua duração razoável, sobre a qual não podemos deixar de falar, ainda que brevemente. A demora da prestação jurisdicional, tanto quanto a sua negativa, podem causar o perecimento do direito material, tornando o processo injusto. O tempo razoável do processo hoje está previsto no art. 5º, LXXVII, da Constituição como garantia fundamental assegurada em sede constitucional, que se relaciona aos princípios da economia e celeridade processuais, sendo essencial para a construção de um processo que possa ser qualificado como justo. Processo justo é também aquele que assegura ao titular do direito a possibilidade de tutela efetiva e em tempo razoável. O dever de prestar tutela jurisdicional em prazo razoável não serve somente para tutelar direitos do autor, mas igualmente para que o réu tenha um processo justo (MARINONI, 2008, p. 48). Afinal, não seria justo submeter o réu aos males da pendência processual por prazo desrazoável, sobretudo quando deferidas medidas de urgência em favor do autor. 242 Andrade (2010, p. 41) se refere às bases mínimas do justo processo cristalizadas na Constituição brasileira: os direitos e garantias fundamentais previstos no art. 5º, a independência e autonomia do Poder Judiciário e da magistratura, o dever de fundamentação de todas as decisões judiciais e administrativas, colocando em destaque o princípio da duração razoável do processo. Esse princípio, incorporado ao art. 5º da Constituição pela Emenda Constitucional nº 45/2004 115 como concretização do princípio da economia processual, passou a ser integrante, de modo explícito, do devido processo legal ou do justo processo. Nas palavras do autor, O atual princípio da duração razoável é um dos mais importantes para garantir o princípio maior no qual está inserido: o do „justo processo‟. Isso porque não é possível adjetivar um processo de justo se ele não tiver uma duração razoável. (ANDRADE, 2010, p. 45) Tudo a fim de que o processo possa cumprir – e bem (=efetivamente) – sua missão institucional de atuar o direito material, resolvendo eficazmente, e em tempo razoável, a situação de crise em que este eventualmente se encontre. Até porque, como registrado, a real existência e efetividade dos direitos materiais, quando violados, dependem da efetividade do processo, sob pena de a conduta antijurídica daquele que viola o direito subjetivo provocar uma espécie de morte do direito material por asfixia. Daí, pois, a necessidade de realização jurisdicional dos direitos não diferir do adimplemento ou cumprimento espontâneo, de modo a permitir a concreta atuação do direito material. (ANDRADE, 2010, p. 65) Marinoni (2008, p. 43) observa que o reconhecimento do direito à tempestividade da prestação jurisdicional está relacionado à reformulação da concepção clássica do direito de ação, na medida em que se passou a atribuir-lhe significado de direito à tutela jurisdicional efetiva. O autor ressalta que, embora o direito à duração razoável do processo já estivesse embutido no próprio direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV, Constituição), foi erigido como postulado constitucional autônomo, o que tornou fora de dúvida o dever de o Estado dar tempestividade à tutela jurisdicional, mediante atuações do legislador, do administrador e do juiz. Dentre as formas de atuação do legislador (MARINONI, 2008, p. 46), ele destaca a necessidade de criação de técnicas voltadas à aceleração do procedimento comum e de procedimentos especiais para atender a situações jurídicas que reclamem tratamento prioritário e urgente. Deve o processualista se preocupar com a duração do processo, mas sem, é claro, perder de vista valores como o contraditório e a ampla defesa, ligados à segurança processual, valor também essencial ao processo justo. A celeridade é uma das garantias que compõem o 115 A Emenda Constitucional nº 19/98 já havia incluído o princípio da eficiência entre aqueles explicitamente mencionados como de observância obrigatória no âmbito da administração pública direta e indireta de todos os 243 devido processo legal, mas não a única. “Um processo de empenho garantístico é por força um processo menos célere” (BARBOSA MOREIRA, 2004, p. 5). Daí a afirmação de Bedaque (2007, p. 49) “Processo efetivo é aquele que, observado o equilíbrio entre os valores segurança e celeridade, proporciona às partes o resultado desejado pelo direito material.”. O tratamento correto da equação rapidez-segurança é um dos pontos fundamentais quando se trata da efetividade do processo. Toda sentença ou provimento executivo, como garante Dinamarco (2005, p. 370), tem sua eficácia perenemente ameaçada pelo passar do tempo, inimigo declarado e incansável do processo. Daí a importância das medidas cautelares e antecipatórias, garantindo a obtenção dos resultados desejados naqueles casos em que a duração demasiadamente longa do processo pode causar o desgaste da utilidade da decisão final. Barbosa Moreira (1983, p. 77) já alinhava todas as exigências acima citadas a fim de que o processo possa merecer a qualificação de “efetivo” 116. São as seguintes exigências apresentadas pelo autor 117 , que praticamente resumem a exposição feita nesse capítulo: a) o processo deve dispor de instrumentos de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos (e outras posições jurídicas de vantagem) contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, quer se possam inferir do sistema; b) esses instrumentos devem ser praticamente utilizáveis, ao menos em princípio, sejam quais forem os supostos titulares dos direitos (e das outras posições jurídicas de vantagem) de cuja preservação ou reintegração se cogita, inclusive quando indeterminado ou indeterminável o círculo de eventuais sujeitos; c) impende assegurar condições propícias à exata e completa reconstituição dos fatos relevantes, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder, à realidade; d) em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno de específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento; e) cumpre que se possa atingir semelhante resultado com o mínimo dispêndio de tempo e energias. Por fim vale ressaltar, como observado acima, que a busca por efetividade da tutela Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 37). 116 É impressionante o pioneirismo de Barbosa Moreira, que, em 1983, apontava a insuficiência das tutelas puramente repressiva e individual no dispositivo constitucional que previa o direito de ação; a escassez de hipóteses de legitimidade das associações para atuar em defesa de direitos de seus participantes; a necessidade de critérios de avaliação da idoneidade das associações para que se possam reputar legitimadas; a existência de uma série de problemas técnicos e práticos da tutela coletiva, que atormentam os juristas até hoje, como os relacionados aos efeitos da coisa julgada coletiva; a escassez de iniciativas instrutórias dos juízes; a desnecessidade da execução forçada; a necessidade de reforço das medidas coercitivas e da tutela preventiva; a importância da duração razoável do processo; o problema do imprescindível aparelhamento do Poder Judiciário; e inclusive, a grandiosidade do mandado de segurança como instrumento de tutela preventiva. 244 jurisdicional, conseqüência necessária do novo perfil do processo e das novas situações de direito substancial, orienta não somente o legislador na criação de procedimentos especiais, mas também os aplicadores do Direito na interpretação e compreensão do ordenamento jurídico. Neste trabalho ambos os aspectos foram abordados, uma vez que seu objetivo é demonstrar a especialização do mandado de segurança coletivo na tutela dos direitos coletivos líquidos e certos violados ou ameaçados pelo Poder Público, estimulando sua correta utilização pelos aplicadores do Direito. Bedaque (2009, p. 78) ressalta que as iniciativas de reformulação do perfil do processo não devem se limitar ao aspecto legislativo do Direito Processual, pois, mais importante do que alterar a lei, seria mudar a mentalidade dos operadores desse ramo do Direito, que devem se conscientizar dos verdadeiros objetivos de sua ciência. A mudança constitucional do perfil do processo deveria refletir, sobretudo, na mentalidade dos processualistas e operadores o direito, que necessariamente devem pensar o direito processual voltado ao direito material e à luz dos valores da Constituição. Daí porque Dinamarco (2005, p. 371) garante a necessidade de uma postura mental favorável à idéia instrumentalista, quando, em situações inúmeras e imprevisíveis, o intérprete fica em “dilema entre duas soluções, uma delas mais acanhada e limitativa da utilidade do processo e outra capaz de favorecer a sua efetividade”. Seria dever do juiz e do cientista do processo romper com os preconceitos irracionais e pensar como mandam os novos tempos, “conscientizando- se dos objetivos de todo o sistema e, para que possam ser efetivamente alcançados, usar intensamente o instrumento processual”. Dinamarco (2005, p. 372) propõe um novo “método de pensamento”, a ser perenemente aplicado na interpretação dos textos, dos casos particulares e do sistema processual em si mesmo. Esse método impõe a necessidade de encarar o processo de uma perspectiva teleológica, instrumentalista, com o reconhecimento de sua importante missão perante a sociedade e as suas instituições políticas. Afinal, nas palavras de Theodoro Júnior (1997, p. 44), com as quais finalizamos esse capítulo: Mais prestigiado e acatado será, destarte, o Direito Processual Civil quanto mais se mostrar capaz de servir, com presteza e eficiência, os ditames do direito material; ou seja, quanto mais conseguir convencer de que as formas que impõe são, de fato, as que se revelam úteis e necessárias para a mais fácil e justa atuação da vontade da lei material. 117 Essas exigências de Barbosa Moreira também são apontadas como aspirações atuais do Direito Processual Civil por Theodoro Júnior (1997, p. 45). 245 14.1. Maior adequação e eficiência do mandado de segurança Apesar existirem, desde 1994, outros instrumentos e técnicas genéricos que tornam o mandado de segurança substituível, ainda assim ele é amplamente utilizado, conforme observado no levantamento estatístico (Tabelas 22 e 23). Se o crescimento na sua utilização não foi proporcional ao aumento das ações em geral (Gráficos 16 e 17), também não houve redução na sua utilização, apesar de existirem outros instrumentos substitutos. Sua tão ampla utilização se dá, a nosso ver, por razões de ordem jurídica, histórica e sociológica, que o tornam instrumento mais adequado e eficiente para a tutela de determinado direito, aquele violado ou ameaçado por ato do Poder Público. Primeiro, devemos relembrar que todas as modernas técnicas introduzidas no Código de Processo Civil buscando dar maior efetividade às decisões podem ser aplicadas ao mandado de segurança. Como afirma Bueno (2002, p. 9): Se, mesmo para as ações entre particulares (direito privado), rompendo-se dogmas clássicos do direito civil de que o inadimplemento da obrigação conduz, necessariamente, às perdas e danos (Código Civil de 1916, art. 1.056; Código Civil de 2002, art. 389), a tutela específica tem ganhado, gradativamente, terreno e desenvolvimento (CPC, art. 461 e Código do Consumidor, art. 84), com maior razão, o mandado de segurança deve valer-se e aproveitar-se desse desenvolvimento para cumprir sua missão constitucional. A Lei n 10.444, de 7 de maio de 2002, que altera o art. 461 e cria um novo art. 461-A no Código de Processo Civil, voltado especificamente para a tutela específica das obrigações de dar coisa, é prova contundente dessa tendência do direito positivo brasileiro. Assim é que os estudos processuais civis relativos à mandamentalidade ou executividade plena das ações (Código do Consumidor, art. 84, e CPC, art. 461) têm – e muito – a contribuir e a incrementar o estudo do mandado de segurança, tornando-o cada vez mais efetivo, isto é, destinado, mais do que nunca, a dar ao impetrante precisamente aquilo a que faz jus. Theodoro Júnior (2009, p. 65), nesse mesmo sentido, afasta uma primeira leitura da nova lei que a considera mais tímida do que as recentes reformas do Código de Processo Civil, no sentido de que haveria maior efetividade da prestação jurisdicional no sistema codificado atual do que nas regras especiais do mandamus renovado: Não corresponde à garantia do processo justo nem tão pouco à natureza constitucional do mandado de segurança a interpretação que o inferiorize à dinâmica do processo comum. Daí por que assiste razão àqueles que preconizam a observância na tramitação do mandado de segurança de todas as conquistas de efetividade alcançadas pela legislação processual civil, ainda que não constantes da lei especial. A aplicação subsidiária do Código, na espécie, não contrariaria a lei própria do mandamus; a complementaria, enriquecendo-a pela técnica de aplicação supletiva ou 246 subsidiária Sobretudo, encontraria inspiração e justificação nos princípios constitucionais aplicáveis aos direitos fundamentais e que serviram de base à modernização da codificação processual civil operada nos últimos tempos. O mandado de segurança contempla em seu regime, além de todas as inovações trazidas nas reformas do Código de Processo Civil 118 , as peculiaridades próprias presentes em seu regramento especifico (Lei nº 12.016/2009), o que reforça a efetividade de suas decisões. Ele possui rito sumaríssimo, com ausência de instrução probatória, o que resume seu procedimento, basicamente, a inicial, informações, parecer do Ministério Público e sentença. No máximo, há apresentação de documento que esteja em repartição, estabelecimento público, em poder de autoridade pública e, agora, de particulares (art. 6º, §1º). A sumariedade do procedimento do mandado de segurança decorre da violação de direito líquido e certo, por essa razão podemos dizer que a sumariedade encontra-se implicitamente prevista no texto constitucional. O art. 17 da antiga Lei nº 1.533/1951 garantia ao mandado de segurança prioridade de tramitação sobre todos os atos judiciais, exceto o habeas corpus. Também o art. 20 da nova Lei nº 12.016/2009 garante que “Os processos de mandado de segurança e os respectivos recursos terão prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo habeas corpus”. A existência de rito sumaríssimo e a prioridade de tramitação deveriam fazer com que o mandado de segurança fosse julgado com extrema rapidez em nosso sistema judiciário. Infelizmente essa celeridade não foi observada na análise estatística realizada. Ainda assim, parece haver um consenso quanto a maior celeridade do mandado de segurança em relação a outras ações com dilação probatória ampla. Além disso, a previsão do crime de desobediência reforça o cumprimento de suas decisões. Conforma já observado, a sentença do mandado de segurança pode assumir caráter mandamental, na medida em que ela deve ser cumprida diante de simples notificação do juiz prolator da decisão, sob pena de configuração do crime de desobediência: O caráter mandamental dessa sentença traduz-se em que ela contém uma determinação inescusável, à autoridade pública, para a prática do ditame judicialmente posto. É a cominação, em si, que há de ser cumprida, não se admitindo qualquer via subsidiária ou satisfativa. (FERRAZ, 1996, p. 176) De acordo com Barbi (2002, p. 276), o Direito brasileiro evoluiu no sentido de não permitir a Administração escolher entre praticar o ato, cumprindo a sentença mandamental, ou 118 Excetuando-se aquilo que é incompatível com seu regime, como, por exemplo, os §§1º e 2º do art. 461 do CPC (conversão da obrigação em perdas e danos). 247 indenizar o dano causado. No Direito brasileiro as injunções contra a Administração são admitidas 119 e ela, quando condenada, deve cumprir a decisão judicial de forma específica e não pela forma reparatória. Isso vale para todos os tipos de ação, não apenas para o mandado de segurança. A diferença é que no mandado de segurança, além das medidas tendentes a tornar efetivo o direito reconhecido na sentença previstas no Código de Processo Civil (multa diária, busca e apreensão etc), existe a previsão do crime de desobediência, o que estimula o cumprimento da decisão. Essa maior adequação do mandado de segurança é ressaltada por Barbi (1996, p. 64), que garante que ele tem o procedimento mais rápido, mais célere, mais ágil e simples de que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro. O papel da duração razoável na efetividade do processo é nítido, daí a importância de instrumentos céleres, como o mandado de segurança. Assim, no contexto de busca por efetividade concreta do processo, merece destaque o procedimento do mandado de segurança, que, embora com seus contornos atuais fixados desde 1934, possui todas as modernas características exigidas para um processo efetivo: objeto especial (tutela de direito individual e coletivo, líquido e certo contra ataque de autoridade pública), sumariedade, simplicidade procedimental, valorização da tutela específica e inibitória. Essas características são ressaltadas pela doutrina: Segundo boa parte da doutrina, a especialidade do mandado de segurança se encontraria na previsão constitucional de procedimento especial, mais célere, despido de formalismo, em que só se permitiria aprova documental, não se admitindo, ainda, perseguição de parcelas meramente patrimoniais, tendo em vista a vocação constitucional do instituto para realização in natura dos direitos, mediante execução específica por meio de ordem emitida pelo juiz. (ANDRADE, 2010, p. 368) O mandado de segurança se enquadra dentro das denominadas „tutelas jurisdicionais diferenciadas‟, tendo em vista que possui dignidade constitucional, procedimento diferenciado extremamente célere, provimento com eficácia mandamental e seus pressupostos constitucionais se diferenciam dos requisitos de admissibilidade previstos para as tutelas jurisdicionais comuns. (ALMEIDA, 2003, p. 276) Não obstante possa existir uma multiplicidade de ações aptas a tutelar os mesmos direitos, o mandado de segurança é o instrumento mais adequado para tutelar um certo tipo desses direitos, aquele violado ou ameaçado pelo Poder Público, desde que existente prova pré-constituída dessa lesão ou ameaça. Como garante Leyser (2002, p. 20), citando Wambier: 119 “O mandado de segurança assenta num princípio que o nosso direito anterior desconhecia: a possibilidade de ser a administração compelida a praticar certo ato ou abster-se de o praticar.” (NUNES, 1980, p. 37) 248 Em síntese, o mandado de segurança “é uma tutela mais qualificada aos direitos líquidos e certos, isto é, aos direitos cuja demonstração independe de prova em dilação”. Além disso, é da própria ratio do mandado de segurança a agilidade e presteza a amparar o cidadão contra atos praticados pela autoridade, que possam vir a se mostrar contra o direito. Mas mais que razões de ordem jurídica, existem também razões de ordem histórica e sociológica a determinar a maior adequação do mandado de segurança frente a outros instrumentos processuais. Em primeiro lugar, destacamos a tradição do mandado de segurança no processo brasileiro, com raízes profundas na tutela interdital do direito lusitano e na prática do habeas corpus, conforme já analisado nos capítulos 3 e 4. Independente da definição que se adote quando ao objeto do mandado de segurança, todas farão menção a “ato de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público” ou locução semelhante. A especificidade do objeto do mandado de segurança frente a outros instrumentos está na sua tutela exclusiva contra arbitrariedades do Poder Público. É mais que uma especificidade frente a outros instrumentos do ordenamento jurídico, é uma exclusividade brasileira no Direito Comparado, o que foi observado no capítulo 6. Essa especificidade de seu objeto tem relação com a grande tradição de abuso do Poder Público brasileiro, de acordo com Barbi (1996, p. 66). A população brasileira, como em geral as populações latino-americanas, sempre viveu atormentada por atos ilegais da Administração e sempre buscou meios de se defender contra os excessos praticados pelo Poder Público (BARBI, 1996, p. 58). Dentre os diversos períodos em que a população se viu na mira de ilegalidades praticadas pelo Poder Público se destacam os períodos da ditadura civil, de 1937 a 1946, e da ditadura militar, entre 1964 e 1985, comentados por Sidou, aos quais o mandado de segurança sobreviveu: O advento do instituto pátrio coincidiu com a reinstauração da democracia no Brasil, e resultou de uma Carta política impregnada da cautela em resguardar de nova ditadura o Estado. Cautela vã, porquanto três anos decorridos, era implantado o “Estado Novo”, de índole totalitária, o qual operou no mandado de segurança enorme restrição: inadmitia-se contra abusos de poder praticados pelo “Chefe da Nação” e seus lugar-tenentes nos Estados. Mas, como dissemos, mediante engenhoso artifício, os tribunais adotaram a orientação, seguida daí por diante, de que o remedium iuris alveja mais o mandatário do que o mandante, mais o agente direto do abuso de direito do que o autor mental do ato injurídico. 249 A ditadura civil do “Estado Novo” de 1937 durou até o término da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil voltou a praticar o regime democrático, pela Carta de 1946. Nova síncope ocorreu com a implantação da ditadura militar que aluiu a ordem jurídica, de 1964 até o dia 15 de março de 1985. Neste último eclipse forma excluídos de apreciação pelo Poder Judiciário, em qualquer tipo de ação, todos os atos praticados com base nos “atos institucionais” então editados, o mais nefando dos quais, o Ato Institucional n. 5, de 1968, determinou o recesso do Poder Legislativo; a cassação de mandatos parlamentares; a supressão dos direitos políticos de quaisquer cidadãos; a suspensão de numerosas garantias constitucionais ou legais; as penas de banimento e confinação; o confisco de bens; e tornou inócuo o habeas corpus. Mesmo assim, tal como à época da ditadura civil de Getúlio Vergas, as Cortes de justiça, quase estranguladas embora pela ditadura militar dos generais, não se arrecearam em conceder mandados de segurança para corrigir os desmandos legislativos que o casuísmo iliberal não estava preparado convenientemente para disfarçar. Tem-se, pois, que em cinqüenta anos, desde quando implantado em 1934, abstraídos os períodos ominosos de 1937 a 1945 (Estado Novo) e de 1964 a 1985 (Revolução de 31 de março), o mandado de segurança foi aplicado, sob regime de liberdade, em apenas vinte e um anos. Como quer que seja e apesar desses hiatos resultantes de nossa democracia intermitente, o instituto destinado a ser, no Brasil, o coroamento do verdadeiro Estado de direito, conseguiu revestir-se de características tão próprias que a Constituição democrática agora elaborada não precisou acrescentar nada em seu clássico enunciado. (SIDOU, 1989, p. 201) Esses fatores históricos e sociais também podem explicar, a nosso ver, a tão ampla utilização e a consolidação do mandado de segurança no Brasil. 14.2. Maior adequação e eficiência do mandado de segurança coletivo Apesar de ser nova garantia constitucional, o mandado de segurança coletivo possui características semelhantes ao mandado de segurança tradicional, sobretudo ligadas aos seus requisitos de impetração e ao seu procedimento. Tal como o tradicional, o mandado de segurança coletivo possui rito sumaríssimo, prioridade de tramitação e tutela liberdades contra atos do Poder Público, corrigindo ilegalidade ou abusividade com a obtenção de prestação in natura. Logo, as circunstâncias acima identificadas que tornam o mandado de segurança mais adequado e eficiente em relação a outros instrumentos processuais, também servem para garantir a maior adequação e eficiência do mandado de segurança coletivo frente a outros instrumentos de tutela coletiva. Além delas, outras características, próprias da tutela coletiva, contribuem para o mesmo propósito. 250 A prioridade de tramitação do mandado de segurança coletivo é decorrência não apenas do comando do art. 20 da Lei nº 12.016/2009, mas também do “princípio da máxima prioridade jurisdicional da tutela jurisdicional coletiva” (ALMEIDA, 2003, p. 572), que tem sua razão de ser no fato do Direito Processual Coletivo resolver um grande conflito social e evitar a proliferação, não muito desejada, de inúmeras demandas individuais, bem como o surgimento de decisões conflitantes. Esse princípio é uma conseqüência da supremacia do interesse social sobre o individual. Conforme tantas vezes tratado neste trabalho, a tutela coletiva gera economia processual 120 , celeridade e maior acesso à justiça. Nesse sentido, a eficiência do mandado de segurança coletivo é evidente. Numa só relação processual pacifica um número grande de conflitos, previne o ajuizamento de novos processos, previne a incongruência de decisões e a instabilidade social. Soluciona de forma mais célere e igualitária o conflito, não só jurídico, mas social. Garante acesso à justiça a pessoas que, individualmente, não buscariam o Judiciário por deficiências culturais e econômicas ou pela pequena expressividade do dano individualmente sofrido. Tudo isso, que já foi apresentado e que constitui a essência da tutela coletiva, também demonstra a maior eficiência do mandado de segurança coletivo em relação a outros instrumentos processuais. Os principais escopos do mandado de segurança coletivos são o controle do Poder Público e a defesa de direitos coletivos lato sensu. Esses objetivos buscados com a criação do writ coletivo acabaram lhe atribuindo um objeto bem específico, a tutela coletiva exclusiva contra o Poder Público. A nosso ver, as peculiaridades do direito material tutelado no mandado de segurança coletivo (direitos coletivos lato sensu) e de sua forma de violação (pelo Poder Público), ligadas ao seu objeto, tornam imprescindível a existência e a utilização preferencial desse instrumento processual específico, mais adequado e eficiente que os demais e apto a garantir uma tutela jurisdicional mais eficaz e efetiva. Ele se relaciona diretamente àquelas hipóteses de violação em massa de direitos pela Administração, tão típicas da sociedade atual e que merecem tratamento diferenciado. O mandado de segurança coletivo distingue-se das demais ações, não apenas pela especificidade de seu objeto, mas também pela sumariedade de seu procedimento. Nesses dois 120 “A função da economia no processo transcende, assim, a mera preocupação individualista de poupar trabalho a juízes e partes, de frear gastos excessivos, de respeitar o dogmatismo dos prazos. Não visa à comodidade dos agentes da atividade processual, mas à ânsia de perfeição da justiça humana – reconhecer e proclamar o direito, com o menor gravame possível.” (LACERDA, 1985, p. 6) 251 elementos reside a especialização do mandado de segurança coletivo frente a outros instrumentos processuais. A existência do mandado de segurança coletivo no ordenamento jurídico se coaduna perfeitamente com as exigências apresentadas por Barbosa Moreira a fim de que o processo possa merecer a qualificação de “efetivo”. O mandado de segurança coletivo é mais adequado e eficiente que ações que seguem o rito ordinário, mais adequado que a ação civil pública, inclusive na tutela de direitos difusos, razão pela qual não procede o argumento de que o mandado de segurança não poderia tutelar direito difuso porque este já seria tutelado pela ação civil pública. A existência de outros instrumentos processuais não é empecilho para a tutela de direitos difusos via mandado de segurança coletivo, sobretudo porque ele é mais adequado e eficiente na tutela desses direitos. Barbi também argumenta pela maior adequação do mandado de segurança coletivo, inclusive para a tutela de direitos difusos: Mas encontramos a maioria dos autores entendendo que os interesses difusos podem ser objeto do mandado de segurança coletivo e isto é da maior importância prática, porque o mandado de segurança é o procedimento mais rápido, mais célere, mais ágil e simples que temos. Ações do tipo ordinária e civil pública são demoradas e complicadas. Já no mandado de segurança, uma vez que não haja dúvidas quanto aos fatos, o processo é simplíssimo, julga-se em pouco tempo. Além disso, existe a possibilidade da concessão de uma suspensão liminar do ato impugnado até sem ouvir a parte contrária. Tudo isso faz com que seja desejável que realmente o mandado de segurança seja considerado um instrumento processual adequado para a proteção dos interesses difusos. (BARBI, 1996, p. 64) Vale lembrar, como visto acima (capítulo 13), que, para os entes intermediários da sociedade, há uma parcela considerável de direitos para qual o mandado de segurança coletivo não tem substituto à altura. Para tutelar determinadas matérias só restaria o ajuizamento de ações individuais, se não existisse o mandado de segurança coletivo, com claro prejuízo a celeridade e economia processuais. Ou seja, para a proteção de direitos relacionados a essas matérias, mais do que mais adequado e eficiente, o mandado de segurança coletivo é o único instrumento de tutela coletiva à disposição desses entes intermediários. 252 PARTE IV 15. A PESQUISA ESTATÍSTICA Não há dúvidas quanto à importância das pesquisas estatísticas no âmbito jurídico, elas fornecem diagnóstico dos problemas, de evoluções, da correção ou não de medidas tomadas e orientam as alterações legislativas, fornecendo critérios sólidos para os trabalhos de reforma. Por essa razão, segundo Barbosa Moreira (2004, p. 10): Antes de reformar a lei processual mandam a lógica e o bom senso que se proceda ao diagnóstico, tão exato quanto possível, dos males que se quer combater e das causas que os geram ou alimentam. (...) Sem essa verificação, nenhum critério sólido teremos para empreender o trabalho de reforma. Corremos o risco de sair para atacar moinhos de vento, enquanto deixamos em paz e sossego os verdadeiros inimigos. O relatório do programa “Justiça em Números” (2009, p. 11), elaborado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça, ressalta a importância das estatísticas processuais: Característica intrínseca ao conceito de Estado moderno é a função de planificação 121 . Não raro, os gestores públicos servem-se dos dados quantitativos como apoio a toda sorte de decisões políticas e administrativas. Sobretudo a partir da última década do século XX, as estatísticas se tornaram insumos indispensáveis para orientar a formulação de políticas públicas e de planejamento estratégico na Administração Pública brasileira. Não obstante a importância das pesquisas estatísticas, são poucas as pesquisas desse tipo realizados pelos pesquisadores do Direito no Brasil, que têm preferência pelas pesquisas dogmáticas, como se Direito e números não fossem categorias conciliáveis. Além disso, pairam muitas desconfianças em torno dos números no âmbito jurídico (BEDAQUE, 2007, p. 21). As pesquisas estatísticas jurídicas que existem, ou são insuficientes, ou insuficiente é a respectiva divulgação. Não podemos deixar de mencionar a dificuldade do pesquisador em obter os dados necessários para sua pesquisa, uma vez que a grande maioria dos tribunais brasileiros não disponibiliza os dados numéricos de sua prestação jurisdicional, chegando ao ponto de negar solicitações desse tipo. Tem-se consciência da realidade dos tribunais brasileiros diante do 253 crescente aumento da demanda por justiça. No entanto, o acúmulo de atividades não pode servir de justificativa para a não veiculação ou recusa de informações que podem servir justamente para a melhoria da prestação da atividade jurisdicional. O acesso aos dados estatísticos melhorou muito com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem como suas atribuições, dispostas no art. 103-B, §4° da Constituição: VI - elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa. O relatório do “Justiça em Números” (2009, p. 11) afirma que a instalação do Conselho Nacional de Justiça, juntamente com as discussões no Congresso Nacional para a reforma do Poder Judiciário e a Emenda Constitucional nº 45, estariam na gênese do levantamento de dados estatísticos e de indicadores do Poder Judiciário brasileiro. Em agosto de 2005, o Conselho Nacional de Justiça criou o Sistema de Estatística do Poder Judiciário (SIESPJ), pela Resolução nº 4/2005, que passou a concentrar e analisar os dados a serem obrigatoriamente encaminhados por todos os órgãos judiciários do país. Esse sistema foi regulamentado em 2006, pela Resolução nº 15/2006, e, em 2009, foi finalmente editada a Resolução nº 76/2009, que passou a dispor sobre os princípios do Sistema de Estatística do Poder Judiciário, estabelecendo seus indicadores, fixando prazos e determinando penalidades aos órgãos judiciários que não atenderem aos prazos fixados para envio de dados estatísticos. O Conselho Nacional de Justiça criou um programa chamado “Justiça em Números”, deflagrado em 2003, por iniciativa do Ministro Nelson Jobim, que busca a criação de um panorama global da Justiça, por meio de dados disponibilizados pelos tribunais sobre processos distribuídos e processos julgados, número de cargos de juízes ocupados e ainda o número de habitantes atendidos por juiz. Conforme veiculado no site do CNJ, seu objetivo é que os dados sejam referência para a criação de uma cultura de planejamento e gestão estratégica. Outra finalidade do “Justiça em Números” é fornecer bases para construção de políticas de gestão e possibilitar a avaliação da necessidade de criação de cargos e funções. O 121 Aqui se utilizou o conceito de planificação moderna como a atividade que visa fixar objetivos coerentes e prioridades para o desenvolvimento econômico e social, determinar os meios apropriados para atingir tais objetivos e colocá-los em prática (Bettelheim, 1968, apud Maíra Baumgartem, 2002). 254 estudo também enumera relação de despesas com pessoal, recolhimentos e receitas, informática, taxa de congestionamento e carga de trabalho dos juízes. Já foram publicados 7 relatórios anuais, contendo dados da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho desde o ano de 2004 122 . De acordo com relatório do “Justiça em Números” (2010, p. 7): Iniciada em 2004, a publicação Justiça em Números, agora em sua sétima edição, consolidou a importância da coleta e análise de dados estatísticos sobre o Poder Judiciário, em sintonia com a praxis adotada nas democracias mais avançadas do mundo. A ampla divulgação desses dados para o escrutínio público se dá não somente sob a ótica da transparência, que deve permear todos os Poderes da República, mas também como ferramenta essencial à formulação e ao planejamento de políticas judiciárias. E com o relatório do “Justiça em Números” (2007, p. 6): Os indicadores permitem que seja traçado um perfil da Justiça como um todo, e, por sua ampla abrangência de informações, permite a construção de métricas que avaliam os tribunais não somente no quesito litigiosidade, mas também nas matérias financeira e de acesso à justiça, além de relacionar esses dados com o perfil de cada região jurisdicional, com base nas informações sobre sua população e economia. A construção desses indicadores representa uma tentativa de criar uma cultura judicial de planejamento e gestão estratégica em um contexto político-econômico de recursos escassos. O Conselho Nacional de Justiça possui em seu site área destinada à apresentação dos relatórios do programa “Justiça em Números” e dos dados encaminhados pelos diversos tribunais do país 123 . Além disso, alguns tribunais brasileiros passaram a disponibilizar em seus próprios sites os dados estatísticos exigidos pelo Conselho, além de outros dados relativos a sua prestação jurisdicional. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais foi um deles, disponibilizando suas estatísticas 124 , por meio de relatórios, planilhas e gráficos mensais, desde 2008. 15.1. O objetivo da pesquisa e os dados analisados O objetivo principal da pesquisa estatística é apresentar um panorama global sobre a realidade do mandado de segurança coletivo no Tribunal de Justiça do Estado de Minas 122 Existe relatório simplificado referente ao ano de 2003 no site do Conselho Nacional de Justiça. 123 Disponível em: . Acesso em 21/02/2012. 124 Disponível em: . Acesso em: 21/02/2012. 255 Gerais. Tivemos como unidade de análise, portanto, o instituto jurídico do mandado de segurança coletivo, que é o objeto central da pesquisa. Foram analisados dois tipos de dados: o primeiro (dados coletados), os dados extraídos pela pesquisadora da jurisprudência e do andamento de processos julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais sobre mandado de segurança coletivo, a partir do site do Tribunal, por meio de amostra não probabilística, escolhida por conveniência, sobretudo para enfoque qualitativo; o segundo (dados solicitados), os dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais sobre mandado de segurança, por meio de amostra probabilística, para enfoque quantitativo. A escolha do Tribunal de Justiça mineiro se deu em razão da facilidade de acesso aos dados pelo site do Tribunal, um dos poucos do Brasil a disponibilizar o inteiro teor de todos os acórdãos publicados e pela familiaridade na sua utilização. Além disso, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, conforme já observado, disponibiliza suas estatísticas, por meio de relatórios, planilhas e gráficos mensais, desde 2008. Buscou-se, especificamente, identificar os assuntos tratados nos mandados de segurança coletivo, as entidades impetrantes, as pessoas jurídicas demandadas, os resultados obtidos, o tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos, de forma isolada e em comparação com o tempo de outros processos, e as taxas de crescimento ou diminuição na utilização do mandado de segurança em relação a outros processos. Os dados colhidos de forma independente, a partir do site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (jurisprudência e andamentos processuais), e os dados fornecidos pelo mesmo tribunal foram analisados separadamente. 15.2. As limitações da pesquisa A utilização indiscriminada da classe “mandado de segurança” nos bancos de dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (SISCOM e SIAP) 125 , quando na prática se tratava de mandado de segurança coletivo, impediu a solicitação de dados referentes especificamente ao mandado de segurança coletivo ao Tribunal. Assim, tiveram que ser solicitados dados referentes à quantidade de processos envolvendo “mandados de segurança” e não “mandados de segurança coletivos”. 125 Considerando que parte da doutrina sustenta que o mandado de segurança coletivo não se trata de instituto autônomo, mas simples espécie do gênero mandado de segurança, essa utilização indiscriminada da classe “mandado de segurança” não constitui tecnicamente um erro. 256 Para obter dados específicos dos mandados de segurança coletivos, objeto central da pesquisa, a única saída foi recorrer aos acórdãos disponíveis no site no Tribunal, que, em seu conteúdo, faziam expressa referência à modalidade coletiva de mandado de segurança. 15.3. Amostra 15.3.1. Dados coletados A partir do site do Tribunal, seguindo os itens: Consultas> Jurisprudência> Acórdãos, foi feita uma pesquisa com a expressão, entre aspas, “mandado de segurança coletivo”, decisões com data de julgamento de 01/01/2000 a 31/12/2010. Foram localizados inicialmente 1133 acórdãos. Limitou-se a pesquisa aos acórdãos de apelação cível e reexame necessário que tinham como classe de origem o mandado de segurança coletivo e aos acórdãos de mandados de segurança coletivo originários. Não foram pesquisadas decisões monocráticas, uma vez que não são todos os Desembargadores que disponibilizam o inteiro teor das decisões monocráticas no site do Tribunal. Excluiu-se os agravos de instrumento, uma vez que esses discutiam, em geral, apenas questões processuais ou o deferimento de liminares, aspectos não relevantes ao objetivo da pesquisa. Após essa redução chegou-se ao número de 266 acórdãos, que serviram de base para a análise. Essa foi a amostra selecionada para a pesquisa. Ela foi ordenada com base na data de julgamento dos acórdãos (Tabela 1). Foram extraídos os seguintes indicadores dos acórdãos e dos andamentos processuais: número na 1ª instância (se houver), número na 2ª instância, data da impetração 126 , data da sentença (se houver), data do cadastramento do recurso no TJ 127 (se houver), data do acórdão, data da publicação do acórdão, natureza jurídica do impetrante, pessoa jurídica interessada, pedido, resultado até a 2ª instância, assunto, código de assunto do CNJ. Alguns números de primeira instância são anteriores à implantação do SISCOM nas comarcas (formato “número/ano”, v.g, n° 4814/00), o que impossibilitou o acesso aos dados desses processos, tais como data de impetração e da sentença. Em alguns processos de 1ª instância, mesmo com o formato “comarca.ano.número-dígito” (v.g, n° 0145.99.003941-7), não foi possível localizar a data da sentença, uma vez que os processos foram cadastrados no 126 No caso de segundo julgamento do processo, a data de impetração foi considerada a data de chegada do processo para novo julgamento. 127 No caso de segundo julgamento do recurso, a data de cadastramento do recurso foi considerada a data de chegada do processo no Tribunal para novo julgamento. 257 SISCOM após essa data. Para as datas não localizadas foi atribuída a sigla “NL”. Depois de extraídos os indicadores, foi calculada a quantidade de mandados de segurança coletivo julgados a cada ano, de 2000 a 2010. Os impetrantes foram agrupados em: associações, sindicatos, entidades de classe, partidos políticos e outros. As federações e confederações foram consideradas sindicatos, assim como as centrais sindicais (ALVIM, 2010b, p. 313). As cooperativas (TJMG, AC 1.0000.00.164845-0/000) e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs (TJMG, AC 1.0145.03.094392-5/003) foram incluídas como associações. O grupo “outros” é formado pelo Ministério Público, pessoas físicas e pessoas jurídicas não legitimadas para a ação coletiva. As pessoas jurídicas interessadas foram agrupadas em: Estado MG, outras estaduais, Município BH, outros Municípios, outras municipais e privadas prestadoras de serviço público. Quando havia duas pessoas jurídicas interessadas, utilizou-se aquela vinculada a autoridade coatora que praticou o principal ato apontado como ilegal. Como a pesquisa se limitou à jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, as únicas pessoas jurídicas interessadas nos mandados de segurança coletivo eram os Municípios mineiros, o Estado de Minas Gerais, pessoas jurídicas da administração indireta deles e entidades privadas prestadoras de serviço público estadual e municipal. Isso porque o juízo a que deve ser submetida à causa (juízo competente) é determinado pela autoridade da qual emanou o ato (STJ, CC 17.438-MG). Como os mandados de segurança analisados foram restritos aqueles de competência originária ou recursal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais também as autoridades coatoras foram limitadas. Os pedidos foram reproduzidos a partir de passagens narradas nos acórdãos, podendo não corresponder fidedignamente aos pedidos formulados em cada petição inicial. A falta de correspondência exata não comprometeu a pesquisa, que pretendia tomar os pedidos apenas para fins de identificação dos assuntos tratados. Os resultados foram agrupados em: denegação, concessão (parcial ou total), extinção sem julgamento, sentença cassada e outros. Foram atribuídos assuntos com base na Tabela Unificada de Assuntos do CNJ, com seus respectivos códigos. Em alguns casos, mesmo sem localização do pedido foi possível atribuir assunto em razão do tipo de impetrante (v.g., diretório estudantil/ assunto: ensino; sindicato de servidores/ assunto: servidores públicos). Depois os assuntos foram agrupados em: servidor público estadual, servidor público municipal, tributário municipal, tributário estadual, concurso público, contribuição sindical, registros públicos, ensino, funcionamento 258 de bancos, concessões/permissões/autorizações, sistema de trânsito, licitação, fiscalização, bens públicos, outras garantias constitucionais (ex: direito ao acesso a informações públicas), outras licenças (ex: licenças para prestação de serviços específicos, como aluguel de caçambas) e outros atos administrativos (assuntos que não se enquadraram nos grupos anteriores). Com base nas datas coletadas, foi possível calcular o tempo de julgamento no Tribunal dos mandados de segurança coletivos recursais, ou seja, impetrados na 1ª instância, da data do cadastramento do recurso no TJ 128 (considerada a data de entrada TJ) até a data do acórdão. Nesse caso, a amostra era de 177 processos, que foram agrupados em julgamentos: acima de 360 dias, entre 330 e 360 dias, entre 300 e 330 dias, entre 270 e 300 dias, entre 240 e 270 dias, entre 210 e 240 dias, entre 180 e 210 dias, entre 150 e 180 dias, entre 120 e 150 dias, entre 90 e 120 dias, entre 60 e 90 dias, entre 30 e 60 dias, até 30 dias (escala mensal, até 1 ano). Foi calculado o tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 2ª instância (originários), da data da impetração 129 (data da entrada) até a data do acórdão. Nesse caso, a amostra era de 89 processos, que foram agrupados em julgamentos: acima de 360 dias, entre 330 e 360 dias, entre 300 e 330 dias, entre 270 e 300 dias, entre 240 e 270 dias, entre 210 e 240 dias, entre 180 e 210 dias, entre 150 e 180 dias, entre 120 e 150 dias, entre 90 e 120 dias, entre 60 e 90 dias, entre 30 e 60 dias, até 30 dias (escala mensal, até 1 ano). Também foi analisado o tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 1ª instância, da data da impetração 130 até a data da sentença. Nesse caso, a amostra deveria ser de 177 processos, mas foi de 121 processos, em razão de 56 processos com datas não localizadas. Eles foram agrupados em julgamentos: acima de 360 dias, entre 330 e 360 dias, entre 300 e 330 dias, entre 270 e 300 dias, entre 240 e 270 dias, entre 210 e 240 dias, entre 180 e 210 dias, entre 150 e 180 dias, entre 120 e 150 dias, entre 90 e 120 dias, entre 60 e 90 dias, entre 30 e 60 dias, até 30 dias (escala mensal, até um ano). Assim, foi possível comparar o tempo de julgamento dos mandados de segurança da 1ª (impetração X sentença) e da 2ª instância/originários (impetração X acórdão). Nesses dois casos seria possível fazer uma comparação útil, uma vez que o procedimento é idêntico, diferentemente 128 No caso de segundo julgamento do recurso, a data de cadastramento do recurso foi considerada a data de chegada do processo no Tribunal para novo julgamento. 129 No caso de segundo julgamento do processo, a data de impetração foi considerada a data de chegada do processo no Tribunal para novo julgamento. 259 do que ocorreria numa comparação com o tempo de julgamento na 2ª instância dos mandados de segurança recursais. Para os anos de 2008 a 2010 foi possível fazer uma comparação entre o tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos e o tempo de julgamento dos demais processos, uma vez que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais dispõe desses dados, mas somente para os anos de 2008 a 2010. Utilizou-se todos os julgamentos, originários e recursais, com segurança concedida e denegada, de forma idêntica a realizada pelo Tribunal, que não fez distinção qualquer entre os processos julgados. Nesse caso, os processos foram agrupados em julgamentos: acima de 180 dias, entre 150 e 180 dias, entre 120 e 150 dias, entre 90 e 120 dias, entre 60 e 90 dias, entre 30 e 60 dias, até 30 dias (escala mensal, até 6 meses), tal como feito pelo Tribunal. Por fim, foi calculado o tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 1ª instância, mas somente nos casos de concessão da segurança, da data de impetração 131 até a data do julgamento em 2ª instância. A amostra era de 70 processos, mas apenas 61 processos foram analisados, pois 9 possuíam datas não localizadas, que foram agrupados em julgamentos: acima de 1080 dias, entre 900 e 1080 dias, entre 720 e 900 dias, entre 540 e 720 dias, entre 360 e 540 dias, entre 180 e 360 dias, até 180 dias (escala semestral, até 3 anos). Com isso buscou-se saber quanto tempo, efetivamente, demora para que um mandado de segurança de 1ª instância seja julgado, uma vez que é irrelevante para tanto saber o tempo da impetração até a sentença, já que existe reexame necessário obrigatório das sentenças que concedem a segurança (art. 14, §1º da Lei nº 12.016/2009). Nesse caso, não foi analisado o tempo de duração dos processos impetrados na 1ª instância com segurança denegada, apenas concedida. Quando questionamos o tempo de duração dos processos, estamos preocupados com a demora na prestação jurisdicional, que é prejudicial, sobretudo, àqueles que tiveram efetivamente seus direitos violados e que tiveram isso reconhecido pelo Judiciário. 15.3.2. Dados solicitados Ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais foram solicitados dados sobre a quantidade de 130 No caso de segundo julgamento do processo, a data de impetração foi considerada a data de chegada do processo do Tribunal para novo julgamento. 131 Neste cálculo, mesmo no caso de segundo julgamento do processo, a data de impetração foi considerada a data real, uma vez que se pretendia avaliar quanto tempo efetivamente demorou para que os mandados de segurança coletivos de 1ª instância, com segurança concedida, pudessem produzir seus efeitos. 260 recursos e processos originários a partir de 1994, ano em que se iniciaram as reformas processuais no Código de Processo Civil, uma vez que se pretendia avaliar se outros instrumentos e técnicas genéricos substituíram a utilização do mandado de segurança. Nessa avaliação, necessitava-se do número de mandados de segurança (originários e em grau recursal), ano a ano, a partir de 1994. No entanto, como se imaginava tivesse havido um crescimento da demanda pelo Judiciário de forma geral, necessitava-se também do número total de processos, ano a ano, a partir de 1994, a fim de comparar as taxas de crescimento do número total de processos e do mandado de segurança. Diante disso, foram solicitados os seguintes dados ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais: I - Número total de processos originários e recursais cadastrados, ano a ano, a partir de 1994. II - Número de mandados de segurança originários (individuais e coletivos) cadastrados, ano a ano, a partir de 1994. III - Número de processos que tenham como classe de origem “mandado de segurança” (individual, coletivo e criminal) cadastrados, ano a ano, a partir de 1994. 15.4. O caráter científico da pesquisa As inúmeras limitações da pesquisa foram descritas, demonstrando que a medição efetuada não foi perfeita. “Na prática é quase impossível que uma medição seja perfeita. Geralmente existe um grau de erro.” (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2006). O relato de todas as imprecisões e lacunas foi feito, no entanto, a fim de garantir a validade e confiabilidade dos resultados obtidos. Deixar de relatar as limitações atentaria contra o caráter científico que a pesquisa pretendia ter. A produção do conhecimento científico, se diferencia do senso comum, pela sua possibilidade de verificação e reverificação, de acordo com os ensinamentos da professora Miracy Barbosa Gustin (informação verbal) 132 . O resultado da pesquisa deve ser verificável por processos científicos e passível de reverificação com a utilização dos mesmos processos. Daí sua constante afirmação de que, na pesquisa científica, não há de se falar em produção de verdade, mas de um resultado passível de ser reverificado. 132 Aulas ministradas no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na disciplina de Metodologia da Pesquisa, no 2º semestre de 2010. 261 15.5. Outras questões observadas na coleta de dados Antes da análise dos dados coletados, convém destacar algumas questões observadas durante a coleta de dados que têm especial relevância e relação com o objeto da pesquisa. Na coleta de dados da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais observou-se muitos processos tratados como mandados de segurança coletivos quando, na verdade, se tratavam de mandados de segurança individuais com litisconsórcio ativo. Isso foi observado, por exemplo, nas AC 1.0000.00.279306-5/000, AC 1.0000.00.289041-6/000, AC 1.0024.08.178866-3/001, AC 1.0024.04.336586-5/001, AC 1.0024.05.782303-1/001, AC 1.0024.04.337055-0/002, AC 1.0000.00.314921-8/000, AC 1.0223.04.141236-0/001, AC 1.0024.03.055766-4/001, MS 1.0000.00.198345-1/000, AC 1.0000.00.193351-4/000, MS 1.0000.08.475746-7/000l, AC 2.0000.00.500916-3/000. O exercício conjunto da ação por pessoas distintas, desde logo identificadas, não configura ação coletiva, mas um litisconsórcio ativo no mandado de segurança tradicional. Com propriedade, o Tribunal observou o erro cometido pelo juízo de 1ª instância ou pelas partes em alguns casos, como nas AC 1.0313.06.206680-5/004, AC 1.0000.00.298867- 3/000, AC 1.0000.00.290312-8/000, AC 1.0000.00.198615-7/000, AC 1.0000.00.307.903- 5/000, AC 1.0000.00.268.321-7/000, AC 1.0000.00.167042-1/000, AC 1.0000.00.350051- 9/000. Na AC 1.0521.05.046678-3/001 foi confirmada a concessão parcial da segurança em mandado de segurança impetrado por uma sociedade (não associação) civil privada, na defesa de direitos da sociedade, que foi tratado, erroneamente, como mandado de segurança coletivo. Houve 5 tentativas de impetração de mandado de segurança coletivo pelo Ministério Público. Em dois julgamentos ficou garantida a ilegitimidade do Ministério Público (AC 1.0000.00.311416-2/000 e AC 1.0248.05.001319-7/002). Nesse último, além da ausência de previsão de legitimidade do Ministério Público para impetração de mandado de segurança coletivo, foi afirmado que a matéria discutida fugia às atribuições do Ministério Público, posto que se referia à defesa de suposto direito individual disponível. Mas houve decisão no sentido da possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo pelo Ministério Público na AC 1.0628.05.000206-0/002, em que concedida a segurança pleiteada, para determinar a prorrogação do prazo de validade do concurso público para provimento de cargos do Município de Coluna, com imediata contratação de todos os aprovados no certame, para os cargos apontados no edital e que, 262 durante o prazo de validade, foram ou estão contratados a título precário. E na AC 1.0120.06.000637-2/001, em que concedida a segurança para afastar a cobrança da contribuição de iluminação pública no Município de Candeias tendo como base de cálculo aspecto quantitativo previsto no projeto de lei complementar rejeitado pela Câmara de Vereadores. Na AC 1.0000.00.198067-1/000 o processo acabou sendo extinto sem julgamento de mérito por outro motivo que não a ilegitimidade do Ministério Público, questão sobre a qual o acórdão não se manifestou. No que toca aos resultados, vale lembrar, conforme tratado no capítulo 11.3.2., que a denegação do mandado de segurança coletivo não significa necessariamente que houve análise de mérito. A denegação pode ser com ou sem julgamento do mérito. Vejamos alguns exemplos extraídos da jurisprudência de denegação com análise do mérito: na AC 1.0702.05.243058-5/002, ficou garantido que inexistente ilegalidade em processo administrativo que apurou irregularidades na progressão de servidores na carreira; no MS 1.0000.06.433207-5/000, que inexiste abusividade no estabelecimento de critérios para designação de cargos não preenchidos por servidores efetivos; na AC 1.0026.05.019481- 5/003, a ausência de direito adquirido ao regime de remuneração; na AC 1.0000.00.260875- 0/000, a legalidade da cobrança da taxa de expediente na conta de água; e na AC 1.0699.04.036645-1/001, a constitucionalidade e legalidade da cobrança da taxa de incêndio. A Lei nº 12.016/2009, no seu art. 6º, §5º, previu que deverá ser denegada a segurança nos casos gerais de extinção sem resolução do mérito previstos no art. 267 do CPC. E no seu art. 10 que a inicial será indeferida quando não for o caso de mandado de segurança, lhe faltar algum dos requisitos legais ou decorrido o prazo para impetração. Assim, os resultados possíveis de um mandado de segurança seriam: concessão, denegação (com ou sem julgamento de mérito) e indeferimento da inicial. Não mais existe formalmente a decisão de extinção sem julgamento de mérito, que deverá ser tratada como caso de denegação da segurança ou indeferimento da inicial. No RN 1.0517.09.010836-9/001 ficou assentado corretamente que “as particularidades do „iter‟ procedimental do „mandamus‟ não admitem a figura da extinção do processo sem resolução de mérito”. Nele foi denegada a segurança por ilegitimidade ativa do sindicato visando assegurar direito individual de apenas uma filiada e por ausência de registro do sindicato no Ministério do Trabalho. Na AC 1.0416.06.008094-0/001, não estando o sindicado impetrante legalmente constituído (ausência de registro no Ministério do Trabalho e Emprego) foi considerado parte 263 ilegítima para a impetração da segurança coletiva, sendo denegada a segurança. No entanto, nos julgamentos analisados, alguns anteriores a lei, há casos de denegação por ausência de direito líquido e certo (MS 1.0000.06.443806-2/000, MS 1.0000.09.499713- 7/000) e de extinção sem julgamento de mérito por ausência de direito líquido e certo (AC 1.0144.03.000186-7/001, AC 1.0000.00.275509-8/000). A ilegitimidade ativa também foi causa de extinção sem julgamento do mérito (AC 1.0000.00.269248-1/000) e de denegação (AC 1.0000.00.192202-0/000, AC 1.0416.06.008094-0/001, AC 1.0000.00.297175-2/000). Com a inadequação da via eleita ocorreu o mesmo, foi causa de extinção sem julgamento do mérito (AC 1.0145.03.068367-9/001, AC 1.0000.00.198067-1/000) e denegação da segurança (MS 1.0000.00.267704-5/000, MS 1.0000.09.509838-0/000). Diante da falta de padrão das decisões, na classificação do resultado dos processos utilizou-se a terminologia adotada no acórdão. Assim, nos casos de denegação da segurança não se distinguiu se houve ou não análise do mérito, o que, em alguns casos, seria até mesmo impossível pela ausência de dados suficientes nos acórdãos. Na coleta dos dados também foram encontradas várias decisões de extinção sem julgamento de mérito por ausência de legitimidade ativa dos impetrantes, que demonstram o desconhecimento dos juízes sobre algumas regras básicas do processo coletivo. Algumas cassadas pelo Tribunal, com determinação de retorno a 1ª instância, como na AC 1.0000.00.227165-8/000 e na AC 1.0024.08.970113-0/002, em que a sentença havia dado pela ilegitimidade da impetrante, uma vez que esta não estaria defendendo interesse da categoria como um todo, mas, de apenas um grupo dos associados. Ou na AC 1.0382.03.031116-3/002, em que a sentença cassada havia dado pela ilegitimidade da associação por ausência de autorização expressa dos seus membros para a impetração. Ou na AC 1.0382.03.031040-5/001, em que a sentença cassada havia exigido a da ata de autorização da entidade, acompanhada da relação nominal dos associados. Na AC 1.0024.04.195121- 1/001 a sentença cassada extinguiu sem julgamento de mérito o processo, por ilegitimidade do sindicato, que “para possuir legitimidade para manejar o referido remédio jurídico, deve[ria], incondicionalmente, ser titular de um direito individual, líquido e certo”. Outras decisões foram mantidas, no entanto, demonstrando que mesmo na 2ª instância a legitimidade ativa para a impetração do mandado de segurança coletivo tem tido interpretação bastante restritiva. Temos, por exemplo, exigindo autorização estatutária ou assembleiar e relação nominal dos associados, as AC 1.0083.03.900028-2/001, AC 1.0382.03.030884-7/001, AC 1.0000.00.256599-2/000, AC 1.0000.00.269248-1/000; que o direito fosse exclusivo dos membros, a AC 1.0000.00.214281-8/000; que o direito fosse de 264 todos os membros, as AC 1.0000.00.257.047-1/000, AC 1.0567.03.074884-0/001; impedindo que partido atue na defesa de interesse individual de filiados, as AC 1.0134.07.086512-3/001, AC 1.0016.09.092308-3/001. 15.6. Resultados e conclusões da pesquisa 15.6.1. Dados coletados De 01/01/2000 a 31/12/2010 foram localizados 266 processos julgados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais envolvendo mandado de segurança coletivo, originários ou em grau recursal. Essa foi a principal amostra para análise (Tabela 1). Em 2000, 16 processos; em 2001, 15 processos; em 2002, 26 processos; em 2003, 26 processos; em 2004, 22 processos; em 2005, 44 processos; em 2006, 22 processos; em 2007, 20 processos; em 2008, 31 processos; em 2009, 21 processos; e em 2010, 23 processos (Gráfico 1). Os impetrantes e impetrados (pessoas jurídicas interessadas) estão na Tabela 2. Os impetrantes (Gráfico 2) foram: sindicatos em 168 processos (63,16%), associações em 73 processos (27,44%), entidades de classe em 11 processos (4,14%), partidos políticos em 3 processo (1,13%) e outros em 11 processo (4,14%). Desses 10 outros: 5 processos foram impetrados pelo Ministério Público, 3 processos por pessoas físicas e 3 processos por pessoas jurídicas não legitimadas. Os impetrados (Gráfico 3) foram: o Estado de Minas Gerais em 114 processos (42,86%), outras pessoas jurídicas de direito público estaduais em 23 processos (8,65%), o Município de Belo Horizonte em 30 processos (11,28%), outros Municípios mineiros em 92 processos (34,59%), outras pessoas jurídicas de direito público municipais em 1 processo (0,38%) e pessoas jurídicas privadas prestadoras de serviço público em 6 processos (2,26%). Os pedidos estão na Tabela 3. Os resultados até o julgamento em 2ª instância estão na Tabela 4 e no Gráfico 4, foram: 110 decisões de denegação (41,35%), 88 decisões de concessão (33,08%), 50 decisões de extinção sem julgamento de mérito (18,80%), 16 decisões cassando sentenças (6,02%) e 2 decisões classificadas como outras (0,75%). Dessas outras, uma foi para admitir o prosseguimento da execução do comando judicial de decisão que concedeu a segurança coletiva e outra para submeter argüição de inconstitucionalidade à Corte Superior. Os assuntos estão na Tabela 5 e no Gráfico 5, foram: 70 processos envolvendo 265 servidor público estadual (26,32%), 42 de servidor público municipal (15,79%), 33 de tributário municipal (12,41%), 31 de tributário estadual (11,65%), 13 de concurso público (4,89%), 10 de contribuição sindical (3,76%), 8 de registros públicos (3,01%), 7 de ensino (2,03%), 7 de funcionamento de bancos (2,03%), 6 de concessões/permissões/autorizações (2,26%), 5 de sistema de trânsito (1,88%), 4 de licitação (1,50%), 4 de fiscalização (1,50%), 3 de bens públicos (1,13%), 9 de outras garantias constitucionais (3,36%), 5 de outras licenças (1,88%), 8 de outros atos administrativos (3,01%) e 1 processo com assunto não localizado (0,38%). O tempo de julgamento no Tribunal dos mandados de segurança coletivos recursais, ou seja, impetrados na 1ª instância, da data do cadastro no TJ até a data do acórdão, estão na Tabela 6 e no Gráfico 6, sendo que: 35 acima de 360 dias (19,21%), 5 entre 330 e 360 dias (2,83%), 7 entre 300 e 330 dias (3,96%), 11 entre 270 e 300 dias (6,21%), 8 entre 240 e 270 dias (4,52%), 16 entre 210 e 240 dias (9,04%), 16 entre 180 e 210 dias (9,04%), 20 entre 150 e 180 dias (11,30%), 17 entre 120 e 150 dias (9,60%), 26 entre 90 e 120 dias (14,69%), 9 entre 60 e 90 dias (5,08%), 7 entre 30 e 60 dias (3,96%), 1 até 30 dias (0,56%). O tempo de julgamento no Tribunal dos mandados de segurança coletivos originários, da data de impetração até a data do acórdão, estão na Tabela 7 e no Gráfico 7, sendo que: 25 foram julgados acima de 360 dias (28,09%), 9 entre 330 e 360 dias (10,11%), 9 entre 300 e 330 dias (10,11%), 8 entre 270 e 300 dias (8,99%), 7 entre 240 e 270 dias (7,87%), 10 entre 210 e 240 dias (11,24%), 8 entre 180 e 210 dias (8,99%), 7 entre 150 e 180 dias (7,87%), 4 entre 120 e 150 dias (4,49%), 1 entre 90 e 120 dias (1,12%), 1 entre 60 e 90 dias (1,12%), 0 entre 30 e 60 dias, 0 até 30 dias. O tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 1ª instância, da data da impetração até a data da sentença, estão na Tabela 8 e no Gráfico 8, sendo que: 21 foram julgados acima de 360 dias (17,36%), 2 entre 330 e 360 dias (1,65%), 6 entre 300 e 330 dias (4,96%), 1 entre 270 e 300 dias (0,83%), 4 entre 240 e 270 dias (3,31%), 8 entre 210 e 240 dias (6,61%), 10 entre 180 e 210 dias (8,26%), 5 entre 150 e 180 dias (4,13%), 14 entre 120 e 150 dias (11,57%), 12 entre 90 e 120 dias (9,92%), 11 entre 60 e 90 dias (9,09%), 9 entre 30 e 60 dias (7,44%), 18 até 30 dias (14,88%). Na comparação do tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 1ª instância (da data da impetração até a data da sentença) – Tabela e Gráfico 8 – com o tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 2ª instância (da data de impetração até a data do acórdão) – Tabela e Gráfico 7: acima de 360 dias foram 17,36% da 1ª instância contra 28,09% da 2ª instância; entre 330 e 360 dias, 1,65% 266 contra 10,11%; entre 300 e 330 dias, 4,96% contra 10,11%; entre 270 e 300 dias, 0,83% contra 8,99%; entre 240 e 270 dias, 3,31% contra 7,87%; entre 210 e 240 dias, 6,61% contra 11,24%; entre 180 e 210 dias, 8,26% contra 8,99%; entre 150 e 180 dias, 4,13% contra 7,87%; entre 120 e 150 dias, 11,57% contra 4,49%; entre 90 e 120 dias, 9,92% contra 1,12%; entre 60 e 90 dias, 9,09% contra 1,12%; entre 30 e 60 dias, 7,44% contra 0; e até 30 dias, 14,88% contra 0. A partir desses resultados podemos observar que os mandados de segurança coletivos ajuizados na 1ª instância não são os que possuem maior tempo de julgamento, mas os de 2ª instância. Essa demora maior nos julgamentos de 2ª instância não condiz, a princípio, com as conclusões do Conselho Nacional de Justiça no relatório do “Justiça em Números” (2009, p. 178): A taxa de congestionamento, tradicionalmente calculada nas edições do Justiça em Números desde a sua primeira edição, busca mensurar se a Justiça consegue decidir com presteza as demandas da sociedade, ou seja, se as novas demandas e os casos pendentes do período anterior são finalizadas ao longo do ano. Em 2009, a taxa de congestionamento global da Justiça brasileira foi de 71%, percentual que tem se revelado estável desde 2004. A Justiça Estadual apresentou taxa de congestionamento de 73% e é a maior responsável para uma taxa global tão expressiva, uma vez que os demais ramos de Justiça apresentaram-se abaixo da média auferida. Destaque para a Justiça do Trabalho, que apresentou uma taxa de 49%, mais uma vez mostrando-se como o ramo do Judiciário que atende com maior celeridade aos jurisdicionados. Analisando os dados por grau de jurisdição, verifica-se que, em todos os ramos de Justiça, o principal gargalo está no total de processos que não são finalizados na 1ª instância. De cada cem processos em tramitação, apenas 24 foram finalizados até o final do ano. Destaque para a Justiça Estadual, que apresentou taxa de congestionamento de quase 80% em 2009. Essa divergência talvez seja explicada pelo fato de que os processos de 1ª instância, apontados pelo CNJ como os responsáveis pela maior taxa de congestionamento global do Judiciário (incluindo Justiça Estadual, Federal e do trabalho), sejam aqueles em fase de execução, sobretudo em execuções fiscais, de acordo com o relatório de 2010 (p. 184): A despeito desses aspectos positivos [redução de casos novos], observou-se, entre 2009 e 2010, aumento da taxa de congestionamento da Justiça da ordem de 2,6%. A Justiça Estadual foi a principal responsável por esse aumento, pois nesse ramo a taxa subiu de 68% para 72%. O mesmo indicador diminuiu na Justiça Federal, de 70% para 69%, e na Justiça do Trabalho, com redução de 50% para 48%. Um olhar mais detido sobre o indicador revela que o maior gargalo encontra-se na fase de execução do 1º Grau da Justiça Estadual, onde a taxa de congestionamento chega a 89,8%, conforme se depreende da tabela 267 6.1. Análise ainda mais específica revela que as execuções fiscais respondem pela maior parte desta taxa, com um congestionamento de 91,6%. – grifos nossos O tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos em comparação com o tempo de julgamento dos processos em geral (obtido no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais) estão: para o ano de 2008, nas Tabelas 9, 10, 11 e 12 e nos Gráficos 9 e 10; para o ano de 2009, nas Tabelas 13, 14, 15 e 16 e nos Gráficos 11 e 12; para o ano de 2010, nas Tabelas 17, 18, 19 e 20 e nos Gráficos 13 e 14. No ano de 2008, acima de 180 dias foram julgados 61,29% de mandados de segurança coletivos contra 17,97% dos processos em geral; entre 150 e 180 dias foram julgados 3,23% de mandados de segurança coletivos contra 7,61% dos processos em geral; entre 120 e 150 dias foram julgados 9,68% de mandados de segurança coletivos contra 10,10% dos processos em geral; entre 90 e 120 dias foram julgados 12,90% de mandados de segurança coletivos contra 13,26% dos processos em geral; entre 60 e 90 dias foram julgados 3,23% de mandados de segurança coletivos contra 17,53% dos processos em geral; entre 30 e 60 dias foram julgados 9,68% de mandados de segurança coletivos contra 20,82% dos processos em geral; e até 30 dias foram julgados 0% de mandados de segurança coletivos contra 12,71% dos processos em geral. No ano de 2009, acima de 180 dias foram julgados 66,67% de mandados de segurança coletivos contra 19,50% dos processos em geral; entre 150 e 180 dias foram julgados 14,29% de mandados de segurança coletivos contra 7,67% dos processos em geral; entre 120 e 150 dias foram julgados 9,52% de mandados de segurança coletivos contra 10,28% dos processos em geral; entre 90 e 120 dias foram julgados 0% de mandados de segurança coletivos contra 13,08% dos processos em geral; entre 60 e 90 dias foram julgados 4,76% de mandados de segurança coletivos contra 15,35% dos processos em geral; entre 30 e 60 dias foram julgados 0% de mandados de segurança coletivos contra 22,07% dos processos em geral; e até 30 dias foram julgados 4,76% de mandados de segurança coletivos contra 12,05% dos processos em geral. No ano de 2010, acima de 180 dias foram julgados 47,83% de mandados de segurança coletivos contra 18,53% dos processos em geral; entre 150 e 180 dias foram julgados 8,70% de mandados de segurança coletivos contra 8,48% dos processos em geral; entre 120 e 150 dias foram julgados 13,04% de mandados de segurança coletivos contra 10,68% dos processos em geral; entre 90 e 120 dias foram julgados 13,04% de mandados de segurança coletivos contra 14,11% dos processos em geral; entre 60 e 90 dias foram julgados 13,04% de 268 mandados de segurança coletivos contra 16,47% dos processos em geral; entre 30 e 60 dias foram julgados 4,35% de mandados de segurança coletivos contra 20,56% dos processos em geral; e até 30 dias foram julgados 0% de mandados de segurança coletivos contra 11,17% dos processos em geral. Quanto aos resultados do tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos frente ao tempo de julgamento de outros processos, para os anos de 2008 a 2010, observamos uma maior demora no julgamento dos mandados de segurança coletivo, bastante significativa, o que não condiz com a sua prioridade de julgamento. Foi observado, posteriormente, que a grande diferença de tempo de julgamentos decorreu da amostra utilizada pelo Tribunal. O Tribunal usou nos seus cálculos todos os processos originários e recursais, inclusive os recursos internos, como embargos de declaração, agravos regimentais, embargos infringentes etc, com tempo de julgamento bem menor que o dos processos originários e mesmo dos recursos vindos da 1ª instância. A inclusão do tempo de julgamento dos recursos internos nos cálculos efetuados pelo Tribunal diminuiu consideravelmente o tempo de julgamento dos processos, tornando impossível uma comparação válida. O tempo dos mandados de segurança coletivos de 1ª instância, com segurança concedida, da impetração até a data do acórdão, estão na Tabela 21 e no Gráfico 15, sendo que: 12 foram julgados acima de 1080 dias (19,67%), 1 entre 900 e 1080 dias (1,64%), 8 entre 720 e 900 dias (13,11%), 13 entre 540 e 720 dias (21,31%), 21 entre 360 e 540 dias (34,43%), 6 entre 180 e 360 dias (9,84%) e 0 até 180 dias. Esses resultados demonstraram o quanto demora para que um mandado de segurança de 1ª instância com segurança concedida seja julgado de forma potencialmente definitiva 133 : um tempo muito além do razoável. A existência de rito sumaríssimo e a prioridade de tramitação deveriam fazer com que o mandado de segurança coletivo fosse julgado com extrema rapidez em nosso sistema judiciário, o que não foi observado. A duração razoável do processo foi erigida a categoria de direito fundamental pelo inciso LXXVII do art. 5º, da Constituição, devendo conduzir não apenas o legislador na criação de procedimentos mais simplificados, mas também o juiz e as partes na resolução dos conflitos. Como obsevado por Marinoni (2008, p. 48), é preciso combater os atos judiciais 133 Havendo reexame necessário nos caso de concessão da segurança, a sentença somente produzirá seus efeitos de forma definitiva após a confirmação pelo Tribunal, se não tiverem sido interpostos recursos para os Tribunais Superiores. 269 (comissivos e omissivos) que dilatam o processo de forma não razoável: O direito à duração razoável faz surgir ao juiz o dever de, respeitando os direitos de participação adequada das partes, dar máxima celeridade ao processo. E dar máxima celeridade ao processo, nesta dimensão, implica não praticar atos dilatórios injustificados, sejam eles omissivos ou expressos. Além disso, é preciso que seja observada a prioridade no julgamento do mandado de segurança (art. 20 da Lei nº 12.016/2009) e das ações coletivas (princípio da máxima prioridade jurisdicional da tutela jurisdicional coletiva), de forma a reduzir o tempo de tramitação dessas ações, em especial do mandado de segurança coletivo, que possui dupla prioridade. Para tanto, além da óbvia necessidade de aparelhamento do Poder Judiciário (pessoal e estrutural), existem propostas mais específicas, como a de criação de órgãos judiciais especializados para o atendimento de demandas coletivas 134 . Outra proposta, que vem sendo aplicada, consiste no estabelecimento de metas para resolver a questão da morosidade judicial, a fim de oferecer à sociedade serviços judiciais mais céleres e eficientes. Nesse sentido, o CNJ lançou algumas metas a serem buscadas pelo Judiciário brasileiro. Essas metas foram inicialmente traçadas no 3º Encontro Nacional do Judiciário, realizado em fevereiro de 2010, em São Paulo. Dentre as metas, destacam-se as de números 1, 2 e 3, que consistem em julgar quantidade igual a de processos de conhecimento distribuídos em 2010; julgar todos os processos distribuídos até 31 de dezembro de 2006, e os processos trabalhistas, eleitorais, militares e da competência do tribunal do júri distribuídos até 31 de dezembro de 2007; e reduzir o acervo de processos de execução não fiscal e fiscal, em 10 e 20%, respectivamente. Novos desafios e avanços para 2011 foram definidos do 4º Encontro Nacional do Judiciário, realizado nos dias 6 e 7 de dezembro de 2010, no Rio de Janeiro, de acordo com o Relatório do “Justiça em Números” (2010, p. apresentação). 15.6.2. Dados fornecidos O Tribunal de Justiça de Minas Gerais apresentou 3 tabelas em resposta à solicitação da pesquisadora: 134 “Na maioria das vezes, por se tratar de matéria complexa, e em presença da dificuldade no enfrentamento de temas espinhosos, nota-se que as demandas coletivas ficam longo tempo “em conclusão”, isto é, aguardando decisão judicial, mesmo nos casos em que apenas se espera um ato de cunho meramente ordinatório. Ganha valor, portanto, a instalação de varas especializadas para os processos coletivos, o que permitirá ao juiz e aos serventuários se familiarizarem com o tema, sem dúvida peculiar e exigente de maior atenção pela própria dimensão social e política da demanda.” (FERRARESI, 2010, p. 82). No mesmo sentido, Leonel (2002, p. 422). 270 I - Mandados de Segurança Originários (Período de 01/01/1994 a 31/09/2011) II - Processos com classe de origem “mandado de segurança” (Período de 01/01/1994 a 31/09/2011) III - Processos Originários e Recursais (Período de 01/01/1994 a 31/09/2011) Foram utilizados os dados apenas até 31/12/2010, a fim de que a pesquisa englobasse o período de 1994 a 2010, com anos cheios. Primeiro foram comparados os dados tal como foram apresentados pelo Tribunal (Tabela 22 e Gráfico 16 - Comparativo bruto). Num segundo momento realizou-se a mesma comparação, mas apenas com os dados de interesse na pesquisa, ou seja, utilizando-se apenas as apelações, reexames necessários e mandados de segurança originários (Tabela 23 e Gráfico 17 – Comparativo líquido). Os resultados da comparação demonstraram que as taxas de crescimento dos mandados de segurança originários e recursais, desde 1994 até 2010, são menores que as taxas de crescimento dos demais processos, tanto no comparativo bruto, como no líquido. Embora não tenha havido um aumento de mandados de segurança proporcional ao aumento das ações em geral, também não houve redução na sua utilização. O menor crescimento no uso do mandado de segurança (aparente estabilização) é condizente com o que foi observado nos relatórios do “Justiça em Números”, que constatou um pequeno incremento de casos novos em relação aos anos anteriores: Relatório 2009, p. 177: Tal variação seguiu em direção contrária à tendência histórica observada no período de 2004 a 2008, o qual apontava um crescimento médio de 1,9% ao ano. Isso, em parte, é impacto da mudança de metodologia que passou a considerar os juízes substitutos de 2º grau na Justiça Estadual, mas também pode sinalizar o início de uma reversão no incremento de casos novos no Brasil, em direção a uma possível estabilização. Com a confirmação dessa tendência no próximo ano, caberia investigar melhor as causas desse eventual fenômeno. Relatório 2010, p. 9: Os números revelam, pela primeira vez desde o início da coleta de dados da SIESPJ, dados surpreendentes sobre o quantitativo de casos novos em 2010. Enquanto em 2009 ingressaram 25,2 milhões de processos nas esferas federal, estadual e do trabalho, esse montante sofreu redução aproximada de 3,9% no ano seguinte, uma vez que foram contabilizados 24,2 milhões de casos novos em 2010. Relatório 2010, referindo-se aos casos novos entre 2009 e 2010, p. 183: Com relação aos casos novos, registrou-se redução de 3,9% entre os dois anos. A Justiça Federal foi a que teve o percentual de redução mais significativo (6,1%), ao passo que na justiça estadual e do trabalho observaram-se respectivamente quedas de 3,5% e 3,9%. Ainda no tocante aos casos novos é alvissareiro notar que as maiores reduções percentuais entre 2009 e 2010 ocorreram no 1º Grau e nos 271 Juizados Especiais, o que pode apontar para uma possível tendência de menor utilização da justiça. Relatório 2010, com menção especificamente à Justiça Estadual, p. 36: Ingressaram na Justiça Estadual, em 2010, 17,7 milhões de processos. O grupo dos maiores tribunais formado por São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul é responsável por 62% dos casos novos. No 2º grupo composto por onze tribunais de médio porte ingressaram 28% dos processos da Justiça Comum ao passo que no 3º grupo, com doze tribunais, iniciaram apenas 10% do total de casos novos no período. Em relação a 2009, houve redução de 3% no quantitativo total de casos novos, ou seja, em 2010, ingressaram cerca de 640 mil processos a menos que no ano anterior. É relevante pontuar que, dos 27 Estados, 11 informaram redução de casos novos, destacando-se, com maior queda percentual Amazonas (-37%) e Ceará (-28%). – grifo nosso No entanto, esse menor crescimento também pode ser resultado da substituição da utilização de mandados de segurança por outros instrumentos genéricos, após as reformas processuais operadas a partir de 1994, que estenderam técnicas antes exclusivas de procedimentos especiais, como a antecipação de tutela, a tutela específica e a tutela inibitória, para o modelo ordinário. É o que se sustentou na presente pesquisa (capítulos 13 e 14). 272 CONCLUSÃO O mandado de segurança é instrumento processual, com status de garantia constitucional, de controle judicial dos atos do Poder Público. Apesar do mandado de segurança tradicional ter sido introduzido em nosso regime jurídico com a Constituição de 1934, somente com a Constituição de 1988 sua modalidade coletiva foi criada, no influxo do movimento de reformas que buscava adaptar o modelo tradicional de processo às necessidades dos novos tempos, marcados por relações cada vez mais impessoais e coletivizadas. O Direito passou a tutelar novos direitos (difusos e coletivos) e novas situações jurídicas (envolvendo direitos individuais homogêneos), que apareceram com a evolução tecnológica, social e cultural das modernas sociedades, fazendo surgir um subsistema processual bem caracterizado, que passou a ser estudado pelo Direito Processual Coletivo. A ruptura com as regras fundamentais do Código de Processo Civil pelo Direito Processual Coletivo se manifestou em relação a novas categorias de direito a serem protegidas e, consequentemente, na legitimidade para o ajuizamento de ações e nos efeitos das suas decisões. Objeto material de tutela, legitimidade para agir e regime da coisa julgada: sobretudo nesses três elementos houve um rompimento drástico com as regras cardeais do Código de Processo Civil, concebido e voltado à solução de conflitos individuais. No contexto do Estado Democrático de Direito, em a garantia dos direitos fundamentais mais do que nunca se liga a idéia de democracia participativa, questões como a dos interesses tuteláveis pelo mandado de segurança coletivo, da legitimidade para sua impetração e da extensão da sua coisa julgada, tornam-se objeto de especial interesse. Os tipos de direito ou interesse estudados pelo Direito Processual Coletivo, embora apresentem características bem distintas sob os aspectos subjetivo, objetivo e de origem, apresentam dificuldades práticas de identificação. Diante disso, o presente trabalho propôs alguns critérios para identificação do direito tutelado, com base na fusão dos pensamentos de Gidi e Nelson Nery Júnior, apresentados a seguir. As conclusões deste trabalho foram as seguintes: 1) Houve inspirações do Direito Comparado para a introdução do mandado de segurança no Brasil, mas tradições luso-brasileiras contribuíram criando um ambiente propício para sua consolidação em nosso regime jurídico (capítulos 2 e 3). 2) O mandado de segurança foi criado diante da falta de instrumentos aptos a tutelar liberdades pessoais de forma célere, no entanto, sua característica mais importante, que o 273 distingue dos demais institutos do Direito Comparado, a tutela exclusiva de liberdades públicas, surgiu de sua proximidade com o instituto do habeas corpus (capítulo 4). 3) Para a identificação do direito coletivo tutelado numa ação coletiva, em primeiro lugar, deve-se observar se quem ajuíza ação é o próprio titular do direito material (ação individual) ou um substituto processual, em nome próprio, mas na defesa de direito de titularidade de terceiros (ação coletiva). Depois, tomando como base o pedido, deve-se observar quem (aspecto subjetivo) e como (aspecto objetivo), no caso de provimento, a ação irá beneficiar (capítulo 7.1). 3.1) Se não for possível identificar de forma determinada os beneficiários, que compõem toda a coletividade, o direito será difuso. Se os beneficiários puderem ser identificados, temos que observar se eles podem ser beneficiados de forma diferenciada e individualizada – satisfazendo uns e lesando outros –, quando o direito será individual. Ou se eles podem ser beneficiados somente de forma conjunta – satisfazendo ou lesando todos –, quando o direito será coletivo em sentido estrito. 3.2) Enquanto o que diferencia os direitos difusos dos direitos coletivos sentido estrito é a (in)determinabilidade dos sujeitos titulares, o que diferencia os coletivos em sentido estrito dos individuais homogêneos é a (in)divisibilidade do direito. 4) No que toca aos direitos tuteláveis via mandado de segurança coletivo, apesar da Lei nº 12.016/2009 ter previsto a possibilidade de tutela apenas dos direitos coletivos em sentido estrito e dos individuais homogêneos, também os direitos difusos podem ser por ele resguardados, de acordo com uma interpretação compreensiva da Constituição e da sistemática processual coletiva brasileira (capítulo 11.6). 4.1) Não é correto afirmar, a priori, que o mandado de segurança coletivo só possa ser usado para a tutela de um ou outro tipo de direito ou interesse. Não existe correlação necessária entre a legitimação, o tipo de direito e o instrumento a ser usada para sua tutela. Independente da categoria de direito a ser protegido, se forem precisamente comprovados os pressupostos processuais atinentes ao writ, como fatos absolutamente incontroversos e com respectiva comprovação documental, não há razão para desconhecê-lo. Logo, se um direito difuso a ser objeto de um writ configurar esses requisitos, não há razão para sua negativa. 5) O mandado de segurança coletivo poderá ser impetrado pelos partidos políticos, associações, entidades classe e sindicatos, sendo que, de todos, será exigida pertinência temática para configuração do interesse de agir (capítulo 11.2). 5.1) Embora seja exigida a pertinência temática também dos partidos políticos para a impetração do mandado de segurança coletivo, sua atuação será bem mais ampla que a dos 274 demais legitimados, considerando que seus fins institucionais são aqueles estampados no art. 17 da Constituição e no art. 1º da Lei 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), além daqueles próprios de cada partido, previstos em seu estatuto partidário. 6) Para a impetração do mandado de segurança coletivo, os direitos devem ser próprios dos membros da entidade coletiva, mas não precisam ser exclusivos (capítulo 11.2). 7) Embora todos os legitimados possam pretender a tutela de todos os tipos de direitos coletivos (em sentido lato), somente os partidos políticos poderão impetrar o mandado de segurança coletivo para a defesa de direitos difusos de forma direta, salvo para argüir a inconstitucionalidade de lei (capítulos 11.2.2 e 11.5). 7.1) Para os demais legitimados coletivos, a tutela dos direitos difusos se dará de forma indireta, na medida em que impetrarem o mandado de segurança coletivo para a defesa dos interesses de seus membros ou associados (capítulo 11.2.1). 8) Os efeitos da coisa julgada no mandado de segurança coletivo sofrem variações de acordo com a natureza do direito tutelado, daí o tratamento distinto da coisa julgada em se tratando de direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos (capítulo 11.3). 8.1) Quanto aos limites subjetivos da coisa julgada, se direito for individual homogêneo, a coisa julgada será conforme art. 22 da Lei nº 12.016/2009, ou seja, se limitará aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante. Se o direito for coletivo em sentido estrito, a coisa julgada beneficiará os membros do grupo ou categoria formado pelos titulares do direito material violado ou ameaçado. Se difuso, a coisa julgada beneficiará a todos os membros da comunidade titulares do direito material violado ou ameaçado (capítulo 11.3.1). 8.1.1) Nos dois últimos casos, a coisa julgada atinge todos os titulares do direito material discutido em juízo. Titulares que são membros de um grupo, categoria ou classe de pessoas (direitos coletivos em sentido estrito) ou são membros indeterminados da comunidade, ligados por circunstâncias de fato (direitos difusos). 8.2) Quanto aos modos de produção da coisa julgada, no mandado de segurança coletivo, independentemente do tipo de direito tutelado, há coisa julgada material nos casos de concessão e de denegação por ausência do direito. A denegação sem julgamento de mérito não faz coisa julgada material, apenas formal. Trata-se do regime da coisa julgada coletiva secundum eventum probationis adaptado para o regime do mandado de segurança (capítulo 11.3.2). 8.2.1) A coisa julgada no mandado de segurança coletivo, tal como nas ações coletivas em geral, se forma pro et contra, ou seja, no caso de concessão ou denegação da segurança 275 (com análise do mérito), sendo que secundum eventum litis é apenas a extensão in utilibus da coisa julgada benéfica para a esfera individual dos membros da comunidade ou da coletividade (capítulos 11.3.2 e 11.3.3). 9) Como legislação aplicável ao mandado de segurança coletivo temos, em primeiro lugar, a Lei do Mandado de Segurança, Lei nº 12.016/2009. Tratando-se de processo coletivo, aplica-se também o Título III do Código de Defesa do Consumidor, no que for cabível, de acordo com o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública. Por último, aplicam-se as disposições do Código de Processo Civil, naquilo em que não for incompatível com as regras contidas nas duas leis especiais (capítulo 11.4). 10) A nova lei do mandado de segurança não seguiu as tendências atuais do Direito Processual Coletivo, incorporando ao regime do mandado de segurança coletivo as posições mais restritivas e conservadoras que vinham sendo veiculadas pela doutrina e jurisprudência. Houve retrocesso no tratamento do writ coletivo, tanto em relação ao objeto material, como na disciplina da coisa julgada, embora tenha havido avanços em relação à regulamentação de seu procedimento (capítulo 11.6). 11) O mandado de segurança coletivo é nova garantia constitucional e instituto único no Direito Comparado (capítulos 6 e 12). 11.1) O regime da class actions norte-americanas, que influenciou o legislador brasileiro na construção do microssistema de tutela coletiva, sobretudo no que diz respeito à tutela dos direitos individuais homogêneos, possui regras limitadoras frente à amplitude do regime processual coletivo brasileiro (capítulos 10 e 11.5). 11.2) O modelo brasileiro, afastando-se do modelo inspirador, elencou taxativamente na lei os requisitos de “representatividade adequada” para impetração do mandado de segurança coletivo, sem a possibilidade de consideração de quaisquer outros pelo juiz no caso concreto, mas garantiu a extensão dos efeitos da lide coletiva para o plano dos direitos individuais apenas no caso de procedência da ação (capítulo 11.5). 12) Alguns autores, tendo em vista a segurança jurídica e o risco de exposição do réu (no caso o Estado) a infinitas ações, sustentam pela extensão da eficácia da sentença para os titulares de direito individual também no caso de denegação da segurança e pelo controle da “representatividade adequada” dos legitimados coletivos pelo juiz no caso concreto. Tal posicionamento, no entanto, não pode ser admitido, diante da opção clara e consciente em fortalecer os entes intermediários da sociedade feita pelo legislador, que também criou mecanismos para controlar, a nosso ver, suficientemente, a atuação dos legitimados coletivos (capítulo 11.5). 276 13) No ordenamento jurídico brasileiro atual, sobretudo após a implementação de inúmeras reformas legislativas no Código de Processo Civil, a partir de 1994, existem instrumentos e técnicas processuais genéricos capazes de tutelar, de forma coletiva e célere, o particular contra o Estado, inexistentes no contexto de criação do mandado de segurança e da sua modalidade coletiva (capítulo 13). 13.1) Embora existam no ordenamento jurídico brasileiro instrumentos e técnicas processuais genéricos capazes de resguardar, ao menos em tese, os mesmos direitos tuteláveis via mandado de segurança coletivo, concluiu-se que tais instrumentos e técnicas não são tão adequados e eficientes quanto ele (capítulo 14). 13.2) Para proteção de direitos relacionados a algumas matérias, mais do que mais adequado e eficiente, o mandado de segurança coletivo é o único instrumento de tutela coletiva à disposição dos entes intermediários da sociedade (capítulos 13 e 14.2). 14) O mandado de segurança coletivo é instrumento processual especializado na garantia de determinado tipo de direito material coletivo, aquele violado ou ameaçado pelo Poder Público, possuidor de um regime adequado às necessidades desse direito e à importância que assume a tutela jurisdicional envolvida na sua defesa (capítulo 14). 15) A especificidade do objeto (tutela coletiva exclusiva contra o Poder Público) e do procedimento do mandado de segurança coletivo fazem dele um instrumento único no Direito Comparado. Não há em outros ordenamentos jurídicos instituto que tutele, de forma coletiva e sumária, exclusivamente, o particular contra o Estado (capítulo 12). 15.1) Além de garantir a exclusividade do mandado de segurança coletivo no Direito Comparado, as peculiaridades de seu objeto e de seu procedimento tornam o mandado de segurança coletivo instrumento processual mais adequado e eficiente que os demais e apto a garantir uma tutela jurisdicional mais eficaz e efetiva. Essa especialização do mandado de segurança coletivo frente a outros instrumentos processuais genéricos torna imprescindível sua existência e sua utilização preferencial (capítulo 14.2). 16) O mandado de segurança coletivo constitui resposta adequada às exigências contidas nos princípios constitucionais do processo, que, como garante Dinamarco (2005, p. 37), são de um processo acessível a todos e a todas as suas causas, aberto, ágil, simplificado, concentrado, permeável a um grau elevado de participação efetiva das partes e sujeitos interessados, que conte com a atenta vigilância do juiz e sua interferência até o ponto em que não atinja a própria liberdade dos litigantes. Nele estão presentes todas as exigências citadas por Barbosa Moreira (1983, p. 77) para que o processo possa merecer a qualificação de “efetivo” (capítulo 14). 277 17) O Direito Processual Coletivo ainda tem muito a conquistar no Brasil. Embora nosso regime jurídico coletivo seja considerado um dos mais avançados do Direito Comparado, ele ainda é campo de inúmeros posicionamentos restritivos e retrógrados, violadores dos mesmos direitos que se propõem a assegurar (capítulos 10 e 14). Assumir uma postura democrática exige aceitar e promover o pluralismo na legitimação ativa das ações coletivas, estimulando a atuação dos corpos intermediários da sociedade, ou seja, das associações, entidades de classe, sindicatos e partidos políticos. Os cidadãos, por meio do movimento associativo, podem participar dos destinos da sociedade política através da jurisdição, o que deve ser incentivado e não coibido, evitando-se interpretações equivocadas quanto à legitimação ativa que criam exigências além daquelas previstas pela lei, em desacordo com as regras básicas do processo coletivo e com a Constituição. Além disso, interpretações restritivas quanto à amplitude da coisa julgada no mandado de segurança coletivo não podem mais ser admitidas, vez que, além de desconsiderarem a natureza indivisível dos direitos transindividuais, retiram do instrumento a eficácia potenciada que a Constituição lhe atribuiu. A admissão de demandas amplas, capazes de pacificar para o presente e para o futuro e de evitar as incertezas de julgados conflitantes em torno de uma tese jurídica só, é uma imposição dos tempos e das modernas tendências medotológicas do Direito Processual (DINAMARCO, 2005, p. 372). Daí a importância de um tratamento compreensivo e abrangente do processo coletivo, capaz de utilizar-se de toda a carga de efetividade que ele dispõe. As ações coletivas têm papel importante na correção ou, pelo menos, na atenuação de certa desigualdade substancial entre as partes. Especificamente em relação ao mandado de segurança, em que o réu é o Estado, tal desigualdade é evidente, sendo de especial importância a previsão constitucional de tutela coletiva, que deve abranger todos os tipos de direito coletivo. O mandado de segurança coletivo tem o potencial de fortalecer as organizações associativas e os partidos políticos, de desonerar o Judiciário em relação ao julgamento de questões idênticas, de tornar mais célere e justa a atuação jurisdicional e de facilitar o acesso à Justiça. A concretização desses escopos depende de uma atuação positiva do operador do Direito, em consonância com a idéia de especialização da tutela jurisdicional, posta em evidência pela atual fase da ciência processual, e com a busca de um processo mais adequado e justo. 278 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, Angélica Arruda; ALVIM, Eduardo Arruda. Apontamentos sobre o mandado de segurança coletivo. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 399, ano 104, p. 3-25, set./out. 2008. 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São Paulo, n. 139, ano 31, p. 28-35, set. 2006. 291 ANEXO 292 ÍNDICE DAS TABELAS E GRÁFICOS Tabela 1 – Tempo geral ............................................................................................................ 1 Gráfico 1 – Quantidade de mandados de segurança coletivos julgados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais de 2000 a 2010 ................................................................................... 9 Tabela 2 – Impetrantes e impetrados ..................................................................................... 10 Gráfico 2 – Impetrantes nos mandados de segurança coletivos julgados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais de 01/01/2000 a 31/12/2010 ............................................................. 18 Gráfico 3 – Pessoas jurídicas nos mandados de segurança coletivos julgados pelo Tribunal de Justiça de MG de 01/01/2000 e 31/12/2010 ............................................................................ 18 Tabela 3 – Pedidos ................................................................................................................. 19 Tabela 4 – Resultados ............................................................................................................ 27 Gráfico 4 – Resultados dos julgamentos dos mandados de segurança coletivos julgados pelo Tribunal de Justiça de MG de 01/01/2000 a 31/12/2010 ........................................................ 35 Tabela 5 – Assuntos ............................................................................................................... 36 Gráfico 5 – Assuntos nos mandados de segurança coletivos julgados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais de 01/01/2000 a 31/12/2010 ........................................................................ 44 Tabela 6 – Tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos recursais ............... 45 Gráfico 6 – Tempo de julgamento dos MSC recursais (entrada TJ X acórdão) - 01/01/2000 a 31/12/2010 .............................................................................................................................. 50 Tabela 7 – Tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 2ª instância .................................................................................................................................. 51 Gráfico 7 – Tempo de julgamento dos MSC impetrados na 2ª instância (entrada X acórdão) - 01/01/2000 a 31/12/2010 ........................................................................................................ 54 Tabela 8 – Tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 1ª instância .................................................................................................................................. 55 293 Gráfico 8 – Tempo de julgamento dos MSC impetrados na 1ª instância (entrada X sentença) - 01/01/200 a 31/12/2010 .......................................................................................................... 60 Gráfico 7 (repetição) ............................................................................................................... 60 Tabela 9 – Mandados de segurança coletivos originários julgados em 2008 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ........................................................................................................... 61 Tabela 10 – Mandados de segurança coletivos recursais julgados em 2008 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ........................................................................................................... 61 Tabelas 11 e 12 – Comparativo tempo de julgamento dos processos e dos MSC - Ano 2008 .................................................................................................................................................. 62 Gráfico 9 – Tempo de julgamento dos MSC (entrada X julgamento) 2008 .......................... 63 Gráfico 10 – Tempo de julgamento dos processos (entrada X julgamento) 2008 ................. 63 Tabela 13 – Mandados de segurança coletivos originários julgados em 2009 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ........................................................................................................... 64 Tabela 14 – Mandados de segurança coletivos recursais julgados em 2009 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ........................................................................................................... 64 Tabelas 15 e 16 – Comparativo tempo de julgamento dos processos e dos MSC originários - Ano 2009 ................................................................................................................................. 65 Gráfico 11 – Tempo de julgamento dos MSC (entrada X julgamento) 2009 ........................ 66 Gráfico 12 – Tempo de julgamento dos processos (entrada X julgamento) 2009 ................. 66 Tabela 17 – Mandados de segurança coletivos originários julgados em 2010 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ........................................................................................................... 67 Tabela 18 – Mandados de segurança coletivos recursais julgados em 2010 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais ........................................................................................................... 67 Tabelas 19 e 20 – Comparativo tempo de julgamento dos processos e dos MSC originários - Ano 2010 ................................................................................................................................. 68 Gráfico 13 – Tempo de julgamento dos MSC (entrada X julgamento) 2010 ........................ 69 Gráfico 14 – Tempo de julgamento dos processos (entrada X julgamento) 2010 ................. 69 Tabela 21 – Tempo de julgamento dos mandados de segurança coletivos impetrados na 1ª instância (apenas decisões de concessão da segurança) .......................................................... 70 Gráfico 15 – Tempo de julgamento dos MSC impetrados na 1ª instância/concessão 294 (impetração X acórdão) - 01/01/2000 a 31/12/2010 ............................................................... 73 I Bruto – Mandados de Segurança Originários (período 01/01/1994 a 31/09/2011) ............ 74 II Bruto – Processos com classe de origem “mandado de segurança” (período 01/01/1994 a 31/09/2011) ............................................................................................................................. 75 III Bruto – Processos Originários e Recursais (período 01/01/1994 a 31/09/2011) .............. 77 Tabela 22 – Comparativo bruto de 1994 a 2010 .................................................................... 83 I Líquido – Mandados de Segurança Originários (período 01/01/1994 a 31/09/2011) ........ 84 II Líquido – Processos com classe de origem “mandado de segurança” (período 01/01/1994 a 31/09/2011) ............................................................................................................................. 85 III Líquido – Processos Originários e Recursais (período 01/01/1994 a 31/09/2011) .......... 86 Tabela 23 – Comparativo líquido de 1994 a 2010 ................................................................. 87