Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social - PPGCOM JOSÉ CRISTIAN GÓES O JORNALISMO E A EXPERIÊNCIA DO INVISÍVEL: IDENTIDADES, LUSOFONIAS E A VISÍVEL HERENÇA COLONIAL BRASILEIRA Belo Horizonte 2017 JOSÉ CRISTIAN GÓES O JORNALISMO E A EXPERIÊNCIA DO INVISÍVEL: IDENTIDADES, LUSOFONIAS E A VISÍVEL HERENÇA COLONIAL BRASILEIRA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação Social. Orientador: Prof. Dr. Elton Antunes Coorientador: Prof. Dr. Moisés de Lemos Martins Linha de pesquisa: Textualidades Midiáticas Belo Horizonte 2017 301.16 G598j 2017 Góes, José Cristian O jornalismo e a experiência do invisível [manuscrito]: identidades, lusofonias e a visível herança colonial brasileira / José Cristian Góes. - 2017. 310 f. Orientador: Elton Antunes. Coorientador: Moisés de Lemos Martins. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia. 1.Comunicação – Teses. 2. Jornalismo - Teses. 3.Identidade - Teses. I. Antunes, Elton. II. Martins, Moisés de Lemos, 1953-. III . Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. IV. Título. JOSÉ CRISTIAN GÓES O JORNALISMO E A EXPERIÊNCIA DO INVISÍVEL: IDENTIDADES, LUSOFONIAS E A VISÍVEL HERENÇA COLONIAL BRASILEIRA APROVADA EM: 14/12/2017 Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação Social. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________ Prof. Dr. Elton Antunes (Orientador – PPGCOM/UFMG) _______________________________________________ Prof. Dr. Moisés de Lemos Martins (Avaliador Externo – UMinho/Braga/PT) _______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Alberto de Carvalho (Avaliador Interno – PPGCOM/UFMG) _______________________________________________ Prof. Dr. Paulo Bernardo Ferreira Vaz (Avaliador Interno – PPGCOM/UFMG) _______________________________________________ Prof. Dr. Mozahir Salomão Bruck (Avaliador Externo – PPGCOM/PUC-MG) Belo Horizonte 2017 Aos meus pais, José da Conceição e Maria Rita, e ao meu irmão, Cristianilson; A Rita Lima, Maria Clara e José Guilherme; A todos que me acolheram nos anos de um exílio invisível, mesmo sem saber que coronéis e jagunços visíveis me fizeram chegar onde cheguei. AGRADECIMENTOS A Deus, pela vida e por me possibilitar experimentar diferentes caminhos. À minha família, meu porto seguro, que me permitiu minhas partidas e sempre me acolheu nos retornos, animando-me para novas jornadas, assegurando-me novas guaridas. A Rita, minha companheira de vida e sonhos, sempre presente e encontrando forças de onde parecia não existir mais nada. Amo-te! A Maria Clara e José Guilherme, que acompanharam e sentiram cada passo, tropeço e acerto, e que transformaram minhas ausências em outros modos de presença. Ao amigo e orientador nesta tarefa, Elton Antunes, pela paciência e por imensas contribuições nesta pesquisa, na minha trajetória acadêmica e, principalmente, na vida. Ao amigo e professor Moisés Martins de Lemos, da Universidade do Minho, Portugal, que me recebeu de braços abertos e contribuiu por imenso nessa caminhada. Ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, professores e funcionários, pela acolhida tão cheia de afetos e partilhas. Aos professores Carlos Alberto de Carvalho (UFMG) e Mozahir Salomão Bruck (PUC-MG) pelas imensas contribuições no exame de qualificação. À amiga, colega e hoje professora da UFOP, Michele Tavares, por sua paciência, orientações e parceria nos estudos. Aos colegas de convívio e inquietações do doutorado e do mestrado da UFMG. Aos amigos investigadores portugueses da Universidade do Minho, em Braga. Aos professores e colegas da Comunicação da UFS, em especial, ao meu orientador no Mestrado Carlos Franciscato, pelo incentivo permanente. Aos tantos amigos que, em nome de Antônio Rodrigo, Camila Marques, Cláudia e Vito Giannotti (NPC) e Célio Cruz, guardo imensa gratidão pela torcida, principalmente nas lutas contra coronéis e jagunços nada ficcionais. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão de uma bolsa para a realização do doutorado sanduíche na Universidade do Minho, Portugal, de setembro de 2016 a setembro de 2017 (Edital 038/2013 CAPES/FCT). A todos que, direta ou indiretamente, têm participação neste trabalho. Obrigado! Os fatos não deixam de existir só porque os ignoramos. (Aldous Huxley, A situação humana, 1992) O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. (Manoel de Barros, Livro sobre o nada, 1996) Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. (Thiago de Melo, Faz escuro mas eu canto, 1966) O JORNALISMO E A EXPERIÊNCIA DO INVISÍVEL: IDENTIDADES, LUSOFONIAS E A VISÍVEL HERENÇA COLONIAL BRASILEIRA RESUMO Este trabalho pode causar alguma estranheza inicial – o que já seria interessante –, em razão de nossa proposta parecer tomar um caminho oposto à lógica mais comum das pesquisas sobre o jornalismo. Enquanto os objetos gerais tratam de uma materialidade visível, isto é, do que foi veiculado em produtos de mídia ou que são resultados concretos de práticas profissionais que também são nitidamente mensuradas, nosso objetivo é refletir sobre o que não foi, o que não ganhou as superfícies jornalísticas. Em outras palavras, propomos discutir a relação entre o jornalismo e o invisível, problema pouco acolhido nos mais tradicionais estudos da área. Assim, nosso primeiro desafio foi reconhecer que no lugar socialmente acordado para a visibilidade existe o invisível. Isso implicou em um esforço de saída: repensar a própria ideia de jornalismo, o que não é reinventá-lo, mas reposicioná-lo além de produtos, práticas e plataformas tecnológicas, recuando para a órbita do conceito, mas avançando para pensá-lo na contemporaneidade como uma das tantas experiências narrativas do mundo. Percebido como experiência, reconheçamos que o jornalismo apresenta propostas materializadas em um regime de visibilização, que mobiliza, faz falar e faz ver, mas também cala e não mostra, constrói o invisível. O que conhecemos como visível, aquilo que está nas superfícies jornalísticas tem na sua sustentação as camadas invisíveis, as quais estão rigorosamente no mesmo objeto, no mesmo espaço da experiência. O movimento de ver o visível e enxergar o invisível no jornalismo foi precedido de um debate sobre o silenciamento e teve reflexos diretos na metodologia. Empiricamente, recorremos às identidades, fenômeno em que as tensões visível/invisível são fundamentais porque existe nelas a fabulação sobre o Outro e, em especial, o seu apagamento. Nesse sentido, investigamos o regime de visibilização que foi construído, por meio de notícias na Folha de S.Paulo e em O Globo, sobre a comunidade gestada a partir de fundamentos identitários, da qual o Brasil é parte: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Pesquisamos 20 anos de publicações nesses jornais (de 1996 até 2016), período de existência dessa entidade. Essa opção empírica para discutir o invisível no jornalismo exigiu um debate sobre a formação das identidades no Brasil, nossas relações com as nações lusófonas, as histórias constitutivas da Folha e de O Globo, e a possibilidade dessa comunidade ser pensada como communitas, mesmo diante das forças immunitas (ESPOSITO, 2012). Do ponto de vista metodológico, o maior desafio foi encontrar um método que enfrentasse a delimitação do invisível. Para isso, propusemos a triangulação articulada entre as análises de Conteúdo, Histórica (paradigma indiciário) e Semiótica, esta última a partir da perspectiva da visualidad, mirada e imagen (ABRIL, 2013). Ao final, para além de constatar a invisibilização por ausência da comunidade lusófona no Brasil, percebemos que os rastos nas duas décadas ajudaram a compreender as lógicas immunitas e de colonialidade que O Globo e a Folha apresentaram para a experiência nos seus regimes de visibilização. Palavras-chave: Jornalismo. Visível. Invisível. Identidades. Lusofonia. JOURNALISM AND THE EXPERIENCE OF THE INVISIBLE: IDENTITIES, LUSOPHONES AND THE VISIBLE BRAZILIAN COLONIAL HERITAGE ABSTRACT This work may cause some initial strangeness - which would be interesting already - because our proposal seems to take a path contrary to the most common logic of research in the field of journalism. While the general objects deal with a visible materiality, that is, what has been conveyed in media products or that are concrete results of professional practices that are also clearly measured, our objective is to reflect what was not, which did not reach the journalistic surfaces. In other words, we propose to discuss the relationship between journalism and the invisible, a problem not well received in the most traditional studies of the area. Thus, our first challenge was to recognize that in the socially agreed place for visibility there is the invisible. This implied an exit effort: rethinking the very idea of journalism, which does not mean reinventing it, but repositioning it beyond products, practices and technology platforms, retreating into the orbit of the concept, but moving forward to think it contemporaneity as one of the many narrative experiences of the world. Perceived as an experience, let us recognize that the journalism presents proposals materialized in a regime of visibility, which mobilizes, makes talk and makes see, but also shut up and does not show, builds the invisible. What we know as visible, that which is on journalistic surfaces has in its support the invisible layers, which are rigorously in the same object, in the same space of experience. The movement to see the visible and to see the invisible in journalism was preceded by a debate about silencing and had direct reflexes in the methodology. Empirically, we turn to the identities, a phenomenon in which visible/invisible tensions are fundamental because there is in them the fable over the Other, and especially its erasure. In this sense, we investigate the visibility regime that was constructed, through news in Folha de S.Paulo and O Globo, about the community born from identity foundations, of which Brazil is a part: Community of Portuguese Speaking Countries (CPLP). We have researched 20 years of publications in these newspapers (from 1996 to 2016), the period of existence of this entity. This empirical option to discuss the invisible in journalism demanded a debate about the formation of identities in Brazil, our relations with the lusophone nations, the constitutive histories of Folha and O Globo, and the possibility of this community being thought of as communitas, even in the face of immunitas forces (ESPOSITO, 2012). From the methodological point of view, the biggest challenge was to find a method that would confront the delimitation of the invisible. For this, we proposed the articulated triangulation between the analysis of Content, Historical analysis (indiciary paradigm) and Semiotic analysis, the latter from the perspective of visualidad, mirada and imagen (APRIL, 2013). In the end, besides prove the invisibility due to the absence of the Lusophone community in Brazil, we noticed that the tracks in the two decades helped to understand the immunological (immunitas) and colonial logic that O Globo and Folha presented for the experience in their regime of visibility. Keywords: Journalism. Visible. Invisible. Identities. Lusophony. EL PERIODISMO Y LA EXPERIENCIA DEL INVISIBLE: IDENTIDADES, LUSOFONÍAS Y LA VISIBLE HERENCIA COLONIAL BRASILEÑA RESUMÉN Este trabajo puede causar alguna extrañeza inicial, lo que, de entrada, sería interesante, debido a que nuestra propuesta parece tomar un camino opuesto a la lógica más común de las investigaciones sobre el periodismo. Mientras que los objetos generales tratan de una materialidad visible, es decir, de lo que ha sido vehiculado en productos mediáticos o son resultados concretos de prácticas profesionales que también son nítidamente mensuradas, nuestro objetivo es reflejar lo que no fue, lo que no llegó a las superficies periodísticas. En otras palabras, proponemos discutir la relación entre el periodismo y lo invisible, problema poco acogido por los más tradicionales estudios del área. Así, nuestro primer desafío fue reconocer que en el lugar socialmente pactado para la visibilidad existe lo invisible. Esto implicó en un esfuerzo inicial: repensar la propia idea de periodismo, lo que no significa reinventarlo, sino re-posicionarlo más allá de productos, prácticas y plataformas tecnológicas, volviendo hacia la órbita del concepto, pero avanzando para pensarlo en la contemporaneidad como una de las tantas experiencias narrativas del mundo. Percibido como experiencia, reconocemos que el periodismo presenta propuestas materializadas en un régimen de visibilización que moviliza, hace hablar y hace ver, pero también calla y no muestra, construye lo invisible. Lo que conocemos como visible, aquello que está en las superficies periodísticas tiene en su sustentación las capas invisibles, las cuales están rigurosamente en el mismo objeto, en el mismo espacio de la experiencia. El movimiento de ver lo visible y ver lo invisible en el periodismo fue precedido por un debate sobre silenciamiento y tuvo reflejos directos en la metodología. Empíricamente, recurrimos a las identidades, fenómeno en que las tensiones visibles/invisibles son fundamentales porque existe en ellas la fabricación sobre el Otro y, en especial, su eliminación. En ese sentido, investigamos el régimen de visibilización que fue construido, por medio de noticias en la Folha de S.Paulo y en O Globo, sobre la comunidad gestada a partir de fundamentos identitarios, de la cual Brasil es parte: Comunidad de los Países de Lengua Portuguesa (CPLP). Hemos investigado 20 años de publicaciones en estos periódicos (de 1996 a 2016), período de existencia de esa entidad. Esta opción empírica para discutir lo invisible en el periodismo exigió un debate sobre la formación de las identidades en Brasil, nuestras relaciones con las naciones lusófonas, las historias constitutivas de la Folha y de O Globo, y la posibilidad de que esa comunidad sea pensada como communitas, incluso ante las fuerzas immunitas (ESPOSITO, 2012). Desde el punto de vista metodológico, el mayor desafío fue encontrar un método que enfrentase a la delimitación de lo invisible. Para ello, propusimos la triangulación articulada entre los análisis de Contenido, Histórica (paradigma indiciario) y Semiótica, esta última a partir de la perspectiva de la visualidad, mirada e imagen (ABRIL, 2013). Finalmente, además de constatar la invisibilización por ausencia de la comunidad lusófona en Brasil, percibimos que los rastros dejados en las dos décadas ayudaron a comprender las lógicas immunitas y de colonialidad que O Globo y la Folha presentaron para la experiencia en sus regímenes de visibilización. Palabras clave: Periodismo. Visible. Invisible. Identidades. Lusofonía. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Cartão de visita – O senhor e seus escravos em São Paulo, 1879............... 75 Figura 2: Mapa da distribuição geográfica dos nove países da CPLP........................ 125 Figura 3: Diagrama do Símbolo Triádico de Gonzalo Abril (2012)........................... 177 Figura 4: Efeitos do invisível no visível, Abril (2012)............................................... 179 Figura 5: Autorretrato fotográfico de Claude Cahun, Abril (2012)............................ 181 Figura 6: Visível e invisível da CPLP no diagrama Triádico..................................... 195 Figura 7: CPLP “dentro” do site do MRE do Brasil................................................... 204 Figura 8: Entrevista do presidente FH antes da criação da CPLP – Folha................. 218 Figura 9: Participação de FH em reunião da CPLP – Folha....................................... 221 Figura 10: Presidente Fernando Henrique em reunião da CPLP – O Globo.............. 222 Figuras 11 e 12: Criação da CPLP (Folha) e Foto do senhor e dos de escravos........ 223 Figura 13: Viagem de Lula à Angola e a outros países da CPLP – O Globo............. 225 Figura 14: Viagem de Lula para nações da CPLP – Folha......................................... 227 Figura 15: Viagem de Lula à Angola – Folha............................................................ 229 Figura 16: Lula em conferência da CPLP – O Globo................................................. 230 Figuras 17 e 18: Apoio de Lula para a Guiné Equatorial entrar na CPLP – Folha.... 231 Figura 19: Governo Lula justifica a Guiné Equatorial na CPLP – O Globo.............. 233 Figura 20: Editorial sobre ações de Lula na África e na CPLP – O Globo................ 233 Figura 21: Fotos de Lula nas notícias da CPLP – Folha e O Globo........................... 235 Figura 22: Entrevista com o presidente de Moçambique – Folha.............................. 237 Figura 23: Entrevista com o primeiro-ministro de Cabo Verde – O Globo................ 238 Figura 24: Entrevista com o presidente de Timor-Leste – O Globo........................... 239 Figura 25: Notícia com o presidente de Timor-Leste – Folha.................................... 239 Figura 26: Entrevista com o primeiro-ministro de Portugal – O Globo..................... 240 Figura 27: Portugal e o “status especial para brasileiros” – O Globo........................ 241 Figura 28: Entrevista com o presidente de Portugal – O Globo................................. 242 Figura 29: Registro que trata da mobilidade na CPLP – O Globo.............................. 244 Figura 30: Anúncio da criação da universidade da CPLP – O Globo........................ 246 Figura 31: Notícia sobre o acordo ortográfico na CPLP – O Globo........................... 248 Figura 32: Acordo ortográfico na CPLP – O Globo................................................... 249 Figura 33: Notícia culpa africanos por acordo ortográfico não avançar – O Globo... 250 Figura 34: Notícia culpa africanos por acordo ortográfico não avançar – Folha....... 250 Figura 35: Notícia sobre conflitos na Guiné-Bissau – O Globo................................. 252 Figura 36: Notícia sobre conflitos na Guiné-Bissau – Folha..................................... 252 Figura 37: Registro do assassinato do presidente da Guiné-Bissau – Folha.............. 253 Figura 38: Registro do assassinato do presidente da Guiné-Bissau – O Globo.......... 253 Figura 39: Notícia de outro golpe na Guiné-Bissau – Folha...................................... 253 Figuras 40 e 41: Golpe militar em São Tomé e Príncipe – Folha e O Globo............. 254 Figura 42: Luta pela independência do Timor-Leste – O Globo................................ 255 Figuras 43 e 44: Tentativa de golpe militar em Timor-Leste – Folha e O Globo...... 256 Figura 45: Entrevista com escritores de Moçambique e Angola – Folha................... 257 Figura 46: Entrevista com a historiadora brasileira – Folha....................................... 258 Figuras 47 e 48: Evento literário lusófono em Ouro Preto/MG – O Globo................ 260 Figuras 49 e 50: Dramaturgo português e “chamado” de Angola – O Globo............ 261 Figura 51: Notícia da “nova” criação da CPLP – Folha............................................. 263 Figura 52: Timor-Leste é o problema – Folha............................................................ 266 Figura 53: FHC como dono à distância da CPLP – Folha......................................... 267 Figura 54: Brasil como o “primo rico” dos africanos da CPLP – O Globo................ 268 Figura 55: Criminalização dos africanos na CPLP – O Globo................................... 269 Figura 56: Ingresso oficial da Guiné Equatorial na CPLP – Folha............................ 271 Figura 57: O perigo da mobilidade na CPLP – Folha................................................ 273 Figura 58: Primeiro ano da CPLP e a o impedimento à comunidade – Folha........... 276 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Registros na Folha de S.Paulo em 20 anos da CPLP................................ 199 Gráfico 2: Registros em O Globo em 20 anos da CPLP............................................. 200 Gráfico 3: Comparativo por ano nos jornais em 20 anos da CPLP............................ 201 Gráfico 4: Comparativo por mês nos jornais em 20 anos da CPLP............................ 202 Gráfico 5: Comparativo entre Mercosul, BRICS e CPLP.......................................... 203 Gráfico 6: Comparativo de registros nos jornais e atividades da CPLP..................... 205 Gráfico 7: Comparativo de presidentes da República e a CPLP................................ 207 Gráfico 8: Comparativo de categorias Temas gerais na CPLP................................... 208 Gráfico 9: Registros por local de publicação em O Globo......................................... 209 Gráfico 10: Registros por local de publicação na Folha de S.Paulo.......................... 209 Gráfico 11: Comparativo sobre as assinaturas dos registros...................................... 210 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 15 I JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO............................... 26 1.1 Construção dos silenciamentos...................................................................... 26 1.2 Experiência do visível e do invisível............................................................. 34 1.3 Jornalismo: o que não vemos aqui?............................................................... 41 1.4 Invisível e regime visibilização..................................................................... 49 II IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO...................... 57 2.1 Fabricação identitária e visibilização do Outro............................................. 57 2.2 Identidades brasileiras: a construção dos invisíveis..................................... 64 2.3 (In)visibilização e sistema racista.................................................................. 70 2.4 Colonialidade jornalística no Brasil............................................................... 79 III HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER.............................. 89 3.1 Referências do jornalismo de referência no Brasil....................................... 89 3.2 Folha de S.Paulo: trajetória política em defesa do capital............................ 101 3.3 O Globo: as redes de poderes econômicos e políticos................................... 110 IV COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS............................... 117 4.1 Globalização e comunidade........................................................................... 117 4.2 A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.......................................... 125 4.3 CPLP: communitas possível?......................................................................... 147 4.4 As forças immunitas e o jornalismo............................................................... 154 V ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL................... 160 5.1 Articulações metodológicas: pistas já anunciadas......................................... 160 5.2 Conteúdo e história: do visível à coletânea de rastros................................... 165 5.3 Semiótica, Gonzalo Abril e Metáfora do Invisível........................................ 173 5.4 Definições metodológicas.............................................................................. 189 VI DAS AUSÊNCIAS PRESENTES..................................................................... 198 6.1 Aspectos gerais do todo visível...................................................................... 198 6.2 Invisibilização por ausência........................................................................... 211 VII DAS PRESENÇAS AUSENTES..................................................................... 216 7.1 Os rastros na Folha de S.Paulo e em O Globo............................................... 216 7.1.1 Visualidad................................................................................................... 217 7.1.2 Mirada......................................................................................................... 262 7.1.3 Imagen......................................................................................................... 271 7.2 Invisibilização por presença.......................................................................... 277 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 285 REFERÊNCIAS...................................................................................................... 294 APÊNDICES........................................................................................................... 304 INTRODUÇÃO | 15 INTRODUÇÃO “Não sei do que você está falando.” Ao trabalhar muitos anos em redação de jornal, onde, nas reuniões de pauta, repórteres apresentavam sugestões que poderiam ser cobertas, percebíamos que a maioria das propostas era rejeitada. As justificativas para as recusas eram sempre superficiais: “isso não interessa”, “não vai dar tempo”, “já foi publicado não sei onde”, etc. Para os repórteres mais jovens, recém-saídos da universidade, as pautas descartadas não atendiam os critérios de noticiabilidade, e o assunto se encerrava ali. Os experientes, que quase nunca traziam pautas, diziam que a decisão balizadora do publicável e do não publicável estava atrelada ao interesse político e econômico do dono do jornal e dos agentes de suas relações. Além de buscar entender as determinantes para a escolha de algumas pautas, e a rejeição da maioria, chamou-nos atenção o acúmulo das propostas recusadas ao longo do tempo. Repórteres mais espertos insistiam nas pautas, mas faziam modificações estratégicas e, assim, conseguiam publicar um arremedo de notícia. Entretanto, a maioria das ideias continuava a ter os mesmos endereços: limbo, esquecimento e completo sumiço. Na redação, chegou-se a usar uma brincadeira. A pauta excluída ia para a “cesta” – ironicamente diziam, soando como um parônimo de “sexta”, isto é, a sexta página, mas o que se queria dizer, de fato, é que o destino de tal pauta seria a cesta do lixo! É óbvio que não havia tempo e espaço para cobrir tudo. Por isso, longe de propor pensar aqui em um jornalismo ideal, e de ser régua moral para julgá-lo, refletimos que essa impossibilidade se tornou um recurso retórico para justificar mais a seleção motivada por interesses políticos e econômicos do que reconhecer essa incapacidade espaço-temporal. Essa experiência jornalística concreta, em uma de suas múltiplas facetas, fez-nos avançar para questões como: onde foram parar as pautas rejeitadas? As informações que elas traziam se perderam? O acontecimento deixou de ser acontecimento? Ora, se concordarmos que as propostas aprovadas se tornaram notícias, e elas nos enredam em um olhar do mundo, então, se pudéssemos reunir as pautas silenciadas, poderíamos dizer de outra realidade ou de outros ângulos sobre os acontecimentos? O rosário de critérios técnicos é suficiente para explicar rejeições recorrentes de propostas? Podemos dizer que, ao acolher algumas pautas e recusar outras, o jornalismo propõe uma experiência do visível, sobre o visível, mas também do silenciado e do invisível? Emergiram no cotidiano da atividade jornalística inquietações que se tornaram a base das reflexões neste trabalho. INTRODUÇÃO | 16 Além de suspeitar que alguns acontecimentos e personagens com relações sociais e políticas concretas da vida não tenham existido no jornal para a comunidade de seus leitores, também desconfiamos que o visível tenha relação direta com o que ficou invisível. Ou seja, o que se mostrou e se falou foram decisivos para o jornal não dizer e não ver de outras maneiras. O inverso também pode ser levado em consideração. E mais: percebemos que mesmo na pauta acolhida e transformada em notícia existiam vácuos de sentido nos textos, e essas lacunas pareciam “naturais”, isto é, eram parte da construção do visível e da experiência do invisível. Por exemplo, a maioria das notícias de violência sempre se referia aos mesmos locais, e padronizava e repetia os mesmos traços gerais do criminoso e da vítima. O vínculo de todos, nesse caso, era a pobreza. A associação violência e miséria parecia automática e naturalizada. Todavia, essas notícias não traziam, de fundo, nem a pobreza e nem as suas causas, questões completamente invisíveis naquela superfície visível. Visível era o criminoso frio, o gay depravado, o tarado compulsivo, a vítima cúmplice. Todos pobres. O jornal, na prática, festejava o crime, ilustrando com uma foto na primeira página de um corpo com 32 facadas, contadas uma a uma. A narrativa berrava por polícia, repressão e justiciamento. Os pobres, apenas eles, estavam visíveis e com espaço cativo no jornal: a página policial. Eles estavam visíveis para a condenação, para a execução espetacular e pública e para o gozo moral das audiências e, ao mesmo tempo, completamente invisíveis enquanto ser humano (GÓES, 2014). Em resumo, teríamos, assim, um invisível no jornalismo que vai desde o reiterado silenciar de temáticas até mesmo na construção das narrativas visíveis. O desafio central para o nosso problema, seja do ponto de vista concreto no jornal, seja do ponto de vista acadêmico, foi e continuará sendo propor uma reflexão sobre a possibilidade do invisível. Perseu Abramo, em um texto de 1988 e reeditado em 2003, já tinha detectado a construção de invisibilizações nas empresas jornalísticas, com vista à indução, que seria, para esse autor, um dos “padrões de manipulação na grande imprensa”: Alguns assuntos jamais, ou quase nunca, são tratados pela imprensa, enquanto outros aparecem quase todos os dias. Alguns segmentos sociais são vistos pela imprensa apenas sob alguns poucos ângulos, enquanto permanece na obscuridade toda a complexa riqueza de suas vidas e atividades. [...] Alguns aspectos são sistematicamente relembrados na composição das matérias sobre determinados grupos sociais, mas igualmente evitados de forma sistemática quando se trata de outros. Depois de distorcida, retorcida e recriada ficcionalmente, a realidade ainda é assim dividida pela imprensa em realidade do campo do Bem e realidade do campo do Mal, e o leitor/espectador é induzido a acreditar não só que seja assim, mas que assim será eternamente, sem possibilidade de mudança (ABRAMO, 2003, p. 34-35, grifos do original). INTRODUÇÃO | 17 As dificuldades neste trabalho começam com o não reconhecimento das ausências até a percepção do quanto elas são decisivas na articulação para o visível. Ora, o jornalismo é o lugar do visível e pensar o invisível nele parece ser uma contradição fatal. Por isso, tornou-se fundamental enfrentar o próprio conceito de jornalismo que, ao nosso julgar, ainda está fortemente preso nas teias das materialidades. Se percorrermos muitas pesquisas nessa área, vamos perceber o quanto elas se dedicam ao publicado, e não ao ausente e silenciado que está ali mesmo. Para pensar o invisível é preciso superar a ideia de que ele é o que não existe. Ora, se ele é, então podemos dizer que existe. A partir de Maurice Merleau-Ponty (2012) e de outros filósofos, sugerimos perceber que o invisível não é o mesmo que o nada, o vazio, a inexistência; também não é ilusão, mágica e nem nos remete ao espírito. Além disso, veremos que o visível e o invisível não são polos radicalmente opostos, mas pares rigorosamente complementares e em constante tensão. Com esse quadro instigante, propomos um percurso teórico que também já foi se constituindo como indicação metodológica. Como existe pouca discussão nos estudos sobre o jornalismo que acolha o silêncio e o invisível, o que é sintomático, e alguns trabalhos os confundem como sinônimos, partimos, no primeiro capítulo, para tentar algumas demarcar diferenças. Por exemplo, ensina-nos Merleau-Ponty (1991) que o silêncio está antes das palavras, que ele as constitui, e que depois delas ele continua rodeando-as e possibilitando que as expressões se realizem. Adauto Novaes (2014) afirma que os fenômenos, como a fala, são compostos por silêncios. O que nos interessa é ação que o jornalismo faz ao mobilizar o silêncio, e que chamamos de torção. As opções editoriais em não dizer e não mostrar vão resultar, como diz Francis Wolff (2014, p. 50), em uma ausência de sons, mas que está repleta da “presença de sentido”. O silenciar, o pôr em invisibilização não constitui o espaço do nada, uma inexistência, muito ao contrário. Giacoia Júnior (2014) e Frédéric Gros (2014) ressaltam que esse silenciar não ocorre somente por ausência, mas também pela intensa repetição de um todo falar e mostar social e compulsivamente. Esse quadro, que eles chamam de “tagarelice ensurdecedora”, impossibilita outras maneiras de dizer e de ver, de forma especial, as mais divergentes. A supremacia da palavra é de tal modo totalizante que aprisiona o sentido do verdadeiro no expresso, no visível, no dito. Por essa lógica, o que não foi dito e não foi visto não existiu, e a tentativa de dizer e ver poderia nos levar a imaginá-lo como falso, a um reino de ilusão, mentira, oposto ao regime do verdadeiro visível e que parece irrefutável. INTRODUÇÃO | 18 Os modos de silenciamento, por ausência e por presença, objetos dessa discussão inicial, transformaram-se em linha geral neste trabalho e nos ajudaram a perceber as relações entre visível, invisível e jornalismo. Se o silêncio está distante dos estudos sobre o jornalismo, o invisível também se confirma como sua própria condição nessa área. Assim, buscamos amparos em filófosos como Gilles Deleuze (2005), Daniel Innerarity (2009), Andrea Brighenti (2010) e, principalmente, em Merleau-Ponty (1991, 1999, 2012). As reflexões deles e de outros pensadores nos permitiram pensar que o visível e o invisível são a mesma “carne” no mundo, sendo o visível a parte mais aparente, e o invisível a camada mais porfunda. No jornalismo, esse invisível não é construído por silenciamentos pontuais, mas por uma ação cotidiana e reiterada ao longo do tempo que configura a presença inconteste das ausências. Há outro aspecto: ao discutirmos o silenciar e o invisibilizar, não estamos na ordem nem da fala nem da visão, mas na dimensão da experiência narrativa que mobiliza e constrói imaginários. Deleuze (2005) lembra-nos que as visibilidades não são a visão, mas “formações históricas” construídas socialmente. Reforça, ainda, Brighenti (2010, p. 19) que o invisível “é o que faz o visível possível”. Como pensar o jornalismo nessa discussão? Avaliamos que estudos tradicionais da área têm uma contribuição limitada para a reflexão sobre o invisível. A agenda-setting busca a agenda, a materialidade do agendamento, e como foi agendado. O gatekeeping trata do que passou pelo portão e se tornou notícia, mas parece descartar o que ficou de fora. Na teoria dos framing, a pergunta básica é: “O que vemos aqui?”. Ou seja, as explicações giram em torno do visível, do expressado. Já a pergunta neste trabalho é: “O que não vemos aqui?”. E para respondê-la, faz-se necessário superar uma lógica totalizante de que o jornalismo são as práticas, os produtos e as suas plataformas tecnológicas. Suspeitamos que, dentro desse círculo de um jornalismo mais tradicional, normativo e transmissivo, pode ser difícil considerar a existência de camadas invisíveis e que elas têm relação direta com a superfície. Nessas condições, sugerimos pensar o jornalismo como uma das experiências narrativas sociais que envolve outros atores e está profundamente implicada no mundo, e não fora dele. Ao considerarmos o jornalismo como experiência, enxergamos as relações sociais e políticas, as condições tecnológicas do tempo e espaço de sua época, os jogos de poder com vistas a propor uma narrativa que se pretende majoritária e totalitária. Desse modo, essas forças mobilizam os ditos e os não ditos, os visíveis e os invisíves para dar uma forma interessada a um tipo de mundo, um lugar encenado como inteligível. Isso INTRODUÇÃO | 19 também ocorre na história, como nos lembra Marcelo Jasmin (2014), ao legitimar alguns acontecimentos e silenciar muitos outros. É a partir do jornalismo compreendido como experiência narrativa social incontrolada e descentrada, com significativa interferência da tecnologia, com estratégias sutis de negociações entre seus mais diversos atores para dizer e para não dizer, para mostar e para não mostrar, que poderemos considerar a reflexão sobre o invisível que está riscado na superfície visível. Isso posto, sugerimos que no espaço da experiência jornalística transita um regime de visibilização, isto é, um conjunto de condições materiais e imateriais para poder fazer crer que o que lemos, vemos e sentimos é o real, a verdade, a exatidão sem alternativas. Esse conjunto administra os imaginários que aparecem e desaparecem em nosso campo de percepção do mundo. A ideia de regime vem de Michael Foucault (1979), ao tratar da verdade e do poder, e esse poder de fazer, de poder dizer e de poder mostrar tem peso constitutivo nas experiências. Esse regime é um plano geral de visibilização empreendido por atores políticos e que abriga a superfície visível e as camadas invisíveis na mesma carne, nos mesmos objetos. As empresas que se utilizam do jornalismo, por exemplo, buscam nomear-se como de referência, e referência do verdadeiro para propor, com pouca margem de desconfiança, uma experiência narrativa do mundo, o todo e o único visível. Como estamos entrelaçados nessa experiência narrativa, muitos de nós acolhem os ditos e os vistos e, sequer percebemos os não ditos e os não vistos nesse mesmo espaço, porque, de fato, o regime de visibilização conforma e confirma o visível a partir de camadas sobrepostas do invisível. Fora do visível, faz-se parecer que nada existe. Não obstante à força propositiva dos atores de referência, lembremos que esse é um ambiente de tensões, de poder, de forma que, podemos suspeitar das torções dos silêncios e das palavras nesse regime que produz o visível. Essas torções se destinam a dar forma e, de certo modo, estabilizar o real, preservando algum tipo de ordem. Isso não implica dizer que o desconfiar dos silenciamentos equivale ao ter em mãos o invisível e, com ele, vamos pôr em jogo a desordem. O que estamos dizendo é que na superfície existem riscos, lá emergem rastros que são como fissuras por onde podemos enxergar a ação do invisível, isto é, a invisibilização, e que somente se realizará como tal por meio das narrativas. Esse é um ato de força que pode até desestabilizar o visível aparentemente acordado na superfície e que impõe novas narrativas, novas ordens. Essas reflexões exigiam uma empiria e uma desafiante proposta de método para lidar com o regime de visibilização, mas voltada à experiência do invisível. Sobre o primeiro item, uma notícia episódica nos chamou atenção. Mahamat Haroun, do Chade, INTRODUÇÃO | 20 diretor do filme Um homem que grita (2010), dizia que sua obra buscava romper com a “invisibilidade” imposta ao continente africano pela mídia ocidental. O filme, garantia ele, estabelecia pontes com o Brasil. 1 Isso nos fez relembrar o ano 2000, quando participarmos do Congresso Internacional de Jornalismo de Língua Portuguesa, em Recife/PE, e sentimos os fortes laços identitários entre o Brasil e as nações lusófonas em África. Contudo, esse evento quase não foi coberto pela mídia. A participação brasileira também foi diminuta. Em 2013, Álvaro Laranjeira (Universidade Tuiuti/PR) apresentou um trabalho que revela a quase inexistência de pesquisas nas associações científicas da Comunicação no Brasil sobre a lusofonia 2 , à exceção de trabalhos do professor Antônio Hohlfeldt (PUC/RS). Somando-se a essas constatações, vimos que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entidade de que o Brasil é parte, completou 20 anos de instituída em 2016. Aproveitando-se dessa data, dos profundos vínculos históricos e identitários entre as nações lusófonas e que as permitiram constituir-se como comunidade, escolhemos essa temática para refletir sobre a experiência do invisível no jornalismo no Brasil, através da ótica da mídia nacional. Ainda na fase de formulação mental do projeto para esta pesquisa, em diálogo com um jornalista experiente e pesquisador, surgiu o tema da comunidade lusófona. O seu comentário serviu de um indício nítido de um processo de invisibilização da CPLP no Brasil: “Não sei do que você está falando. Nunca vi nada a respeito”, disse ele. Diante desse quadro, a nossa partida foi: o Brasil noticiou essa comunidade nos 20 anos da CPLP? Em razão dos acontecimentos narrados, mas, principalmente da frase do jornalista e pesquisador que destacamos acima, suspeitávamos de uma cobertura jornalística diminuta sobre essa comunidade, e que essa opção em não noticiar poderia ter algum tipo de fundamento histórico e identitário. Optamos em utilizar os jornais impressos, de circulação diária, em razão de compreendê-los dotados de uma materialidade, também entendida como arquivo. Para a escolha dos jornais, usamos o critério de empresas diferentes para que pudéssemos fazer comparações. Além de diários e de propriedades distintas, os outros parâmetros foram a abrangência, o volume de circulação, e a cobertura internacional. Assim, chegamos aos jornais impressos Folha de S.Paulo e O Globo. Antes, porém, de pensar sobre a metodologia para tratar da experiência do invisível no regime de visibilização em O Globo e na Folha em duas décadas da 1 Cf. entrevista concedida ao site UOL: . Acesso em 25 out. 2017. 2 O paper “Viagens filosóficas do cartógrafo contemporâneo do jornalismo lusófono ultramarino” foi apresentado no 9º Encontro Nacional de História da Mídia, em Ouro Preto/MG, maio de 2013. INTRODUÇÃO | 21 comunidade lusófona, percebemos que a empiria nos obrigava a refletir sobre as identidades. E, aqui, deparamo-nos com uma discussão fundamental, porque passa exatamente pela tensão visível e invisível: a fabulação sobre o Outro. Afirma Stuart Hall (2006) que as identidades serão sempre instáveis, estando sob rasuras, isto é, não são naturais e nem definitivas, apesar das forças políticas, sociais e culturais buscarem fixá-las como marca eterna. Ou seja, temos aí uma tensão para o ver e o não ver, para o reconhecer e o não reconhecer identitários. Sugerimos que o jornalismo participa dessa trama na construção de pertenças, que serão mais visíveis e, principalmente das diferenças, que oscilarão entre o visível e o invisível a depender do jogo de forças. Estabelecemos um corte histórico para refletir sobre as identidades e seus reflexos na relação do Brasil com os países lusófonos: a ação europeia imperial-colonialista, a partir do século XV. Recorremos ao olhar crítico da história, sem o rigor da historiografia, para inferir sobre a formação das identidades, de maneira especial, discutindo quem é o Outro no Brasil, quando é visível e invisível. Celso Furtado (2007), Florestan Fernandes (1975), Caio Prado Júnior (2006) e outros destacam que entramos no mapa do mundo como o lugar e o destino para a máxima exploração das terras e das gentes. Esse vício de origem pode ser decisivo para entender nossas relações identitárias construídas nos séculos seguintes. Temos uma nação que surge composta por índios escravizados e alvos de genocídios; negros arrancados da África e moídos na barbárie escravista por mais de 300 anos; brancos investidos de civilização, de fé e da superioridade mais violenta e cruel possível; e mestiços pobres que apreenderam a relação de mando/obediência, superior/inferior, cultivando o ódio racista e classista contra índios, negros e pobres, em um aprendizado profundo do desenraizamento racial e dos valores da violência de uma elite nacional e eurocêntrica, com quem buscavam se identificar. Esse é um processo que ultrapassou o Brasil Colônia, consolidando-se na República, de forma que parece se estender em nossas relações contemporâneas, um fenômeno nomeado por Aníbal Quijano (2009) de “colonialidade”. A imagem principal que ilustra esse trabalho é uma síntese desse processo. Ela é de 1879 e foi produzida no ateliê fotográfico de Militão de Azevedo, em São Paulo. A fotografia é um cartão de visita comum à época, em que o senhor branco dono de escravos negros, à frente e no centro da imagem, ostentava seu poder, naturalizava a superioridade econômica e racial. Os negros, vestidos como gente, tinham os pés descalços para que não esquecessem sua condição de escravos. Ali, em uma foto que encenava a civilidade do senhor (com seus escravos vestidos), os negros somente estavam visíveis para confirmar o status da dominação. Ao INTRODUÇÃO | 22 mesmo tempo, eraminvisíveis, junto com suas dores desde o desenraizamento em África, com a mais sangrenta, vil e cotidiana selvageria escravagista, e as lutas de resistência e pela liberdade. Ou seja, era a condição do negro, do humano, que estava invisível. Vimos que um dos lugares privilegiados do regime de visibilização é o jornalismo e, nesse caso, onde podemos encaixar a Folha de S.Paulo e O Globo nesse debate identitário? O que a história desses dois jornais diz sobre suas opções para iluminar e escurecer os profundos vínculos históricos e identitários do Brasil com países africanos lusófonos? Imaginemos que a Folha e O Globo circulassem no Brasil Colônia, como esses dois jornais noticiariam a escravidão? Do ponto de vista dos escravos ou dos senhores? Ou usariam a desculpa da “imparcialidade”? Que vínculos políticos as histórias desses jornais deixam transparecer? Aos objetivos deste trabalho, avaliamos que as histórias de O Globo e da Folha são lugares de entre-ver suas ações e valores e, por isso, mereceram um capítulo específico. Nele, discutiremos a trama urdida na imprensa brasileira para que alguns produtos de jornalismo fossem imaginados, inclusive com suporte acadêmico, como de referência. O problema é que atribuir tal designação ao jornalismo veiculado por esses dois jornais é o mesmo que elevar os dois periódicos a um alto pedestal de intocabilidade, onde, supostamente, residiria o todo, o único visível e verdadeiro. Outro reflexo é a construção da própria narrativa histórica oficial, onde os jornais se transformam em documentos, tidos como verdadeiros. Isso talvez reflita na história geral de O Globo e da Folha, de uma visibilização de sucesso, modernidade, profissionalismo, com pouca margem de crítica. Entretanto, José Arbex Júnior (2002), Ana Paula Goulart Ribeiro (2007), Afonso de Albuquerque (2008, 2010), Nuno Manna (2016), Phellipy Jácome (2017) e outros trazem contribuições para pensar como esses jornais, por suas histórias, constituíram-se como atores políticos de referência que buscam influenciar nos destinos nacionais. O Globo e a Folha de S.Paulo têm suas histórias, marcadas desde as origens, atreladas à lógica capitalista, seja rural, com os grandes proprietários de terra e o agronegócio predatório, seja urbana, com as indústrias, o comércio e o sistema financeiro. Os dois jornais são atores político-narrativos da elite nacional que tentam surfar e se inserir na lógica da globalização. Eles cultivam valores de uma farsa democrática, utilizando-se da retórica da liberdade de imprensa para exercer ampla liberdade de empresa, para propor o mundo único de uma ordem capitalista, baseado nas relações que se pretendem naturalizadas entre superiores e inferiores, ricos e pobres, civilizados e primitivos, e de mando/ obediência. Nessas condições, como a Folha e O Globo constroem o regime do INTRODUÇÃO | 23 visível e do invisível em torno de uma comunidade lusófona da qual o Brasil é parte, e que é majoritariamente negra, pobre e africana? Antes de partir para a empiria propriamente dita, fez-se necessário debruçar sobre a ideia de comunidade que, em razão da falsa ideia do mundo único que cabe na palma de uma mão, parece não fazer mais sentido. A comunidade ficou presa ao primitivo, ao atraso, ao passado. Entretanto, como mostram Boaventura de Sousa Santos (1994, p. 32), Milton Santos (2000), Anthony Giddens (2002), Zygmunt Bauman (2003) e outros, essa sensação do global acabou produzindo o reavivar do debate mais perverso sobre as identidades, as fronteiras, os Outros. A CPLP parece não ser uma resposta de resistência à globalização, porque essa entidade vem agindo na lógica global, não avançando na básica mobilidade entre suas populações, o que reforça a ideia de uma comunidade baseada no medo, no perigo e na luta contra o Outro, nesse caso, negro, africano e pobre. Por isso, propomos conhecer a CPLP, composta oficialmente por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste, mas que tem outros países e regiões onde a língua portuguesa transita, como a Galiza, na Espanha. Apresentaremos um resumo das histórias desses países e das relações que têm com o Brasil, seus perfis, os percursos e as discussões que atravessam a ideia de lusofonia e a CPLP. Em razão das condições históricas e identitárias dessa comunidade, recorremos ao conceito de communitas em Roberto Esposito (2012), e refletimos sobre a possibilidade dessas nações lusófonas compreenderem-se como semelhantes e com obrigações recíprocas entre elas. Para isso, por exemplo, o Brasil precisaria reconhecer sua dívida histórica para com a África. É aqui que jornais com perfis políticos da Casa Grande agem, isto é, mobilizam forças que Esposito (2005) chamou de immunitas, propondo à comunidade de leitores a desobrigação, a isenção, o não reconhecimento de relação com a comunidade lusófona, com o Outro, e sequer de ter dívida histórica a saldar. Com esse percurso, montamos uma base teórica fundada no jornalismo, nas identidades, na história e nas histórias dos jornais, e na comunidade. A partir dessa sustentação, podemos aprofundar na pesquisa os modos de construção do invisível no jornalismo. Esse problema faz ver que nosso objetivo é refletir sobre o regime de visibilização, perceber como a experiência jornalística trama um ambiente visível, que parece único, completo e inteligível, e que implica também em fazer apagar, esconder, esquecer, assegurar camadas invisíveis. Uma questão que sempre emergiu no desenvolvimento do trabalho, e que deve continuar a ser debatido, é como fazer para mensurar esse invisível. Percebemos que a INTRODUÇÃO | 24 metodologia se revelou um extraordinário exercício para a reflexão sobre a própria experiência do invisível. Nesse sentido, um aspecto importante a ressaltar é que o método proposto aqui não é receita de bolo, mas um movimento que se faz fazendo e está ajustado à investigação em O Globo e na Folha em torno de 20 anos de cobertura sobre a comunidade lusófona. Para esse objeto específico, recorremos a um tripé metodológico articulado: Análise de Conteúdo, Análise Histórica e Análise Semiótica. Podemos perceber que os métodos para pensar a construção do invisível já foram, de algum modo, anunciados em nossas reflexões teóricas. Vimos, por exemplo, que o visível e o invisível estão na mesma carne, no mesmo objeto; que nossa relação com essa tensão ocorre na materialidade; que é no visível que encontramos as pistas do invisível. Isso nos obrigou, de saída, a localizar o visível, identificar, classificar, delimitar, ação que nos levou à Análise de Conteúdo, considerando as suas abordagens mais modernas, como indica Heloiza Herscovitz (2010), ao reduzir, sobremaneira, a ênfase quantitativa desse método. Bruno Leal, Elton Antunes e Paulo B. Vaz (2012) destacam a importância dessa análise, mas alertam que ela não é autônoma, não sendo suficiente para apreensão dos acontecimentos no jornalismo. E isso fica mais nítido na nossa proposta de experiência do invisível. O conteúdo visível é fundamental, mas como primeiro passo a exigir outros. Passamos, assim, à segunda base do tripé: a Análise Histórica, que nos faz retornar à teoria para lembrar que buscamos a ação do invisível, a invisibilização que, como o silenciar, deixa vestígios no processo de torção dos silêncios e das palavras. Tomando-se como farol o olhar crítico sobre a história da construção identitária no Brasil, podemos cotejar as notícias visíveis sobre essa comunidade e deixar que emerjam os rastros reiterados de colonialidade a denunciar os impedimentos, os apagamentos, as invisibilizações. Essa análise se fundamenta na Micro-História, no Paradigma Indiciário de Carlo Ginzburg (1989). Nele, considera-se primordial a ação do pesquisador em saber identificar os indícios, e empregar potencialidades de sentidos nos rastros. Os registros dos jornais não aparecem do nada, eles estão carregados de historicidades e se vinculam com outros aspectos por meios das textualidades. Desse modo, já estamos na Análise Semiótica, que perceberá a força de cada notícia, os gestos textuais oferecidos à experiência para o visível e o invisível, e as tramas verbo-visuais das conexões semióticas que dão a perceber o regime de visibilização. Nesse quesito, seguimos as formulações de Gonzalo Abril (2013), em especial, a partir da visada sobre os textos, considerando três dimensões encadeadas: visualidad, mirada e imagen. E para deixar mais evidente que nosso tripé metodológico busca perceber a ação do invisível, INTRODUÇÃO | 25 inserimos nesse ponto as importantes reflexões de Paul Ricoeur (2000) e de Carlos Alberto de Carvalho (2016) sobre a utilização da metáfora como método. Aos nossos estudos, o invisível somente pode ser visto como metáfora em razão da impossibilidade de sua materialização. Entretanto, por meio das narrativas, de um contar sobre o movimento de invisibilização, estamos dizendo do invisível sem que ele deixe sua condição de invisível. Propomos dizer o invisível por meio da Metáfora do Minuto de Silêncio. Esse trabalho foi tomado por dúvidas, e muitas delas vão permanecer como desafios que devem ser enfrentados. Ao final, não apresentaremos conclusões, mas teremos levantado alguns indícios como potencialidades que podem ser consideradas no jornalismo e nos estudos sobre o jornalismo. Caso esse trabalho deixe transparecer definições categóricas, por certo é mais um defeito a encobrir fragilidades teóricas e metodológicas e/ou um exercício de poder para propor o visível. As tantas incertezas e sugestões, às vezes ousadas, como a de recorrer a Merleau- Ponty para pensar a experiência do visível e do invisível no jornalismo, foram acolhidas pacientemente nas disciplinas do curso, nas orientações, na submissão de trabalhos em congressos, na publicação de artigos e de capítulos de livros 3 . O doutoramento sanduíche, realizado de setembro de 2016 a setembro de 2017, no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho, em Braga, Portugal foi também importante para assentar os caminhos teóricos e metodológicos propostos aqui 4 . Nos dois últimos capítulos deste trabalho, apresentaremos os dados e as análises de nossa investigação sobre o regime de visibilização em O Globo e na Folha de S.Paulo em 20 anos de notícias da CPLP no Brasil. A divisão desses capítulos já indica que retomamos nossa fundamentação teórica inicial ao sugerir que, didaticamente, temos dois modos entrelaçados de invisibilização: um por ausência e outro por presença. Nesses capítulos e nas considerações finais aventamos, especificamente sobre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que sua invisibilização pode ter raízes identitárias profundas, vinculadas às heranças coloniais e que se tornam visíveis no regime de visibilização proposto nos dois jornais. Talvez estejamos discutindo uma tensão em torno do nosso próprio (não)reconhecimento identitário, o qual teimamos em não querer enfrentar. 3 As reflexões sobre a experiência do invisível no jornalismo, incluindo-se a temática da CPLP em O Globo e na Folha de S.Paulo, foram submentidas nos últimos quatro anos a debates, em oito artigos e seis capítulos de livros publicados no Brasil e em Portugal, e apresentação de trabalhos em nove congressos nacionais e internacionais. 4 O sanduíche em Portugal foi possível em razão de convênio entre o PPGCOM/UFMG e o CECS/UMinho, e que resultou na concessão de uma bolsa CAPES/FCT, por meio do Edital nº 038/2013. CAPÍTULO I – JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra. – Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta Kublai Kan. – A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra – responde Marco –, mas sim pela linha do arco que elas formam. Kublai Kan permanece silencioso, refletindo. Depois acrescenta: – Por que me fala das pedras? É só o arco me importa. Polo responde: – Sem pedras não há arco. (Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 2015) Nosso percurso se inicia com uma discussão que pode ser até trivial sobre o silêncio, mas logo perceberemos que a nítida compreensão do sentido do silenciar será fundamental na sequência teórica que propomos. Este é um debate que contribuiu na experiência do visível e do invisível. Em todo o capítulo, recorremos às ideias de jornalismo, na medida em que também vamos inserindo nossas reflexões em torno de seus limites e possibilidades para enfrentar o que, em tese, é o não dito e o não visto. Nessas condições, trazemos uma proposta de regime de visibilização que será mobilizado por atores políticos e as condições tecnológicas de sua época para fazer dizer e para fazer ver, isto é, assegurando o visível e conformando a visibilização. Todavia, essa ação implica garantir intactas as camadas invisíveis nessa mesma superfície visível. Pensar no regime de visibilização nos obrigou a rever a ideia do próprio jornalismo, não mais como algo preso em estruturas, mas como uma experiência narrativa que se tece nas relações sociais. Entretanto, essa condição descentrada não despreza e nem retira do peso político e econômico das estruturas empresariais. 1.1 Construção dos silenciamentos Para refletir sobre o jornalismo e a invisibilização, objetivo central deste trabalho, propomos iniciar chamando a atenção para um equívoco comum e precipitado: a associação sinônima entre silêncio e silenciar. Não é raro encontrar formulações sobre o calar, a ausência, a mudez, que não estejam imediata e rapidamente relacionadas ao silêncio. Calar não implica silêncio, mas silenciamento. Silenciar é verbo de ação e, nesse caso, ele é a torção do silêncio, e não o silêncio propriamente dito. Consideramos, assim, vital para esse trajeto perceber as propostas de sentidos nesse fenômeno. A nítida demarcação entre os silêncios e os silenciamentos é fundamental para pensar adiante no visível e na invisibilização. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 27 Não temos intenção de propor um mergulho na complexa profundeza do silêncio e, muito menos sugerir um problema filosófico sobre o invisível. Este estudo está limitado a pensar a experiência do jornalismo como um lugar das torções dos silêncios e das palavras, mas que produz um imaginário de uma ordem sintética, disciplinada e preservada em meio ao que seria uma imagem de desordem, de um mundo complexo e confuso. Inserido nas mobilizações tecnológicas do seu tempo, o jornalismo busca organizar o caos e emprestar uma suposta segurança de inteligibilidade do mundo. Ocorre que isso se dá pelas torções dos silêncios e das palavras e que resultam no falar e no ver, e também no calar e no não ver, isto é, em mobilizações propositivas que constituem o regime de visibilização. Ao falar de jornalismo, consideramos que ele é um modo de experiência narrativa no/do mundo e que nos envolve como agentes e pacientes de um mesmo processo. Ao realizar-se nas relações sociais, o jornalismo, por exemplo, utiliza-se da notícia como uma indicação verbo-visual de mundo. Ela circula entre um conjunto de imaterialidades, de materialidades e de audiências presumidas, mas incertas e incontidas. As notícias, como forma de expressão narrativa, são parte de uma complexa teia que, postas à experiência, participarão das tramas políticas, culturais, econômicas e tecnológicas. Nessas condições, elas podem apontar para além da órbita da informação e do seu espaço e tempo. Com essa reflexão, liberamos o jornalismo dos aprisionamentos em produtos, nas empresas, em práticas profissionais e suportes tecnológicos. Em outras palavras, ele não está fixado no começo, no meio e nem no fim do processo informativo porque o jornalismo é uma experiência em trânsito e que se realiza enquanto processo experiencial, em travessia. Ao enfatizarmos a experiência narrativa, estamos destacando que ele tem uma forte dimensão encarnada, materializada em diversas plataformas, mas também a imaginária e que ultrapassa a ideia primária, operativa e normativa do ato de informar. O jornalismo é uma experiência que tenta situar e dar direção ao indivíduo e ao coletivo. De fundo, essa é uma ação política, uma tarefa em que ele não atua sozinho, que não consegue configurar em si o que vemos e ouvimos, assim como o que não vemos e não ouvimos, sem se mesclar aos outros “operadores sócio-simbólicos”, na expressão de Maurice Mouillaud (1997). Por isso, desde já, recusamos uma visão midiacentrista do mundo, e a perspectiva de que o jornalismo fala e mostra esse mundo, como se ele estivesse fora, olhando e contando à distância. Na medida em que o jornalismo se realiza nas relações sociais, e tem a participação de outros operadores, sugerimos que a experiência narrativa que propõe transita em uma zona de disputas, de tensões para constituir e dar rumos às narrativas. É JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 28 nesse sentido que podemos dizer que parte das seleções adotadas pelo jornalismo que busca configurar o mundo não é ação desprovida de intencionalidades. Elas carregam os sentidos do dito e visto, e do não dito e não visto como resultados da prática política em meio a essa experiência. Ressaltamos que reconhecemos a importância fundamental, mas não completamente decisiva, das estruturas empresariais que transformam o jornalismo em negócio e dos seus mecanismos de controle (manual de redação, por exemplo). Elas são centrais na configuração do que entendemos por jornalismo como experiência na medida em que exercem forças propositivas e persuasivas de partida. Ou seja, as máquinas dessas estruturas noticiosas têm papel de revelo na conformação do regime de visibilização. Será diante da superfície jornalística, da proposta de experiência narrativa e de suas marcas visíveis (estruturas empresariais, produtos, bases tecnológicas, práticas profissionais) que localizamos a importância de discutir o jornalismo como agente daquilo que parece ser o inverso de sua natureza: a construção do silenciar e de invisibilizações. Dito isso, retomemos as reflexões sobre o silêncio e o jornalismo 5 , uma relação de diminutas referências bibliográficas. Recorremos a autores de outros campos (NOVAES, 2014; WOLFF, 2014; ORLANDI, 2007; MERLEAU-PONTY, 1991; etc.), que apresentam instigantes trabalhos sobre o silêncio, nomeadamente na filosofia, no discurso, na história. A concordância com algumas das perspectivas adotadas por eles não implica sua completa adoção neste trabalho, porque isso nos distanciaria de nossos objetivos. Esses autores ajudam ao apresentarem suportes conceituais para pensar o silenciamento no jornalismo. É possível tratar do silêncio no jornalismo? Em princípio, a resposta mais imediata seria não. E não porque na experiência narrativa tudo é expressão materializada em formas verbo-visuais, ou seja, não haveria espaço nele para o silêncio. Entretanto, estaria aí uma parte de certa confusão na utilização apressada da ideia de silêncio. E se disséssemos que o jornalismo requer silêncio e o silêncio não implica vazio ou ausência? Portanto, o primeiro passo aqui é perceber o silêncio como elemento estruturante do dizer, do ver, de sentidos e das imaginações. O conceito de silêncio passa por sua condição de constituinte das linguagens, sendo, desde o estágio zero, a algo a preceder o ruído e que segue um atravessamento permanente por dentro e por fora das expressões. Maurice Merleau-Ponty (1991) afirma que o silêncio deve ser considerado antes das palavras e, mesmo depois delas, ele continua 5 Sobre esse tema, apresentamos a comunicação “Jornalismo, a torção dos silêncios e das palavras: o caso da CPLP no Brasil”, durante as V Jornadas Doutorais do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, em Braga, Portugal, nos dias 27 e 28 de outubro 2016. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 29 rodeando-as e possibilitando que as expressões se realizem. Diz ele que a linguagem é composta por “fios de silêncio” que rasgam os textos. Marilena Chauí (2008), analisando Merleau-Ponty, disse que esses fios possibilitarão que a linguagem continue a ser como um mistério que torna presentes as significações, que transgride a concretude sonora e gráfica do visível, e que inunda a imaterialidade. Adauto Novaes (2014, p. 20) lembra-nos que o silêncio é “parte do homem, dos fenômenos e do próprio fenômeno da fala”. O silêncio compõe, atravessa, recorta as experiências expressivas; ele entorna palavras, imagens e possibilita incontroláveis sentidos na medida em que ele é condição ao próprio pensamento. Exemplificamos esse silêncio, original e estruturante, como o quase imperceptível espaço entre as notas musicais da partitura, mas que é essencial para fazer com que os traços articulados no papel sejam música. Orlandi (2007, p. 13) diz que o silêncio é “respiração (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que possa significar”. Ao afirmarmos que o silêncio é um espaço, não implica dizer que é um campo vazio a espera de preenchimento. Ao contrário, esse lugar é algo que existe, uma presença, não como a linguagem e sua materialidade, mas como aquilo que possibilitará os sentidos. Diz Francis Wolff (2014, p. 50) que o silêncio “diz necessariamente alguma coisa, mas pode dizer qualquer coisa. [...] é ausência de som e presença de sentido”. Para Álex Grijelmo (2012, p. 517), “o silêncio forma parte da comunicação; isto é, o silêncio é comunicação e transmite informação”6. Ao recorrer à história, Novaes (2014) revela que no início da civilização o homem tomou a palavra como uma forma de se libertar do silêncio absoluto da matéria. Essa ação nos transformou em seres de linguagem. Todavia, a palavra tornou-se tão intensa e central na vida que esse “excesso de fala hoje nos convida a pensar o contrário – o silêncio – como uma forma de sobrevivência da experiência” (NOVAES, 2014, p. 17, grifos nossos). Em razão de tamanha força em torno das expressões, Orlandi (2007) sugere que, em lugar de perceber o silêncio como vazio, observemos as expressões como excessos. Em resumo, pontuamos que o silêncio é requisito fundamental aos sentidos do dizer e do ver; uma condição medular na inteligibilidade das experiências comunicativas. Todavia, o silêncio parece pouco percebido e valorizado nos trabalhos que teorizam a comunicação e o jornalismo, onde as linguagens são centrais. E as expressões, as imagens, 6 “El silencio forma parte de la comunicaión; es decir, el silencio es comunicación y transmite información”. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 30 as palavras, sem o silêncio, nada poderiam falar e mostrar. Além disso, lembremos que o silêncio é pré-requisito para o ouvir, elemento central na comunicação, no jornalismo. Depois dessas sinalizações, interessa-nos perceber uma fina e descontinuada linha entre silêncio e silenciamento, considerando este último como a ausência que, às vezes, faz-se passar por silêncio, mas que se trata do efeito das torções dos silêncios e das palavras. Como um dos operadores sociossimbólicos imersos em disputas políticas e que configura os ditos e os vistos, os não ditos e os não vistos, o jornalismo é uma experiência que mobiliza silêncio e silenciamentos. Todavia, a ação de silenciar, que é também uma expressão de poder, faz parecer natural o falar e o calar, conformando sentidos de lembranças e de esquecimentos. A partir do momento que tomamos a palavra para nos libertar do silêncio da matéria (NOVAES, 2014), somos levados a imaginar que as expressões engoliram os silêncios, como se a palavra tivesse uma força superior que doma e sufoca o silêncio. Pior, as expressões relegariam ao silêncio a sensação de completo vazio. Talvez não seja sem razão que, curiosamente, para falar do silêncio recorremos às palavras, ao conjunto articulado de signos onde estaria, ilusoriamente, o todo dizer dos sentidos. Fora da expressão, nada haveria. Ocorre que o silêncio não desaparece e o que entra em cena, às vezes de forma sutil, é o silenciamento. E, também no jornalismo os silenciamentos falam. A supremacia da palavra, do que é visível, está em muitas pesquisas em comunicação. Há uma lógica de que o não falado e o não visto tem pouca ou nenhuma importância como objeto. No jornalismo, por exemplo, se não foi dito e/ou não foi visto, sequer pode ter existido. Entretanto, nosso propósito é pensar o jornalismo como um lugar da experiência social que manipula os silêncios e as expressões com vistas significativamente para o falar e também para o silenciar. Ou seja, é preciso considerar o silenciamento como componente das expressões, um elemento que está no dito e no visto. E mais, a ação de silenciar ocorre por torções e exclusões para manter as inclusões visíveis. Além do silenciar realizado por ausências verbo-visuais, podemos ter outro modo de calar. O filósofo Giacoia Júnior (2014) diz que vivemos em uma “sociedade tagarela”, em que a maioria de nós exerce a compulsão pela tagarelice, onde é impossível calar. Nesse ambiente, calar pode implicar esquecimento, desaparecimento, solidão. Por isso, agarramo-nos “ao ininterrupto ruído circundante e tranquilizador, entregando-nos sem pudor a toda distração e anestésico, à voraz tagarelice universal” (GIACOIA JÚNIOR, 2014, p. 84). O jornalismo é parte desse mundo tagarela-visual. Ele é uma experiência que faz falar e que faz ver, que busca preencher tudo, onde não há espaço para o “vazio”. É JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 31 nesse ponto que o jornalismo vai agir na torção de silêncios e de palavras, a produzir a impossibilidade de outras expressões. Ou seja, aqui temos uma materialidade visível, dita, concreta, intensa e que constrói silenciamentos. De alguma forma, antecipamos um aspecto de nossa discussão metodológica: a impossibilidade de materializar o silêncio. Entretanto, sugerimos ser possível observar os movimentos para o silenciar, as ações que ocorrem por meio das narrativas. Por exemplo, diante da ordem “Cale-se!”, podemos indiciar efeitos concretos, como o silenciar direto ou indireto, nesse último caso, com a utilização de respostas que impliquem em fuga, resistência ou luta. No caso das respostas à ordem do calar-se, intuímos que as palavras, os gestos e os silêncios foram torcidos e as expressões que ganharam o plano da superfície como rastros que podem ser objetos de narrativas, justamente para desvelar as entorses. Já apresentamos esse aspecto metodológico aqui de forma pontual para dizer que não estabelecemos juízo de valor a priori ao tratar das torções. O silenciamento pode ter, e geralmente tem, um viés mais negativo, perverso, de repressões nítidas ou de opressões dissimuladas. Entretanto, ele pode ter uma perspectiva interessante como, por exemplo, um calar-se para salvar a vida diante de ameaças, um “fazer-se de morto” para evitar a consumação da morte, utilizar-se da ficção como forma de dizer em ambientes de censura. O silenciar até pode ser considerado direito em tribunais, o direito de permanecer calado, mas pode significar ali ou ao senso comum, uma confissão: “quem cala, consente”. Independentemente do ângulo, o silenciamento é ação de poder, mas de um poder na lógica de Michael Foucault (1979), isto é, como aquele que proíbe, faz calar, sufocar, mas a força que também faz resistir, reagir, incitar a romper. Se existe um silenciar que apaga e perversamente impede, existe nele mesmo às condições para romper esses limites. É o que diz Orlandi (2007, p. 29): o silêncio pode ser parte “da retórica da dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência)”. Apesar das censuras diretas não terem desaparecido nas chamadas democracias mais modernas, pelo contrário, interessa-nos, sobremaneira, perceber o silenciamento em suas formas mais sutis e indiretas, a exemplo da insistente e repetida fala única, da mesma visão como se fosse total, impedindo outras expressões possíveis. Frédéric Gros (2014), assim como Giacoia Júnior, ressalta a existência da produção de um silenciar por meio de um “vozerio enorme, pela tagarelice ensurdecedora de todos que se lançam numa corrida desenfreada e feroz para dizer e repetir a mesma coisa” (GROS, 2014, p. 349). Essas reflexões nos fazem pensar a partir de dois modos de silenciamento por força das torções de silêncios e de palavras: um, por ausência e outro, por presença. O JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 32 primeiro realiza-se no não dizer, nas ausências reiteradas, na não possibilidade do lembrar sobre os acontecimentos. De fato, parece impossível lembrar-se ou relembrar-se do que não foi visto e/ou do que não foi dito. O silenciamento por ausência pode ser ou não deliberado. Se o torcer de palavras e de silêncios for ostensivo, estamos em censura. O outro modo é por presença, que se realiza na intensa imposição de uma mesma forma de dizer, na apresentação do mesmo ponto de vista, no uso das mesmas expressões, estereótipos, preconceitos, valores, conformando uma tagarelice que, antes de tudo, é desviante e que impossibilita outros dizeres, que sufoca outras visadas, principalmente, as mais divergentes. É um falar para um não dizer. O mundo é apresentado assim, como o todo único, sólido e conhecido, e o que não está dito e nem visto é porque não existe. Esse é um silenciamento mais sutil porque ele, presente nas relações sociais como algo natural, tem difícil caracterização como um silenciar. Falamos intensamente sem perceber que estamos calados profundamente. Seja por ausência ou por presença, o silenciamento está nas experiências narrativas e é resultado das torções dos silêncios e das palavras. Na ausência, as vozes serão subtraídas, emudecidas, impedindo que se faça memória, garantindo-se o esquecimento. Na presença, as expressões serão permitidas e delimitadas, agindo como totalizadoras do mundo, ou seja, vão dar forma ao visível, ao inteligível. As ações para a ausência ou para a presença são de uma ordem política e buscam impedir e estrangular outras vozes possíveis. Refletimos que essa operação pode até conseguir, por um tempo, o silenciar, mas as vozes sufocadas mantêm-se ali, em latência, na expectativa de serem resgatadas pelas narrativas. Por isso, é necessário ressaltar que o silenciar empreende-se nas relações sociais, em um ambiente dinâmico onde as forças, a depender das tensões, fissuram as superfícies dos consensos sobre o que existe. Em outras palavras, mexer com os silêncios não implica apenas nas torções para um silenciar definitivo, mas possibilita perceber que essa é uma experiência aberta, crítica e criativa. Como asseverou Novaes (2014, p. 20): “o silêncio fascina porque guarda uma força estranha que leva o espírito a se voltar para o que não existe”. Os silêncios e as palavras têm, assim, uma polifonia incontrolável, e as torções percebidas podem motivar o romper, a ver as marcas riscadas nas superfícies. Nessas condições, investigar o silenciamento ajuda a perceber os limites da linguagem dita, a ultrapassar as suas fronteiras, a apontar sentidos para fora de indicações linguageiras e que conformam nossa experiência narrativa visível. O jornalismo se constitui um dispositivo político na medida em que seleciona os ditos para garantir o JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 33 silenciar dos não ditos. Forças majoritárias buscam organizar, controlar, determinar os sentidos esperados, o que não implica pleno sucesso de suas intenções porque estamos no espaço da experiência onde se pode romper com os formatos prontos. Com isso, salientamos que a nossa experiência narrativa é também atravessada por uma cultura dos silenciamentos. Apesar de Paulo Freire (1976) tratar da “cultura do silêncio”, ele apresenta uma reflexão que reforça as ações políticas do silenciamento e ilumina os impedimentos sócio-históricos no Brasil nação, uma questão alinhada aos objetivos deste estudo. A sociedade dependente é, por definição, uma sociedade silenciosa. Sua voz não é autêntica, mas apenas um eco da voz da metrópole – em todos os aspectos, a metrópole fala, a sociedade dependente ouve. O silêncio da sociedade-objeto face à sociedade metropolitana se reproduz nas relações desenvolvidas no interior da primeira. Suas elites, silenciosas frente à metrópole, silenciam, por sua vez, seu próprio povo (FREIRE, 1976, p. 70). Essas considerações sobre silêncio e silenciamento encaminham-nos para perceber o processo da construção do regime de visibilização que caracterizamos por um recorrente silenciar ao longo de um tempo histórico. Ou seja, o silenciar tem caráter pontual, localizado, onde um determinado falar estará ausente ou presente naquele instante, pronto a ser percebido como ausência ou como elemento desviante. Todavia, se esse silenciar se tornar repetitivo, arrastando-se por um extenso período, e se as forças de resistência nas relações sociais não conseguirem rompê-lo, teremos a invisibilização. Na experiência do invisível, o silenciamento aparece como dado, naturalizado, confirmado por uma inexistência que parece absoluta. É fundamental ressaltar que, ao tratar do silêncio não estamos presos às narrativas verbais. O falar e o calar estão no mesmo patamar do ver e do não ver, a compor um mesmo gesto interpretativo no regime de visibilização, nesse ambiente que é povoado por crenças e imaginários que se expressam verbo-visualmente. Entretanto, a relação entre o silêncio e o silenciamento não é da mesma ordem que a do visível e do invisível. Essa última avança aos imaginários, para além do falar e do calar, do ver e do não ver. Por isso, antes de tratar sobre esse regime, assim como fizemos com o silêncio e o silenciamento, vamos refletir sobre o visível e o invisível, mas com ênfase na invisibilização. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 34 1.2 Experiência do visível e do invisível Caracterizamos a invisibilização como o resultado de um processo de repetição do silenciar ao longo do tempo. O invisível do qual cuidamos não é um calar e/ou um não ver pontual, mas persistentes supressões e impedimentos que também vão conformar as nossas experiências de mundo. O invisível é parte de uma construção política do cotidiano a partir da reiteração de ausências e/ou de presenças. Como nosso objetivo é discutir o jornalismo e a experiência do invisível, buscamos referências sobre jornalismo e visibilização, na esperança de encontrar análises também sobre a invisibilização. Entretanto, deparamo-nos com pesquisas sobre produtos midiáticos em que se revelam se temas, fontes, acontecimentos atingiram alguma visibilidade. Na prática, o que temos nesses trabalhos é uma ênfase na empiria que parece falar por si só na superfície, relegando-se ao plano secundário as discussões mais teóricas em torno do visível e da própria visibilização. Essas investigações são mais tímidas ainda se o objeto for alvo de invisibilizações. Em muitos casos, a saída usada na explicação para a invisibilidade é lançar mão de certa trivialidade para garantir que ela é somente o oposto à visibilidade, sem avançar teoricamente para discutir as presenças visíveis e, muito menos, as ausências, as camadas invisíveis. Assim como aconteceu com o silêncio e o silenciamento, encontramos dificuldade de chegar até as bibliografias que apresentassem abordagens teóricas do visível e do invisível e que incorporassem o jornalismo. Esse quadro de carência sobre as referências específicas nos obrigou a percorrer outros campos do conhecimento, como o da filosofia. No âmbito dos conceitos, Gilles Deleuze (2005, p. 68) afirma que as visibilidades “não se definem pela visão, mas são complexos de ações e de paixões, de ações e de reações, de complexos multissensoriais que vêm à luz”. Esse filósofo vai nomear as visibilidades de “estratos” e “formações históricas” construídas socialmente, além da visão. Em certa medida, Andrea Brighenti (2010) 7 dialoga com Deleuze ao chamar atenção de que o visível implica mais do que a percepção visual. Esse visível é “dependente de contextos e complexos sociais, técnicos e arranjos políticos que poderiam ser denominados de ‘regimes’ de visibilidade” (BRIGHENTI, 2010, p. 3)8. Para John B. Thompson (2008, p. 21), o ver é “moldado por um espectro mais amplo de pressupostos e 7 As citações de Brighenti (2010) em todo trabalho foram traduzidas livremente por nós. 8 “[...] dependent upon contexts and complex social, technical and political arrangements which could be termed ‘regimes’ of visibility”. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 35 quadros culturais e pelas referências faladas ou escritas que geralmente acompanham a imagem visual e moldam a maneira como as imagens são vistas e compreendidas”. Essas caracterizações nos fazem pensar na diferença entre a visão e a visibilização. A primeira tende a um tipo de materialidade que parece incontestável, mesmo sendo uma ilusão óptica. É a expressão mais nítida na superfície. A visibilização, por sua vez, é o conjunto complexo de falas, silêncios, ausências, de luzes e escuros articulados a possibilitar sentidos e significações, imagens e imaginários. Na visibilização temos uma meada de gestos políticos que nos entrelaça e que conforma parte de nossa experiência. Não obstante essas condições, a visibilização realiza-se na relação das dimensões da visualidad, da mirada e da imagen, como propõe Gonzalo Abril (2013), mas também em razão das textualidades, das linguagens. O fundamental é ressaltar que a visibilização é composta tanto por uma materialidade visível, quanto por várias camadas invisíveis. Assim, nossa tarefa diante das visibilizações será a de suspeitar de um mundo dado e acabado, esforçando-se para fazer emergir, nele mesmo, o que ainda está ausente, em meio às sombras ou no escuro. Reforça Daniel Innerarity (2009) que as coisas do mundo não são completamente transparentes e nem óbvias como parecem que são, de forma que, “por trás do visível se oculta sempre o invisível” (INNERARITY, 2009, p. 18). Na busca para aprofundar o visível e o invisível, recorremos com mais ênfase a outro filósofo, Merleau-Ponty (1991, 1999, 2012). Ele, assim como outros autores, auxilia- nos a pensar nesses fenômenos, contudo, eles não se dedicaram à comunicação e, muito menos, ao jornalismo, o que nos impõe uma consciência de cuidados nessa aproximação. Ao invocá-los, tentamos um diálogo que, mesmo com reservas, julgamos ser fecundo. Merleau-Ponty contribui até metodologicamente ao nos convidar para experimentarmos as dúvidas no que vemos, e mergulharmos nas camadas ainda invisíveis dos objetos 9 . Quais as relações entre visível, invisível e jornalismo? É possível falar em camadas invisíveis no jornalismo? Para tentar responder essas questões, precisamos reposicionar o jornalismo e buscar entendê-lo como experiência possível, constituído de fortes estruturas empresariais e mobilizado pelas tecnologias, a pôr em jogo um mundo visível e inteligível. Alerta-nos Mouillaud que: 9 A aproximação entre Merleau-Ponty e jornalismo foi objeto de GOES. J.C.; ANTUNES, E. Merleau-Ponty e o Jornalismo: possibilidades de um diálogo para além do visível. Revista Intexto, Porto Alegre, UFRGS, jan/abr, n. 38, p. 134-156, 2017. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 36 O pôr em visibilidade não constitui apenas um ser ou um fazer; [...] contém modalidades do poder e do dever. Toda e qualquer informação engendra o desconhecido, no mesmo movimento pelo qual informa; inicialmente porque produzir uma superfície visível induz um invisível como seu avesso (MOUILLAUD, 1997. p. 39). Com isso, não objetivamos colocar o jornalismo no banco dos réus para julgá-lo por aquilo que não pode ser julgado. Isto é, não cobramos o que deveria ser e não é, e nem poderia sê-lo. Não há exigências e nem ilusões nesse sentido, o que também não arrefece uma necessária reflexão crítica sobre a experiência narrativa no mundo a conformar uma zona de inteligibilidade, um regime de visibilização que garante inúmeras invisibilizações. O que o jornalismo nos indica é um grande objeto: o mundo visível proposto por ele. Nesse sentido, o projeto merleau-pontyano nos convoca para experimentar a suspensão desse mundo, dos quadros construídos e referenciados como realidade e como verdade. A experiência da dúvida não é um desligar-se por completo do mundo, nem refutar o que existe, mas experienciar outras dimensões ali, articulando em um mesmo movimento perceptivo o que aparece e o que desaparece. Destacamos que Merleau-Ponty não é um dos pensadores de imediatas leituras, mas os esforços para tentar compreendê-lo podem ser compensadores. Lembremos que ele inicia refletindo sobre a percepção, ainda no início dos anos 1940 e, ao final de sua curta vida, principalmente com O visível e o invisível (1964), publicada depois de sua morte, ele aprofunda a ideia de percepção tomando o rumo para entendê-la como experiência. Marilena Chauí (2008) lembra que a preocupação de Merleau-Ponty era a essência das coisas. Em geral, a filosofia e a ciência asseguravam que somente se chegaria à essência ao se separar o corpo da alma, a matéria do espírito, o sujeito do objeto. Em um polo, estava razão, objetivismo, empiria, ou seja, a ciência. No outro, entrincheiravam-se o subjetivismo, a abstração, a metafísica, a filosofia. Merleau-Ponty recusa essas dicotomias e, conforme diz Pascal Dupond (2010), sustentará que o concreto e o transcendente não podem ser separados de forma radical, ou seja, que não existe uma essência “fora das coisas”, e nem a explicação última, o ponto final, aquilo que põe o fim a toda dúvida. A essência está nas coisas visíveis e nossa relação com elas exige uma interrogação interminável, não para encontrar as essências, mas perceber outras camadas do visível ainda não vistas (CHAUÍ, 2008). Também para Merleau-Ponty não há como separar o visível do invisível, o que segue uma coerência reflexiva, estando a essência a transitar nos dois fenômenos. Ao contrário do que se possa pensar, o invisível não da ordem de um mundo paralelo e JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 37 ilusório, porque, lembra Merleau-Ponty (2012), não é da característica humana a criação de uma segunda natureza correlata a que temos, mas de passar por cima das estruturas criadas para perceber as outras, da mesma natureza. Assim, visível e invisível habitam a mesma carne. Dessa forma, não existe como nos colocar fora dela porque somos um todo encarnado no mundo, o “Ser-no-mundo”, como disse Heidegger10, e que Merleau-Ponty nomeará, de forma mais radical, de “Ser-mundo”. A proposta de Merleau-Ponty (2012) é um forte indicativo de método, em especial quando ele pede nossa ação concreta no desvelamento do mundo à nossa volta, na percepção das camadas invisíveis que estão aqui, no visível. Essa atitude é uma espécie de cisão que não nos separa do mundo. Dizendo de outro modo, o visível e o invisível não são polos opostos, mas pares dialéticos e necessariamente vitais entre si. Lembra-nos Merleau- Ponty (2012, p. 159) que, “do mesmo modo que a nervura sustém a folha por dentro, do fundo de sua carne, as ideias são a textura da experiência, seu estilo, primeiro mudo, em seguida proferido”. Da mesma forma, reforça Brighenti (2010, p. 19) que “o invisível é intrínseco ao visível; é o que faz o visível possível”11. Por essa reflexão, sugerimos que a experiência para desnudar o todo visível será possível por meio de fissuras nas superfícies onde emergem alguns rastros. Ali, segundo Chauí (2008), exercitamos a “promiscuidade” com as coisas, com os corpos, com as palavras, com as ideias. Em A Prosa do Mundo (1969), Merleau-Ponty aproxima-se da comunicação. Ele usa a “expressão” como uma ação da experiência, um exercício concreto de descobrir o mundo na medida em que empregamos a linguagem para nomear as camadas e os objetos visíveis e, em especial, os invisíveis. Por isso, a narrativa como expressão é a experiência que nos desperta, implica-nos e impede nossa sedimentação no mundo como espectador. A experiência do visível e do invisível ocorre nas relações sociais e com o elemento central da dúvida. Ela dispara uma espécie de “desconfiômetro” que fará emergir nesse ambiente outros sentidos ainda não ditos, não vistos, não pensados. Essa reflexão leva-nos a enxergar as forças criativas na tensão visível/invisível, que desestabiliza os processos comunicativos ainda amparados na ilusão de um contrato em torno do visível e do inteligível, um acordo imaginário que estaria na base da promessa do jornalismo. Estamos a tratar da maneira de perceber parte da experiência narrativa que coloca em jogo os ditos e os não ditos, conformando o regime de visibilização. Deleuze (2005, p. 62) afirma que as visibilidades são “formas de luminosidade, criadas pela própria luz e que 10 Mais em HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo – Parte I. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005. 11 “[...] the invisible is intrinsic to the visible; it is what makes the visible possible”. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 38 deixam as coisas e os objetos subsistirem apenas como relâmpagos”. Agindo nesse regime, o jornalismo é uma experiência que faz dizer e que faz ver como relâmpagos e, a depender da intensidade e da reiteração de um facho de luz, pode-se ficar cego. Além disso, esses flashes iluminam pontos, deixando nas sombras ou no escuro algumas áreas no próprio ambiente limitado e, em especial, fora dele. Deleuze (2005), mesmo sem fazer referência a Merleau-Ponty, argumenta em sentido aproximado ao analisar que as visibilidades, por mais imposições que tenham para conformar o visível, nunca serão completamente visíveis. O todo visível jamais será o todo. Para esse autor, as visibilidades serão “até mesmo invisíveis enquanto permanecermos nos objetos, nas coisas ou nas qualidades sensíveis, sem nos alçarmos até a condição que as abre” (DELEUZE, 2005, p. 66). De forma parecida, Innerarity (2009, p. 27) lembra-se da importância de colocar sob suspeita o visível porque, segundo ele, “ocultar é um elemento constitutivo de qualquer superfície”. Essa suspeição, diz Merleau- Ponty (2012), é a epoché, a ação interrogativa diante das aparências. Devemos conjecturar, considerando o talvez em lugar de afirmar, apostando em reticências em vez do ponto final. A epoché nos liberta da atitude natural e convoca as expressões para libertar os objetos da frágil realidade em torno deles, e por exigência deles. Merleau-Ponty diz que nossa suspeita sobre o visível não deve ser pautada por juízos prévios, para saber se o que vemos é falso ou não. Seria um erro primário considerar que a verdade está no invisível e a mentira, no visível, ou vice e versa. Essa questão da veracidade não está em jogo nessa reflexão. Tanto os sinais ou as imagens verdadeiras escondem os fundos de suas verdades, como os sinais e as imagens mentirosas vão ocultar os fundos de suas mentiras (INNERARITY, 2009). Assim, não existe um objeto escondido atrás de outro, e nem o visível e o invisível são absolutos. Visível e invisível são transitórios entre si; o visível, a depender das forças, pode ganhar uma dimensão invisível, e o inverso também ocorre. Por isso, sempre adotamos neste trabalho a expressão visibilização, que sugere uma ação de instabilidade e reversibilidade, em lugar de visibilidade, que parece mais definitiva e fixa. Sugerimos que visível e invisível estão no instável processo comunicativo, sendo, simultâneos e diferentes; reversíveis e entrecruzados; figuras e fundos do mesmo objeto. Não é demais lembrar que a expressão é uma experiência social irrecusável e singularizada por meio das narrativas e das linguagens, que, por sua vez, carregam “tufos de significações, arborização de sentidos próprios e figurados [...] uma luz que, aclarando o resto, conserva sua origem na obscuridade” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 127). JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 39 Antes, vimos que a experiência narrativa no jornalismo é atravessada por fios de silêncio a produzir silenciamentos. Nela, existem as torções das palavras e dos silêncios que conformam o mundo como um todo e único, porém, essa experiência é trespassada por várias impertinências, intempestividades, ambiguidades, desacordos. As palavras sufocadas e/ou os silenciamentos estarão sempre em latência, prontos a emergir. Desse modo, o jornalismo se constitui como uma proposta de experimentação, como o lugar da “compossibilidade”, como o ambiente em que é preciso reconhecer as camadas que revelam ausências e presenças (MERLEAU-PONTY, 2012). O exercício de perceber essas profundidades impõe, necessariamente, uma postura crítica diante do objeto jornalismo, isto é, deve-se considerar que o inteligível proposto à experiência não será obra apenas das narrativas do visível, mas de um grande volume de não expressos. Para Grijelmo (2012), o silenciar de fatos relevantes pode até alterar a compreensão do mundo que nos envolve. Ao utilizar uma história em perspectiva crítica, Marcelo Jasmin (2014) apresenta reflexões que, em certa medida, ratificam a importância de se enxergar os invisíveis, análise que dialoga, de alguma forma, com o jornalismo. Assim como a história, o jornalismo promete contar o que aconteceu. No entanto, o presente que ele jura dizer e mostrar é uma frágil parte da realidade. Por isso, abusa da retórica narrativa de que está desvinculado do passado e garante narrar somente o presente, a realidade ao vivo, o mundo inteiro em nossa frente 24 horas por dia, isto é, o todo visível. Assim, se a realidade é o que experimentamos como jornalismo, e por meio dele, o que não esteve ali, o que não foi dito e nem foi visto, não teria acontecido, não foi real. A história que diz narrar o que aconteceu, lembra Jasmin (2014, p. 251), “também silencia a experiência vivida pelos homens comuns, mesmo que não o queira ou o saiba”. Sugere ainda Jasmin (2014, p. 252) que “o que houve, mas não foi narrado, não se tornou acontecimento, não importou a ponto de ser registrado para a posteridade [...] ficou excluído”. Nessas condições, Jasmin cogita que até podemos falar de “povos sem história” e isso ocorre, entendemos nós, em razão dos longos períodos de silenciamento e que resultam em invisibilizações. Exclusões, esquecimentos, ausências e/ou presenças tagarelas buscam moldar o mundo, de modo que muitos indivíduos e coletividades dominadas e enredadas nessas experiências não terão, muitas vezes, sequer condições políticas para que possam se narrar. Algumas, certamente, serão narradas nas tramas do poder, assumindo uma oficialidade narrativa dominadora como se fosse a sua história. Com esse raciocínio, reafirmamos que não se cobra um jornalismo perfeito, um lugar ideal onde tudo será dito e estará visível. Não há dúvida sobre essa impossibilidade, JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 40 que não é apenas do jornalismo. Até mesmo a narrativa que jura ser total revela, em si, a pretensão desviante do próprio mundo loquaz que diz nomear tudo o que existe. O jornalismo não narra tudo e a seleção que emprega cotidianamente para o visível e para o invisível vai atravessá-lo de forma decisiva e constitutiva. Essa incontornável constatação, isto é, de não poder narrar tudo é o grande objeto das relações de poder, um objeto que pode ser usado como efeito paralisante, ou seja, corre-se o risco de que, ao aceitar como natural a incapacidade espaço-temporal de não contar tudo, tenha-se de engolir a narrativa visível como a única e válida, principalmente com silenciamentos, censuras, invisibilizações. Por isso, conformar-se em um regime de visibilização é fazer, ingenuamente, parte do jogo onde os resultados parecem determinados. Ou seja, diante desse não poder narrar tudo, as forças políticas majoritárias buscam reduzir as nossas experiências narrativas; limitar as linguagens; maquiar a pluralidade do visível e, em especial, investir para assegurar os invisíveis por reiteradas ausências e/ou por insistentes e únicas presenças tagarelas. O nosso propósito é sugerir que os silenciamentos, em razão das torções das palavras e dos silêncios estão nas narrativas jornalísticas; que o silenciar na história vai construir uma invisibilização, uma espécie de imaginário individual e/ou coletivo que vai compor uma zona de certezas de que alguns acontecimentos, de fato, sequer existiram. A depender de nossa experiência como o visível apresentado pelo jornalismo, dificilmente vamos poder reconhecer as lacunas, as faltas, as brechas, os rastros, mas eles estarão lá. Podemos falar de uma invisibilização por presença, por um dizer e por um mostrar intensos e únicos que objetivam impedir que se diga e que se veja de outra maneira. Teremos, assim, uma construção narrativa poderosa, muitas vezes forjada em documentos, imagens, fontes, com pouca possibilidade de enxergar além do todo visível apresentado. Também por essa modalidade de invisibilização, podemos falar em censura, porque “quem censura tem sempre, ao mesmo tempo, uma estratégia de fala. A censura não é muda, é tagarela” (GROS, 2014, p. 248). Assim como na história, também o jornalismo pode, com uma narrativa única e repetida, constituir-se como arquivo, o local onde estará o todo dito de um todo visível, a prova do verdadeiro a impedir o enxergar das outras camadas verdadeiras e ainda invisíveis. Diante dessas reflexões sobre silêncio e o silenciamento, visível e o invisível, faz- se necessário convocar algumas das teorias mais lembradas nos estudos sobre o jornalismo para aprofundar esse percurso. Como as tradicionais formulações da área têm respondido aos desafios de uma experiência que conforma o visível assegurando o invisível, ou que JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 41 configura as invisibilizações por meio de um regime de visibilização? Essa é uma das questões que buscamos enfrentar a seguir. 1.3 Jornalismo: o que não vemos aqui? Reconhecer o invisível na experiência jornalística exige pensar o jornalismo para além dos seus produtos, das práticas profissionais, das organizações de mídia e dos conteúdos materialmente expressos nas superfícies. Essas são ferramentas importantes que contribuem para a indicação narrativa de mundo; auxiliam na conformação do todo visível e inteligível. Por exemplo, grandes estruturas empresariais que transformam o jornalismo em negócio têm peso significativo na conformação do regime de visibilização, em razão de terem condições para a mobilização tecnológica contemporânea a produzir imaginários, como argumenta Moisés de Lemos Martins (2011). Entretanto, essas organizações, seus constrangimentos e produtos, sozinhos, não abarcam as experiências narrativas no complexo espaço das relações sociais. No jornalismo, as narrativas serão promessas às audiências que, por sua vez, também serão promessas. O público, que se entrelaça direta ou indiretamente às mídias, acolhe muitas das ancoragens e angulações propostas, mas também pode rejeitá-las, desvencilhando-se das teias de sentido lançadas sobre ele. Não tratamos do jornalismo como uma instituição social sedimentada e autorizada, não se sabe por quem, a pinçar o que é relevante e apresentá-lo como síntese para que a audiência consuma os acontecimentos como verdadeiros. Há outras forças e tensões a transitar na esfera do jornalismo, que é, insistimos, material e imaterial. Gonzalo Abril (2013, p. 35), por exemplo, diz que “o espaço público moderno é um campo de gravitação e de conflito entre visibilidades e invisibilidades”. Alguns dos estudos mais tradicionais buscam explicar o jornalismo dentro de uma estrutura, com se ele tivesse um endereço fixo com tal poder de definir as agendas públicas para todos nós, consumidores de informação. Essa força seria tão significativa que passaríamos a pensar e a agir conforme o ângulo escolhido e determinado pelas mídias. No geral, discordamos dessa visão porque as audiências parecem ser concebidas como uma espécie de receptores de cabeças e de corpos vazios à espera do preenchimento. Depois de injetados por notícias, eles se moveriam como definido por jornalistas e as empresas de mídia. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 42 Mais uma vez ressaltamos que essa crítica a uma ideia midiacentrista da vida não implica desconhecer que algumas organizações mobilizam amplos aparatos midiáticos na tentativa de dizer da realidade para todos. Reforçamos que as estruturas empresariais que lidam com uma proposta de jornalismo têm grande força mobilizadora para um determinado regime de visibilização. Contudo, reagimos ao determinismo de um processo transmissivo, que acreditamos superado na contemporaneidade e que, ao nosso julgar, não consegue responder à complexidade das sociedades e de suas relações. Elton Antunes e Paulo B. Vaz (2006, p. 52) lembram que as mídias não englobam a totalidade das experiências sociais, e nem da comunicação, sendo, fluxo, “mas não é ininterrupto à maneira como vemos um rio, não é um fluxo contínuo; é sucessão de diferentes pedaços sobrepostos, com brechas e falhas entrecruzadas”. Estruturas endurecidas parecem ter dificuldade de considerar as tensões nos espaços das experiências sociais, um lugar de disputa e forças assimétricas que ensaiam a realidade, porém, seu resultado será sempre frágil diante de um olhar mais atento. Talvez aqui esteja um indicativo para pensar nas constantes crises do jornalismo. Isso exige enxergar as narrativas propostas como parte de um campo visível, isto é, deve-se conjecturar que as indicações noticiosas guardam silenciamentos e invisibilizações. Mesmo um jornalismo conceituado como enunciação produz o silenciar na medida em que as linguagens implicam escolhas, isto é, inclusões e exclusões. O que defendemos é que existem várias camadas ainda invisíveis nos mesmos objetos visíveis do jornalismo. Elas não estão distantes e inacessíveis, ao contrário, seguem perto e abertas às experiências narrativas, aliás, e exigem de nós a permanente dúvida e constantes expressões. Nas teorias sobre o jornalismo, uma questão que sempre surge é: “O que vemos aqui?”. As respostas, invariavelmente, indicam materialidades, números, gráficos, constatações visíveis. Entretanto, o que nos mobiliza não é o visível, mas o interesse na questão: “O que não vemos aqui?”. Ao contrário da primeira, as respostas dessa segunda pergunta não são de uma ordem do concreto, e nem sugerem o seu oposto, o abstrato ou um exercício de adivinhação. Ao discutir sobre o que não vemos aqui, buscamos perceber os movimentos, os deslocamentos reiterados do silenciar. Esse é um processo metafórico à medida que é impossível delimitar e concretar o invisível. Por isso, tratamos de invisibilização que tem sua materialidade na própria narrativa. Curiosamente, com a pergunta “O que não vemos aqui?”, a qual buscamos associar ao visível e ao invisível no jornalismo, somos levados a Merleau-Ponty (1991). Encontramos em sua obra uma pequena anotação na qual ele faz referência direta ao JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 43 jornalismo. Ela está em Signos (1991), na parte final (Comentários – nota VIII), e é intitulada Sobre as notícias do cotidiano. Apesar de curta, essa reflexão é bastante coerente com o seu trajeto em torno da percepção e da experiência do visível e do invisível. Nesse comentário, Merleau-Ponty (1991, p. 349) diz que “talvez não haja uma só notícia do cotidiano que não possa dar ensejo a pensamentos profundos”. O filósofo chama atenção para o enxergar entre brechas, uma experiência concreta em que encontraremos “numa ruga do rosto, um mundo inteiro igual ao nosso” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 349). Reafirmamos que grande parte do projeto merleau-pontyano tem forte apelo teórico-metodológico. Ele pede nossa ação atenta diante das notícias mais comuns, para enxergá-las além do que apresentam, no entanto, o que veremos será “um mundo inteiro igual ao nosso”. Em frente, dos lados, atrás, em cima, em baixo, por dentro e por fora dessas notícias, das mais comuns, sintéticas e fragmentadas, dos faits divers, devemos enxergar o que está ali mesmo, mas aparentemente oculto, como “o sangue, o corpo, a roupa íntima, o interior das casas e das vidas” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 350). Essa é a proposta da experiência sobre as várias camadas no mesmo objeto: buscar no visível seus inúmeros “tesouros de certezas inteiramente obscuras” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 23). Para esse filósofo, a linguagem pode nos levar a esses tesouros, mas também, pode impedir que cheguemos a eles. Como as linguagens são centrais no jornalismo, recorremos à ideia de Merleau- Ponty (1999) sobre as dinâmicas entre “fala falada” e “fala falante”. A primeira tem relação com o mundo linguístico estruturado e conhecido; são as expressões mais visíveis à disposição para o uso corrente; é falada, principalmente, porque em torno dela temos uma espécie de acordo social sobre sua utilização e aceitação; ela busca consolidar sentidos comuns em nossa cultura e conformar o mundo visível, nomeando-o. Alerta Dupond (2010, p. 32) que a “fala falada” não deve ser entendida como a prosa empobrecida, mas um “momento de sedimentação da própria da vida”. Todavia, a fala falada é atravessada incessantemente pela “fala falante”, que, por sua vez, desestabiliza as propostas dos sentidos que aparecem como já solidificadas em meio às superfícies. A falante é uma fala criativa, transformativa, ainda não pactuada, sempre em “estado nascente”, nos termos de Merleau-Ponty (2012, p. 166). Coerentemente, lembra o autor, será por meio da fala falada que as expressões se constituem em experiências possíveis, realizando-se como experiências falantes. Dessa forma, a partir do projeto merleau-pontyano, perceberemos o jornalismo como a experiência narrativa falada, mas que é atravessada, de forma constante, por vários textos JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 44 vivos, falantes, carregados de historicidades. Mesmo o jornalismo produzindo uma aparência visível, uma “fala falada”, percebe-se que esse ambiente terá, usando-se Merleau-Ponty (2012, p. 133), a “qualidade prenhe de uma textura”, ou seja, será sempre “a superfície de uma profundidade”. Fizemos questão de retomar essas reflexões sobre visível e invisível, inserindo aqui as falas faladas e falantes porque julgamos que esse conjunto faz problema ao jornalismo. É nesse sentido que recuperamos a pergunta: “O que não vemos aqui?”. As tentativas de respostas a essa questão podem iluminar a própria ideia de jornalismo, superando as lógicas de uma estrutura que o vê apenas como emissor de informações, o nascedouro e o túmulo das notícias. Por mais sofisticadas que sejam as pesquisas, parece difícil enxergar o jornalismo fora de uma zona estruturada em que a notícia, segundo Pamela Shoemaker (2014, p. 15), é “um artefato social, algo (uma informação via discurso, texto, vídeo ou foto) que viaja de uma pessoa (ou de uma organização) para um único – ou para múltiplos – receptor/receptores”. É possível enxergar a notícia e o jornalismo na contemporaneidade nessas condições? Como artefato que viaja de um emissor para um ou vários receptores? Nossa resposta tem clara indicação negativa porque o processo informativo tem se revelado cada vez mais complexo e intrincado, intensamente descentrado, com o espaço e o tempo reduzidos atomisticamente. A sensação é de incerteza sobre a gênese, sobre a ideia de mediação e sobre o fim da informação. No agora, tudo parece “em tempo real”, as notícias estão em todos os lugares, em uma espécie de cultura de onipresença. Julgamos que a informação rompeu as amarras dos clássicos suportes jornalísticos e há uma confusão e profusão de fontes e de informações. Cada pessoa pode ser fonte e informação ao mesmo tempo. Percebemos que muitas das notícias movimentam-se em meio às experiências narrativas jornalísticas sem a necessidade obrigatória das mediações propostas pelos meios tradicionais. O que parece manter-se na travessia da experiência jornalística é um regime de crença no visível – para ver e para não ver –, que vai abraçando as condições técnicas de sua época. Especificamente sobre a notícia, partilhamos da ideia de Luiz Gonzaga Motta (2014, p. 9), segundo a qual ela estará sempre em um estado “nascente, revivida a cada momento no mundo da vida onde os sujeitos, tanto quanto a percepção, são construídos pela própria experiência”. Assim, indiciamos que a notícia, no espaço da experiência narrativa, comporta-se como um organismo vivo enquanto as relações sociais se tecem. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 45 Bruno Leal e Carlos Alberto de Carvalho (2015) atentam para as tensões que estão a atravessar o jornalismo, o que exige pensá-lo além de suas condições operativas, mas sem desconsiderá-las. Eles chamam a atenção que as notícias jamais serão um elemento neutro e isolado na experiência jornalística. Em sua materialidade impressa, por exemplo, elas estão inseridas em seções, páginas, com uma série de marcações visíveis e de relações com outras notícias da página, do jornal, e com notícias de outros jornais, de outros meios, a apontar para invisíveis e a circular por audiências incontroláveis. Ainda a destacar que a topografia do informativo constitui um importante jogo textual, como nas mídias impressas, em que fotografias convivem com infográficos, com textos impressos, com cores distintas, possibilitando, nesse arranjo espacial – sempre estrategicamente pensado para além de mero efeito estético, alcançando objetivos de matização interpretativa do real – a identificação de aspectos polifônicos (LEAL; CARVALHO, 2015, p. 157). Esse “objetivo de matização interpretativa do real” apresentado pelos autores realiza-se como experiência nas relações sociais e se distancia da lógica de um jornalismo de perspectiva transmissiva. Discutir os adornos de sentidos propostos em torno da realidade é um modo de acesso às possibilidades de respostas à questão: “O que não vemos aqui?”. Nesse momento, julgamos que os mais tradicionais e utilizados estudos sobre o jornalismo, com inúmeras e importantes contribuições, podem encontrar dificuldades para responder nossa pergunta. Avaliamos que agenda-setting, framing, gatekeeping, critérios de noticiabilidade, espiral do silêncio apresentam algum tipo de lacuna quando estão diante dos silenciamentos e das invisibilizações no jornalismo. Acreditamos que as teorias manifestam dificuldades para reconhecer, de forma mais efetiva, as camadas invisíveis nas notícias, como, por exemplo, “o sangue, o corpo, a roupa íntima, o interior das casas e das vidas” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 350), isto é, as camadas não vistas, mas que são constitutivas do jornalismo. Mauro Wolf (2009, p. 195) afirma que os critérios de noticiabilidade são o “conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que selecionar as notícias”. Apesar de variações nas nomenclaturas, os critérios mais usados para que um evento seja selecionado e ganhe o status de notícia são relevância, atualidade, proximidade, conflito, desvio. Em tese, não discordamos de que critérios existam, mas eles parecem não dar conta de uma série de questões, por exemplo, onde estão os acontecimentos irrelevantes? JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 46 Irrelevantes por quê e para quem? Por que acontecimentos atuais e próximos não são notícias? Por que conflitos que afetam centenas de pessoas não entram na pauta? As respostas dessas questões podem ter várias desculpas, inclusive as técnicas, mas acabam encobrindo negociações e tensões confessadas e inconfessadas. A relevância dos acontecimentos, por exemplo, passa por disputas em torno da visão de mundo, não somente dos jornalistas e das empresas, mas das forças políticas e sociais majoritárias, e são elas que vão definir um conjunto de valores contextuais que moldam o visível e o invisível. A relevância jornalística é parte da retórica política que justificará o avanço, nas superfícies noticiosas, de determinadas temáticas, fontes e suas ancoragens e angulações. Agenda-setting é outra perspectiva de estudo a explicar que os sujeitos vão escolher os assuntos de suas conversas e tomar decisões a partir do que estão vendo, lendo e ouvindo nas mídias. O jornalismo, por suas seleções, disposições e incidências sobre vários temas, determinará quais questões seriam públicas e como elas deveriam ser discutidas (McCOMBS; SHAW, 2000). Em resumo, segundo essa hipótese, o que pensamos será definido por agendas da mídia. Nesse viés, ficam nítidas as intenções para a “construção da realidade”, ou seja, o jornalismo teria a força capaz de determinar agendas individuais e coletivas, garantindo o que é e o que não é importante a ser consumido. Não há dúvidas de que a seleção das temáticas, dos acontecimentos, das fontes, as condições históricas das estruturas empresariais são um forte componente para a construção de um imaginário visível. Todavia, na hipótese do agenda-setting há uma ênfase no que foi escolhido para compor a agenda, existindo, ao nosso modo de perceber, a ausência de discussão sobre o imenso volume de informações excluídas, aquilo que ficou de fora dos agendamentos. Sugerimos que se existe uma agenda proposta, ela não somente será formada por objetos selecionados, mas esse quadro é também resultado direto do foi rejeitado, excluído, silenciado. Uma agenda constituída por grande quantidade de informações não aproveitadas poderia relevar outros agendamentos? É possível pensar na não agenda, mas com força e sentido de agenda? Próximo da agenda-setting surgiu a “teoria” da espiral do silêncio, de modo especial com Elisabeth Noelle-Neumann. Em uma primeira visada, podemos até imaginar que essa hipótese contribui aos nossos objetivos, mas há fundamentos nela que impedem o seu amplo aproveitamento em nossa proposta. Antônio Hohlfeldt (1998, p. 37) diz que a teoria da espiral do silêncio destaca “a onipresença da mídia como eficiente modificadora e formadora de opinião a respeito da realidade”. Com ela, busca-se provar que a influência da mídia sobre a opinião pública é JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 47 vital, colocando o jornalismo como centro determinante do comportamento dos indivíduos. A tese central da espiral é de que o sujeito tem uma opinião sobre um determinado tema. No entanto, ele imagina que seu pensamento é minoritário socialmente e, então, prefere ficar em silêncio, conformando-se com a opinião majoritária. Segundo a teoria, ficará em silêncio por medo das críticas que pode receber se externar sua opinião. Ou seja, faz silêncio com receio da solidão, do isolamento social. A primeira ressalva que fazemos é que a espiral em questão trata de silenciamentos, e não do silêncio, como vimos. Depois, essa perspectiva tem forte viés psicológico, centrada no público e no desenvolvimento do medo, da rejeição social, do conformismo, questões que envolvem comportamentos e aspectos morais. Além do silenciar ser o objeto somente da audiência, a espiral não percebe que os mecanismos do silenciamento são construídos para a experiência social como uma das ações políticas do próprio jornalismo. Essa teoria apresenta importantes contribuições para se pensar nos modos do calar da audiência, mas não enfrenta a invisibilização que é motivada como ação construída e apresentada pelas mídias. Outra importante perspectiva de estudo trata dos gatekeepers, dos selecionadores por excelência. Segundo ela, alguns eventos serão escolhidos e separados, isto é, passam pelos vários portões da mídia para, enfim, chegarem ao público. Temos, assim, o emissor, o fluxo, o conteúdo e o destinatário das informações. Para o gatekeeper, os assuntos que conseguiram atravessar as barreiras na trajetória midiática e que ultrapassaram os filtros (os portões) são os mais relevantes à audiência. Percebe-se um peso quase total e decisivo do selecionador, que parece ser o dono das chaves e dos portões, definindo o que será ou não notícia. Ele não determina somente o volume das notícias, mas também os formatos e os espaços que elas vão ter (SHOEMAKER, 2014). Como lidar com as informações que foram barradas nos portões e descartadas? Elas deixaram a condição de acontecimentos que tinham? Por que foram rejeitadas? A informação chegou atrasada? Não tinha imagem? A publicidade tomou o seu lugar? Para além das questões técnicas, será que não existiram camadas de interesses não vistas sobrepondo-se às desculpas para que os acontecimentos fossem barrados? O que poderíamos encontrar ao mexer na cesta de lixo onde foram despejadas as notícias impedidas? Se fosse possível fazer a conexão das informações rejeitadas, poderíamos ter outros ângulos não coincidentes da realidade apresentada pelo jornalismo? Não poderíamos deixar de fora um estudo que vem sendo muito utilizado: os frames. Erving Goffman (2012, p. 34) diz que enquadramentos são “princípios de JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 48 organização que governam os acontecimentos – pelo menos os sociais”. Segundo esse autor, tendemos a perceber os eventos de acordo com enquadramentos e isso nos permite responder: “O que está ocorrendo aqui?”. Nesse enfoque, os frames são marcos interpretativos gerais a assegurar às pessoas darem resposta a essa questão. Gaye Tuchman (1983, p. 71) afirma que o enquadramento ordena a realidade cotidiana e hierarquiza os acontecimentos, de maneira a reduzir a variabilidade da abundância das ocorrências. Não seria exagero afirmar que o enquadramento vai delimitar um quadro visível, que pode ser facilmente reconhecível, emprestando alguma segurança de inteligibilidade às audiências. No entanto, vimos que o visível é o resultado de operações que põem em invisibilização temas, fontes, acontecimentos e suas ancoragens. Assim, podemos pensar no framing sem considerar o que não foi dito e o que não foi visto? É possível garantir que existam frames a partir do que foi sistematicamente silenciado? O que não foi narrado poderia ganhar uma moldura? O conjunto ações fora da moldura poderia indicar outros olhares da realidade? Talvez o framing tenha alguma dificuldade de responder: “O que não ocorreu aqui?” ou “O que está invisível aqui?”. Na verdade, essas questões objetivam fazer problema ao jornalismo. O que temos proposto é que nem o jornalismo nem as notícias nascem e morrem nos produtos de mídia e nem nas audiências. A experiência jornalística não tem um expediente a cumprir, como têm os selecionadores. Ela não começa, obrigatoriamente, no emissor e nem vai terminar na primeira leitura pelo destinatário, mas se realiza sempre nas relações sociais, com variáveis incontroláveis, com marcas visíveis e camadas invisíveis. Por exemplo, esse trabalho envolve jornais impressos, mas não estamos presos a esse suporte. Entendemos o jornal como um dispositivo atravessado por textualidades e historicidades a propor narrativas de múltiplos sentidos, fortemente atrelado às estruturas empresariais e seus negócios. O seu contar de mundo apresenta condições interpretativas limitadas e atende a uma série de interesses. O jornal, como diz Mouillaud (1997, p. 32), é uma “matriz que impõe suas formas ao texto”. Mozahir Bruck (2012, p. 8) diz que o jornalismo é parte de uma “complexa rede alimentadora de pontos de vista e discursos sociais a partir das informações que oferece por meio de um modus operandi que, ainda, lhe é exclusivo”. Mesmo que o jornalismo tenha perdido uma suposta condição exclusiva para fazer falar e fazer ver, isso não diminui sua importância como um indutor de sentidos, como um conformador de quadros visíveis. Ocorre que, diante de um mundo cada vez mais complexo e esfumado, o jornalismo tem JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 49 buscado se reposicionar, mesclando-se a teias midiáticas ou não, acentuando o aspecto do entretenimento, realçando a autorreferencialidade como um necessário mediador social. Propostas de jornalismo que não conseguem compreender os seus lugares nesse mundo complexo embarcam em crises. Entretanto, se pensarmos o jornalismo como espaço de experiência narrativa, a crise é de sua ordem constitutiva e cotidiana. Lembra- nos Bruno Leal (2011, p. 104) que o jornalismo é atravessado por crises e, em algumas, as audiências têm um peso considerável porque são “cada vez mais ‘nômades’, e móveis, ao sabor de escolhas e possibilidades individuais mais autônomas e fragmentadas”. Para Leal, essas crises históricas vêm alterando modelos e as gestões de negócios, as práticas dos jornalistas, os processos de produção, as edições e as distribuições das notícias. Com isso, o jornalismo não enfrenta apenas “transformações internas em seus processos e produtos, mas também nos modos cada vez mais diversificados de mediação social e de estabelecimento do que seria verdade ou não” (LEAL, 2011, p. 104-105). É exatamente a possibilidade de perceber que o jornalismo se realiza como uma das experiências sociais, dentro e fora das estruturas visíveis, que podemos pensar em caminhos para a questão: “O que não vemos aqui?”. Lembremos que nas superfícies existem fissuras e que as suas percepções são fundamentais. Mergulhar em busca dessas brechas é participar da própria experiência narrativa conexa aos sentidos silenciados e que, ao se repetirem ao longo da história, podem compor modos de invisibilização. É nesse ambiente que o jornalismo transita, mas não ao sabor dos ventos. Existem, aí, forças com propostas concretas, materiais, visíveis a conformar um regime de visibilização. 1.4 Invisível e regime de visibilização Nosso percurso busca perceber o jornalismo realizando-se por meio dos versos e dos reversos, dos ditos e dos não ditos, dos visíveis e dos invisíveis. Ele enreda e está enredado em fluxos materiais e imateriais que fazem ver e que fazem esconder. Por essas condições, o jornalismo é construtor e, ao mesmo tempo, partícipe de um regime de visibilização. Constrói na medida em que seleciona o que vai expressar, propondo uma zona visível e inteligível do mundo, um quadro de sentidos interpretados e limitados. E participa como o dispositivo a disparar as condições para a nossa rápida associação com o visível, empregando a sensação de segurança e o efeito de verdadeiro. No entanto, acentuamos que o processo de construção do regime de visibilização, e de sua condição de JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 50 dispositivo para nossas identificações a ele e, por meio dele, realiza-se também com impedimentos de acesso às camadas invisíveis. A ideia de regime que utilizamos para qualificar a visibilização tem aproximação com o “regime de verdade” em Foucault (1979). Não substituímos verdade por visibilização, mas enxergamos convergências que contribuem para essa análise, visto que, por exemplo, tratamos de um visível que se utiliza da força retórica do verdadeiro para garantir sua concretude, para crer que não há alternativa. Além disso, sobre a verdade, Foucault diz que ela não existe fora do poder ou sem o poder; ela é produto e parte do mundo e, em razão das “múltiplas coerções”, acaba gerando efeito de poder, constituindo seu regime. Associamos esse raciocínio à visibilização porque visível e invisível são resultados e ações de poder. Sugerimos que o regime de visibilização são os dizeres e os silenciamentos, as imagens visíveis e as suas projeções ainda não vistas que, politicamente, serão articuladas na formação e na conformação de imaginários, mas com concretude, como uma esfera visível, tida como “verdadeira” e única, ao passo que nela, o invisível seria a construção política do inexistente, da ausência, do nada. Esse regime não constitui uma estrutura nem fixa e nem estável porque o poder e suas possibilidades estão em sua base e o movimenta, possibilitando o enxergar de brechas e o exigir de outras narrativas. Ao contrário das forças que buscam delimitá-lo, o regime de visibilização não tem forma definida, sendo, um movimento sempre incerto e indomável, porque mobiliza os imaginários. Nossa tentativa é perceber que ele, em um mesmo gesto, articula o ver e não ver. Nesse momento, ressaltamos que o jornalismo constrói – e não somente ele – e é parte desse regime de visibilização, que se inicia com um violento processo de seleção e se estende como experiência narrativa nas relações sociais, sendo atravessado pela presença das tecnologias do seu tempo. As escolhas do que será dito e visto, e do que será silenciado e não visto vão ser centrais nesse regime. As desculpas para deixar de fora temas, fontes, acontecimentos são parte de uma gramática profissional e empresarial interessada e amparada nesse regime, por meio das torções de silêncios e de palavras e da agência de luzes e de sombras. Um aspecto importante para que o regime de visibilização ganhe sentido é o reiterar dos critérios de seleção e, consequentemente, das mesmas angulações e ancoragens sobre os acontecimentos. Grande parte das narrativas jornalísticas, no fundo, acaba sendo contada e recontada. Mudam-se fontes, números, formatos, suportes, mas as propostas de mundo vão seguir, quase invariavelmente, a mesma ordenação e hierarquização dos JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 51 sentidos, dos valores, das condutas. Lembra Motta (2002, p. 14) que as notícias, como um sistema simbólico, sempre “contam histórias, delineiam as fronteiras do bem e do mal, do passado e do futuro, do feio e do bonito”. De alguma forma, muitas narrativas jornalísticas se deslocam o tempo inteiro em um círculo enfadonho, constituindo-se uma experiência social encenada e empobrecida. O regime de visibilização produz uma atmosfera social em que o visível, uma materialidade narrativa de falas e de imagens competentes, seja a única verdade imaginada possível. Todavia, essa é uma operação política impossível exatamente em razão das camadas invisíveis a exigir nossa ação expressiva. A questão é que, quanto mais o jornalismo jura revelar o mundo como ele é, o todo visível, mais flerta com a encenação. Innerarity (2009) diz que o contemporâneo é marcado por uma “cultura da simulação” que debilita a realidade, “o que não significa necessariamente que vivemos num mundo irreal. O que mudou foi a medida do real, que passa a ser um tanto mais plural e menos sólido que o pretendido pelos dogmáticos e pelos objetivistas” (INNERARITY, 2009, p. 10-11). De forma contraditória, o regime de visibilização no jornalismo propõe uma permanente experiência da novidade, uma retórica do novo e do presente, mas trata reiteradamente do mesmo, de uma única realidade inteligível, sintética, com identidades fixas. Isso é parte de uma operação política de domínio e de resignação diante do quadro visível que parece ser único, definitivo, sem alternativas. Dito de outra forma, a força do regime de visibilização é inercial e se baseia na tradição, na repetição, na rotina, o que é uma contradição posta ao jornalismo que, utilizando-se de uma retórica publicitária, de que vai sempre afirmar o novo, como se tudo fosse de uma evidência automática, imponderável, visível. Para Innerarity (2009), o sintoma do mundo em simulacro é transformar a realidade em uma coisa obsessiva, o que explicaria o esforço midiático em transmitir tudo ao vivo, sem aparente obstáculo entre nós e as coisas. Essa reflexão nos remete, mais incisivamente, a invisibilização por presença, isto é, do jornalismo como limitador do mundo a partir de um dizer tendencialmente único e intenso, da indicação do mesmo quadro angular do real, sendo ele, o jornalismo, quadro e contorno. Ao nos rendermos ao visível, ao todo e ao único, como reflete Innerarity (2009), será difícil nos libertar dessas teias, porque o visível produz um não ver intenso, próprio da excessiva visibilização. Os meios de comunicação suscitam-nos a familiaridade e a proximidade com as coisas e as pessoas, mas não nos deixam ver a outra face da realidade: a sua manufatura, o seu caráter de mediação construída, a sua superficialidade. A JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 52 visibilidade e a transparência dos meios de comunicação produzem uma cegueira específica: a profusão de imagens e palavras satura-nos com uma massa indiferenciada de fatos brutos, lançando uma superfície espessa e desorientadora sobre um fundo indiferenciado (INNERARITY, 2009, p. 51). Grande parte dos indivíduos está envolvida nas tramas do regime de visibilização e não desconfia dos invisíveis porque a construção desse ambiente é preenchida pela sensação de saciedade de um todo, por tudo que se vê, escuta e imagina. No visível está a encenação mediada do saber, da certeza, da segurança. Há uma luta pelo controle e direção dos imaginários. Cogitar o invisível leva o indivíduo à sensação do incerto, do escuro, da insegurança, de imaginações proibidas em face de uma moral contemporânea. Sugerimos que será na percepção de que há camadas invisíveis que o sujeito pode desestabilizar o visível, colocar em risco as ideias indicadas do mundo e da realidade, compreendendo-os maiores e mais complexos do que a experiência jornalística lhe promete. A suspeita de que existem camadas invisíveis dispara as disputas pela ideia de verdadeiro, por espaços na experiência narrativa, por reconhecimento, por libertação. Não se constitui um excesso evidenciar que o invisível não é da ordem do irracional, do transcendental, mas de um processo de invisibilização construído por meio da política, da cultura, da economia, da tecnologia, com valores e com a tentativa de uma formatação de sentidos. No jornalismo, esse invisível pode ser planejado para ser invisível, desde a ausência reiterada, com censura direta ou não, até mesmo com a hipervisibilização que impeça perceber as outras formas, e de outras maneiras. Por isso, o regime de visibilização não é uma zona de paz, isto é, existe nele uma tensão entre visível e invisível, que resulta em ausências presentes e em presenças ausentes. Recorremos a um exemplo que pode ajudar a pensar nesse regime. Em 1863, na França, somente eram considerados artistas no país os que eram admitidos na Escola Nacional Superior de Belas Artes. Não existia a possibilidade de se encontrar um artista fora dessa instituição. Se a obra não tivesse o selo da escola, não era nem obra, nem arte. A imprensa imperial francesa era a voz pública dessa verdade incontestável, construída pela monarquia, pelo clero e os próprios artistas. Não havia notícias da existência de outros pintores em França. Fora da escola nacional, não havia sequer pintores. No entanto, eles existiam, produziam e estavam no mundo da vida, menos nos círculos oficiais e na imprensa. A escola, a monarquia, o clero, a imprensa, todos sabiam da existência desses invisíveis, mas eles permaneciam invisíveis graças às narrativas e às condições dos visíveis (BAUDELAIRE, 1995). JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 53 Em 1863, uma exposição é montada em Paris. Os invisíveis, depois de intensa luta, conseguiram que Napoleão III liberasse sua participação na mostra. Todavia, para eles foi reservada uma sala isolada dentro no palácio, o que, de alguma forma, mantinha-os invisíveis. Contudo, era impossível desconhecer que ali existia uma sala com figuras e indivíduos que se diziam pintores. A sala e eles eram concretos, e a presença deles os faz romper aquela superfície. Assim, precisavam ser nomeados. Surge, dessa forma, o Salon des Refusés (Salão dos Rejeitados), que ganhou espaço na imprensa, mas apenas para provocar escárnio, riso e vaias do público. Entre os rejeitados estavam Édouard Manet, Paul Cézanne e outros (BAUDELAIRE, 1995). Nesse exemplo há inúmeras possibilidades reflexivas, mas propomos percebê-lo em meio ao regime de visibilização. Um primeiro aspecto é que o jornalismo não vai construí-lo sozinho, mas ele será parte de um conjunto de dizeres e de silenciamentos dos operadores políticos e sociossimbólicos articulados na conformação do visível. No caso dos artistas de Paris, a construção ocorreu com o clero, com a monarquia, com os artistas da escola nacional. Para os leitores da imprensa francesa, por exemplo, ali estava toda a arte, seus sentidos e suas significações. Era impossível pensar além dessa incontestável realidade. Entretanto, como vimos, existiam outros artistas, mas invisíveis pela ausência reiterada. Essa invisibilização também se confirmava quando de uma única narrativa que assegurava somente a existência dos artistas da escola nacional como os únicos. Os artistas rejeitados eram também invisíveis por presença, aqueles de quem jamais se falou ou viu. Como diz Grijelmo (2012, p.520), “toda omissão de dados inabituais conduzirá a imaginar uma situação habitual, e nesse sentido o silêncio é também manipulador”12. Essa nítida relação de poder que constrói a invisibilização não termina quando os artistas invisíveis/ rejeitados irrompem nas superfícies do visível. Ou seja, o regime de visibilização não se encerra com a percepção de seu reverso. Os excluídos terão visibilização, mas será politicamente controlada e a reforçar, ampliar e dar sentido ao visível, conformando uma realidade em que somente “o belo e o verdadeiro” estavam com os artistas da escola superior de artes. Fora disso, o domínio será o do grotesco, do escandaloso, do ridículo e, por isso, deveria ser rejeitado como arte. A única e intensa narrativa jornalística produzida sobre os invisíveis é crítica a eles para provocar reprovação, mantendo-os, assim, em invisibilização. 12 “Toda omisión de datos inhabituales conducirá a imaginar una situación habitual, y en ese sentido el silencio es también manipulador”. JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 54 Com o exemplo do Salon des Refusés, destacamos que o regime de visibilização age para o visível e para o invisível, submetido às forças do poder. Como o foco deste estudo é a invisibilização, reforçamos, a partir de Peter Pelbart (1993), que esse invisível não é da ordem de um visível oculto, mas tem a ver com as coisas e as palavras, estando entre elas, como parte da realidade, encarnado. Sobre invisível, Pelbart diz que este [...] não é uma cópia mental do universo material, nem uma estrutura linguística ou inconsciente transcendente, nem uma superestrutura ideológica ou imaginária, representacional. Ele é o grande Interstício, Interstício do Inimaginável, rigorosamente da ordem da Realidade, da Natureza ou da Cidade. Isto é, o invisível está entrelaçado aos saberes, poderes e modos de subjetivação bem como a seus dispositivos, que nos circundam e nos fundam e também nos afundam (PELBART, 1993, p. 61). Sugerimos que as camadas ainda não vistas e não ditas que estão em pleno regime de visibilização reforçam a própria sensação do visível, complementando-o. Todavia, se foi posto em invisibilização, em uma nítida ação política, há uma probabilidade de o invisível ser indesejado e, por isso, foi vencido em algum momento nas disputas de força e classificado como irrelevante e/ou perigoso ao visível. Não é sem razão que perceber o invisível desestabiliza historicidades do visível indicado; põe em risco as promessas do jornalismo como o lugar do presente e da promessa da verdade. Considerar o invisível é fazer emergir, como acentua Pelbart (1993, p. 60), “certa aberração temporal, um jorrar do tempo que desequilibra um sistema de trocas, desestabiliza um circuito de equivalências”. Retomando ao ângulo do jornalismo, quando Elton Antunes (2007) trata de temporalidades nos jornais, mostra como na edição impressa existem marcas de tempo que possibilitam o enxergar além da promessa do presente no jornalismo. Para esse autor, a mídia padroniza o tempo atual e coloca em circulação as mais diversas relações temporais, ou seja, as outras camadas de tempo. “São, no mesmo movimento, camadas superpostas e atravessadas” (ANTUNES, 2007, p. 289). Sugerimos que esse autor percebeu aí os invisíveis nos rastros da temporalidade e que emergem nas superfícies jornalísticas. Carlos Franciscato (2003) também trabalhou o tempo no jornalismo. Ele discutiu a ideia do presente, um fenômeno social que também é “composto por práticas sociais, relações de sentido e atributos inscritos em produtos culturais” (FRANCISCATO, 2003, p. 303). Nesse sentido, há uma série de recursos simbólicos que o jornalismo indica e ordena nossa experiência presente. No fundo, o que esse autor propõe é a configuração do visível, sem esquecer que o jornalismo vive em permanente risco, em tensão, em ritmo assimétrico JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 55 entre regularidade e imprevisibilidade. Sugerimos que essa regularidade seria a condição do visível, e que a imprevisibilidade se encaminha para a abrigar o que está invisível. A ação política da percepção do invisível no regime de visibilização possibilita um processo de certa desconstrução do tempo presente, obrigando-nos a suspeitar de um passado dado e de um futuro certo. E isso, a nosso ver, pode enriquecer as experiências narrativas jornalísticas, ampliando os seus campos de sentidos e possibilitando angulações, ancoragens e significações ainda não ditas e não vistas. Em outras palavras, o convite é para a politização desse regime de visibilização porque essa atitude pode fazer emergir as tramas de um visível saturado e de um invisível em estado permanente de oferecimento às narrativas. É isso o que também reforça Pelbart (1993, p. 55): “o invisível, parte integrante e constitutiva de realidade, de subjetividade, de sentido, atrelado que está às máquinas tecnológicas e sociais e seus agenciamentos, deve ser pensado politicamente”. Retomando o Salon des Refusés, percebemos que o regime de visibilização é parte do próprio sistema de controle oficial, tanto pelo visível quanto pelo invisível. Quando, em outro trabalho, investigamos um processo de invisibilização da pobreza nas páginas de um jornal, percebemos que, de fato, as questões de fundo, que geram e reproduzem a pobreza, não estavam nas notícias. Entretanto, os pobres tinham amplo espaço naquele mesmo jornal. Eles estavam na página policial, como objetos da cobertura criminal sensacionalista. Ou seja, aquela visibilização dos pobres tinha um objetivo nítido: “associá-los ao crime e, assim, discipliná-los, dizer a eles que nós sabemos de sua existência. O jornal, assim, torna-se guia moral e geopolítico sobre a criminalidade na cidade” (GÓES, 2014, p. 216). Dissemos que o jornalismo constrói e participa das tramas do visível e do invisível, e nesse processo acrescentamos a figura do Outro, uma alteridade que poderá deixar mais nítidas as opções pelo visível e pelo invisível em razão dos jogos de poder que atravessam as identidades. Lembremos que o jornalismo, como um dos operadores sociossimbólicos, dispara as condições para uma experiência social que mobiliza uma série de elementos narrativos, imagéticos, sensoriais, tecnológicos, históricos, temporais para conformar o dito e o visto e, em especial, para assegurar o que deve ser silenciado e não visto. As propostas narrativas do jornalismo são como marcadores que destacam e realçam, mas, principalmente, arrancam e separam de nós mesmos os Outros, disparando luzes e sombras, impulsionado visíveis e invisíveis. As nossas relações identitárias transitam nessa zona de visibilização na medida em que torna visível e/ou invisível os nossos pertencimentos e as nossas diferenças. Esse Outro, que a depender das forças políticas pode ser visto ou não visto, terá um papel JORNALISMO: DO SILÊNCIO À INVISIBILIZAÇÃO | 56 fundamental para estabelecer quem somos nós. É nesse sentido que o jornalismo, além de construir o regime de visibilização, também participa nele como dispositivo 13 a disparar teias para rápidas associações de pertenças e, em especial, de diferenças identitárias. Realizado esse percurso, propomos, na sequência, manter essa discussão em torno da invisibilização, mas mergulhando na construção das identidades, especialmente, a partir das fabulações em torno do Outro. O capítulo seguinte tem peso histórico, que já é parte dos argumentos metodológicos para enfrentar a própria invisibilização. Entendemos que enxergar criticamente a história auxilia na descoberta de fissuras por onde emergem silenciamentos e invisibilizações. Perceber criticamente a historicidade dos objetos faz emergir rastros do que foi e do que não foi. Refletir sobre esse regime de visibilização no jornalismo, acrescentando aqui a construção das identidades, prepara-nos para as análises da invisibilização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa no Brasil (CPLP), objeto de nossa investigação empírica. 13 Utilizamos a ideia geral de dispositivo de Foucault (1979), que o caracteriza como um conjunto heterogêneo de forças a englobar discursos, instituições, leis, “em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo” (FOUCAULT, 1979, p. 244, grifo nosso). Deleuze (1990, p. 155) diz que o dispositivo é uma “máquina de fazer ver e de fazer falar”. E máquina como um sistema que faz aparecer e faz desaparecer, com “as curvas visibilidade e as curvas de enunciação”, que iluminam e fazem sombras. CAPÍTULO II – IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO O Brasil passa de colônia a nação independente e de Monarquia a República, sem que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba. Todas as nossas instituições políticas constituem superfetações de um poder efetivo que se mantém intocado: o poderio do patronato fazendeiro. (Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, 1995) Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como “cultura senhorial”, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e interssubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. (Marilena Chaui, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, 2013) Com este capítulo, damos início às fundamentações teóricas mais próximas da nossa empiria. Ao propormos refletir sobre o jornalismo e a experiência do invisível, recorremos a um fenômeno presente no cotidiano midiático, mas às vezes pouco percebido: as identidades. Talvez, sua pouca nitidez tenha explicação no fato de que nelas existe o Outro, uma alteridade radicalizada que é objeto da tensão visível/invisível, mas com ênfase na invisibilização. De modo especial, vamos recorrer à história, com um olhar crítico, para entender a construção do Outro nas identidades brasileiras. Logo, vislumbraremos o quanto esse processo identitário é marcado por visões racistas e classistas, e será nesse ponto que continuaremos a discutir o jornalismo como agente de um regime de visibilização que propõe uma experiência narrativa com traços de forte herança colonial brasileira ainda na contemporaneidade. 2.1 Fabricação identitária e visibilização do Outro Ao enfatizarmos a necessidade de politizar o regime de visibilização, como vimos no final do capítulo anterior, reforçamos que essa ação exige compreender que a zona inteligível e imaginária que nos envolve, com visíveis e invisíveis, é uma operação que se realiza em meio a uma rede de forças no regime de visibilização. Politizar esse regime implica assegurar que seu fluxo não será determinista, não moldará o pensar e o agir, e não vai estar submetido a uma espécie de teoria conspiratória. Reconhecemos, entretanto, a existência de alinhamentos ideológicos entre os operadores sociossimbólicos, vistos em IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 58 movimentos convergentes a dar um formato à realidade e para atender aos seus interesses estratégicos políticos, culturais e econômicos. A ideia de mundo implica, ainda, o exercício do controle dos movimentos de resistências e de rupturas do modelo majoritário. Um campo privilegiado de percepção dessas tramas e da politização desse regime é o das identidades. Nele, o processo seletivo será mais acentuado e violento, com ênfase nas exclusões que envolvem diretamente a própria condição do Ser humano. Os fenômenos identitários empregam força em uma visibilização para produzir a máxima invisibilização, um ver para um não enxergar. Sugerimos que o movimento em torno das identidades é circular e terminará por violentar o Ser como o uno do gênero humano, e o nós enquanto sujeito coletivo. Do humano, arranca-se o Outro, a diferença que é construída fora de nós. O estranho, o apartado de mim e de nós, passa a ser imaginado, politicamente, no sentido mais negativo do Ser, ao ponto de desumanizá-lo. Entretanto, esse estranho é um entre nós, que lutamos para não o assumir. Nessas condições, o Outro será um nós contra quem reagimos e juramos dizer que não nos pertence, assim, não deve estar entre nós. Nas identidades, o jornalismo, como uma das experiências narrativas no e do mundo e um dos construtores desse regime de visibilização, dispara associações para garantir que, de forma imediata, possamos identificar o Outro como a diferença do eu e do nós. As associações identitárias indicadas nas experiências narrativas por meio do jornalismo não vão ter mera visibilização pontual, mas compõem as condições para definir as pertenças e, principalmente, as diferenças. Sobre identidades 14 , existem as mais diversas formulações, desde a antropologia, linguagens, educação, psicologia. Neste trabalho, refletimos sobre elas por meio da cultura e da história, acolhendo proposições dos estudos culturais, porque eles compreendem as identidades entrelaçadas à cultura e à história. Nossa opção por esses estudos também se justifica em razão das reflexões sobre colonialismo, pós-colonialismo e multiculturalismo. Nos estudos culturais, as identidades são percebidas como processos em contínua revisão, sendo “provisórias”, sempre “sob rasuras”, nas expressões de Stuart Hall (2006). Assim, elas são construções políticas que emergem como uma experiência viva, e não como um algo natural e definitivo. Tanto no jornalismo quanto nas identidades, tratamos de um fluxo movido por constantes relações de forças que buscam sempre configurar as tradições, mas têm que conviver com latentes ações de ruptura. Como lugares vivos de 14 De saída, vamos grafar as identidades quase sempre no plural como indicativo de uma posição político- teórica que entende que elas são muitas, plurais e instáveis. IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 59 experiências, identidades e jornalismo são dois campos móveis e minados, entrecortados por teias de sentidos e emaranhados de significações, por visibilizações e invisibilizações. A palavra identidade tem raiz etimológica no grego idem e, na versão latina, ganhou a expressão identitas, que é “o mesmo”, “a permanência em si”. Entretanto, ao convocá-la a partir da Modernidade para dar sentido aos mesmos de uma nação, a identidade passa a ser utilizada para a intensa visibilização do Outro, para a fabulação sobre as diferenças que vão aparecer sempre como ameaçadoras, inimigas eterna do nós e que devem ser destruídas. Entretanto, ao pensarmos no gênero humano como único Ser, algumas questões aparecem: quem, de fato, é esse Outro? Onde estão as diferenças entre nós? Adiante, retomaremos essa discussão. Por agora, interessa-nos ressaltar dois aspectos entrelaçados sobre as identidades: o primeiro é que elas são construções políticas de exclusões que fazem levantar muros entre nós; segundo, elas não são fenômenos prontos, dados, não são carimbos eternos nas almas dos indivíduos e das coletividades. Apesar da concretude visível dos muros, as identidades continuarão sendo inacabadas e instáveis, sendo sempre a “celebração do móvel” (HALL, 2006, p. 13). Antes da Era Moderna, a vida apoiava-se mais nos desígnios divinos, com controle teocrático das pessoas. O indivíduo existia, mas não como sujeito da história. Não compartilhamos de análises históricas segundo as quais a Modernidade implicou uma ruptura radical, o alvorecer da verdadeira cultura, a completa iluminação das trevas. Essa propaganda do Renascimento, em oposição à Idade Média, pode pôr em invisibilização um período de atuação de forças criativas, de tal forma que resultou no processo de transformações observado na sequência desse período histórico. Contudo, ao rejeitarmos a dicotomia radicalizada entre Idade Média e Moderna, não estamos negando que no final do século XV iniciou-se o gradual rompimento com estruturas de poder, por exemplo: A Reforma e o Protestantismo, que libertaram a consciência individual das instituições religiosas da Igreja e a expuseram diretamente aos olhos de Deus; o Humanismo Renascentista, que colocou o Homem (sic) no centro do universo; as revoluções científicas, que conferiram ao Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza; e o Iluminismo, centrado na imagem do Homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância, e diante do qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada (HALL, 2006, p. 26). Boaventura de Sousa Santos (1994, p. 32) nos lembra de que a Modernidade nasceu com e das identidades, com o surgimento do indivíduo, de um eu como um objeto mais iluminado, o que confirma o “colapso da cosmovisão teocrática medieval”. Com a redução do poder celestial que determinava a vida terrena, a Era Moderna fabricou as IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 60 identidades para dar direção e segurança ao indivíduo que estava surgindo em um mundo confuso. Assim, o indivíduo que emerge aí é como uma espécie de resposta às ruínas dos moldes feudais. Ele passa a ser portador de uma identidade, uma marca determinada antes do seu nascimento. Seus vínculos não são mais completamente divinos, mas giram em torno da visibilização do seu círculo familiar e da terra onde nasceu. Tem-se, aí, uma chave política para consolidar as ideias de nacionalidade e de nação, e que se constitui, segundo Edward Said (2011, p. 28) no “núcleo do pensamento cultural na era do imperialismo”. Todavia, a crise feudal não implicou o rompimento das estruturas de controle. O indivíduo continuou sob intensa vigilância: antes, visível aos olhos de Deus; agora, visível ao do estado-nação. Por isso, o Século das Luzes, como diz Benedict Anderson (1993, p. 29), “traz consigo sua própria obscuridade moderna”. A nação nasce como a grande mãe para abrigar os indivíduos, reunindo-os em seus domínios e lhes emprestando alguma sensação de segurança identitária. Em contrapartida, ela exigedeles fidelidade e ação contra os inimigos, contra os Outros, os de fora, que agora também estão visíveis, mesmo que imaginados. Lembra Etienne Balibar (1991) que a ilusão em torno das nações e das identidades tem dupla dimensão: a de que territórios são estáveis, com dominação unívoca, e a de que temos glorioso passado, que nos impulsiona ao inevitável futuro, também glorioso. “Projeto e destino são duas figuras simétricas da ilusão da identidade nacional” (BALIBAR, 1991, p. 136). Ou seja, projeto e destino são utilizados para a lógica de controle, porém cada vez mais sutis e fabulares. Ainda sobre as nações e as identidades, o historiador Ernest Renan, já em 1882, tinha percebido que elas são um princípio sobrenatural, “uma família espiritual, não um grupo determinado pela configuração do solo” (RENAN, 2006, p. 18). Para ele, as nações são “um plebiscito de todos os dias”, porém, para realizar-se cotidianamente, nem a força dos exércitos nem a arte da política davam conta dessa tarefa. A solução foi reforçar o caráter fabular da identidade, buscando algo mais místico para dar peso à lealdade do indivíduo à nação. Surgiu, assim, o patriotismo, que possibilitou às elites nacionais exigir e assegurar uma adesão incondicional do povo ao “projeto nacional”, como um grande guarda-chuva a abrigar os projetos políticos, econômicos e culturais da elite dominante. Eric Hobsbawm (1990) diz que o patriotismo é como uma “religião cívica”, em que o Estado e as classes dominantes colocam em um mesmo patamar o “amor pela nação” e o ódio por um Outro, que é um eterno inimigo da pátria. Não é demais lembrar que patriotismo vem do latim pater, “pai”. Todavia, quando foi associado às identidades por meio do Direito Romano, passou a significar “senhor”, o proprietário das terras e dos bens IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 61 que nelas existiam, inclusive, das pessoas. Os bens do pater formavam, assim, o seu patrimonium. Os que não possuíam a terra eram os Outros, considerados como ameaças ao patrimônio e à pátria (CHAUÍ, 2013). O patriotismo, então, é o ápice da convocação identitária a garantir alguma sensação de pertencimento. Contudo, essa é uma ação de força motivada por vários interesses políticos e econômicos que, violentamente, buscam apartar o gênero humano, fabulando em torno de diferenças totalizantes entre nós e impostas ao Outro, como a monstruosidade, o estranho, o inimigo. Zygmunt Bauman (2005, p. 89) diz que uma das marcas do Moderno é a busca por constantes por inimigos públicos e, neles, vamos “descarregar o ódio acumulado, o pânico moral e os acessos de paranoia coletiva”. Será contra essa diferença em ampla visibilização que os “indivíduos fragmentados, zelosos de sua privacidade e mutuamente desconfiados podem unir-se” (BAUMAN, 2005, p. 89). Para esse autor, a noção de pertencimento do nós mesmos, sem a fabulação sobre essas diferenças, poderia perder a sedução de mobilização dos movimentos políticos. Ou seja, a ilusão mais visível do Outro tem uma força de controle, de integração e de disciplina dos indivíduos e das sociedades. É fundamental ressaltar que a intensa visibilização potencializada de polos opostos e fixos entre nós não se sustenta diante das identidades, porque até mesmo aquelas de “mulher, homem, país africano […] escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformações” (SOUSA SANTOS, 1994, p 31). Lembra Bauman (2005, p. 17) que “o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e renegociáveis”. Essa é uma travessia marcada por intensas coerções. Por isso, uma espécie de sujeito sociológico nascido da Modernidade e que preserva a estabilidade identitária entre nós e o Outro recebe atenção crítica dos estudos culturais. Esse modelo, que deveria estar superado, ainda circula contemporaneamente. E a prova de que esse sujeito sociológico, daquele que reforça o Outro como a diferença não desapareceu está na radicalização em termos das identidades no espaço contemporâneo. A partir da segunda metade do século XX, com o avanço da ideia do mundo global, o processo de “descentramento” do tempo, do espaço e do próprio indivíduo vai ficando mais nítido. As fragmentações são a denúncia cotidiana de que “somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13). A ausência de um centro fixo e seguro tem reflexo na ideia sobre a identidade IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 62 que, como nos relembra e reforça Homi Bhabha (1998, p. 85), “nunca é um a priori, nem um produto acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático de acesso a uma imagem de totalidade”. E, como totalidade, o global sempre será impossível em razão de camadas invisíveis, de contornos incertos, e de fabulações a serem desconstruídas. Não obstante as identidades serem entendidas em dinâmica provisória e imaginária, não se pode perder de vista que elas sofrem constantes pressões para fixação e estabilidade, principalmente na invenção e no aprisionamento do Outro. Grande parte dessas coações para configurar a diferença passa pelo regime de visibilização, seja para intensificá-la no visível e reforçar sua invisibilização, seja por uma ação firme de colocá-la em ausência e reiterá-la ao longo do tempo. Reforçamos, dessa maneira, que refletir sobre as identidades não significa imaginar um percurso sem rumo, porque a ideia de uma identidade natural e fixa não se perde no tempo, não foi superada nas relações globalizantes. Esse é um campo em disputa, visível e invisível, que exige “muita coerção e convencimento para se consolidar e se concretizar numa realidade (mais corretamente: na única realidade imaginável)” (BAUMAN, 2005, p. 26). A questão é que o reflexo do descentramento do indivíduo, da ideia sobre o fim das fronteiras, do nascimento ilusório de um cidadão do mundo tem sido o seu inverso, isto é, o surgimento e a intensificação das identidades, como uma espécie de retorno ou de retomada das relações de pertencimento mais próximas, antigas e locais. Tem-se utilizado de uma retórica cada vez mais violenta do retorno às tradições como se elas estivessem perdidas ou foram profanadas por conta da aproximação do Outro. Para retomar a ideia de pertencimento de um nós mesmos carregamos nas tintas na fabulação do Outro, dando-lhe visibilização em certos aspectos. Com a globalização, a diferença é radicalizada como a mais perigosa, a inimiga, a criminosa e, portanto, não deve estar entre nós. O problema é o Outro. Não é sem razão que, na contemporaneidade, crescem e se fortalecem os vários movimentos e partidos políticos que buscam intensificar suas retóricas patrióticas, nacionalistas e suas práticas xenófobas, racistas, anti-imigratórias, com o levantamento de muros e o fechamento de fronteiras 15 . Em resumo, o não cumprimento das promessas da globalização tem recebido respostas identitárias, cada vez mais violentamente localizadas. Sugerimos que a lógica de recorrer sempre às identidades objetiva, de forma central, reforçar o Outro, aquele que julgamos e condenamos antes de conhecê-lo. Aliás, enquanto for uma diferença do nós jamais o conheceremos. Esse Outro emerge no regime 15 Voltaremos a essa questão adiante e no próximo capítulo, quando da discussão sobre a globalização. IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 63 de visibilização como a “incontestável verdade”, um algo já completo e precariamente interpretado a partir de minhas percepções de mundo, percepções materializadas nas condições do regime de visibilização. Aprendemos que nossa relação com o Outro será sempre de um sujeito (nós) frente a um objeto (eles). O nós abriga a condição humana. O eles é o objeto a serviço, sem o humano, sem diálogo e contato. Se não servir para nós, o Outro deverá ser eliminado. Por meio do regime de visibilização, esse Outro terá uma marcação política definida e exaltada que permitirá ser facilmente visível e/ou invisível, a depender dos interesses em jogo. Visto à distância, o Outro pode ganhar a dimensão do exótico, isto é, será um ativo para o capital explorar na “indústria do turismo”. Por isso, lá, ele deve permanecer nessa condição. Se estiver próximo, o Outro deve ser a mão de obra dócil, colaborativa, muda, uma diferença que será transformada em familiar para que possa ser controlada. Entretanto, será o medo, o pânico, a ameaça que ganhará a intensa visibilização na zona de inteligibilidade para acender as fronteiras e garantir o seu lugar apartado de nós. De nosso lugar, em segurança, poderemos descarregar ódios e outras formas de violência contra eles, a exemplo da invisibilização. Ou seja, digo e mostro o Outro para dizer e mostrar que não sou ele. E posso não dizer e nem o mostrar para que ele não me revele como uma semelhança sua. Em resumo, reafirmamos que as identidades são um exercício narrativo de poder, de poder dizer e de poder mostrar, e de fazer calar e de fazer apagar o Outro. Identidades e alteridades são fantasias violentas que tentam romper a condição humana. Elas atravessam o regime de visibilização, em que o Outro será um inimigo eterno, o qual, rápida e facilmente, vamos ver confinado, fixo em sua classe social e em um espaço geopolítico controlado. Diz Said que durante o contato entre os europeus e os Outros do mundo novo, há 500 anos, “a única ideia que quase não variou foi a de que existe um ‘nós’ e um ‘eles’, cada qual muito bem definido, claro, intocavelmente autoevidente” (SAID, 2011, p. 28). As questões identitárias convocam à cena o ipse, que também é o “mesmo”, mas não no sentido da diferença que está à distância do mesmo, porém de uma semelhança ao mesmo e que acolhe as diferenças entre nós. Por isso, sugerimos que o Outro imaginado é a própria contradição do gênero e da condição humana à medida que ele está entre nós e, ao mesmo tempo, buscamos destruí-lo. O Outro externo é a projeção da diferença que nos habita e contra quem lutamos ferozmente, para sufocá-la, aprisioná-la e, em vão, excluí-la. Vimos que politizar o regime de visibilização é uma ação de enxergar criticamente as tramas entre visível e invisível. Ora, se o fenômeno das identidades utiliza IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 64 desse regime para deixar o Outro à mostra, ao mesmo tempo em que o torna invisível entre nós, sugerimos que a politização da visibilização implode as identidades em seu princípio, que é nos separar, tentar apartar o entre nós. A politização é perceber e agir em um espaço das experiências em que não vamos “reivindicar uma origem para o Eu (e o Outro)” (BHABHA, 1998, p. 79). Agir na cultura do encontro entre nós dilacera as identidades como redutoras e divisoras do humano e, ao mesmo tempo, ajuda a colapsar o próprio regime de visibilização. Uma das fases históricas de intensa fabulação sobre as nações, as identidades e, principalmente, o Outro foi a da expansão mercantil europeia a partir do século XIV. A seguir, partiremos dessa discussão para chegar à construção das identidades no Brasil, questão que é central para pensar na invisibilização e no jornalismo diante de nosso objeto empírico, que passa por nossa relação identitária dentro e fora da comunidade lusófona. 2.2 Identidades brasileiras: a construção dos invisíveis Na tentativa de perceber o regime de visibilização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa no Brasil e o processo de nossa construção identitária, é vital realizarmos um recuo histórico até a formação das nações na Europa. A partir do século XIV, com o declínio do Feudalismo, os nobres viram aumentar a eclosão de aglomerados urbanos em torno dos seus castelos, principalmente de uma massa de servos que fugia da superexploração dos campos. Nesse ambiente, crescia a influência política e econômica dos comerciantes. Raymundo Faoro (1979) diz que, com o risco de perder o controle, a saída encontrada pela nobreza foi implantar um Estado centralizado nela, absoluto, imperial, mas com algum espaço para que parte da burguesia conduzisse seus negócios. Esse arranjo político e econômico fortaleceu as nações que passaram a ser Estados Nacionais. Um dos resultados desse processo foi a montagem de uma estrutura para explorar as áreas além das suas fronteiras, dando início a uma jornada colonialista em busca do “novo mundo” e que perdurou até o século XX. Para esse novo mundo, as nações não mobilizaram exércitos porque essa não era uma guerra que exigia amplas forças militares. As expansões europeias eram ações centralmente econômicas e civis, com braços armados, e que objetivavam retirar as riquezas das quais se ouvia falar que existiam em abundância nas terras distantes. Para essas explorações foram mobilizadas gentes que se entendiam como excesso na Europa, o que exigiu montar uma ação ideológica que transformou o saque e a pilhagem em IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 65 narrativas de “conquista”, “aventura”, “descoberta”, de “missão religiosa” e ordem civilizatória. Parte fundamental nesse processo foi construir e tornar visível o Outro, seja o próprio mundo novo, seja seus habitantes, nesse caso, imaginados como coisa primitiva, selvagem, mas que, se escravizada, renderia lucros na lógica mercantil. Essas condições foram construídas ideologicamente para assegurar que [...] pessoas decentes aceitassem a ideia de que territórios distantes e respectivos povos deviam ser subjugados e, por outro lado, revigorava as energias metropolitanas, de maneira que essas pessoas decentes pudessem pensar no imperium como um dever planejado, quase metafísico, de governar povos subordinados, inferiores ou menos avançados (SAID, 2011, p. 44). Os aspectos missionários e civilizatórios eram os mais visíveis e objetivavam justificar e jogar fumaça sobre a ferocidade dos interesses econômicos das expansões imperiais. As nações despejaram força para suas realizações, montando-se consórcios transnacionais para financiar e operar essas ações. Muitas navegações envolviam acordos privados entre Portugal, Inglaterra, Itália, Espanha, Holanda e França. Muniz Sodré (1999) analisa que, de alguma forma, as ações coloniais dos Estados modernos reencenariam incursões do antigo imperium romano, inclusive com a participação da igreja para sustentar a lógica divina dessas operações. A igreja Católica teve um papel preponderante no convencimento da missão-destino que os cristãos teriam no novo mundo. No apelo, estava a busca e a promessa do paraíso perdido, sua ocupação e salvação dos selvagens com a imposição da alma cristã, um processo de humanização que ocorria por meio do mais violento trabalho escravo da história da civilização. A chegada dos europeus ao Brasil passa pelo mito do paraíso e, nesse aspecto, as narrativas têm papel fundamental na preparação e conformação das ações europeias no mundo novo. O regime de visibilização dá-se na fabricação da terra prometida, onde jorraria ouro em rios, destinado aos “heróis” que se “aventuravam” e cumpriam a “missão divina” e, principalmente, “salvando” os selvagens que seriam encontrados. Nesse contexto, a seleção do que falar e do que mostrar na narrativa sobre esse mundo foi central e, não por acaso, o vocabulário utilizado nas expansões colonialistas foi que estabeleceu a identidade europeia como a da humanidade, branca, superior e monoteísta, em oposição aos selvagens, aos sem almas, aos Outros do novo mundo. Ao destacar, sobremaneira, que o ordenamento do mundo ocorria a partir da Europa, ou melhor, a Europa era o mundo, estamos dizendo que o ser humano do universo burguês europeu fabricava, necessariamente, um tipo “inumano”, um animal selvagem. Lembremos que um princípio da Modernidade era o Humanismo, e este reconhecia o IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 66 Outro, o bárbaro, os de fora da humanidade e da única cultura possível, a europeia; era próprio da lógica humanista reconhecer e definir o que não era humano. Essa ideologia, por princípio, justificava a escravização do inumano como um dos métodos para torná-lo humano, civilizado, dócil colaborador do projeto universal (SODRÉ, 1999). Nesse ponto, é nítido um segundo aspecto contraditório das retóricas identitárias: a existência do Outro que nasce entre nós, e o esforço para apartá-lo e destruí-lo em nós. Agora, ao passo que nos reduzimos aos nacionais, ao nós mesmos como rocha imutável, o Outro tem uma identidade com margem flexível. Na colonização, ele será moldado pelo trabalho escravo. Para nós mesmos, a identidade não muda, isto é, teremos a nacionalidade eterna. No entanto, para o Outro, ela também não se altera porque ele é o inimigo eterno, mas dentro dessa faixa há uma pequena variação que vai do animal selvagem ao domesticado. O que não muda é a sua condição de animal, de diferença, de Outro. Vale salientar é que o regime de visibilização faz uso e abuso de estereótipos, uma ação narrativa para facilmente identificar e fixar o que estará sempre no mesmo lugar, repetido infinitamente: de um lado, a superioridade europeia, branca, católica e dominadora, e de outro, a inferioridade, a animalidade, o índio, o negro, o sem alma. O que emerge visível ou o que está invisível tem sustentação estereotipada, mas principalmente os invisíveis que são objetos de uma redução identitária carregada por preconceitos. O ato de estereotipar não é estabelecimento de uma falsa imagem que se torna o bode expiatório de práticas discriminatórias. É um texto muito mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de saberes “oficiais” e fantasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista (BHABHA, 1998, p. 125). Antes de se lançar aos oceanos em busca do mundo novo, as nações europeias reforçaram a retórica identitária nacional a partir de um Outro aparentemente invisível. Lembra-nos Bhabha (1998, p. 111) que na lógica colonial produziam-se os “tipos degenerados com base na origem racial, de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução”. Caso os índios resistissem ao projeto salvacionista seriam eliminados nas “guerras justas” e santas. Temos, assim, a fabulação do Outro, e o violento exercício de poder para impedir sua constituição como nós. Além disso, o Outro no mundo novo era destruído pelo trabalho escravo, por imposições étnicas e genocídios. IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 67 Ressaltamos que o Outro da terra prometida não era um desconhecido. Antes do Brasil, os portugueses já tinham feitorias 16 na África de onde retiravam escravos e ouro. A exploração dessas e de outras áreas renderam à literatura europeia muitas estórias de um mundo ignoto, com habitantes monstruosos, mas também do paraíso em que jorra ouro em abundância. Boris Fausto (2006) revela que nas cartas de Colombo sobre esse novo mundo há relatos de sereias e de homens com um olho só e com focinho de cachorro. Essas narrativas fantásticas ganharam visibilização nas folhas noticiosas e populares na Europa. Há intensa visibilização do Outro como o ser demoníaco, mas também de riquezas e de feitos extraordinários que foram conseguidos na “aventura” e na “missão divina”. É nesse contexto que o Brasil surge no mapa do mundo. Para Celso Furtado (2007), Florestan Fernandes (1975), Caio Prado Júnior (2006) e outros, o aparecimento do Brasil é resultado da expansão mercantil das nações europeias que buscavam formas para ampliar as suas riquezas. A imposição desse destino, ser lugar de exploração para atender aos interesses do capital internacional, foi decisiva para nortear as ideias do Brasil nação que surgiria cinco séculos depois. O fato é que tivemos um longo e violento processo de dominação, de “exploração ilimitada em todos os níveis da existência humana e da produção, para o benefício das Coroas e dos colonizadores” (FERNANDES, 1975, p. 13). As gentes mobilizadas para esse paraíso, índios, negros e mestiços foram alvo de reiteradas barbáries físicas e culturais. Garantir a diferença era central na ação imperialista de dominação no novo mundo. Em razão de objetivos econômicos, o Outro era transformando em uma peça domesticada e até desejada como moeda e/ou como animal de carga, moído na produção de riquezas até seu fim, como afirma Darcy Ribeiro (1995, p. 106). Os que resistiam à escravização eram postos em visibilização como os inimigos, os mais selvagens, canibais e, assim, eram exterminados. A ideia de missão civilizadora europeia e a de um Brasil como um lugar de exploração sem limites foram fundamentais para entender as construções visíveis e invisíveis sobre as identidades no Brasil. É preciso destacar um aspecto relevante nesse processo, até para romper com a ideia de que o Outro é o externo, aquele que habita um espaço geográfico diferente e distante de nós, fora das fronteiras. Para tornar-se nação, Portugal fabricou seus Outros ao longe, assim como também aconteceu em outras nações europeias. Ocorre que essa diferença construída já estava dentro de seus territórios: era uma massa de servos que vivia na miséria, desajustada nas cidades, excluída, o incômodo e o perigo para as elites. Era 16 Pequenos portos e com razoável estrutura administrativa; pequenas fortalezas com armazéns. IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 68 para esse Outro europeu, a massa pobre, que o Brasil paraíso tinha maior visibilização e fabulação. Na verdade, com essa construção, garantia-se que “fora do caldeirão das cobiças, havia terras virgens, habitadas de bons selvagens, onde a vida se oferece sem suor, para glória de Adão antes do pecado” (FAORO, 1979, p. 101). Em outras palavras, os nobres e os burgueses mobilizavam um “exército” civil incômodo na Europa para ocupar a terra prometida e, ao mesmo tempo, essa solução era um escoadouro de tranquilidade porque emudecia ódios e revoltas populares internas. Lembremos que Tomé de Sousa chegou à Bahia fazendo-se acompanhar por 400 europeus “degredados”. Na Carta ao rei de Portugal, Pero Vaz de Caminha, em 1500, narra que nas primeiras missões para o reconhecimento das terras no Brasil eram enviados os “mancebos degradados”. Entretanto, a travessia do oceano e o contato com os selvagens do novo mundo transformavam os Outros europeus pobres em missionários da civilização, ou seja, eles se vestiam de identidade superior, de humanidade diante dos Outros selvagens. Aos índios, o paraíso nomeado pelos europeus se constituiu em um inferno, de modo especial aos que reagiram à escravidão, à invasão de suas terras e de seus corpos. A violência racista e mais cruel possível tornou-se regra desse contato. “Padre Manuel da Nóbrega, por exemplo, diz que ‘índios são cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem’” (FAUSTO, 2006, p. 50). As resistências à civilização tiveram como respostas amplas campanhas genocidas autorizadas pelo Estado e abençoadas pela igreja. Não existem números precisos, mas se acredita que entre cinco e sete milhões de nativos viviam no Brasil quando da chegada dos europeus no século XV, a exemplo das nações tupi-guarani, tapuia, aimoré, carijó, tupiniquim, tamoio e inúmeras outras (FAUSTO, 2006, p. 38). Aos olhos mercantis, o índio era animal de vida inútil, sem adaptação ao trabalho, entregue a rituais anticristãos, um “gado humano, cuja natureza, mais próxima de bicho que de gente, só se recomendava à escravidão” (RIBEIRO, 1995, p. 53). A captura e a escravização de índios logo se tornaram excelentes negócios, a primeira atividade econômica no Brasil. Assim, esse Outro era visível para ser violentamente escravizado e, quando dominado e domesticado, tornar-se-ia invisível. Com essas ações, a civilização foi sendo imposta, com trabalho escravo, doenças e genocídios que dizimaram milhares de índios. Para acentuar a invisibilização e reduzir as perdas dessas peças nas “guerras justas” e santas, o Estado e a igreja implantaram os aldeamentos onde os nativos recebiam a catequese. Na prática, esse era o lugar privilegiado para desenvolver uma consciência de IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 69 impureza nos próprios índios, no sentido de que eles se culpassem pela escravização e demais violências. A justificativa dos seus sofrimentos estava em sua incapacidade, na nudez, no uso de várias línguas e na adoração a muitos deuses. A criação dessa consciência implicava na aceitação de sua inferioridade e da escravização como uma punição divina. A lógica era de que o sofrer terreno, a escravização, era um caminho necessário ao paraíso celeste. Os índios seriam até agradecidos pelas torturas diárias que recebiam porque, por elas, conseguiriam a salvação. O pagamento pela alforria celeste seria pelo trabalho e fidelidade aos europeus, aos religiosos. Um aspecto identitário central na construção do Outro e de sua invisibilização é o da miscigenação. A maioria dos europeus que chegou ao Brasil era homem. Logo, eles buscaram se acasalar com as nativas, como lembra Ribeiro (1995, p. 89), “tomando, como era o uso da terra, tantas quanto pudessem”. Esse autor trata dos inúmeros relatos de estupros coletivos, da constituição de haréns, do aprisionamento e do comércio de lotes de índias como escravas sexuais. Dessas relações violentas nasceram os mamelucos ou brasilíndios, que passaram a sofrer dupla rejeição: não eram reconhecidos como nativos pelas nações indígenas e jamais foram aceitos como europeus em razão de sua impureza materna. O resultado é que “o mameluco caía numa terra de ninguém, a partir da qual constrói sua identidade de brasileiro” (RIBEIRO, 1995, p. 109). Essa “ninguendade” é a face mais visível da invisibilização do Outro. Além disso, a ideia de miscigenação era utilizada no século XX – com rastros ainda vigentes – como uma forma de tentar apagar a ideia de raça no Brasil, o que também é uma ação nítida de invisibilização. Muitos dos mamelucos rejeitados foram acolhidos nos aldeamentos e aprenderam a lógica identitária europeia entre o humano e o animal, o civilizado e o primitivo, o superior e o inferior. O resultado dessa catequese foi que eles buscaram se identificar com os pais invasores e, aproveitando-se desse interesse, os europeus transformaram esses brasilíndios em fiéis agentes para a civilização, soldados das violentas “bandeiras”, de milícias de captura e extermínio de índios, e depois de negros, que resistiam à escravidão. Os mamelucos, os brasilíndios, os mestiços prestavam muitos favores aos europeus na esperança de que fossem reconhecidos como civilizados, mas essa condecoração identitária eles nunca receberam. Ribeiro lembra de um português que comandava uma bandeira, em carta ao rei de Portugal de 1649, dizia que “essas gentes” não iam ao mato cativar índios, mas “adquirir o tapuia gentio-brabo e comedor de carne humana, para o reduzir para o conhecimento da urbana humanidade e humana sociedade” IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 70 (RIBEIRO, 1995, p. 52). Os brasilíndios seriam visíveis se disciplinados e fiéis prestadores de serviços ao Estado e ao capital. Caso contrário, eram jogados na invisibilização. A questão indígena tem inúmeras vertentes, mas o que nos interessa é evidenciar que parte dela passa por um regime de visibilização que põe em maior evidência um Outro como o selvagem, o inumano, mesmo quando ainda era invisível, imaginado por meio das narrativas fantásticas que corriam na Europa antes da “descoberta” do Brasil. A partir dos contatos aqui, esse Outro se confirmava como uma verdade identitária na ótica europeia. Entretanto, eram acrescentadas, a partir de sua resistência à escravização, qualificações, a exemplo de violentos, perigosos, ampliando, assim, o extermínio deles. O sentido proposto de visibilização desse Outro era apagá-lo, deixá-lo invisível. Vimos que o processo de invisibilização do Outro no Brasil ocorria não só por meio de genocídios, mas também nos aldeamentos, por uma catequese que objetivava torná-los dóceis e resignados diante das violências que recebiam. Lá, também eram destituídos de sua cultura e da possibilidade de narrar sobre eles mesmos, isto é, tornavam- se invisíveis. A invisibilização também se estendia ao fruto do processo das miscigenações, os mamelucos, ou brasilíndios, ou mestiços, jogados na “ninguendade”. A “identidade brasileira” até tentava sair dessa condição, seja pelo esforço de agradar aos exploradores com a prestação de serviços de captura e extermínio dos índios, seja através do processo imitativo dos europeus, mas jamais tiveram o reconhecimento identitário como civilizados. Além dos nativos e dos brasilíndios, esse processo de construção das identidades no Brasil passa, obrigatoriamente, por meio da escravização dos negros arrancados da África. Em certa medida, grande parte da lógica usada contra os nativos era aplicada com os africanos, porém, com eles emergiu a visibilização de um sistema muito mais racista ainda, buscando fixar raízes profundas nas relações sociais e identitárias no Brasil. 2.3 (In)visibilização e sistema racista O racismo atravessa todo o processo identitário no Brasil, mesmo antes da chegada dos negros africanos escravizados. Não existem condições objetivas e nem nos propomos aqui mergulhar na densa história da escravização negra, mas pontuar questões gerais sobre o caráter racista mais visível e invisível na fabulação sobre o Outro no Brasil. No item anterior, a discussão versou sobre a questão da raça, que, de alguma forma, estava entrelaçada nas relações entre os europeus e os nativos. Entretanto, é foi a IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 71 partir da escravização dos negros arrancados da África que o caráter racial e racista ganhou ênfase identitária, constituindo-se como uma peça central no regime de visibilização. É fundamental ressaltar que nesse Outro que chegou ao Brasil, vindo da África, permaneceu a mesma perspectiva inumana existente em relação ao índio, entretanto, a cor da pele, o tipo de cabelo, o formato do nariz, isto é, as suas marcas fenotípicas emergiram nas relações para fundamentar as bases racistas visíveis e apartar ainda mais o Outro de nós. Esses traços ostensivos no corpo, em visibilização, foram – e ainda são – usados ideologicamente para marcar a inferioridade negra em oposição à superioridade do branco, europeu, civilizado, portanto, senhor e dono do inferior. Assim como aconteceu com os índios, os negros também foram alvo da mais abjeta desconfiguração humana por meio de uma violência visível e invisível, tornando-se objetos das forças dominantes na construção narrativa das identidades, das histórias, desses Outros no Brasil. Índios e negros foram tratados como coisa a ser duramente domesticada pelo trabalho escravo, sendo reconhecidos tão somente como braços e pernas a produzir as riquezas para os civilizadores. Seus corpos foram a própria riqueza dos que lucravam com o comércio deles, tratados como “peças” a mover a engrenagem econômica. Os corpos índios e negros foram, de fato, as primeiras mercadorias do colonialismo. De acordo com alguns dos mais destacados autores (FAUSTO, 2006; FURTADO, 2007; PRADO JÚNIOR, 2006; FERNANDES, 1975; FAORO, 1979; BOSI, 1996; e outros)17 são variadas as condições que possibilitaram a escravização negra no Brasil, entre elas: a carência de mão de obra em razão de imensas áreas a explorar; a resistência dos índios à escravização foi maior do que os invasores esperavam; a experiência portuguesa na captura e utilização dos negros arrancados da África; os altos lucros que o comércio de negros escravizados propiciava aos europeus e à elite nacional; entre outros fatores. Rejeitamos, porém, as teses que reduzem a escravização dos negros africanos ao viés da economia, como um modo de produção que “deu certo” em oposição à falta de capacidade e a vida nômade dos índios. É óbvio que a rede escravagista, principalmente na rota da África, foi importante para a estrutura e o desenvolvimento da exploração mercantil, mas esse sistema deve ser visto de forma mais ampla e com seus resultados sob outras óticas. A introdução do negro no Brasil como escravizado é constituinte das relações 17 Existem outras perspectivas historiográficas, como a de Ciro Flamarion Cardoso (1987), que discute a condição do negro africano, se escravo ou camponês. Há ainda análises de Luiz Felipe de Alencastro (2000), em O trato dos viventes, ou o olhar crítico de Jacob Gorender (1985), em Escravismo colonial (1985). IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 72 sociais que se estabeleciam, estendendo suas raízes mais profundas aos vínculos humanos entre nós e que ainda guardam camadas invisíveis a desafiar o reconhecimento em nós. Sobre a chegada dos africanos ao Brasil, vindos de outras colônias portuguesas a exemplo de Luanda (Angola), do Congo, de Benguela (Moçambique), de Ajudá (Benim), de Lagos (Nigéria), da Guiné, e de outros lugares, consideramos significativo o relato: Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho […]. Escampando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano (RIBEIRO, 1995, p. 119). Os números de negros arrancados da África e trazidos à escravização no Brasil são desencontrados e subestimados. Acredita-se que mais de 12 milhões de africanos tenham sido gastados na constituição da nação brasileira (RIBEIRO, 1995). O que se sabe é que, desde a metade do século XVI, chegavam navios abarrotados, a maioria de bantos e de sudaneses. Lembra Costa e Silva (2011) que apenas quando eles chegavam é que se reconheciam como negros e africanos. No Brasil, passaram a receber nomes vinculados aos portos de venda e de embarque da África, tornando-se, assim, angolas, benguelas, cabinas, minas, moçambiques. A captura, o transporte e o trabalho escravo não eram pacíficos. Como os indígenas, os negros também não aceitaram a escravização. As constantes resistências iam das fugas individuais e coletivas, aos ataques contra os senhores, até a constituição de cidades-quilombo. As resistências eram reprimidas com extrema violência, com açoites, pena de morte e extermínios de dezenas deles. Em 1773, uma Carta-Lei do Estado Português dizia que os negros eram impuros e a impureza expressava-se no corpo, assim, era “meritório realizar caçadas humanas, matando os que resistissem, como um modo de livrar o negro do seu atraso e até como um ato pio de aproximá-los do deus dos brancos” (RIBEIRO, 1995, p. 161). Além do terror visível como regra para institucionalizar a escravização, a imposição da obediência e da resignação é fruto também de uma ação pedagógica das forças dominantes para fazer com que os negros, assim como ocorreu com os índios, pudessem se reconhecer inferiores e culpados pelos castigos que recebiam. O argumento humanista-cristão era de que, por meio IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 73 do trabalho escravo, os negros limpariam a alma, pois seu corpo era prova de uma alma suja e corrompida pelos pecados. Assim, o único caminho era a obediência, o trabalho escravo, um martírio terreno com vista às glórias da libertação celeste. De um lado, os negros deveriam acatar as ordens, os castigos e os trabalhos. Por outro, era dever do cristão europeu agir para salvar a alma dos escravos, impondo-lhes um deus único, outra língua, outra cultura. Os negros não eram apenas arrancados da África, mas destituídos para uma reconstrução jamais alcançada do seu corpo, mas possível em relação a sua alma. O trabalho escravo era o meio, o único e necessário, para que sua alma suja, por conta da cor de seu corpo, pudesse chegar limpa ao paraíso. Em Os Sermões, do padre Antônio Vieira, analisados por Alfredo Bosi (1996), a vida do escravo se assemelhava à de Cristo, um sofrimento previsto na terra, uma espécie de autoflagelação. Segundo a ideologia alinhada entre estado e igreja, apenas os corpos eram escravizáveis e sofreriam castigos merecidos. As almas, ao contrário, ficariam brancas pela tortura diária e chegariam à salvação, à “alforria eterna”. Lembra Sidney Chalhoub (2012, p. 57) que os castigos que os senhores aplicavam aos escravizados eram mais que corretivos espirituais. Na prática, as torturas de todo dia eram uma forma de exercer um visível “privilégio de classe”, a confirmação da condição de superioridade do senhor. Fazer o uso mais violento e público do escravo emprestava a sensação de dono, de dominador, de senhor do Outro, mesmo sendo o agressor um mestiço ou até mesmo um negro liberto. Faoro (1979) convoca o exemplo de Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, em que o jovem Prudêncio, negro alforriado, fora visto no Valongo 18 surrando furiosamente um escravo de sua propriedade, em um espetáculo visível, para ser visto e ser imitado. Segundo Lilia Schwarcz (2011), a escravidão no Brasil que, desde Roma, era a maior concentração do mundo, estava em toda a parte, era bastante visível e revelava uma violência cotidiana e pública, com “o rigor da jornada, a força dos castigos, as marcas das sevícias pelo corpo, o tratamento desigual e inumano” (SCHWARCZ, 2011, p. 230). Para europeus que chegavam, e para a elite já brasileira e embranquiçada, todo o lado negativo da nação paraíso, as doenças, pestes, epidemias, sujeiras, insetos, tudo isso tinha um único culpado: o negro. Mercados, a exemplo do Valongo, como diz Schwarcz (2011, p. 207) era “um bazar aberto a todo mundo, uma feira perpétua e permanente [em que] a mercadoria grita[va], implora[va], canta[va] para chamar atenção”. 18 Um dos mais importantes mercados públicos de compra e venda de escravos no Rio de Janeiro. IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 74 A ideologia escravo-racista surtiu efeito quando mulatos e crioulos, negros e filhos dos negros já nascidos no Brasil se sentiam superiores aos pais e demais descendentes africanos. Afirma Costa e Silva (2011, p. 45) que “a primeira coisa que, em geral, fazia uma pessoa, mal melhorara de vida, era comprar um escravo ou escrava”. José Murilo de Carvalho (2012, p. 26) lembra que até mesmo o abolicionista Joaquim Nabuco disse que “a escravidão brasileira era mais democrática do que a dos Estados Unidos porque todos os brasileiros podiam possuir escravos, inclusive os próprios libertos e os próprios escravos”. Ressaltamos que as relações escravagistas não se davam apenas nos engenhos, mas também nas cidades, no transporte de pessoas e de cargas, nas construções de igrejas e de prédios públicos, nas pequenas indústrias e no comércio. A exploração do negro, escravo ou não, era uma ação visível e naturalizada, parte de uma arquitetura social, rural e urbana, em que se viam os resultados concretos, nas ruas e prédios da cidade, mas seus trabalhadores sempre estiveram quase que absolutamente invisíveis enquanto humanos. Nas cidades, alguns senhores permitiam que seus “escravos fizessem seu ‘ganho’, prestando serviços ou vendendo mercadorias e cobravam deles, em troca, uma quantia fixa paga por dia ou semana” (FAUSTO, 2006, p. 68). Entre essas atividades estava a prostituição. Lembremos, ainda, que era da lógica escravagista o livre acesso sexual do dono às negras. Desde crianças, as escravas “estavam sujeitas a ser estupradas pelo dono, por seus filhos, por outros parentes do senhor e por feitores. Não eram poucos os senhores que possuíam verdadeiros haréns de cativas” (COSTA E SILVA, 2011, p. 63). A dualidade livre/escravo e branco/negro não era desmentida pelo fato de haver, com o passar do tempo, alguns negros nascidos livres ou que adquiriam a liberdade, e nem mesmo por ter alguns negros donos de outros negros. Até provas em contrário, um negro era escravo e, como tal, era objeto da mais absoluta violência para sua invisibilização social. Está aí uma das chaves de leitura do processo identitário brasileiro e que ajuda a perceber o sistema escravo-racista no Brasil para além da condição econômica: a exigência de um regime de visibilização que busca conformar o negro como um escravo eterno, uma diferença perpétua, um imaginário de eterna subalternidade. É por essa esteira identitária que o Brasil se constitui como uma sociedade em que o racismo, como obra de uma elite dirigente, busca fincar raízes nas relações sociais, com se ele fosse natural, como um valor tão naturalizado que parece sequer existir. Com isso, não se retira o peso da dominação europeia, mas, talvez, dividem-se as cargas racista e IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 75 classista com uma elite brasileira extremamente violenta nos modos de ver e de não ver um Outro que já nos constituía, um poder, inclusive, sobre a história do Outro. Não custa reforçar que grande parte das ações em torno da escravização índia e negra era pública, e a violência está em sua base, não apenas como um exercício de força, mas em especial, como um “privilégio de classe”, como disse Chalhoub (2012). Os usos e abusos mais visíveis dos escravos, principalmente os linchamentos públicos revestiam o seu dono de máxima legitimidade, da condição de superior, confirmando o Outro como o inferior. Os espancamentos nas ruas e praças, para que todos vissem, tinham um objetivo pedagógico e constitutivo das identidades do nós e dos Outros. Em outras palavras, eram nos açoites contra o escravo que “nascia o status de senhor” (FAORO, 1979, p. 218). Assim, o racismo foi se entrelaçando pelas entranhas mais profundas da sociedade brasileira, de forma que o desejo de ser proprietário de escravo se tornou obsessão nacional (Figura 1). Esse é um exercício de poder. Ser dono de escravo era adquirir um passaporte que permitia a sensação de circular na elite dominante (COSTA E SILVA, 2011). Figura 1: Cartão de visita - O senhor e seus escravos em São Paulo, 1879 Fonte: Museu Paulista. Ateliê fotográfico de Militão A. de Azevedo A força ideológica desenvolvida repetidamente pelo Estado e pela igreja sobre os negros e escravos, combinada com a mais absoluta violência, fez o racismo se constituir como base nas relações da socais e identitárias no Brasil. O Outro estava ali visível pela IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 76 cor de sua pele, para estabelecer o status do superior, do civilizado, do branco e do quase branco, daquele que fala em português. E esse processo se espraiou nos tecidos sociais, de forma que “mulatos e crioulos eram preferidos para tarefas domésticas, artesanais e de supervisão, cabendo aos escuros, sobretudo aos africanos, os trabalhos mais pesados” (FAUSTO, 2006, p. 69). A violência pública, mais visível e racista possível objetivava o controle, a disciplina e a invisibilização mais profunda, não apenas dos negros, mas das próprias ações violentas em torno do racismo para, assim, naturalizá-lo. Por isso, quanto mais negro na cor da pele, mais Outro a ser violentado e apartado socialmente, jogado em invisibilização. Quanto menos negro fenotipicamente, maior a sensação de estar perto dos civilizados, com alguma possibilidade de aceitação como serviçal dócil, entretanto, sem jamais perder sua condição de Outro. Temos a constituição identitária em que o Outro se realiza por uma violência visível para dar forma à sua desumanização, tornando-o invisível. Submetido a essa compressão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação dos seus interesses (RIBEIRO, 1995, p. 118). Com a abolição oficial do trabalho escravo em 1888, levas de negros velhos, pobres e doentes foram despejadas nas ruas, sem moradia, sem terra. Temos, então, um Outro visível por uma presença física incontornável, e que não podia estar em lugar algum por conta da invisibilização construída pela lógica racista. Essa “ninguedade” leva a tentativa de submissão dos negros libertos às formas mais aviltantes de exploração, mantendo-se quase intactas as mesmas violências escravo-racistas do Brasil Colônia. Além de vistos como eternos escravos, os negros, com a liberdade, passaram a ter as suas desqualificações intensificadas e postas em maior visibilização. Agora, eram também os de raça vadia, preguiçosa, perigosa e, naturalmente, criminosa. Mesmo a utilidade serva de alguns deles foi sempre mantida sob desconfiança e forte controle. Esse Outro “livre”, negro ou quase negro, foi se constituindo em uma ralé crescente, um inimigo expulso das cidades e jogado nas periferias, sendo visível lá, para o controle e a repressão das estruturas de poder. Maria Aparecida Silva Bento (2002) diz que o olhar europeu que fabricou os negros como ameaçadores, isto é, como um Outro destituído de si, tem relação direta com o próprio europeu, ou seja, “ter a si próprio como modelo e projetar sobre o outro as IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 77 mazelas que não é capaz de assumir, pois maculam o modelo” (BENTO, 2002, p. 31). Esse Outro, construído como violento e perigoso, é imaginado a partir de nós, que o fabrica. A violência despejada sobre índios, negros e mestiços não passa da ação de culpa invertida. Nas vésperas da República, negros, mulatos, crioulos eram quase 73% da população no Brasil. Nas cidades havia uma atmosfera populacional negra e mestiça e, por isso, além de razões econômicas, incentivava-se a imigração branca, no sentido do embranquecimento da sociedade, vista como suja pela elite nacional. É preciso lembrar que a nossa configuração identitária não era somente de europeus brancos, índios e negros; jamais houve pureza identitária. Mamelucos e mulatos – assim como os brasilíndios – também se sentiam em uma terra de ninguém, e “é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus, não-negros, que eles se vêem forçados a criar sua própria identidade étnica: a brasileira” (RIBEIRO, 1995, p. 131). Em geral, índios, negros, mulatos, crioulos, mamelucos, negros embranquecidos, brancos enegrecidos apreenderam no regime de visibilização da sociedade brasileira que a referência civilizatória, o modelo a ser seguido, era o do europeu, branco, civilizado. Temos, assim, um Outro para si, um superior a ser imitado, um desejo estimulado pelas forças do poder e que vai implicar na rejeição de si mesmo, ou seja, aprendemos a nos distanciar, a negar, a apagar um Outro que imaginamos inferior e que já nos constituía. Nesse sentido, Ribeiro sintetiza: As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos, guardam diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, era mera força energética, como um saco de carvão, que desgastado era substituído facilmente por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e os brancos pobres são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inata e inelutável. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características de raça e não como resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem ascender socialmente, os quais se somam ao contingente branco para discriminar o negro-massa (RIBEIRO, 1995, p. 221-222). A literatura oficial e a imprensa nacional brasileira produzem uma imagem da massa negra, mestiça, perigosa, atrasada, incômoda às elites, aos interesses e ao desenvolvimento do país. Essa visão se constitui e circula no regime de visibilização, conformando nossas crenças e imaginários. Nesse sentido, as ações de poder no trato com o Outro no Brasil se processam sempre na busca por eliminá-lo, colocá-lo no escuro, por apagá-lo da história entre nós, por excluí-lo por várias formas de violência. Esse processo, IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 78 de constante criminalização da presença do negro, motivou políticas de embranquecimento para que a ideia de raça negra pudesse desaparecer. Sobre o estímulo à imigração branca no Brasil e, depois, as constantes ações para o branqueamento da população, é preciso lembrar que tudo isso é parte de um plano político de apagamento da raça em um Brasil que, em fins do século XIX, já estava sendo chamado de a “Nova África” em razão da visível população negra. O fato é que a ampla ação de imigração de portugueses, ingleses, franceses, italianos, espanhóis, alemães não transformou o Brasil em Europa, ou no Portugal das Américas, para decepção e pavor das elites locais. Nas ruas das cidades mais urbanizadas perambulava um povo-nação predominante negro e mestiço. Ou seja, as violências diretas e indiretas não reduziram essa massa de gente que começava a se entender como brasileiros (SCHWARCZ, 2011). Por isso, modestamente, chamamos a atenção para o uso voluntarioso da ideia de mestiçagem. Festejar a ilusão da democrática mistura de raças no Brasil, sem compreender criticamente o processo histórico, pode acabar atendendo e reforçando perspectivas/ações que anulam as raças daqueles que nos constituem – o negro, o índio e o mestiço –, como sujeitos de historicidades. Sugerimos que uma das singularidades de nosso racismo passa pela constante invisibilização das ideias e das práticas de raça por meio da falácia do mito de uma democracia racial. Além disso, o percurso histórico das relações entre índios, negros, europeus, mulatos, mamelucos, brasilíndios, de onde surge a ideia de povo brasileiro, acaba por construir-se em um trânsito identitário muito mais complexo entre nós. Por exemplo, podemos sugerir que somos, ao mesmo tempo, corpos e almas dos negros, dos índios e dos mestiços martirizados e, também, corpos e almas dos senhores que os martirizaram. Transitamos, assim, com alguma fluência, entre a Casa Grande e a Senzala. Como nos lembra Ribeiro (1995, p. 120), somos “a doçura mais terna e a crueldade mais atroz [que] aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos”. O fato é que os mais de 320 anos de um sistema escravo-racista no Brasil não passam incólumes na construção da ideia de uma identidade nacional. A lógica da violência que busca apagar o índio, o negro, o mestiço se realiza no regime de visibilização, em um espaço que faz ver e que não faz ver as cotidianas práticas racistas. Os rastros dos senhores, daqueles que remetiam à ideia de civilização e, também, dos índios, dos negros e dos mestiços violentados acabam emergindo, em algum momento, nas relações entre nós, como sinais de “colonialidade”, no dizer de Aníbal Quijano (2009). IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 79 Esse percurso em torno das identidades, em especial, do processo de construção do Outro no Brasil, e do regime de visibilização, encaminha-nos a perceber como o jornalismo transita nesse ambiente para tornar o Outro mais visível e/ou mais invisível. 2.4 Colonialidade jornalística no Brasil Esse percurso, com pontuações da história sobre as identidades e, de modo especial, sobre elas no Brasil, leva-nos a buscar a participação do jornalismo nessa trajetória. Ora, na medida em que compreendemos o jornalismo como uma das experiências narrativas do mundo, isto é, como um dos espaços de indicações que busca conformar parte dos processos sociais, sugerimos que ele e os outros operadores sociossimbólicos também agem nas identidades. Do ponto de vista identitário, relembremos que as forças políticas majoritárias indicam enquadramentos fixos para os indivíduos e as coletividades. O jornalismo entra, aqui, a disparar um regime de visibilização para fazer ver e para fazer não ver pertencimentos e diferenças identitárias. Como o Outro é um elemento político central para as identidades, muito de nossa relação com ele se dá em função das condições apresentadas por esse regime. Ocorre que esse Outro é uma diferença, mas não necessariamente um inimigo. Nos processos identitários, o jornalismo dispara associações que nos conformam e confortam, e que aciona relações de desejo, isto é, apresenta modelos identitários superiores, ideais, modernos e que devemos buscar, copiar, imitar. Entretanto, seja essa pertença por desejo, seja aquela que imaginamos ter, elas sempre estarão em radical oposição às diferenças encarnadas em um Outro imaginado profundamente apartado de nós, aquele que deve ser rejeitado, apagado e eliminado. Não é que ele seja oposto ao eu e ao nós, mas é o que luto para não reconhecer. Para encontrar o jornalismo nessas tramas identitárias, especialmente no Brasil, precisamos retomar a Era Moderna, período da história em que apareceram as primeiras folhas noticiosas no mundo ocidental. Os incipientes jornais eram parte do resultado das transformações que ocorreram na Europa entre os séculos XV e XVI. Sodré (2014) afirma que é com a Modernidade que o jornalismo assume um lugar nas sociedades como um formulador de narrativas sobre o que acontecia no mundo. A aparição dos primeiros jornais não tem uma relação direta com a divulgação ou a popularização de peças literárias ou filosóficas, e nem foi o resultado de uma febre industrial tipográfica, do aperfeiçoamento nas impressões de livros, de calendários e outros IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 80 impressos. A historiografia da imprensa produz uma narrativa tão intensa do aspecto tecnológico sobre o nascimento dos jornais que acaba reduzindo reflexões mais aprofundadas, o que não implica, em hipótese alguma, desconsiderar a importância vital das formas de tecnologia para o desenvolvimento da imprensa e do próprio jornalismo. O que queremos salientar e esclarecer é que o surgimento e, especialmente, o desenvolvimento das primeiras folhas noticiosas que circulam pelo mundo ocidental têm em suas bases motivadoras as necessidades estratégicas das ações políticas e, sobretudo, econômicas dos poderes. O que está na gênese do jornal é ser um dos instrumentos a dar visibilização aos poderes e suas formas, confirmando os lugares sociais das classes dos nobres, do clero, dos burgueses, dos servos e dos escravos. Por meio da imprensa, as esferas de poder, não necessariamente as institucionais, davam a conhecer as nações, os reis, mas também e, principalmente, as rotas comerciais, os trajetos marítimos, as cotações de produtos, os decretos administrativos, as descobertas do mundo novo, em especial, seus perigos e possibilidades. Há, aí, uma crescente importância do regime de crença e de imaginários, o qual é processado por meio da visibilização, do dizer e do mostrar. O jornal nasce como um dos lugares importantes de nomeação do mundo e das coisas. A notícia era um contar/criar de um mundo visível e, também, um modo de narrar sobre o imaginado. Sublinhamos que o jornalismo, por meio da imprensa, encaixou-se nas esteiras políticas da formação das nações e nas esteiras econômicas das expansões coloniais, fortalecendo os interesses do capital e dos estados. O que buscamos iluminar nesse ponto, até com insistência, é que o jornalismo não nasce de inspiração divina e nem é resultado de um processo linear e evolutivo das técnicas de impressão. O jornal surge como um produto político, sendo uma das peças importantes, por exemplo, para construir a ideia e o sentido de nação e de Estado. Longe de ser uma mera folha de notas econômicas e políticas, os jornais foram se constituindo como um dos lugares privilegiados de poder, de poder dizer e mostrar, um espaço de fabulação sobre nós e sobre os Outros, fazendo surgir o que Anderson (1993) chamou de uma “comunidade imaginada”. A imprensa colabora na sensação de unidade política e econômica, concentrando as convergências dos interesses das elites. O regime de visibilização que delimitou o nacional nessa “comunidade imaginada” agiu na fabricação e visibilização do Outro que não pertenceria a nós, aquele que estava fora das fronteiras que impusemos. Nas folhas noticiosas que circulavam na Europa, em meio aos informes sobre as tábuas de maré, a chegada e a partida de navios, o preço do ouro, também havia uma profusão de notícias fantásticas sobre as terras distantes IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 81 e seus habitantes. No jornalismo impresso nasciam os inumanos e selvagens, aqueles que iriam assegurar uma oposição radical do nós, os humanos, brancos, civilizados. Ao conformar uma “comunidade imaginada” e civilizada, esses jornais também foram fundamentais na estratégia de mobilização do mundo europeu para que ocupasse o “mundo novo”, o paraíso perdido e encontrado, como um destino e uma missão divina. O desenvolvimento da imprensa alinhado à lógica política e mercantil, “permitiu que um número rapidamente crescente de pessoas pensasse acerca de si mesmo, e se relacionasse com outros, em formas profundamente novas” (ANDERSON, 1993, p. 62). No Brasil, a ideia de imprensa é tardia e, quando surge, está associada aos fundamentos das expansões mercantis e colonialistas europeias. Com a invasão das terras e das gentes concretizada e o Estado português em consolidação, o jornalismo brasileiro é marcado pela censura, pelo atraso tecnológico, pela perspectiva europeia do mundo e pela vinculação direta aos interesses políticos e econômicos dos mandantes da nova terra. Do ponto de vista histórico, depois do “descobrimento”, a produção noticiosa mais regular no Brasil demorou quase quatro séculos para existir. Mesmo assim, nasceu marcada pela oficialidade com a chegada da corte portuguesa em 1808, que autorizou as impressões sob forte controle real. Antes, elas não eram permitidas. É claro que, como nos lembra Nelson Werneck Sodré (1999), antes e depois de 1808, existiram inúmeras folhas noticiosas que circulavam clandestinamente, sem estrutura, perseguidas e tiveram vida efêmera. Os primeiros jornais brasileiros com maior regularidade foram o Correio Braziliense, de ampla angulação econômica e que era impresso em Londres; e a Gazeta do Rio de Janeiro, jornal da coroa portuguesa, uma espécie de diário oficial e já impresso no Brasil pela tipografia real. Apoiando-nos em Sodré (1999), salientamos que o surgimento tardio da imprensa no Brasil tem relação direta com o modo como a Europa percebia esse “novo mundo”, isto é, um lugar de exploração, do uso ilimitado da terra e das gentes. Um espaço com a configuração de máxima pilhagem não abrigava jornal. O jornalismo em muitos países que foram colônias padece desses “males de origem”: atraso e uma filiação constitutiva à lógica mercantilista, aos interesses do capital e da política de nações europeias. No caso do Brasil, isso vai refletir no modo de visibilização e de invisibilização do mundo, na conformação do que viria se tornar essa nação, das narrativas de seu passado e de seu futuro, das ideias sobre a identidade nacional. A liberdade de imprensa e o interesse público são retóricas que buscam embaralhar os vínculos dos jornais com os poderes. Desde o seu princípio, no Brasil, IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 82 [...] a arte de multiplicar textos acompanhou de perto, e serviu, a ascensão burguesa, enquanto a nova terra, integrada no mundo conhecido, iniciava sua existência com o escravismo. Se o impulso que deu aos portugueses o mérito de ocupar o Brasil estava ligado à expansão do capital comercial, foi ele o responsável também pelo surto da gráfica na metrópole (SODRÉ, 1999, p.9). Essa análise não envereda por uma visão totalitarista sobre o jornalismo no Brasil, ou seja, que ele seria apenas uma atividade centralizada nos poderes econômicos e políticos. Reforçamos a existência, desde a colônia, de experiências noticiosas contestatórias, fora das órbitas do capital e da oficialidade real. Reconhecemos os esforços de muitos que reivindicavam o direito à livre expressão e impressão. Entretanto, eles não conseguiram se firmar e nem se estabelecer. Esses jornais eram alvos de permanente censura e não tinham condições objetivas para superar as lógicas e as faces elitistas dos que detinham as maiores tipografias e os amplos suportes financeiros, principalmente públicos. A relação entre poderes com a imprensa ficou mais nítida com o golpe militar da República em 1889. O jornalismo se tornou porta-voz do latifúndio, com suas práticas exploratórias e escravagistas e, também, do incipiente setor industrial em desenvolvimento, com seus princípios de produção capitalista predatório. Os jornais, na medida em que eram meios para propagar e defender os interesses do capital, das elites nacionais e internacionais, davam visibilização dos ideais identitários mais desejáveis e dos mais indesejáveis ao país. Do final do século XIX até meados do século XX, quando o Brasil começou a se “modernizar”, o jornalismo foi disparando uma série de marcações para a definição dos acordos e dos desacordos sobre a identidade no país. O Outro não era mais o selvagem, o índio ou o negro africano do início da colonização, mas aquele identificado como o subproduto das miscigenações, um povo misturado e, essencialmente, pobre. Essa diferença incômoda, perigosa, inimiga era o mal que atrapalhava o desenvolvimento dos projetos da elite nacional e o futuro do país. Em grande parte da história, que também passa no regime de visibilização em nossos jornais, temos o Outro indesejado a ser combatido. Em contraponto a ele, reforça-se a ideia civilizatória da Europa, especialmente de Paris e da Inglaterra, mas acrescentando- se o eldorado dos Estados Unidos a partir dos anos 1950. Esse “primeiro mundo” passou a ter a visibilização nos jornais brasileiros como o Outro desejado, moderno, culto, branco, o bem e o bom a ser imitado. Assim, o regime de visibilização no jornalismo acentuava os Outros desejados e indesejados, de forma a propor a rápida experiência identitária de alinhamento ou de repulsa. IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 83 Curiosamente, esse é um processo que nasceu no Brasil Colônia e ultrapassou esse período histórico, principalmente, em relação às identidades. Por isso, sugerimos que atravessa esse ambiente das experiências sociais uma espécie de fio, uma linha de força que mantém, na contemporaneidade, as lógicas mais gerais dos sistemas de dominação colonial, as relações de mando/obediência, de superior/inferior. Associamos que esse fio de herança colonial perpassa nossas relações sociais e tem papel fundamental no regime de visibilização no jornalismo, ao que Quijano (2009) intitulou de “colonialidade”. Não é demais relembramos que as ações coloniais iniciadas no século XV foram oficialmente encerradas apenas em meados dos anos 1970. Por exemplo, até o ano de 1975 ainda existiam colônias portuguesas em África. Quando tratamos de colonialismo, estamos nos referimos ao processo e a estrutura de dominação datada historicamente, em que “o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina uma outra” (QUIJANO, 2009, p. 73). Já a colonialidade é um dos elementos que constituem o chamado “padrão mundial do poder capitalista”, que age na classificação racial e étnica da população dominada. A colonialidade é de uma “existência social cotidiana”, que encontra novas maneiras, na maioria das vezes sutis, para continuar viva, sendo reiterada, em especial, nas sociedades dominadas. A colonialidade até parece não existir dada a naturalização autoritária de nossas relações sociais e, também, por ser encoberta por uma retórica sempre moderna e tecnológica. Vale enfatizar que a colonialidade não remete ortodoxamente às relações Velho Mundo/Novo Mundo, entre a Europa e o restante do mundo, ou seja, ela não é, obrigatoriamente, uma dominação entre um ou mais países. A colonialidade também não é uma exclusividade eurocêntrica, mas uma complexa rede de relações político-ideológicas que busca assegurar, como se fosse da ordem natural das sociedades, os esquemas de mando/obediência entre as pessoas, as classes, as instituições, inclusive dentro das nações. O que é central na colonialidade é sua “concepção de humanidade segundo a qual a população do mundo se diferenciava em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados” (QUIJANO, 2009, p. 75). Apesar de não considerarmos fronteiras, um aspecto importante a ser destacado é que esse fio autoritário histórico, a colonialidade, que atravessa as relações sociais, é mais visível em países que foram colônias de exploração, como é o caso do Brasil. Nessas sociedades há uma espécie de aprendizado sobre os esquemas autoritários de hierarquização identitária entre superior e inferior, como vimos em relação aos índios, os IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 84 negros e mestiços. Lembremos que o Outro, nesses lugares, deixa de ser mera projeção e passa a ser a diferença entre nós, um fato incontestável, constituindo o nacional. Nessas condições, sugerimos que existe uma colonialidade jornalística na medida em que o jornalismo dispara o regime de visibilização para o desejado e o indesejado. Ele põe na experiência um aprendizado, concreto e imaginário, sobre o mundo, com as diferenças naturalizadas. Essa ação passa por uma proposta narrativa para que o Outro se reconheça incapaz e naturalmente predestinado a ser Outro, resignado e subordinado à lógica de mando/obediência, sem nenhuma possibilidade de alteração. As narrativas de colonialidade jornalística também propõem que o Outro rejeite os seus semelhantes, que não os reconheça, e que reforce a classificação identitária racista e classista, de perigosos, criminosos, inimigos, apoiando o controle e a punição desse Outro indesejado. Apesar de ser semelhante à diferença que quer ver apagada, busca repelir qualquer associação que possa fazer vínculo com o Outro indesejado. Por meio do jornalismo de herança colonial será estabilizado um regime visível das identidades, seja de um modelo ideal a imitar, seja aquele que deve ser rejeitado e excluído. O importante é compreender que a ideologia da colonialidade “implica nas relações internacionais de poder e nas relações internas dentro dos países” (QUIJANO, 2009, p. 109). Cecília Coimbra (2001) diz que, desde o início do século XX, parte da elite brasileira, proprietária dos grandes jornais, utilizava amplamente de seus meios para fixar nos pobres, nos negros ou nos quase negros todos os males da nação. Ao estudar os jornais desse período, essa autora afirma que eles associavam a pobreza e a cor negra ou escurecida dos pobres a uma natural degradação moral da sociedade, a uma ralé que não cabe no projeto de uma nação no modelo europeu, branca e civilizada. Os pobres eram a transgressão da higiene, da moral burguesa, do trabalho e da família, o que implicou campanhas visíveis públicas de repressão, controle e expulsão das cidades. Na capa de um dos principais jornais daquele período, a Província de São Paulo, que é hoje o Estado de São Paulo, constava uma frase permanente: “O Brasil civiliza-se”, o que era um imperativo para exigir e apoiar as ações políticas e policiais que deveriam ser realizadas pelo Estado, além de ser norte à linha editorial do jornal (SCHWARCZ, 2012). Desde as primeiras décadas do século passado, os jornais brasileiros dedicaram-se às questões cotidianas, utilizando textos simples e diretos para marcar e fixar os Outros. Neles, havia seções fixas com notícias sobre as ruas, os crimes, os pobres e negros perigosos. Um dos jornais mais populares a adotar essa linha editorial foi o Correio da Manhã, de 1901. Com sede no Rio de Janeiro, ele valorizava o cotidiano, com colunas IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 85 como a Vida Operária e Na polícia e nas ruas (SODRÉ, 1999). Em 1906, surgiu em São Paulo A Gazeta, enfatizando notícias de crimes nas periferias das cidades. No ano seguinte, foi lançada a Gazeta de Notícias, que seguia essa mesma receita. Esses e outros jornais tiveram gigantesca circulação. Neles, o Outro, pobre, negro e perigoso estava amplamente visível, estampado na capa, recorrentemente visível, formando um tipo de acervo que tinha ampla inteligibilidade identitária nacional. A narrativa era mais que uma proposta de experiência, mas um guia com ensinamentos sobre os espaços geográficos perigosos e proibidos, além de tratar detalhadamente dos modos de ser do Outro, de sua personalidade “criminosa”, de seu comportamento “repulsivo”, cujo tratamento era o extermínio. Não é sem razão que os jornais brasileiros, especialmente da primeira metade do século XX, foram grandes divulgadores e apoiadores das teorias racistas. Eles empregavam maior visibilização nas narrativas para tentar mostrar/provar que o negro era um criminoso nato por conta da cor de seu corpo, do formato do nariz, dos tamanhos das mãos e dos pés, do tipo de cabelo. As notícias sobre crimes, os mais bárbaros, por exemplo, eram mais detalhistas sobre suspeitos, colocando em evidência seus traços físicos, principalmente a cor da pele e os lugares em que se escondiam. Os acusados/condenados eram todos negros, pobres, que viviam nos morros e nas periferias. Esse é um dos modos da colonialidade jornalística disparar as narrativas que, de alguma forma, produzam a rejeição e o medo Outro, estimulando a sua caçada e execução, em razão de sua incurável doença, a cor de seu corpo. Por exemplo, são abundantes desse período as notícias em que se pregava a mutilação genital dos “degenerados”. É também farto o material noticioso com a cobrança de campanhas públicas de limpeza social das cidades, com repressão e expulsão dos pobres e negros das áreas mais visíveis, limpas e urbanas das cidades. Cada vez mais eram jogados para longe dos olhares visíveis da elite urbana. Em resumo, parte do jornalismo no Brasil foi se tornando um guia moral a indicar o bem e o mal identitários, um instrumento de julgamento, de controle, de punição e de coesão social contra o Outro. Já pontuamos, mas não é demais reforçar, que a construção do Outro no Brasil tem uma forte base racista. No entanto, com as tentativas de apagar a raça a partir da teoria da democracia racial, as diferenças identitárias ultrapassam as marcas fenotípicas mais visíveis e o que passa a contar com grande força visível é a condição social do Outro. Ou seja, aquele potencialmente criminoso vai continuar sendo negro ou quase negro, ou quase branco, mas será principalmente pobre, vadio, miserável. Importante destacar que essa será também uma das formas de colocar em invisibilização a raça e o racismo. É nesse sentido IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 86 que Jessé de Souza (2006, p. 90) diz que a visibilização da raça será “conquistada pela invisibilidade da ‘classe’ como dimensão cultural e simbólica da natureza não-econômica”. A herança colonial insistente em nossas relações não deixa que nos esqueçamos de que no capitalismo tudo tem “valor” de mercadoria. O Outro terá sua importância se aceitar, resignadamente, a sua condição de outridade ou de ninguedade, como um passaporte para a sobrevivência. O valor dessa diferença será maior na medida em que Ela apague sua história e a dos seus, e aceite como natural, como predestinação, à sua exclusão. Somente assim, o Outro passa a ter “o reconhecimento social que é o atributo específico dos indivíduos que são percebidos como produtivos, disciplinados e socialmente úteis” (SOUZA, 2006, p. 88). A notícia, na lógica da colonialidade jornalística, é uma orientação identitária à audiência para distinguir a ordem e a desordem, o medo e a segurança, o atraso e o progresso. Essa cartilha, com uma narrativa cotidiana e repetitiva, cobra dos poderes instituídos as ações penais, os controles mais rígidos, as disciplinas, o apagar, isto é, a invisibilização do Outro. Também convoca as audiências para o apoio a essas políticas punitivas. Muitas das vozes utilizadas pelo jornalismo são autorizadas, por especialistas, a definir e a reafirmar o modelo identitário desejado e seguro e, principalmente, o indesejado e perigoso. Na prática, pouco se sabe ou se quer saber sobre esse Outro, mas se saberá – por meio do regime de visibilização (ver e não ver) – o suficiente para garantir que ele não é um dos nossos, que ele não deve estar entre nós. Foi assim que, como diz Beatriz Marocco (1998, p. 02), “o jornalismo ‘disciplinou’ ou ‘sujeitou’ e fixou, pela redundância diária em espaços garantidos na imprensa e ao longo da história, determinados ‘tipos’ necessários a uma ‘ordem’ das coisas na sociedade”. Acreditamos que um dos traços de colonialidade jornalística, seguindo os valores das elites dominantes, é exatamente a ocultação ou desvio de questões que possam denunciar a colonialidade das relações. Por exemplo, o Brasil jamais quis discutir a escravidão, de forma que “silêncio e cegueira permitem não prestar contas” (BENTO, 2002, p. 27). Quaisquer ideias que façam lembrar as desigualdades historicamente construídas entre nós serão tachadas, com ampla visibilização pelo jornalismo, como protecionistas e que privilegiam negros e pobres. Nesses debates mais visíveis, o Outro emerge na colonialidade jornalística com os rastros vindos da colônia, como vadiagem, incompetência e incapacidade. IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 87 Não são esporádicas as ações de colonialidade que excluem violentamente o Outro do entre nós 19 e que ultrapassam as narrativas no jornalismo. Daniel Reis (2014) lembra que, nos primeiros anos do século XXI, o Brasil chegou a registrar avanços, porém, [...] muitas características do passado, contudo, não foram extirpadas. A miséria continua assolando e atormentando importante parcela da população. Apesar dos progressos realizados, o país mantém-se como um dos campeões das desigualdades sociais. Os negros e pardos permanecem com chances desiguais, além de ter que suportar atitudes racistas que envenenam o cotidiano das relações sociais. As mulheres ganham menos por trabalho igual. E os homens continuam batendo e matando as representantes da ‘segunda metade do céu’. As preferências sexuais são vigiadas e reprimidas, reproduzindo-se distintas fobias que geram vexames e assassinatos. Quanto às nações indígenas, continuam a ter seus direitos postergados ou pisoteados, sobretudo quando se encontram no caminho dos sagrados imperativos do desenvolvimento econômico. [...] É triste dizer, mas a presença das tradições autoritárias conforma uma sombra que relativiza as ditaduras enquanto rupturas históricas. Elas estão no cerne da sociedade e atravessam diferentes classes e estratos, de alto a baixo da pirâmide social (REIS, 2014, p. 287). Em resumo, desde a fuga da corte portuguesa para o Brasil, os mandatários e a elite brasileira reforçam as suas referências identitárias a partir da Europa, o lugar da civilização. Para os brasileiros, o velho continente deveria assumir a condição do Outro desejado e encantado, o Outro para nós. Como no Brasil não existiam as disputas com outras nações que justificassem o inimigo externo a ser combatido, esse Outro diferente de nós, o inimigo, a diferença a ser duramente hostilizada e repelida estava mesmo entre nós, isto é, os negros, os índios, os mestiços, todos pobres. A presença incontornável dessa ralé entre nós vai fundamentar a teoria do nosso “mal de origem”, segundo a intelligentsia racista brasileira do século XX. Dessa forma, a ideia de identidade brasileira transita em meio à tensão entre a busca pelo Outro desejado e o apagamento do Outro rejeitado já fabricado na nação como a classe inimiga, a diferença a ser controlada e excluída, posta para fora das fronteiras da sociabilidade impostas pelas elites nacionais. Grande parte dessa narrativa de colonialidade ocorre no jornalismo e o transforma em dispositivo identitário, isto é, que aciona e participa de uma rede de forças que fabula sobre nós mesmos, mas a partir da fabricação do Outro, do tipo a ser exterminado. Como, empiricamente, vamos nos dedicar a investigar a produção jornalística em O Globo e na Folha de S.Paulo sobre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 19 Para cada homicídio de um não negro no Brasil, 2,4 negros são assassinados, em média. Em 2010, a taxa de homicídios de negros no Brasil era de 36 mortes por 100 mil negros. Para os não negros era de 15,2. Tomando-se a população de 226 municípios com mais de 100 mil habitantes, a chance de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior comparado com um branco (IPEA, 2013). IDENTIDADES, HERANÇA COLONIAL E JORNALISMO | 88 avaliamos que se faz necessário refletir sobre a constituição histórica desses jornais. As trajetórias das empresas que os editam, suas opções políticas e econômicas, podem revelar elementos que constam do conjunto de valores que formam os regimes de visibilização. Conhecer o lugar do falar e do ver de atores que se propõem à experiência jornalística é fundamental para pensar no visível e no invisível que mobilizam. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 89 CAPÍTULO III – HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER Os jornais são geridos hedonisticamente como uma grande propriedade familiar, na qual o gozo pelo exercício de poder é tão importante quando o lucro capitalista. Mantêm-se os métodos, valores e mentalidade dos mandatários iniciais da colonização brasileira. (Bernardo Kucinski, A síndrome da antena parabólica, 1998) Consideramos fundamental, em nosso percurso, dedicarmos um capítulo para entender as histórias de dois atores político-econômicos que propõem experiências jornalísticas no Brasil: os jornais O Globo e a Folha de S.Paulo. A compreensão das trajetórias desses dois periódicos ajuda a emprestar sentido aos regimes de visibilização que mobilizam o dizer e o ver e, também, o não dizer e o não ver, no caso específico deste trabalho sobre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Antes de tecermos sobre as histórias desses dois jornais, importa colocarmos em debate uma ideia que parece consolidada no Brasil, que é a do jornalismo de referência. Qual seria a razão de a Folha e de O Globo figurarem nessa faixa 20 ? O que, de fato, quer dizer jornal de referência? Como essa ideia implica o visível e o invisível? Na sequência, investigaremos diretamente o curso histórico da Folha de S.Paulo e, depois, o itinerário de O Globo, enquanto organizações políticas e econômicas a falar e a calar no espaço da experiência jornalística. De fato, elas não compõem todas as experiências jornalísticas, entretanto, as suas estruturas empresariais e as suas relações com outros operadores têm grande força propositiva no regime de visibilizações a influenciar o espaço da experiência. 3.1 Referências do jornalismo de referência no Brasil Aproximamo-nos de uma parte da empiria escolhida para nos ajudar a pensar o invisível no jornalismo. Por meio dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, buscamos perceber a construção do regime de visibilização no Brasil e que envolve a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Dedicamos uma parte às histórias desses dois jornais porque acreditamos que elas, ao apresentarem elementos constitutivos desses 20 Nosso estudo se dedicou especificamente aos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, cujas trajetórias buscamos investigar do ponto de vista empírico. As justificativas para a escolha desses dois periódicos estão no capítulo V. Entratanto, é preciso também reconhecer o Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo como outros dois jornais brasileiros importantes, tidos como de referência, e que também tiveram protagonismo na história da imprensa impressa brasileira. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 90 periódicos, acabam revelando seus vínculos políticos e econômicos que, trazidos à crítica do regime de visibilização, podem indicar o porquê de opções visíveis e invisíveis. Ao depararmo-nos com a Folha de S.Paulo e O Globo, invariavelmente surge um dado que parece irrefutável em quase toda a bibliografia: eles são jornais prontamente categorizados como de “referência”, periódicos que praticam um “jornalismo de referência”, que compõem a seleta “imprensa de referência” nacional. Essa ideia de referência, tomada e repetida graciosamente como verdadeira, pode funcionar como um mecanismo de fixação desses jornais como lugares socialmente autorizados para propor um regime visibilização incontestável sobre o mundo. Ou seja, a referência, aqui, é uma parte importante para tentar naturalizar os visíveis e os invisíveis. Todavia, esses jornais são referências de quê e de quem? E para quem? Com essas questões, indicamos que a referência será tratada neste trabalho em uma perspectiva um pouco mais crítica, além de dispor dela para pensar sobre a constituição do regime de visibilização. De fato, em parte da bibliografia mais tradicional que trata da história do jornalismo no Brasil há uma narrativa muito parecida, repetida e que consagra alguns produtos como de referência. Geralmente, é uma história linear, marcada pelo aspecto evolutivo da imprensa. Festejam-se, por exemplo, o empreendedorismo e o heroísmo de seus proprietários, as mudanças tecnológicas, a introdução de modernas técnicas sobre o modo de “fazer jornalismo”, ou seja, tem-se uma historiografia oficial que acaba por definir a própria ideia de jornalismo no Brasil, determinando sua forma, espaço e tempo. Na grande maioria dos trabalhos existe uma ênfase na completa transformação de uma fase artesanal de jornalismo, intensificadamente estereotipada por ser partidária, panfletária, irresponsável, em uma atividade “profissional”, em um jornalismo “sério”, de “referência”. Os jornalistas da “primeira fase” foram rotulados como partidários, sem formação, boêmios e até venais. É quase unânime, na história oficial, que a chave da virada desse jornalismo artesanal e antigo para o jornalismo profissional e moderno é a década de 1950, em razão da importação pelas empresas jornalísticas brasileiras das “avançadas” e “modernas” técnicas de um modelo norte-americano de imprensa. Não é nosso objetivo aprofundar aqui os vários acontecimentos registrados como evolução tecnológica da imprensa nos EUA, as transformações da indústria tipográfica, a introdução de “novas” técnicas e arranjos produtivos nas redações dos jornais. Não há espaço para essa boa empreitada e isso, talvez, poderia nosdistanciar do nosso objetivo. O que propomos é perceber o ambiente em que surgiram a Folha de S.Paulo e O Globo, o que se pretende quando se nomeiam como de jornais de referência, isto é, percorrer um HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 91 pouco sobre suas histórias, onde poderemos ver suas opções políticas, econômicas, culturais, identitárias, e que são importantes para o regime de visibilização que mobilizam. O problema é que a historiografia do jornalismo brasileiro, como já acentuamos, tem forte traço tradicional, em que se iluminam as personalidades, as empresas, e os seus feitos extraordinários, cujo conjunto resultou em uma imprensa e um jornalismo moderno, de referência. Afonso de Albuquerque (2010) analisa em sentido contrário e denuncia que essa é uma história conservadora e que, no fundo, acabou produzindo uma “modernização autoritária”. Entendemos que essa expressão (“modernização autoritária”) precisa ser problematizada pela contradição que tais termos, juntos, revelam, ou seja, é possível ser autoritário e ser moderno ao mesmo tempo? Poderíamos falar em aperfeiçoamento tecnológico nas formas de produzir o jornal e outros produtos, mas isso não implicaria ser moderno, isto é, as práticas poderiam continuar autoritárias. Sugerimos que a construção da ideia de “jornal de referência” efetivou-se por meio de uma insistente autorreferência, como também a partir, exatamente, de uma narrativa histórica que eles mesmos produziram e não se cansam de repetir, e que, muitas vezes, reproduzimos, inclusive na academia, sem maiores observações críticas. A ênfase retórica que transformou o jornalismo de arcaico e artesanal em moderno, que superou a política pela técnica com a introdução da objetividade e levou ao jornalismo profissional, é uma narrativa mítica e de significativa encenação, que tem início nos anos 1950, sendo consagrada no mercado e nas academias. Entretanto, alguns autores (RIBEIRO, 2007; ALBUQUERQUE, 2008, 2010; ZAMIN, 2014, MANNA, 2016; JÁCOME, 2017) têm apresentado importantes análises críticas sobre esse processo e esse período pelos quais passaram a Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, e outros. Por exemplo, Ângela Zamin (2014) atenta diretamente para o uso apressado do termo referência, que se costuma utilizar como uma forma simplória de delimitar o objeto de estudo. Entendemos que a discussão sobre referência está encadeada com as histórias desses jornais e com o regime de visibilização que propõem. Relembremos que o jornal, como lugar do jornalismo, nasceu na transição da Idade Média para a Moderna, mas como um sinal da Modernidade. Ele era a obra de uma burguesia mercantil que comunicava seus negócios e fazia a “política” dessa classe. O comunicado, isto é, o informe, a “notícia”, também era um meio pelo qual o poder econômico, de alguma forma, também agia na política e reagia às dinastias absolutas. Na prática, a burguesia buscava interferir nas decisões do Estado, não queria que ele atrapalhasse a circulação e o avanço dos negócios, do capital. No fundo, o jornal nasceu HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 92 como o porta-voz desse tipo de liberdade. A folha noticiosa foi se constituindo como objeto para o fortalecimento de classes, a dos comerciantes, banqueiros, industriais e essa é uma perspectiva que está na base do jornalismo moderno. Entretanto, desde os primórdios, esse é um processo de defesa de interesses corporativos, políticos e econômicos, mas que, para ganhar a adesão de muitos de fora da elite, desenvolve uma retórica persuasiva, buscando referenciar-se como a “voz do povo” e que fala em nome dele. Com a consolidação das chamadas nações modernas, com o alinhamento dos interesses entre a nobreza e a burguesia para dar forma à elite dirigente, e com os avanços do liberalismo e do capitalismo, a imprensa, ou seja, o jornal, o jornalismo tornou-se um objeto estratégico dos poderes político e econômico. Os jornais, e depois outros meios, adquiriram, assim, grandes estruturas físicas, receberam melhorias técnicas e passaram a circular massivamente, tornando-se agentes mais ativos e influentes, ampliando as vozes das elites conservadoras e autoritárias que falavam em nome de “todos”, ensinando seus valores, e sendo disciplinadores políticos e morais da sociedade. Estávamos na Modernidade e as modernas tecnologias de impressão da época indicavam esse novo tempo, mas o jornal era um porta-voz encenado do interesse público para manter intocados os interesses do capital e perpetuar as relações autoritárias de poder e de classe social. Jorge Pedro Sousa (2006, p. 197) lembra que o primeiro “modelo de jornalismo” a surgir no Ocidente foi o modelo autoritário. Para esse autor, “mal o jornalismo moderno começou a se configurar, no século XVII, o poder político, receoso dos eventuais efeitos adversos das notícias, tratou de controlar os jornais”. Avaliamos que esse “poder político” de que trata o autor deve ser entendido como o conjunto de forças econômicas, políticas, religiosas que dirigem não apenas o Estado, mas busca ter força determinante nos vários segmentos sociais. Ao mesmo tempo em que a elite, dona da “imprensa”, propagava seus valores como se fossem de “todos”, os jornais apresentavam-se como o lugar do mundo visível. Em outras palavras, o jornal passa a ser instrumento e referência de um regime de crença no verdadeiro, que estava ali, impresso. O jornalismo mobiliza, utilizando-se das tecnologias “modernas” disponíveis, um regime de visibilização interessado para uma experiência social do mundo. Quando tratamos dos “jornais referência” no Brasil e convocamos a Folha de S.Paulo e O Globo, objetos deste estudo, estamos lidando com quais referências? Eles são porta-vozes de quê e de quem? Essas questões nos levam a enxergar os jornais além das folhas impressas, de seus conteúdos e discursos, mas como meio para a ação política de HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 93 determinados grupos sociais a propor o visível e o invisível. O jornal foi transformado em “ator político” a produzir visibilizações para a experiência social do mundo. Por isso, ao considerar as notícias da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) na Folha de S.Paulo e O Globo, não estamos somente acolhendo as importantes manchas gráficas impressas neles, mas as historicidades das empresas que as produzem. O jornal, aqui, é como ser vivo dotado de complexidade e se apresenta ao diálogo da experiência jornalística iniciando uma conversa persuasiva, com objetivos nem sempre muito nítidos. E, nesse sentido, não podemos perder de vista a perspectiva, com afirma Eric Landowski (1992), de que o jornal é uma empresa, de personalidade jurídica, estatuto, história fundacional, um agente que transita nas coletividades sendo parte delas, e que busca dar ordem ao mundo nesse espaço. Ao tornar acontecimentos visíveis e invisíveis, o jornal revela parte de sua própria trajetória histórica, isto é, tudo o que coloca para as experiências, para ver e não ver, tem lastros antes dele, nas condições culturais de seu contexto presente, e não se encerra nele. Reforçamos aqui que as estruturas políticas e empresariais, como alianças e alinhamentos estratégicos, têm força significativa na proposição de uma experiência jornalística do mundo que nos envolve. Todavia, como argumentamos no capítulo primeiro, essa ação é limitada, não é determinista e nem central, porque estamos exatamente no espaço da experiência, em um lugar onde podemos desconfiar dos invisíveis, perceber fissuras, silenciamentos, torções de palavras, ou seja, um ambiente que precisa ser visto como de disputa dos próprios rumos da experiência. Quando dizemos que o jornal é um ator político e social, estamos sublinhando que sua atuação/fala é interessada, em especial, na sua autoconstrução como uma referência a ser corroborada pelos interlocutores no ambiente da experiência. Ou seja, ele constrói uma espécie de autorização social, que não foi dada por ninguém, para poder falar e mostrar, para calar e apagar, uma anuência que, na verdade, é um efeito da ação de poder. É nesse sentido que, mesmo não sendo únicas e nem majoritárias, as falas dos jornais, de um jornalismo que se nomeia e é nomeado como de referência, caracterizam-se como uma ação política e uma locução autoritária. Com isso, queremos dizer que é muito difícil sustentar uma defesa do jornal como ator político, com um papel de uma espécie de terceiro elemento, como sugere Héctor Borrat (1989), isto é, um ator que parece até desinteressado no jogo político, agindo tão somente como um mediador. A constituição histórica dos jornais, com suas entranhas bem demarcadas nas lógicas do capital, permite vê-los exercendo, de fato, algum tipo de HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 94 mediação? Penso que já há acúmulo histórico suficiente para desconfiar de tão boas intenções de isenções. Por isso, aproximamo-nos mais de Thomas Patterson (2000), que, ao perguntar se “serão os media noticiosos actores políticos eficazes?”, já aponta que os media são atores na arena política e que buscam forçar a direção no palco das decisões para as agendas públicas. O que Patterson faz é criticar o papel de ator político dos media, que acaba transformando a política em espetáculo, propiciando a despolitização, isto é, “envenenando o poço” e “abalando uma condição essencial para a existência de um verdadeiro sistema democrático” (PATTERSON, 2000, p.91). Curiosamente, quanto mais as empresas de jornalismo buscaram jurar, retoricamente, que eram profissionais, apartidárias, modernas, mais fizeram valer a força de suas raízes históricas, buscando influenciar e agir como atores políticos, econômicos e sociais. A maioria das narrativas históricas consolidadas sobre a imprensa nacional no Brasil, e que se reproduz em várias obras, aponta, com ênfase, que antes da metade do século XX o jornalismo brasileiro era “praticado com um espírito amadorístico e aventureiro, por profissionais com pouco preparo técnico e eticamente descompromissados” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 101). Um dos grandes símbolos ao qual a retórica da modernidade se apegou para marcar a divisão entre o atraso e a urgência do novo e do moderno foi o “nariz de cera”. Diante do lead e da objetividade, aquilo que era a narrativa mais elaborada e próxima da literatura passou a ser “nariz de cera”, sinônimo de incapacidade, do arcaico, e do atraso intelectual do jornalista. Segundo Phellipy Jácome (2017), essa ideia de uma modernidade agarrada pelas empresas de jornalismo a partir dos anos 1950 é resultado do regime de historicidade do moderno, com um único fluxo temporal. Esse “novo” jornalismo “hierarquiza suas práticas entre ‘desenvolvidas’ e ‘arcaicas’, ‘vencedores’ e ‘vencidos’” (JÁCOME, 2017, p. 130). Esse autor chama atenção ao fato de que o consenso em torno da história sobre a modernização do jornalismo brasileiro trata de “[...] uma aceleração rumo ao progresso, bem como um combate explícito que cria vencedores (os modernos) e os vencidos (aqueles ultrapassados que, uma vez superados, já não existem ou, pelo menos, não deveriam existir mais)” (JÁCOME, 2017, p. 64). Percebemos que é voz corrente na bibliografia oficial da história do jornalismo no Brasil um intenso realce do fato de que os jornalistas, antes dessa modernização, eram seres primitivos, boêmios, com vários empregos e que usavam da condição de jornalista para tirar vantagens. Além disso, Ana Paula Goulart Ribeiro (2007) reforça que um dos pilares da ideia de modernização foi uma narrativa que fixasse o jornalismo do passado, HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 95 vinculado à política partidária, opinativo, doutrinário, irresponsável e pouco empresarial. Recorrer ao arcaico, ao antigo, ao atraso é “imprescindível para o discurso de modernização, na medida em que é ele que autoriza e sustenta o surgimento de mitos fundacionais, passados idealizados e futuros estáticos” (JÁCOME, 2017, p. 130). Ou seja, tem-se uma narrativa de exaltação ao “caos primordial que antecede à instauração da verdadeira ordem pelos heróis fundadores” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 98). A referência das primeiras mudanças concretas foi o Diário Carioca (1928-1965), que passou em 1950 por reformas gráficas e editoriais. Junto a ele, também são lembrados a Tribuna da Imprensa, o Jornal do Brasil e a Última Hora. E as referências para essa “modernização” foram os jornais e empresas de jornalismo dos Estados Unidos. Antes disso, desde a Proclamação da República até a transição dos séculos XIX para XX, a imprensa no Brasil teria como norte imaginário o modelo francês de jornalismo, que seria mais devotado à política, a opinião. A influência francesa também “era facilitada pelo fato de, pelas regras do cartel mundial de agências de notícias que vigoravam então, a agência francesa Havas deter o controle do mercado sul-americano, dentre outros” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 103). Depois da Segunda Guerra, os Estados Unidos iniciaram um protagonismo econômico e político sobre várias partes do mundo, tornando- se referências dos ideais liberais e do sucesso capitalismo. Essas ações tiveram reflexos no Brasil e no jornalismo proposto aqui: Entre 1945 e 1952, por exemplo, seções do setor das comunicações e do governo realizaram um esforço sistemático no sentido de exportar o modelo legal americano relativo à liberdade de expressão (Blanchard, 1986). Na verdade, este movimento já havia sido esboçado durante a Guerra, com a criação do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA) em 1940 (Tota, 2000). Os esforços promovidos pelo OCIAA incluíram financiamentos para viagens de jornalistas brasileiros aos Estados Unidos, dentre os quais Pompeu de Sousa (ALBUQUERQUE, 2008, p. 103). Ao jornalista Pompeu de Sousa, editor do Diário Carioca, é creditada à introdução da “modernização” da imprensa no Brasil, graças à importação do modelo estadunidense, com o uso do lead, do copy desk, a separação da opinião da notícia, entre outras “novidades”. Essas mudanças visíveis, da ideia de superação da política pela técnica tiveram reflexos no próprio conceito de jornalismo e asseguraram as várias camadas invisíveis em torno da ideia de referência. A historiografia trata esse período como o da mudança para uma imprensa empresarial, da informação com “profissionalismo”, “objetividade”, “imparcialidade” (RIBEIRO, 2007). Jornais que acolheram o “modelo HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 96 moderno de fazer jornalismo” deram início a uma ampla campanha autorreferencial cotidiana para tentar convencer que praticavam um jornalismo sério, profissional, de qualidade, isenção, mediação e fiscalização dos poderes, agindo, assim, como guardião do interesse público, da democracia e da liberdade. Essa é uma nítida retórica narrativa, quase mítica, sobre a imprensa, de modo especial no Brasil. Reafirmamos que isso não implica desprezar as transformações tecnológicas que ocorreram no jornalismo brasileiro nessa fase, com a importante atualização da indústria gráfica, mas as mudanças eram mais profundas do que ornamentais, porque as transformações nas superfícies buscam manter/consolidar o controle dos modos de pensar e fazer o jornalismo nas redações a partir da lógica dos valores do capitalismo. E isso podemos perceber a começar pela própria condição de importação do modelo que deveria ser seguido. Ou seja, as referências de nossos “jornais de referência” foram, historicamente, tomadas a partir do Outro desejado, o da metrópole, da Europa e, principalmente, dos Estados Unidos, com seus valores, imaginários e retóricas. Queremos dizer, assim, que o fio de nossa colonialidade também se constitui nessas referências jornalísticas. Nesse sentido, é fundamental questionar essa modernização do jornalismo no Brasil, como fizemos em alguns apontamentos anteriores, ressaltando que essa ilusão e retórica em torno do moderno produz um regime de visibilização repleto de ornamentos técnicos, de expressões importadas para encenar um “novo” que, na prática, reforça os valores e interesses da elite nacional e que vinham da Casa Grande, do Brasil Colônia. Para Nuno Manna (2016, p. 184), esses discursos reiterados de modernização estavam “fortemente amparados na atualização de estratégias utilizadas no passado”. Vimos que a historiografia oficial festeja a importação, no Brasil dos anos 1950, de um modelo estadunidense de jornalismo. Essa “revolução” no fazer do jornal teria recebido no Diário Carioca a completa e total adesão. Rapidamente, contra a história, essa modernização se espalhou por toda grande imprensa brasileira. Entretanto, se buscarmos dados sobre essa movimentação, em especial das transformações no jornalismo norte- americano, perceberemos certo equívoco em se reivindicar uma associação com o “novo jornalismo” no Brasil nos anos 1950. Michael Schudson (2010) diz que umas das primeiras grandes reformas da imprensa estadunidense ocorreram em 1830, com a chegada do penny press, os jornais de um centavo. Esses periódicos produziam notícias curtas, com mais atenção a casos cotidianos, empregando a ideia de objetividade, esquivando-se da opinião e do partidarismo. As empresas dos penny press estariam mais voltadas para o mercado e HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 97 esse autor sintetiza esse período como o que “levou ao triunfo da ‘notícia’ sobre o editorial e dos ‘fatos’ sobre a opinião” (SCHUDSON, 2010, p. 25). No que pese à incorporação dessa perspectiva histórica, a questão é que esse modelo de jornalismo norte-americano é dos anos 1830, cujos princípios foram importados pelo Brasil como um símbolo de modernização de nossa imprensa –e isso mais de 120 anos depois! Também defende Jácome (2017, p. 106) que se faz necessário “repensar criticamente a proposição linear de uma ‘importação do modelo americano’ como base da modernização dos jornais brasileiros”. Essa discrepância reforça a hipótese da construção de uma retórica, nas empresas no Brasil, que objetiva, em um mesmo movimento, realçar visibilizações que as nomeiem como de referência e modernas, mas, para isso, fortalecendo as invisibilizações que assegurem uma experiência de aprendizados sobre os valores mais gerais que cultivam. Mesmo sem reconhecermos que a partir dos anos 1950 ocorreram mudanças no jornalismo brasileiro, com ou não influência americana dos anos 1830, poderíamos pensar em uma espécie de industrialização tardia, acentuando a melhoria das tecnologias de impressão, uso do computador, dos gravadores, dos telefones, o que não implica necessariamente modernização, porque, na prática, a roupa nova e importada cobria um corpo velho e autoritário. Na realidade, tanto nos Estados Unidos do século XIX, quanto no Brasil do XX, a nomeada “modernização” do jornalismo fortaleceu ideologicamente as empresas como agentes políticos e econômicos que surfavam na onda do moderno para agir e buscar influenciar socialmente, sendo referências do visível e do verdadeiro. Os donos desses negócios ampliaram suas ingerências sobre poderes públicos, as instituições e as grandes empresas privadas: liberdade ampla e irrestrita para o capital, privilégios para os donos dos meios de produção, redução do Estado, controle e punição dos mais pobres, isto é, esses e outros valores estavam nas entrelinhas dessa modernização jornalística. Podemos perceber, assim, que essa “modernização” jornalística no Brasil, mesmo que tecnologicamente tardia e deslocada da história a que diz se referir, é autoritária. Essas condições fazem Albuquerque (2010) intitular esse movimento de “modernização autoritária”, por conta da percepção da própria elite nacional de que a sociedade em que vive é inferior, atrasada e periférica em relação às metrópoles econômicas mundiais; e a crença e a defesa dessa mesma elite de que a superação desse atraso, o caminho do moderno, somente era possível com total liberdade ao capital e a imposição da ordem, com a domesticação punitiva dos pobres e, em muitos casos, com a eliminação deles. De forma identitária, o Outro desejado, o estrangeiro dos países mais ricos continuava a ser a HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 98 referência para uma elite brasileira, com forte herança e valores coloniais, que, a partir daquele momento, se empenhava e dava direção às mudanças, à modernização, inclusive da imprensa, fundamentalmente, para que nada mudasse. “A história da modernização da imprensa no Brasil se conecta intimamente com a composição de projetos de país e de propostas de ordenamento histórico” (MANNA, 2016, p. 197). Salientamos, porém, uma discordância pontual com a expressão “modernização autoritária” de Albuquerque (2010), porque não conseguimos compreender como um modelo autoritário pode se associar ao moderno. O que tivemos foi a introdução dos processos tecnológicos na produção jornalística, além do estabelecimento de regras, modos, práticas, procedimentos que transformaram o jornalismo em um negócio industrial. Esses ajustes, contextualmente tecnológicos nas estruturas empresariais no Brasil, mantiveram e reforçaram os valores da notícia como mercadoria e os controles políticos nas redações. Ou seja, a utilização do modelo de jornalismo estadunidense não passou de uma modernização encenada, com reflexos diretos na própria ideia de jornalismo no Brasil, na festejada ideia de referência. O importante, nesse momento, é destacar que o mito da refundação da imprensa no Brasil a partir dos anos 1950 e que se estende até agora tem uma forte orientação autoritária, “de que o jornalismo que se pratica em um determinado país (ou região) sofre de uma severa defasagem em relação ao que se pratica em outros países ou regiões, e propõe uma abordagem do tipo ‘revolução vinda de cima’ para dar conta do problema” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 105). Assim, a importação do modelo norte-americano de jornalismo tornou-se referência no Brasil e se espalhou pela grande maioria das empresas de imprensa, a exemplo da Folha de S.Paulo, do Jornal do Brasil, da Tribuna da Imprensa, de O Globo, entre outras. Essa modernização encenada do jornalismo nacional garantiu a manutenção e naturalização das relações de poder vindas do Brasil Colônia, ou seja, é isso que estamos chamando de colonialidade jornalística. Entendemos que essas inovações tecnológicas se revelaram como elementos de um potente sistema de controle sobre a atividade jornalística, que limitavam os raios de ação dos repórteres. A modernização encenada limpava as redações, as pautas e os textos com perspectivas mais críticas e sufocava as denúncias sobre as mazelas urbanas e rurais produzidas pelo capital e pelos governos, isto é, ampliava as camadas de invisibilizações. Reforça Albuquerque (2010) que o discurso de modernização do jornalismo no Brasil não significou o compartilhar de novos valores para ampliar a cobertura jornalística. Ao contrário, houve a acentuação subjetiva da ideia de “competência técnica” em HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 99 detrimento da autonomia do trabalho dos jornalistas. Esse autor chega a suspeitar que ocorreu uma espécie de acordo não escrito entre donos de jornais e alguns jornalistas comunistas para que fossem assegurados os seus postos de trabalhos “em troca de manterem a disciplina nas salas de redação e cultivarem relações de lealdade com seus chefes” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 109). Com a padronização industrial do modo de fazer jornalismo (com os manuais de redação) importada dos Estados Unidos, essa possibilidade parecia perfeitamente exequível. Do ponto de vista concreto, objetividade, lead, copy desk, profissionalismo, independência, imparcialidade, não passaram de ornamentos luminosos dessa modernização encenada, que colocaram em invisibilização as profundas e históricas relações políticas e econômicas da imprensa brasileira de referência. Para Jácome (2017), a década de 1950 trazia a sensação de ruptura entre o velho/ passado e o novo/moderno, mas que, na verdade, representava o apagar de vários aspectos que estavam na constituição dos jornais, “além de instituir claramente a reflexão de um único jornalismo desejável, cuja gênese poderia ser encontrada nos Estados Unidos” (JÁCOME, 2017, p. 12). A historiografia oficial de modernização do jornalismo brasileiro, cuja base era importação do modelo estadunidense de jornalismo a partir dos anos 1950, [...] congela relações e elimina disputas, resistências e diálogos, num intento de cortar as arestas que compõem a história tanto do jornalismo produzido lá quanto daquele que, até então, supostamente vinha sendo produzido aqui. Isso em favor de uma origem mitológica, didática, pretensamente revolucionária e purificada (JÁCOME, 2017, p. 64). Assim se constituíram “as referências” dos nossos jornais de referência e que foram sendo disseminadas com pouca resistência e poucos olhares críticos. Para Ribeiro (2007), foi a partir dos anos 1950 que os jornais, em especial, desenvolveram um discurso de que julgavam estar socialmente autorizados a dizer e mostrar o mundo, em uma aura de realidade. Essa autorreferencialidade se tornou parâmetro de qualidade, objetividade, verdade para a audiência. Lembremos que pouco mais de 10 anos da instrução do modelo de modernização encenada vindo dos Estados Unidos, o Brasil foi afligido por violenta ditadura civil-militar. Como o “moderno jornalismo brasileiro” se comportou diante desse cenário de censura, violência, torturas e ataque aos direitos e as liberdades individuais e coletivas? O que se viu foi que as “modernas” técnicas importadas do jornalismo serviram para apoiar as repressões do regime sob a alegação de que o Estado brasileiro estava buscando intervir HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 100 demais na economia e abria espaço para uma “política sindicalista”, com ações (reformas de base) que comprometeriam o capital e os outros valores e interesses da elite nacional e seus tentáculos internacionais. Ou seja, “de um lado, a modernização nos leva a ideia de um passado superado; de outro, a mitificação sugere a retomada dos antigos paradigmas como solução de uma suposta crise de valores” (JÁCOME, 2017, p. 54). A modernização encenada do jornalismo brasileiro, com a ditadura civil-militar, deixou à mostra parte de suas raízes mais autoritárias e de herança colonial. Ao grafar a ditadura iniciada em 1964 como “civil-militar”, não retiramos, em hipótese alguma, o peso, a força e as responsabilidades maiores e diretas de comando dos militares. Entretanto, é preciso jogar luzes históricas também na participação fundamental de personalidades e de organizações civis no golpe, na ditadura e na sua sustentação. E foram exatamente essas ações de apoio e participação que grande parte das estruturas empresariais dos jornais e outros media tiveram no período ditatorial. Talvez seja importante acentuar com mais ênfase que os donos dos jornais, da imprensa, que eram membros da elite e nomeados como liberais, sempre tiveram pavor das classes populares, entendidas como perigosas e obstáculos ao progresso e, por isso, sempre cobraram do Estado ações de controle e punição sobre a ralé, os debaixo. A modernização encenada do jornalismo brasileiro era autoritária porque aprofundava a lógica da dominação social marcada pela relação de mando/obediência, de superior/inferior, de rico/pobre, de branco/negro. Reforça Zamin (2014) que as empresas de jornalismo que se nomearam de referência, e assim acabaram sendo conhecidas, são histórica e ideologicamente conservadoras, gozando de prestígio. “Além de exercerem uma supremacia mercadológica, em termos de mercado publicitário, o são também em termos comunicacionais, enquanto referência informativa das elites” (ZAMIN, 2014. p. 936). Os jornais tidos como de referência tornaram-se atores políticos influentes por conta de serem potentes mobilizadores tecnológicos e vozes propositivas dos valores do capitalismo apresentados à experiência jornalística. Os jornais continuam “vendendo” informações como notícias, mas também passaram a atuar como grandes empresas de lobby político, econômico e cultural. Elas são negócios, assim como bancos e empresas multinacionais que atuam no mercado financeiro internacional. Também estão envolvidas com agronegócio, comércio, indústria, tecnologias, com os serviços. Muitas empresas de jornalismo, jornais, emissoras de rádio e TV, portais na Internet têm participações em conglomerados de telecomunicações internacionais, agem no entretenimento, realizam parcerias com outras empresas de comunicação que, em tese, seriam suas concorrentes. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 101 Um dos resultados da modernização encenada iniciada nos anos 1950 foi a transformação do jornalismo em commodity 21 global e a confirmação de sua agência que busca influenciar cada vez mais com poder de decisão na política e na cultura, nutrindo, realimentando os valores mais autoritários de nossa herança colonial, porém, encenando modernidade. Luís Felipe Miguel (2002) afirma que as empresas de jornalismo não são canais neutros, nem penetras a perturbar a política, nem os barões da mídia do início do século XX, que usavam das chantagens explícitas como modo de circular pela elite dominante. Hoje, elas “são agentes políticos plenos e, com a força de sua influência, reorganizaram todo o jogo político” (MIGUEL, 2002, p. 180). Assim, é necessário enxergar os jornais como instituições e empresas, atores sociais, políticos, econômicos e culturais que buscam reforçar a retórica de referência social, de porta-vozes da democracia e do interesse público, mas que esfumaçam as lógicas do capital e as mais violentas relações de poder. Em resumo, podemos dizer que as grandes estruturas empresariais da imprensa no Brasil assumem sua colonialidade quando adotam modelos importados das metrópoles para o estabelecimento do jornalismo de referência nacional. O último parâmetro que foi e ainda é utilizado teve início nos anos 1950, e se baseia nas alterações da imprensa estadunidense dos anos 1830. Esse modelo deixava mais nítidos os jornais como empresas e sua ênfase no mercado. No Brasil, ele serviu para uma modernização encenada, para manter as relações autoritárias, com maior controle sobre as atividades dos jornalistas, limitando a política aos interesses do capitalismo mundial. Essa retórica de modernização padronizou os modos cotidianos de defesa e de promoção das lógicas internacionais do capital, onde a elite nacional sempre buscou transitar. Dessa forma, ao tratarmos da Folha de S.Paulo e de O Globo, a seguir, estaremos discutindo suas referências para a construção dos regimes de visibilização que apresentam. 3.2 Folha de S.Paulo: trajetória política em defesa do capital O jornal Folha de S.Paulo nasceu oficialmente em 1º de janeiro de 1960. Ele é fruto da fusão de três outros jornais: Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. Desses, a Folha da Noite era o principal e mais antigo, tendo sido criado em 19 de fevereiro de 1921 por Olival Costa, Pedro Cunha e outros jornalistas. Ao contrário de parte da historiografia da imprensa no Brasil, propomos perceber que a Folha de S.Paulo tem uma trajetória política e histórica coerente, e que não começou 21 É uma mercadoria que tem importância mundial e seu preço é negociado nas bolsas de valores e determinado, em tese, pela oferta e pela procura internacional. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 102 em 1960, como muito se informa, mas vem antes, especialmente com a Folha da Noite. Esse jornal foi criado graças aos significativos financiamentos do principal barão da imprensa brasileira nos anos 1920, Júlio Mesquita, proprietário de O Estado de S. Paulo. Olival Costa e Pedro Cunha, donos da Folha da Noite trabalhavam em O Estado. Conforme diz Gisela Taschner (1992), esse novo jornal surge dentro das estruturas industriais e com o financiamento de Júlio Mesquita, de O Estado. . Ao contrário de O Estado, a Folha da Noite tinha vocação mais urbana, voltada às questões mais do cotidiano das cidades, do comércio e dando ênfase ao início do processo de industrialização paulista. As motivações jornalísticas da Folha da Noite eram regidas pelas vozes ideológicas de um liberalismo autoritário, para uma casta da elite nacional, das ideias de progresso e desenvolvimento industrial, e das grandes empresas. Para isso, o jornal fazia campanhas de limpeza social e de urbanização, de apagamento do passado do país, e da abertura do Brasil ao mundo civilizado, nomeadamente os países ricos da Europa, como França, Inglaterra e, principalmente, aos Estados Unidos. O jornal de Olival Costa e Pedro Cunha tinha uma linha política nítida, uma defesa econômica clara e orientava-se ao mercado. O perfil da Folha da Noite não contrariava O Estado de S. Paulo, que era um jornal mais conservador, voltado à aristocracia rural, aos grandes latifundiários, aos partidos mais tradicionais e dominantes da República do “Café com Leite”. O financiamento de Júlio Mesquita, de O Estado, para a Folha de Noite foi uma ação movida por interesses de classe, em uma espécie de associação urbano-rural das elites do país. A Folha era os olhos da oligarquia rural sobre o mundo urbano. Vale destacar que nos anos de 1920 existia uma efervescência política nas cidades, especialmente em São Paulo, em razão do início da industrialização. Havia um debate entre correntes anarquistas, comunistas e socialistas, e os poderosos seguimentos mais tradicionais e majoritários que defendiam a ordem, o progresso e, alguns, o nacionalismo. Nesse último flanco conservador, autoritário e patronal, estavam os jornais como O Estado de São Paulo e a Folha da Noite, que, além de promover defesas dos grandes latifúndios e do capital, da indústria e do comércio, também enfatizavam teorias racistas e as lógicas da herança colonial. Enquanto O Estado voltava-se à defesa e promoção das oligarquias rurais, a Folha da Noite encaminhava-se para influenciar os debates urbanos, especialmente sendo um agente a enfrentar a politização dos movimentos operários. Segundo Taschner (1992, p. 42), a Folha começa a produzir notícias mais curtas, com ilustrações e até tiras de humor, HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 103 além de reduzir o preço da capa, transformando a notícia em mercadoria, em “um objeto típico da Indústria Cultural”. Isso não implica no fim da política partidária. Ao contrário, o jornal se distanciava visualmente da elite aristocrática rural, abrigada principalmente em O Estado, mas a lógica de defesa do grande capital e os valores que ele agregava mantinham- se. De alguma forma, a Folha buscava influenciar os eleitores da crescente classe média urbana e orientar o operariado, afastando-o das ideias socialistas. O mercado livre, a defesa da iniciativa privada e outros valores do capital exigiam uma política partidária alinhada a esses interesses. O resultado desse processo foi, quatro anos depois do sucesso da Folha da Noite, o lançamento da Folha da Manhã 22 . Para Carlos Mota e Maria Helena Capelato (1981), esse segundo jornal, apesar da mesma linha política da Folha da Noite, chegava com uma proposta mais evidente possível: ser um jornal para a elite do país. Essa intenção concorria com o Estado de S. Paulo. Enquanto a Folha da Noite aproximava-se da classe média e até de faixas populares, a da Manhã dialogava com grandes industriais e latifundiários, atendida “a um público mais refinado” (MOTA e CAPELATO, 1981, p. 28). Há um anúncio recorrente na capa desse novo jornal que revela a nitidez da sua linha política: “Fazendeiros! O seu jornal é a Folha da Manhã”. Segundo seus fundadores, as Folhas deveriam ser a “escola de civismo”, representar a sociedade e cobrar dos governos. A sociedade que diziam tutelar era a elite paulista e a classe dirigente do país, um tipo de “burguesia afazendada” (MOTA e CAPELATO, 1981, p. 3). Ou seja, esses jornais jamais colocaram em xeque os interesses político-econômicos dos mais ricos, buscando sempre “angariar simpatias dos cafeicultores para a causa da oposição, procurando mostrar que os governos do Estado e da Federação são grandes e eficientes conspiradores contra a grandeza econômica do Brasil” (MOTA e CAPELATO, 1981, p. 37). A linha política dos dois jornais era direta e objetiva, diferente do que mostra parte da historiografia, em que as Folhas são tratadas como aventura voltada, unicamente, para atender o mercado consumidor de informações, reduzindo ou até mesmo apagando as marcas dos conluios políticos e econômicos. As Folhas estavam tão alinhadas aos interesses da elite paulista, com os valores de liberdade para o grande capital, a redução do Estado e não intervenção na economia, que, com o Golpe de 1930, sob o comandado de Getúlio Vargas, elas se tornaram panfletos 22 Mota e Capelato (1981) registram que, além de Olival Costa e Pedro Cunha, também colaboraram para a Folha da Manhã: Antônio dos Santos Figueiredo, Mariano Costa, Monteiro Lobato, Paulo Duarte, Nicolau Ancona Lopez, Ticiano de Oliveira, Léo Vaz, Gastão Barros, Antônio de Pádua Nunes. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 104 de políticos da oposição e acabaram sendo fechadas pelo governo em 24 de outubro de 1930. O mundo passava por forte crise capitalista, iniciada em 1929. O liberalismo era questionado e movimentos políticos ultranacionalistas avançavam para enfrentar o comunismo da União Soviética. No fundo, as Folhas, coerentes com o projeto da elite liberal, reagiam a Vargas, que indicava, com o golpe, a forte intervenção do Estado na economia, o que atrapalharia o curso do capital internacional no país. Todavia, as Folhas deixaram de circular somente por alguns dias, sendo compradas por Octaviano Alves de Lima, um poderoso oligarca do café. Sob o comando desse latifundiário, as duas Folhas mantiveram sua linha política, mas com direcionamentos nítidos: apoio ao Governo, radicalização editorial anticomunista, redução de temáticas urbanas, intensificação da pauta agrária com maior atenção ao café e ao seu comércio. Para Mota e Capelato (1981), Octaviano dava mais voz aos latifundiários, influenciando o governo, em razão da crescente atenção à industrialização e desprestígio das elites rurais. As Folhas mantinham a lógica da defesa do liberalismo, mas agora com ênfase agrária, ampliando o reacionarismo contra qualquer pauta com um viés mais popular e, até mesmo, contra os interesses conservadores das classes médias urbanas. Octaviano Alves manteve as Folhas da Noite e da Manhã durante 15 anos, de 1930 até 1945. Com uma pauta excessivamente rural em um país que avançava na urbanização, o que implicava em reformas e gastos com novas máquinas de impressão, ele resolveu vender os jornais. O comprador foi José Nabantino Ramos, advogado e tributarista paulista. Junto com ele, apareceram na sociedade Clóvis Queiroga e Alcides Meireles, este último representante da elite agrária. Para Cláudio Abramo (1988, p. 25), Nabantino era “testa de ferro de Chiquinho Matarazzo, para fazer frente aos Diários. Assis Chateaubriand fazia campanha contra Matarazzo, porque quis tomar dinheiro dele e não conseguiu”. O “conde Matarazzo” era um dos mais poderosos empresários do país, cunhado de Clóvis Queiroga e foi dele o dinheiro para a compra das duas Folhas. O fato é que Nabantino, a partir de abril de 1945, levou as Folhas a reduzirem sua pauta rural, manteve a luta contra o comunismo e retomou as temáticas alinhadas aos interesses das classes médias e da alta burguesia industrial. Com frequência, as Folhas passaram a utilizar expressões em suas coberturas, como: “velha tradição de imparcialidade, não defenderão partidos políticos [...] defenderão, intransigentemente, o regime democrático, em perfeita ressonância com a índole e os sentimentos brasileiros” (TASCHNER, 1992, p. 61). Apesar de jurar que se afastaria da política, o que se viu foi HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 105 uma intensificação das pautas políticas 23 . Na historiografia da imprensa brasileira, o período de controle de Nabantino sobre as duas Folhas é caracterizado como o da transformação dos jornais em empresas, principalmente com a introdução de regras para os jornalistas. “O ‘Programa de Ação das Folhas’, de 1948, constitui, antes de tudo, um roteiro de trabalho para bem cumprir a missão” (MOTA e CAPELATO, 1981, p. 104). Na prática, o que se desenvolveu foi um forte controle e uma intensiva censura sobre a produção das notícias, que foram mascaradas pela retórica do “bem cumprir a missão”. Com muito mais recursos financeiros, voltadas aos grandes interesses econômicos nacionais e internacionais, e alinhadas à política do governo central, as Folhas cresceram e possibilitaram que, em 1948, Nabantino comprasse a Rádio Excelsior. O jornalismo já era um negócio político a dar grandes lucros. Taschner (1992. P. 71) não tem outras palavras para caracterizar esses jornais, senão estas: “deixam [as Folhas] de ser porta-voz de um setor de classe específico para se tornarem a porta-voz da classe dominante em seu conjunto e do modo de produção capitalista em uma versão não selvagem”. No ano seguinte à compra da rádio, Nabantino lançou a Folha da Tarde, que mantinha as mesmas linhas política e econômica das outras Folhas. De 1949 até 1960, as três são mantidas, dando grandes lucros, mas as exigências de atualização gráfica e a implantação do modelo administrativo de jornalismo dos Estados Unidos, que impunham empresas padronizadas, controladas e enxutas, resultaram na fusão das Folhas, em janeiro de 1960, fazendo nascer, assim, a Folha de S.Paulo. Essa mudança não alterou, em hipótese alguma, a política editorial do grupo. É nesse momento que o Plano de Ação se transforma no primeiro manual de redação da Folha, que reforça a padronização e a linha empresarial da política editorial do “novo” jornal. Revelam Mota e Capelato (1981) que, apesar do grande avanço da economia mundial no início dos anos 1960, a prosperidade financeira encontrou no Brasil uma política de altos índices inflacionários. Apesar da fusão das Folhas, a empresa passou a enfrentar dificuldades, especialmente com o valor de importação do papel. Percebendo a oportunidade, em agosto de 1962, Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, homens que conheciam os mercados de capitais, compraram a Folha de S.Paulo. Frias já tinha trabalhado, em 1948, como diretor comercial do jornal. Caldeira era empresário da construção civil. Eles promoveram mais reduções de custos e demissão de jornalistas. O fato é que, estabelecendo acordos políticos e econômicos com vários outros atores 23 Nabantino Ramos tinha relações pessoais com Costa Neto, ministro da Justiça, e com o próprio presidente da República, Eurico Gaspar Dutra (TASCHNER, 1992). HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 106 nacionais e internacionais, eles levaram esse jornal a “alcançar o estágio de um conglomerado da indústria da comunicação” (TASCHNER, 1992, p. 123). Além de acordos com empresas de transportes para rápida distribuição dos jornais, os donos da Folha passaram a comprar gráficas 24 e jornais que enfrentavam crises. A ideia era dominar o mercado do impresso. Em 1964, Frias e Caldeira compraram o Última Hora e o Notícias Populares e se tornaram sócios de um terço da TV Excelsior, de São Paulo. Sobre esses jornais: o primeiro tinha sido fundado por Samuel Wainer, nos anos 50, com o apoio e o financiamento do Governo Vargas, e tinha influência política no país; o segundo era dono de enorme circulação junto às classes populares, explorava o sensacionalismo, era ligado a UDN, fortemente anticomunista e apoiou o golpe militar (MOTA E CAPELATO, 1981). Ao anunciar reformas de base com forte ação do Estado na economia, ao aproximar-se de movimentos sindicais e ao acenar diplomaticamente aos países comunistas, o presidente João Goulart deu a senha para que as grandes empresas de jornalismo no Brasil convocassem as forças armadas para intervir no Estado. Havia uma campanha cotidiana em quase todos os meios da “necessidade” do golpe, para acabar com a “baderna”, “impedir o comunismo”, “regenerar a economia”, para o “respeito à iniciativa privada” (MOTA E CAPELATO, 1981). A Folha de S.Paulo, O Globo, o Estado de S. Paulo, o Jornal do Brasil e outras grandes empresas ajudaram na construção, no apoio e na manutenção do golpe e da ditadura civil-militar no Brasil. Na prática, mais uma vez, a Folha manteve a sua coerência histórica classista, a de ser porta-voz dos interesses do mercado, da grande indústria e do comércio, do capital financeiro cada vez mais internacionalizado. Afirma Bernardo Kucinski (2003) que as grandes empresas de jornalismo no Brasil noticiavam “notas plantadas” pelos órgãos de repressão da ditadura sobre atentados, fugas, mortes de presos, todos tratados como comunistas e terroristas. Esse autor ainda lembra que muitos cartazes contendo o anúncio “Procuram-se terroristas” eram impressos nas gráficas da Folha de S.Paulo. Para ele, a cumplicidade entre a grande imprensa nacional e o sistema repressivo da ditadura era tão grande que o governo nem precisou criar um departamento de propaganda, como fez o presidente Getúlio Vargas na ditadura do Estado Novo iniciada em 1937. Por exemplo, quando algum jornal internacional divulgava notícias sobre as torturas e assassinatos políticos no Brasil, os meios nacionais 24 A empresa adquiriu a Companhia Litográfica Ipiranga, uma grande empresa fundada por alemães e que se encontrava quase falida. Incorporada pela Folha, ela juntou-se à Impress, que já era do jornal desde 1962. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 107 “escreviam editoriais negando as acusações e atribuindo-as a uma intenção de difamar o regime” (KUCINSKI, 2003, p.79). Além de comprar gráficas, jornais, editoras, a Folha de S.Paulo relança a Folha da Tarde, que teria a intenção mercadológica de competir com o Jornal da Tarde, outro produto do O Estado de S. Paulo. Entretanto, para Kucinski (2003), a Folha da Tarde era o braço mais nítido da ação em prol da ditadura. Segundo Abramo (1988, p. 87), “o núcleo policial da Agência Folha” foi deslocado para a Folha da Tarde, transformando esse jornal no “mais sórdido do país”. São inúmeros os relatos de encontros de donos de jornais, entre eles Octávio Frias, com generais que lideravam o golpe e a ditadura. No período da repressão, a Folha esteve alinhada aos governos militares, reforçou-se financeiramente e ampliou sua “modernização”, inclusive com “novas” regras na redação que, para Kucinski (2003), representaram uma pedagogia para a autocensura. Tudo isso se ajustava à modernização encenada da imprensa brasileira, e que era profundamente autoritária – ponto de que tratamos no item anterior. Afirma esse autor que, no fundo, a chamada grande imprensa não esboçou reação à censura e não havia solidariedade aos veículos que sofriam censura prévia. Nesse sentido, a autocensura era uma regra que atendia muito bem ao regime e, principalmente, aos donos dos jornais. O amplo apoio à ditadura e a censura denunciam que os jornais nunca foram liberais, mas mercantis coloniais, autoritários. A relação do jornalismo nacional com a ditadura “foi possível pelo caráter essencialmente antiliberal da burguesia proprietária dos jornais, por sua afinidade com os objetivos gerais da repressão [...] e por interesses mercantis” (KUCINSKI, 1998, p. 61). Nos anos de 1980, a Folha de S.Paulo tornou-se o jornal de maior circulação do país. A empresa controlava ainda três jornais, gráfica, instituto de pesquisa, e seu faturamento, que foi de 121 milhões de cruzeiros em 1981, totalizou, em 1990, em 276 milhões (TASCHNER, 1992). Ao perceber tensões no governo militar entre a ala nacionalista, considerada mais reacionária e majoritária, e outra desenvolvimentista, alinhada aos interesses do capital internacional, a Folha de S.Paulo reconheceu-se, historicamente, filiada à segunda. Em 1983, o jornal defendeu eleições diretas para presidente como uma forma do Brasil se inserir no mercado mundial. A Folha buscava orientar e se envolver em movimentos que reivindicavam uma sociedade livre, onde o capital – internacional – pudesse circular sem maiores interferências do Estado, onde o mercado determinasse as regras, onde a iniciativa privada fosse o centro. A opção pelas “Diretas Já!” objetivava transformar a Folha em referência, no guardião da democracia, HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 108 influenciando diretamente nos destinos da redemocratização do país, de forma a garantir os avanços e ganhos do capital, além de apagar sua ampla colaboração com a ditadura. Abramo (1988, p. 88) diz que “Frias decidiu mudar a Folha basicamente por razões de competição de mercado [...] percebeu então que seu jornal só poderia prosperar num regime democrático, e por isso adotou a linha combativa”. O fato de a Folha de S.Paulo ter sido uma defensora das eleições diretas, mesmo com a derrota da emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional, possibilitou-lhe ganhar força e influência tanto políticas quanto econômicas, inclusive junto a certa intelectualidade do país, reforçando seu status de jornal de referência, buscando apagar toda a sua cumplicidade com a ditadura. O jornal, ao tempo em que reformulava os controles na redação, também fazia campanhas de autorreferencialidade como o “jornal da abertura democrática”, “imparcial”, “apartidário” (KUCINSKI, 1998). Na prática, a Folha mantinha a retórica de “profissionalismo” e de “independência”, ao mesmo passo que se movia por grandes interesses econômicos e políticos do mercado nacional e internacional. A partir dos anos 1990, a lógica voltada ao capital estrangeiro ganhou mais fôlego e a Folha de S.Paulo engajou-se em negócios na internet, criando o provedor e portal de notícia UOL, em uma articulação com o Brasil Online, do grupo jornalístico Abril. Em 1992, Octávio Frias comprou a parte da sociedade de Carlos Caldeira. Para Arbex Júnior (2002, p. 141), não existiam mais dúvidas de que a Folha tinha mergulhado profundamente na lógica do mercado, tendo como espelho as grandes empresas de mídia dos Estados Unidos e da Europa, deixando clara a “adoção do discurso-para-o-mercado com estratégia empresarial e editorial”. Para esse autor, a Folha “aparecia, aos olhos da sociedade, como porta-voz da democracia, ao mesmo tempo em que, internamente, praticava uma política autoritária de rígido controle industrial e ideológico” (ARBEX JÚNIOR, 2002, p.144). Otávio Frias Filho assumiu a redação da Folha, implantou o Projeto Folha e apresentou um novo Manual da Redação, com maior controle sobre os processos de produção do jornal, e reforçou a autorreferencialidade sustentada pelo marketing, operações que não permitiam ver nitidamente as relações mais íntimas com os poderes políticos e econômicos. A ideia era rejeitar o antigo, o atrasado, o passado, inclusive foram demitidos jornalistas experientes, e, assim, se anunciava o novo. “Do marketing da distribuição pelos ônibus, a Folha passou ao marketing da imagem, pelas Diretas Já, até chegar, naturalmente, ao marketing da afetividade” (KUCINSKI, 1998, p. 75). Essa retórica, para Arbex Júnior (2002), era uma forma de marcar posição política diante do maior concorrente, O Estado de S. Paulo, que tinha posições mais conservadoras. Nos anos HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 109 1990, foi intensa a campanha na Folha contra o tamanho do Estado, recorrentemente taxado de ineficiente e inchado de funcionários que não trabalhavam, em oposição à “eficiência do setor privado”. O jornal reforçava as bandeiras da modernização, privatização, da abertura da economia. Contemporaneamente, a Folha de S.Paulo é um jornal de uma grande estrutura empresarial 25 que envolve além dele, outros impressos (jornais 26 e revistas), serviços de internet, agência de notícias, gráficas, editoras, empresa de distribuição e instituto de pesquisa. A Folha tem sociedades com a Portugal Telecom (internet) e o Grupo Estado (50% da São Paulo Distribuição e Logística). O jornal circula com oito cadernos diários e vários suplementos durante a semana e nos finais de semana. Os cadernos são: Poder, em que traz a cobertura de política nacional; Mundo, com notícias internacionais; Mercado, onde apresenta a conjuntura econômica nacional e internacional; Cotidiano, em que traz temas de segurança, direitos do consumidor, notícias das cidades do país; Ciência+Saúde, com notícias dessas áreas no Brasil e no exterior; Folha Corrida, em que apresenta notas sobre os acontecimentos no país; Esporte, com notícias dessa área; e Ilustrada, que traz cultura e entretenimento. Além dos oito cadernos diários, o jornal ainda tem os seguintes suplementos: Tec, que circula às segundas-feiras, com notícias sobre tecnologia; às terças-feiras, circulam os suplementos o Equilíbrio, com informações sobre saúde, e o The New York Times International Weekly, que traz artigos publicados no jornal norte-americano; às quartas- feiras, circula Comida, cujo tema central é culinária; às quintas-feiras, é a vez do suplemento Turismo, com notícias do setor; e aos sábados, circula a Folhinha, para o público infantil. Aos domingos, a Folha de S.Paulo circula com os seguintes suplementos: Ilustríssima, com cultura; Veículos, sobre automóveis; Carreira e Empregos, com notícias sobre o mercado de trabalho; e Imóveis, que traz notícias do ramo imobiliário e anúncios classificados. Segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC) 27 , o jornal Folha de S.Paulo é líder em circulação diária de jornais impressos no Brasil. Em 2016, foram, em média, 309,7 mil exemplares por dia. Nos dias úteis, foram 306,3 mil. Nos sábados, 323,2 mil e domingos, 329,9 mil. Aos sábados e domingos a circulação da Folha de S.Paulo perde para 25 Cf.: . 26 Jornal Alô Negócios, que circula nos estados do Paraná e Santa Catarina, e o jornal Agora, com circulação em São Paulo, com uma proposta de textos mais curtos e com mais imagens. É considerado pela Folha como um jornal popular. 27 Cf.: www.ivcbrasil.org.br. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 110 O Globo. Os seus leitores se localizam nas faixas econômicas A e B da população e a imensa maioria deles tem nível superior de ensino. 3.3 O Globo: as redes de poderes econômicos e políticos O jornal O Globo, fundado em 1925 por Irineu Marinho, tornou-se a ponta de lança para um negócio empresarial multinacional de comunicação, e que resultou nas Organizações Globo, um dos grupos de mídia que busca exercer grande poder de influência política e econômica. Por conta de sua atuação internacional, produtos dessa organização também são tidos como de referência dos olhares externos sobre o Brasil. Enxergar o jornal O Globo é considerá-lo inserido em uma grande organização, mas como fizemos com a Folha de S.Paulo, também é preciso percorrer parte da trajetória desse periódico para chegar até as Organizações Globo. Apesar de vários esforços críticos, também o percurso histórico desse jornal é marcado por uma narrativa de forte teor oficial, como de resto boa parte da história dos grandes meios no Brasil, porém existe uma série de acontecimentos e registros no próprio periódico que dão a ver suas propostas de regime de visibilização para além da oficialidade e das suas páginas impressas. Antes de lançar O Globo, Irineu Marinho já tinha fundado o jornal A Noite, em 1911. Ele também atuou em outros periódicos da então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, a exemplo de A Tribuna e da Gazeta de Notícias, sendo nesse último diretor geral. Há uma camada invisível profunda em torno dos primeiros passos para Irineu Marinho lançar O Globo em 1925. A historiografia apenas informa que o novo jornal já nasceu grande, com boa equipe e tiragem superior aos 33 mil exemplares diários. Para Sérgio Mattos (2005), não existem dúvidas de que Irineu Marinho recebeu significativas contribuições financeiras de empresários e políticos do Rio de Janeiro para montar e sustentar O Globo, mas nunca se descobriu quem foram, efetivamente, aqueles que empregaram dinheiro nessa empreitada. O que se sabe é que dias depois de lançar o jornal, Irineu morre e o vespertino foi assumido por diretores das áreas financeira e administrativa 28 (MATTOS, 2005). Desde as primeiras edições, O Globo tornou-se uma cartilha moral cotidiana a cobrar progresso, urbanização e limpeza social das cidades mais desenvolvidas. Ao mesmo tempo festejou a iniciativa privada, a industrialização, o livre mercado e classe média consumidora, e as ideias de modernização vindas dos Estados Unidos e da Europa. Para Mattos (2005), sobre O Globo, nunca se teve dúvidas sobre a sua filiação aos interesses 28 Assumiram o jornal: Herbert Moses, diretor tesoureiro; Leal da Costa, diretor-gerente; Costa Soares, secretário; e Euricles de Mattos assumiu a redação de O Globo. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 111 capitalistas, estando estampadas em suas páginas as defesas liberais, a campanha pela limitação dos poderes do Estado, a liberdade irrestrita ao capital, o permanente combate a toda iniciativa que atrapalhasse o curso da ordem e do progresso e da iniciativa privada. Em 1931, Roberto Marinho, filho de Irineu, assumiu a direção de O Globo e essa linha política foi reforçada e ampliada. O jornal buscava ser um agente político e social influente na vida nacional, por exemplo, ele tem uma postura ampla e “virulenta anticomunista, condenando a Intentona Comunista de 1935 e exigindo severa repressão contra os subversivos” (MATTOS, 2005, p. 268). Lembra esse autor que durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), O Globo reagiu a qualquer possibilidade de aproximação do Governo do Brasil com os países do Eixo. Foram impressas edições e mais edições na defesa do amplo acordo com os Aliados, de forma especial, com os Estados Unidos. O Globo, em amplo crescimento na capital da República, buscava agir diretamente influenciando os governos de plantão. Na guerra, chegou a lançar O Globo Expedicionário, edições próprias e exclusivas que chegavam às mãos dos soldados nos campos de batalha. Destaca Mattos (2005) que havia uma grande relação de amizade entre Roberto Marinho e os comandantes do Exército, contatos intensificados ao longo dos anos e que resultaram no crescimento econômico, e na influência política de O Globo. João Braga Arêas (2012) revela que esse jornal sempre apoiou as ações das Forças Armadas nos golpes de Estado no Brasil. Em 1944, Roberto Marinho ganhou a concessão da Rádio Globo, graças aos “bons serviços” prestados, especialmente para políticos da União Democrática Nacional (UDN) e outros políticos alinhados aos interesses econômicos do capital nacional e multinacional (MATTOS, 2005). A UDN era o porta-voz dos banqueiros e das empresas multinacionais no Congresso Nacional. Seguindo a mesma linha, em 1947, O Globo fez ampla campanha pela cassação do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em outras palavras, não há dúvida sobre qual lado político, social e cultural sempre esteve O Globo, e quais valores e interesses lhe moviam, e movem. Além do jornal e da rádio, Marinho também avançava para a editoração. A nova ação era a impressão e distribuição de revistas com histórias em quadrinhos, em um acordo com empresas estadunidenses, em plena ditadura civil-militar. Marinho também começava a mexer com enormes empreendimentos imobiliários. “Ainda nos anos 40, a Rádio Globo fez um pedido de concessão de uma transmissora de TV ao governo Dutra. Este deu resposta positiva, que foi revogada pelo governo Vargas” (ARÊAS, 2012, p. 64)29. E mais: 29 Em razão dos inúmeros serviços prestados à elite nacional, a concessão final da TV Globo foi outorgada pelo presidente Juscelino Kubitschek. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 112 O Globo esteve ao lado de quase toda a imprensa nacional e das entidades ligadas ao capital multinacional e associado na oposição ao governo Vargas. A rádio e o jornal de Marinho estiveram à disposição de políticos da União Democrática Nacional (UDN), em especial, Carlos Lacerda, para desferirem ataques ao governo. O jornal fez forte campanha contra a criação da Petrobrás (ARÊAS, 2012, p. 63). Em 1961, o jornal O Globo começa a ser vendido em quase todo país, ampliando as suas formas de pressão e de influência sobre a vida nacional. O jornal, a rádio e a televisão fizeram parte de uma grande rede, intitulada de “Rede da Democracia”, formada por grandes empresas de jornalismo, partidos políticos, parte da Igreja Católica e empresas nacionais e internacionais. O objetivo da rede era insuflar, convocar e defender o uso das forças armadas para não permitir que João Goulart, vice-presidente da República assumisse a Presidência em razão da renúncia de Jânio Quadros. Goulart era acusado de estar próximo aos comunistas, aos sindicatos de trabalhadores, e de querer interferir na economia com reformas populares. A primeira solução política encontrada foi inventar um parlamentarismo por um período, mas Goulart terminou assumindo a Presidência. Com a posse dele, a rede golpista se ampliou e a narrativa na imprensa era a do medo do comunismo, do fim da democracia e da liberdade, do fechamento das igrejas, etc. Essas notícias se repetiam e tratavam do “perigo vermelho”, da “República sindicalista”. Diversas associações das classes dominantes voltaram-se para a desestabilização e derrubada do Governo Goulart. Nesta frente, participaram os principais órgãos de imprensa, como O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, partidos políticos conservadores, como a UDN, setores da igreja Católica, grupos militares sob orientação da doutrina de Segurança Nacional, com destaque à Escola Superior de Guerra (ESG), e associações empresariais diversas, como a Confederação das Classes Produtoras (Conclap). Grupos ligados às multinacionais – fortalecidos a partir da segunda metade dos anos 50 com a maior abertura ao capital estrangeiro – organizaram o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o Instituto Brasileiro de Ação Democrático (complexo IPES/IBAD), que coordenou uma enorme campanha política, ideológica e militar contra o governo Goulart (ARÊAS, 2012, p. 64-65). O jornal O Globo teve papel destacado no golpe de 1964 e na ditadura. Era um dos porta-vozes impressos da “ordem e progresso”. Na edição do dia do golpe, 31 de março, o jornal estampava na sua primeira página: “Graças à decisão e heroísmo das Forças Armadas, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo a rumos contrários à sua vocação e tradições”. Para o jornal, os brasileiros, com a ditadura que se instalara, estavam “salvos da comunização que celeremente se preparava”. Foi em O Globo que o golpe e a ditadura passaram a ter a narrativa de “revolução democrática”. Apoiar o regime implicava ao jornal, à rádio, à televisão não noticiar às torturas, os HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 113 desaparecimentos, as mortes dos opositores ao golpe e ao regime (ARÊAS, 2012). Não era apenas não noticiar, mas negar os crimes. Durante todo o período da ditadura, o Grupo Globo se expandia, física e economicamente, sustentava os militares, políticos aliados e avançava em grandes acordos políticos e econômicos internacionais, principalmente com os Estados Unidos. Isso transformou esse grupo, onde está o jornal O Globo, ao final desse período, no maior conglomerado de mídia do país. Ressaltamos que o jornal continuava como o principal e influente produto impresso das Organizações Globo. Segundo afirma Carlos Eduardo Lins da Silva (1991), O Globo já era, desde o início dos anos 1950, a primeira empresa jornalística no Brasil a estar firmemente conectada com a política norte-americana, que soube como nenhuma outra aproveitar-se da internacionalização da economia brasileira no Governo de Juscelino Kubitschek. As relações com os Estados Unidos e as Organizações Globo resultaram em ajustes editorais e reforços ideológicos nos produtos jornalísticos, na forma de fazer jornalismo, e abriu a organização para receber volumosos recursos para que pudessem se expandir pelo país. Um dos principais acordos do Globo foi com a empresa norte- americana Time-Life, uma editora de revistas e que tinha canais de televisão nos Estados Unidos. Essa “parceria”, mesmo sendo ilegal segundo a legislação brasileira, rendeu mais de 6 milhões de dólares às Organizações Globo e gerou uma expansão de seus negócios. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito chegou a ser aberta para apurar o então “escândalo Globo-Time Life”, mas o presidente militar, o ditador Costa e Silva arquivou as denúncias. Com os recursos e com a estrutura de telecomunicações dada pelos militares, as Organizações Globo transformaram a emissora de TV em uma rede estruturada para cobrir todo o país, como desejava a elite nacional e seus parceiros internacionais. Para Arêas (2012, p. 72), o “regime militar, empresas transnacionais e Organizações Globo tinham os mesmos interesses e estavam umbilicalmente ligados”. Em plena vigência do AI-5 (Ato Institucional), que fechou o congresso e aumentou o número de prisões e mortes, O Globo festejava o regime militar, a economia, o “milagre econômico”, o “Brasil que vai para frente”, o “povo pacífico e ordeiro”. Segundo Daniel Herz (1989, p. 205), a TV Globo “surgiu perfeitamente integrada ao bloco de poder que instaurou o modelo econômico de desenvolvimento capitalista associado pós-64”. O resultado das íntimas relações entre a Globo, os militares, os políticos e as grandes empresas nacionais e internacionais, durante e depois da ditadura, foi um crescimento sem precedentes para o jornal, a rádio, a televisão, as várias empresas e os HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 114 negócios desse grupo, e que confluíram para a constituição de um dos maiores conglomerados de mídias do mundo (HERZ, 1989). Os novos produtos de comunicação, entretenimento e outros negócios dessa organização seguem um mesmo padrão ideológico, político e econômico, com fio histórico a passar pela criação de O Globo em meados dos anos 1920. Esse impresso tem uma grande importância porque nele se imprimem os fundamentos que orientavam a complexa organização que viria surgir. Em O Globo, estão postos os valores a serem cultivados, tendo por base o capitalismo, e que são propagandeados como princípios universais e únicos. O jornal age, assim, como uma espécie de bíblia moderna, com indicações de ensinamentos morais, identitários, políticos e econômicos para os jornalistas e “colaboradores” da própria organização, e para a população do país, o que não significa que suas propostas postas à experiência serão acolhidas pela audiência. Entretanto, é preciso reconhecer que, mesmo defendendo uma relação experiencial jornalística sem centro, a estrutura empresarial dessa organização busca produzir as condições para um regime de visibilização na tentativa de convencer a comunidade de leitores, por exemplo, de que são necessárias e urgentes as práticas liberais e neoliberais porque elas atendem aos interesses da nação, porque levam o país para a modernidade. Qualquer iniciativa em contrário à livre circulação do capital, que limite a iniciativa privada é apontada como “atrasada”, “antidemocrática”, como “censura” e obra de “comunistas” (ARÊAS, 2012). Lembra Herz (1989) que as relações políticas entre os presidentes da República e a cúpula da Rede Globo eram de tal ordem que Roberto Marinho sempre era consultado sobre as ações que o governo deveria fazer, inclusive sobre as escolhas de ministros, e os rumos da política econômica. Com a crise no seio do regime militar, com o aumento das manifestações populares, das greves e reações contra a carestia, O Globo, percebe a ascensão política do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e passa a influenciá-lo no sentido da condução do fim da ditadura sem traumas, sem povo e sem reivindicações, com o compromisso de apagar uma parte do passado. Por exemplo, O Globo, como toda a rede, ignorou as mobilizações pelas eleições diretas para presidente, ao mesmo tempo em que agiram na eleição indireta de Tancredo Neves (BOLAÑO e BRITTOS, 2005). Lembremos que a ação política da Rede Globo também foi nitidamente vista em muitas outras eleições estaduais e nacionais, especialmente na de Fernando Collor, fabricado como o “caçador de marajás” contra Lula da Silva, o “sapo barbudo” nomeado por Leonel Brizola (ex- governador do Rio de Janeiro), candidato do Partido dos Trabalhadores. HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 115 Em resumo, o jornal O Globo é um histórico impresso de uma organização de mídia que age como se fosse um partido político não-institucional, mas com forças suficientes para, junto com outros atores, tentar influenciar em decisões econômicas, jurídicas e políticas. O Globo é um produto em meio a um conglomerado de mídias e de outros negócios de uma mesma organização. Entretanto, O Globo é o porta-voz mais nítido, mais tradicional, por sua história, do que pensam, querem e agem os donos dessa rede, ou seja, ele é um direcionador ideológico para os demais produtos e para uma parte da sociedade (BOLAÑO e BRITTOS, 2005). Entretanto, como já avaliamos anteriormente, reconhecer a força estrutural de O Globo não implica ceder ao midiacentrismo e desconsiderar que a proposta de jornalismo construída por essa rede está em jogo no espaço da experiência. O poder empresarial desse jornal tem influência significativa no regime de visibilização que propõe, mas ele sozinho não explica as relações que podem ser estabelecidas quando da mobilização para esse regime de crenças e imaginários. Além do jornal como elemento central, as Organizações Globo têm cinco emissoras próprias de televisão aberta, e controlam outras 131 afiliadas pelo país; dominam o segmento de televisão fechada, com canais nacionais e internacionais, e serviços de distribuição; possui a Globo Internacional, que tem acordos com emissoras de quase todo o mundo. Essa organização ainda tem uma grande rede de emissoras de rádio espalhadas pelo país; é dona de amplo sistema de internet, com provedor e produtor de conteúdo; tem agência de notícias e vários produtos impressos, como o jornal Extra, a revista Época e outros 20 títulos segmentados; é dona de editoras de livros, inclusive de didáticos; da Globo Filmes, produção e distribuição; da Som Livre, gravadora e distribuidora; além de atuar no ramo do comércio e serviço com shopping centers, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e no sistema de telecomunicações. O jornal O Globo 30 está dividido em editorias regulares durante a semana: Primeiro Caderno, com notícias da política estadual e nacional, Esporte, Economia e Segundo Caderno, este último sobre cultura. Além disso, o jornal conta com suplementos, e revistas e jornais de bairro. Às quintas-feiras, ele circula com o suplemento Boa Viagem, que trata de notícias sobre o turismo. Às sextas-feiras, traz a Revista Rio Show, uma espécie de agenda cultural da cidade. Às quartas-feiras e aos sábados, o jornal circula com o caderno Carro Etc, com notícias sobre o mercado automobilístico. Aos sábados, também publica o caderno Ela, com a temática feminina. Aos domingos, circula com os 30 Cf. Site do jornal: . HISTÓRIA DOS JORNAIS: LUGAR DE ENTREVER | 116 suplementos: Boa Chance, com notícias de negócios e franquias, cursos, concursos e classificados; Morar Bem, sobre o mercado imobiliário; e a Revista O Globo, com comportamento, beleza, moda, decoração. O Globo traz quarto jornais de bairro: Jornal de Bairro Barra, Niterói, Tijuca e Zona Sul. Apesar de ter sede no Rio de Janeiro, O Globo é, de acordo com o IVC 31 , o segundo impresso no país em número de circulação diária. Em 2016, ele teve uma média de 302, 2 mil exemplares vendidos por dia, perdendo apenas para a Folha de S.Paulo. Nos dias úteis, a circulação de O Globo é de 291,5 mil exemplares; aos sábados, é de 330,1 mil jornais, e, aos domingos, chega a circular com 366,8 mil exemplares, sendo a maior vendagem do Brasil. A maioria de seus leitores se localiza nas faixas econômicas A e B, mas com participação da C. Majoritariamente, sua audiência tem nível superior de ensino. Sugerimos que esses dois jornais são atores políticos, que fazem parte de um sistema de imprensa nascido com vínculos na Casa Grande e para a Casa Grande, atuando na defesa e promoção dos valores econômicos e culturais do capitalismo. As trajetórias históricas de O Globo e da Folha de S.Paulo confirmam um percurso coerente com essas defesas. Todavia, eles constroem um regime de visibilização sobre eles mesmos e sobre o mundo, onde dizem que são referência do jornalismo sério, profissional, verdadeiro e que pautam suas atividades pela defesa da liberdade e da democracia. Como indicamos, em suas histórias existem camadas invisíveis que gritam e denunciam esses interesses em jogo. No próximo capítulo, entramos na última coluna de nossa base teórica: a comunidade. Nele, discutiremos as tensões que envolvem essa questão, principalmente conhecendo e analisando a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). 31 Cf.: . COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 117 CAPÍTULO IV – COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS Em parte devido ao imperialismo, todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas, heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo. [Mas] Esquecidos ou descartados foram os povos coloniais devastados, que, durante séculos, suportaram justiça sumária, uma infindável opressão econômica, a distorção de suas vidas sociais e privadas, uma submissão inapelável em função da imutável superioridade europeia. [...] Frantz Fanon diz: “O colonialismo e o imperialismo não pagaram suas contas quando retiraram suas bandeiras e suas forças policiais de nossos territórios”. (Edward Said, Cultura e imperialismo, 2011) Neste capítulo, vamos tratar das informações fundamentais para nossa pesquisa empírica: os dados sobre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Para nos aproximarmos dela, faz-se necessário refletir sobre a ideia de comunidade no mundo globalizado. É possível pensar em uma comunidade hoje? E em uma comunidade transnacional, como é o caso da CPLP? Quais as tensões identitárias que atravessam esse debate? Apresentaremos um sucinto perfil das nações lusófonas e um resumo histórico sobre elas. Concluiremos o capítulo com uma discussão fundamental, a partir de Roberto Esposito (2005, 2012), sobre communitas e immunitas. Nesse ponto – já adiantamos aqui – , sugerimos que os vínculos históricos e identitários dos povos lusófonos parecem ser condições privilegiadas para se imaginar uma communitas, mas com forças immunitas, inclusive no jornalismo, agindo no sentido contrário à comunidade. 4.1 Globalização e comunidade A discussão sobre a comunidade nos aproximará sobremaneira da empiria desse estudo, isto é, do regime de visibilização nos jornais brasileiros Folha de S.Paulo e O Globo em torno da comunidade dos países de língua portuguesa nos 20 anos da CPLP. Lembremos que, ao discutirmos as identidades, recorremos a Anderson (1993), que revelou que a imprensa, a partir do desenvolvimento capitalista, teve um papel fundamental na ideia da “comunidade imaginada”. A questão é saber de que “comunidade” ainda se pode pensar na contemporaneidade. Em meio a um mundo complexo e que foi anunciado como “aldeia global”, há como pensar em comunidade? É possível imaginarmos uma comunidade nacional? E uma transnacional? Esses questionamentos rendem inúmeras COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 118 possibilidades de reflexões, mas nosso objetivo é perceber as tensões em torno da comunidade no regime de visibilização. Na busca pelo conceito histórico de comunidade, descobrimos que nele sempre existe a referência a uma identidade partilhada por seus membros. A comunidade seria a reunião de elementos que têm uma essência em comum, que produz uma sensação de área delimitada, do conjunto dos mesmos. Todavia, com um mundo globalizado, ao “alcance das mãos” e visibilizado como o único, com indivíduos sem amarras identitárias, como pensar em comunidade? Como imaginar um lugar onde as pessoas tenham uma “essência” que as amarre de modo que elas se sintam as mesmas? Qual seria o comum entre indivíduos descentrados? Essas questões nos obrigam a retomar o início da Era Moderna. Para Anthony Giddens (2002), foi na Modernidade, com as expansões europeias para outros continentes, que foram lançadas as premissas do que entendemos hoje por globalização. As ações mercantilistas possibilitaram o alargar das fronteiras de maneira tal que o mundo passou a ser imaginado como uno, completamente visível e conhecido. As retóricas do mundo global sempre giraram em torno dos aspectos e interesses políticos, no sentido de sustentar uma lógica econômica de um mundo sem fronteiras entre os países, de modo que o capital circulasse sem amarras. Entretanto, na prática, essa é uma cultura que estabelece hierarquias entre superiores e inferiores, dominadores e dominados, sustentando as práticas de máxima exploração e pilhagem nas áreas do “novo mundo”. Renato Ortiz (2003, p. 15) afirma que o primeiro processo de globalização foi o da internacionalização das atividades econômicas, iniciado com as expansões europeias do século XV. Depois, vem a forma mais avançada de integração funcional das economias ainda dispersas. Assim, o termo globalização “se aplica à produção, distribuição e consumo de bens e serviços organizados a partir de uma estratégia mundial, e voltados para um mercado mundial” (ORTIZ, 2003, p. 16). Ocorre que, antes dessa ideia de Modernidade, mesmo depois dos Estados, havia comunidades bem definidas, localizadas, com organização política. Com as expansões europeias, com o desenvolvimento da sensação do mundo único e todo conhecido, como ficaram as comunidades? Para Sousa Santos (1994), a resposta é uma ruína da antiga comunidade medieval diante da Era Moderna, porque se criou um vazio social que o Estado tentou preencher, porém, sem jamais ter conseguido. No fundo, o resultado desse processo, segundo Sousa Santos, é o conflito entre subjetividade individual e subjetividade coletiva. Essa tensão vai aumentar a partir da supremacia do modelo liberal, do forte estímulo à iniciativa privada e, em especial, com os avanços do capitalismo e das lógicas COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 119 de mercado. Caminhou-se, assim, a passos largos ao triunfo do homem, do sujeito, do sucesso pessoal, do desligamento dos indivíduos aos seus laços locais e nacionais, fazendo nascer um indivíduo do mundo e com esse mundo ao alcance de suas mãos. Nesse sentido, diz Sousa Santos (1994, p. 34): “quem sai perdendo é o princípio da comunidade”. Para Hall (2013), no fundo, as nações jamais foram autônomas ou soberanas como quiseram propagar. No centro delas estava o capitalismo, que as atravessavam para cumprir e defender seus interesses, para fazer circular livremente o poder do capital, sem quaisquer tipos de amarras. Estaria na raiz do processo de globalização uma ação ostensiva de compreensão do mundo, onde o capital não via quaisquer fronteiras. Esse processo, como vimos, tem suas bases históricas nas expansões colonialistas e, nele, o Outro era o inumano, aquele que, com seu “comportamento se desvia abissalmente das normas da fé e do mercado. Tampouco é detentor de subjetividade estatal, pois que não conhece a idéia do Estado nem a de lei” (SOUSA SANTOS, 1994, p. 35). Com a integração dos mercados e o avanço do capitalismo, esse Outro deveria ficar confinado em comunidades, espaços entendidos como sinônimos de primitivismo, pobreza, com regras e vínculos particulares e que dificultam a livre circulação do capital e das pessoas. Esse local comunitário é a oposição retórica à comunidade global, desenvolvida e imaginada nos interesses do poder econômico e financeiro. Na globalização, o Outro da comunidade e ela própria são como “bandos, tribos, hordas, que não se coadunam, nem com a subjetividade estatal, nem com a subjetividade individual” (SOUSA SANTOS, 1994, p. 35). Essas reflexões nos levam a sugerir que a ideia de comunidade atravessa o regime de visibilização social, inclusive no jornalismo, sob duas lógicas. A primeira é uma imaginada e festejada, como uma comunidade global, moderna, tecnológica, livre, sem fronteiras, que de tão grande e intensa sequer será percebida como comunidade. A própria lógica global rejeitaria a comunidade em razão de algum tipo de limitação que essa expressão possa sugerir. A segunda lógica é de um grupo hostilizado e confinado, que tende a ser mais invisível, seja por reiterada ausência ou por uma presença que a controle e a ridicularize diante da festejada globalização, cada vez mais celebrada em razão da mobilização em torno da técnica. Para Zygmunt Bauman (2003, p. 54), a proposta de comunidade das “elites globais” é de um “cosmopolitismo seletivo”, que celebra um estilo de vida estético e que está distante dos nacionais, daqueles fixados por seus locais de nascimento. O que impera para essa elite que circula pelo mundo é o triunfo do indivíduo contra qualquer princípio COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 120 coletivo, porque este pode remeter à comunidade, sempre associada aos apelos primitivos, ao atraso, à pobreza, ao perigo, representando a “filosofia dos fracos”, daqueles sem capacidade para vencer por seus méritos (BAUMAN, 2003, p. 56). Para reforçar: na ótica globalizada, essa diferença, o Outro, será o sujeito e sua própria comunidade. Podemos dizer que a ideia de comunidade passa pela tensão e pelo mesmo regime de visibilização que o Outro enfrenta nas identidades. Na prática, a comunidade será imaginada na perspectiva global como o reduto das diferenças, recebendo a carga de negatividade, de criminalização e de invisibilização que a transforma em o Outro rejeitado. O que está entre nós é o imaginado como global, que se ajusta ao modelo do mundo único, moderno, caso contrário, será o primitivo, comunitário, perigoso, que ameaça a economia. Entretanto, percebamos que, mesmo na globalização, esse Outro, seja o indivíduo ou a coletividade, não desapareceu. O resultado-efeito da fabulação do mundo único, total, sem fronteiras é uma diferença incômoda às elites, que está, ao mesmo tempo, em todos os lugares e em lugar nenhum. Diz Giddens (2002, p. 27), que a globalização deve ser compreendida como a “interseção entre presença e ausência, ao entrelaçamento de eventos e relações sociais ‘a distância’ com contextualidades locais”. Esse autor propõe uma “dialética do local e do global”, um processo que, por um lado, passa a sensação de unificação planetária e, por outro, faz nele mesmo emergir as muitas das características locais, de forma que os “eventos em um polo de uma relação muitas vezes produzem resultados divergentes ou mesmo contrários em outro” (GIDDENS, 2002, p. 27). Por isso, a globalização tem, ao mesmo tempo, características unificadoras e desagregadoras. Nesse sentido, Hall (2006, p. 69) apresenta três grandes efeitos da globalização para as identidades nacionais, com reflexos na ideia de comunidade: 1) a “desintegração” em razão da homogeneização cultural e do pós-moderno global; 2) o “reforço” de identidades nacionais e de outras identidades locais, até como uma forma de resistência ao global; 3) “as novas” identidades como síntese das contradições dos itens anteriores. Assim, podemos dizer que, ao mesmo tempo em que a lógica global busca esfacelar as formas nacionais, tentando apagar pertenças e criando o indivíduo global, ela acaba por reforçar identidades locais, patrióticas, mais tradicionais. Entretanto, destaca Hall (2006), que as identidades que podem emergir dessa reação à globalização não são garantia do retorno das antigas tradições perdidas ou que foram abandonadas no mundo moderno. O que tem surgido são outras formas de pertença e de diferença que podem ser – e geralmente são – mais radicalizadas em relação ao Outro. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 121 Independentemente das incongruências e da própria dialética local/global, o Outro se mantém. Nos pressupostos da globalização, a diferença é o entrave, o prejuízo financeiro, a comunidade pobre. Na lógica da ideia do retorno às identidades nacionais, o Outro é aquele produzido pela globalização, o qual também é pobre, perigoso, terrorista, amoral, aquele que atrapalha o desenvolvimento e, portanto, deve repelido e eliminado. Esse Outro, diz Milton Santos (2000, p. 30), “seja ele empresa, instituição ou indivíduo, aparece como um obstáculo à realização dos fins de cada um e deve ser removido, por isso sendo considerado uma coisa”. Um detalhe importante é que, na globalização, a diferença descapitalizada tem a importância de confirmar o valor das elites, do capital, além de ser o subalterno, aquele inferior a produzir a riqueza dos mais ricos. Existe ainda a possibilidade desse estranho que habita em “comunidades” exercer uma fascinação, em uma espécie de “mercantilização da etnia e da alteridade” (HALL, 2006, p. 77). Não é sem propósito que o sentido de mundo global busca manter certos tipos identitários intocados em locais distantes, em comunidade, confinados, assim, como exóticos, alvos de um contato que pode ocorrer lá, onde estão, nos confins, onde aquela diferença não ameaça porque fica lá, controlada e em sua pobreza, cumprindo o seu papel de coisa exótica e turística. Pode-se imaginar que esse percurso que estamos fazendo acabaria por desconhecer a importância das relações multiculturais. Ao contrário, mas como fizemos com a mestiçagem, também é necessária uma crítica ao uso irrefletido do multiculturalismo. Recorrer a essa ideia arbitrariamente ajuda tão somente a reconhecer e a fixar o Outro como a diferença, muitas vezes sutilmente chamado de esquisito, exótico, a possibilidade turística e comercializável, conformando, assim, a própria cultura do capital. Utilizar a ideia de multiculturalismo nessas condições é uma estratégia que, para Bauman (2003, p. 97), desenvolve a “tolerância liberal” e hierarquiza as supostas diferenças culturais. Lembremos que a retórica identitária fabulou o Outro como a inferioridade inata e violenta. Isso se mantém, mas agora, trata-se cinicamente de “representação aparentemente compassiva das condições humanas brutalmente desiguais como um direito inalienável de toda comunidade à sua forma preferida de viver” (BAUMAN, 2003, p. 98). Ou seja, é como se o Outro exótico e estranho fosse um voluntário, aquele que optou pela sua própria exclusão e que acha belo a pobreza e a miséria em que vive. Além das contradições, talvez um dos aspectos mais relevantes da globalização para nossa análise é a sua distribuição assimétrica. Em tese, o globo é fabricado como uma esfera única, sem lados, sem extremos, mas na vida real essa globalização produziu centros COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 122 e periferias radicalmente opostas e que desconstroem a ideia do global monolítico. Como diz Said (2011, p. 56), as nações contemporâneas na Ásia, América Latina e África até parecem politicamente independentes e inseridas no mundo globalizado, “mas, sob muitos aspectos, continuam tão dominadas e dependentes quanto eram na época em que viviam governadas diretamente pelas potências europeias”. Países como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França estariam no centro e muitas nações africanas, asiáticas, latino-americanas nas periferias, do lado de fora das cercas e muros da globalização. A questão é que, na medida em que a globalização propagandeia um mundo único, moderno, sem fronteiras, as pessoas acreditam e se movem em busca de melhores condições de vida. Ou seja, mais cedo ou mais tarde serão incontornáveis os encontros entre centros e periferias, desde os caminhos mobilizados pela tecnologia e que garante uma circulação virtual, até os esforços de atravessar rios, oceanos e muros. Nesse sentido, a análise de Hall é esclarecedora: Após a Segunda Guerra Mundial, as potências europeias descolonizadoras pensaram que podiam simplesmente cair fora de suas esferas coloniais de influência, deixando as consequências do imperialismo atrás delas. Mas a interdependência global agora atua em ambos os sentidos. O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme movimento de pessoas das periferias para o centro [...]. Impulsionada pela pobreza, pela seca, pela fome, [...] pela dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais, as pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na ‘mensagem’ do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os ‘bens’ e onde as chances de sobrevivência são maiores (HALL, 2006, p. 81). De um lado, o processo globalizante faz emergir a sensação da identidade-mundo, mais abstrata e pluralizada por identificações frágeis, disponíveis nas “comunidades guarda-roupas”, no dizer de Bauman (2005, p. 37). De outro, o efeito desse processo é a frustração do indivíduo com as promessas não cumpridas da globalização e a sensação de perda identitária, sentindo-se só em meio à multidão, sem a segurança necessária nessas comunidades “guarda-roupas”. Nesse último caso, o indivíduo busca por um grupo que lhe pareça estável e valorize a identidade, as tradições. Nessa procura, ele seleciona mais as diferenças para definir os seus pertencimentos. Esse é um percurso político movido mais por ódios, medos, moralidades do que por esperanças, fazendo-o iluminar as violentas fronteiras entre nós e os Outro. São essas as condições que fazem emergir na contemporaneidade a visibilização de racismos e de xenofobias abrigadas em movimentos civis, grupos e partidos políticos extremistas. Bauman diz que esses grupos se fortalecem COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 123 por meio de redes identitárias porque não sentem mais o Estado como o lugar de segurança. Do Estado restaram “minguados remanescentes de uma soberania territorial que um dia já foi indomável e indivisível” (BAUMAN, 2005, p. 34). As comunidades em surgimento são as locais, regionais, nacionais e geralmente estão nos centros dos países capitalistas, deixando “intocada a questão do etnocentrismo ocidental” (SODRÉ, 1999, p. 17). Esses grupos se organizam para enfrentar os Outros, os que estão nas periferias ou nos países periféricos e tentam deslocar-se para os centros, fugindo de guerras e fome. Nos países centrais do capitalismo, mas não apenas neles, são nítidas as comunidades mobilizadas contra o Outro, com a renovação de critérios articulados de classe, raça, etnia, religião, nacionalidade. São comunidades racistas, mas que não agem somente sob o falso manto da superioridade branca, mas se mobilizam por interesses econômicos e por “insuperáveis diferenças culturais” (SOUSA SANTOS, 1994, p. 41). Em resumo, a globalização produziu uma nítida radicalização das violências identitárias, da criminalização e do apartamento do Outro, seja na comunidade desfigurada seja em grupos locais de apelo identitário, patriótico. Não é demais reforçar que as pessoas que vão tentar recuperar suas tradições e os vínculos locais, não mais encontrarão as antigas identidades porque elas jamais estiveram “firmemente enraizadas em localidades bem delimitadas”, como assegura Hall (2006, p. 78). Mesmo que resgatem rastros dessa tradição, esses grupos vão atuar na lógica da globalização, a exemplo de organizações político-religiosas que se utilizam da internet para difundir suas ideias, buscar apoios internacionais, recrutar fiéis, denunciar infiéis, estabelecer vínculos com outros grupos. No fundo, eles ampliam a radicalização de vínculos e, com isso, definem suas fronteiras na base da ordem moral, religiosa, racista, econômica. Para Bauman, os grupos, assim, acabam formando uma comunidade “tecida com os transitórios fios dos juízos subjetivos, embora o fato de que eles sejam tecidos juntos empreste a esses juízos um toque de objetividade” (BAUMAN, 2003, p. 62). As contradições geradas pela fabulação de um mundo global revelam o que Santos (2000) chama de globalização perversa, um mundo profundamente dividido por extremas riqueza e pobreza. Lembra esse autor que a pobreza já foi pensada como residual ou acidental. Como essa argumentação não se sustentou, ela passou a ser considerada como uma doença da civilização, em razão de uma parte da população não ter a capacidade de consumir. Todavia, com a “alta globalização”, a pobreza tornou-se estrutural, fazendo parte de forma natural de um modelo de sociedade em que o medo e a violência serão centrais, um processo que afeta todos. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 124 Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro. Tal medo se espalha e se aprofunda a partir de uma violência difusa, mas estrutural, típica do nosso tempo, cujo entendimento é indispensável para compreender, de maneira mais adequada, questões como a dívida social e a violência funcional, hoje tão presentes no cotidiano de todos. Vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo neoliberal, que é também, criador de insegurança (SANTOS, 2000, p. 29). Essas análises nos levam a pensar em uma comunidade como communitas, segundo Roberto Esposito (2005, 2012)32. Para esse filósofo, não seria a identidade o que os membros da comunidade teriam em comum. O que dá sentido à comunidade como communitas é o compromisso, a obrigação, a dívida recíproca entre todos, ou seja, vai em sentido inverso à positividade da identidade comum dos seus membros. O conceito de comunidade nesse autor é um “conjunto de pessoas unidas não por um ‘mais’, mas por um ‘menos’, uma falta” (ESPOSITO, 2012, p. 29)33. Ainda neste capítulo retomaremos essa ideia. Por enquanto, sugerimos pensar a comunidade como ambiente instável e construído pela tensão entre indivíduo e coletividade, um processo de disputa imaginada sobre as experiências mútuas, sem obedecer a espaços geográficos ou a outras limitações. Ao abraçarmos a ideia de uma comunidade que se realiza em movimento e por meio das obrigações recíprocas, encaminhamo-nos para a defesa da condição humana, e não do indivíduo, o que perturba o modelo majoritário da sociabilidade globalizante. Convocar a communitas compromete a ideia do indivíduo-mundo, descentrado, que rejeita e se sente desobrigado com a comunidade. Esse debate põe em xeque o Outro, uma diferença a ser combatida, porque na communitas não há espaço para a divisão entre nós. Em resumo, discutir a comunidade na contemporaneidade implica perceber a tensão entre projetos de mundo. De um lado, observamos um integrado, global, ao alcance das mãos, tecnológico, o todo visível, que se movimenta para fora. De outro, temos um projeto que busca se organizar, ilusoriamente, para dentro, por meio de movimentos políticos retóricos e que agiriam em suposta reação à globalização, colocando em visibilização uma série de discursos e práticas identitárias de retorno às tradições, de uma “nação grande”, do nós mesmos, com o levantar e o fortalecer de muros. O curioso é que o Outro, nesses dois modelos que parecem antagônicos, mantém- se como a diferença a ser combatida. Ele e a sua comunidade serão visíveis para que possam ser controlados e criminalizados, culpados por todos os males, objetos de políticas 32 As citações diretas de Esposito (2005, 2012) em todo trabalho foram traduzidas livremente por nós. 33 “[...] conjunto de personas unidas no por un ‘más’, sino por un ‘menos’, una falta”. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 125 de expulsão entre nós. Entretanto, o Outro também será invisível nesses dois projetos quando, de forma resignada, comportar-se como uma mão de obra barata, muda, sem direitos, quando não atrapalhar o fluxo do capital e dos interesses das nações; quando for o exótico confinado onde está, na comunidade primitiva, sem ameaçar cruzar as fronteiras para a civilização. Depois desse rápido trajeto sobre a comunidade na contemporaneidade, partamos para conhecer e analisar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). 4.2 A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa Refletimos que a ideia de comunidade tem a tensão permanente entre o global, que rejeita os pressupostos da própria comunidade apontando-a como tribo, a “filosofia dos fracos”; e a perspectiva do retorno às identidades de retórica patriótica, xenófoba, que conformaria a comunidade local. Com isso, sugerimos que a comunidade é uma experiência em disputa e, assim como as identidades, ela transita em terreno instável, de forma que não é possível falar em uma comunidade como algo dado e estável. Se as percepções contemporâneas das identidades e das comunidades são complexas, esse quadro parece ficar mais intrincado ao pensarmos em uma comunidade que envolve nove países dispersos em quatro continentes, como é o caso da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Dela, fazem parte como membros efetivos as nações: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste (Figura 2). Figura 2: Mapa da distribuição geográfica dos nove países da CPLP Fonte: www.cplp.org COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 126 É possível imaginar uma comunidade nessas condições? Que elementos justificam a reunião de nove países em torno de uma comunidade? Onde estaria o Outro na CPLP? Aliás, quem é o Outro na CPLP? Seria ela própria a diferença para seus membros? Sendo ou não o Outro, como transita a CPLP no regime de visibilização nos media no Brasil? Essas e outras questões têm indícios de respostas na própria história constitutiva dessa comunidade que veremos a seguir e sobre a qual buscaremos nos aprofundar nas análises empíricas. Nesse momento, nossa proposta é conhecer o seu processo de construção. A partir da internacionalização do capital, do fortalecimento das nações e das grandes empresas, os países desenvolvidos lançaram-se em busca de parcerias para fortalecer suas finanças, conquistar mercados produtores e consumidores, obrigando-os a alinhamentos geopolíticos, e que resultam na criação de blocos econômicos. Na prática, Estados e empresas montaram consórcios para que o capital circulasse livremente no mundo e, principalmente pudesse ter altíssimas rentabilidades aos investidores. A busca por alianças econômicas também se realizou em países periféricos, como uma tentativa de participar ilusoriamente do processo de globalização dos mercados. Essas movimentações fizeram nascer organizações financeiras multinacionais e que atravessam e interferem, muitas vezes, sem quaisquer limites, nas economias nacionais, a exemplo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Do ponto de vista político, o suporte veio com a criação de entidades para dar segurança a essas operações. Assim, temos a União Europeia (UE), que tem 28 países filiados; a North American Free Trade Agreement (Nafta), com Estados Unidos, México e Canadá; a União Africana (UA), com 55 estados; o Mercado Comum do Sul (Mercosul), com Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela; os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul); entre outras. Essas organizações buscam agir na lógica econômica regional/global. Algumas entidades, mesmo atendendo aos interesses econômicos, usaram dos traços histórico-culturais aparentemente comuns entre os países para compor outros grupos. Esse foi o caso da Organisation Internationale de la Francophonie (OIF), que abriga 57 estados de língua francesa; da Commonwealth of Nations, cuja sede é britânica, com 53 países, onde o inglês é o idioma central; e da CPLP, em que as nove nações têm a língua portuguesa como oficial. No entanto, as relações nessas entidades ultrapassam as questões econômicas e o idioma. Entre elas existem laços históricos-constitutivos, especialmente os vínculos entre as antigas metrópoles e as suas ex-colônias. Por exemplo, Benin, Camarões, Costa do Marfim e outras nações em África e invadidas pela França COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 127 fazem parte da OIF. Papua-Nova Guiné, Jamaica, Belize e outros países que foram explorados pelos ingleses estão na comunidade britânica 34 . Não é diferente com a CPLP, que teve Portugal como metrópole e os demais como suas colônias. É importante destacar que, além de países-membros, essas comunidades que surgiram a partir de justificativas identitárias, com elos linguísticos, também acolhem outras nações e regiões que se filiam alegando algum tipo de conexão histórica. No caso da CPLP, Geórgia, Japão, República Maurícia, Namíbia, Senegal, Turquia e outros foram admitidos como “observadores associados”. Ainda na comunidade de língua portuguesa existem aproximações com Macau, na China; Galiza, na Espanha; Goa, na Índia; Uruguai, na América do Sul, e outros países. A CPLP foi oficialmente fundada em 17 de julho de 1996, em Lisboa. No entanto, a sua construção tem um percurso que nos remete até as ações expansionistas de Portugal e de outras nações europeias no século XV. Os deslocamentos e as invasões dos portugueses na África, Ásia e América acabaram por costurar a ideia de um imaginário mundo lusófono que teve Portugal como metrópole. Esse processo resultou em um mundo luso que não vingou, e na constituição de uma comunidade com tensões, em certa medida, inconfessas: por um lado, ações que podem ser caracterizadas pela tentativa de manutenção da lógica colonial ou neocolonial da antiga metrópole e até do Brasil sobre as ex-colônias africanas e asiáticas; por outro, a tímida cobrança a Portugal e ao Brasil por reparações históricas para com essas mesmas ex-colônias e seus povos. Ressaltamos que as ações do império português na invasão e constituição de colônias ultramarinas não foram travessias de mão única, isto é, isentas de consequências talvez não previstas pelos invasores. As imposições violentas da língua, da cultura europeia e da miscigenação generalizada produziram um caldo sociocultural que transformou tantos os civilizados europeus – que talvez pouco reconheçam –, como os Outros da Ásia, da África e da América. As novas gentes que surgiram desse processo buscaram algum tipo de associação com a metrópole, ou seja, mais cedo ou mais tarde, acabavam tomando o rumo de Portugal. Além disso, para a África iam os europeus, mas também índios, brasileiros exilados, comerciantes, traficantes. Para o Brasil, deslocavam-se os europeus, os africanos, asiáticos 35 e mestiços de várias raízes, que também tomaram vários destinos. 34 Essa não é uma regra rígida. Por exemplo, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, ex-colônias portuguesas também fazem parte da OIF. Essa também é a situação de Moçambique, que está na Commonwealth. 35 Em 1814, chegaram ao Brasil chineses vindos de Macau para difundir a cultura do chá. Esse projeto não teve sucesso, mas os asiáticos continuaram a imigrar e se estabeleceram comércio (COSTA E SILVA, 2011). COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 128 Com essa análise, consideramos importante pensar na CPLP como a possibilidade de uma comunidade que vai se realizando também por meio das mobilidades forçadas ou não entre as suas populações. Entretanto, como se percebe, não afirmamos que esse processo foi e nem é pacífico, autorizado, simétrico, muito ao contrário. O que salientamos é que, com essas travessias identitárias – mais que deslocamentos – parece ser impossível tratar da constituição das nações e dos povos da CPLP sem considerar as várias lusofonias, o próprio sistema escravagista, as violentas relações identitárias e os inúmeros elementos culturais, econômicos, políticos, sociais, religiosos entre os seus povos. Esse é um processo longo, de idas e de vindas, mas tem um elemento que atravessa todas essas incursões: a língua portuguesa. O idioma é importante, está na literatura oficial como “patrimônio comum”, porém a língua não guarda toda a explicação para a construção dessa comunidade. Na CPLP, o idioma é um dos elementos centrais na comunidade, mas não é, a nosso julgar, decisivo para a experiência comunitária. Em um documento da CPLP, o qual lembrou seus 18 anos, a língua portuguesa é destaque: Os laços entre os povos que habitam os territórios que integram hoje a CPLP são muito antigos e foram tecidos ao longo de mais de cinco séculos pela Língua Portuguesa. Inicialmente língua de navegadores, mercadores e missionários, hoje língua oficial dos nove membros da Comunidade, o português é atualmente o patrimônio comum de cerca de 250 milhões de pessoas, a quinta língua mais falada no mundo (ILHARCO; MURARGY, 2014, p. 54). Antes mesmo do fim da relação metrópole/colônia, intelectuais portugueses e brasileiros vinculados às estruturas do poder, utilizaram-se da imaginação dessa unidade linguística para defender a necessidade de se criar uma instituição que circundasse todo o mundo lusófono. Naquele momento, a ideia era materializar uma forma de Portugal manter a dominação sobre suas colônias em África. A defesa dessa lógica colonialista, de uma instituição da metrópole que garantisse a unidade e o legado português, foi chamada de “lusotropicalismo”. Gilberto Freyre, intelectual brasileiro e autor da obra Casa Grande & Senzala e de outras, foi um dos maiores defensores dessa ideia. Por exemplo, também é dele uma obra que sintetiza esse momento, O Mundo que o Português Criou (1940), cujo título já expressa a força da metrópole. Fundar uma instituição centralizadora do mundo lusófono ainda tinha o objetivo de produzir e reforçar a história oficial, com uma narrativa sobre a doce colonização, as trevas iluminadas pelos portugueses, a voluntária colaboração dos índios, negros e mestiços para com o projeto de civilização, a “harmonia entre os povos”. Era da obrigação COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 129 da entidade reunir as ex-colônias portuguesas e reencenar o mito do paraíso dos trópicos, da missão civilizadora, da natureza, da mistura de raças. É nesse contexto que a língua é imaginada como uma conexão espiritual, o legado e o patrimônio comum, o bem, a identidade. Na verdade, a ideologia lusotropical, amplamente abraçada e difundida pelas ditaduras portuguesa e brasileira, buscava produzir uma narrativa que apagasse qualquer referência à dominação europeia, os saques, as barbáries escravagistas e outras violências. A língua portuguesa tem centralidade na Declaração Constitutiva da CPLP 36 , sendo afirmada como “meio privilegiado de difusão da criação cultural entre os povos que a falam e de projeção internacional dos valores culturais, numa perspectiva aberta e universalista” (CPLP, 1996, s/p). Garante, ainda, esse documento que o idioma é “instrumento de comunicação e de trabalho nas organizações internacionais e permite a cada um dos países, no contexto regional próprio, ser o intérprete de interesses e aspirações que a todos são comuns” (CPLP, 1996, s/p). Todavia, os portugueses Lourdes Macedo, Moisés Martins e Rosa Cabecinhas (2011, p. 125) nos lembram que a utilização da língua portuguesa se constituiu em “um exercício de expressão de poder em busca da afirmação de uma identidade nacional, transnacional ou até mesmo global”. Por isso, as ex-colônias, mesmo quando independentes, tiveram suas elites usando a língua portuguesa como ação de poder, mantendo a lógica colonial. O fato é que a língua imposta, ou seja, o falar do invasor, estava carregada de ordem e de violência, e essa língua era a portuguesa. Relembremos que o Marquês de Pombal, em 1757, proibiu outro falar que não fosse à língua de Camões. José Luiz Fiorin (2006, p. 26) diz que o Governo Português considerava a obrigatoriedade do idioma um dos “meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade de seus antigos costumes”. Como construir uma comunidade em que a propriedade que nos une tem essa marca histórica entre nós? Essa não é uma questão simples. Por exemplo, muitos dos processos de resistência a essa mesma dominação ocorreram em português, em uma espécie de feitiço que se vira contra o feiticeiro. Existem ainda outros ângulos. Timor- Leste, ao ser abandonado por Portugal em 1975, logo foi invadido pela Indonésia e voltou à condição de colônia. A língua portuguesa, a do antigo colonizador, foi usada por muitos timorenses na luta pela nova independência (SODRÉ, 1999, p. 49). Em Macau, em Goa e 36 Disponível em: . COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 130 na Galiza, o falar em português ou algo aproximado até pode ser entendido como uma estratégia identitária e de resistência. Ao tratarmos da língua, é preciso reconhecer seu caráter vivo e incontrolável, o que impossibilita pensar na existência de uma única língua em um país, e muito menos em uma comunidade diversa como a CPLP. No caso do português, esse processo transformativo é radicalizado pelas variantes da África, da Ásia e da América. Se a colonização produziu, de fato, uma profunda hibridização social, seu resultado é o entrelaçamento de várias culturas e, nelas, de outras línguas, extremamente ricas. Por isso, José Saramago afirma que não existe uma língua portuguesa, mas línguas em português. Nos países africanos que foram colônias lusas, o português não é majoritário, e divide o espaço com inúmeras línguas locais. No Brasil, o português é outro, que é diferente dos países africanos e do Timor-Leste, inclusive na ortografia que tem sido objeto de tentativas de unificação 37 . As considerações sobre a importância estratégica da língua portuguesa e os processos de constituição da CPLP remetem-nos, obrigatoriamente, à ideia complexa de lusofonia. Para Alfredo Margarido (2000, p. 12), ela seria uma forma “particular de circular pelo mundo”, isto é, em uma perspectiva mais positiva aos falantes. Contudo, o entendimento de Eduardo Lourenço (2001) é de que a lusofonia seria parte de uma ilusão de Portugal, que busca manter a nostalgia imperial, isto é, uma forma que os portugueses inventaram para não se sentissem sós no mundo, tendo nas “sete partidas”38 um imaginário de controle das ex-colônias. Independentemente do ângulo que se enxergue, a ideia de lusofonia pode abrir uma série de portas e janelas interpretativas, mas, também, fechá-las. Optamos neste estudo pela abertura, mesmo reconhecendo que a raiz etimológica – luso – remete a Portugal e à província do ano 29 a.C., a Lusitânia. Ter esse ponto de partida, ter uma gênese portuguesa, não deve enrijecer o seu percurso e nem se fechar em si. Apesar das tensões em torno da lusofonia e que ocorrem no campo da linguística, sugerimos que ela deve ser pensada além dele, sendo percebida como ação política dos povos colonizados. E isso exige negociações, a compreensão de jogos de poder, o que impossibilita pensar na unidade de 250 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo a falar em português. 37 Acordo Ortográfico é um tratado que objetiva criar uma ortografia única para o português a ser usado por todos os países que têm este idioma como língua oficial. Esse processo teve início em 1924 e até hoje não se concluiu. Enfrentou e enfrenta várias resistências, sofreu alterações e até hoje não foi finalizado. 38 As “sete partidas” são os países que assinaram a primeira composição da CPLP, em 1996: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 131 Ao contrário da homogeneização linguística, a lusofonia pode ser a celebração da diversidade em razão do processo histórico entrelaçado entre os povos da comunidade. Para Moisés de Lemos Martins (2015), a lusofonia não pode ser pátria porque não se pode vê-la como espaço de poder e autoridade, mas, quem sabe, como mátria e também frátria, o espaço de iguais em razão da mesma origem. Pontuamos até aqui algumas questões para realçar a lusofonia como importante na tentativa da experiência de uma comunidade 39 . Nos documentos oficiais da CPLP, a língua portuguesa é o elo mais visível para que essa comunidade emergisse. Entretanto, sugerimos que existem meadas históricas e constitutivas entre nós para além do idioma. Apesar de o olhar que vamos empregar no trabalho empírico ser no sentido do Brasil para a CPLP, não podemos deixar de registrar algumas considerações históricas sobre os países africanos lusófonos, assim como também o Timor-Leste. ANGOLA A República de Angola fica na costa ocidental da África e foi, por mais de 500 anos, colônia portuguesa. Por volta de 1482, quando Portugal invadiu aquelas terras pelo rio Congo, elas já eram ocupadas por povos bantos vindos da África Oriental e Central, e que se dividiam em vários reinos: Ovimbundu, Ambós, Bakongos, Lunda-Cokwel, Mbundu, entre outros. Os invasores europeus entraram nas terras dos Bakongos e encontraram o chefe dos Ndongo, que “possuía o título hereditário de Ngola, que os colonizadores deturparam dando mais tarde o nome de Angola à Colônia" (OLIVER; FAGE, 1980, p.139). Segundo esses historiadores, em 1560, os portugueses Paulo Dias Novais e Diogo Cão avançaram sobre as terras de Ngola, porém a grande ocupação somente ocorreu no século seguinte. É preciso lembrar-se da grande resistência dos africanos à invasão, o que resultou em massacres (OLIVER; FAGE, 1980). Os sobrevientes dos genocídios eram escravizados nas minas de prata daquela região e muitos deles eram mandados para o Brasil. Em Angola, foram adotadas capitanias hereditárias e os seus donatários teriam que se manter sem ajuda direta de Portugal. Assim, uma das principais atividades econômicas para garantir as terras foi o comércio de africanos capturados para que fossem escravizados, usados naquela colônia e em outras, como o Brasil (DELGADO, 1955). 39 No próximo item, retomamos esse debate propondo pensar a lusofonia como meio para uma communitas. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 132 Os traficantes de negros para a escravização eram chamados de “pombeiros”, uma espécie de encarregados dos portugueses. Narra Ralph Delgado (1995) que os pombeiros se embrenhavam nas aldeias para arrancar os negros das tribos. Essas ações contavam também com o apoio de exércitos de mestiços e da igreja Católica. As resistências nunca cessaram e inscreveram nomes na história, como os de Bula Matadi, Ngola Kilwenje, da rainha Njinga Mbandi, de Ekwikwi, entre tantos outros. Entretanto, o poder bélico português e a catequese no convencimento da missão civilizatória foram violentos e destrutivos, responsáveis por inúmeros massacres (DELGADO, 1955). Segundo José Manuel Zenha Rela (1992), até ao final do século XIX, os portugueses tinham se concentrado em pontos estratégicos na defesa daquela colônia, especialmente em Luanda e Benguela. Além disso, nelas estavam os principais portos que asseguravam o transporte de africanos para a escravização no Brasil. A expansão portuguesa para o interior de Angola somente se deu por pressão da Conferência de Berlim, em 1884, que demarcou as fronteiras na África. Isso também implicou um maior ingresso de imigrantes portugueses e brasileiros para Angola. A dominação europeia garantiu o funcionamento e o desenvolvimento de uma cultura colonial profunda e violenta que, mesmo após a independência em 11 de novembro de 1975, ainda se estende em Angola, a exemplo da apropriação de terras por grandes empresas, do uso de trabalhos análogos à escravidão, da imposição de culturas obrigatórias, produzindo uma extrema pobreza e concentração de riqueza (RELA, 1992, p. 27). Angola é o segundo maior exportador de petróleo da África Subsaariana, ficando atrás da Nigéria, mas é um dos países mais pobres daquele continente. CABO VERDE Esse país da CPLP é um arquipélago formado por dez ilhas. A República de Cabo Verde é parte da região chamada da Macaronésia, onde estão outros arquipélagos, a exemplo dos Açores e da Madeira. O que chama atenção em Cabo Verde é sua situação climática, com longas secas e poucas terras férteis, o que tem inúmeros reflexos naquele país. Daniel Pereira (2011) lembra-nos de uma grande fome que atingiu os moradores entre os anos de 1947 e 48 e causou a morte de mais de 30 mil cabo-verdianos. Segundo esse autor, a invasão portuguesa teria sido iniciada por volta de 1460, por António de Noli e Diogo Afonso. Existem teses de que antes desse ano, outros europeus já tinham passado por lá. No entanto, o que se sabe é que em 1460, data de sua COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 133 invasão, as ilhas ainda estariam desertas. “O documento mais antigo que se conhece sobre Cabo Verde é a Carta Régia de 3 de Dezembro de 1460, pela qual D. Afonso V, doa as ilhas, então descobertas, ao Infante D. Fernando, seu sobrinho” (PEREIRA, 2011, p. 17). Sua efetiva ocupação teria sido difícil por falta interesse da coroa portuguesa, em razão da não existência de metais, especiarias e escravos, além de terras pouco férteis. Assim, a tarefa destinada para as ilhas foi a de ser um porto estratégico em razão de sua localização mediana entre Portugal e a África Meridional. Em 1497, a armada de Vasco da Gama, que estava a caminho das Índias, lançou âncoras em vila da Praia, atual capital de Santiago e de Cabo Verde. Isso também aconteceu com Cristóvão Colombo e outros navegantes. Em 1500, antes de chegar ao Brasil, Pedro Álvares Cabral fez escala em Cabo Verde (PEREIRA, 2011). Do ponto de vista humano, como as condições de sobrevivência eram difíceis e não havia metais, a solução encontrada por Portugal foi transportar negros africanos escravizados às ilhas de Cabo Verde e, dada as suas condições estratégicas, elas logo se tornaram enormes entrepostos do comércio escravagista. Foram, assim, quatro séculos de uma economia com base nessa atividade. Segundo Pereira (2011, p. 26), a cabo-verdianidade “tem a marca indelével do negro africano, na sua condição degradante de escravo”. Esse autor ressalta que enormes levas de negros arrancados da África, e que teriam o destino à escravização no Nordeste do Brasil, passavam, de forma obrigatória, por Cabo Verde. Nas ilhas, eles recebiam as primeiras catequeses, eram batizados e “aprendiam” as outras culturas, a língua portuguesa e o cultivo da cana-de-açúcar, em uma espécie de estágio. Destacamos, também, que para Cabo Verde foram enviados europeus e brasileiros considerados inimigos políticos da coroa portuguesa, ou seja, as ilhas se transformaram em lugar de exílio, uma grande prisão. Considerando o pouco interesse de Portugal pelas ilhas, a elite cabo-verdiana começou a se movimentar no final do século XIX com vistas à independência. As ações pela liberdade se alastraram para todos os segmentos sociais e políticos nas ilhas. Depois de intensas perseguições e lutas, em 1956, nascia o Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), com intelectuais como Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, entre outros. A guerra colonial se estendeu e a independência apenas aconteceu em 5 de julho de 1975. GUINÉ-BISSAU COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 134 A história da República da Guiné-Bissau tem relação direta com as ilhas de Cabo Verde e com o Brasil. Por exemplo, Guiné e Cabo Verde são geograficamente muito próximos e a grande maioria dos guineenses capturados como escravos pelos portugueses era levada para um primeiro cativeiro em Cabo Verde e, depois de inseridos nos modos de produção escravagista, seguiam para o Brasil, de modo especial para a Província do Grão- Pará, atuais estados do Pará e Maranhão. As relações entre Guiné-Bissau e Cabo Verde iam também da nomeação dos mesmos governadores-gerais e o processo de independência delas ocorreu com o mesmo partido, o PAIGC, como lembra Carlos Lopes (1998). Rosa Cabecinhas e Nesilita Nhaga (2008, p. 116) analisam que boa parte da história da Guiné-Bissau é contada somente a partir da invasão portuguesa, sendo omitida a história anterior. Por isso, faz-se necessário lembrar que os povos Mandinka, descendentes do Império Mali, na África ocidental, chegaram às terras da Guiné ainda no século XII e teriam fundado ali um reino Gabú, que, de tão forte e organizado, se tornara independente dos Mali. O fato é que já no século XV, por volta de 1446, os portugueses, entre eles Nuno Tristão e Álvaro Fernandes, teriam invadido a Guiné. Eles buscavam negros para a escravização e também ouro, marfim e especiarias. A principal fortaleza erguida pelos portugueses e uma área de comércio foram instaladas às margens do rio Cacheu. Essa região era subordinada ao comando do governador português em Cabo Verde. Como a rentabilidade do comércio escravagista era alta, a Guiné passou a ser uma parada obrigatória de ingleses, franceses, holandeses. A Inglaterra chegou a ter um mercado próprio naquela colônia portuguesa. Por conta disso, em 1879, os portugueses separaram as administrações de Cabo Verde e da Guiné para um maior controle, nomeando essa última de Guiné Portuguesa. Anos depois, transferiu-se a capital de Bolama para Bissau (LOPES, 1998). Durante mais de três séculos, a Guiné-Bissau não passou de uma fortaleza militar e de um local de captura e de comércio escravagista, fornecedor de negros africanos para o Brasil. O processo de resistência contra a exploração também existiu e, por exemplo, em 1956, iniciou-se uma intensa guerra contra os portugueses. Mesmo no exílio, Amílcar Cabral, fundador do PAIGC comandou os levantes. A guerrilha vinha conquistando vilas e, em 1973, Amílcar foi assassinado. No ano seguinte, o PAIGC declara Guiné-Bissau independente e, em 10 de setembro de 1974, em razão da Revolução dos Cravos, Portugal reconhece a independência de sua primeira colônia na África (LOPES, 1998). GUINÉ EQUATORIAL COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 135 A Guiné Equatorial se localiza no chamado Golfo da Guiné é formada por quatro áreas: uma continental, em que fica Mbini, que faz fronteiras com Camarões e Gabão; e as ilhas de Bioko, mais habitadas e onde está Malabo, a capital; de Annobón (Ano Bom), que fica ao sul de São Tomé e Príncipe; e a de Corisco. Esse país, apesar de se terriorialmente pequeno, destaca-se por ser o terceiro maior exportador de petróleo da África Subsaariana. Assim como muitos países colonizados, sua história tem a narrativa mais conhecida a partir da invasão europeia. Lembra-nos Pedro Acosta-Leyva (2014), que os portugueses chegaram à Guiné Equatorial por volta de 1471. Fernando Pó invadiu as ilhas de Bioko, que passaram a ser chamar Fernando Pó, e a de Ano Bom. Em razão dos tratados de Santo Ildefonso e de El Prado, entre as coroas portuguesa e a de Castela, Portugal cede para Espanha, em 1778, a Guiné Equatorial. Em troca, conseguiu que as tropas espanholas deixassem a ilha de Santa Catarina, no Brasil, e que concordassem com a demarcação das fronteiras na colônia portuguesa nas Américas. Esses tratados teriam causado a revolta dos “colonos” portugueses estabelecidos, desde 1494, nas ilhas de Fernando Pó, Ano Bom e Corisco. A Guiné Equatorial Portuguesa já era um forte ponto de captura e venda de escravos para o Brasil e Europa (ACOSTA-LEYVA, 2014). A ocupação espanhola demorou a se concretizar e apenas no final do século XIX a Espanha teve controle sobre a Guiné Equatorial. Também depois de lutas pela independência, a Guiné conquistou sua liberdade em 12 de outubro de 1968. Entretanto, assim como ocorreu com muitos países africanos que se tornaram independentes, também a Guiné Equatorial sofreu com intensas guerras civis e governos extremamente ditatoriais e violentos. Nesse país, por exemplo, o presidente Francisco Macías Nguema ficou conhecido pela execução em praça pública e em estádios de futebol dos seus adversários (ACOSTA-LEYVA, 2014). MOÇAMBIQUE Séculos antes da invasão dos portugueses em Moçambique, aquelas terras, que estão localizadas no sudeste da África, eram ocupadas por vários reinos bantus, que se dividiam nas ações de agricultura e no trabalho com ferros e metais. Desde o século X, também entraram ali os árabes, que chegaram a montar entrepostos para o comércio de ouro, marfim, madeiras e escravos. Somente em finais de século XV, iniciou-se a invasão portuguesa. Por volta de 1497, Vasco da Gama teria chegado a Moçambique. Depois de COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 136 lutas contra os árabes, os portugueses conseguiram se estabelecer e logo levantaram fortalezas em Sofala, em 1505; na Ilha de Moçambique, em 1509; e em outras áreas. José Capela (2010) revela a importância dos jesuítas nessas missões portuguesas para o “amansamento” dos negros capturados para o trabalho escravo nas minas em Moçambique e, principalmente, aqueles que eram levados ao Brasil. Somente “em 1761 é que Moçambique teria merecido atenção da Coroa quando foi nomeado o primeiro governador enviado do reino” (CAPELA, 2010, p. 23). A ocupação mais efetiva dos portugueses ocorreu em razão da persistência dos árabes, que jamais se deram por vencidos. Além disso, as grandes minas de ouro, prata e o intenso comércio de escravos também atraíam ingleses e franceses. Lembra-nos José Luís Cabaço (2007) que apenas no século XIX Portugal tentou se firmar em Moçambique e, para isso, foi buscar apoio de empresas privadas. Foram montados consórcios de companhias para maior exploração da colônia, empresas que foram chamadas de majestáticas porque tinham direitos quase soberanos sobre as terras e as gentes de Moçambique. Com o Estado Novo em Portugal, essas companhias privadas continuaram atuando, mas com uma maior presença da metrópole, principalmente com o envio de soldados e de ações mais violentas e repressoras. Portugueses presos e perseguidos pela ditadura foram exilados em Moçambique e em outras colônias (CABAÇO, 2007). As “campanhas militares de pacificação” do Estado Português resultaram em forte resistência e reação interna. Ao final da Segunda Grande Guerra e o início de descolonização na África, as pressões aumentaram para a independência em Moçambique, mas a ditadura em Portugal resolveu manter e reforçar suas colônias. Esse processo resultou em uma sangrenta e longa guerra, intensificada a partir de setembro de 1964. Várias organizações políticas de apoio à resistência foram criadas em países vizinhos e davam apoio à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). A guerra colonial terminou em setembro de 1974 e Portugal somente reconheceu a independência em 25 de junho de 1975 (CABAÇO, 2007). SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE A história de São Tomé e Príncipe também é a história dos modos da colonização portuguesa, isto é, de ampla exploração da terra e da captura, escravização e comércio de seus habitantes. É um processo de extrema violência. Também como as demais nações, a COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 137 narrativa de sua constituição é composta somente a partir da invasão dos europeus. Antes da entrada dos portugueses João de Santarém e Pedro Escobar na ilha de São Tomé, em 1460, e, um ano depois, na de Príncipe, esse arquipélago, localizado no Golfo da Guiné, já era ocupado por nativos que viviam de agricultura, pesca e extrativismo, conforme diz Augusto Nascimento (2001). Em razão da pouca povoação nas duas ilhas, os invasores portugueses despejaram lá inúmeros europeus degradados, muitos filhos de judeus, e outros negros já escravizados na costa da África. Com o avançado da colonização, também para lá foram mandados brasileiros inimigos da coroa portuguesa. Por força de sua localização geográfica estratégica, as ilhas de São Tomé e de Príncipe se tornaram importante entreposto comercial de escravos, que saíam para outras colônias e Europa. Muitos dos que chegaram ao Brasil, também passaram pelas Ilhas de São Tomé e de Príncipe. Nascimento (2001) ressalta a extrema violência dos portugueses para com os escravos, o que sempre produzia fortes reações. Eram registradas fugas dos negros para as florestas e ações organizadas de resistência, como ataque nas fazendas e incêndios em plantações. No interior das ilhas, eram formados quilombos e em um dos mais importantes deles, Amador, um ex-escravo chegou a ser proclamado rei de São Tomé, comandando grandes revoltas, mas foi assassinado em 1596 (NASCIMENTO, 2001). Com a redução do tráfico de escravizados para as ilhas, muitos mais moçambicanos, cabo-verdianos e angolanos foram deslocados para elas e se envolveram nas roças de cana-de-açúcar, cacau, pimenta, fumo, café. A questão é que as práticas coloniais mais violentas eram intensificadas no sentido da máxima exploração para o envio à metrópole. De outro lado, o processo de revolta também se avolumava. Nascimento (2013) nos lembra do Massacre de Batefá, em 1953, quando mais de mil são-tomenses foram mortos pelos colonizadores. Considera-se esse evento como divisor político nas ilhas, porque, depois dele, iniciou-se uma organização na resistência e que resultou na criação do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), na guerra colonial e na independência em 12 de julho de 1975 (NASCIMENTO, 2013). TIMOR-LESTE A República Democrática do Timor-Leste somente tornou-se um país livre em 20 de maio de 2002. Sua história é de longas dominações coloniais, de massacres contra sua população e de uma constante reconstrução. Timor fica no sudeste asiático, tem uma COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 138 fronteira terrestre com a Indonésia e uma marítima com a Austrália. Timor é um país que tem como capital Díli e que fica na costa norte. Diz Carolina Galdino (2012) que a ida de Portugal ao sudeste asiático era parte do projeto econômico de estabelecer comércio com o Oriente, desviando-se do controle quase total que os venezianos e genoveses tinham. Antes dos invasores europeus, Timor era ocupada por caçadores e agricultores que já faziam uma espécie de comércio com chineses e com a Índia. A região produzia madeira, sândalo e outras especiarias, e as sociedades eram organizadas em reinos (GALDINO, 2012). Os portugueses chegaram em Timor por volta de 1511, em busca de escravos, metais e especiarias. Como ocorreu em outras invasões, a ideia de missão civilizatória também era o argumento. No caso do Timor-Leste, junto com as tropas, iam jesuítas para implantar os modos cristãos. A violência era marca registrada nessas invasões. No caso do Timor, era bastante comum os europeus cortarem as cabeças, em praça pública, dos nativos que se recusavam a se converter em cristãos-escravos, como nos lembra Maria Johanna Schouten (1999). Na prática, dentre todas as colônias, Timor era aquela que menos interessava a Portugal. Assim: A atuação dos portugueses durante a maior parte do período de contactos com o Timor caracterizou-se pela indiferença, por campanhas militares sangrentas e pela exploração econômica. Na visão dos muitos oficiais coloniais em Timor e noutros territórios, o mais importante elemento da missão civilizadora era ensinar a trabalhar – quer isto dizer, sob as condições dos portugueses (SCHOUTEN, 1999, p. 11). Segundo Galdino (2012), Timor-Leste também foi um palco de inúmeras ações de resistência contra as violências empregadas pelos invasores europeus. Uma das revoltas mais conhecidas foi a de Manufahi, entre 1911 e 12, e com mais de 15 mil mortos. Com o fim da Segunda Guerra e com as tensões políticas em Portugal que resultaram no fim da ditadura de Salazar, os grupos de resistência em Timor se mobilizaram para sua independência. Essas ações também chamaram a atenção da vizinha Indonésia, em razão das fragilidades deixadas pelos portugueses. Na prática, Timor parecia terra de ninguém (GALDINO, 2012). Alegando agressões ao território leste-timorense e a falta de capacidade do governo português na condução do processo da descolonização, a Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (FRETILIN) proclamou, unilateralmente, a independência do país em 28 de novembro de 1975. As forças portuguesas abandonaram o Timor e, cinco COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 139 dias depois dessa independência, a Indonésia invadiu violentamente Timor, e implantou um longo período de 27 anos de terror neocolonial, ou seja, estendendo-se até 2002 (GALDINO, 2012). Assim que as terras de Timor foram invadidas pela Indonésia, os dirigentes da FRETILIN e parte da população timorense refugiaram-se nas montanhas. De lá, buscando apoios internacionais, a resistência denunciou massacres e aniquilamento da população civil. Quando Suharto, o ditador da Indonésia, tentava aprovar mais um mandato em seu país, o quinto, percebeu a pressão internacional aumentar em razão de denúncias de alta corrupção. Assim, em 1998, fez a transferência de poder ao ministro Habibie. No ano seguinte, o novo mandante indonésio foi obrigado a aceitar a independência do Timor, que só se concretizou em maio de 2002, com a eleição de Xanana Gusmão para a presidência (GALDINO, 2012). Depois dessa sucinta apresentação histórica dos países membros da CPLP, retomemos à busca da construção dessa comunidade, destacando algumas ações que envolveram a relação entre o Brasil e Portugal. Em 1825, o Brasil foi obrigado a assinar um Tratado de Paz e Aliança com Portugal. Esta era uma forma forçada de amarrar as colônias portuguesas e mesmo as ex-colônias à metrópole europeia. Através desse tratado, por exemplo, os portugueses reconheciam a independência política brasileira, porém obrigava o Brasil a ser uma nação aliada a Portugal. Os portugueses também tinham um estatuto especial nas terras brasileiras e até proibia que o Brasil tivesse relações comerciais com as colônias portuguesas na África e na Ásia. Essa “paz” imposta por Portugal ao Brasil foi um instrumento econômico pactuado com a Inglaterra 40 . Em fins do século XIX, foram ampliadas as iniciativas para reforçar esses “laços de amizade” entre Brasil e Portugal, sem as colônias portuguesas da África. Hélio Magalhães de Mendonça (2002, p. 12) lembra que, em maio de 1902, em uma conferência no Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro, o intelectual brasileiro Silvio Romero propôs “uma federação luso-brasileira, que podia constituir um bloco tanto cultural como militar”. Essa proposta era uma reação à união hispano-argentina. Em 1917, o então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Bettencourt Rodrigues defendeu a criação de uma Confederação Luso-Brasileira. 40 A Inglaterra, em troca de reconhecer a independência brasileira, obrigou o Brasil a “pagar uma indenização a Portugal no montante de 2 milhões de libras esterlinas, sendo 1,4 milhão em empréstimos tomado a banco ingleses” (BETHELL, 2012, p. 136). COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 140 Nas décadas de 30 e 40, especialmente no Brasil, prevaleciam muitas ideias de uma grande “civilização luso-tropical”, composta por Portugal, Brasil e as colônias lusófonas na África e na Ásia. Intelectuais, como Gilberto Freyre, produziam livros e artigos nos jornais, que festejavam o luso-tropicalismo, o que ajudou a reforçar a ditadura que se instalou em Portugal a partir de 1933, com Antônio Salazar, e a manutenção do sistema colonial português. Para celebrar “as glórias” de ter criado uma grande nação, o Brasil, e de estar “civilizando” na África, a ditadura portuguesa realizou “eventos patrióticos”: a I Exposição Colonial Portuguesa (1934); a I Conferência Econômica do Império Colonial Português e a Conferência de Alta Cultura Colonial (1936); o I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo (1937); e a Grande Exposição do Mundo Português (1940) (MATTOSO, 1998, p. 245-294). No Brasil, o presidente Getúlio Vargas renovou e atualizou o antigo Tratado de Paz e Aliança entre Brasil e Portugal, fazendo nascer, em 1953, o Tratado de Amizade e Consulta, que também reforçava o colonialismo português na África. O presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) manteve e ampliou esse tratado, assinando outros acordos. Porém, com a eleição de Jânio Quadros (1960) e a implantação da Política Externa Independente (PEI), as relações entre Brasil e Portugal ficaram estremecidas. Quadros externou interesses econômicos nos países africanos, ainda colônias portuguesas, o que contrariou Salazar. Todavia, com o golpe e a ditadura civil-militar no Brasil, em 1964, as antigas relações com Portugal foram retomadas. Presidentes militares manifestaram interesse por parcerias neocoloniais na África, mas com portugueses no comando. O ditador brasileiro Castelo Branco chegou a propor uma organização entre Portugal e Brasil para explorar mais o continente africano. No entender de José Flávio Sombra Saraiva (1996), o que estava em jogo, desde Gilberto Freyre e se estendendo para depois, era a concepção de que o Brasil, em razão do mito da democracia racial e da força econômica que se anunciava, poderia servir de exemplo de sucesso para atualizar a “missão portuguesa” na África. Também, por isso, o Brasil seria um intermediário (SARAIVA, 1996, p. 51). A ditadura portuguesa se estendeu até 1974 e, antes terminar, Adriano Moreira, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, realizou eventos com alguns representantes de países e das regiões em que os portugueses buscavam influenciar. Em 1964, ocorreu o I Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, e em 1967, realizou- se o II Congresso, a bordo do navio Príncipe Perfeito, em Moçambique. Dessas ações COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 141 surgiram a Academia Internacional de Cultura Portuguesa e a União das Comunidades de Cultura Portuguesa. Mesmo louvando-se o império português, esses encontros acabavam gestando sentimentos de reivindicações, queixas, pedidos de reparação pelos povos colonizados, o que contrariava a ditadura portuguesa. Por conta disso, o III Congresso, que seria realizado no Brasil em 1969, não chegou a ocorrer. A Revolução dos Cravos em Portugal, em abril de 1974, tinha entre suas pautas o fim da guerra colonial. Naquela altura, eram intensos os movimentos e as lutas pela independência nas colônias na África e na Ásia. Relembremos que, em outubro de 1968, a Guiné Equatorial já tinha conquistado a liberdade. Em setembro de 1974, a Guiné-Bissau também deixou de ser colônia. No ano seguinte, em junho, foi Moçambique. Na sequência, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, em julho de 1975. Angola ficou independente em novembro de 1975. Na Ásia, em dezembro de 1975, o Timor-Leste se libertou de Portugal, mas dias depois, como já vimos, foi invadido pela Indonésia. Só em maio de 2002, depois de intensas lutas, o Timor conquista a independência. No início dos anos 1980, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Jaime Gama, realizou, sem sucesso, conversações para retomar a ideia de “união lusófona”. Em 1986, foi criada, em Cabo Verde, a Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP). No Brasil, em 1988, o então ministro da Cultura, José Aparecido de Oliveira, viajou aos países lusófonos na tentativa de criar a comunidade, o que não aconteceu. No ano seguinte, ocorreu uma reunião em São Luís, no Maranhão, onde foi criado o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP). No início de 1994, Brasília sediou a reunião dos Ministros de Negócios Estrangeiros dos sete países de língua portuguesa, e ficou decidida a realização, ainda naquele ano, da conferência para implantar a CPLP, porém isso só ocorreu dois anos depois. Parte do contexto internacional em que essa comunidade foi institucionalizada estava marcado pela ideia de fim da guerra fria. Os países buscavam novas parcerias, principalmente comerciais. Havia a convergência de ideias de que o mundo se globalizava, uma globalização especialmente capitaneada pelos Estados Unidos e pelos países mais ricos da Europa. Sobre a conjuntura internacional quando da criação da CPLP: Ao nível interno, os nossos países enfrentavam desafios que revestiam-se de características muito distintas: Angola encontrava-se num contexto de guerra e o Brasil fazia face às dificuldades impostas pela crise financeira como resultado da introdução do plano real. Cabo-Verde lançava as bases para a afirmação da democracia pluripartidária e a Guiné-Bissau vivia uma experiência democrática dinâmica antes de mergulhar na presente era de conflitos. Moçambique recém- COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 142 saído da guerra de desestabilização procurava estruturar-se, ensaiando os primeiros passos de democracia multipartidária e Portugal enfrentava os desafios da integração europeia. São Tomé e Príncipe conservava a estabilidade democrática não obstante a ocorrência de alguns episódios de conflitos a nível institucional e Timor-Leste lutava heroicamente para afirmar sua autodeterminação (ILHARCO; MURARGY, 2014, p. 6). Foi nesse cenário que se fundou a CPLP, em um evento no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Nesse ato constitutivo, a primeira Conferência dos Chefes de Estado e de Governo, estavam os presidentes José Eduardo dos Santos, de Angola; Fernando Henrique Cardoso, do Brasil; Mascarenhas Monteiro, de Cabo Verde; Bernardo Nino Vieira, da Guiné-Bissau; Joaquim Chissano, de Moçambique; Jorge Sampaio, de Portugal; e Armindo Vaz de Almeida, primeiro ministro de São Tomé e Príncipe. Essa entidade- comunidade nasceu com os seguintes objetivos: a) A concertação político-diplomática entre os seus membros em matéria de relações internacionais, nomeadamente para o reforço da sua presença nos fora internacionais; b) A cooperação em todos os domínios, inclusive os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, cultura, desporto e comunicação social; c) A materialização de projectos de promoção e difusão da Língua Portuguesa, designadamente através do Instituto Internacional de Língua Portuguesa. (ESTATUTOS DA CPLP, Rev. 2007, Art. 3º). Nessa primeira conferência, a CPLP foi definida por princípios orientadores: a) Igualdade soberana dos Estados membros; b) Não ingerência nos assuntos internos de cada Estado; c) Respeito pela sua identidade nacional; d) Reciprocidade de tratamento; e) Primado da Paz, da Democracia, do Estado de Direito, dos Direitos Humanos e da Justiça Social; f) Respeito pela sua integridade territorial; g) Promoção do Desenvolvimento; h) Promoção da cooperação mutuamente vantajosa. (ESTATUTOS DA CPLP, Rev. 2007, Art. 5º). A CPLP surge com a seguinte hierarquia decrescente: Conferência de Chefes de Estado e de Governo; Conselho de Ministros; Comitê de Concertação Permanente; e Secretariado Executivo. A conferência de Chefes de Estado reúne-se a cada dois anos ordinariamente ou a qualquer tempo, extraordinariamente. A segunda conferência da CPLP ocorreu em Cabo Verde (1998); a terceira, em Moçambique (2000); a quarta, no Brasil (2002); a quinta, em São Tomé e Príncipe (2004); a sexta, em Guiné Bissau (2006); a COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 143 sétima, em Portugal (2008); a oitava, em Angola (2010); a nona, em Moçambique (2012); a décima, em Timor-Leste (2014), e a décima primeira, no Brasil (2016). Na conferência do Brasil, em 2002, Timor-Leste foi admitido como membro efetivo da CPLP e dois outros órgãos passaram a fazer parte da estrutura da entidade: ministérios setoriais e de pontos focais para a cooperação. Em 2005, a CPLP reconheceu o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) como órgão adicional da comunidade. Em 2007, a Assembleia Parlamentar passou a integrar a CPLP. E em 2014, a Guiné Equatorial tronou-se estado membro dessa comunidade. Com exceção do Brasil, seguem os perfis econômicos resumidos dos países da comunidade 41 : País: República de Angola Capital: Luanda. Outras cidades: Huambo, Lobito, Cabinda, Benguela, Lubango, Malange. População: 29.359.634 habitantes Língua(s): Português, Umbundo, Kimbundo, Kikongo e Tchokwé. Moeda oficial Kwanza (Kz). Área: 1 246 700,0 km2 Recursos econômicos: Possui diversidade de recursos naturais. Estima-se que seu subsolo tenha 35 dos 45 minerais mais importantes do comércio mundial, entre os quais se destacam petróleo, diamante e gás natural. Há também grandes reservas de fosfato, ferro, manganésio, cobre, ouro e rochas ornamentais, além de uma grande produção pecuária. A cultura do café e o petróleo representam 90% das exportações. As principais bacias de petróleo em expansão situam-se junto à costa nas províncias de Cabinda e Zaire, no norte do país. As reservas de diamantes nas províncias da Lunda Norte e Lunda Sul são admiradas por sua qualidade e consideradas uma das mais importantes do mundo. Nos serviços, o potencial turístico é incomensurável. País: República de Cabo Verde Capital: Cidade da Praia. Outras cidades: Mindelo, Assomada, S. Filipe. População: 539.560 habitantes Língua(s): Português, Crioulo e outras. Moeda oficial Escudo de Cabo Verde (CVE) Área: 4 033 km2 Recursos econômicos: Depende, sobretudo, da agricultura e da riqueza marinha. A agricultura sofre os efeitos das secas. As culturas mais importantes são café, banana, cana-de-açúcar, frutos tropicais, milho, feijão, batata doce e mandioca. O setor industrial encontra-se em desenvolvimento. Destaca-se a fabricação de aguardente, vestuário e calçado, tintas e vernizes, o turismo, a pesca e a extração de sal, o artesanato e a construção. A banana e a indústria das conservas de peixe, as lagostas, o sal e as confecções são os principais produtos exportados. O comércio e o turismo na ilha do Sal produzem 69 % do PIB, enquanto o setor secundário gera 17% do PIB. O país importa mais de 80 % dos alimentos que consome. Nos serviços, o turismo está consolidado. País: República da Guiné-Bissau Capital: Bissau Outras cidades: Bafatá, Gabú, Mansôa, Catió, Cantchungo, Farim. 41 Disponível em . Informações adaptadas. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 144 População: 1.816.000 habitantes Língua(s): Português, Crioulo, Mandjaco, Mandinga e outras. Moeda oficial Franco (CFA) Área: 36 125,0 km2 Recursos econômicos: Depende da agricultura e da pesca (cerca de 62% do PIB). O preço das castanhas de caju aumentou e hoje o país encontra-se em sexto lugar na produção mundial do produto. A Guiné-Bissau exporta peixe e mariscos juntamente com caju, semente de palma e produtos das atividades extrativas florestais. As licenças para a pesca são fonte de receitas do Governo. O arroz é o cereal mais produzido e comida típica. O turismo é uma aposta crescente do país, podendo vir a representar uma fonte de receitas no futuro. País: República da Guiné Equatorial Capital: Malabo Outras cidades: Bata, as ilhas de Pagalu e Mbini População: 1.221.000 habitantes Língua(s): Português, Espanhol, Francês, Inglês, Fangue, Combe, Balenque. Moeda oficial Franco guineense Área: 28.051 km2 Recursos econômicos: Com a descoberta de reservas de petróleo e gás, na década de 1990, a economia da Guiné Equatorial se fortaleceu consideravelmente. O país tornou-se grande produtor e exportador de petróleo. A agricultura é outra atividade desenvolvida, com destaque para algodão, café, cana-de-açúcar e frutas. A criação de gado, exportação de madeira e a pesca são outros elementos da economia nacional. País: República de Moçambique Capital: Maputo Outras cidades: Beira, Nampula, Chimoio, Nacala-Porto, Quelimane, Tete, Xai-Xai, Pemba, Inhambane. População: 28.830.000 habitantes Língua(s): Português, Lomué, Makondé, Shona, Tsonga e Chicheua. Moeda oficial Metical (MZM) Área: 801.590 km2 Recursos econômicos: A economia é ainda precária. O turismo é de excelência e começa a assumir-se como um setor privilegiado no mercado global. O solo é rico em ouro, carvão, sal, grafite e bauxita, mas é pouco explorado. Moçambique possui também reservas de gás natural, mármore e madeiras. A maioria da população vive da agricultura de subsistência, mas o país exporta cana-de-açúcar, algodão, sisal, chá e tabaco. País: República Portuguesa Capital: Lisboa Outras cidades: Porto, Aveiro, Braga, Coimbra, Faro, Funchal (Madeira), Ponta Delgada (Açores), Setúbal. População: 10.309.573 habitantes Língua(s): Português Moeda oficial Euro (EUR) Área: 92 207,4 km2 Recursos econômicos: A produção agrícola é 4% do PIB. A principal cultura é a uva, situando o país entre os dez primeiros produtores mundiais de vinhos. Batata, beterraba, arroz, legumes, hortaliças e frutas também são importantes produtos. A abundância de sobreiros faz de Portugal o maior produtor mundial de cortiça. Na pecuária, destaca-se a produção de ovinos e, na pesca, a da sardinha. As principais atividades industriais concentram-se nos setores têxtil, siderúrgico, metalúrgico, automobilístico e químico. Também têm importância as indústrias alimentares (conservas de peixe, vinho, cerveja e azeite), de calçados e de cerâmica. O setor de serviços (destaque para o turismo) responde por 68% do PIB e por 60% dos empregos. País: República Democrática de São Tomé e Príncipe COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 145 Capital: São Tomé Outras cidades: Santo António, Santa Cruz, Neves. População: 199.910 habitantes Língua(s): Português, Crioulo e outras. Moeda oficial Dobra (STD) Área: 1 001,0 km2 Recursos econômicos: A principal atividade econômica é a agricultura, que produz cacau, óleo de palma, café e coco e a pesca. A descoberta de jazidas de petróleo nas suas águas pode constituir uma importante fonte de receitas e de energia no futuro. São Tomé também aposta no turismo e quer favorecer a qualidade, propondo um quadro único de descoberta, preservando o melhor possível as suas paisagens e a sua arquitetura singular. País: República Democrática de Timor-Leste Capital: Díli Outras cidades: Baucau, Manatuto, Aileu e Liquiçá. População: 1.269.000 habitantes Língua(s): Português, Tétum e outras. Moeda oficial Dólar norte-americano (USD). O Estado também cunha o “centavo”. Área: 14 954,4 km2 Recursos econômicos: A economia de Timor-Leste assenta na produção de cacau, café, cravo e coco. Nos últimos anos foram encontradas reservas de petróleo e gás natural. Ao visualizarmos o mapa do mundo e observarmos os perfis dos países membros da CPLP, podemos antever os desafios e os esforços para se imaginar uma comunidade. Vale lembrar que os países-membros dessa entidade estão inseridos em conjunturas políticas e econômicas díspares, a exemplo de Portugal, na União Europeia; o Brasil, no Mercosul e nos BRICS; os países africanos, associados a outros agrupamentos naquele continente, a exemplo da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), da Comunidade Econômica da África Central (CEEAC). O Timor-Leste, por sua vez, está filiado na Associação das Nações do Sudoeste Asiático (ASEAN). É claro que as condições econômicas são importantes para imaginar a comunidade, assim como é a língua, mas pensar a CPLP como uma reunião de países na ótica econômica, e de um idioma comum e oficial, como propriedades que justificassem essa comunidade, não corresponde à realidade dos fatos. Além disso, despejar na CPLP uma esperança econômica na lógica global e alguma homogeneização linguística apaga as próprias potencialidades da CPLP ser uma experiência comunitária. Na prática, além de não possuir importância como bloco econômico, a CPLP ainda tem um reduzido peso político no cenário mundial. Algumas ações de maior destaque foram: apoio a Angola (2002), ao Brasil (2003) e a Portugal (2010) para conseguir uma vaga como membros não-permanentes do Conselho de Segurança da ONU, cargo de pouca influência; timidamente tentou interferir na guerra civil em Angola, que COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 146 terminou em 1998 e ainda hoje se registram conflitos; agiu a distância nas lutas de Timor- Leste pela independência, entre 1999 a 2002; envolveu-se, também de longe, nas resoluções sobre golpe de Estado em São Tomé e Príncipe, em 2003; e participou em mediações para as eleições na Guiné-Bissau. Do ponto de vista do Brasil, os governos brasileiros demonstraram pouco interesse nessa comunidade. Acordos de cooperação chegaram a ser assinados com alguns países, no âmbito da saúde, da educação e da agricultura. Talvez, a ação mais relevante foi a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em 2010, que se localiza no Ceará/Brasil. Nessa instituição, metade das vagas é destinada a candidatos da CPLP. No entender de Shiguenoli Miyamoto (2009, p. 33), “além da retórica de países irmãos unidos pela história, os indicadores entre Brasil e CPLP estão aquém do que se poderia considerar relações privilegiadas”. Segundo esse autor, A presença do Brasil na CPLP pode ser vista sob duas perspectivas: de um lado, no uso da mesma para projetar os interesses brasileiros no exterior, ou seja, uma instrumentalização feita pela política externa brasileira, visando maximizar o uso de todos os recursos possíveis existentes, inclusive para ocupar espaços maiores do que outros países junto às nações que fazem parte da comunidade; por outro lado [...] o Brasil também pensa em termos de atuação conjunta da CPLP para atender interesses globais que não seriam possíveis de se obter individualmente (MIYAMOTO, 2009, p. 33). As ações episódicas e dispersas da CPLP, como reuniões com finalidade para acordos de cooperação, parecem, de fato, muito aquém para um grupo de países que imagina ser uma comunidade. Apesar dos laços históricos entre eles, existem nessa comunidade as fronteiras econômicas e sociais que comprometem a própria ideia de comunidade. Dados oficiais da CPLP denunciam que o número de pessoas afetadas diariamente pela fome, nos nove países membros, ultrapassa os 28 milhões. O Instituto Nacional de Estatística de Portugal (INE, 2012) revelou, por exemplo, que nessa comunidade o Índice de Desenvolvimento Humano, que varia de 0 (zero), o mais baixo grau, até 1 (um), o mais alto grau, desloca-se, na CPLP, de 0,386, na Guiné-Bissau, a 0,822, em Portugal. Enquanto em Portugal a expectativa de vida chega aos 77,4 anos, em Moçambique é de 42,1 anos. Na mortalidade infantil, as diferenças também são gritantes: na Guiné-Bissau são 90,9 mortes de crianças de até um ano por 100 mil nascidas vivas, já em Portugal esse índice é de 4,48; no Brasil, 14,0. Enquanto Portugal tem 95,4% da população acima de 15 anos alfabetizada, em Guiné-Bissau são apenas 44,8% (INE, 2012). COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 147 Aqui podemos retomar algumas questões anteriores: onde estará o Outro na CPLP? Na lógica do modelo globalizado, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa figura em que espaço? Parece que os Outros estão bem visíveis e invisíveis na comunidade, e os números da pobreza não deixam dúvidas. A diferença está dentro da CPLP e ela, enquanto comunidade, é o próprio Outro para o modelo globalizado, que não a enxerga relevante na órbita do mercado, ao contrário, é vista como a comunidade que reúne, em sua maioria, nações negras, pobres, incômodas aos grandes interesses do capital. Além disso, a CPLP também pode ser o Outro a ser combatido pelos grupos que reivindicam o retorno das velhas identidades, da nação grande, com ações xenófobas, que não aceitam o contato com os países periféricos e não querem a presença perigosa e incômoda do Outro, o qual deveria permanecer confinado nas comunidades pobres. Entretanto, ao contrário do que se poderia imaginar, e apesar de toda sua trajetória apontar para uma não comunidade, sugerimos enxergar nela as condições privilegiadas que podem nos levar a pensar a CPLP em termos da communitas, em Esposito (2012). É exatamente em sua conformação histórica que podemos observar que nela há exigências, deveres, isto é, obrigações entre os seus membros que os fazem concebê-la como uma comunidade. É sobre essa perspectiva que discutiremos a seguir. 4.3 CPLP: communitas possível? As informações sobre a CPLP, em especial as condições sócio-históricas dos povos dessa comunidade, fazem-nos aprofundar a ideia de communitas e, de alguma forma, aproximam-nos da lusofonia, que é argumento utilizado para reunir as populações que falam em português. Reforçamos que os membros dessa comunidade transitam em um espaço identitário entrelaçado, em razão das construções históricas e que são rigorosamente constitutivas desses povos. Nesse sentido, sugerimos que parte das reflexões de Esposito (2005, 2012) sobre a communitas ajuda a pensar a lusofonia, mas em substituição da lógica de uma comunidade stricto sensu 42 . Esposito (2012), ao fazer o exercício etimológico da communitas, percebeu que a característica comum em comunidade não é uma identidade que seus membros têm como própria; não é a positividade partilhada que produzirá uma sensação de pertencimento a um 42 Publicamos na Revista Media & Jornalismo (n. 29, v. 16, de 2016) artigo em coautoria com o professor Elton Antunes, em que discutimos a comunidade, de modo especial a CPLP, como communitas, a partir do pensamento de Roberto Esposito. Disponível em: . COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 148 determinado grupo. O comum para se fazer communitas, vem da percepção da falta e da obrigação recíproca entre os membros. Sobre a lusofonia, resumidamente, chamamos a atenção ao fato de que ela é uma espécie de alegação que tenta entrecruzar os povos dos países que têm a língua portuguesa como um dos seus instrumentos de expressão. Destacamos, porém, que a ideia de lusofonia recebe críticas, principalmente quando é utilizada como uma retórica a esconder certo desejo de Portugal em manter uma nostalgia imperial, isto é, imaginando-se ainda como metrópole e os países por ele invadidos nos séculos XIV e XV, ainda como suas colônias (LOURENÇO, 2001). O fato é que temos, pelo menos institucionalmente, uma entidade transnacional e que se intitula de comunidade, a CPLP, e em 17 de julho de 2016 ela completou 20 anos de sua instituição oficial. Os povos dos nove países membros da CPLP e os das regiões que falam em português têm, na concepção dessa entidade, o sentido de uma comunidade lusófona. A questão é saber se essa condição linguística ou mesmo uma vontade institucional teriam forças para realizar-se como comunidade. A partir da ótica de Esposito, se a lusofonia for percebida na perspectiva do idioma ou da institucionalidade parece não haver sentido para que se avance em termos de comunidade. Entretanto, se ela for como portas e janelas abertas para as memórias históricas, entrelaçadas e constitutivas dos seus povos, e que tem a diversidade como o seu maior valor, ela poderá ser pensada na lógica de uma communitas, porque vai emergir aí uma série de obrigações e dívidas ainda a saldar. A comunidade pensada por Esposito (2012) não se enquadra nos limites geográficos e, também, nesse ponto, há uma vantagem para a comunidade lusófona em razão de ela está espalhada por vários continentes. Além disso, a comunidade lusófona tem como marcada a sua intensa diversidade e isso é outro elemento de esperança para refleti-la como communitas. O que conta para a comunidade se realizar, segundo Esposito, é a coexperiência de todos em uma busca pelo bem comum, pela vida plena da coletividade, em que, “o dever e a tarefa para com o outro possam ainda ser elementos de ligação”, conforme explica Raquel Paiva (2012, p. 71). Em seu estudo, Esposito voltou-se ao cum+munus do “comum” da comunidade. O cum é equivalente ao “com”, ou seja, “aquilo que nos coloca uns diante dos outros, uns em relação com os outros – é o que nos lança na experiência de estar junto” (PAIVA, 2012, p. 72). O munus, diz Esposito, tem relação direta com o onus, o officium e o donum que, respectivamente, podemos traduzir como “ônus”, “ofício” e o “dom ou doação”. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 149 Assim, o aprofundamento etimológico da comunidade compromete a ideia de que nela existe uma propriedade que seus membros têm em comum e que os qualifica como pertencentes a um mesmo um conjunto, ou seja, é como se eles tivessem uma “‘substância’ produzida por sua união” (ESPOSITO, 2012, p. 22)43. Contudo, insiste esse autor (2012, p. 25) “em todas as línguas neolatinas, e não somente nelas, ‘comum’ (commun, comune, common, kommun) é o que não é próprio, começando ali, onde o próprio termina”44. Esposito lembra que o próprio se liga à propriedade, ao proprietário, à posse de algo, ao patrimônio. Já o comum aponta para o seu oposto, isto é, para aquilo que é mais de um, que é de muitos, que remete ao público, que é de todos e para todos, sem ser o patrimônio de um ou de alguns. Em resumo, se o comum for associado ao próprio, terminará por apagar o munus, ou seja, os deveres, os ônus e as doações serão sufocados e impedidos. Para esse filósofo, as funções e as obrigações vão implicar e entrelaçar, de forma rigorosa, todos os membros da comunidade em um compromisso inabalável, em uma retribuição fraterna e gratuita, em uma obrigação de fazer sem esperar retorno. Ao participar da communitas estamos implicados no ônus de retribuição, “seja em forma de bens ou em forma de serviços (officium)” (ESPOSITO, 2012, p. 27)45. Tomando-se por base Esposito, podemos dizer que a comunidade se realiza como experiência histórica nas relações sociais, no com, ou seja, no estar juntos, como doadores e donatários, personagens do mesmo Ser, sem a possibilidade de separação entre essas tarefas. Nesse tipo de comunidade não existe o eu e nem o Outro, apenas o nós, em communitas, e isso porque existe nessa experiência comunitária a “reciprocidade, ou ‘mutualidade’ (munus-mutuus), de um dar que determina entre o um e o outro um compromisso, e digamos também um juramento, comum” (ESPOSITO, 2012, p. 28-29)46. No entanto, esse filósofo percebe que uma communitas plena pode sufocar a subjetividade, tornando-se um organismo totalitário. Como conceber um agrupamento social na lógica de uma reciprocidade fraterna sem o reconhecimento do sujeito que a compõe? Não será a reunião de partes que formará o todo? Onde estarão as partes na comunidade? É aqui que Esposito (2005) encontra transitando de forma obrigatória na communitas a sua própria condição dialética: a immunitas. Enquanto os sujeitos communis têm deveres a desempenhar, os immunis se sentem desobrigados, “dispensados da dívida 43 “[...]‘sustancia’ producida por su unión”. 44 “[...]en todas las lenguas neolatinas, y no solo em ellas, ‘comum’ (commun, comune, common, kommun) es lo que no es proprio, que empieza allí donde lo proprio termina”. 45 “[...]sea em términos de bienes, ou en terminos de servicio (officium)”. 46 “[...]reciprocidad, ou ‘mutualidad’ (múnus-mutuus), del dar que determina entre el uno y otro un compromiso, y digámoslo también un juramento, común”. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 150 que os une uns aos outros, estão liberados do contato que ameaça a sua identidade e sua individualidade, e de possibilidades que os exponha a um possível conflito com o seu vizinho” (PAIVA, 2012, p. 73). Essa discussão nos leva a refletir que a comunidade, além da tensão global/local, vai também enfrentar a tensão communis/immunis. Neste capítulo, vimos que uma série de forças globais age contra a comunidade e afasta o Outro. Também percebemos a existência de outras forças que reivindicam a identidade local, com o reforço de fronteiras para impedir a aproximação do Outro. Além disso, as tensões também estão no centro da própria comunidade, como pressões que buscam manipular a ideia, a realização e a sua direção, ou mesmo, o seu fim. Nesse ponto, por agora, sugerimos que a lusofonia poderá ter um papel immunitas, caso não permita desnudar as amarrações sócio-históricas que envolvem constitutivamente os povos da CPLP. Todavia, ao contrário, como communitas, ela pode fazer emergir os vínculos tão profundos entre as pessoas, que ficarão visíveis as dívidas históricas ainda abertas, as inúmeras obrigações a cumprir, os deveres recíprocos a serem realizados como comunidade. Talvez por isso, o termo e as temáticas em torno da lusofonia ainda guardam inúmeras tensões visíveis e invisíveis. No regime de visibilização, a lusofonia pode dar a ver uma comunidade institucional e que fala em português, em uma perspectiva linguística e que acaba ocultando a possibilidade de construção de uma comunidade em que o comum é a dívida histórica ainda não quitada, exigindo compromissos e partilhas. Por isso, é importante retomarmos a ideia sobre lusofonia. Apesar de ela ter uma certidão de nascimento lusa, europeia, na prática, a lusofonia é portuguesa e também intensamente angolana, cabo-verdiana, guineense, guinéu-equatoriana, moçambicana, são- tomense, brasileira, timorense, galega, indiana. É essa condição espraiada e incontrolável que não permite sua homogeneização, um padrão fixo e limitado. Talvez, por isso, e não somente por isso, o mais correto seria falar em lusofonias. Desse modo, os primeiros passos para que a CPLP se configure como communitas é não permitir que certo vício de partida europeia e de uma ilusória unidade linguística conforme uma identidade, a essência para seus povos. Para além dessas configurações, a CPLP é um espaço privilegiado em razão das histórias constitutivas e entrelaçadas de seus povos, o que, obrigatoriamente, impulsiona uma reflexão sobre as obrigações, as dívidas e os deveres comuns. As condições sociais, políticas e culturais de suas populações são como o combustível para que a comunidade dos países de língua portuguesa possa ser COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 151 pensada e experimentada como communitas. Esse percurso pela lusofonia ultrapassa as perspectivas linguísticas e geográficas em razão da diversidade que a constitui. O imaginário lusófono tornou-se, definitivamente, o da pluralidade e da diferença e é através dessa evidência que nos cabe, ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a um espaço cultural fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido da partilha comum, só pode existir pelo conhecimento cada vez mais sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade e dessa diferença (LOURENÇO, 2001, p. 111, grifos do autor). Relembremos que a ideia de lusofonia surge como uma forma de Portugal reforçar as ações imperiais junto às colônias na África, na Ásia e na ex-colônia brasileira. Ou seja, nasce como uma imposição para dar um sentido a uma comunidade. A exaltação ilusória de uma única língua como sua propriedade, em certa medida, dava roupas novas ao velho império, atualizando a “missão civilizadora”. O Brasil, criado por Portugal e que tinha se tornado uma nação, era o exemplo para justificar a manutenção das ações neocoloniais portuguesas. Na prática, com a apologia do “mundo lusófono”, o “mundo que o português criou”, Portugal buscava negar, nas análises de Rosa Cabecinhas e de Luís Cunha (2003, p. 166), a sua “pequenez europeia”. A partir dos anos 1950, o projeto da lusofonia ganhou outro aspecto, especialmente quando as colônias portuguesas na África e também dos outros países europeus já passavam por lutas de independência. Portugal manteve o controle de suas áreas, mas alterou a retórica de dominação. Por exemplo, “em 1951 foram abolidas as designações de ‘império colonial’ e de ‘colônias’, até então utilizadas nos textos oficiais, sendo substituídas por ‘ultramar’ e ‘províncias ultramarinas’” (CABECINHAS; CUNHA, 2003, p. 174). A ideia era retirar o peso da violência colonial do império e passar uma sensação do “único Portugal”, unindo o Minho, ao norte de Portugal, até o Timor-Leste. Ocorre que a ditadura portuguesa, na prática, revelava-se anacrônica e uma série de controles sobre as colônias africanas não estava mais funcionando como antes. As lutas pelas independências foram intensificadas nos anos 1960. Entretanto, independentemente dos caminhos adotados pelas ex-colônias portuguesas na África, a lusofonia europeia, como um modelo a ser imitado, já tinha deixado profundas raízes em razão de assimilação cultural, que buscava apagar o Outro, o negro, o pobre, o colonizado, dentro das ex-colônias. Muitas elites nacionais africanas que assumiram o comando depois das independências sentiam-se mais europeias e mantiveram COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 152 as lógicas identitárias de dominação. O português nesses países se tornou a língua dos governos, de alguns negócios, mas não da maioria da população. O reflexo desse processo, do ponto de vista da comunidade dos países que falam em português na África, Ásia e no Brasil, é um frágil ajuntamento de nações, movido por algum esforço institucional e em torno de ilusórias unidades linguísticas. A lusofonia, nesse ponto, pode até ganhar um espaço no regime de visibilização, mas sua aparição gira em torno de uma festa literária, sem iluminar as diversidades culturais de seus povos, as histórias entrecruzadas e constitutivas entre eles, além de tornar invisíveis as desigualdades sociais, econômicas, políticas dos povos da CPLP. Assim, a lusofonia se afasta das condições para uma experiência communitas. Mesmo como assimiladas, as lusofonias a circularem nos países que foram colonizados parecem manter a diferença perpétua, isto é, de um Outro que deve ficar fora das fronteiras da civilização. “Enquanto aos portugueses são abertos todos os caminhos e diluídas todas as fronteiras, aos outros (os negros) é destinado um papel específico num lugar com fronteiras bem delimitadas” (CABECINHAS, 2002, p. 98, grifo da autora). Para essa autora, “a descolonização não estará completa enquanto perdurarem visões do mundo profundamente eurocêntricas” (CABECINHAS, 2012, p. 173). Também Maria Manuel Baptista (2006, p. 24) observa que a lusofonia assinala para Portugal “um lugar de ‘não- reflexão’, de ‘não conhecimento’, e sobretudo de ‘não-reconhecimento’, quer de si próprio, quer do outro”. De alguma forma, esse é o entendimento de Lourenço (2001) ao criticar a utilização da lusofonia como a nostalgia imperial, o “mapa cor-de-rosa” de Portugal, em que todos os “impérios podem ser inscritos, invisíveis e até ridículos para quem nos vê de fora, mas brilhando para nós como uma chama no átrio da nossa alma” (LOURENÇO, 2001, p. 179). Esse autor admite até como natural que essa ficção lusófona se manifeste em Portugal, revelando uma busca simbólica “à procura de si mesmo através dos outros e dos outros através de si mesmo” (LOURENÇO, 2001, p. 111-112, grifos do autor). Um dos pontos da crítica de Lourenço sobre a lusofonia parte justamente da língua portuguesa, em que ele segue a mesma linha de José Saramago. “Não é Portugal ou os outros países lusófonos que falam o português, é a língua portuguesa que fala Portugal e esses outros países” (LOURENÇO, 2001, p. 189). Ele sustenta que a língua não é de ninguém, não tem dono, sendo “uma invenção de quem a fala [...] uma manifestação da vida e com ela em perpétua metamorfose” (LOURENÇO, 2001, p. 120-121). Assim, em seu entender, a lusofonia não pode, nem metaforicamente, ser imaginada como espaço de COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 153 portugalidade 47 . Esse autor critica Portugal por tratar a língua como se fosse conquista, um legado premeditado, o que não passa de ilusão, de uma “miragem imperial”, “obra intermitente de obreiros de acaso e ganância (da terra e do céu)” (LOURENÇO, 2001, p. 122-123). Ainda sobre a língua portuguesa, o autor afirma que, [...] da América à Ásia, cada povo que fala hoje o português a modelou, a recriou à sua imagem. Nenhum exemplo é mais relevante do que o Brasil. É um continente escrito em português, mas num português-outro, adoçado pela brisa dos trópicos, a música africana, o contributo de todos os que o destino aí levou ao longo dos últimos dois séculos (LOURENÇO, 2001, p. 132, grifos do autor). Apesar das críticas, esse e outros autores não descartam uma possibilidade para que se tenha a comunidade com base na lusofonia, mas essa ação precisa ser democratizada, isto é, que não tenha um centro. Sobre a lusofonia Lourenço (2001, p. 166) afirma que Portugal precisa reconhecer que “os outros não a sonharão como nós”, em razão de sua ampla diversidade. Para esse autor, a CPLP pode ser reconhecida como comunidade se todos a vivenciarem como “portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-verdiana ou são-tomense” (LOURENÇO, 2001, p. 111). Entendemos que aqui está uma chave de leitura que aproxima a lusofonia da communitas: a diversidade das relações sócio-históricas tecidas entre seus povos. Não se trata de vislumbrar a comunidade ideal, pronta e perfeita, mas uma experiência que vai se tecendo nas diferenças e nas imperfeições de um projeto ainda em devir. O apelo à lusofonia só tem verdadeiro sentido e, sobretudo, efeitos práticos se nos vier de fora. Quer dizer, se for uma palavra do outro, que pode falar ou fala português nós, mas que não tem a mesma memória cultural e não condivide conosco obrigatoriamente a mesma mitologia, porventura os mesmos valores. Ele tornou-se esse outro até pela recusa, metamorfose, ou nova interpretação da herança cultural que ia outrora na língua portuguesa (LOURENÇO, 2001, p. 192, grifos do autor). Analisa Moisés Martins (2015) que os países lusófonos se encontram, hoje, do mesmo lado da barricada, como lugares dominados, com uma comum subalternidade e em permanente afastamento em direção à periferia da globalização hegemônica. Diante desse quadro, em outro trabalho (2006, p. 81), esse autor defende que “a comunidade e a confraternidade de sentido e de partilhas comuns só podem realizar-se pela assunção dessa pluralidade e dessa diferença e pelo conhecimento aprofundado de uns e de outros”. 47 Sobre a discussão aprofundada sobre “portugalidade” e lusofonia, a partir de uma ótica crítica, recomendo uma obra importantíssima do português Victor de Sousa, e que foi lançada em 2017: SOUSA, Victor de. Da ‘portugalidade’ à lusofonia. Braga/Portugal: Edições Húmus/CECS, 2017. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 154 Sugerimos que a lusofonia deve ser pensada como um longo tecido em retalhos que, pelas tensões e relações assimétricas vai sendo alinhavado, constituindo-se como uma comunidade. Porém, talvez o maior obstáculo para que essa costura se realize é o não reconhecimento de um espelho que é apontado entre nós, e que lutamos para que ele não reflita o Outro como nós, mas somente o nós mesmos. Essa reflexão fica evidente ao iluminarmos a possibilidade de uma mobilidade radical entre os povos dessa comunidade, isto é, em que todos possam dizer que estão em uma casa comum, sem fronteiras e entraves. Lembra-nos Quijano (2009, p. 113) que “a ‘corporalidade’ é o nível decisivo das relações de poder. Porque o ‘corpo’ implica a ‘pessoa’”. A communitas e as identidades são, assim, um campo permanente de batalha. Por um lado, há uma série de forças centrípetas agindo para levantar muros, fechar as fronteiras e apagar o Outro. Por outro, mesmo diante da frágil institucionalidade da CPLP e da lusofonia que apenas é iluminada para dizer de um ilusório falar português, essa possibilidade de comunidade pode ser um meio de expressão, o fazer falar dos povos angolanos, cabo-verdianos, guineenses, guinéu-equatorianos, moçambicanos, são- tomenses, timorenses e brasileiros mais pobres e aqueles das regiões ainda não institucionalizadas. Entretanto, há uma força que age no sentido contrário, como impeditiva da communitas, e será sobre ela que vamos tratar na sequência. 4.4 As forças immunitas e o jornalismo Entendemos que são possíveis as condições sócio-históricas para que a comunidade dos povos que falam em português, mesmo reunida em torno de alguma institucionalidade, possa ser pensada como communitas, isto é, baseada em dívidas e obrigações entre os seus membros. Entretanto, como já pontuamos antes, a ideia de communitas implica no reconhecimento de sua própria condição dialética, a immunitas. Enquanto os que buscam construir a communitas estão implicados no compromisso coletivo, existem, nesse mesmo espaço comum, aqueles que se sentem desobrigados, isentos, que não assumem qualquer dívida, que não cultivam nenhuma doação recíproca. Assegura Esposito (2012, p. 30) que “a communitas está ligada ao sacrifício de uma compensação, enquanto a immunitas implica no benefício da dispensa”48. Em um trabalho específico sobre a immunitas, esse autor (2005) afirma que nem ela nem a communitas podem ser julgadas às pressas, por meio da moralidade do bem e do 48 “[...] la communitas está ligada al sacrificio de la compensatio, mientras que la immunitas implica el beneficio de la dispensatio”. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 155 mal, e não devem ser associadas aos contrastes positivo e negativo. Para ele, uma é o fundo da outra e, também, uma é o objeto da outra, e vice-versa. Ou seja, “em última instância, a imunidade é o limite interno que corta a comunidade dobrando-a sobre si próprio em uma forma que resulta às vezes constitutivas e destitutivas” (ESPOSITO, 2005, p. 19)49. Para esse filósofo, se a communitas fosse plena, sem qualquer freio, tornar-se-ia uma experiência totalitária em que a subjetividade seria sufocada. Assim, o immunitas coloca em tensão a comunidade para que ela não pareça absoluta, e aniquile o indivíduo. No entanto, a depender dos contextos e das forças políticas, das relações sociais em jogo, dos interesses econômicos em disputa, a ênfase para a immunitas poderá ser iluminada e infinitamente maior e, nesse caso, a experiência subjetiva do eu poderá sufocar, impedir e destruir quaisquer possibilidades para uma communitas. Diante do que refletimos neste capítulo sobre a globalização e as relações tensas com o Outro, sugerimos que as forças immunitas têm um transitar mais confortável e seguro por meio da lógica global. A ideia de um indivíduo-mundo sem quaisquer amarras locais e nacionais, ou seja, aquele que acredita ter o mundo ao alcance das mãos, e que o sucesso é obra do seu esforço pessoal, constitui as condições privilegiadas para fazer aparecer uma experiência immunis. Temos assim, o indivíduo imaginariamente globalizado que se sente desobrigado com o Outro, e até com os seus pares. Ele não tem qualquer sentido de dívida, de responsabilidade nem para com os mesmos; está desligado de “todo laço social, de todo vínculo natural, de toda lei em comum” (ESPOSITO, 2012: 43)50. De alguma forma, as condições immunitas também estão nos movimentos que usam da retórica patriótica, do resgate às tradições, das identidades locais, nacionais, da fabricação de pertenças a partir da exclusão e da expulsão do Outro. Nesses casos, os immunis estão no movimento de reconhecerem-se únicos e verdadeiros donos de seus destinos, isto é, agem no sentido da individualidade local, sem perspectiva de qualquer fraternidade universal. Além disso, esses grupos são assumidamente immunitas porque as suas principais bases de ação são de afastamento, de combate e eliminação das diferenças, do imigrante, do negro, do homossexual, do islâmico, isto é, do Outro que os constitui e que ocupa o mesmo espaço que eles. Esses grupos são immunitas não porque agem contra a ideia de comunidade, mas porque transformam a comunidade pensada em subjetividade 49 “En última instancia, la inmunidad es ellímite interno que corta la comunidad replegándola sobre sí en una forma que resulta a la vez constitutiva y destitutiva”. 50 “[...] de todo lazo social, de todo vínculo natural, de toda ley común”. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 156 individual e, principalmente, porque se sentem completamente dispensados, imunes de qualquer obrigação, de dívidas para os seus que são transformados em Outros. Diante do quadro contemporâneo, sugerimos que temos dois modos de ênfase e de ação immunitas: um, que é majoritário, voltado à globalização, do indivíduo-mundo, desligado e desobrigado com a comunidade; e outro, em crescimento, que busca uma ilusória segurança identitária de grupos fechados, localizados, com retóricas e práticas xenófobas, em que a desobrigação com o Outro e a cultura do ódio contra a diferença têm maiores visibilizações. E onde está o jornalismo nesse processo? As indicações de mundo que aparecem nas notícias para a experiência narrativa da vida encaminham-se para a experiência do “sacrifício” de um compromisso, de uma dívida e de uma retribuição fraterna, ou têm estimulado e reforçado as relações immunitas, na lógica da globalização e na dos grupos identitários xenófobos? Nesse ponto, é preciso relembrar que o jornalismo nasce vinculado aos interesses da política e da economia, isto é, surge como instrumento informativo de uma burguesia mercantil e que vai reforçar as esferas de poder. A imprensa é peça importante para o sentido de uma “comunidade imaginada”, da nação, e se desenvolve a partir da esteira das “descobertas” da Era Moderna, da ênfase do indivíduo, da razão. Isso implica dizer que o jornalismo vai agir como um entre outros tantos atores sociais e políticos na configuração do mundo dentro dos interesses da política, da economia, da cultura na lógica do capital. Não é demais lembrar que as práticas imperialistas e colonialistas, que marcam as histórias dos povos lusófonos, são profundamente desagregadoras. A lógica das invasões europeias na África e na América consistia em agir na separação dos índios, na destruição de suas nações, o mesmo ocorrendo com os negros capturados, escravizados e apartados dos núcleos grupais e familiares. A notícia da existência de quilombos, por exemplo, produzia uma mobilização de guerra para o arrasamento dessas organizações comunitárias. Ou seja, ao que parece, temos em nosso processo histórico o desenvolvimento de um valor social contrário à ideia de comunidade, principalmente se esta reunir pobres. As manifestações de resistência dos de baixo, que, de alguma forma, se agrupam comunitariamente, sempre foram justificativas para ações violentas e destrutivas dessas comunidades, obtendo amplo espaço na imprensa e no jornalismo da Casa Grande. No século XVIII, com o desenvolvimento das tecnologias de impressão, a abertura de estradas, a melhoria dos correios, as redes de notícias foram sendo ampliadas, e o jornal passou a ser percebido como um instrumento estratégico, uma mercadoria a auxiliar na organização e no controle das pessoas, uma espécie de guia político e moral. COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 157 Afirma Ortiz (2003, p. 35) que a imprensa era parte do conjunto de “coerção administrativa do Estado”, contribuindo na formação das consciências individuais e coletivas. A partir do século XX, com as mídias eletrônicas, o jornalismo ampliou sua presença social, dando a ver, com mais nitidez, um mundo único, com a redução drástica do espaço e do tempo. Giddens (2002, p. 12) nos relembra que a “experiência canalizada pelos meios de comunicação, desde a primeira experiência da escrita, tem influenciado tanto a auto-identidade quanto a organização das relações sociais”. Para esse autor, as convergências tecnológicas das mídias foram um dos sinais da “alta modernidade”, o que transformou o jornalismo em guia social de um mundo cada vez mais complexo. O jornalismo acompanha de perto o avanço na integração dos mercados globais e a radicalização do capitalismo a atravessar decisivamente as economias nacionais. Com isso, ele desloca suas atenções da comunidade local, nacionalizada, e passa a promover o mundo sem fronteiras, globalizado, moderno, em que o sucesso e a riqueza são méritos dos esforços únicos do indivíduo. As mídias dão ampla visibilização dos modos de vida nos países ricos, tecnológicos, abertos, lugares da ampla liberdade para a iniciativa privada. “Os estilos de vida dos mais prósperos são, de uma forma ou de outra, exibidos à vista de todos e retratados como dignos de imitação” (GIDDENS, 2002, p. 184). A intensa visibilização, pelo jornalismo, dos mais ricos, poderosos, globalizados e que devem ser copiados e imitados implica a reiterada visibilização do seu oposto, dos países e povos mais pobres, de hábitos primitivos e comunitários, atrasados, doentes, amorais, entregues por opção deles mesmos à corrupção, às ditaduras e aos rituais de feitiçaria. Não é demais reforçar que estamos tratando de um regime de visibilização em que o jornalismo dispara rápidas associações de pertenças e de diferenças identitárias. Uma das áreas do jornalismo mais nítidas, em que essas questões identitárias globais/locais possuem ampla visibilização indicativa, tanto para o desejo e imitação, quanto para sua forte rejeição, é a da cobertura internacional. Nela, por meio das seleções e do estabelecimento da lógica binária e econômica do mundo rico versus o mundo pobre, os Outros ganham materialidade e indicação geopolítica, como uma exposição pedagógica para as audiências. Existe nas notícias, principalmente nas internacionais, uma evidente indicação dos padrões aceitos de pensamento, comportamento, consumo, do modelo identitário a ser buscado e imitado, e o Outro a ser repelido e excluído. No jornalismo, [...] por um lado, vemos refletir-se um padrão de vida burguês internacionalizado, expressões de uma sociedade de consumo plena, padrões de vida internacionalizada, comportamentos “modernos” e vanguardas pós- COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 158 modernas. [...] Por outro lado, vemos expressões culturais semibárbaras, a miséria, a fome, o desespero, a tragédia humana, a violência rude, o exótico, o estranho, o inexplicável, o grotesco, expressões de nossa selvagem exclusão social, da miséria, de grupos marginais e da permanência entre nós de uma moral individualista, egoísta e oportunista (MOTTA, 2002, p. 31). Segundo Elfriede Fürsich (2016), o jornalismo apresenta reportagens internacionais que seguirão majoritariamente as doutrinas das políticas externas dos governos, baseando-se nas fontes e nos interesses das elites nacionais e internacionais. João Natali (2004, p. 32) diz que “a história do jornalismo internacional é de algum modo a história dos vencedores”. Em certa medida, esse tipo de jornalismo está muito mais alinhado às lógicas, aos pressupostos e aos princípios do capital internacional do que às ideias externas dos governos nacionais de plantão. Ou seja, o jornalismo internacional é balizador de como devem se comportar os governos diante dos cenários externos. Por exemplo, governos que buscam interferir na economia, que se aproximam de países mais periféricos, que criam algum tipo de entrave à livre circulação e atuação dos mercados, dos bancos e das empresas multinacionais serão alvo de críticas e de campanhas das mídias. Vale destacar que a maior parte da cobertura do mundo é alimentada pelas agências de notícias, que, por sua vez, têm as suas sedes nos países mais ricos da Europa e nos Estados Unidos. E o lugar de onde se fala pode revelar os modos de seleção, os conteúdos, as formas e aquele para quem se fala. As agências de notícias, muitas patrocinadas pelo sistema financeiro mundial, distribuem os seus olhares geopolíticos, econômicos, culturais e identitários pelo mundo. No Brasil, salvo exceções, vamos tomar conhecimento sobre a África por intermédio das agências de notícias que têm suas sedes nos países europeus e nos Estados Unidos. As coberturas internacionais no jornalismo “miram apenas as elites cosmopolitas ricas; assim, a diversidade transnacional é produzida como uma celebração higienizada da cultura” (FÜRSICH, 2016, p. 55). De maneira geral, entendemos que o jornalismo propõe uma experiência narrativa do mundo e, para isso, seleciona os personagens e busca determinar seus papéis dentro da lógica que atenda aos interesses econômicos e políticos, muitas das vezes, para além de projetos nacionais. A maioria dos atores que, estrategicamente é incluída nessas coberturas internacionais, vai configurar o padrão de mundo moderno, economicamente rico e determinante, global, o que implica a rigorosa rejeição de quaisquer referências que possam ser associadas à pobreza, ao “terceiro mundo”, à comunidade. As imagens veiculadas “retratam minorias como diferentes, exóticas, especiais, essencializadas ou até COMUNIDADE: TENSÕES VISÍVEIS E INVISÍVEIS | 159 anormais. É um imaginário racista estabelecido historicamente como literatura e ciência coloniais” (FÜRSICH, 2016, p. 52-53). Sugerimos, desse modo, que o jornalismo é uma experiência narrativa a disparar um conjunto de elementos que torna a diferença visível para fixá-la como diferença, prendendo-a em sua comunidade, fabulando sobre seus perigos e suas ameaças. O jornalismo, como diz Margarethe Steinberger (2005), age na manutenção de uma cultura colonial, em que muitas notícias são como “vestígios” a denunciar as matrizes históricas da dominação, o que faz ressaltar a nítida colonialidade jornalística. Essa reflexão nos faz perceber que o jornalismo pode ter uma função immunitas de algum destaque na discussão sobre a possibilidade de uma communitas. Essa tarefa fica nítida na lógica da globalização, mas também pode ser observada nas retóricas e ações de grupos identitários, principalmente localizados nos países desenvolvidos. Nesse caso, o jornalismo indica narrativas para estimular e justificar o levantamento de muros, a expulsão dos imigrantes, a perseguição e a exclusão das diferenças. O jornalismo assume a condição immunitas na medida em que, tanto na globalização quanto nos grupos identitários mais fechados, propõe uma experiência de uma completa desobrigação com o Outro, seja o indivíduo ou a coletividade. O jornalismo indica e ensina que o sujeito é isento de qualquer dívida para com os seus pares e, principalmente, de qualquer responsabilização com a diferença, em outras palavras, que o sujeito é livre de obrigações que o prendam a uma comunidade. A tarefa immunitas do jornalismo em sociedades dependentes como a nossa tem por base a herança império- colonial que é sempre revivida. Em outras palavras, quanto mais age nos pressupostos da colonialidade, mais o jornalismo assume-se como immunitas. Como a CPLP, que completou 20 anos de sua institucionalização em 2016, transitou nos regimes de visibilização de dois dos maiores jornais brasileiros, a Folha de S.Paulo e O Globo? As propostas sobre essa comunidade fazem ver esses dois jornais agindo em direção a communitas ou a immunitas? Quais experiências jornalísticas foram indicadas para ver e para não ver essa comunidade? Para responder essas e outras questões, vamos nos debruçar sobre a cobertura desses jornais. Antes disso, no próximo capítulo, detalharemos os caminhos metodológicos que percorremos e que se revelaram em próprios modos de experiência do regime de visibilização e do invisível. CAPÍTULO V – ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL Se quiseres saber quanta escuridão há em teu redor, tens de aguçar o olhar sobre as tênues luzes mais remotas. (Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 2015) Raspas e restos me interessam. (Cazuza, Maior Abandonado, 1984) Este é o capítulo metodológico. As reflexões teóricas anteriores têm influências diretas nas escolhas dos métodos que proporemos aqui. Um dos maiores desafios neste trabalho é justamente a mensuração do invisível. Partiremos para essa tarefa indicando uma sutil, mas central alteração nesse problema. Em vez de falar em invisível, poderíamos perguntar se é possível perceber e mensurar a invisibilização. Ou seja, essa questão nos faz retomar as reflexões do primeiro capítulo, quando discutimos o silêncio e o silenciamento, o visível e o invisível, a visibilização e a invisibilização. A partir das bases teóricas, proporemos um tripé metodológico articulado para enfrentar o debate sobre o jornalismo e a experiência do invisível. Vamos considerar a Análise de Conteúdo e a Análise Histórica para ter acesso ao visível e aos rastros de invisibilização. Todavia, em razão dos limites desses métodos e das exigências dessas próprias análises, recorreremos à Análise Semiótica, em especial a partir de Gonzalo Abril (2013), um lugar aonde também vamos pensar na metáfora do invisível como método. Ao final do capítulo apresentaremos, de forma detalhada e transparente, todas as ações concretas que adotamos na pesquisa. 5.1 Articulações metodológicas: pistas já anunciadas Os capítulos anteriores formaram uma base teórica para permitir pensar sobre as tramas visíveis e invisíveis que o jornalismo mobiliza. Nosso caminho foi enriquecido com as questões históricas e identitárias, a constituição dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo e, de modo especial, com o debate sobre a lusofonia e a sua expressão mais política, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Podemos perceber que nosso percurso tem quatro pilares: 1) o jornalismo, em que discutimos logo de partida o silêncio, os silenciamentos e o regime de visibilização, o que exigiu pensar sobre o próprio jornalismo como um dos modos de experiência social; 2) as identidades, como um dos fenômenos privilegiados para discutir a relação visível/invisível ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 161 e que faz emergir o Outro fabricado e, nesse caso, propomos uma maior ênfase na história do Brasil; 3) as histórias da Folha de S.Paulo e O Globo, em razão de que os regimes de visibilização que constroem têm relações com suas trajetórias históricas como empresas jornalísticas; e 4) a comunidade, a partir da qual aprofundamos a questão das identidades e nos aproximamos da CPLP que, ao nosso juízo, tem fundamentos sócio- históricos para ser experimentada como communitas, mas convivendo com forças immunitas (ESPOSITO, 2012). Esses pilares teóricos estão articulados, neste estudo, para fazer enxergar o regime de visibilização da comunidade lusófona no Brasil, por meio dos dois jornais. Com isso, anuncia-se, desde já, nossa primeira visada teórico-metodológica: a teoria mobilizada para tratar de um objeto na tensão visível/invisível não pode ser um adorno acadêmico ao sabor do pesquisador, e sim precisa fomentar problemas existenciais nesse mesmo objeto e, principalmente, fazer emergir dúvidas sobre sua conformação visível. Em outras palavras, o pesquisador precisa se dobrar às exigências dos objetos. Por exemplo, discutir o regime de visibilização sobre a CPLP na Folha de S.Paulo e em O Globo nos obriga a mergulhar nas histórias desses jornais, nos estudos das identidades, na história do Brasil, nas discussões sobre a ideia de comunidade. Esses encontros teóricos são de uma exigência incontornável e eles têm reflexos nas opções metodológicas que fizemos. Assim, neste estudo, as articulações entre jornalismo, história, identidades e comunidade contribuem diretamente para a experiência que busca perceber as narrativas visíveis e invisíveis, o regime de visibilização. Desse modo, ressaltamos a importância da não existência de uma receita pronta, uma fórmula já descoberta que elucida todo e qualquer regime de visibilização no jornalismo. As condições históricas e constitutivas do próprio objeto e suas fundamentações teóricas escrutinadas de modo crítico serão decisivas no seu desnudar. Não é demais relembrar aqui que dois aspectos marcantes do regime de visibilização são contextualidade e historicidade. Por isso, reafirmamos que o pesquisador precisa considerar as exigências dos próprios objetos, não para constatá-los, mas para contrastá- los, submetendo-se também à experiência semiótica de enxergar outras visadas possíveis sobre eles. Essa ação parece óbvia, porém, em termos do visível e do invisível, tem impacto decisivo nos métodos adotados. Apesar da rejeição de um formato teórico-metodológico pronto e rígido, esse não é um processo solto, sem proposições, à espera de uma iluminação divina. Por isso, sugerirmos três rápidas considerações sobre o método para lidar com a invisibilização no ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 162 jornalismo, e que reputamos importantes no desafio de uma construção particular de caminhos metodológicos. Sugerimos cogitar: (1) o jornalismo como uma das experiências narrativas em que o ver e o não ver se tecem nas relações sociais, isto é, a visibilização e a invisibilização são as resultantes de tensões políticas no espaço dessa experiência. Com isso, o jornalismo não está preso aos produtos, às empresas e nem aos profissionais; não consiste somente em emissão e recepção; e, sozinho, não tem condições para construir o que se entende por realidade. O jornalismo realiza-se articulado a outros atores sociais como uma das experiências narrativas do mundo. Entretanto, isso não significa desprezar a força das estruturas empresariais que lidam com o jornalismo. Suas histórias, seus enormes suportes tecnológicos e suas alianças político-econômicas têm grande participação para conformar o regime de visibilização. A percepção atenta do pesquisador nesse lugar o faz enxergar os silenciamentos e as invisibilizações, considerando a dimensão política no regime de visibilização como um dos pontos centrais; (2) que o invisível não é da ordem do sobrenatural, da imaginação, da ilusão. Esse invisível habita rigorosamente o objeto visível, está no concreto, compondo a mesma carne (MERLEAU-PONTY, 2012). O visível e o invisível não são pares dialéticos opostos, mas modos do mesmo Ser, no próprio Ser; são complementares, de forma que um exige o outro. Assim, o convite metodológico formulado é: perscrutar o visível, porque nele mesmo estão as camadas invisíveis. E aqui, o jornalismo é sujeito e objeto de forças políticas que agem nas torções dos silêncios e das palavras, a dar forma ao visível e garantir o invisível. Contudo, essas entorses sempre deixam rastros, que também são objetos valiosos para a pesquisa; (3) a historicidade como uma das considerações metodológicas fundamentais para a percepção da trama visível/invisível. Nenhum objeto surge do nada e não vai desaparecer sem deixar vestígios. Recorrer à análise crítica da história é um modo de fazer problema ao visível e ao visível que o jornalismo propõe. A leitura atenta da experiência temporal é, além de uma forma de luta contra o esquecimento, um dos modos de enxergar camadas invisíveis no regime de visibilização contemporâneo. Lembremos, também, que a história é um destacado alvo nas construções políticas da memória, que festeja algumas lembranças interessadas e assegura esquecimentos e apagamentos também interessados. Essas considerações acima já foram sinalizadas em nosso percurso, mas resolvemos retomá-las, de forma sintética, para indicar a umbilical relação teoria/método nas tramas do visível e do invisível no jornalismo. Neste capítulo, sugerimos ampliar essa ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 163 discussão e deixar mais nítidos nossos procedimentos. Como tratamos de forma articulada nossas bases teóricas, não seria diferente quando dos caminhos metodológicos que teríamos que definir. Por isso, propomos o seguinte tripé metodológico cujas bases estão articuladas entre si 51 : (a) Análise de Conteúdo (AC): materializa o visível efetivamente percebido, isto é, possibilita ver um corpus geral dos registros e dos seus percursos sobre a lusofonia no Brasil em 20 anos da CPLP, na Folha de S.Paulo e O Globo. Sobre essa análise, consideramos desde as abordagens mais clássicas (BARDIN, 1979) até as mais contemporâneas (BAUER, 2002; HERSCOVITZ, 2010; LEAL, ANTUNES e VAZ, 2012); (b) Análise Histórica (AH): joga luzes sobre as marcas verbo-visuais do corpus geral sobre a CPLP nos dois jornais. Essa ação contextualiza as historicidades nos periódicos e nos elementos verbo-visuais. Na materialidade impressa podemos eleger rastros, indícios, vestígios, sinais que emergem no visível (GINZBURG, 1989; GAGNEBIN, 2006 e outros) e que podem dar a enxergar além da superfície. Essa análise nos convoca e nos insere na Semiótica; (c) Análise Semiótica (AS): proporciona enxergar a potência de cada rastro, além de nos permitir fazer conexões entre eles. Nessa análise, levamos em conta as dimensões das marcas verbo-visuais, seguindo as reflexões de Gonzalo Abril (2007, 2010, 2012, 2013). A semiótica apresenta condições para pensarmos no invisível, a exemplo da formulação sobre imaginários e seus aspectos na constituição da arena pública. Essa análise ilumina a metáfora como método para entender como lidar com o invisível (RICOEUR, 2000; CARVALHO, 2016). Vale ressaltar que, diante das dificuldades teóricas para pensar o invisível no jornalismo, talvez um dos maiores desafios seja refletir sobre o método a desvendar o que, em tese, não existe. Se as referências bibliográficas que tratam do invisível no jornalismo foram raras, esse obstáculo agigantou-se quando da metodologia. Por isso, em nossa trajetória, as perguntas eram invariáveis: como materializar o invisível? Como prová-lo cientificamente? E quem questionava logo apresentava uma resposta categórica, conclusiva e que interdita o debate: é impossível materializar o invisível porque o jornalismo é o visível, é o dito, é o divulgado. Não existe invisível no jornalismo. Se não existe, não pode ser provado. Em certa medida, existe sentido na pergunta e na sua resposta, mas sugerimos que há um equívoco na sua formulação e, por conseguinte, na conclusão. Vejamos. 51 Aqui, apenas citamos as bases do tripé. Adiante, vamos detalha-las. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 164 Muitos dos quais se interessaram pelo tema expressaram uma cobrança que se baseia fortemente na empiria, no concreto, no produto do jornalismo, não na percepção do espaço da experiência jornalística. De fato, isso ocorre porque parte dos estudos trata da materialidade do visível, em que se pode mensurar e provar, em que se há uma sensação de um objeto controlado. Nessa lógica, temos os impressos, as imagens, os sons e, com esses elementos concretos em mãos, vamos calcular, extrair dados, gerar tabelas e gráficos, e, assim, obter o dito e o visto. Ou seja, bem ou mal, teremos os elementos de prova como se exige. Muitas vezes, ao final, os resultados dos esforços serão uma visibilidade do visível, isto é, mais um modo de ressaltar aspectos já visíveis, talvez o mesmo do mesmo. A perspectiva que propomos não despreza, em hipótese alguma, todos esses visíveis, os dados, os conteúdos, os produtos, as estruturas empresariais, as materialidades. Entretanto, buscamos colocar mais energia para enxergá-los com potencialidades, e não como o único e o todo. O foco de nossas atenções não está na partida e nem na chegada. Reforçamos nossa percepção de que o todo visível não é o todo, mas uma janela entreaberta e que exige nossa ação para que se torne mais aberta, como opção política para a abertura. Poderíamos optar por fechá-la, também de modo político. O que nos interessa é o espaço da janela e sua condição de entreaberta, e não apenas ver a janela, a sua constatação momentânea da materialidade. A ideia é perceber a janela como um dos lugares por onde se pode entrar ou sair. A nós interessa vê-la como um convite para pensar sobre sua abertura ou seu fechamento, olhar de fora para dentro e de dentro para fora, mas como quem passa, sem estar fixo. Metodologicamente, buscamos enxergar os textos, as imagens, as marcas, os visíveis nas superfícies como elementos vivos, em movimento e entreabertos, e que podem fazer dizer e mostrar o que não está facilmente identificado. Em resumo, nossa investida sobre o método busca enxergar os visíveis e, na mesma ação, experimentar os invisíveis nos mesmos objetos. Essa compreensão não resulta na materialização do invisível, o que seria a contradição fatal. Por isso, o caminho proposto é perceber o invisível como metáfora, condição que veremos adiante. Por agora, sugerimos que é possível observar as ausências nos objetos, percebendo seus movimentos, as torções dos silêncios e das palavras, as tramas do visível e do invisível neles mesmos. Nesse sentido, retomemos a pergunta sempre presente: como materializar o invisível? Como dissemos, essa justa questão exige uma pequena alteração: em lugar de invisível, devemos utilizar invisibilização, que implica a ação, o ato de tornar invisível, e isso nos remete à semelhança das diferenciações vitais entre silêncio e ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 165 silenciamento, de que tratamos no primeiro capítulo. Assim, por meio da invisibilização, podemos narrar sobre as ausências presentes e as presenças ausentes nos sujeitos/objetos. Considerando-se a pergunta “Como materializar a invisibilização?”, as respostas têm alguma materialidade narrativa, porque, ao nosso julgar, é possível expressar o que falta, contar o que está apagado, dizer e mostrar sobre as ausências e indicar as possibilidades que não foram nem ditas e nem vistas, talvez mal ditas e mal vistas. Dediquemo-nos, a seguir, à nossa triangulação metodológica. 5.2 Conteúdo e história: do visível à coletânea de rastros Para saber se a Folha de S.Paulo e O Globo noticiaram a comunidade lusófona nos 20 anos da CPLP, a primeira ação foi recorrer ao método para materializar essa resposta e dar formato visível ao nosso campo de percepção. Para isso, utilizamos a Análise de Conteúdo (AC), um recurso metodológico de longa tradição nas pesquisas. O histórico desse método tem relação direta com as formulações positivistas, com a necessidade de provas e da extração de dados. Por isso, durante muitos anos a AC ficou enclausurada como metodologia quantitativa, alvo de críticas e preconceitos, e em radical oposição ao viés qualitativo. Entretanto, essa dicotomia foi sendo reduzida, e as Ciências Sociais tiveram papel importante no aperfeiçoar da AC, inclusive ao apresentar consistentes pesquisas sobre os medias 52 . As novas abordagens fizeram ver que os números e dados frios não davam conta da complexidade de muitos objetos. Era preciso que esse método também considerasse variáveis mais subjetivas. A ideia e a interpretação de textos, por exemplo, ajudou nesse processo. Para Martin Bauer (2002, p. 190), “a análise de texto faz uma ponte entre um formalismo estatístico e a análise qualitativa dos materiais”. Assim, a AC foi ganhando fôlego para sair da clausura dos números e estatísticas, abrindo-se para acolher a contribuição de outros métodos. Até a autora mais tradicional dessa metodologia, Laurence Bardin (1979, p. 42), já tinha percebido que era necessário considerar aspectos qualitativos na AC, que para ela é o “conjunto de técnicas de análise de comunicação visando a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não)”. Segundo Bardin, os dados da AC deveriam ser objetos de inferências e várias deduções. 52 Destacamos o trabalho seminal de Harold Laswell, de 1927, sobre os conteúdos na mídia. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 166 Heloiza Herscovitz (2010) foca o uso da Análise de Conteúdo no Jornalismo, em uma visada que se aproxima dos objetivos deste trabalho, em especial quando ela traz as tensões entre os conteúdos visíveis, expressos, e aqueles invisíveis, ocultos: A tendência atual da análise de conteúdo desfavorece a dicotomia entre o quantitativo e o qualitativo, promovendo uma integração entre as duas visões de forma de que os conteúdos manifestos (visível) e latentes (oculto, subentendido) sejam incluídos em um mesmo estudo para que se compreenda não somente o significado aparente de um texto, mas também o significado implícito, o contexto onde ele ocorre, o meio de comunicação que produz e o público ao qual ele é dirigido (HERSCOVITZ, 2010, p. 126, grifos nossos). De forma mais incisiva ainda, nas pesquisas sobre jornalismo, Bruno Leal, Elton Antunes e Paulo Bernardo Vaz (2012) destacam a importância da AC como um método válido, entretanto limitado ao ser percebido como autônomo. Para esses autores, a Análise de Conteúdo exige uma complementação, exatamente para superar suas limitações. Assim, a AC tem uma flexibilidade para convocar e se articular com outros métodos, e essas outras técnicas podem fazer um excelente proveito dessa articulação. “Dessa maneira, as deficiências da análise de conteúdo (e de outros métodos) seriam contrabalanceadas por técnicas complementares” (LEAL, ANTUNES e VAZ, 2012, p. 396). É nesse viés que convocamos a Análise de Conteúdo neste trabalho, como um dos caminhos para chegar ao que entendemos por visível, possibilitando materializá-lo e delimitá-lo em nosso campo perceptivo. Entretanto, recorrer a esse método é ter a consciência de que sua análise é um primeiro e importante passo, mas insuficiente, principalmente porque a AC sozinha não permite avançar para as camadas invisíveis dos objetos, exigindo uma complementaridade de outros modos de ver as ausências. Ou seja, essa análise é “um bom instrumento para uma primeira organização de campo, identificando dimensões do acontecimento não percebíveis a uma visão espontânea e não estruturada” (LEAL, ANTUNES e VAZ, 2012, p. 397). A Análise de Conteúdo também é uma opção metodológica indicada para lidar com volumes grandes de material e levantamento em longos períodos. Ela nos permite “detectar flutuações, regulares e irregulares, no conteúdo, e inferir mudanças concomitantes no contexto” (BAUER, 2002, p. 195). A grande quantidade de jornais em um longo tempo é um aspecto importante que consideramos ao optar pela AC, porque estamos tratando de duas décadas da CPLP em dois jornais nacionais, impressos diariamente. Entretanto, reforçamos que a AC pode nos levar a “uma organização inicial ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 167 da observação e de uma primeira discrição do fenômeno” (LEAL, ANTUNES e VAZ, 2012, p. 396, grifos nossos). Com essas importantes ressalvas, assumimos as estratégias de Bauer (2002): 1) Construir um corpus como um sistema aberto, de forma que o pesquisador possa acompanhar e acrescentar textos, dados. Isso ocorreu neste trabalho com a coleta das notícias sobre a CPLP na Folha de S.Paulo e O Globo. Importante ressaltar que quando a busca foi iniciada, a entidade ainda não havia completado os 20 anos; 2) Revelar as diferenças nas coberturas pela mídia, ao se fazer a comparação entre os conteúdos manifestos nos dois jornais, procedimento adotado nessa investigação; 3) Eleger índices, sinais que convocam outros fenômenos para a análise, o que, de alguma forma, remete-nos à história e à semiótica; 4) Construir e reconstruir “mapas de conhecimento” que corporifiquem os textos e que estejam entrelaçados às demais estratégias. Eles podem ajudar na percepção daquilo que estaria oculto, latente, em invisibilização. Existem outras propostas de organização metodológica para a Análise de Conteúdo, mas elas seguem um roteiro muito parecido ao de Bauer (2002). Nas Ciências Sociais, um formato clássico apresentado por Bardin (1979), pode ser resumido em três grandes fases: a pré-análise do material, com as leituras flutuantes; a constituição do corpus, com formulação de hipóteses e objetivos, a definição de indicadores a ser adotados na análise; a exploração do material, em que os dados serão codificados; e, por fim, o tratamento e a interpretação com o uso de operações estatísticas simples ou complexas (BARDIN, 1979). Entendemos que, clássica ou moderna, a Análise de Conteúdo é uma ferramenta importante porque ajuda a responder, pelos menos de saída, as questões: o Brasil noticiou a CPLP nos últimos 20 anos? Esse método permite revelar, de forma mais objetiva, se essa comunidade foi visível ou não e, se foi, como foi? Quais os temas preferidos? Qual a frequência, por meses e anos? As respostas de tais questões são importantes para ver o visível, ajudam a imaginar o regime de visibilização, mas ainda são necessários outros métodos para avançarmos nas buscas pelos silenciamentos, ausências, invisibilizações que estão ali e não conseguimos enxergar apenas com a AC. Reforçamos que a utilização da Análise de Conteúdo tem várias vantagens e, talvez a primeira e mais importante para esse trabalho seja a materialização do visível, com a redução de interferências subjetivas do pesquisador diante das coletas e das definições das unidades de registro para formação do corpus mais visível. Essa análise ainda ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 168 possibilita colocar o visível delimitado à contraprova, sem esquecer que é uma técnica apropriada para organizar grandes volumes de elementos em um período longo. Essa análise inicial tem um papel importante porque, por meio dela, talvez, possamos discutir o nível da visibilização e encontrar ali lacunas invisíveis. Todavia, se as temáticas da lusofonia ficaram invisíveis, como temos intuído e os primeiros pilotos já evidenciaram, poderemos discutir como isso se deu, e quais as razões da invisibilização. Nesse caso, para avançar nesse regime – que é a proposta desta pesquisa–, avaliamos que o uso da AC não se mostra eficaz, exigindo-se, pois, complementos, como temos indicado. “A análise de conteúdo pede uma complementação para que a grande diversidade de formas expressivas na comunicação” (LEAL, ANTUNES e VAZ, 2012, p. 397). A experiência do invisível no jornalismo exige ir além da Análise de Conteúdo em razão da complexidade do próprio visível e de suas camadas invisíveis. Como estamos lidando com identidades, que são objetos de construções históricas e envolvem uma comunidade formada por povos da América do Sul, da África, da Europa e da Ásia, faz-se necessário recorrer, por exemplo, à Análise Histórica (AH). Ela nos ajuda a perceber o regime de visibilização além do visível, colocando a história oficial sob suspeita, fazendo emergir, por mirada, vestígios que podem revelar as opções dos jornais para o visível e para o invisível dessa comunidade. ANÁLISE HISTÓRICA: ÊNFASE NOS RASTROS Recorrer, criticamente, à Análise Histórica (AH) é uma ação fundamental na discussão sobre o invisível, e que deve ser considerada para além de um objeto específico, no nosso caso, a CPLP. Reforçamos que a AH se insere no fundamento teórico de que todos os objetos são constituídos por historicidades e que elas devem ser consideradas nesse processo de tentar folhear as camadas mais invisíveis. No caso da investigação sobre a comunidade lusófona, esse expediente é uma exigência e tem centralidade. Na medida em que a Análise de Conteúdo nos levou a um visível delimitado, enxergar esse material à luz crítica da história contribuirá para perceber as sobreposições de níveis de silenciamentos, de ausências, de invisíveis nesse mesmo objeto disposto à mesa. De modo mais nítido, o escrutínio crítico e histórico entrelaça-se fundamentalmente com a AC e nos auxilia para ir além das superfícies, das constatações. A utilização da Análise Histórica, como um dos métodos utilizados neste trabalho, justifica-se por dimensões entrecruzadas. Uma geral, em razão das teorias já convocadas, ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 169 como as construções históricas das identidades no Brasil; do próprio período a ser investigado, isto é, duas décadas em jornais que são transformados em arquivos presentes; e das trajetórias das empresas de comunicação que editam O Globo e a Folha de S.Paulo, revelando as suas estruturas empresariais e suas relações de poder. Não é demais reforçar que a AH não entende o passado como um fenômeno fixo, dado e sepultado, mas que é sempre “materializado pelas recordações e sempre transformado pela interpretação”, como diz Marialva Barbosa (2012, p. 153). Outra dimensão da importância da AH para este trabalho é específica, porque ela nos possibilita mergulhar nos registros impressos nos jornais. Em se confirmando o silenciar reiterado ao longo de duas dedadas da CPLP no Brasil, será fundamental perceber vestígios materiais das torções dos silêncios e das palavras nos restos dos textos e que dão a ver essa invisibilização. Ensina-nos Paul Ricoeur (2010) que o passado e seu significado continuam preservados nos vestígios trazidos ao presente e interpretados em uma cadeia de significação. Do ponto de vista da história, nossa opção foi a de utilizar as propostas metodológicas apontadas pelo paradigma indiciário, principalmente com as formulações de Carlo Ginzburg (1989; 2007). Sugerimos, assim, que o jornalismo tem intensa e direta relação com os passados, apesar de sua luta diária para jurar que trata somente do presente. É da condição do jornalismo essa retórica da rejeição ao passado, ao tempo em que garante apresentar o presente ao vivo. O que passou não interessa, não seria news na lógica do presentismo, fenômeno que é uma das forças retóricas do regime de visibilização no jornalismo. Entretanto, essa promessa do presente eterno é um efeito, uma ilusão de discurso publicitário em razão da impossibilidade desse presente. Assim, o que passou é objeto do jornalismo, seja do ponto de vista narrativo (o que aconteceu é posto na experiência narrativa como se fosse presente), seja como o lugar que busca realizar-se como a história do que se foi. Nessas condições, o passado deveria ser percebido como valor, o que seria uma perspectiva mais honesta, no âmbito das interlocuções nos espaços das experiências jornalísticas. Além disso, por outro ângulo, lembra Barbosa (2012), a história, em si, é um grande ato comunicacional porque ela é governada por lógicas narrativas. Dito isso, consideramos que as notícias, as imagens, as marcas de temporalidade são propostas diárias para uma agência histórica. Ou seja, os registros na Folha de S.Paulo e em O Globo devem ser compreendidos como um rico e vivo arquivo presente que não diz apenas do passado em interpretação, mas aponta perspectivas, orienta o que e como deve ser, constituindo-se no mesmo regime de visibilização. Reconhecer as historicidades dos ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 170 objetos é como um antídoto a não se deixar levar pelo canto retórico do presentismo, das forças que lutam contra o passado. Enxergar as condições históricas dos objetos revela que nada surge e nem desaparece ao acaso, e que estamos sempre em trânsito, fazendo história. François Hartog (2013, p. 139) diz que a historicidade se realiza como um regime que busca articular o tempo, empregando ordem, tramando passado, presente e futuro, e sempre produzindo sentido. Interessa-nos chamar a atenção de que tramas históricas (passado, presente e futuro) não são obras voluntariosas, e sim a ação humana direta, fruto de relações e disputas de poder, o que implica considerar a história como uma construção narrativa para o regime de visibilização, em que estão abrigadas as invisibilizações. Por isso, é preciso suspeitar das histórias dadas, tidas como verdadeiras, até as com pretensões científicas, porque podem estar “viciadas por um desejo de controle, que erige o historiador em árbitro do sentido” (RICOEUR, 2010, p. 253). Para Carlo Ginzburg (1989), os textos portadores de “verdades históricas” guardam zonas opacas e que parecem invisíveis. Serão nesses textos que poderemos encontrar vestígios do que se tentou apagar. O uso da Análise Histórica como método para discutir o invisível nos impõe localizar a história à qual estamos nos vinculando. Até início do século XX, a historiografia tinha como predominância a narrativa tradicional. O interesse era no grande acontecimento, com vistas a dar sentido à nação e aos seus povos. O tempo era cronológico, linear e irreversível para os atos memoráveis. Tínhamos, assim, uma história cívica e científica, muitas vezes, serva, baseada nos grandes acontecimentos que serviam à construção política de memórias individuais e coletivas manipuladas para atender aos poderes dominantes de uma época. Entretanto, em razão das tensões políticas, das lutas sociais e das complexidades das relações humanas, historiadores como Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Peter Burker entre outros passaram a propor novos estudos e narrativas historiográficas, fazendo surgir a Nouvelle Historie, uma corrente de pensamento da Escola dos Annales, como lembra José Carlos Reis (2000). As lutas por uma nova forma de contar as histórias são intensas, principalmente a partir da rejeição e da crítica à história oficial, acusada de produzir várias histórias silenciadas e invisíveis. Uma das formas visíveis de contestação foi utilizar fontes historiográficas rejeitadas pela tradição, emudecidas, como panfletos e jornais do movimento operário, atas de reuniões sindicais, gravações sonoras, fotografias. Ou seja, estamos falando de uma construção histórica a partir da ótica, das falas e dos escritos dos de baixo (REIS, 2000). ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 171 Uma das fases produtivas na Escola dos Annales foi a da aproximação entre história e antropologia, intensificando o contar dos silenciados, narrativas cada vez mais invisíveis e sem estatuto de validade para a história oficial. Surgiram aí importantes formulações teóricas e metodológicas reunidas, por exemplo, pela micro-história. Essa perspectiva não desconsidera a história por completo, mas joga suas luzes nos vestígios, nas gentes e nos eventos “comuns” não percebidas nas grandes narrativas. A ideia era tornar relevantes os rejeitados das seleções históricas oficiais, aquilo que era, propositadamente, esquecido. É na micro-história que encontramos Ginzburg (1989) a nos convidar a enxergar em uma “escala reduzida” o passado e, assim, poder recontá-lo, apresentando os aspectos jamais pensados pela historiografia oficial. Essa é uma ação metodológica que, ao nosso entender, tem consonância com a investigação sobre a invisibilização e o invisível no jornalismo. Com esse procedimento vamos “indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula” (GINZBURG, 1989, p. 178, grifos nossos). Enxergar em “escala reduzida” o visível é uma chave de leitura que garante coerência à nossa proposta. Para melhor explicar o método indiciário, Ginzburg usa da metáfora do caçador em busca da presa. No deslocamento, o caçador sabe perfeitamente eleger quais são os sinais, as marcas, as trilhas por onde passou o animal que foge e se esconde. As pegadas deixadas pela presa podem até ser imperceptíveis aos olhos do leigo, mas não aos do caçador. Entretanto, não é apenas isso. Por meio dos rastros, esse caçador tem a condição de imaginar a caça, sua distância, tamanho, condições físicas, e para onde fugiu. O caçador faz emergir as melhores pistas e projeta a presa. Em seu deslocamento, ele “aprendeu a reconstruir as formas e os movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama; aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas” (GINZBURG, 1989, p. 151). Sublinhamos esta visada metodológica: será em meio ao percurso que o caçador vai juntando os rastros deixados pelo animal, e os rastros conectados (como peças de um grande quebra-cabeça) vão constituindo as ideias, os imaginários, as visões do que ele tem sobre a presa e sobre ele, o caçador. Porém, alerta-nos Ginzburg (1989, p. 179), que no processo de manipulação dos vestígios devem ser considerados alguns “elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição”. Jaime Ginzburg (2012), em trabalho sobre o rastro em Walter Benjamin, traz uma formulação que acolhemos por conta da Análise Histórica do visível e que, de forma pontual, dialoga com o paradigma em Carlo Ginzburg (1989). Para Jaime, o rastro ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 172 [...] está ambiguamente em ausência e em presença. Sendo um resto, ele já não é mais o que foi vivido. Sua presença é indicação de uma convergência entre o que está ausente e o que está diante dos olhos. Tratar um objeto como rastro implica admitir que ele tem mais de um significado possível. Além de sua presença imediata, nele se encontra uma cifra, que pode ser tomada como condições para entender o que houve ou supor o que haverá (GINZBURG, 2012, p. 112, grifos nossos). Em raciocínio semelhante, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin (2006) diz que o rastro é signo aleatório, não intencional, e que “remete a algo que excede a vontade consciente do sujeito” (GAGNEBIN, 2006, p. 32). Em lugar de um caçador, essa autora toma emprestada a figura do catador de sucata, uma “personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder” (GAGNEBIN, 2006, p. 53). Para essa autora, a tarefa do narrador (pesquisador) é como a desse catador, isto é, não se restringe a desenvolver condições para saber identificar os restos e os recolher. Dedica-se, também, a uma tarefa em que é necessária a consciência de que sua ação não objetiva produzir ou reconstruir a grande narrativa histórica, mas perceber a força das pequenas narrativas. É nesse sentido que, para Gagnebin (2006), agir nas sucatas, nas ruínas é uma das formas narrativas de luta política contra o esquecimento. Vale destacar que, quando tratamos de rastros que o caçador consegue enxergar e o homem leigo não, não estamos a lidar com miragens. Os vestígios que o investigador percebe estão no mundo visível, nos objetos, na vida concreta, não são obras de alucinação. Essa ressalva nos remete a Merleau-Ponty (2012) e o invisível encarnado no visível, ou mesmo ao que afirma Ricoeur (2008, p. 434), de que nos rastros não existem ausências, neles tudo é positividade, presença. Ou seja, consideramos que esses autores apresentam as bases que justificam a utilização da Análise Histórica nesta pesquisa. Os procedimentos metodológicos indicados contextualizam historicamente o visível e fazem emergir os rastros nos registros concretos que estamos a anotar nesse caminho. Carlo Ginzburg (1989), por exemplo, convida-nos a escavar os “meandros dos textos”, porque podem emergir vozes e imagens que estão ali, mas que não as identificamos ainda. Nesse ponto, a nossa AH acolhe a metáfora do caçador na perspectiva do paradigma indiciário de Ginzburg (1989), proposta que transita da percepção do próprio movimento até a ação de juntar os rastros, conectando-os, buscando dar sentido narrativo à empreitada. Essa reunião de sinais pode constituir o que Ricoeur (2008) chamou da “coletânea de rastros”. Será com esse conjunto de vestígios que o caçador mobilizará sua memória, o que será decisivo para as narrativas. O paradigma indiciário nos ajuda ainda a ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 173 perceber que, talvez, o rastro isolado ou disperso não tenha forças para dar sentido à presa e ao caçador. Para aumentar as chances de sucesso na empreitada, é necessário eleger os melhores rastros e reuni-los de forma a produzir alguma coerência perceptiva, de modo que as relações entre os rastros possam lhe conduzir, com mais segurança, até a sua presa (GINZBURG, 2007). As formulações em torno da Análise Histórica, com a visada da micro-história e do paradigma indiciário, encaminham-nos para refletir sobre os procedimentos a adotar diante do visível que teremos em mãos e que foram materializados na fase anterior. Por isso, do ponto de vista do olhar histórico, sugerimos considerar que: (1) todo o movimento de busca diante do visível exige empregar a contextualização crítica da histórica dos sujeitos e dos objetos; (2) o pesquisador deve se mover nos jornais como quem escava rochas em busca de fragmentos preciosos, ou como o caçador ou o catador de sucatas, que, por necessidade, precisa movimentar-se, sair em busca de algo de valor. Isso produz uma dupla implicação de trânsito, a do pesquisador e a do objeto, e uma constatação: a de que o movimento se dá em um ambiente onde existem vestígios e eles são vitais para a sua empreitada; (3) nesse movimentar-se, o pesquisador, atento, deve eleger o que seriam, de fato, os indícios que melhor possam indicar por onde andou sua presa, dispensando as pistas fracas e que podem fazer desviá-lo do percurso e distanciar-se da presa, do objeto. Nesse caso, pegadas, cheiros, manchas de sangue, todas elas estão carregadas de histórias; (4) ao movimentar-se, fazendo emergir rastros e descartando pistas falsas, o narrador (pesquisador) deve juntar as melhores peças, conectando os indícios, formando uma coletânea de rastros que poderá produzir, narrativamente, os sentidos dos movimentos nessa busca. E é exatamente nesse último procedimento que há uma nítida convocação para a Análise Semiótica – a ser melhor tratada a seguir –, que, de forma concreta já está sendo empreendida desde o início desta investigação. 5.3 Semiótica, Gonzalo Abril e Metáfora do Invisível Na elaboração desta pesquisa, e até mesmo em seus primeiros passos, chegamos a utilizar a teoria do Frame para tratar das notícias sobre a CPLP e a lusofonia no Brasil. Imaginávamos que teríamos, ao final, um quadro geral de informações que faria ver como os jornais Folha de S.Paulo e O Globo enquadraram a comunidade lusófona nos 20 anos da CPLP. Essa seria uma forma de leitura, e até válida. Entretanto, com o desenvolvimento ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 174 do curso, das leituras, das orientações, com reformulações do projeto e as primeiras incursões no material empírico, logo percebemos que o uso do framing poderia nos levar a circular em torno da visibilidade e, talvez, apenas constatar o invisível por contraste. Na prática, isso nos levava para longe do objetivo central: o invisível no jornalismo. Julgamos que o frame não nos permitia enxergar o que está fora do quadro, para além dele e do contraste com o que estaria dentro. Fica evidente que o caminho metodológico que tomamos foi construído na medida em que nos envolvíamos com o objeto, dando centralidade ao invisível e às suas possibilidades. Diante de uma Análise de Conteúdo importante, mas insuficiente, e uma teoria que não possibilitava romper o quadro, a saída foi perceber os movimentos constitutivos do objeto, o que nos impôs a realização da Análise Histórica (AH). No entanto, essa ação é um recurso para fazer emergir, nos textos, vestígios que dão a falar e a ver as opções jornalísticas, como presenças a revelar. É, portanto, nesse ponto que entra a Análise Semiótica (AS), com a emergência dos rastros e seus encadeamentos a produzir sentidos do visível e do invisível. O percurso histórico da Semiótica teria iniciado desde a antiguidade grega, como a arte de lidar com os sinais, a semeiotiké. Podemos dizer que existe um universo possível de estudos semióticos, com inúmeros pensadores que se dedicam a essa visada, a exemplo de Roland Barthes e os estudos sobre a fotografia, Charles Peirce, Ferdinand de Saussure, A. J. Greimas, Umberto Eco, Louis Hjelmslev e tantos outros. Ou seja, existe uma longa e consistente história construída sobre esses estudos e que envolve diversos campos do conhecimento. No fundo, a Semiótica é um modo de investigar as linguagens, suas conexões e os sentidos construídos por meio de signo. E signos, dizem Vera Casa Nova e Graça Paulino (2009, p. 18), são como “marcas sobre o mundo, sendo o seu conteúdo assinalado por essas próprias marcas e pelas semelhanças que as ligam às coisas”. No jornalismo, a Análise Semiótica é um dos modos de ler interpretativamente os textos, e essa leitura produz um sentido que é partilhado na interação com o leitor. O ler das propostas nos textos pode passar também pelas buscas por fragmentos neles mesmos, dando enxergar a tensão visível/invisível. No fundo, os rastros e a sua coletânea conexa são objetos de Análise Semiótica que emergem para esse investigador como uma rede, ou seja, os sinais eleitos e seu conjunto são semiotizados. Os vestígios têm leituras diversas, inclusive que podem subverter supostas intencionalidades dos autores. No capítulo seguinte, o que teremos é uma narrativa construída por um dos tantos modos de ler a ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 175 CPLP, por meio de dois jornais impressos, e que, a nosso ver, trata mais da invisibilização do que da visibilização. Não precisamos ir longe para perceber o quanto a Análise Semiótica nos convoca à experiência. Ela é um método que escolhemos para pensar no invisível porque nos possibilita transitar no espaço da experiência, nesse caso, das leituras que nos movimentam em busca de ver os visíveis e enxergar os invisíveis, considerando as histórias e as identidades. Por meio da Semiótica, emaranhamo-nos no eleger de vestígios, de manchas impressas, dos rastros das entorses, de percebemos as ausências presentes e as presenças ausentes. É claro que as leituras resultantes desse processo e suas interpretações não terão completa isenção porque esse é um espaço composto por memórias, mapas culturais e por andanças políticas. De forma objetiva, consideramos que o todo visível de nosso trabalho, delimitado por meio da Análise de Conteúdo e submetido ao exame crítico da história resulta no conjunto de elementos verbo-visuais que pode ser analisado semioticamente, segundo as propostas de método de Gonzalo Abril (2007, 2010, 2012, 2013) 53 . Nesse sentido, ao recorrermos à Análise Semiótica, nossa terceira base do tripé metodológico, estamos filiados à compreensão desse autor, porque ele, ao tratar de uma visada ampla e diferenciada dos objetos, percebendo-os em “redes textuais”, dialoga com o regime de visibilização, isto é, considera os visíveis e os invisíveis. GONZALO ABRIL: O INVISÍVEL NA REDE TEXTUAL Diante do visível, devemos fazer o movimento de enxergar o que se vê e perceber o que não se vê. Ou seja, nos registros, nas notícias, nas páginas em O Globo e na Folha de S.Paulo é importante considerar as textualidades a partir das manchas gráficas: datas das edições, olho/chapéu/retranca a anunciar a notícia, tamanho na página, o lugar do jornal onde foi impressa, títulos, fotos, legendas, infográficos, charges e todos os textos da notícia. Enxergar, nesse sentido, é perceber que essas marcas não estão ali ao acaso, mas carregam opções políticas antes mesmo de sua materialidade impressa, e acionam uma série de dispositivos para o regime de visibilização. Além disso, elas não são o fim, não se esvaziam de sentidos no dia seguinte da publicação e nem mesmo depois de nossa ação interpretativa. Enxergamos esses registros verbo-visuais como potências que nos impulsionam neles mesmos e para fora deles, propondo-nos uma série de agenciamentos. 53 Doutor em Filosofia, professor catedrático da Universidade Complutense de Madri e tem, aprofundadamente, refletido sobre metodologias, teorias e os fenômenos da Comunicação e da Informação. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 176 Esse modo de Análise Semiótica é de uma perspectiva pragmática em que o texto não é visto como um elemento isolado, preso ao contexto, mas como parte de uma teoria da própria sociedade e que envolve os estudos da comunicação. Nossa aproximação com o pensamento de Abril (2007) ganhou força ao percebermos que ele trata do visual como um campo de sentidos abertos, além da materialidade, mas sem desconsiderá-la. Esse autor também se utiliza de Merleau-Ponty para lembrar que [...] as imagens visuais não se esgotam no visível, mas sempre há nelas traços do invisível, marcas do invisível reprimido, ou pressuposto, ou postergado. O ver significa mais do que se vê, e o visível sempre tem uma armação do invisível, afirmava Merleau-Ponty (1970) (ABRIL, 2012, p. 21, grifos nossos) 54 . Além de chamar a atenção da existência de “pontos cegos” nos textos, aquilo não visto em um contexto específico, a perspectiva de método sociossemiótico desse autor dialoga com o que defendemos em nosso percurso: que os textos são inscrições políticas, culturais, econômicas, históricas, meios e objetos das relações sociais de poder. Apesar de o jornal jurar o real, de buscar uma significação acordada, os rastros tendem aos índices com possibilidades de rompimentos, de enxergar o que neles mesmos não se vê, aquilo que nos remete ao que não vemos diretamente, aos agenciamentos históricos, culturais, políticos, econômicos. O índice nos conecta à Análise Histórica e ao paradigma indiciário. É importante deixar nítido que Abril (2012, p. 16) entende textos verbo-visuais como “qualquer unidade de comunicação, geralmente multisemiótica”. Para esse autor, essa unidade é “sustentada por uma prática discursiva e inserido em uma(s) rede(s) textual(is), que podem integrar ou não elementos verbais”55. Entendemos que, no regime de visibilização, as redes textuais estabelecem relações com outras redes, constituindo-se, assim, uma trama de forças em permanente tensão para poder dizer e poder ver, o que necessariamente resulta em poder não dizer e/ou dizer para não ver. O pesquisador, nessa análise, precisa ter consciência de que sua experiência nesse ambiente passa por disputas, e ele, com sua leitura semiótica, é um agente político implicado nesse lugar. Para organizar nosso movimento metodológico diante dos textos verbo-visuais, das enunciações propostas pelos jornais, Abril (2007, p. 88) sugere que consideremos os níveis semântico e pragmático. O primeiro envolve o que o autor chama de “universo 54 “[...] las imágenes visuales no se agotan en lo visible, sino que hay en ellas siempre trazos de lo invisible, marcas de lo visible reprimido, o presupuesto, o postergado. El ver significa ver más de lo que se ve, y lo visible siempre tiene un armazón de lo invisible, afirmaba Merleau-Ponty (1970)” (Todas as traduções dos textos de Gonzalo Abril foram realizadas por nós). 55 “[...] cualquier unidad de comunicación, generalmente multisemiótica” / “sustentada por uma práctica discursiva e inserta en una(s) red(es) textual(es), que puede integrar o no elementos verbales”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 177 simbólico” e o dos “significados sociais”, isto é, conceitos, preconceitos, tipificações que povoam o nosso campo de mira. No segundo, temos a prática discursiva, que vai da produção e distribuição até chegar ao consumo (emissão, difusão e recepção). Esse autor nos lembra que o texto não está isolado no mundo, distante de nós, mas em nossas práticas cotidianas políticas e sociais, como meios da experiência em um ambiente atravessado pela cultura e história. Essa experiência metodológica proposta por Abril (2012), e que acolhemos também em razão da compreensão da experiência jornalística, é de enxergar os textos verbo-visuais na triangulação: visualidad, mirada e imagen, de acordo com o esquema que o autor chama do “símbolo triádico” (Figura 3). Optamos por não traduzir as três dimensões porque acreditamos que a tradução implicaria uma interpretação que, a nosso ver, poderia reduzir o alcance e entendimento de cada um desses aspectos. Neste trabalho, portanto, mantemos a expressões originais. Figura 3: Diagrama do Símbolo Triádico Fonte: Abril, 2012, p.18. Antes de destacar cada uma dessas dimensões de forma separada, o autor afirma que elas estão em permanente relação de mediação com inextrincável interdependência “entre o exercício do olhar, do imaginar e do ver (ou não ver)” (ABRIL, 2012, p. 18)56. 56 “[...] entre el ejercicio del mirar, del imaginar y del ver (o no ver)”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 178 Além disso, esse não é um esquema pronto e fechado, uma vez que seus limites possuem fluidez e uma permanente insolubilidade, como um espiral sem fim. Ao nosso interesse – de ênfase ao invisível –, destacamos que esse autor incluiu o “não ver” nas explicações sobre essa tríade. A seguir, usamos os esclarecimentos sobre esses em Abril: (1) Visualidad. Não é apenas informação, o dado visual, mas uma visão socializada, uma experiência do todo ver, em um nível icônico. O que vemos será o resultado de relações entre nós, os objetos, os nossos discursos, as redes de interesses e os poderes em jogo. Assim, Abril (2012, p. 20) afirma que no nível da visualidad se estabelece uma “trama visual”, que ele explica com o “conjunto de significantes visuais”. Esses significantes “conformam o plano da expressão de um texto visual, constroem sua coerência e preparam o conjunto de seus efeitos semióticos”57. Percebemos que a visualidad pode ser associada com a experiência no regime de visibilização, porque esse é um lugar conformado socialmente, ou seja, aquilo que se vê tem a participação de tramas políticas, que asseguram as invisibilizações para garantir um visível acordado, coerente e inteligível. Nesse aspecto, o diálogo de Abril (2012) com Merleau-Ponty (2012) é mais nítido ainda. O visual, “o que se vê”, se relaciona sempre com o que não se vê, com diferentes fenômenos que não pertencem propriamente ao reino do visível, mas sem os quais seríamos cegos a uma imagem, não veríamos nada, ou veríamos sem ver. Assim, não falamos da relação visível com o invisível sem mais, mas com certos fenômenos que não sendo propriamente visíveis tem efeitos no que se vê, isto é, no sentido do que se vê (ABRIL, 2012, p. 21-22, grifo do original) 58 . Esse mesmo autor elabora outro diagrama (Figura 4) com uma seta de dois sentidos para demonstrar os efeitos daquilo que não se vê no que é visível e vice-versa. Abril, ainda em diálogo com Merleau-Ponty, faz uma defesa de que o invisível tem um papel fundamental na conformação do visível; de que visível e invisível não são opostos; e de que suas interações esculpem as imagens (ABRIL, 2012). 57 “[...] conforman el plano de la expresión de un texto visual, construyen su coherencia y preparan el conjunto de sus efectos semióticos”. 58 “Lo visual, ‘lo que se ve’, se relaciona siempre con lo que no se ve, con distintos fenómenos que no pertenecen propiamente al reino de lo visible, pero sin los cuales seríamos ciegos a la imagen, no veríamos nada, o veríamos sin ver. Así que no hablamos de la relación de lo visible con lo invisible sin más, sino con ciertos fenómenos que no siendo propiamente visibles tienen efectos em lo que se ve, es decir, en el sentido de lo que se ve”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 179 Figura 4: Efeitos do invisível no visível e vice-versa Fonte: Abril, 2012, p.22. Como esse esquema é significativo para a compreensão teórica e metodológica da construção do invisível, julgamos importante detalhá-lo conforme Abril: a) “O visual se relaciona com o que se deseja ver, mas que não se vê”59. Depois de usar exemplos de filmes, Abril (2012) sustenta que o que vemos nos leva a desejar ver outras coisas. Citando Godard (2007), ele afirma que atrás de uma imagem há o desejo de outra. “E de que o que sentimos ao ver [...] se conecta com o que desejamos ver ou com o que mais perversamente imaginamos ‘no campo do outro’” (ABRIL, 2012, p. 23)60; b) “O visual se relaciona com o que se sabe e se crê, mas que não se vê”61. Para esse autor, o que aparece em nossa visão está condicionado pelos conhecimentos – mapa cultural – que sabemos e cremos em razão de nossa mente jamais estar vazia diante do que vemos. “Não existem olhos na mente que vejam imagens visuais sem relação com a informação demandada de outros sentidos, nem com o conjunto dos conhecimentos e da memória do sujeito” (ABRIL, 2012, p. 23)62. O autor reforça que vemos por meio dos olhos da cultura, dos valores, dos estereótipos adquiridos na experiência de ler os textos; c) “O visual se relaciona com o que se faz”63. Estaria aqui o nível mais pragmatista da análise de Abril (2012), porque sua preocupação não está em saber o que significam os textos visuais, nem a indagar as intenções dos emissores ao produzi-los e dos 59 “Lo visual se relaciona con lo que se desea ver, aunque no se vea” (ABRIL, 2012, p.22). 60 “Y de que lo que sentimos al ver [...] se conecta con lo que deseamos ver o con lo que más perversamente imaginamos “en el campo del otro”. 61 “Lo visual se relaciona con lo que se sabe y se cree, aunque no se vea” (ABRIL, 2012, p.23). 62 “No existen ojos en la mente que vean imágenes visuales sin relación con la información dimanada de los otros sentidos, ni con el conjunto de los conocimientos y la memoria del sujeto”. 63 “Lo visual se relaciona con lo que se hace:” (ABRIL, 2012, p.25). ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 180 receptores ao interpretá-los, mas como os sujeitos constroem seus sentidos quando experimentam os textos. “Os emissores produzem seus textos avançando hipóteses que antecipam o comportamento interpretativo dos receptores, e eles interpretam por sua vez mediante conjecturas sobre os motivos e táticas dos emissores” (ABRIL, 2012, p. 25)64. Insistimos como parte importante de nossa reflexão que o autor considera, no mesmo movimento perceptivo, que aquilo que se vê está rigorosamente no mesmo patamar do que não se vê, um como constitutivo do outro, e vice-versa. Essa é uma “trama visual” que guarda valores culturais. “Os textos pressupõem uma materialidade concreta (substância semiótica, engajamento social, objetivações, contrapartidas econômicas), mas também instituições, práticas, modos de regular a mudança social, moralidade e estéticas” (ABRIL, 2012, p. 26) 65 . (2) Mirada. Para esse autor, se estamos convencidos da existência dos textos visuais é porque olhamos para eles e os reconhecemos, e isso ocorre, em determinado lugar e tempo, em um contexto de práticas sociodiscursivas. Entretanto, ele chama a atenção de que esses textos, na verdade, já têm certos efeitos de sentido contidos neles mesmos, e isso nos implica neles e na sua condição contextual. “Nossa olhada está contida neles porque os textos, em vez de serem olhados, nos olham” (ABRIL, 2012, p. 26, grifos do autor)66. Depois de tratar da visualidad no item anterior, e que identificamos como regime de visibilização em um plano, esse autor amplia essas reflexões quando ilumina a relação entre nós e os objetos, uma relação de experiência, a nosso julgar. Afirma Abril (2012, p. 28) que: “Vemos através dos olhos de nossa cultura e de nossa experiência de leitores de textos visuais”67. No entanto, esse autor acrescenta que ao olhar já estamos selecionando os lugares que enunciam o visual, com suas posições políticas acordadas, por exemplo, o olhar da classe dominante sobre um determinado tema. De alguma forma, o texto tem vida e nos olha, e nossa relação com ele é de uma experiência que também o antecipa e os prevê. Talvez, na mirada, um aspecto metodológico a ressaltar é que a experiência com os 64 “Los emisores producen sus textos avanzando hipótesis que anticipan el comportamiento interpretativo de los receptores, y éstos interpretan a su vez mediante conjeturas sobre los motivos y tácticas de los emisores”. 65 “[...] los textos presuponen una materialidad concreta (sustancia semiótica, enclave social, objetivaciones, contrapartidas económicas), pero también instituciones, prácticas, modos de regular el intercambio social, moralidades y estéticas”. 66 “Nuestra mirada está contenida en ellos porque los textos, a la vez que son mirados, nos miran”. 67 “Vemos a través de los ojos de nuestra cultura y de nuestra experiência de lectores de textos visuales, decíamos más atrás”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 181 textos não é da ordem nós e os objetos, mas de sujeitos e sujeitos, de uma troca de olhares em que os textos não são externos a nós, investigadores pontuais, como se possa imaginar. (3) Imagen. No diagrama triádico, Abril (2012) nos convoca a superar a percepção que temos sobre a imagen, uma vez que costumamos fazer confusão entre ela e a visualidad. Esse autor sustenta que imagens não são necessariamente visuais, e lembra que em grande parte dos textos que dizem tratar de “imagem” está alheio o visível, ou mesmo está complemente invisível. A imagen forma um “rico conjunto de representações com numerosas ressonâncias narrativas, morais e filosóficas” (ABRIL, 2013, p. 72)68. Esse autor esclarece, porém, que a imagen se relaciona com quem a percebe no meio das tramas visuais. Gonzalo Abril (2013) propõe que percebamos imagen como imaginário porque é composta, necessariamente, pelas imaginações sociais acordadas, e muitas das imagens são resultados dos próprios imaginários. “Todas as sociedades compartilham modos de percepção e participam, diríamos, de um mesmo sentido de sentir” (ABRIL, 2013, p. 67)69. A ideia de imaginário é central na discussão do invisível e, por isso, fizemos questão de tomar emprestado um exemplo de Abril (2013) (Figura 5). Figura 5: Autorretrato fotográfico de Claude Cahun Fonte: Abril, 2012, p.30. 68 “[...] rico conjunto de representaciones con numerosas resonancias narrativas, morales y filosóficas”. 69 “[...] todas las sociedades comparten modos de percepción y participan, diríamos, de un mismo sentido de sentir”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 182 Ao olhar atentamente essa imagem, Abril (2012) chama a atenção para relações entre o rosto humano e a máscara, um mirada que pode ser metafórica e até tratada por semelhança e proximidade. O rosto e a máscara parecem figuras estáticas, pouco expressivas. Entretanto, “na mesma medida em que o rosto verdadeiro parece ‘enmascarado’ pela proximidade da máscara, esta adquire a sinistra qualidade de um verdadeiro rosto humano, a ‘rostridade’ de uma cara de mulher maquiada” (ABRIL, 2012, p. 30) 70 . Assim, esse quadro sugere o que esse autor chama de uma “imagen de rostro- máscara” que confunde ou deixa indeterminado um e outro, uma imagem que não é possível considerando os dois objetos em separados. Ou seja, a máscara cria o rosto como o rosto cria a máscara, de modo que a “imagen de rostro-máscara” não é produto da soma do rosto e da máscara, mas uma fabulação a partir da intenção de quem olha e da tensão que estabelece entre os objetos ou sujeitos. Aqui está uma chave de leitura: o que está em jogo no quadro não é propriamente o visível, mas os meandros do visível (ABRIL, 2012). Ressaltamos que entre a máscara viva e o rosto morto há um invisível que grita na imagen do olhar e está à luz, e não no escuro, nas sombras. Em trabalho anterior, esse autor deixa claro seu entendimento sobre o imaginário: “compreende representações, evidências e pressupostos narrativos implícitos que configuram um modo de ‘imaginar-se’ no mundo, as relações sociais, o próprio grupo, as identidades sociais, os fins e aspirações coletivas, etc.”. (ABRIL, 2007, p. 62)71. Na sequência dessa reflexão, o autor reforça que a imagen não emerge sozinha, mas é parte e resultado de imaginários sociais, condição que o faz associar as imagens à teoria da imaginação, especialmente no tocante à sua função política. Nesse caso, lembramos-nos da ilusão sobre as identidades, o largo uso dos intensos textos verbo- visuais oficiais para a fundação do Brasil e os papéis políticos e sociais dos europeus, dos índios, dos negros e dos mestiços. Temos, assim, um regime da visibilização, que é um regime de imagen, de crença e de mobilização em torno da imaginação. 70 “[...] en la misma medida en que el rostro verdadero parece “enmascarado” por la proximidad de la máscara, ésta adquiere la siniestra cualidad de un verdadero rostro humano, la “rostridad” de una cara de mujer maquillada”. 71 “[...] comprende representaciones, evidencias e presupuestos normativos implícitos que configuran un modo de ‘imaginarse’ el mundo, las relaciones sociales, el proprio grupo, las identidades sociales, los fines y aspiraciones colectivas, etc.” ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 183 Abril (2012) busca Rancière (2010) 72 para refletir sobre comunidade, uma das bases do nosso estudo. O filósofo francês afirma que comunidade pressupõe imagens, sendo elas como um dispositivo que cria algum sentido “comum” de realidade. A imagen, no fundo, constitui-nos. Assim, argumenta Abril (2012, p. 31), que a mudança social passa pela mudança de imagen, mas imagen como dispositivo em Rancière (2010), ou seja, “de construir outras formas de sentido comum, ‘outras comunidade de palavras e coisas, de formas e de significações’”73. O método semiótico em Abril (2007) atende à expectativa de enfrentar o invisível no jornalismo. Entretanto, as reflexões metodológicas que apresentamos nos encaminham para duas ações gerais: perceber o regime de visibilização como um elemento do espaço público/político a produzir imaginários, e considerar visualidad, mirada e imagen para pensar a metáfora como um método válido no enxergar do invisível na trama textual. Ainda no primeiro capítulo, enfatizamos a constituição do regime de visibilização que conforma uma parte do mundo, que busca preencher nosso imaginário e que configura uma espécie de arena pública em torno de nossas relações. Lembra-nos Abril (2010) que: Buscaríamos em vão uma ordem política que não se tenha sustentado e expressado através de algum determinado regime de visão, ou seja, tanto de uma determinada administração de uma visibilidade e da invisibilidade quanto da aplicação de procedimentos específicos de tornar visível (e portanto, do não fazer visível e do fazer invisível) e de seu controle, e da administração de uma visão aceitável ou legítima (ABRIL, 2010, p. 21, grifos do autor) 74 . Na contemporaneidade, esse espaço público foi consideravelmente midiatizado e a ideia de política se rendeu e foi rendida aos mecanismos de visibilização social, quer dizer, de construção do visível e do invisível. Os atores, nesse ambiente, agem no esforço de dizer e de fazer ver, de fazer crer. Esse é o terreno de coações, direções e restrições das experiências públicas em que há profunda articulação, às vezes imperceptível, entre o que é público e o que é privado (ABRIL, 2010). Um dos resultados desse processo é o da necessidade do sujeito em participar do regime de visibilização como quem se sente em comunidade de experiências partilhadas. Na prática, o que temos é uma deformação do 72 Citado por Abril (2012): RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Castellón: Ellago Ediciones, 2010. 73 “[...] de construir otras formas de sentido común, otras comunidades de palabras y cosas, de formas y de significaciones”. 74 “Buscaríamos en vano un orden político que no se haya sustentado y expresado a través de algún determinado régimen de visión, es decir, tanto de una determinada administración de la visibilidad y la invisibilidad cuanto de la aplicación de procedimientos específicos del hacer visible (y por ende, del no hacer visible y del hacer invisible) y de su control, y de la administración de la mirada aceptable o legítima”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 184 espaço público e/ou uma nova conformação dele, onde as substâncias são frágeis porque se baseiam tão somente no visível possível, nas superfícies, na arena do espetáculo. A coação, no sentido de uma visibilização totalitária, é extremamente sutil, de difícil percepção crítica. Entretanto, não podemos deixar de lembrar que estamos sempre em superfícies imperfeitas e instáveis em que, mais cedo ou mais tarde, finas fissuras denunciarão as camadas invisíveis nesses lugares. Ressaltamos outro aspecto importante em Abril (2010) e que dialoga com as nossas defesas. O “mundo-imagem” que chamamos de todo visível é a superfície da globalização e “a imagem-superfície [...] é toda nossa possibilidade de experiência comum”75. Nesse caso, as determinações políticas no espaço público vão se sustentar e ser expressas como “imaginários culturais” e históricos com as imagens que nunca emergem sozinhas. Os imaginários, desse modo, devem ser tratados como “matrizes de produção e reprodução de imagens” (ABRIL, 2010, p. 23)76. Contudo, isso não implica assumir um midiacentrismo, que esse autor também rejeita, porque as relações entre o regime de visibilização e a configuração do espaço público ocorrem para além das práticas midiáticas. O que as mídias fazem é propor, usando de suas potentes estruturas empresariais e das tecnológicas do seu tempo, uma série de significações tidas como dadas e únicas e que pretendem conformar uma direção na sociedade, mas elas não são as únicas fontes de sentido (ABRIL, 2010), o que, mais uma vez, não implica desmerecer a sua força na tentativa de esculpir o regime de visibilização. Interessa-nos destacar que o regime do visível, com as mídias, propõe uma espécie de ordem da visibilização do espaço público e, como anota Abril (2010, p. 24), esse quadro é inseparável da “economia da ‘legalidade’, cuja construção é indistinguível desse mesmíssimo espaço público-político moderno”77. Vimos como a imprensa, desde seu nascedouro, teve um papel fundamental na configuração política das cidades e das nações, na construção do espaço público partilhado, visível, inteligível, do que é o legal e o ilegal. Até a escolha da tipografia foi um recurso de controle do gesto e do corpo político autorizado aos leitores, regulando as interações públicas. Trata-se do espaço público como espaço visual que envolve moral, ética, política, todos “como ingredientes de um imaginário” (ABRIL, 2010, p. 24)78. 75 “[...] la imagen-superficie [...] es toda nuestra posible experiencia común”. 76 “[...] matrices de producción y reproducción de imágenes”. 77 “[...] economía de la ‘legibilidad’ cuya constitución es indistinguible de la del mismísimo espacio público- político moderno”. 78 “[...] como ingredientes de un imaginario”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 185 Consideramos que o esforço midiático no sentido de controle e configuração de uma narrativa pública, retoricamente plural, produz uma visível arena política cada vez mais pobre e imaginariamente limitada. O que temos é a experiência comum constituída por uma política de frágil conteúdo e que, transformada em espetáculo, foi sequestrada para que não seja vista como é. Todavia, as doses nos abusos dessa fabricação podem gerar efeitos inversos, isto é, o fomentar das forças para perceber, ali mesmo, brechas de acesso para camadas invisíveis; o exercitar de resistências e insurgências para as rupturas desse quadro; a proposição de novos olhares ou de novos modos de enxergar outras imagens. Do ponto de vista metodológico, apesar das indicações de nosso tripé articulado entre Análise de Conteúdo, Análise Histórica e Análise Semiótica, a experiência do invisível exige, a nosso ver, um reforço mais nítido quanto aos procedimentos. Nesse sentido, propomos inserir a metáfora como meio para clarear nossa proposta. METÁFORA DO INVISÍVEL Já pontuamos que a busca pelo invisível não resultará em produto, em um formato material. Não teremos uma prova cabal de que estamos diante do invisível. Concretizar o invisível é a contradição final da própria condição invisível. Quando defendemos enxergar o visível e experimentar o invisível estamos a exercitar, metodologicamente, o próprio invisível. E como já indicamos, o invisível não é o vazio, o nada, a negatividade em oposição à toda positividade do visível. Por meio da Análise Semiótica, experimentaremos o sentido do invisível nas narrativas sobre o movimento de invisibilização. O narrar as torções das palavras e dos silêncios expressos nos registros é fazer problema ao regime de visibilização, àquilo que parecia já conformado, um quadro que se julgava imaginariamente controlado sobre o que é visível e o que é invisível. Contar sobre o movimento de invisibilização é experimentar o invisível tomado como referência e, metodologicamente, compreendido como metáfora. Segundo Ricoeur (2000), a metáfora pega a palavra como unidade de referência, podendo agir por semelhança, e “consiste em um deslocamento e em uma ampliação do sentido das palavras” (RICOEUR, 2000, p. 9). Todavia, para esse autor, a metáfora precisa ganhar outro patamar, sem necessariamente perder a condição semântica, mas sendo percebida como uma ação hermenêutica, profícua para novos patamares explicativos, ou seja, a dizer o invisível sem que ele perca sua condição de invisível. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 186 Essa transição da semântica à hermenêutica encontra sua justificação mais fundamental na conexão em todo discurso entre o sentido, que é sua organização interna, e a referência, que é o seu poder de referir-se a uma realidade fora da linguagem. A metáfora apresenta-se, então, como uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver a potência criadora da linguagem, preserva e desenvolve o poder heurístico desdobrado pela ficção (RICOEUR, 2000, p. 13). Sobre o método e o invisível, sugerimos pensar na Metáfora do Minuto de Silêncio. Essa ação é utilizada geralmente no início de reuniões com presença significativa de pessoas, inclusive em espetáculos esportivos e eventos políticos. Nesse minuto, todas as pessoas são intimadas a se calar durante um curto tempo, como forma de prestar uma homenagem a alguém ou a várias pessoas que morreram, por exemplo. Há uma convocação presente de lembranças ausentes. Esse minuto seria de silêncio ou de silenciamento? Quais seus sentidos? O que se diz e se vê dele? O que se cala e o que não se vê no minuto de ausência de som? E, aos nossos objetivos, como materializá-lo? Ao refletir sobre as possibilidades do minuto de silêncio, podemos pensar no invisível como metáfora. Tal como o silêncio, que não pode ter concretude, assim também acontece com o invisível e sua impossibilidade de ser matéria. O método para considerar a positividade do silêncio e do invisível é o da metáfora, uma figuração narrativa que faz referência a, sendo eles as referências deles mesmos. Desse modo, será pela narrativa metafórica que poderemos experimentar o silêncio/silenciamento do minuto de silêncio, assim como experimentar o invisível ao contar sobre o movimento de invisibilização. Exemplificamos nossa escolha pela metáfora do invisível com um caso concreto, com uma curta notícia que guarda enorme positividade de sentidos assentada no regime de visibilização: “Ontem foi encontrado o corpo do pedreiro Josias da Silva, 55, na avenida Euclides Figueiredo, próximo ao Conjunto João Alves, onde a vítima morava. Segundo populares, ele a foi visto a última vez num bar, no Lamarão. Lá teve uma briga com Messias Santos, ex-presidiário”. Esse é o trecho inicial de uma notícia curta e episódica publicada no Jornal da Cidade, de Aracaju/SE (11/09/2013, p. 8). A partir desse exemplo, podemos pensar sobre a Metáfora do Minuto de Silêncio para refletir sobre o invisível. Existe na narrativa do jornal um curtíssimo calar que poderá ser exercido como experiência pelos leitores entre as informações de que o corpo do pedreiro foi encontrado e a de que ele foi visto pela última vez em um bar discutindo com um ex-presidiário. Podemos enxergar torções de palavras e silêncios apresentadas como propostas narrativas do jornal, onde, no mínimo, os leitores são levados a imaginar o autor do crime, Messias, o ex-presidiário. O jornal não diz, não mostra expressamente, mas ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 187 podemos enxergar entre o “corpo encontrado” e a “briga com Messias Santos, ex- presidiário” um minuto de silêncio. Não parece ser difícil enxergá-lo entre as informações visíveis da narrativa. Nele, há sentidos que nos levam a concluir que se está diante de, primeiro, um assassinato, e segundo, que o autor do homicídio é o ex-presidiário. As expressões visíveis “corpo encontrado”, “segundo populares”, “ele foi visto a última vez num bar”, “briga com Messias Santos, ex-presidiário” têm sentidos presentes e nos fazem experimentar, nelas, um regime de visibilização: o suposto crime visível, e a afirmação invisível da categórica identificação do criminoso. Talvez, a maior chave de leitura para isso seja a desqualificação de Messias: um ex-presidiário. Ou seja, essas torções de palavras e de silêncios se destinam a manter a ordem de poder vigente, garantindo que as janelas abertas ao estereótipo de um criminoso em potencial e eterno continuem assim, na imagen dos leitores. O importante é que esse enxergar do minuto de silêncio, do silenciar a atravessar o texto do jornal, somente existe como referência na narrativa que estamos a fazer nesse espaço, uma narrativa do movimento de silenciamento. Podemos dizer que o minuto de silêncio nessa notícia, as torções das palavras que foram realizadas e estão visíveis nessa narrativa, conformam o invisível e, ao mesmo tempo, esse invisível emprega sentido ao expresso, sendo fundamental para a trama da narrativa visível. Estamos a tratar de fenômenos que “não sendo propriamente visíveis têm efeitos no que se vê, quer dizer, no sentido do que se vê” (ABRIL, 2013, p. 54)79. A certeza de que foi um assassinato e a condição de ex-presidiário da personagem inserida na notícia conforma o imaginário social e moral. “Os emissores produzem seus textos avançando hipóteses que antecipam o comportamento interpretativo dos receptores e, estes interpretam por sua vez mediante conjecturas sobre os motivos e táticas dos emissores” (ABRIL, 2013, p. 58) 80 . Atentemos para um detalhe: todo regime do visível em torno da notícia de um corpo de um homem encontrado sem vida foi configurado para um imaginar de forma contundente de que estamos diante de um homicídio, mesmo que ainda não se saiba qual a causa da morte do pedreiro: “Ontem foi encontrado o corpo”. Além disso, a narrativa do possível crime, por meio de entorses de palavras e silêncios, define que o ex-presidiário foi o seu autor, isso também sem elementos para tal afirmação. Reforçamos que nessa curta 79 “[...] no siendo propiamente visibles tienen efectos em los que se ve, es decir, en el sentido de loque se ve”. 80 “Los emisores producen sus textos avanzando hipótesis que antecipan el comportamiento interpretativo de los receptores, y éstos interpretan a su vez mediante conjeturas sobre los motivos y tácticas de los emisores”. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 188 notícia existem minutos de silêncio que guardam invisíveis e que, por meio dessa narrativa que aqui estamos a fazer, emergem ausências presentes. O que está em jogo no uso da metáfora como método é a experiência dos sujeitos para além dos limites dos objetos apresentados como totais, compreendo-os entrelaçados, compostos por camadas invisíveis. A utilização da metáfora fomenta a epoché (MERLEAU-PONTY, 2012), a ação interrogativa diante de superfícies dadas. No entender de Paul Ricoeur (2000, p. 14), “o lugar da metáfora, em seu lugar mais íntimo e mais último, não é nem o nome, nem a frase, nem mesmo o discurso, mas a cópula do verbo ser. O ‘é’ metafórico significa a um só tempo ‘não é’ e ‘é como’”. Para Carlos Alberto de Carvalho (2016), a utilização das metáforas como método aponta duas situações textuais complexas e que devem ser consideradas: a primeira é a condição polissêmica das palavras e os seus inúmeros sentidos nos contextos; e segunda é a própria inovação semântica que acaba por possibilitar várias formas narrativas. Ao utilizarmos a Metáfora do Minuto de Silêncio para tratar do invisível, não estamos, em hipótese alguma, presos às palavras minuto e silêncio. Elas são tomadas, em seu conjunto, como janelas entreabertas para fazer pensar e fazer dizer sobre as ausências presentes e as possibilidades de sentidos. O minuto de silêncio é transformado em presença pela narrativa da invisibilização, mantendo-se o invisível por meio da condição fundamental da ausência. Podemos sugerir que o minuto em questão é o momento da experiência do silenciamento que faz referência ao silêncio. Nele, o silêncio é e, ao mesmo tempo, não é, mas ambos os contextos consistem em experiências vividas pela narrativa metafórica. Carvalho (2016, p. 259) esclarece, de forma contundente: “É no contexto da sua utilização, portanto, que a metáfora faz sentido, adquire a pertinência face ao texto em construção com vistas a tornar possível um nível comunicacional mínimo”. Esse não é um processo, como afirma Carvalho (2016), isento de equívocos ou que está distante das relações de poder. A metáfora é uma ação política, seja para manter a sedimentação, fazendo crer que o todo visível se resume à superfície em nossa frente, seja para inovar no sentido da ação-experiência de enxergar as fissuras para níveis mais profundos. A decisão de calar por um minuto em lembrança de alguém pode guardar, assim, as mais diversas invisibilizações, as motivações de grupos majoritários de poder para decidir sobre o silenciamento, até as tentativas de apagar/esquecer histórias, personagens e acontecimentos. Silenciar e invisibilizar são ações disciplinadoras do real, mas também trazem outras possibilidades, inclusive, impertinentes, de reação e resistência. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 189 Ao convocarmos, metodologicamente, o invisível como metáfora e considerarmos que o jornalismo constrói e participa de um regime de visibilização, onde busca assegurar o invisível, concordamos com a perspectiva de que as mídias, como metáforas [...] podem dar a ver e/ou ocultar os jogos socioculturais, as diferenças econômicas, as estratégias de visibilidade/invisibilidade de grupos sociais, os preconceitos raciais, étnicos, sexistas, dentre uma gama de temáticas de que temos, no campo dos estudos em Comunicação, nos ocupado. Abertas às múltiplas leituras, as mídias como metáforas narrativas são textualidades cuja tessitura deve ser laboriosamente escrutinada (CARVALHO, 2016, p. 263, grifos nossos). Em resumo, diferentemente da ação de invisibilização, que pode ser materializada, inclusive por meio da seleção de rastros e das narrativas em si, o invisível não terá alguma concretude. Não estamos a tratar de um produto ou de um evento, mas de um fenômeno que é o que é. O invisível somente pode ser experimentado como metáfora por meio da narrativa, a narrativa sobre a invisibilização e suas imagens, memórias, histórias, jogos de poder. Materializar o invisível é o fim do fenômeno invisível. Por isso, nosso objetivo é tentar dizer do invisível que está aqui, ali e acolá, prenhe de sentidos, de ausências e de presenças como “verdade metafórica”, na expressão de Ricoeur (2000), e que pode produzir uma série de tensões para a própria ideia de verdade. Essa é uma consideração que precisa de reforço: quando tratamos de invisível não buscamos o mundo ideal, o tudo visível, a verdade e nem queremos punir e/ou corrigir o visível com o desmascarar das faces ocultas, porque não é o invisível uma máscara do visível. 5.4 Definições metodológicas Depois de fundamentar as escolhas metodológicas, finalizamos o capítulo com o detalhar das fases e de cada passo dessa investigação, desde definições básicas sobre os critérios utilizados até os modos de analisar as notícias nos jornais. As articulações entre as análises de Conteúdo, Histórica e Semiótica ocorreram em duas etapas aparentemente distintas, mas que estão profundamente entrelaçadas. A divisão foi feita para melhor compreensão do processo. Na primeira fase, buscamos identificar o todo visível, constituir o corpus, um estágio em que a Análise de Conteúdo foi fundamental. Por meio dela, realizamos testes e chegamos às primeiras impressões do visível e do invisível. Diante do olhar crítico da história, passamos à segunda etapa. Nela, as formulações de Abril (2013) foram fundamentais ao enxergarmos as tramas e redes textuais que entrelaçam os objetos, por meio das dimensões da visualidad, da mirada e da imagen. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 190 Como ponto de partida, estabelecemos a pergunta básica: a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi noticiada no Brasil? Para isso, definimos o que entendíamos por ser noticiada, em qual o lugar isso ocorreu e em que período. Foi preciso optar por definições primárias e que detalhamos abaixo: - CORPUS EMPÍRICO: as notícias da comunidade. A CPLP é formada por nove países-membros. Definimos que a coleta das notícias sobre ela e eles para formar o corpus deveria ter a “comunidade” como o registro principal e, não, notícias isoladas sobre as nações da CPLP. Melhor explicando: o material selecionado para análise deveria ser a expressão da articulação entre os países que formam a comunidade lusófona. Por exemplo, uma notícia que tratou de relações bilaterais entre Brasil e Portugal, sem fazer qualquer referência e sem envolver os demais países da CPLP, não foi considerada. Para ser válido como corpus, esse registro precisava conter pelo menos um elemento que revelasse as relações entre as nações lusófonas. Como a CPLP é a entidade de maior expressão política da lusofonia, consideramos também em nossa coleta os registros que pudessem representar essa comunidade, mas que não se referiam à CPLP de forma textual. Essas definições objetivaram empregar maior rigor à pesquisa e fidedignidade aos seus resultados. Diante dessas condições, estabelecemos cinco palavras-chave nos sistemas de buscas de O Globo e da Folha de S.Paulo: CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Lusofonia, Países Lusófonos e Nações Lusófonas; - O LUGAR DA COLETA. Os jornais impressos foram escolhidos porque este pesquisador já trabalha com os impressos noticiosos; porque considera que eles formam arquivos, e os textos verbo-visuais compõem documentos históricos. A escolha dos jornais se deu também porque eles possibilitam acesso aos registros; as coletâneas das edições anteriores estão organizadas; e o acervo pode ser armazenado. A Folha de S.Paulo e O Globo foram escolhidos em razão de serem os maiores em circulação diária no Brasil, e apresentam-se como de “referência”, pois as empresas a que pertencem possuem trajetórias históricas consolidadas na produção jornalística nacional; seus noticiários trazem coberturas internacionais; seus leitores estão nas classes média-alta e alta, ou seja, esses jornais são lidos por uma elite financeira e política nacional, que os têm como “referência”, conforme indicamos no capítulo III. A Folha de S.Paulo e O Globo acabam sendo ainda termômetro/orientação/referência de/para coberturas jornalísticas de mídias regionais. O acesso aos acervos digitais desses jornais foi possível por meio de assinatura e, dessa ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 191 forma, nos foi possível ler, pesquisar e armazenar as edições do período analisado. Do ponto de vista do método, é importante esclarecer que os acervos da Folha e de O Globo abrigam as edições impressas e textos dos sites das empresas, mas nossa coleta, a partir do uso das palavras-chave, ocorreu descartando os registros das notícias online nos sites dos dois jornais. Ou seja, nosso corpus foi composto somente por notícias das edições impressas. Tem-se acesso ao acervo da Folha de S.Paulo através do endereço: . Em O Globo, o acervo está localizado em: . Os recortes que formam nosso corpus foram impressos e armazenados em formatos PDF e JPG e estão à disposição para consultas; - O PERÍODO. A escolha do recorte temporal para nossa coleta foi motivada pelo fato da CPLP completar 20 anos de institucionalização em 17 de julho de 2016, no terceiro ano do Doutorado em Comunicação na UFMG. Apesar de não ter o objetivo de fazer um balanço das duas décadas dessa entidade, este estudo pode ajudar a refletir sobre a percepção do Brasil, por meio da cobertura de dois jornais nacionais, sobre essa comunidade. Ao considerar que antes de 17 de julho de 1996 devem ter ocorrido articulações políticas para concretizar a CPLP, e que, depois da data comemorativa dos 20 anos, algum registro ainda poderia ser feito, resolvemos ampliar o corte temporal das buscas. Marcamos o início da pesquisa nos acervos dos jornais em 1º de janeiro de 1996, seis meses antes da criação da CPLP, e encerramos em 31 de dezembro de 2016, seis meses depois da lembrança dos 20 anos de sua institucionalização. 1ª FASE – ANÁLISE DE CONTEÚDO - Testes, definição e redefinição do corpus. Antes de encerrar o período de coleta em 2016, realizamos pilotos com a intenção de saber se a CPLP foi noticiada na Folha de S.Paulo e em O Globo. Ao fazermos os primeiros levantamentos, identificamos nos dois jornais algumas poucas reportagens, notícias curtas, entrevistas, editoriais, artigos de opinião, notinhas em colunas de articulistas, cartas de leitores e até anúncios de publicidade 81 . Como o objetivo é conhecer a fala direta dos jornais sobre a comunidade lusófona, descartamos da coleta a publicidade, as cartas de leitores, as notinhas nas colunas e os artigos de opinião. Assim, consideramos para o nosso corpus as reportagens, as 81 A Comissão Permanente de Licitação Pública (CPLP) do Governo de São Paulo publica editais de contratação de obras e serviços e, em razão dessa sigla, esses anúncios surgiram marcados como CPLP em nossas buscas nos acervos. Obviamente, esses registros não foram considerados na pesquisa. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 192 notícias, as entrevistas e os editoriais, e que foram intitulados de registros. Eles constituem o todo visível do regime de visibilização da CPLP no Brasil adotado pela Folha de S.Paulo e O Globo, entre 1º de janeiro de 1996 e 31 de dezembro de 2016; - Adentrando na Análise de Conteúdo. A partir das definições e dos primeiros testes, avançamos na AC buscando mensurar o volume dos registros publicados, as suas frequências ano a ano, em cada um dos jornais pesquisados. Esses dados foram reunidos e geraram tabelas e estatísticas. Nessa fase, com a mobilização dos registros, analisamos os temas recorrentes, quais os anos de maior incidência, em quais seções foram publicados, se os registros tiveram a participação de agências internacionais, se havia ou não imagens, quais as falas majoritárias neles, qual a presença dos presidentes da República do Brasil como fontes nesses conteúdos. Também realizamos comparações entre Folha de S.Paulo e O Globo. Além de ver se a CPLP foi ou não objeto de pauta nos seus 20 anos nesses jornais, a análise possibilitou responder como essa comunidade foi noticiada, quais ancoragens foram propostas para a experiência jornalística, isto é, como a lusofonia transitou no regime de visibilização desses dois jornais. Nas primeiras análises realizadas, emergiram três exigências que também passamos a considerar: outras entidades internacionais semelhantes à CPLP, a exemplo do Mercosul e dos BRICS, também foram objeto de notícias na Folha de S.Paulo e em O Globo? Qual o espaço da comunidade lusófona no site do Ministério das Relações Exteriores do Brasil? A entidade CPLP produziu publicamente pautas para que os jornais fizessem alguma cobertura? A busca pelas respostas dessas perguntas resultou em dados e gráficos que contribuíram para o entendimento geral sobre o regime de visibilização inicial. Para uma melhor eficácia na AC e para avançar sobre o visível, o corpus foi separado em seções em razão da diversidade de acontecimentos e personagens nos registros. Assim, propusemos as seguintes categorias, divididas em dois blocos: BLOCO 1: Presidentes da República – Os registros agrupados nessa categoria enfocaram a participação dos presidentes do Brasil, em razão da sua condição de fonte primária para o jornalismo. Como a proposta é perceber a invisibilização sob a ótica dos jornais brasileiros, os registros nesse item buscaram a atuação nos presidentes brasileiros junto à CPLP nos 20 anos aos quais se restringiu a coleta, mas também anotamos as notícias de outros chefes de Estado/Governo da comunidade lusófona. Essa categoria ficou subdividida em: ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 193 - Fernando Henrique Cardoso; - Luiz Inácio Lula da Silva; - Dilma Rousseff; - Michel Temer; - “Presidentes Diversos” (presidentes dos demais países da CPLP). BLOCO 2: Temas gerais da CPLP – Aqui compilamos os registros sobre convênios e acordos institucionais entre os países dessa comunidade, a exemplo do ortográfico, além de temas que envolveram cultura, conflitos, eleições, diplomacia e outras temáticas. Nesse bloco consideramos uma subdivisão dos registros sobre a CPLP encontrados nos dois jornais: - Acordos institucionais; - Cultura; - Conflitos. Um esclarecimento: o registro sobre um presidente, por exemplo, pode trazer várias temáticas embaralhadas nele, como acordos, cultura, conflitos. Entretanto, cada registro teve somente uma única anotação, e o critério para isso foi do tema ou da personagem protagonista na notícia. Por exemplo, em um registro sobre a viagem do presidente Lula a Angola, alguns temas sobre a CPLP foram tratados, mas essa notícia recebeu apenas a classificação de “Presidente Lula” em razão de ele ser o elemento predominante no registro. Ao mobilizar o corpus, também buscamos identificar em que páginas e editoriais as notícias da CPLP foram impressas, e se os registros tiveram autoria de jornalistas no Brasil, de correspondentes e/ou de agências internacionais de notícias. - As primeiras constatações. Concluímos a primeira fase com algumas constatações que foram sustentadas pelos dados possibilitados na Análise de Conteúdo do todo visível. A principal foi a da significativa invisibilização da CPLP na Folha de S.Paulo e O Globo, no período de 1996 a 2016. Revelamos essa constatação aqui porque ela é condição fundamental para chegarmos à segunda fase. Descobrir que essa comunidade lusófona, da qual o Brasil é parte, foi objeto de invisibilização por ausência em duas décadas da CPLP pode resultar em várias análises que exigem aprofundar essa investigação. Destacamos ainda que, exatamente em razão da invisibilização, encontramos alguma dificuldade na rigorosa identificação e precisa classificação dos poucos registros ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 194 encontrados sobre a CPLP nesses dois jornais, isto é, onde estava essa comunidade lusófona nas notícias. Como argumentamos, a AC nos permite perceber uma invisibilização por contraste, mas não tem força suficiente para nos fazer avançar nas discussões da invisibilização e do invisível. Por isso, recorremos a outros métodos. FASE 2ª – ANÁLISE HISTÓRICA E ANÁLISE SEMIÓTICA Diante da comprovação de que a CPLP quase não foi objeto das pautas na Folha de S.Paulo e em O Globo em duas décadas, recorremos à Análise Semiótica (HS) e à Análise Histórica (AH) para fazer problema ao visível conhecido e pensar no invisível. Do ponto de vista metodológico, essa segunda fase tenta refletir o porquê dessa invisibilização. Para efeito didático, dividimos essa segunda fase em duas visadas, mas reafirmamos que elas estão entrelaçadas. A - A emergência dos rastros e o refinamento do corpus Não é demais insistir que esse trabalho, ao enfatizar a história para tratar do processo identitário no Brasil, não propõe, em hipótese alguma, fazer uma revisão histórica ou produzir uma nova história. O recurso a esse campo de conhecimento é exigência da própria condição da tensão visível/invisível. Com a história crítica, iluminamos alguns aspectos para perceber as ausências que estão propostas pela Folha de S.Paulo e O Globo sobre a CPLP. Como informamos antes, nosso corpus, apesar de duas décadas de coleta, revelou uma significativa invisibilização. Na prática, os registros foram raros considerando-se os grandes volumes de edições e páginas desses dois jornais em 20 anos. Dessa forma, essas escassas notícias são como vestígios, com valores históricos e semióticos neles mesmos e que nos remetem para além deles e das superfícies jornalísticas. Ou seja, movemo-nos por entre o corpus como quem transita e mexe em restos, como um catador de sucata que acredita e, por isso, procura algo de valor no ferro-velho. Nesse caminho, vamos elegendo e fazendo emergir rastros visíveis que podem apontar para os invisíveis. Sugerimos que alguns sinais impressos deixados nos jornais nos últimos 20 anos podem nos ajudar a indiciar o porquê da invisibilização dessa comunidade. De forma concreta, tendo-se por base nosso mapa político, cultural, histórico, vamos vasculhar, nos registros coletados na primeira fase. Essa é uma ação que vai resultar na redefinição do corpus. Ao fazer emergir os rastros nos restos das notícias sobre a CPLP nesses dois jornais, vamos selecionar aqueles vestígios com maior potencial de ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 195 agenciamento histórico, identitário e comunitário. Dessa forma, teremos constituído uma “coletânea de rastros”, um novo corpus, onde anotamos em fichas82 palavras, imagens, títulos, datas, as manchas gráficas que disparam o imaginário sobre a comunidade lusófona e que nos ajudam a enxergar um regime de visibilização. B - Conexões semióticas Os rastros têm importância neles mesmos, mas também se conectam com outros, de forma que foram analisados como potência semiótica, aproximados por elementos históricos e por semelhanças na medida em que emergiam nas análises. Em outras palavras, chegamos à coletânea de rastros em que cada um dos vestígios e o seu conjunto nos levaram a aprofundar as perguntas sobre os visíveis e sobre os invisíveis. Concretamente, diante dos rastros e do único movimento perceptivo, buscamos a visualidad, a mirada e a imagen, conforme Abril (2012), mas com ajustes nesse diagrama triádico para dar conta das questões que apresentamos (Figura 6). Assim, propomos: Figura 6: Visível e invisível da CPLP no diagrama triádico Fonte: Do autor, com base em Abril (2012, p. 22). - Visualidad. Aqui estamos em plena superfície do regime de visibilização, o lugar do visível, mas o nosso enxergar sobre ele já tem em conta que esse plano é sustentado por camadas invisíveis. De forma objetiva, reconhecemos que as propostas de 82 Uma amostra dessas fichas, por jornal, estão no apêndice deste trabalho. Lá, está ainda a relação dos textos que compõem o refinamento do corpus onde emergiram os rastros. ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 196 experiência sobre a comunidade lusófona apresentadas pela Folha de S.Paulo e O Globo compõem uma “trama visual”, com elementos verbais e visuais que conformam o visível no regime de crença como únicos, verdadeiros e acordados em valores culturais e políticos. Contudo, essa é a “trama” do inteligível, em que o objeto visível conforma e é conformado por meio das camadas invisíveis. Em outras palavras, o que diz e o que mostra o rastro? Onde ele está no impresso? Quais seus suportes? Que relações têm com os demais? Metodologicamente, vamos analisar os recortes dos dois jornais retomando as categorias vistas acima: Presidentes das Repúblicas e Temas gerais da CPLP. Não vamos aplicar uma linearidade temporal nos registros, mas analisá-los de modo a perceber como a visualidad de determinados elementos verbo-visuais configura o regime de visibilização para o invisível da comunidade lusófona nos jornais, isto é, como a presença conforma o modo de ausência. O movimento foi perceber como os poucos textos na Folha e em O Globo estão relacionados com o que se espera ver, com aquilo que se sabe e crê, mas não se vê (ABRIL, 2013); - Mirada. Por essa dimensão buscamos enxergar o regime de visibilização como a direta e nítida ação dos jornais, seus gestos verbo-visuais mais categóricos. Sugerimos que nesse nível existe um tipo de mediação entre visualidad e imagen. Nesse momento, deixamos que os rastros que emergiram por nossa atitude em meio aos acervos da Folha de O Globo pudessem nos enxergar, e não ao contrário. Ao nos olharem, esses vestígios exigiram de nós uma ação interpretativa que nos impõe fazer conexões com outros vestígios. No texto existem vozes a nos cobrar essa ação. Sugerimos aqui dois movimentos em uma única mirada: olhar o Outro para olhar a nós mesmos. Como os dois jornais olharam para a CPLP? Quais as propostas de olhada para essa comunidade que os jornais apresentam? O que esse olhar que nos olha revelou sobre nós mesmos? Nessa dimensão da mirada, verificamos quatro aspectos: ausência, indiferença, diferença e rejeição. Eles são como longos fios que atravessam a cobertura dos jornais em 20 anos da CPLP no Brasil e alinhavam os registros verbo-visuais, os quais estão a nos olhar e a propor, pedagogicamente, que olhemos, ou não, o Outro, que fabricamos como a diferença. - Imagen. Nessa dimensão do imaginário, retomamos, mesmo que de modo disforme e sem ser a soma dos aspectos anteriores, para enxergar que o regime de visibilização na Folha de S.Paulo e O Globo. Sugerimos que a construção de uma imagen ENXERGAR O VISÍVEL E EXPERIMENTAR O INVISÍVEL | 197 da comunidade lusófona é baseada em traços de imunidade e de colonialidade. Aqui estamos dentro do minuto de silêncio em que a nossa ação narrativa do que não vemos buscou dizer do imaginário, de uma presença ausente, de uma comunidade que não se quer ver e não se reconhece, que se recusa e que se combate. Essas condições transitam também por ausências, indiferenças, diferenças e rejeições, baseadas na cultura immunitas, que parece ser princípio da política editorial dos jornais, em razão dos seus percursos e das suas relações históricas e compatíveis com a lógica capitalista. Entretanto, a nosso ver, essa construção da imunidade partilhada e experimentada guarda um fundamento histórico mais vigoroso, a nossa viva herança colonial, em que as relações raciais, autoritárias, reacionárias, de dominação não permitem a possibilidade de reconhecimento identitário e comunitário. Portanto, imunidade e colonialidade não tratam diretamente de visualidad, mas compõem imagens, imaginários sociais muitas vezes sutis e que ganham narrativa neste trabalho. O invisível em questão estará como uma impossibilidade concreta, mas como possibilidade metafórica a contar sobre esses movimentos políticos de invisibilização. CAPÍTULO VI – DAS AUSÊNCIAS PRESENTES Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. (Carlos Drummond de Andrade, Obras poéticas, 1989) Apresentaremos agora os primeiros resultados da pesquisa empírica sobre o regime de visibilização construído pelos jornais Folha de S.Paulo e em O Globo acerca da comunidade lusófona no Brasil em 20 anos da CPLP. Em razão da proposta metodológica de que tratamos no capítulo anterior, detalharemos o corpus constituído em razão das buscas nos acervos desses jornais, e analisaremos o processo de invisibilização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa em razão de sua reiterada ausência nessas duas décadas, constatação que já havia sido percebida na fase de testes iniciais. Ao final deste capítulo, teremos o que estamos chamando do primeiro modo de experiência do invisível no jornalismo: a invisibilização por ausência. 6.1 Aspectos gerais do todo visível A primeira ação diante da empiria é mobilizá-la para que tenhamos o visível, uma materialidade que nos permita avançar nas reflexões sobre a invisibilização. A ideia é ver o objeto em seu tempo e espaço, buscar saber como se constituiu e se deslocou, o que disse e o que mostrou. Estamos no nível da “imagem-superfície” (ABRIL, 2013), em que nossa experiência vê o mundo como ele é, total, acordado e compartilhado. Parece não ser possível imaginá-lo de outro modo. É nesse plano que transitamos em busca das camadas invisíveis que se realizam nos gestos de enxergar e questionar o visível. Como afirma Merleau-Ponty (2012), o invisível é a “carne” desse mesmo corpo visível. Essa primeira fase é marcada pela presença do conteúdo e das análises iniciais. Para isso, coletamos as notícias sobre a CPLP na Folha de S.Paulo e O Globo com o objetivo de constituir nosso corpus, o todo visível acerca da comunidade lusófona no Brasil. Apesar de já ter informado no capítulo anterior, não é demais reforçar os critérios gerais que utilizamos nos sistemas de busca dos dois jornais: 1) Palavras-chave: CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Lusofonia, Países Lusófonos e Nações Lusófonas; DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 199 2) Edições impressas de 1º de janeiro de 1996 a 31 de dezembro de 2016; 3) Notícias, reportagens, entrevistas e editoriais formam o corpus em que a palavra-chave foi o tema preponderante no registro. Não foram considerados: “notinhas” em colunas, artigos de “opinião”, cartas de leitores e anúncios de publicidade. Na Folha de S.Paulo, o resultado dessa sondagem foi de somente 80 registros sobre a comunidade lusófona em 20 anos da CPLP (Gráfico 1). Esse volume permite indicar uma média de apenas 4 (quatro) registros por ano naquele jornal. Estamos lidando com uma média anual em que a variação vai de 1(um) registro até 12. Gráfico 1: Registros na Folha de S.Paulo em 20 anos da CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. Nos primeiros cinco anos da CPLP (1996 a 2000), a média anual de notícias chegou a 4,4, mas nos últimos cinco (2012 a 2016) esse número caiu para 1,6, o que indicia que nos últimos anos tivemos uma significativa redução no “interesse” pelas temáticas da comunidade lusófona na Folha de S.Paulo. Importante salientar que, durante os 20 anos da CPLP, a Folha fez circular, de forma ininterrupta, 7.300 edições. Caso tomássemos a publicação de uma notícia da comunidade em dias diferentes nesse jornal, como referência, teríamos 1,09% das 7.300 edições da Folha com algum registro sobre a CPLP nas duas décadas. Em resumo, diante de um grande volume de páginas e de incalculável quantidade de notícias nesse longo período, dificilmente é possível estabelecer alguma memória sobre a CPLP para o leitor que acompanha cotidianamente esse jornal. Esse quadro de inexistência deve ampliar-se para audiências esporádicas. DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 200 De igual modo procedemos com as buscas em O Globo. A pesquisa no jornal carioca resultou em apenas 81 registros (Gráfico 2). Ao dividirmos esse número por duas décadas da CPLP temos a média anual de apenas 4,05 notícias. A tendência de queda nos últimos anos também foi percebida em O Globo, assim como ocorreu na Folha de S.Paulo. Observando-se as médias anuais dos primeiros e dos últimos cinco anos, vemos que nos primeiros (1996 a 2000) a temática da comunidade chegou a ter 6,2 registros, e nos cinco anos últimos (2012 a 2016) essa média caiu para 2,2. Gráfico 2: Registros em O Globo em 20 anos da CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. Assim como o jornal paulista, O Globo também imprimiu, de domingo a domingo, 7.300 edições nesse período. Se, hipoteticamente, considerássemos a publicação de uma das notícias sobre a CPLP naquele periódico, em dias diferentes nos 20 anos, poderíamos ter, aproximadamente, apenas 1,10% do total das edições com algum registro sobre a CPLP. Chama atenção o baixíssimo número de registros, bem próximo nos dois jornais: 80 na Folha de S.Paulo, e 81 em O Globo, o que nos obrigou redobrar as atenções sobre os critérios e refazer algumas vezes esse levantamento. Todavia, os números foram confirmados. O fato é que o não interesse pela comunidade lusófona, pela CPLP, foi muito semelhante nos dois jornais, mesmo sendo periódicos localizados em estados diferentes e que pertencem a grupos editoriais distintos, mas eles se encontram alinhados quando o tema é o Brasil e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Além de ter um volume de notícias baixo e próximo, percebemos que as frequências por ano também são vizinhas, apresentando pequenas variações em alguns anos (Gráfico 3). DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 201 Gráfico 3: Comparativo por ano nos jornais em 20 anos da CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. Desse gráfico comparativo, pontuamos os anos de 1996, 2004 e 2008. O primeiro pela diferença nos números de registros, e os dois últimos pela proximidade da frequência nesses jornais. Sabemos que em 1996 a CPLP foi oficializada e, de fato, O Globo abriu mais espaço para essa iniciativa do que a Folha. Naquele ano, o jornal carioca trouxe entrevistas e notícias sobre a criação da entidade que iria congregar os países de língua portuguesa. A Folha, em 1996, resumiu-se a cobrir a viagem do presidente Fernando Henrique a Lisboa quando da institucionalização da CPLP. Isso, de forma inicial, explica a razão de em O Globo encontramos 10 registros em 1996 e, na Folha somente 5 (cinco). No ano de 2004, os dois jornais aumentaram um pouco a cobertura sobre a lusofonia em relação à média de registros que vinha se mantendo nos anos anteriores. A interpretação desse dado liga-se ao fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter assumido o Governo do Brasil no ano anterior e, em 2004, deu início a viagens pela África, principalmente às nações lusófonas. Tanto a Folha quanto O Globo cobriram as viagens de Lula, e a CPLP ganhou um pouco de fôlego no governo, entrando nas pautas dos jornais em razão da fonte primária: o presidente da República. O ano de 2008 registra o maior pico de notícias sobre a comunidade lusófona nos jornais, inclusive com o mesmo número de notícias: doze em O Globo e na Folha. Naquele ano, o governo brasileiro assinou o Acordo Ortográfico da língua portuguesa, o que gerou alguns debates, com notícias, reportagens e entrevistas sobre as mudanças na escrita no Brasil. Além desse acontecimento, também em 2008, Ramos Horta, presidente eleito do Timor-Leste, sofreu um atentado e o país voltou a ser ameaçado por um golpe. Desde DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 202 antes, o Timor aparecia na editoria internacional dos dois jornais por conta dos conflitos em torno de sua independência. Houve, inclusive, uma mobilização de entidades e de personalidades brasileiras que deram voz à causa da liberdade para o Timor-Leste. Destacamos que, além de poucos, os registros sobre a comunidade lusófona foram publicados de forma concentrada em dias muito próximos. A Folha traz 5 (cinco) registros sobre a CPLP em 1996, mas todos foram no mês de julho, entre os dias 14 a 18. Antes e depois desses dias, nenhuma notícia, nem no mês e nem em todo aquele ano. Em 2009, o mesmo jornal noticiou a CPLP 6 (seis) vezes: 3 (três) em janeiro e 3 (três) em março. Em O Globo, temos 5 (cinco) registros em 2000, sendo 2 (dois) em abril e 3 (três) em julho. Essa concentração em alguns dias nos fez observar os volumes e as recorrências das notícias através dos meses nos 20 anos da CPLP. Constatamos uma significativa semelhança entre os jornais. À exceção de fevereiro, onde O Globo teve 5 (cinco) registros e a Folha nenhum, nos outros meses os números são próximos (Gráfico 4). Gráfico 4: Comparativo por mês nos jornais em 20 anos da CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. Ainda sobre os meses, o pico de frequência dos registros ocorre no mês de julho e isso tem explicação: aquele mês é o da institucionalização da CPLP e a maioria das atividades oficiais dessa entidade sempre foi realizada em julho, até como uma forma de lembrá-la. Isso ainda implicou viagens dos presidentes brasileiros para participar das conferências e de outros eventos, atraindo a cobertura jornalística. E aqui está um traço marcante nas notícias sobre a CPLP: a dependência do envolvimento dos presidentes. Realizadas essas primeiras constatações sobre o visível da CPLP na Folha de S.Paulo e em O Globo, três dúvidas surgiram: outras organizações internacionais, similares à comunidade lusófona, receberam o mesmo tratamento que a CPLP teve nesses jornais? DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 203 Será que houve algum esforço institucional do governo brasileiro para que essa comunidade fosse destacada, mas os jornais não quiseram ver? Será que a entidade CPLP não produziu nenhuma agenda, não se comunicou, dificultando a cobertura de suas ações pelos jornais? Vejamos, então, por partes. O Brasil é membro de várias entidades internacionais. Escolhemos duas para comparar com os registros da CPLP nos jornais: o Mercado Comum do Sul (Mercosul) 83 e o bloco “Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul” (BRICS). Usamos o mesmo sistema de busca de notícias nos acervos da Folha e de O Globo. Coletamos registros do Mercosul e do BRICS no mesmo período em que foi feito com a CPLP (janeiro de 1996 a dezembro de 2016), mesmo sabendo que o Mercosul foi criado em 1991, e os BRICS em 2008. Os resultados mostraram em O Globo 33.548 referências aos BRICS e o Mercosul obteve 29.130. Na Folha, o resultado foi de 12.967 registros sobre o Mercosul e os BRICS obtiveram 2.175 notícias. Ao ver esses dados (Gráfico 5), não é difícil sugerir que a atenção dos dois jornais esteve mais voltada ao Mercosul e aos BRICS do que à CPLP. Gráfico 5: Comparativo entre Mercosul, BRICS e CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. Não é objetivo discutir a ação política e as agendas jornalísticas que envolveram Mercosul e BRICS, além de não entrar nas supostas motivações geoeconômicas dessas organizações e do Governo do Brasil. Os dados foram apresentados apenas para revelar que os jornais realizaram as coberturas internacionais, que acompanham as “relações externas” do Brasil, e que o Mercosul e os BRICS obtiveram mais anotações do que a CPLP. Existe, aí, o indício de uma invisibilização construída em torno da comunidade 83 São Estados-parte do Mercosul: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Ele foi criado em 1991. DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 204 lusófona no Brasil, sem entrar no debate de consciência ou de inconsciência dessa ação pelos jornais, mas de uma discussão sobre valores e padrões políticos dessas edições. A segunda dúvida para a qual buscamos resposta é a que trata da atenção do Governo do Brasil para com a CPLP. Sabemos que governos, grandes organizações públicas e privadas, e até personalidades são fontes importantes de informação para o jornalismo, ou elas buscam se constituir assim. Um bom esforço informativo de governos – sem falar em publicidade paga – tende a resultar em uma maior possibilidade de aproveitamento nas mídias jornalísticas com a publicação de notícias. Muitos governos montam verdadeiras máquinas de comunicação para tal fim. O governo brasileiro tem suas assessorias de comunicação e produzem material para os jornais. Contudo, ao buscar no site do Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE) pasta que detém a grande maioria dos registros sobre os contatos internacionais, percebemos que a CPLP é classificada pelo governo brasileiro como “mecanismo inter- regional”. Essa comunidade divide espaço no site com as seguintes organizações: BRICS, Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), Cúpula América do Sul - África (ASA), Cúpula América do Sul - Países Árabes (ASPA), Fórum de Cooperação América Latina – Ásia do Leste (FOCALAL), Conferência Ibero-Americana, União Africana (UA), Liga dos Estados Árabes (LEA) e Aliança de Civilizações (Figura 7). Figura 7: CPLP “dentro” do site do MRE do Brasil Fonte: Recorte do sítio do MRE (www.itamaraty.gov.br) em 20/07/2016. DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 205 A CPLP, que é a única “comunidade” como “mecanismo inter-regional”, tem um espaço diminuto, com raras informações e quase nenhuma notícia sobre ela no site nos últimos anos. Existe outra comunidade, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), mas ela está no setor de “integração regional”. A entidade CPLP, que tem sede física em Lisboa, tem um site onde busca destacar as suas atividades, por meio de uma comunicação, a nosso ver, limitada, em razão de uma pequena equipe e parcos recursos financeiros. Mesmo com dificuldades, há um significativo esforço de divulgação das ações da CPLP. Quando essa entidade completou 18 anos, por exemplo, foi produzido um documento em que estão listadas as principais atividades dessa organização, ano a ano. Como o Brasil comandou a CPLP nos anos 2001 a 2002, realizamos uma comparação das ações oficiais da entidade nesses dois anos com os registros nesse mesmo período na Folha de S.Paulo e em O Globo. Em 2001, os números de atividades relevantes da CPLP foram 12. Na Folha, naquele ano, foram identificados 3 (três) registros e, em O Globo, 2 (dois). No ano seguinte, a comunidade teve 18 registros de ações, porém os jornais somente apresentaram 3 (três) em O Globo e 2 (dois) na Folha, em todo o ano de 2002 (Gráfico 6). Gráfico 6: Comparativo de registros nos jornais e atividades da CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. Essa discrepância é maior ao observarmos os atos da entidade e as notícias dos jornais. Em 2001, foi realizada uma conferência de ministros do ambiente da CPLP, outra DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 206 dos ministros da defesa, e outra sobre educação. Registrou-se também, naquele ano, um encontro lusófono do ensino superior, um fórum de escritores em língua portuguesa, as eleições em Timor-Leste com missão da CPLP, além de outras ações. Certamente, dos eventos surgiram deliberações que poderiam ser objeto de debates nos países da comunidade. Entretanto, nem a Folha nem O Globo, com suas 3 (três) e 2 (duas) notícias, respectivamente, trataram desses temas. O mais próximo das atividades da CPLP foi o registro nos dois jornais sobre a ida do presidente Fernando Henrique a Moçambique, onde ocorreu uma reunião dessa entidade. AVANÇANDO SOBRE O VISÍVEL Esse exercício inicial nos possibilitou ter alguma dimensão material do objeto, o todo visível e possível sobre a CPLP, uma comunidade pouco vista no Brasil por meio das páginas da Folha de S.Paulo e de O Globo, nos últimos 20 anos. Além disso, a comparação da CPLP com outras entidades internacionais e as “comunicações” do governo brasileiro, e da própria CPLP, ajuda a pensar sobre o regime de visibilização a que essa comunidade lusófona esteve submetida nesse período. Os dados sugerem que essa invisibilização jornalística seja fruto de uma ação maior e mais articulada envolvendo outros atores. Ainda no nível do conteúdo, propomos avançar sobre esse corpus. Seguindo nosso método, partimos para investigar as temáticas que estiveram ancoradas nas poucas notícias sobre a CPLP. De forma didática, dividimos essa busca em dois blocos: no primeiro, tratamos das personagens dos presidentes da República do Brasil que tiveram papel noticioso em torno dessa comunidade, mas também buscamos registros sobre os presidentes dos demais países da CPLP. No segundo bloco, reunimos as temáticas gerais apresentadas para fazer falar e fazer mostrar essa comunidade. Tais temáticas foram divididas em Acordos institucionais, Conflito e Cultura. Sobre o primeiro bloco, os registros sobre a CPLP e a presença dos presidentes resultaram em 26 notícias na Folha de S.Paulo, sendo 7 (sete) com Fernando Henrique e 14 com Lula da Silva. Em O Globo, o volume total foi de 22, e esses dois presidentes tiveram 5 (cinco) e 7 (sete) menções, respectivamente. Os demais registros foram distribuídos entre os outros presidentes dos países da CPLP (Gráfico 7). DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 207 Gráfico 7: Comparativo de presidentes da República e a CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. Nos 20 anos da CPLP, os presidentes brasileiros foram Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer 84 . Em todo o período encontramos registros com presidentes de Portugal, do Timor-Leste, de Moçambique e de Cabo Verde. Os dados (Gráfico 7) revelam que na Folha, a “presença” de Lula associada à comunidade lusófona foi o dobro do que a verificada com Fernando Henrique. Em O Globo, a diferença entre os dois foi pequena, mas com leve vantagem para Lula. Nesse levantamento, chama a atenção a ausência de registros com a presidenta Dilma. Ela esteve no poder por cinco anos e oito meses e não há nenhuma notícia do seu envolvimento com as temáticas dos países lusófonos. Em 2016, encontramos um único registro de Temer em razão de uma conferência da CPLP realizada em Brasília. Ressaltamos a presença significativa, em O Globo, dos presidentes e dos primeiros-ministros de Portugal. Eles tiveram o mesmo número de notícias que o presidente Lula. Os jornais publicaram entrevistas com Joaquim Chissano, de Moçambique, e Ramos-Horta, de Timor-Leste. O Globo também trouxe uma entrevista com José Maria Neves, primeiro-ministro de Cabo Verde. Em resumo, sobre os presidentes “estrangeiros”, na Folha houve 4 (quatro) registros, sendo 2 (dois) de Portugal. Em O Globo foram 10 (dez), e 7 (sete) deles foram portugueses, o que revela clara predominância europeia na escolha de quem devia falar. 84 Os mandatos: FHC, 01/01/1995 a 01/01/2003; Lula, 01/01/2003 a 01/01/2011; Dilma Rousseff, 01/01/2011 a 31/08/2016 (interrompido por um golpe jurídico-parlamentar); e Michel Temer, a partir de 31/08/2016. DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 208 No segundo bloco, passamos a considerar os registros acerca dos Temas gerais da CPLP. Nele, tanto na Folha de S.Paulo quanto em O Globo, a categoria Acordos institucionais foi a que abrigou os maiores registros (Gráfico 8). Gráfico 8: Comparativo de categorias Temas gerais na CPLP Fonte: Elaborado pelo autor. A pesquisa apontou que 74% dos registros em Acordos institucionais trataram apenas do acordo ortográfico. Existem outras pequenas notícias sobre convênios nas áreas de educação, saúde, segurança e informática, mas as predominantes foram sobre as tentativas de unificação da escrita no espaço lusófono. Importante ressaltar que, em algumas notícias na categoria Cultura, o acordo ortográfico foi citado, mas sem predominância narrativa. Outra constatação é que quando a pesquisa buscava pela palavra-chave “Lusofonia” os registros nos dois jornais remetiam sempre para notícias da Cultura. Ou seja, não existe uma associação entre lusofonia e CPLP. Essa entidade apareceu quase sempre vinculada aos Acordos institucionais e aos Conflitos. Nesse último tópico, podem ser vistas notícias sobre golpes em Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, registros de corrupção e ditadura em Angola e Guiné-Equatorial, e a luta pela independência de Timor. Ao avançar sobre os dados nos jornais, averiguamos em que editorias essas notícias foram publicadas nos 20 anos da CPLP. Em O Globo (Gráfico 9), a maioria foi para a cobertura internacional, na editoria de O Mundo, especialmente quando as suas temáticas trataram de conflitos. Na sequência, nesse jornal, temos os registros acerca dos presidentes e de Acordos institucionais. No Segundo Caderno e Prosa & Verso estiveram todas notícias culturais e, quando juntas, elas superaram o volume inserido em O País, DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 209 onde geralmente os presidentes da República são os protagonistas. Do ponto de vista da editoria de economia, a CPLP não teve atenção de O Globo. Além disso, o jornal dedicou, em duas décadas, um editorial e, nele, tratou das relações diplomáticas Brasil/África. Gráfico 9: Registros por local de publicação em O Globo Fonte: Elaborado pelo autor. Na Folha de S.Paulo, a localização dos registros segue uma ordem pontualmente inversa à de O Globo (Gráfico 10). Nesse jornal, a predominância está na cobertura nacional e que, geralmente, envolveu os presidentes do Brasil. Os Acordos institucionais da CPLP acabaram seguindo para a editoria de Cotidiano; os Conflitos para Mundo, e os cadernos Ilustrada e Mais abrigaram as temáticas da Cultura. Existem três registros de economia (Mercado) e um único editorial em que a Folha critica os esforços do Brasil em colocar em prática a reforma ortográfica sem esperar pelo “aval” de Portugal. Gráfico 10: Registros por local de publicação na Folha de S.Paulo Fonte: Elaborado pelo autor. DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 210 Para finalizar a apresentação do que foi coletado, verificamos sobre as assinaturas desses registros nos dois jornais. A ideia era saber se as agências internacionais de notícias colaboraram ou não decisivamente para as informações em O Globo e na Folha de S.Paulo sobre a CPLP. Em outras palavras, buscamos apurar em que medida as agências europeias e norte-americanas, noticiaram os países da comunidade, e se essa cobertura foi reproduzida nos jornais brasileiros (Gráfico 11). Gráfico 11: Comparativo sobre as assinaturas dos registros Fonte: Elaborado pelo autor. Os resultados do levantamento sobre as assinaturas revelaram que nos dois jornais a grande maioria dos registros foi produzida por repórteres no Brasil, em especial de Brasília, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em apenas 4 (quatro) notícias, em O Globo, e 9 (nove), na Folha, existem a clara indicação de que houve a colaboração das agências internacionais, a exemplo da Agência de Notícias de Portugal (Lusa) e da Agence France- Presse (AFP). Percebemos, por meio dos dados, que há um volume expressivo da participação de correspondentes de O Globo e da Folha de S.Paulo nessas notícias. A maioria deles acompanhava as viagens dos presidentes do Brasil aos países da CPLP. É relevante destacar que, nos anos 1990, O Globo mantinha jornalista em Lisboa, o que deixou de existir nos anos 2000. Sobre textos exclusivos das agências internacionais, apenas encontramos um registro em cada jornal. Em resumo, a visão que se construiu da CPLP é obra da cobertura realizada por jornalistas de O Globo e da Folha, com pouca interferência – pelo menos expressas – das agências internacionais de notícias. Isso, do ponto de vista de nossos objetivos, é interessante porque revela que a CPLP teve um regime de visibilização proposto por “falas diretas” dos jornais brasileiros. DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 211 6.2 Invisibilização por ausência Depois de ter o corpus delimitado, de vê-lo como uma superfície visível, constatamos que, por meio dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, a comunidade lusófona e a sua expressão mais institucional, a CPLP, sofreram de uma significativa invisibilização nos 20 anos dessa entidade. Não se tratou de silenciamento pontual, de esquecimento localizado ou do lapso em uma edição ou em outra, mas de uma constante ausência. Relembremos que, em média, foram somente 4 (quatro) notícias por ano sobre a CPLP nos dois jornais e, algumas delas, concentradas em dias. Estamos, assim, em um ambiente de uma experiência jornalística que impossibilita a memória, onde o mundo conhecido e inteligível apresentado aos leitores desses jornais não comporta a ideia de uma comunidade de que fazemos parte. Nessas condições, falamos em um modo de experiência do invisível pelo jornalismo: a invisibilização por ausência. Apesar de empresas diferentes, a invisibilização da comunidade lusófona na Folha e em O Globo é extremamente semelhante, seja nos volumes, nas frequências ano a ano e mês a mês, nas temáticas abordadas, nos registros das fontes, nos locais em que foram publicados, nas assinaturas. Há um interagendamento da ausência, da invisibilização nos dois jornais. Nas duas décadas nesses jornais, a CPLP foi revestida da ausência, sendo aplicados nela os critérios de uma não noticiabilidade. Basta ver que somente 1% de todas as edições em 20 anos teve um pequeno registro dessa comunidade. Esses dados materializados parecem dizer de um “vazio” de uma comunidade de que somos parte, mas essa concretude da ausência nos permite aprofundar sobre jornalismo e os regimes de visibilização, exatamente por meio da construção do invisível. A invisibilização por ausência tem sua materialidade visível no próprio corpus que foi encontrado: 80 registros na Folha de S.Paulo e 81 em O Globo. O volume de notícias foi tão insignificante, dado ao universo do contexto (jornais diários em 20 anos), que essas notícias se diluíram em meio às 7.300 edições de cada jornal e aos milhares de páginas impressas em duas décadas. Os registros sobre a CPLP foram tão esporádicos que dificilmente se tem condições de reconhecer essa entidade e sequer desenvolver alguma sensação de pertença identitária à comunidade. Podemos falar, assim, de histórias e memórias ocultadas, impedidas e manipuladas (RICOEUR, 2008). O grande volume que não foi dito e não foi visto preenche o invisível do regime de DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 212 visibilização da comunidade lusófona, regime de crença no que não existe, na experiência de uma ausência tida como verdadeira. As raras notícias sobre a CPLP são como rastros visíveis das torções dos silêncios e das palavras que atravessaram o regime de visibilização nos dois jornais. Do ponto de vista jornalístico, diante de tão escassas notícias em um longo período, podemos perguntar: o que vemos aqui? Quais propostas de mundo apresentam a Folha e O Globo aos seus leitores em se constatando a ausência de uma comunidade a que pertencemos? A coletânea de 81 notícias, em O Globo e 80 na Folha, diz do visível ou do invisível? Todas essas perguntas nos conduzem à mais inquietante de todas elas: O que não vemos aqui? Ressaltamos que a experiência do invisível que temos nesse caso, a identificação desse enorme Minuto de Silêncio que fazemos, somente se tornou possível por essa narrativa que propomos aqui, onde buscamos enxergar a comunidade e encontramos sua ausência, uma ausência talvez como resposta do próprio visível. Se utilizássemos as mais tradicionais teorias sobre o Jornalismo, diante dos números visíveis da CPLP, sem problematizar o regime de visibilização, os resultados poderiam indicar uma falsa visibilização, ou talvez fossem tratados como visibilidade. Considerar que a maior parte das informações e dos sentidos está invisível ajuda a responder uma das perguntas centrais do trabalho: o que não vemos aqui? É essa pergunta que insistimos em fazer aos poucos registros encontrados sobre a CPLP nos dois jornais. A Análise de Conteúdo se mostrou fundamental, mas como intuíamos, foi um passo de saída e limitado. Para avançar é preciso recorrer a outros caminhos no sentido de perceber o invisível e as invisibilizações. As buscas em torno da empiria foram necessárias, todavia essa ação sempre foi entendida como janela entreaberta a nos convocar para uma ação diante dela, abri-la e vasculhar outros ambientes, no caso, ousar pensar na construção e na experiência do invisível no jornalismo. Se considerássemos esse corpus como o todo visível nele mesmo, como sinônimo de visibilidade – mesmo que pequena da CPLP – estaríamos a reforçar a supremacia do expresso, da força totalizante da materialidade sobre silenciamentos e invisibilizações. O que buscamos ressaltar está exatamente no não publicado, naquilo que deixou de ser ou sequer foi dito e visto nos jornais Folha e O Globo sobre a CPLP em 20 anos. Entretanto, as raras notícias não podem ser desprezadas, muito ao contrário, atribuímos a elas valor, a começar pela condição de denúncia da invisibilização. Essa ausência construída ao longo do tempo é tão parte da mesma proposta narrativa do jornalismo quanto a decisão do pouco noticiar essa comunidade. DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 213 Essa reflexão possibilita discutir que a seleção e a publicação de determinadas temáticas nos jornais não passam necessariamente pelo debate sobre a ação consciente ou inconsciente. O que se tem, em grande medida, é ação política sustentada em valores econômicos, culturais, morais que fundamentam, cada vez menos de forma sutil, os “critérios de noticiabilidade”. Se a seleção para a inclusão é atitude política, a exclusão, o que ficou de fora, o não dizer, o não mostrar, também é e de igual peso, se não for superior. A ausência é uma clara ação e efeito de poder, de poder calar, de poder não mostrar. Indiciamos que, no caso da CPLP, da comunidade de que fazemos parte, essa invisibilização tem bases na história e nas identidades. Relembremos que uma marca importante em “sociedades dependentes”, como a nossa, é o seu silenciamento (FREIRE, 1976). Na perspectiva identitária, a ausência da CPLP nos jornais pode ter lastros no processo de construção do Outro, da diferença que, em princípio, não deve ser vista e que não se quer que seja vista. Essa é uma questão em que avançaremos nos próximos itens. Por enquanto, sabemos que o corpus que constituímos e que está traduzido em dados, números e gráficos nos permite experimentar mais as ausências do que as presenças. Com a decisão de não falar e não mostrar, os jornais agem como agentes de impedimento, a produzir um tipo de censura sutil que não consente a experiência do reconhecimento entre nós, na medida em que silenciam reiteradamente a comunidade. Entretanto, toda ação deixa vestígios, mesmo as que objetivam apagá-los. Por isso, fizermos emergir rastros nos restos das notícias sobre a CPLP e que pareciam perdidos no universo gigantesco das páginas dos dois jornais ao longo de 20 anos. Esses restos são como “relâmpagos” (DELEUZE, 2005), pontos minúsculos de luzes dispersos, mas juntos, narrativamente, formam uma ausência presente. Desculpas técnicas, como o não atendimento dos “critérios de noticiabilidade”, fazem parte de uma retórica política que vem da modernização encenada e autoritária da imprensa no Brasil, a partir dos anos 1950, para tentar justificar a invisibilização. Essas alegações acabam reforçando “valores” ideológicos das empresas, do negócio jornal para além do jornalismo, o que pode explicar o porquê de periódicos diferentes terem adotado o mesmo modus de construção do invisível da CPLP em duas décadas, isto é, os mesmos valores gerais parecem cultivados pelos dois jornais. Sobre a comunidade lusófona, a Folha e O Globo estabeleceram um mesmo regime de visibilização, em que a ausência é a condição inercial. Entretanto, esses jornais teriam a obrigação de noticiar a CPLP? Não estaríamos a exigir deles a perfeição para contar e mostrar tudo? Não. Não se estabeleceu aqui um padrão, um ideal de jornalismo, e DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 214 nem se exige da Folha e de O Globo o impossível. O que estamos propondo é a reflexão, o exercício crítico da construção do regime de visibilização no jornalismo. E, sendo assim, importa indagarmos: que mundo é esse que os jornais adotam, traduzem e propõem para nós? Sugerimos que as respostas não estão na imagem-superfície apresentada por eles, mas na convocação de uma experiência que, nesse caso, vem se dando a partir de silenciamentos reiterados e de invisibilizações. Nesse sentido, atendemos ao convite de Merleau-Ponty (2012) para experimentar as camadas invisíveis nessa superfície. E mais: “o objetivo não é alcançar o que está abaixo da superfície da imagem, mas ampliá-la, enriquecê-la, dar-lhe definição, tempo” (ABRIL, 2013, p. 165)85. Lembremos que a utilização do nome “comunidade”, que serve para reunir povos e países de língua portuguesa, não é ação retórica; suas relações não são superficiais ou somente estabelecidas por decretos. Entre os povos lusófonos há fortes articulações históricas que permitem suscitar sentimentos de pertença e de diferença, mas jamais de indiferença. Estamos falando de uma comunidade móvel e que mobiliza meadas de fios de passados, presentes e futuros que nos entrelaçam desde o século XV e que se estendem por África, Ásia, América e Europa. Por força das línguas, das culturas, dos trânsitos entre as colônias e entre estas e a metrópole navega a possibilidade do entre nós. Nesse ambiente, o Brasil é lugar privilegiado em razão da presença dos portugueses e de outros europeus; das resistências, extermínios de índios e negros; do longo e violento sistema escravagista, e de incontáveis troncos de mestiços que, juntos, constituem-nos como povo. Para além das intensas relações históricas e identitárias e que resultaram em nós, do ponto de vista institucional, como observamos, o Brasil foi um dos articuladores para a criação da CPLP. Além disso, o governo brasileiro esteve no comando dessa entidade em 2001 e 2002, uma institucionalidade materializada em encontros, acordos e convênios, mas de pouca atenção do governo, e que também se traduziu em pouca visibilização. O fato é que, mesmo sendo raros e esporádicos, os registros sobre a CPLP existem como presenças a revelar torções de silêncios e de palavras por meio dos jornais. As poucas notícias denunciam uma ausência presente. Nesse caso, mobilizar gráficos, números e dados constitui um modo da experiência da ausência que, como se pode perceber, não é o vazio. A ausência é composta por valores e sentidos para ela mesma e para a conformação do visível. Os poucos registros que encontramos são como anúncios dos jornais a nos propor um longo minuto de silêncio. Neles, emergem “rastros” 85 “El objetivo no es alcanzar lo que está bajo la superficie de la imagen, sino ampliarla, enriquecerla, darle definición, tiempo” (ABRIL, 2013, p. 165). DAS AUSÊNCIAS PRESENTES | 215 (GINZBURG, 1989, 2007) como presenças impertinentes do invisível a exigir de nós as narrativas sobre a invisibilização. É esse zumbido que atravessa o percurso e que nos obriga a ir além, talvez em busca de sentidos das ausências durante esse minuto de silêncio que se estendeu por 20 anos. O gesto que propomos no próximo capítulo é fazer emergir nos restos das notícias os rastros que possam indicar outro modo de invisibilização, além da ausência. A ideia é mexer, vasculhar, catar as notícias para tentar fazer emergir indícios que possam nos ajudar a refletir sobre o porquê dessas ausências reiteradas, e experimentar uma construção do invisível no jornalismo por meio das presenças que este mobiliza e torna visíveis. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 216 CAPÍTULO VII – DAS PRESENÇAS AUSENTES A indução se manifesta pelo reordenamento ou pela recontextualização dos fragmentos da realidade, pelo subtexto – aquilo que é dito sem ser falado – da diagramação e da programação, das manchetes e notícias, dos comentários, dos sons e das imagens, pela presença/ausência de temas, segmentos do real, de grupos da sociedade e de personagens. (Perseu Abramo, Padrões de manipulação na grande imprensa, 2003) No final do capítulo anterior, depois de mobilizar a empiria visível, constatamos que os registros sobre a CPLP em 20 anos na Folha de S.Paulo em O Globo são raros, e que o regime de visibilização inicial se configura a partir de uma ausência permanente dessa comunidade lusófona no Brasil, pelo menos na ótica dos dois periódicos. Assim, os não ditos e os não vistos reiterados se constituem em uma invisibilização por ausência. No entanto, invisibilização é verbo de ação e a ação deixa rastros em seu percurso. Por isso, este capítulo é uma exigência do próprio objeto e do nosso percurso interrogativo. Os sinais da invisibilização que emergem são como potências para as análises Históricas e Semióticas, porque podem dar a falar e a ver sobre as opções políticas dos jornais, recorrendo a outro modo de experiência do invisível no jornalismo: a invisibilização por presença. Ou seja, é também nesse sentido que o visível nas superfícies jornalísticas dará forma ao invisível, que está ali como imaginário vivo. 7.1 Os rastros na Folha de S.Paulo e em O Globo Neste capítulo, passamos a considerar as perspectivas históricas e semióticas para avançar na experiência do invisível no jornalismo, isto é, indo além das ausências reiteradas. Para isso, diante dos restos das notícias sobre a CPLP na Folha e em O Globo nos últimos 20 anos, utilizamos o método da eleição de sinais, de rastros (GINZBURG, 2007) que emergem e sinalizam traços históricos e identitários torcidos para produzir a invisibilização da CPLP no Brasil. Optamos pelo diagrama triádico (visualidad, mirada e imagen) (ABRIL, 2013), como elemento de nosso movimento perceptivo e interpretativo. Na primeira dimensão, analisamos as notícias considerando a divisão em categorias estabelecidas na Análise de Conteúdo, ou seja, os presidentes Fernando Henrique, Luiz Inácio Lula da Silva e os chefes dos demais países da CPLP; os Acordos institucionais, Conflitos e a Cultura. Na mirada, a atenção se volta aos restos que nos DAS PRESENÇAS AUSENTES | 217 permitem enxergar propostas de ausência, indiferença, diferença e rejeição da comunidade lusófona nos jornais brasileiros. Do ponto de vista da imagen, perceberemos as indicações de constituição dos imaginários em torno da CPLP e que resultam de um projeto insistente de colonialidade no Brasil, que cultiva a imunidade identitária como valor e ação política. Não é demais relembrar que essas três dimensões estão assim divididas em razão de melhor compreensão do processo, porque, na prática, elas estão interseccionadas de maneira tal que a visada é única, assim como esclarece Abril (2013, p. 49): “A visualidad, a imagen e a mirada não são espaços fechados, mas sim delimitados de forma imprecisa, com limites fluídos”86. Não é sem razão que em grande parte desse percurso percebemos um trânsito livre e intenso entre as três dimensões. E foi essa condição que também nos auxiliou na opção de fazer as análises dos jornais de forma conjunta. O Globo e a Folha dividem, sem maiores questões específicas, o mesmo espaço. As notícias sobre a CPLP são bastante próximas em termos de números, temáticas, personagens e abordagens nos dois jornais. Pontuais diferenças não alteram, em hipótese alguma, o olhar sobre sua coletânea. Depois de submeter os 80 registros do corpus geral sobre essa comunidade na Folha, elegemos 31 deles em que emergem indícios históricos e identitários, e que revelam as opções do jornal em construir a invisibilização em torno da CPLP. Em O Globo, das 81 notícias selecionadas, em 32 também emergiram vestígios que sugerem as razões políticas para condenar a comunidade dos países de língua portuguesa às camadas invisíveis. 7.1.1. Visualidad Nessa dimensão perceberemos quais ancoragens os jornais propuseram ao tratar da CPLP. Dedicamo-nos ao expresso, ao conjunto de composições verbo-visuais, buscando ali os sinais visíveis que foram deixados ao longo do tempo pela Folha de S.Paulo e O Globo. Os rastros que emergiram nesse percurso nos remetem à história e, conectados, podem disparar associações e diferenciações identitárias. Por meio da visualidad, podemos enxergar nesses jornais chaves de leitura para refletir sobre os valores que estão nas bases das opções políticas da Folha e de O Globo, no que tange ao regime de visibilização da CPLP, mas com foco na invisibilização dessa mesma comunidade. Para essa análise, organizamos dois blocos categóricos. O primeiro faz referência à participação de dirigentes em ações da CPLP, são eles: Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), Presidente 86 “La visualidad, la imagen y la mirada no son ámbitos cerrados sino más bien delimitados de forma imprecisa, con límites fluidos” (ABRL, 2013, p. 49). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 218 Lula e Presidentes diversos (presidentes e/ou primeiros-ministros dos demais países). O segundo bloco é composto pelas categorias: Acordos institucionais, Conflitos e Cultura. BLOCO 1º Presidente Fernando Henrique. Quando a CPLP foi criada, o presidente do Brasil era Fernando Henrique. Relembremos que, antes de 17 de julho de 1996, várias ações tinham sido realizadas no sentido de preparar a institucionalização dessa entidade. Contudo, na Folha de S.Paulo praticamente não existem notícias sobre ela anteriores a julho de 1996. O que chama a atenção é um registro nos dois jornais nas vésperas da criação da CPLP. O presidente FHC estava em Lisboa para participar desse ato e concedeu entrevista ao jornal português Diário de Notícia. Em 16 de julho de 1996, a Folha e O Globo reportaram-se a entrevista. Os jornais brasileiros destacaram a fala de Fernando Henrique, de que o brasileiro “pensa como caipira”, é “isolacionista” e “rejeita a globalização” (Figura 8). Ao lembrar que morou muitos anos fora do Brasil, o presidente diz que os brasileiros são caipiras porque “desconhecem o outro lado, e quando conhecem, encantam-se” (O Globo, 16/07/1996, p. 3). Fernando Henrique afaga a antiga metrópole como o lugar que “encanta” e, para a explicação desse ser “caipira”, o presidente do Brasil recorre à matriz racial/identitária: “sem dúvida nenhuma, a variante da mentalidade criolla (sic)”, diz FHC, sociólogo e professor (O Globo, 16/07/1996, p. 3). Ele encontra na “variante da mentalidade criolla” a responsável por nosso atraso civilizacional. Figura 8: Entrevista do presidente FH antes da criação da CPLP Fonte: Acervo de O Globo, ed.16/07/1996, O País, p. 3. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 219 Relembremos que a entrevista é concedida em Portugal e nas vésperas da criação da CPLP, uma entidade que tem na sua composição a maioria de países africanos, com povos que falam o português e outras línguas, inclusive o crioulo. Seria esse o nosso cartão de visita na nova organização internacional, a rejeição e o apagamento da “mentalidade criolla”? A nossa ou a do Outro? Como devemos transitar na CPLP, uma comunidade majoritariamente crioula? Essa entrevista do presidente brasileiro faz a junção de alguns movimentos: vai do incômodo do representante da elite brasileira pelo do ser “caipira”, de “mentalidade criolla”, atrasado e que rejeita a globalização, à exigência de mudança, afinal quem fala é o presidente branco, intelectual e que morou muitos anos na Europa. Agora, com ele, o Brasil caminharia para o moderno, abrir-se-ia ao mundo e buscaria se inserir no cenário mundial, “encantar-se”, mas, para isso, o país precisaria superar sua “mentalidade criolla”. Estamos diante da fala de uma fonte jornalística e política primária, e do maior país lusófono em que grande parte do povo é constituída por crioulos. Entendemos que há, na fala de FHC e destacada na manchete dos jornais, um forte componente racista e não somente racial. O presidente retoma o projeto de uma nação brasileira advindo do Brasil Colônia e pensado por grande parte da elite nacional. Chauí (2013) nos faz lembrar que esse projeto foi materializado em trabalhos científicos, a exemplo de O caráter nacional e as origens do povo brasileiro, de 1881, e a História da literatura brasileira, de 1888, ambas do sergipano Silvio Romero. Nelas, defende-se que o brasileiro é composto por “uma sub-raça mestiças e crioula, nascida da fusão de duas raças inferiores, índio e negro, e uma superior, a branca ou ariana” (CHAUÍ, 2013, p. 43, grifos nossos). A intelligentsia nacional, eurocêntrica, desenvolve a ideia de que o Brasil precisava acertar os passos com a Modernidade, no dizer de Néstor Canclini (1997), isto é, alinhar-se às grandes potências capitalistas, e isso ocorre, de forma simultânea, com a exclusão de tudo que revele em nós traços de um passado atrasado, índio, negro, caipira, crioulo. Não foi por outro motivo que Renan (2006) sustentou que o “esquecimento” é um fator essencial na construção das nações. A fala do presidente do Brasil em julho de 1996 está ajustada às lógicas da herança colonial, do eurocentrismo, da globalização e possui fundamentos racistas. Esse registro revela a presença incômoda do Outro, negro e crioulo entre nós e que impede, segundo FHC e por meio dos dois jornais, que alcancemos o “outro lado”, o mundo global e “encantado”. Para além do Outro interno, caipira de mentalidade criolla, o DAS PRESENÇAS AUSENTES | 220 Brasil está diante do Outro-comunidade, da configuração identitária e majoritariamente crioula. As falas do presidente, reproduzidas nos jornais, são sinalizadoras de como deveriam ser as relações entre Brasil e as outras nações da CPLP. Temos as grandes potências como o Outro “encantado”, desejado e imitado, em oposição ao Outro desagradável, negro, pobre, crioulo – interno e externo – a ser apagado. Na prática, o que se verificou no decorrer dos anos seguintes em O Globo e na Folha de S.Paulo foi uma política de combate à comunidade lusófona, que vai desde o não reconhecimento expresso nos silenciamentos reiterados dela nas páginas dos jornais, até a criminalização permanente de sua presença. Ressaltamos que essa mesma notícia foi publicada na página 3 em O Globo, e na 5 na Folha, nos primeiros cadernos e na editoria da política nacional, espaço em que os jornais dedicam a temas importantes da política nacional. As informações sobre a criação da CPLP ganharam um pequeno box ao lado, com o título “Sete países unidos pelo mesmo idioma” (O Globo, 16/07/1996, p. 3). Diferentemente da Folha, em O Globo os nomes dos países da CPLP foram ditos, mas sem qualquer indicação histórica que permita associá-los como comunidade. Na Folha do dia 18 de julho de 1996, está a notícia da oficialização da CPLP. Nela, o presidente FHC destinaria U$S 4 milhões a “programas de cooperação com países africanos de língua portuguesa”. Essa ação, porém, não se confirmou ao longo dos anos, conforme outros registros desse mesmo jornal. Nessa notícia sobre os U$S 4 milhões para os países africanos da CPLP, o preço da ação, cobrada pelo governo brasileiro, estava estampado no jornal: “Em contrapartida, o Brasil ganhou o endosso formal dos seus seis sócios na CPLP para sua candidatura a uma vaga no Conselho de Segurança da ONU” (Folha, 18/07/1996, Brasil, p. 5, grifo nosso). Outro recorte significante do ponto de vista dos indícios e da visualidad em torno do presidente Fernando Henrique é o que trata da viagem de FHC até Moçambique em 2000, onde ele participou da conferência da CPLP. Essa notícia está na edição da Folha de S.Paulo de 18 de julho daquele ano (Figura 9) e confirma os modos de compreensão de como o Brasil deveria tratar essa comunidade e seus países. Na notícia, utilizando-se da fala do presidente, o jornal paulista assume uma narrativa que diz de nossa relação com África conforme o cartão de visita que tinha sido apresentado pelo presidente Fernando Henrique quando da criação da CPLP em 1996 e que estava estampada na entrevista aos jornais portugueses e brasileiros. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 221 Figura 9: Participação de FH em reunião da CPLP Fonte: Acervo da Folha, ed.18/07/2000, Brasil, p. 7. Nesse registro, o jornal destaca que o presidente Fernando Henrique perdoou 95% da dívida de Moçambique, e logo apresenta a crítica: uma ação que “resultará no impacto de U$S 450 milhões na dívida interna brasileira” (Folha, 18/07/2000, p. 7). Apesar de criticar o “perdão”, entendido como prejuízo ao Brasil, a Folha fez a escolha de enfatizar, com o uso de verbos de força, as ações do presidente brasileiro diante da CPLP, como um agente superior e apartado dos “países pobres da comunidade”. Fernando Henrique, narra o jornal, “incorporou o papel de líder do bloco” e “anunciou o repasse” (Folha, 18/07/2000, p. 7, grifos nossos). “De uma vez só”, FHC “[...] mandou recados para dissidentes políticos de Angola, cobrou união do grupo para enfrentar os efeitos da globalização, estabeleceu prioridades para o desenvolvimento comum, distribuiu verbas para treinamento de pessoal e disponibilizou tecnologia” (Folha, 18/07/2000, p. 7, grifos nossos). Essas ações nos fazem lembrar os “Códigos de Postura” e as violentas reformas sanitárias e urbanas dos séculos XVIII e XIX, aplicados pela elite brasileira para o controle, a punição, o apagamento e a invisibilização da raça negra e dos pobres (SCHWARCZ, 2012). Nessa mesma notícia da Folha, a condição do Brasil como principal ator do CPLP, aquele que manda, cobra, estabelece, distribui, é reforçada pela informação de que o discurso de FHC “foi voltado principalmente para os ‘primos pobres’ africanos” (Folha, 18/07/2000, p. 7). Ou seja, o jornal até revela o parentesco entre brasileiros e africanos, mas tão somente para marcá-los como a diferença, os nossos “primos pobres” em oposição a nós, os ricos. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 222 Para reforçar essa condição de superioridade, já destacada nos verbos de força do presidente brasileiro e a existência do Outro, o primo pobre, a Folha ressalta que a comitiva de Fernando Henrique era a maior da CPLP, que se deslocava com 15 carros pela capital de Moçambique. A notícia arremata que “os seguranças brasileiros são os mais ostensivos, mantendo FHC isolado todo o tempo dos jornalistas” (Folha, 18/07/2000, p. 7), isto é, protegido, imune, como um rei a inspecionar suas colônias e seus subordinados. O Globo também esteve em Moçambique para acompanhar o presidente FHC na reunião da CPLP. Na edição de 18 de julho de 2000, o jornal trouxe um relato bastante semelhante ao da Folha, destacando o perdão da dívida e também outras ações de “comando” do presidente brasileiro para as demais nações lusófonas. (Figura 10). Figura 10: Presidente Fernando Henrique em reunião da CPLP Fonte: Acervo de O Globo, ed.18/07/2000, O Mundo, p. 33. Na fotografia utilizada em O Globo, aparece o presidente FHC recebendo um xale de Xanana Gusmão, líder do Timor-Leste, como se fosse uma forma de coroação ao líder dos países da CPLP. Na prática, o ativista timorense tentava arrancar do presidente brasileiro um aceno de apoio ao Timor-Leste, que lutava pela independência, o que não aconteceu. O Brasil mantinha acordos comerciais com a Indonésia e foi o último da comunidade a se manifestar em favor do Timor, quando esse país já estava independente. O Globo afirma, nessa notícia, que o preço que o Brasil iria cobrar dos países pobres é que eles apoiassem o Brasil a ter uma cadeira no Conselho Permanente de Segurança da ONU. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 223 Os textos da Folha e de O Globo revelam uma postura neocolonial brasileira em relação aos países africanos e de indiferença aos apelos do Timor-Leste. Essas ações do presidente FHC, às quais os jornais empregam força narrativa, fazem-nos lembrar das considerações de Said (2011) sobre as expansões imperialistas do século XV, onde se constrói uma relação de naturalidade entre os povos superiores e inferiores. Aqui, temos uma potente formação ideológica que fabrica o soberano com a missão divina de agir, mandar, cobrar, estabelecer, governar os inferiores, que, por sua vez, reconheciam-se como subordinados (SAID, 2011). Ressaltamos ainda dois aspectos nas notícias do presidente Fernando Henrique e da CPLP. O primeiro é o das fotografias. Em O Globo e na Folha são poucas as notícias em que existem imagens de FHC associadas à comunidade lusófona. Quando aparece, a foto mostra-o como o intelectual, o líder que circula “encantado” por Lisboa e que recebe o reconhecimento dos representantes dos países pobres. De todo corpus, existe apenas uma fotografia, na Folha de S.Paulo, edição de 18 de julho de 1996, em que as personagens negras, os presidentes dos países lusófonos da África estão próximos de Fernando Henrique. A imagem é a do ato de criação da CPLP e ela nos faz relembrar o cartão de visita do proprietário de escravos em São Paulo em 1879 (Figuras 11 e 12). Figuras 11 e 12: Ato de criação da CPLP e cartão de visita de dono de escravos Fonte: Acervo Folha, ed.18/07/1996, Brasil, p. 5. Fonte: Acervo Militão Azevedo, 1879. (Fernando Henrique é o segundo da esquerda para a direta) Na foto de criação da CPLP, no centro, estão o presidente e o primeiro-ministro de Portugal, Jorge Sampaio e António Guterres, respectivamente. Fernando Henrique, apesar de se localizar mais para a ponta, parece buscar conversa com o presidente português, único sinal de diálogo na imagem. Talvez isso revele que o interesse do Brasil naquela ocasião era a relação com a antiga metrópole. A esses dois países, os demais presidentes das nações lusófonas africanas figuram como imagem visível/invisível. São DAS PRESENÇAS AUSENTES | 224 visíveis como forma de ostentação dos líderes; como soldados uniformizados de terno e prontos a apoiar as ações dos comandantes, a exemplo de votar no Brasil para o Conselho de Segurança da ONU. Todavia, eles são invisíveis quando reivindicam o direito do reconhecimento identitário, uma comunidade sem fronteiras, em que esses comandantes têm deveres, obrigações, dívidas históricas jamais quitadas. Outro aspecto a destacar e que está alinhado às reflexões anteriores é que, em grande parte das notícias sobre a CPLP, em que o presidente Fernando Henrique foi a personagem principal, as retrancas utilizadas pelos dois jornais foram: Viagem, Diplomacia, Portugal, Governo. Não há indicações ou associações identitárias e comunitárias. Veremos que essas retrancas e suas vinculações vão mudar no Governo Lula. Apesar de não seguir uma linha temporal, iniciamos com os registros sobre a CPLP e o presidente Fernando Henrique para conhecer as primeiras notícias dessa comunidade, o que acabou revelando um indicativo de como os temas envolvendo os países lusófonos seriam tratados pelos jornais. Esses primeiros registros são como uma carta de apresentação, onde o Brasil anuncia como iria tratar os países e os povos da comunidade. Percebemos que nós, o “primo rico”, mantém-se à distância e sem expressar os vínculos identitários e históricos que nos constituem. Aliás, o indicativo revelado é apagar a condição crioula para se alinhar aos países mais ricos. O presidente busca exercer o poder sobre os “primos pobres” e cobrar deles os votos no Conselho da ONU. O Brasil mostra-se indiferente às lutas pela independência de Timor-Leste, em razão de manter negócios com a Indonésia. Indiferença a que nos referimos aqui não é cultivar a falsa imparcialidade, mas tomar partido, agir contra o Timor-Leste em favor da Indonésia. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Depois de dois mandatos de FHC, o presidente Lula tomou posse em janeiro de 2003 e, tanto na Folha de S.Paulo quanto em O Globo, vimos um salto no número de registros em relação à CPLP, comparando-se ao período do governo anterior. Tentava-se estabelecer uma política externa do eixo Sul-Sul. Todavia, nos dois jornais, apesar da maior presença de Lula em África, grande parte das narrativas sobre a CPLP e as nações africanas lusófonas manteve a mesma linha de compreensão vinda do Governo FHC (liderança e tutela neocolonial), com especificidades construídas em razão do presidente Lula chamar a atenção para questões identitárias. Em novembro de 2003, a Folha e O Globo acompanharam, com repórteres especiais, a viagem de presidente Lula a África, especialmente aos países da CPLP. O DAS PRESENÇAS AUSENTES | 225 Globo publicou uma página sobre esse acontecimento em 04 de novembro de 2003 e deu destaque ao fato de Lula anunciar U$S 1 bilhão em recursos do BNDES para empresários brasileiros e angolanos. O jornal enfatizou que Lula chegou a Angola acompanhado por “uma comitiva de 60 grandes empresários brasileiros”, motivo que fez aquele periódico parabenizar o presidente por agir como um “agente do desenvolvimento”. O jornal diz que Lula levou a iniciativa privada brasileira a participar “do espetáculo de crescimento no país africano” (O Globo, 04/11/2003, p. 9), dando continuidade às “boas ações” de FHC, relembradas em um box na mesma notícia: “Governo FH vira exemplo de boas ações” (Figura 13). Figura 13: Viagem de Lula à Angola e a outros países da CPLP Fonte: Acervo da O Globo, ed. 04/11/2003, O País, p. 9. Essa notícia nos encaminha para Anderson (1993), quando revelou que as expansões imperialistas europeias do século XV tinham no soberano do Estado-nação a figura do agente privilegiado de defesa e promoção dos consórcios privados transnacionais. Além desse ângulo econômico (investimentos, empresários, etc.), O Globo revela-se como ator político em pleno exercício ao julgar, autorizar e festejar a iniciativa do presidente Lula em liberar recursos públicos ao setor privado sob a alegação de fomento ao “desenvolvimento” do país africano. Esses jornais de referência não são meros meios de informação jornalística, mas agentes inseridos no jogo político e econômico e que buscam DAS PRESENÇAS AUSENTES | 226 influenciar nas decisões em benefício do grande capital (ARBEX JÚNIOR, 2002; MIGUEL, 2002; ZANIN, 2014). Apesar de destacar a economia, a reportagem de O Globo (04/11/2003, p. 9) acaba trazendo dois pequenos boxes em que deixa escapar questões identitárias nítidas. Em um, o presidente Lula é chamado por deputados angolanos de “porta-voz dos desfavorecidos do planeta” em razão de seus discursos em favor dos “humildes”. O jornal não traz a fala de Lula, mas diz que o presidente brasileiro anunciou no parlamento angolano que as escolas no Brasil teriam a disciplina sobre a África e a cultura afro-brasileira. Existem, aí, dois aspectos sutis: o primeiro é que Lula é reconhecido como a voz de liderança dos países pobres, isto é, o Brasil é incluído nessa faixa, entre os pobres, de modo inverso ao Governo FHC, que buscou ser liderança dos países pobres, mas sem inserir-se neles. Com o Governo Lula, esse vínculo aos países pobres da comunidade lusófona será alvo de forte rejeição pelos jornais. O segundo ponto tem relação com o minuto de silêncio que está na informação de que as escolas brasileiras vão ter uma disciplina sobre África. Existe uma longa justificativa histórica e identitária que está no discurso de Lula no parlamento angolano (JÚNIOR, 2013), mas esse discurso está ausente nessa e em outras edições de O Globo. Essa é uma exclusão pensada que deixou rastro, uma presença ausente submetida aos valores do capital, aos negócios, conformando o visível e o invisível. Em outro box – central na página – esse jornal (04/11/2003, p. 9) argumenta que os investimentos em Angola são bons porque ajudam no desenvolvimento daquele país. Há uma clara indicação no texto de que, ao gerar empregos lá, manterá os angolanos lá, o Outro onde está, e longe de nós. Para isso, O Globo usa números: “mais de 6 mil angolanos” legais vivendo na “miséria” no Brasil, mas o “maior problema” são os clandestinos, cerca de 10 mil. Eles “acabam virando presas fáceis para o tráfico” (O Globo, 04/11/2003, p. 9). Ou seja, os recursos públicos na iniciativa privada produzirão o progresso em Angola e, o Outro, estrangeiro, miserável, perigoso, traficante, vivendo entre nós, poderá ser mandado embora, expulso (porque são ilegais). Aí, apagaram-se todas as referências ao “primo”, mesmo que pobre, e não se tocou na condição comunitária, histórica, identitária. A Folha de S.Paulo também cobriu a primeira visita do presidente Lula aos países africanos lusófonos em novembro de 2003. Dias antes da viagem, na edição de 30 de outubro, a Folha destacou: “Lula pedirá votos na África para conselho”. Nesse registro, informa-se que Lula faria uma ofensiva “na busca de liderança internacional, DAS PRESENÇAS AUSENTES | 227 principalmente entre países pobres” (Folha, 30/10/2003, Brasil, p. 6). O jornal diz que o Brasil espera contar com o voto dos africanos para o Conselho de Segurança da ONU, pauta que vinha do Governo FHC. Curiosamente, na notícia não existem falas nem do presidente e nem de ministros informando esse interesse. A pauta do Conselho da ONU pareceu ser mais dos dois jornais – como atores políticos que buscam influenciar – de que do próprio governo. Entretanto, em razão do regime de visibilização, ela acabou sendo assumida no decorrer do Governo Lula como oficial. Dias depois, em 03 de novembro de 2003, a Folha acompanhou a chegada de Lula em São Tomé e Príncipe. A perspectiva econômica também moveu a cobertura. Quase toda notícia sobre o evento da CPLP naquele país tratou da cobrança de Lula à Petrobras para que ela fosse mais “ambiciosa” em explorar petróleo na África. O presidente brasileiro teria sido informado por empresários que bacias petrolíferas estavam abertas à exploração, mas a empresa brasileira ainda não tinha se apresentado. A Folha, apesar da foto do registro mostrar o presidente Lula e sua mulher, Mariza, cumprimentando crianças, reforça a lógica econômica da ação neocolonial permanente sobre aquele continente (Figura 14). Figura 14: Viagem de Lula para nações da CPLP Fonte: Acervo da Folha, ed. de 03/11/2003, Brasil, p. 4. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 228 Todavia, nessa mesma notícia emergiu um forte rastro que denuncia que o presidente tratou de outras questões além da Petrobras. A repórter Eliane Cantanhêde, que acompanhava a viagem pela Folha, relatou que “Lula falou o tempo todo em tom emocional, lembrando ‘os escravos e a dívida histórica do Brasil com a África’” (Folha, 03/11/2003, p. 4). Podemos perceber aí os minutos de silêncio, em que o relato da cobrança do presidente à Petrobras, cujo intuito é denotar uma postura incisiva em relação à África, apagou outras possibilidades de visibilização dessa viagem. Na verdade, os interesses neocoloniais, expressos na maior exploração africana, impõem a invisibilização das relações históricas e identitárias entre nós e África. Temos nesse rastro uma narrativa que busca não enxergar nossos vínculos porque isso implicaria em “dívida histórica do Brasil com a África”. Ao não iluminar essa questão, o jornal toma uma clara opção immunitas (ESPOSITO, 2012), de não aceitar qualquer possibilidade de dívida, de obrigação, de dever de retribuição. Nesse mesmo recorte, podemos enxergar a sutil trama de invisibilização das marcas históricas e identitárias quando o jornal inicia o texto com: “Lula falou o tempo todo em tom emocional”. O racional, sério, o que deve ser levado em conta é a cobrança do presidente para a Petrobras explorar a África, a economia, os “bons negócios”, os interesses do capital. As demais falas, como escravidão, vínculos históricos e identitários, dívidas que temos são tratadas como emocionais, afetivas, do passado, sem amparo racional no presente. Na edição do dia seguinte, 4 de novembro, assim como fez O Globo, o jornal paulista também noticiou a visita de Lula à Angola (Figura 15). O registro foi marcado pelo anúncio de “imposto zero” aos produtos angolanos no Brasil, o que o jornal insinua como “prejuízos” ao mercado brasileiro. Todavia, também nessa reportagem a Folha coloca em invisibilização um dado que é central: que o “imposto zero” é uma ação que está alinhada à política externa do governo brasileiro que buscaria refletir sobre a “dívida histórica” do Brasil para com a África, nesse caso, com Angola. O jornal apenas diz que Lula foi chamado de “porta-voz dos pobres”, sem maiores contextualizações. A Folha, nesse pequeno texto, insiste em utilizar “países pobres” (seis vezes) para “qualificar” homogeneamente todas as nações africanas lusófonas. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 229 Figura 15: Viagem de Lula à Angola Fonte: Acervo da Folha, ed. 04/11/2003, Brasil, p. 4. A partir de 2004, outras temáticas existentes timidamente nos jornais passaram a ter enfoque central no pouco visível sobre a CPLP e o presidente Lula: as ditaduras e a corrupção nos países da África lusófona. Além de reforçar a associação miséria/África, de festejar ações neocoloniais do Brasil naquele continente, e de garantir que a contrapartida das nações pobres em razão das bondades brasileiras (perdão de dívidas, investimentos, imposto zero) era votar no Brasil para ONU, as narrativas passam a criminalizar a aproximação de Lula aos africanos e a recorrer a críticas de regimes políticos naquele continente. As ações da política externa do Governo Lula para África (abertura de embaixadas, disciplina nas escolas brasileiras sobre a África, convênios, etc.) sempre tinham uma base de justificativa nas relações históricas e identitárias. Diante desse cenário, que poderia gerar a ideia de pertença e implicar em mobilidades indesejadas à elite nacional brasileira, além do debate sobre a escravidão no Brasil, os jornais agem para ampliar a invisibilização da CPLP. Um ano depois da posse de Lula, as poucas notícias sobre a comunidade lusófona, criminaliza a aproximação do Brasil desses países. Um dos DAS PRESENÇAS AUSENTES | 230 primeiros exemplos está na edição de 28 de julho de 2004. O Globo publicou a ida de Lula para uma Conferência da CPLP em São Tomé e Príncipe (Figura 16). Figura 16: Lula em conferência da CPLP Fonte: Acervo O Globo, ed. 28/07/2004, O País, p 12. O texto central da notícia é sobre o evento da CPLP, mas o título e a única foto usada destacam a “boa” relação entre Lula e Bongo, presidente do Gabão e chamado de ditador. De fato, Lula esteve de passagem no Gabão, mas o centro da notícia era a conferência da CPLP. Como se vê, o jornal evidencia no título que o carro usado pelo brasileiro foi um Rolls-Royce prateado – que não se vê –, cujo proprietário seria o ditador. O carro é apontado como contradição em um país com povo miserável e um ditador corrupto. Apesar de O Globo comemorar o fato de empresários que acompanhavam Lula “fecharem bons negócios” no Gabão, a notícia do presidente com o ditador é uma experiência que repele nosso apoio. As rejeições e repulsas identitárias, em razão do passado e da possível projeção em razão das dívidas históricas não saldadas, têm maior força no regime do visível. Em praticamente todas as reportagens, com repórteres que acompanhavam as viagens de Lula pela África, uma informação se repete: o uso de repelente no avião presidencial, onde estavam ministros, deputados, empresários e jornalistas. Os jornais revelam o medo da doença e do mosquito, da sujeira, uma questão que lembra o Brasil Colônia e a chegada dos europeus, em um misto de curiosidade e pânico diante das DAS PRESENÇAS AUSENTES | 231 doenças atribuídas aos negros. Nas cartas do século XVIII eram comuns expressões como “canibalismo”, “bárbara antropofagia”, “infectados” para se referir ao índio e ao negro, sujos e doentes. Nessas notícias em O Globo e na Folha, informa-se que Lula não usou o repelente e justificou que “pernambucano como eu não precisa disso. Na hora em que o mosquito morde é ele quem morre” (Folha, 27/07/2004, Brasil, p. 4). O repelente aqui também pode funcionar como uma metáfora. Os jornais buscam construir condições para que disparemos as ações do rechaçar, proteger, imunizar-se da relação com o Outro, o perigo, a doença, mas o presidente Lula parece não precisar porque, ao menos retoricamente, sente-se vinculado identitária e historicamente à África, o que para os jornais é inaceitável. No segundo Governo Lula, as viagens do presidente até a África diminuíram, mas as poucas eram cobertas pelos dois jornais, que mantinham a linha narrativa com palavras-chave: pobreza, doença, prejuízo ao Brasil, líder dos países pobres, votos para o Conselho da ONU, corrupção, tráfico de drogas, crimes e apoio a ditaduras. Em 2010, a Folha mostra isso nas edições de 5 e 6 de julho. O jornal trouxe notícias sobre a comunidade em que a discussão era a entrada da Guiné Equatorial como um país- membro da entidade (Figuras 17 e 18). Figuras 17 e 18: Apoio de Lula para a Guiné Equatorial entrar na CPLP Fonte: Folha, ed. 05/07/2010, Poder, p. 9. Fonte: Folha, ed. 06/07/2010, Poder, p.10. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 232 A Folha (05/07/2010) diz que Lula passou o dia com o ditador Mbasogo, presidente da Guiné Equatorial, um encontro para “negociar” a entrada dele na CPLP e firmar acordos comerciais. Além de equiparar o ingresso na comunidade a um “negócio”, o jornal vincula, de forma política, os presidentes. Lula foi recebido “por dezenas de pessoas com bandeirinhas do Brasil e da Guiné Equatorial e camisetas com estampas de ambos os presidentes, lado a lado” (Folha, 05/07/2010, p. 9, grifos nossos). Afirma o jornal que o povo da Guiné Equatorial vive na miséria e seu presidente é ditador e acusado de matar opositores, além de ser “um dos mandatários mais ricos do mundo” (Folha, 05/07/2010, p. 9). Contraditoriamente, o jornal diz que aquele país tem imensas reservas de petróleo; é um dos maiores Produtos Internos Brutos da África, sendo “uma república com eleições a cada sete anos” (Folha, 05/07/2010, p. 9). Na edição do dia seguinte, mesmo sem ter falas diretas do presidente Lula, o título da notícia é uma afirmação atribuída a ele: “Ditador respeita democracia e direitos humanos, diz Lula” (Folha, 06/07/2010, p. 10), o que seria uma contradição insanável: ditadura e o respeito à democracia e aos direitos humanos. Reforçamos que no texto não existem falas diretas do presidente Lula. No registro, a Folha amplia as “qualificações” do presidente da Guiné: “31 anos no poder, acusado de fraudar eleições e violar os direitos humanos”. Assim como em O Globo (28/07/2004, p 12), também nas edições da Folha a palavra “ditador” está nos títulos. No dia 06/07/2010, a Folha de S.Paulo traz uma frase atribuída ao ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores do Brasil e que é usada para tentar retirar o peso da crítica a Lula por ter apoiado a Guiné Equatorial na CPLP: “negócios são negócios”. Essa justificativa por meio da via econômica é exatamente o título da notícia em 6 de julho de 2010 de O Globo (Figura 19). Esse jornal até acolhe a lógica econômica da aproximação do Brasil com a Guiné Equatorial, mas não dá trégua ao presidente brasileiro ao iluminar aspectos do acontecimento para reforçar as relações entre Lula e o ditador. Por exemplo, podemos ver o culto à personalidade, externada na fotografia utilizada na notícia, e que reforça o vínculo do presidente Lula (sorrindo) com o ditador do país africano. Para confirmar um imaginário de vínculo, a legenda da foto é categórica: “Lula segura um quadro com sua foto, ao lado do presidente da Guiné Equatorial, considerado um dos políticos mais corruptos do mundo” (O Globo, 06/07/2010). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 233 Figura 19: Governo Lula justifica a Guiné Equatorial na CPLP Fonte: Acervo da O Globo, ed. 06/07/2010, O País, p. 10. Entretanto, esse registro não veio isolado na edição de 06 de julho de 2010. Naquele dia, O Globo publicou um editorial em que crítica o ingresso da Guiné Equatorial na CPLP, mas uma crítica que era o pano de fundo para condenar Lula por ter se aproximado demais de países da África, da CPLP. O editorial, que é o lugar da voz oficial das Organizações Globo é a síntese sobre o julgamento das “más companhias” do presidente (Figura 20). Esse texto denuncia que existem ideólogos no Itamaraty que têm dado as cartas na diplomacia brasileira, o que “afasta o Brasil de sua tradição de equilíbrio na política externa”. Essa “tradição de equilíbrio” que o jornal convoca se vincula aos países ricos. A aproximação com as nações pobres da África afastaria, assim, o Brasil dessa “tradição de equilíbrio”, não acertando os passos com a globalização do capital, mas atrelando-o ao passado crioulo a ser apagado. Figura 20: Editorial sobre ações de Lula na África e na CPLP Fonte: Acervo de O Globo, ed. 06/07/2010, Editorial, p. 6. A seguir, reproduzimos a seguir um trecho do editorial: DAS PRESENÇAS AUSENTES | 234 Lula está empenhado num giro de dez dias por países africanos, no qual exibe a desenvoltura de sempre para tratar com ditadores. Como com Obiang Nguema Mbasogo, há 31 anos no poder da Guiné Equatorial, país muito pobre mas que descobriu importantes reservas de petróleo nos últimos 15 anos. Em nome do pragmatismo e dos negócios, o governo brasileiro assinou um documento com o guineense, afirmando que ambos estão comprometidos com os direitos humanos e com a democracia. Ora, só mesmo como piada, pois Mbasogo é acusado de fraudar eleições e de reprimir com extrema violência a oposição. Ainda mais grave foi Lula ter apoiado a reivindicação do ditador de ter sua nação acolhida na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) [...] O Brasil tem ideologia terceiro-mundista da década de 60. Dessa forma, Lula tem malbaratado o prestígio conquistado nos últimos anos (O Globo, 06/07/2010, p. 6, grifos nossos). Ao que parece, o problema não é a ditadura e a corrupção em si, pois elas não são lembradas em outros países. Nem O Globo nem a Folha, por exemplo, manifestaram-se em editorial contra a ditadura da Indonésia que invadiu e manteve um regime de terror no Timor-Leste por 27 anos. Vale reforçar que o Brasil mantinha acordos comerciais com a Indonésia e, talvez isso, justificasse o silenciamento do jornal. Essas “más companhias” somente são e serão as africanas, revelando uma seleção jornalística inconfessadamente histórica, identitária, racista e classista. Lembra-nos Schwarcz (2012) que, no início do Brasil República, famílias consideradas um pouco remediadas, mesmo sendo mestiças e morando em áreas afastadas das cidades, nas periferias, tinham pavor em ser confundidas como negras, sempre as “más companhias”. Muito bem analisa Bento (2002, p. 27) que, “mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa” (BENTO, 2002, 27). A aproximação de Lula com as nações africanas faz o jornal afirmar que o Brasil precisa apagar a “ideologia terceiro-mundista da década de 60” (O Globo, 06/07/2010). A democracia e os direitos humanos não foram levados em conta quando os jornais saudaram Lula como agente dos grandes empresários brasileiros, um intermediário de “bons negócios” com essas mesmas nações africanas, agora condenadas como ditaduras. Em dado momento, o próprio presidente Lula e seu governo reforçam a posição de que “negócios são negócios”, confirmando os valores cultivados nos jornais da Casa Grande. Na prática, a defesa dos direitos humanos em O Globo, na Folha de S. Paulo e em outros tantos meios de expressão jornalística no Brasil não passa de uma fumaça retórica que encobre as ações desses atores políticos e dos seus interesses privados, promovendo uma farsa democrática. Outro aspecto importante é o das fotografias compiladas na Figura 21. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 235 Figura 21: Fotos de Lula nas notícias da CPLP Fonte: Folha e O Globo, entre os anos de 2003 a 2014; Militão Azevedo, 1879. Nos dois jornais, boa parte das fotos do presidente Lula utilizada para ilustrar as notícias revelava a presença negra, seja do povo, dos dirigentes políticos, de “ditadores”, de militares, o que não aconteceu com o presidente FHC. Se a única foto de Fernando Henrique nas notícias da CPLP com personagens negros foi para reforçar a condição do primo branco e rico do presidente brasileiro, com Lula, as fotos com africanos buscam criminalizar todas as figuras do quadro visível, associando o presidente a um deles, à voz deles. Mesmo se vista em destaque, a imagem do presidente Lula mistura-se com as personagens negras, o que pode indicar uma proposta de uma não separação entre o chefe do Executivo do Brasil e os Outros africanos. Essa simbiose condenada pelos jornais faz uma referência inversa à foto do cartão de visita de 1879 do senhor com seus escravos, e à relação de poder entre superior e inferiores. As fotografias do presidente nos registros da CPLP têm um papel importante na construção do regime de visibilização. Elas buscam associar e criminalizar a aproximação de Lula com os povos africanos: pobres, negros, perigosos, submetidos a ditaduras. Apesar de Lula ser tratado, pontual e inicialmente, como um agente para favorecer os “negócios” privados de empresas brasileiras nos países africanos, essa condição de DAS PRESENÇAS AUSENTES | 236 intermediário foi esporádica e tinha limitações identitárias. A ação mais permanente do Governo Lula com a África, muitas vezes revelando a “dívida histórica”, foi decisiva para que os jornais condenassem nossas “más companhias”. Ressaltamos ainda mais uma marca dessa relação. Na maioria das notícias sobre Lula e a CPLP, as retrancas utilizadas pelos jornais para identificar suas temáticas foram Terceiro Mundo e África. No Governo FHC, relembremos, as notícias tinham as marcas de Diplomacia, Portugal, Governo. Presidentes diversos. Agrupamos registros dos dois jornais sobre presidentes e/ou primeiros-ministros dos países da CPLP, à exceção do Brasil. Localizamos entrevistas e pequenas notícias em que eles fossem vinculados à comunidade lusófona. Lembremos que, no corpus geral, encontramos na Folha de S.Paulo 4 (quatro) menções com essas fontes. Em O Globo 10 (dez) registros, sendo 7 (sete) deles com presidentes ou primeiros-ministros portugueses. Não existem notícias com os presidentes de Angola, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe, e sua relação com a CPLP. Na edição de 28 de janeiro de 2001, O Globo (O Mundo, p. 41) traz uma entrevista com o presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, que estava em Brasília. Na entrevista, ele afirma que o chamado “mundo civilizado” nunca se interessou pelo desenvolvimento da África, e que os africanos sempre estiveram abandonados. Ou seja, parecia aí que estavam dadas as condições para que o jornal pudesse avançar no sentido de discutir a CPLP e o Brasil, trazendo as relações identitárias e comunitárias. Porém, a maioria das perguntas direcionada para Chissano reforça a miséria, as doenças, os conflitos armados, os golpes de estados, a corrupção dos países, conformando um regime de visibilização. Também em 2001, a Folha de S.Paulo, em 1º de julho, publicou uma entrevista com Joaquim Chissano. O jornal busca enfatizar as contradições de um presidente de uma nação miserável, Moçambique, que teria formação comunista, mas governava na lógica liberal e neoliberal. De saída, o jornal sutilmente destaca que Joaquim Chissano recebeu a equipe de reportagem da Folha para a entrevista em “sua suíte no luxuoso Hotel Yacht y Golf Club de Assunção”, onde se realizava uma conferência do Mercosul. O jornal não se esquece de afirmar que Moçambique é um dos países mais pobres do mundo, mas o seu presidente estava em “uma suíte no luxuoso hotel” no Paraguai. Chissano foi convidado do presidente FHC para o encontro do Mercosul e a ideia era que Moçambique assinasse algum de tipo acordos comerciais (Figura 22). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 237 Figura 22: Entrevista com o presidente de Moçambique Fonte: Acervo da Folha, ed.01/07/2001, Mundo, p. 21. Na entrevista, a Folha abre espaço para que Chissano faça críticas à CPLP, entidade que o jornal chama de “pequeno mundo dos países de língua portuguesa”, “sem sentido objetivo e prático” (Folha, 01/07/2001, p. 21). O presidente disse que a CPLP, apesar de ainda ser um “acordo de cooperação cultural”, poderia ser um instrumento de unidade em razão do idioma. Segundo ele, a língua tem o papel de despertar atenções das sociedades. “Mesmo na parte cultural, há muitos valores a descobrir. Nós não conhecemos todos os valores que o Brasil tem, e o Brasil não conhece todos os que Moçambique tem” (Folha, 01/07/2001, p. 21). O primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves, foi entrevistado por O Globo em 13 de janeiro de 2008. O texto principal tratava da rota de tráfico de drogas que saía de Cabo Verde e Guiné-Bissau e chegava a Portugal e à Espanha. A notícia “Trampolim africano para a droga na Europa” detalha esse percurso e alerta que o Brasil começou a ser via desses traficantes por conta da CPLP. Aí, somente nessa condição, será devidamente lembrado que Guiné Bissau, Cabo Verde e Brasil fazem parte de uma comunidade. Ou seja, o jornal busca dar máxima visibilização do Outro, em direção única (África – Europa), sugerindo que existe uma raiz “natural” do mal, a qual estaria na África. O texto reforça a criminalização, impondo a eles o controle e a punição. Nessa notícia, O Globo trata a Guiné-Bissau como “narcoestado”. Maria Neves é o único governante ouvido no registro e sua fala, em um box ao lado, teve o título: “Nossa segurança é a da Europa” DAS PRESENÇAS AUSENTES | 238 (Figura 23). Ele diz que seu país tem feito esforços para reduzir o tráfico, que há intercâmbios com o Brasil e que parte da segurança em Cabo Verde foi entregue às forças internacionais. Fica explícita a relação de dependência ainda colonial, mas Neves, sutilmente compromete os outros países: “Precisamos mostrar que a segurança de Cabo Verde é também a segurança do Brasil e da Europa” (O Globo, 13/01/2008, p. 39). Figura 23: Entrevista com o primeiro-ministro de Cabo Verde Fonte: Acervo de O Globo, ed.13/01/2008, O Mundo, p. 39. Nos 20 anos da CPLP foram registrados conflitos que envolveram as nações dessa comunidade. Um dos acontecimentos mais dramáticos foi à luta pela independência do Timor-Leste. Os dois jornais têm notícias sobre ela e apresentaram uma entrevista, cada um, com os governantes do Timor. Na edição de 29 de janeiro de 2008, José Ramos-Horta, presidente daquele país e ganhador do Nobel da Paz em 1996, foi entrevistado em O Globo (Figura 24). Os temas centrais abordados foram a violência, a pobreza e a falta de pessoal qualificado nas funções públicas para executar os programas de um governo iniciado em 2002. Diante desse quadro de carência, a frase de Ramos-Horta é o título da entrevista: “O Timor precisa de mais brasileiros”. Ele diz que o Governo Lula já tinha mandado 250 professores e técnicos para a nova nação lusófona, mas Ramos-Horta afirma que as necessidades ainda são muito grandes e pede maior participação de Brasil e Portugal no desenvolvimento do Timor-Leste. Essa também foi a tônica da entrevista que o mesmo Ramos-Horta concedeu à Folha em 4 de outubro de 2013 em um evento do jornal (Figura 25). Nesse registro, ele é DAS PRESENÇAS AUSENTES | 239 mais enfático na cobrança de maior participação do Brasil na CPLP, o que denuncia a falta de interesse do governo brasileiro e a prática de invisibilização por parte dos jornais em relação a essa comunidade. Ramos-Horta pediu que o Brasil ajudasse nas eleições na Guiné-Bissau, país que tinha passado por golpe de estado. Para o timorense, era fundamental que o Brasil montasse ainda uma TV, a exemplo da Al Jazeera, para reunir os países da CPLP. Na notícia, o jornal se encarrega de informar que Ramos-Horta não iria conseguir nem a ajuda brasileira para as eleições em Guiné-Bissau, “uma das nações mais pobres do mundo” e “narcoestado” (Folha, 04/10/2013, p. 16), nem qualquer ação para criar uma tv da CPLP. Figuras 24 e 25: Entrevista e notícia com o presidente de Timor-Leste Fonte: O Globo, ed. 29/01/2008, O Mundo, p. 32. Fonte: Folha, ed. 04/10/2013, Mundo, p.16. Em relação aos registros com governantes de Portugal e a CPLP, o destaque é para o espaço dado, desde o início dessa entidade, em O Globo. Antes mesmo da institucionalização da comunidade, na edição de 14 de abril de 1996, o jornal carioca traz uma entrevista com o primeiro-ministro português António Guterres. O título e as primeiras frases desse registro são explícitos das relações entre Brasil e Portugal diante da CPLP: “Vamos tratar muito bem os brasileiros” é a frase-título, cuja autoria é atribuída ao primeiro-ministro (Figura 26). O Globo diz que Guterres chega ao Brasil para “virar uma página negra da história do relacionamento Brasil-Portugal” (O Globo, 14/04/1996, p. 12, grifos nossos). Como “virar uma página negra da história”? Apagando as nações africanas? Esquecendo a barbárie da escravidão de índios e de negros? Ao que parece, DAS PRESENÇAS AUSENTES | 240 esses jornais, de fundamentações capitalistas, eurocêntricas e norte-americanas, seguiram a proposta de “virar uma página negra” ao invisibilizar à comunidade lusófona em razão da presença majoritária dos países africanos. Sobre a CPLP, O Globo perguntou a Guterres sobre a perspectiva da entidade a ser criada em julho em Lisboa, e ele afirmou: Portugal enriquece estando na Europa, mas, pertencendo à CPLP, o Brasil enriquecerá na América do Sul. Acho que é muito importante desenvolvermos uma estratégia comum da língua; definirmos, no campo da educação e da cultura, instrumentos que permitam aproveitar ao máximo o intercâmbio entre nossas sociedades; e, finalmente, que saibamos, de forma pragmática, encontrar mecanismo de compreensão entre nossas empresas para explorarmos as oportunidades de um mundo em que alianças indispensáveis (O Globo, 14/04/1996, p. 12, grifos nossos). As nações africanas da CPLP estão ausentes nas respostas de Guterres e, talvez, isso explique a frase: “virar uma página negra da história”. O jornal e o ministro focam nas “oportunidades” de exploração de “nossas empresas” (Brasil-Portugal), o que faz O Globo perguntar se a CPLP vai abrir portas da Europa para o Brasil. A resposta foi: “as empresas brasileiras terão muito mais facilidade para se instalarem no mercado europeu se usarem Portugal como plataforma de lançamento” (O Globo, 14/04/1996, p. 12). Aqui é que se pode entender a frase-título da entrevista: “Vamos tratar muito bem os brasileiros”, mas esses são os brasileiros ricos, com condições para usar Portugal como “plataforma de lançamento” para que cheguem ao mercado europeu. Figura 26: Entrevista com o primeiro-ministro de Portugal Fonte: Acervo de O Globo, ed. 14/04/1996, O País, p. 12. A abordagem apresentada em O Globo com Guterres foi reforçada no ano seguinte pelo presidente de Portugal Jorge Sampaio. Em 10 de setembro de 1997, O Globo DAS PRESENÇAS AUSENTES | 241 (O País, p.8) publicou: “Presidente de Portugal reafirma amizade com Brasil”. No registro, a CPLP foi reduzida pelos jornais ao Brasil e a Portugal. Os demais países não existiram. Nesse registro, por exemplo, O Globo cobriu uma palestra do presidente na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Respondeu ele ao jornal: o “Brasil tem muito a ganhar” com a CPLP porque “as empresas” vão ter acesso à Europa, por Portugal. Essa lógica de “tratar muito bem os brasileiros”, os ricos e suas empresas, foi uma preocupação constante dos dois jornais nas entrevistas e notícias com os dirigentes políticos portugueses. Isto é, mais uma vez a questão do Outro tem forte fundamentação econômica. Ele será repelido ou desejado a depender de sua capacidade de investir, mesmo sendo uma diferença. Em 6 de agosto de 2002, O Globo entrevistou o primeiro-ministro português Durão Barroso. O título já era uma resposta dele ao jornal que confirmava os registros anteriores: “Status especial para brasileiros” (Figura 27). Figura 27: Portugal e o “status especial para brasileiros” Fonte: Acervo de O Globo, ed. 06/08/2002, O Mundo, p. 30. Entretanto, nessa notícia enxerga-se mais. Barroso foi entrevistado em Brasília, em meio a uma conferência da CPLP. O Globo insiste no “status especial para brasileiros”, mas quer saber sobre a mobilidade dos Outros (africanos e timorenses) dessa comunidade. Barroso atende às expectativas do jornal ao afirmar que não vai haver portas escancaradas em Portugal para imigrantes da comunidade dos países de língua portuguesa. “Estão DAS PRESENÇAS AUSENTES | 242 previstas exceções para lusófonos na nova lei que está sendo elaborada” (O Globo, 06/08/2002, p. 30). Durão Barroso defende critérios para a circulação de imigrantes em seu país, mas não disse quais, apenas que os brasileiros “teriam estatuto especial”. Dois anos depois, a Folha de S.Paulo entrevistou o mesmo primeiro-ministro. Em 7 de março de 2004 (Brasil, p. 8), ele disse que Portugal estava aberto para receber brasileiros, mas reclamou “dos pequenos investimentos das empresas brasileiras”. Ou seja, o critério fundamental para a livre circulação na comunidade, com ingresso em Portugal, era o econômico. Apenas pessoas físicas e jurídicas com altos recursos financeiros teriam “estatuto especial”, entre eles o Visa Gold, que possibilita livre circulação, residência e permanência. Em outro recorte, O Globo aprofunda as visões dos dirigentes portugueses sobre a comunidade lusófona. Em razão da “comemoração dos 500 anos do Brasil”, o jornal entrevista o presidente Jorge Sampaio, convidado pelo governo brasileiro para as “festividades”. Os presidentes dos países da África lusófona não foram entrevistados e nem existe a informação no jornal se tinham sido também convidados para o mesmo evento. Em 20 de abril de 2000 (Figura 28), O Globo inicia a entrevista com Jorge Sampaio perguntando se as relações entre Brasil e Portugal “estão condenadas a ficar apenas nos aspectos afetivos e históricos” (O Globo, 20/04/2000, p. 33, grifos nossos). Essa pergunta liga a história e as relações identitárias entre metrópole e colônias aos “aspectos afetivos”. Será a mesma lógica que a Folha, em 03/11/2003, usou para afirmar que Lula fala em “tom emocional” quando se referia aos escravos e a dívida histórica do Brasil para com a África. Figura 28: Entrevista com o presidente de Portugal Fonte: Acervo de O Globo, ed. 20/04/2000, O Mundo, p. 33. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 243 Nesse registro de 2000, O Globo buscava saber do presidente de Portugal quais os benefícios econômicos para as empresas brasileiras com a CPLP. Sampaio não enfrentou a questão econômica de forma direta, mas disse que “os laços afetivos e históricos” entre os dois países são um “privilégio” (O Globo, 20/04/2000, p. 33). Apesar de destacar os “laços”, o presidente de Portugal e O Globo trataram uma comunidade lusófona sem povos africanos e o Timor-Leste. E aqui está uma parte fundamental do regime de visibilização que estamos discutindo, a configuração de uma experiência narrativa do invisível que, como diz Eneida Cunha (2006), [...] pressupõe apagar algo que positivamente existia (a violência da colonização, o sistema escravagista e a multidão de negros que povoavam o país) e, ao mesmo tempo, pressupõe criar algo que positivamente nunca existiu: o consórcio harmonioso entre colonizador e o habitante natural da terra (CUNHA, 2006, p. 101). A sequência da entrevista de Jorge Sampaio acaba por confirmar a análise de Cunha. “Aos olhos dos nossos valores de hoje, fizeram-se coisas terríveis durante três séculos de colonização portuguesa” (O Globo, 20/04/2000, p. 33, grifo nosso), disse Sampaio buscando imunizar-se de algum tipo de dívida histórica. O presidente de Portugal, no evento dos “500 anos”, propõe a reencenação do mito do descobrimento, com o devido apagamento das barbáries. Ele afirma que estava no Brasil para “comemorar a descoberta do Novo Mundo, um dos maiores feitos dos portugueses [...] Tenho orgulho de representar o povo que escreveu essas páginas da História da Humanidade” (O Globo, 20/04/2000, p. 33, grifos nossos). BLOCO 2º Acordos institucionais. Grande parte dos registros nessa categoria trata do acordo ortográfico nos países da CPLP. Entretanto, iniciemos por outros tipos de ações que são indicativas dos motivos de sua invisibilização. Há um “acordo” que coloca por terra toda e qualquer ideia de comunidade: a mobilidade. A imaginária liberdade de circular no espaço lusófono se revelou uma preocupação constante no pouco visível sobre a CPLP nos dois jornais. E ao aparecer, foi imediatamente combatida. Nos registros dos presidentes, de modo especial dos portugueses, essa questão apareceu. A ideia de “livre circulação”, que obriga em reconhecer e partilhar o espaço é um passo da communitas, mas essa ação foi repelida DAS PRESENÇAS AUSENTES | 244 pelos dois jornais brasileiros. O Globo, em 30 de julho de 2002, trouxe uma notícia que parece algo positivo: “Acordo vai criar a cidadania lusófona” (Figura 29). Figura 29: Registro que trata da mobilidade na CPLP Fonte: O Globo, ed.30/07/2002, O País, p.12. Esse registro é resultado de uma conferência da CPLP realizada em Brasília em 2002 e, nela, os países dessa comunidade assinariam um acordo para “facilitar” a circulação entre as nações lusófonas. O Globo entrevistou a brasileira Dulce Pereira, secretária-executiva da CPLP. Logo se percebe que o título e a sua frase de apoio (“Cidadãos dos países de língua portuguesa terão seus direitos ampliados”) não correspondiam às decisões da entidade. O primeiro aspecto a destacar, porque é sintomático, é o de que esse registro sobre a “cidadania lusófona” foi publicado na página 12, junto com notícias de violência. A informação do evento da CPLP, do acordo para “cidadania lusófona” e da mobilidade nessa comunidade partilham o mesmo espaço com o registro de um mafioso italiano preso; de um dono de escola acusado de assassinato; do presidente da Pastoral da Terra que defende saques. Está claro que para o jornal a “livre circulação”, a “cidadania lusófona” e a “mobilidade” são casos de polícia. Ao analisarmos atentamente o texto de O Globo (30/07/2002), percebe-se o porquê de ele estar inserido na página policial. O jornal revela o temor de que os povos DAS PRESENÇAS AUSENTES | 245 dessa comunidade “possam ter os mesmos direitos que os brasileiros”. No entanto, a secretária da CPLP trata logo de “tranquilizar”. Ela afirma que a ideia desse “acordo é incentivar atividades econômicas” e beneficiar os “médicos, empresários, jornalistas e diplomatas” (O Globo, 30/07/2002, p. 12). Assim, o jornal conclui informando que “o governo brasileiro não teme que o acordo incentive a imigração de africanos para o Brasil”, e que os limites impostos aos “africanos” permanecem inalterados. Aí está revelado o motivo do combate à ideia de livre circulação: os africanos, e, por conseguinte, o porquê dessa notícia da CPLP estar na página policial. O Outro nesse caso, o eterno estrangeiro, está plenamente visível para ser criminalizado. Ele é negro, africano, e não tem sapatos, como na foto do senhor e seus escravos, do cartão de visitas de 1879. Nesse caso, é uma presença incômoda, mesmo ainda ausente. Quando o assunto é mobilidade na CPLP emerge no regime de visibilização a seleção mais racista ainda, uma lógica construída desde o Brasil Colônia, uma construção ideológica da alteridade que “conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (BHABHA, 1998, p.105). Desde as notícias que analisamos sobre os presidentes brasileiros, há uma rigorosa presença em quase todos os textos, nos dois jornais, que associa pobreza, miséria, crime, droga, corrupção, doença com os países africanos lusófonos. Nos registros dos Acordos institucionais, essa lógica se mantém. Em 27 de julho de 2008, por exemplo, O Globo publicou que o presidente Lula, em reunião da CPLP, anunciou que criaria uma universidade no Brasil para atender os estudantes dos países da comunidade. Em 2010, foi inaugurada a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), com sede em Redenção/CE. Como aconteceu com a notícia nesse jornal sobre a “cidadania lusófona” (O Globo, 30/07/2002, p. 12), o anúncio do presidente Lula, em evento da CPLP em 2008, de que criaria essa universidade, também foi publicado junto aos registros criminais. Além disso, há uma propaganda ao lado (ocupando um espaço maior do que a própria notícia) de uma empresa de seguro que promete proteção contra invasores de computadores. A foto da peça publicitária é uma figura humana, mas faz-se passar por um alienígena e que parece furtar o computador. O título da notícia da CPLP é “Universidade no Ceará vai formar africanos”, e a condição de “africanos” talvez explique o porquê de ela estar na página policial, ao lado do anúncio sobre os invasores. “Porque você nunca sabe quando um problema vai invadir seu computador”, diz o texto da publicidade. No corpo da notícia, ao contrário do título (“...formar africanos”), informa-se que metade dos estudantes será de DAS PRESENÇAS AUSENTES | 246 brasileiros e a outra metade será formada por jovens dos demais países da CPLP, isto é, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, guinéu-equatorianos, moçambicanos, são- tomenses, timorenses e portugueses. Ou seja, não será para “formar africanos” (Figura 30). O “africano” é o dispositivo a produzir a condenação e a rejeição. Ele está visível para ser criminalizado, como o invasor, o Outro perigoso, negro, que ousou atravessar a fronteira. Figura 30: Anúncio da criação da universidade da CPLP Fonte: Acervo de O Globo, ed. 27/07/2008, O País, p. 13. Ainda na educação, no Governo Lula foi assinado convênio com Timor-Leste para que professores brasileiros fossem enviados à Ásia. A missão era ensinar a língua portuguesa aos timorenses em razão de que, nos 27 anos de dominação da Indonésia, o português foi proibido em Timor. A Folha de S.Paulo, na edição de 28 de março de 2005, trouxe uma reportagem sobre a ida dos educadores brasileiros até a Ásia. A narrativa começa com uma retranca sugestiva e fora do padrão daquele jornal: “o outro lado do mundo”, mas que não foi usada para Austrália, Indonésia e outros países próximos ao Timor. A Folha inicia o texto: “Na mala um carregamento de repelentes de insetos, na mão comprovante de vacinas contra moléstias tropicais e no bolso um dicionário do exótico dialeto tetum” (Folha, 28/03/2005, Cotidiano, p.6, grifos nossos). O jornal faz uma pequena entrevista com uma professora que vai ao Timor. “E seu eu ficar doente? Não sei se há curandeiros no Timor” (Folha, 28/03/2005, p.6, grifo nosso). O jornal ainda conta que professores prepararam um “kit sobrevivência”, com galocha e “pastilhas de cloro para purificar até a água de banho no país mais pobre da Ásia” (Folha, 28/03/2005, p.6). Mais uma vez o repelente, agora acompanhado de vacina contra moléstias, dicionário exótico, DAS PRESENÇAS AUSENTES | 247 pastilhas de cloro e um “kit sobrevivência”. Temos o Outro visível e, nesse caso, mesmo sendo na Ásia, o Timor-Leste foi vestido de África pela Folha, já que os males sempre são atribuídos, pelos jornais, a esse último continente. Na categoria Acordos institucionais, a maioria dos registros foi sobre a unificação da escrita na comunidade lusófona, concentrando maior destaque em O Globo. Contudo, os agenciamentos propostos nos dois jornais são semelhantes, a começar pela completa ausência da participação nesse debate dos países africanos e do Timor-Leste. A reforma ortográfica da língua portuguesa, segundo a Folha de S.Paulo e O Globo, somente disse respeito ao Brasil e a Portugal. As contribuições de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe e de Moçambique não foram vistas, não existiam nesses jornais. Bosi (1996), sobre as expansões imperiais do século XV e que resultaram no colonialismo, diz que ao não-europeu sempre se negou a possibilidade de protagonismo, de narrativa. Ao Outro não é dado o direito a falar, a narrar e se autonarrar. Entretanto, no decorrer dos insucessos desse acordo ortográfico ao longo dos anos, as nações africanas lusófonas ganham visibilização para que possam ser responsabilizadas pelo que O Globo, em 27 de dezembro de 2008, chamou de “desacordo”. Desde 18 de julho de 1998, O Globo apresenta as possíveis mudanças na escrita do português no Brasil se um acordo ortográfico fosse aprovado. O jornal destaca que o entendimento “depende de Portugal”. As nações africanas lusófonas estão invisíveis. Na edição de 22 de outubro de 2004, a Folha (Cotidiano, p. 4) revelou um pretenso protagonismo brasileiro nessa reforma: “Brasil dá o primeiro passo para unificar a língua”. Contudo, os passos iniciais não são do Brasil. Em 1990, já existia o acordo ortográfico entre os países lusófonos, mas sem efeito nenhum. Com a CPLP, em 1996, esse debate retornou, e somente Portugal e Cabo Verde assinaram o acordo. O Brasil, anos depois, foi o terceiro a manifestar interesse. Em 2007, depois de anos sem qualquer implementação, O Globo faz uma espécie de balanço sobre esse acordo e externa um tom de cobrança ao “país sede da língua”, Portugal. Na edição de 01 de setembro daquele ano, o título do caderno de cultura, Prosa & Verso, é “Trava-língua”. Nesse registro, O Globo critica a demora na implementação no acordo em razão de “conservadores” portugueses que não querem as alterações na escrita. O jornal também denuncia a falta de interesse do Brasil. Na prática, o texto revela a dependência “natural” do Brasil em relação a Portugal, além de insistir na invisibilização dos países da África lusófona e do Timor-Leste. Essa ausência de “voz” africana e DAS PRESENÇAS AUSENTES | 248 timorense no debate também está no uso, pelo jornal, das campainhas do despertador da ilustração da notícia, apenas com cores das bandeiras do Brasil e de Portugal (Figura 31). Figura 31: Notícia sobre o acordo ortográfico na CPLP Fonte: O Globo, ed.01/09/2007, Prosa & Verso, p. 1. A discussão sobre a reforma ortográfica da língua portuguesa mereceu um editorial na Folha de S.Paulo na edição de 25 de maio de 2008. O jornal criticou o acordo entre os países da CPLP para a unificação, alegando que se vinha gastando muito tempo para poucos resultados. O editorial não informa sobre qualquer tipo de participação dos países lusófonos africanos e do Timor-Leste nesse debate. A Folha destaca o idioma, as mudanças e a relação entre Brasil e Portugal, sem qualquer ponto que remeta às interseções históricas e identitárias da comunidade. O editorial encerra com uma proposta: “Ótimo seria se o governo brasileiro seguisse o de Portugal, abandonando a pressa injustificável” (Folha, 25/05/2008, Editorial, p. 2). Após aprovado no governo português, tendo apoio do presidente de Portugal, e de ter passado pelo parlamento daquele país no primeiro semestre de 2008, O Globo, na edição de 30 de setembro daquele ano, noticiou que o presidente Lula assinou a reforma ortográfica e que as mudanças estariam valendo no ano seguinte. A assinatura aconteceu na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, no dia em se DAS PRESENÇAS AUSENTES | 249 lembravam os 100 anos da morte de Machado de Assis. Nesse registro (Figura 32), apesar do acordo não envolver a participação dos países lusófonos da África e do Timor-Leste, foi o presidente Lula quem os convocou pela primeira vez nessa discussão. Segundo Lula, o acordo “aproxima o Brasil de suas raízes históricas”. Nas falas do presidente, reproduzidas pelo jornal, estão nítidas as marcações e dispositivos históricos e identitários entre nós, mas que estão somente na fala direta de Lula. Quero destacar o imprescindível regaste de nossos laços substantivos com a África, em particular com a África de língua portuguesa, que para nós representa muito mais do que uma prioridade geopolítica. Diz respeito à nossa alma, à nossa identidade como nação multiétnica e multicultural, ao próprio destino da civilização brasileira”, disse Lula (O Globo, 30/09/2008, p. 13, grifos nossos). Figura 32: Acordo ortográfico na CPLP Fonte: O Globo, ed.30/09/2008, O País, p. 13. A Folha de S.Paulo também publicou no mesmo dia de O Globo, no Cotidiano, que o presidente Lula tinha assinado o acordo para implementar a reforma ortográfica e, no texto da notícia, também existem falas diretas atribuídas ao presidente, em que ele inclui a África nesse processo. Lula, na Folha, disse que o acordo é “como um ‘reencontro do Brasil consigo mesmo’ [...] Ele também propicia um novo impulso ao intercâmbio Brasil- Portugal e o ‘imprescindível resgate’ dos ‘laços substantivos com a África, em particular com a África de língua portuguesa’” (Folha, 30/09/2008, p.1). Ocorre que o acordo ortográfico na CPLP não entrou em vigor no período esperado. Para a Folha e O Globo, os responsáveis por esse insucesso foram os países DAS PRESENÇAS AUSENTES | 250 africanos. Ainda em 2008, na edição de 15 de março, O Globo traz uma entrevista com o filólogo José Pereira da Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele diz que o novo acordo ortográfico “terá muitas dificuldades de ser levado adiante em Moçambique”, porque aquele país “tem um português fraco frente aos dialetos” (O Globo, 15/03/2008, p. 2, grifos nossos). O filólogo avalia que os moçambicanos somente “aplicarão o acordo se perceberem que a língua dos ex-colonizadores representa alguma vantagem econômica e política” (O Globo, 15/03/2008, p.2) (Figura 33). Nesse registro não aparece nenhum outro país africano lusófono, apenas Moçambique, tampouco faz-se menção a Timor-Leste. Todavia, como se pode ver, o título afirma que “Acordo precisa empolgar os africanos” (grifo nosso). Isto é, os africanos são o problema. Na foto que ilustra a notícia, não há africanos. Assinam o acordo os presidentes de Portugal, Cavaco Silva, e Lula, do Brasil. Reforçamos: afirma o jornal que o “Acordo precisa empolgar os africanos”, ou seja, “os africanos”, sempre eles, estão ali, enquanto a culpa, a doença, a miséria visível. Na Folha de S.Paulo, em 11 de janeiro de 2009, quando já se sabia que a unificação da ortografia não tinha mais data certa para entrar em vigor, o jornal responsabiliza, de forma direta, “os países lusófonos da África” (Figura 34). Figuras 33 e 34: Notícia culpa africanos por acordo ortográfico não avançar Fonte: O Globo, ed.15/03/2008, Prosa & Verso, p.2. Fonte: Folha, ed.11/01/2009, Cotidiano, p.5. “Com exceção de Portugal, os outros países que ratificaram o Acordo – Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – parecem não estar dando muita bola para mudança na DAS PRESENÇAS AUSENTES | 251 ortografia” (Folha, 11/01/2009, p. 5). A notícia informa que as quatro nações lusófonas que assinaram o acordo ainda não o validaram. Na sequência, o jornal complementa: “Angola e Moçambique não ratificaram e nem têm prazo para isso [...]. Timor Leste não assinou por conta da guerra da independência. Na Guiné-Bissau nem se conhece esse acordo” (Folha, 11/01/2009, p. 5). Ou seja, diferentemente dos registros anteriores, em que os países dessa comunidade lusófona na África e o Timor-Leste estavam ausentes, completamente invisíveis nesse debate, agora, para responsabilizá-los pelo fracasso do acordo, “os africanos” passam a constar como figuras visíveis e centrais nessas narrativas, inclusive nos títulos, constituindo-se presenças, mesmo que ausentes. Conflitos. Durante os 20 anos da CPLP ocorreram conflitos armados nos países dessa comunidade, nos golpes de Estado na Guiné-Bissau e em São Tomé de Príncipe, e na luta do Timor-Leste pela libertação do domínio da Indonésia. Há ainda registros de sequestro do primeiro-ministro da Guiné-Bissau e do assassinato de Nino Vieira, presidente daquele país. No Brasil, também no período de nossa pesquisa, houve um golpe de Estado em agosto de 2016, que derrubou a presidenta Dilma Rousseff. Essa ação, no entanto, diferenciou-se dos demais países da CPLP em razão do golpe ter sido fruto de um acordo jurídico-parlamentar, sem a utilização direta das forças armadas ou de grupos armados rebeldes. Sobre esse acontecimento em 2016 no Brasil, a CPLP não se manifestou, assim, não existe registro dele em O Globo e nem na Folha de S.Paulo que o relacionasse à comunidade. Nas notícias dos conflitos armados, esses dois jornais buscaram revelar uma narrativa detalhada, no sentido de explicar onde fica o país, quem são os políticos e militares envolvidos, ou seja, uma espécie de guia para que os leitores possam identificar o lugar do perigo. Vale destacar que, nessas notícias de conflito na CPLP, são reforçadas e ampliadas as “qualificações” empregadas nos outros registros sobre África: países pobres, doenças, corrupção, tráfico de drogas, ditadura. Vejamos exemplos. Em 1980, na Guiné-Bissau, Nino Vieira, aliado a Ansumane Mané, chefe das forças armadas, toma o poder central em um golpe de Estado. Em 1998, o presidente Nino Vieira demitiu Ansumane Mané do cargo de chefe das forças armadas, acusando-o de tráfico de armas e drogas, e de contrabando. A demissão de Mané fez estourar um DAS PRESENÇAS AUSENTES | 252 conflito no país, que foi coberto em O Globo em 17 de junho de 1998, e na Folha dois dias depois (Figuras 35 e 36). Figuras 35 e 36: Notícias sobre conflitos na Guiné-Bissau Fonte: O Globo, ed. 17/06/1998, O Mundo, p.30. Fonte: Folha, ed.19/06/1998, Mundo, p.15. Nos dois jornais, o destaque é para o fato de a Guiné-Bissau ser “um dos países mais pobres do mundo”, de estar envolvido em crimes de “tráfico de armas e drogas, de corrupção”, e de fazer parte, “junto com o Brasil”, da mesma comunidade dos países de língua portuguesa. Em outras palavras, o Brasil está em uma comunidade – e nesse momento ela é visível –, em que um dos seus membros, a Guiné-Bissau, na África, é um “narco-Estado”. O Globo (17/06/1998, p. 30) informa que a marinha portuguesa tinha retirado 70 brasileiros do país, que a embaixada do Brasil estava fechada e o embaixador brasileiro desaparecido. Na Folha de S.Paulo (19/06/1998, p. 15), além de se destacar que o Brasil faz parte da mesma comunidade que a Guiné-Bissau – a CPLP –, também se recorre a um rastro histórico e identitário para se informar que aquele país é uma ex-colônia portuguesa com amplas relações com a Bahia. “‘Em Salvador me sinto em casa’, diz guineense” (Folha, 19/06/1998, p.15). Depois de uma longa ausência de notícias sobre os conflitos na Guiné-Bissau e a CPLP na Folha de S.Paulo e em O Globo, esse país volta ao noticiário dos dois jornais em 03 de março de 2009, em razão do assassinato do próprio presidente Nino Vieira, que dizem os dois periódicos, foi atribuído a um grupo de militares que teriam vingado DAS PRESENÇAS AUSENTES | 253 uma tentativa de morte contra o ex-comandate das Forças Armadas, Ansumane Mané (Figuras 37 e 38). Figuras 37 e 38: Registro do assassinato do presidente da Guiné-Bissau Fonte: Folha, ed.03/03/2009, Mundo, p.17. Fonte: O Globo, ed.03/03/2009, O Mundo, p.28. Com esse assassinato os jornais retomaram a mesma narrativa de 1998 e a partir das mesmas palavras-chave: pobreza, corrupção, tráfico de armas e drogas, e a relação com o Brasil por meio da CPLP. Em 2012, a Guiné-Bissau ganha espaço na Folha, em 14 de abril, ao informar que “o pequeno país africano lusófono” sofreu outro golpe, com o sequestro do primeiro-ministro Carlos Gomes (Figura 39). Esse novo conflito ocorreu no período eleitoral e Gomes era um dos candidatos à presidência da República. Para a Folha, na Guiné-Bissau o “tráfico de cocaína, corrupção e disputas por poder enfraquecem o país, visto como um ‘narco-Estado’” (Folha, 14/04/2012, p. 20). Figura 39: Notícia de outro golpe na Guiné-Bissau Fonte: Acervo Folha, ed.03/03/2009, Mundo, p. 20. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 254 Os dois jornais também cobriram um golpe de Estado em São Tomé e Príncipe, no ano de 2003 (Figuras 40 e 41). Tanto em O Globo quanto na Folha as narrativas sobre esse conflito se assemelham. As palavras-chave que “qualificam” o país lusófono são as mesmas de outros registros: pobreza, corrupção, tráfico de droga e a associação com o Brasil em razão da CPLP. Diferentemente da Guiné-Bissau, em São Tomé os interesses do petróleo entraram nos argumentos do conflito. Na edição de 17 de julho de 2003, a Folha destacou que o golpe militar pegou o presidente santomense Fradique de Menezes fora do país, e que a motivação desse golpe havia sido o controle das riquezas do petróleo. Também diverso do que ocorreu na Guiné-Bissau, o jornal diz que “o governo brasileiro condenou e repudiou ‘firmemente’ o golpe e conclamou os revoltosos a cessar imediatamente o movimento” (Folha, 17/07/2003, p. 12). O conflito em São Tomé e Príncipe foi noticiado em O Globo de 18 de julho de 2003. O jornal diz que os países da CPLP pretendiam enviar uma missão para “mediar um acordo com os militares” (O Globo, 18/07/2003, p. 27), com participação do Brasil. Chama a atenção a disposição gráfica na página do jornal sobre esse registro. O golpe em São Tomé e Príncipe parece ser um box da notícia maior, que é também um golpe, mas no Congo. Ou seja, podemos falar em um regime de visibilização tão configurado para a África que, mesmo sendo em países e contextos diferentes, eles são postos no visível como um bloco único. Figuras 40 e 41: Golpe militar em São Tomé e Príncipe Fonte: Folha, ed.17/07/2003, Mundo, p.12. Fonte: O Globo, ed. 18/07/2003, O Mundo, p.27. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 255 Um conflito que mereceu atenção nos dois jornais nos 20 anos da CPLP foi o da luta pela independência do Timor-Leste. Esse conflito foi preenchido por alguns fatos importantes: o Nobel da Paz, em 1996, dividido pelos timorenses Carlos Ximenes Belo e José Ramos-Horta, líderes da resistência em Timor e que buscaram agendar o conflito; o envolvimento de comitês pró-independência no Brasil, com o engajamento de intelectuais e artistas; e as constantes ações do ativista timorense Xanana Gusmão, que esteve preso por 12 anos e buscava em organizações internacionais, inclusive na CPLP, ajuda à causa do Timor-Leste. Antes mesmo da criação da CPLP, ativistas timorenses cobravam o envolvimento da comunidade lusófona em razão do Timor ter sido ex-colônia Portuguesa. Em 1998, em uma conferência da CPLP, uma comissão do Timor pediu o apoio oficial da entidade, mas não foi atendida. A partir daquele ano, a Indonésia aumentou a repressão contra os timorenses. Em 6 de setembro de 1999, O Globo trouxe reportagem assinada pela Agência France Press que, curiosamente, culpava a resistência, o movimento pró-independência de Timor pela violência em Dili, a capital. O jornal cobrava responsabilidade da Indonésia por não ter tido “força” para controlar a ex-colônia portuguesa, o que gerava “Anarquia no Timor Leste” (Figura 42). Figura 42: Luta pela independência do Timor-Leste Fonte: Acervo O Globo, ed. 06/09/1999, O Mundo, p. 21. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 256 Depois de intensas lutas e massacres, o Timor-Leste conquista a independência em um processo que somente vai se consolidar a partir de 2002, ano em que o novo país ingressa na CPLP. Depois da independência, o Timor praticamente desaparece dos jornais. Na Folha, pequenas notas sobre a dificuldade de consolidação do país e uma reportagem em março de 2005, quando o Governo Lula decide mandar professores ao país. A outra notícia na Folha está na edição de 08 de abril de 2007, em Mundo, página 17, sobre a “turbulência” das eleições presidenciais. Chama a atenção nesses registros a ausência da CPLP, a violência e as interferências internacionais, especialmente da Austrália. A Folha e O Globo trazem, a partir da eleição de Ramos-Horta como presidente, o recrudescimento da violência em Timor. Na edição de 12 de fevereiro de 2008, os dois jornais noticiaram um atentado contra o presidente, uma ação atribuída a ex-militares ligados à Indonésia. Nas notícias dos dois jornais, vê-se a indiferença da CPLP, ao tempo em que o presidente do Timor recebe apoio do exército australiano (Figuras 43 e 44). Figuras 43 e 44: Tentativa de golpe militar em Timor-Leste Fonte: Folha, ed.12/02/2008, Mundo, p.13. Fonte: O Globo, ed. 12/02/2008, O Mundo, p.27. Os registros sobre os conflitos em Timor-Leste revelam a distância entre esse país, o Brasil e a própria CPLP, apesar do intenso esforço de sensibilização e do pedido de acolhida na comunidade por suas lideranças políticas. Quando se tratou da CPLP nos jornais, Timor-Leste esteve no mesmo campo de invisibilização dos países africanos. A Folha e O Globo trataram o Timor como o Outro que está à distância, mas que parece não DAS PRESENÇAS AUSENTES | 257 ameaçar como os “africanos”. Sobre o Timor, as notícias empregam as mesmas cargas de miséria, pobreza, ignorância, pintando-o de negro. Cultura. Relembremos que nessa categoria a palavra lusofonia é a que mais surgiu nos sistemas de buscas nos acervos dos jornais. Poucas são as referências nos registros culturais nos dois jornais em que aparecem a CPLP e a comunidade. Talvez por isso, encontremos nas notícias de Cultura e no uso da lusofonia aquilo que podem ser brechas a acionar marcas identitárias mais claras que envolvem o Brasil nessa comunidade, inclusive denunciando o não interesse brasileiro. Na edição de 06 de novembro de 1999, a Folha de S.Paulo trouxe uma entrevista com os escritores Mia Couto, de Moçambique; e Pepetela, de Angola (Figura 45). Os dois estavam no Brasil para participar de congressos e lançamentos das novas obras. Couto e Pepetela avaliaram sobre as dificuldades da produção da literatura portuguesa e comentaram sobre as ações políticas dessa comunidade. Sobre a CPLP, Mia Couto reconheceu que “os pontos de convergência são muito frágeis se compararmos os pontos divergentes”. Para esse escritor, a comunidade que se pretende tem espaços econômicos, geográficos e políticos diferenciados e, aqui, ele arremata: “O Brasil não está preocupado com o sul da África” (Folha, 06/11/1999, p. 10). Figura 45: Entrevista com escritores de Moçambique e Angola Fonte: Folha, ed. 06/11/1999, Ilustrada, p.10. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 258 No ano seguinte, na edição de 13 de março de 2000, a mesma Folha, em uma edição com a retranca 500 anos que “comemorava o descobrimento”, trouxe uma entrevista com Katia Mattoso, historiadora brasileira que mora em Paris. Ela trata da “dívida do Brasil para com a África”, questão que será lembrada anos depois pelo presidente Lula. Mattoso defendeu que o Brasil precisa enfrentar sua história e começar a pensar não mais como lugar colonizado, mas como parte do Império Português. “O Brasil, desde o princípio do século 17, mantinha relações com a África no comércio de escravos. O tráfico realizado por Portugal só existiu no começo” (Folha, 13/03/2000, p. 10). Isso implicaria reconhecer que nós agimos diretamente como escravagistas. Para a historiadora, o Brasil precisa superar a ideia de vítima, o que ajudaria a resolver a discussão sobre nossas identidades (Figura 46). Figura 46: Entrevista com a historiadora brasileira Fonte: Folha, ed. 13/03/2000, Brasil, p.10. Também na Folha de S.Paulo, no ano seguinte, o jornal publicou a notícia sobre o lançamento do livro Moçambique, do antropólogo Peter Fry. A Folha faz uma resenha da obra e apresenta a entrevista com o autor. Apesar do título, o livro não está dedicado somente a Moçambique, mas traz ensaios sobre os países africanos de língua portuguesa. Peter falou também sobre a CPLP. Recortamos um trecho dessa notícia: DAS PRESENÇAS AUSENTES | 259 A distância que separa o discurso e a prática da CPLP é tanta que, há seis anos, Moçambique entrou na Comunidade Britânica. Uma ofensa, na visão portuguesa, mas, cercados de países de língua inglesa, os moçambicanos já mantinham relações com os britânicos e têm o seu futuro ligado ao da África do Sul, vizinha e potência regional. “Nas enchentes do ano passado, os helicópteros de ajuda que chegaram foram os da África do Sul, depois da Comunidade Britânica e só então dos da CPLP”, explica Fry (Folha, 22/08/2001, Ilustrada, p. 5). Em O Globo encontramos – embora bastante raros – registros de Cultura que podem ser instrumentos para produzir alguma visibilização da lusofonia, sem recorrer àquelas desqualificações – prática comum desse jornal – sobre essa comunidade, especialmente em relação a África lusófona. Em 06 de novembro de 2010, no caderno de cultura Prosa & Verso, O Globo traz a capa e mais uma página sobre o Fórum das Letras em Outro Preto/MG, evento que o jornal diz tentar “aproximar a África lusófona e o Brasil através da literatura” (Figura 47). No texto, Guiomar de Grammont, idealizadora do Fórum, pergunta: “Por que conhecemos tão pouco as literaturas de países de língua portuguesa, que a princípio seriam de acesso mais fácil para nós?” (O Globo, 06/11/2010, p. 1). Adiante, Grammont afirma que “precisamos lutar contra o ostracismo ao qual a literatura em português é injustamente condenada”. Na apresentação gráfica da notícia, temos bandeiras dos países da CPLP, mas a do Brasil está fora do semicírculo formado por elas. Além de fora, está na parte de cima, o que poderia indicar uma crítica ao distanciamento e ao não reconhecimento dessa comunidade pelo Brasil. Além de tratar desse tema na capa do caderno, a notícia continua na página seguinte com uma entrevista com o escritor angolano Luandino Vieira, onde o título dela já poderia indicar uma visão crítica das relações históricas e identitárias dentro da comunidade lusófona: “Laços culturais forjados com violência”. O escritor teve um livro censurado pela ditadura portuguesa e foi preso porque misturou o português com o kimbundu, língua africana muito falada em Angola. Luandino reconhece que “há uma dimensão cultural importante nos laços que ao longo dos séculos foram forjados, de maneira muito violenta” (O Globo, 06/11/2010, p. 1). Esse escritor fala da importância do Brasil na aproximação com a produção da África lusófona porque “as ligações entre o Atlântico Sul são históricas, vêm de muitos séculos” disse em O Globo (Figura 48). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 260 Figuras 47 e 48: Evento literário lusófono em Ouro Preto/MG Fonte: Acervo O Globo, edição de 06/11/2010, Prosa & Verso, páginas 01 (capa) e 2. O disco “Lusofonia”, lançado pelo carioca Martinho da Vila no ano 2000 foi alvo de notícia na Folha. Na edição de 12 de abril, o jornal informou que o álbum foi formado com a participação de artistas da comunidade lusófona, especialmente “os africanos”. Nesse registro, Martinho afirma que “pretende revelar aos brasileiros a música de outros países de língua portuguesa. Ainda que o Brasil seja um país negro, os artistas dos países africanos que falam português são mais populares na Europa do que aqui” (Folha, 12/04/2000, Ilustrada, p. 5). Isto é, além de revelar a ausência artística africana no Brasil, a notícia deixa enxergar uma África lusófona distante das marcas recorrentes de pobreza, doenças e crimes. Também O Globo, em 06 de maio de 2014, publicou uma entrevista com Miguel Pinheiro, cientista e dramaturgo português que morava no Rio de Janeiro. Ele tinha uma companhia de teatro que circulava nos países lusófonos. Miguel se diz encantado pelo Brasil, mas avalia que “a questão da África no Brasil está mal discutida”, que é título desse registro (Figura 49). O dramaturgo diz que foi no Rio de Janeiro que ele percebeu o quanto a África é desconhecida no Brasil. Para ele, apesar da afrodescendência, “ainda falta muito para compreender a real influência desse continente neste país [...] para o Brasil dar certo, ele tem que se conhecer por dentro e se conhecer lá fora” (O Globo, 06/05/2014, p. 2). Outro registro significativo na categoria Cultura está em O Globo de 20 de outubro de 2015, com uma indicação clara: “Angola chamando” (Figura 50). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 261 Figuras 49 e 50: Dramaturgo português e “chamado” de Angola Fonte: O Globo, 06/05/2014, Página 2, p. 2. Fonte: O Globo, 20/10/2015, Segundo Caderno, p.1. Esse texto de O Globo sobre Angola mostra uma mobilização popular que pedia a libertação do rapper Luaty Beirão e de outros 14 ativistas angolanos. Eles estavam presos há quatro meses e faziam greve de fome já há 32 dias. Haviam sido detidos pelas forças do presidente José Eduardo dos Santos quando debatiam o livro Da ditadura à democracia, de Gene Sharp. A justificativa do governo para as prisões era a de que o grupo planejava um golpe de Estado. O jornal informa que os protestos em favor da liberdade dos demais ativistas tinham chegado aos países lusófonos, por meio da Anistia Internacional. No entanto, ocorrem apenas manifestações pontuais em Portugal, durante um festival literário. Na notícia, informa-se que nem a CPLP nem o Governo do Brasil se manifestaram. Destaca-se no registro uma curta fala do escritor angolano Pepetela: “A África só é conhecida no Brasil pelas desgraças. Teria de haver uma mudança nos meios de comunicação e mais esforço nas escolas para que as pessoas apreendam que a África é um grande continente e não um país” (O Globo, 20/10/2015, p. 2). De maneira geral, as notícias da editoria de Cultura reduzem significativamente uma ancoragem para o regime de visibilização de uma África lusófona miserável, corrupta, doente, suja, criminosa. Essas associações não desaparecem, mas estão mais visíveis nos registros dos presidentes da República, dos acordos institucionais, e dos conflitos. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 262 7.1.2 Mirada A dimensão da visualidad propiciou uma análise geral do regime de visibilização em O Globo e na Folha de S.Paulo sobre a CPLP. Partamos para a mirada, considerando nosso diagrama semiótico elaborado a partir de Abril (2013). Com essa outra dimensão, percebemos mais nitidamente o que esse autor quis dizer quando afirmou que é o objeto que nos mira, e não o contrário. Por meio da mirada, analisamos as ações das forças textuais e visuais dos rastros que emergiram nos restos deixados na Folha de S.Paulo e em O Globo em 20 anos da CPLP. Os aspectos de ausência, indiferença, diferença e rejeição, e que estão separados aqui para melhor compreensão das propostas verbo-visuais dos dois jornais, miram-nos e exigem a nossa ação narrativa. Essa dimensão mantém as articulações entre a semiótica e a história. Por meio dela, observamos os acionamentos identitários nas temáticas da comunidade, mas atentando-se para o fato de que as propostas jornalísticas são orientadas e restringidas, conforme Abril (2013, p. 64) por “formas de prevenção e decoro”. Mirada da Ausência. Nesse aspecto, consideramos três ângulos de ausência: um primeiro, da CPLP nos jornais; um segundo que vê a ausência do Brasil nas notícias sobre essa comunidade, e um terceiro que é o dos países africanos e do Timor-Leste nos registros sobre a CPLP. Das poucas notícias encontradas nos dois jornais nesses 20 anos de comunidade, elegemos uma que revela, a nosso juízo, a profundidade desse processo de invisibilização da CPLP que estamos tratando nesse trabalho. Relembremos aqui que essa comunidade foi instituída oficialmente em 17 de julho de 1996. Também vimos que, mesmo de maneira superficial, os jornais Folha de S.Paulo e O Globo noticiariam a criação da CPLP e, ao longo de anos, sempre surgia alguma notícia sobre ela, até porque os presidentes do Brasil acabavam pautando-a ou o acordo ortográfico exigia pensar sobre a existência de outros países a falar em português. Entretanto, na edição de 12 de julho de 2003, sete anos depois da CPLP instituída, a Folha de S.Paulo noticia que o presidente Lula propunha a criação de um “bloco de países de língua portuguesa” e que seria chamado de CPLP (Figura 51). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 263 Figura 51: Notícia da “nova” criação da CPLP Fonte: Acervo da Folha, ed.12/07/2003, Brasil, p. 10. Esse registro é a confirmação presente da mais categórica ausência dessa entidade e dos temas nesse jornal. Não se trata de um lapso, um mero esquecimento, a confusão entre organismos internacionais. Ao longo dos anos, a invisibilização dessa comunidade veio conformando e agregando valores históricos, políticos e morais que estão vivos na política editorial dos jornais. Essas condições não permitiram que a CPLP fosse lembrada, nem mesmo pelo jornal, quando o presidente falou de um novo “bloco de países de língua portuguesa” em 2003. Uma das provas disso é que o autor da notícia é o jornalista Clóvis Rossi, exatamente o mesmo repórter que estava em Lisboa, em 17 de julho de 1996, e cobriu a criação da CPLP87, também pela mesma Folha de S.Paulo. Além de prova inequívoca desse longo minuto de silêncio em torno da comunidade lusófona, e que não se encerra com a publicação, esse registro da Folha de 12 de julho de 2003 tratou da visita do presidente Lula a Portugal, onde ele foi recebido pelo primeiro-ministro Durão Barroso. Lá, também se reuniu com “empresários portugueses”. O texto destaca a ação do presidente brasileiro em propor criar “uma nova” CPLP, o que 87 A Folha somente usou a sigla CPLP em títulos das notícias em 2010, na edição de 22 de julho (“Adesão de ditadura gera críticas à CPLP”). Ao contrário, em O Globo, a sigla tinha sido usada em um título em 1996, antes mesmo da institucionalização da entidade, em 30 de março (“José Aparecido é favorito para liderar a CPLP”). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 264 para o jornal é “mais um bloco no jogo diplomático brasileiro”. Ou seja, a comunidade é como moeda para o Brasil negociar na política externa, assim como foi feito no Governo FHC. Essa análise se confirma na narrativa do repórter: o novo bloco possibilitará ao Brasil “melhor negociar com as nações ricas do Norte” (Folha, 12/07/2003, p. 10). Assim como foi em 1996, para o jornal, o “bloco” é uma forma de o Brasil mostrar alguma força política e econômica internacional. Um trecho do discurso de Lula nesse registro é revelador: “A CPLP, talvez mais que nenhuma outra instância, mostra o quanto Portugal e Brasil podem realizar juntos. Afinal, não nos faltam o que poderiam chamar de vantagens comparativas – a língua, a cultura, a afinidade natural” (Folha, 12/07/2003, p. 10, grifos nossos). E onde estão as demais nações da CPLP? Não existe na notícia nenhuma referência aos países lusófonos da África e nem ao Timor-Leste. Vale destacar que a relação de “parceria” entre Portugal e Brasil foi construída, na fala do presidente, por meio da língua, da cultura e da “afinidade natural”. Seriam, então, afinidades naturais a relação metrópole/colônia, os sistemas de exploração, em especial o mais violento deles, a escravidão indígena e africana? Existe também nesse ponto um longo minuto de silêncio. Talvez, por isso, os países africanos lusófonos e o Timor-Leste estejam invisíveis nesse registro verbo-visual. Boa parte das notícias nos dois jornais configura essa ausência por meio da presença de vestígios. Relembremos que isso ocorreu na maioria dos registros que tratou sobre o acordo ortográfico, onde se experimenta um enorme “vazio” inicial de participação dos países da África lusófona e do Timor-Leste, além da inexistência de qualquer envolvimento da CPLP. No caso da ortografia, essa ausência e o reforço de uma suposta competência de Brasil e Portugal são nítidas demonstrações de um regime de visibilização jornalística construído para uma comunidade em que africanos são maioria, mas estão invisíveis. Lembrando que os mesmos africanos vão ganhar o campo do visível nos jornais acerca dessa discussão para serem culpabilizados pelo fracasso da unificação da escrita lusófona. Mirada da Indiferença. Iniciamos esclarecendo que a indiferença não é uma ação imparcial, vazia, oca. Na indiferença há o reconhecimento do Outro, mas esforça-se para não querer enxergá-lo. Ele está lá ou aqui como o incômodo que busco não enxergar. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 265 Vimos que antes mesmo da institucionalização da CPLP já existia uma demanda para que essa comunidade se envolvesse. Citemos o caso da ex-colônia portuguesa na Ásia, Timor-Leste, no período em que esteve sob a tirania da Indonésia, momento esse em que se reuniu uma resistência a fim de lutar pela independência, e demandou-se dos países lusófonos manifestações de apoio. Quase todas as nações dessa comunidade expressaram solidariedade ao movimento de independência, à exceção do Brasil. O presidente Fernando Henrique silenciou, não expressou apoio aos timorenses, calando-se diante de denúncias de torturas e massacres de civis promovidos pelo exército indonésio. Essa indiferença brasileira diante das lutas do Timor-Leste estava em O Globo em 09 de julho de 1996, pouco antes da criação da CPLP, em uma pequena notícia em que o ex-presidente português, Mário Soares, criticou o governo brasileiro. Soares diz que “o Brasil não pode ignorar a invasão do Timor pela Indonésia” (O Globo, 09/07/1996, O Mundo, p.26). O ex-presidente de Portugal avaliou que o Brasil não poderia sobrepor interesses econômicos aos direitos humanos ao negociar com a Indonésia. “A Indonésia é uma ditadura. Ora, o Brasil é uma grande democracia moderna [...] a sociedade civil brasileira tem que pressionar mais contra a invasão do Timor” (O Globo, 09/07/1996, O Mundo, p. 26). As críticas parecem que ecoaram dois anos depois, quando esse jornal, em sua edição de 18 de novembro de 1998 noticia a existência de um manifesto de intelectuais brasileiros em favor da independência do Timor-Leste e contra a indiferença do Brasil. Muitas vozes da literatura, das artes, da música cobravam uma posição mais ativa do país em favor da independência do Timor, mas sem muitos resultados práticos. Verifica-se com mais nitidez esse processo de indiferença na edição de 13 de abril de 1999 da Folha de S.Paulo. O jornal trouxe as viagens do presidente Fernando Henrique em alguns países. O Brasil vivia um colapso econômico e estava mal avaliado no exterior. Assim, segundo a Folha, as visitas de FHC aos países serviriam para “revalorizar a sua Presidência”. Um dos lugares que Fernando Henrique tentou utilizar para esse objetivo foi Portugal, que sediava naquele ano uma conferência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. No encontro, fora do roteiro oficial da CPLP, as lutas pela independência do Timor-Leste acabaram tirando o foco das intenções estratégicas do presidente brasileiro. Essa notícia revela o tamanho da indiferença do Brasil para com a comunidade e o Timor- Leste (Figura 52). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 266 Figura 52: Timor-Leste é o problema Fonte: Acervo Folha, ed.13/04/1999, Brasil, p. 6. Clóvis Rossi, repórter da Folha e que acompanhava as viagens do presidente FHC, conta que a “visita” em Lisboa “seria mais de compadrio, dado ao relacionamento histórico entre os dois países, não fosse o Timor Leste” (Folha, 13/04/1999, p. 6, grifos nossos). As lideranças dos movimentos de independência do Timor estavam naquela reunião da CPLP em Portugal e cobravam do Brasil uma manifestação de apoio, o que não aconteceu. A Folha diz que a posição da diplomacia brasileira é de diálogo entre as partes, mas com tendência favorável à Indonésia, país com quem o Brasil mantinha “boas relações comerciais”. Na prática, o Timor também não interessava ao presidente FHC porque não revalorizava a sua Presidência. Por isso, “não fosse pelo Timor, seria uma cúpula festiva, girando em torno dos festejos dos 500 anos do descobrimento do Brasil” (Folha, 13/04/1999, p. 6, grifos nossos). Mirada da Diferença. Depois de perceber as várias propostas verbo-visuais dos jornais para ausência e indiferença do Brasil em relação a CPLP e seus membros da África e do Timor-Leste, emerge outro aspecto da mirada que atravessa os registros sobre essa comunidade na Folha de S.Paulo e em O Globo: a diferença. Vejamos alguns exemplos em que a diferença é a palavra-chave para constituir o regime de visibilização da CPLP. A Folha, dias antes da oficialização dessa entidade, publicou em sua edição de 14 de julho de 1996 a pequena notícia: “FHC formaliza em Lisboa novo bloco” (Figura 53). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 267 Figura 53: FHC como dono a distância da CPLP Fonte: Acervo Folha, ed.14/07/1996, Brasil, p. 6. Esse registro apresenta uma série de marcas para construir a diferença entre Brasil e a CPLP. Uma primeira é o uso da expressão “formaliza”, que indica uma ação ativa do presidente do brasileiro. Contudo, lembremo-nos que o Brasil foi apenas uma entre as sete nações que assinaram a institucionalização da comunidade. Quando a Folha diz que “FHC formaliza”, busca passar a impressão de que é ele quem a oficializa, ou seja, ele tem poder de fazer, diferente dos demais. Outro aspecto é de que o jornal chama a CPLP de “bloco”, e não de comunidade. O bloco é utilizado para definir o ajuntamento de países que se movem por interesses econômicos. Diz o jornal que a CPLP “não chega a ser um bloco potente nem tem as ambições comerciais do Mercosul” (Folha, 14/07/1996, p. 6). Para a Folha, a impotência do “bloco” está no fato dele reunir apenas Brasil e Portugal e cinco países africanos de língua portuguesa, que sequer têm seus nomes citados na notícia. O Outro sequer é nomeado, mas está ali. Há nesse registro da Folha um trecho em que o jornal deixa claro como o Brasil, por meio da política externa, deveria lidar com a comunidade lusófona, reforçando a diferença, o comando e a distância identitária: “a diplomacia brasileira sempre trabalhou com a tese de que o país não pode vincular-se preferencialmente a qualquer deles, mas tratar de ser um ‘global trader’ (literalmente, comerciante global)” (Folha, 14/07/1996, p. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 268 6). Ora, como é participar de uma comunidade e não se vincular como membro? É porque não é comunidade, é “bloco”. Entendemos que as relações entre Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor-Leste, além de outros países e regiões lusófonas, não é opção, mas um encontro irrevogável. Além disso, a presumida condição protagonista do Brasil, de criar um “novo bloco”, tem o objetivo de “buscar apoios para a candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas” (Folha, 14/07/1996, p. 6). Somente aqui os membros da comunidade têm valor, porque “contar com o voto de cinco países africanos de língua portuguesa é sempre um ativo importante para a diplomacia brasileira, por pobres e fracos que sejam” (Folha, 14/07/1996, p. 6, grifos nossos). O Brasil é o líder que comanda e vende o “bloco” (que é “um ativo”) no mundo, e em troca tem o voto dos países lusófonos (“pobres e fracos”) para que ele tenha uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. No restante dessa notícia não há nenhum sinal que leve o leitor suspeitar que entre esses países do “bloco” existem profundos laços históricos e identitários constitutivos de uma comunidade. Outro exemplo de notícia que buscou estabelecer nítida diferença entre o Brasil e os demais países da CPLP está na edição de 26 de julho de 2004 em O Globo (Figura 54). Figura 54: Brasil como o “primo rico” dos africanos da CPLP Fonte: Acervo da O Globo, ed. 26/07/2004, O País, p. 8. O presidente Lula vai à África para participar da conferência da CPLP em São Tomé e Príncipe e o título apresenta uma grande marca de diferença: “Lula chega à África no papel de primo rico”. Isto é, até podemos ter alguma relação de parentesco com os africanos, é o que reconhece o jornal, mas nós somos os “ricos” e chegamos do “outro lado DAS PRESENÇAS AUSENTES | 269 do mundo” em que está o “primo pobre”. Essa diferença acentuada, de forma extremamente visível no título da notícia, busca retirar o peso das falas diretas do presidente Lula que lembram as relações históricas e identitárias do Brasil com África, os escravos e as dívidas que temos. Exatamente é essa a relação de diferença entre nós, os “primos ricos”, e os africanos, os Outros, os “primos pobres” também apareceu literalmente em uma notícia na Folha de S.Paulo em 18 de julho de 2000, com o presidente Fernando Henrique. Mirada da Rejeição. Em certa medida, a atitude de indiferença assemelha-se às ações de diferença e uma clara perspectiva da rejeição. Tomamos a rejeição como uma ação proativa diante de um incômodo, uma ação expressa de reação que nos faz revelar um sujeito nitidamente parcial, ultrapassando-se a falsa ideia de uma indiferença passiva. Um dos registros que mais revelam a reação desses jornais diante do incômodo de algum tipo de vinculação do Brasil a essa comunidade é o que traz a notícia do primeiro ano da CPLP. Para lembrar a data de aniversário dessa entidade, O Globo, em 17 de julho de 1997, publicou uma notícia com o título: “Países de língua portuguesa contra as drogas” (Figura 55). Essa notícia estava na página 11 junto com anúncios publicitários e duas notas de crimes: “Sem terra saqueiam” e “Pedida prisão de piloto”. Ou seja, a proposta foi enxergar a CPLP vinculada ao crime e às drogas, dentro da editoria que trata de criminalidade e polícia. Figura 55: Criminalização dos africanos na CPLP Fonte: Acervo de O Globo, ed. 17/07/1997, O País, p.11. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 270 Na verdade, essa notícia de O Globo sobre o primeiro ano da CPLP, antecipa uma reunião de embaixadores dos países de língua portuguesa que ocorreria em Salvador naquela data. No texto, a futura decisão do encontro é que foi antecipada e ressaltada pelo jornal: o combate às drogas. Na parte principal da notícia não existe nenhum tipo de balanço sobre o primeiro ano da CPLP, mas ele pode ser visto em um box a partir de uma entrevista com José Aparecido, ex-embaixador do Brasil em Portugal e um dos idealizadores dessa entidade. Ao ser preterido como secretário executivo da CPLP, Aparecido faz algumas críticas pontuais ao pouco interesse do Brasil com a comunidade nesse primeiro ano. Entretanto, é no corpo principal da notícia que a rejeição à ideia de comunidade está posta, ao ancorar seus membros africanos com as drogas. O texto inicia com uma afirmação categórica: “O Brasil e os demais países de língua portuguesa vão combater o narcotráfico. Os termos do acordo serão discutidos hoje, no primeiro aniversário da CPLP” (O Globo, 17/07/1997, p. 11). Logo, o jornal identifica onde está o problema a ser combatido: as drogas que saem dos países lusófonos da África, passa pelo Brasil até chegar aos Estados Unidos e à Europa. A criminalização das nações africanas sugere a rejeição a essa comunidade que nos envolve em razão de sermos uma rota. Isso implica o “repelente”, no combate ao Outro africano, do “terceiro mundo”, criminoso, indesejado porque ele contamina nossa imagem e nos coloca distante do Outro desejado, do “primeiro mundo”. A notícia que lembra o primeiro ano da CPLP e nossa relação com essa comunidade, que para o jornal deve ser de rejeição, é basilar no regime de visibilização para os registros seguintes. Lembremos que em 2002, o mesmo O Globo (30/07) tratou a ideia de uma possível “cidadania lusófona”, em que se discutia a mobilidade dos povos dessa comunidade como um caso de polícia. Essa publicação estava na editoria de crimes e o motivo era a possibilidade de livre circulação de africanos no Brasil. Essa temática criminal também está em O Globo (13/01/2008) quando o jornal fez longa reportagem sobre o “Trampolim africano para a droga na Europa”. O problema eram Guiné-Bissau (“Narco-Estado”) e Cabo Verde, postos em visibilização e lembrados como membros da comunidade lusófona, da qual o Brasil faz parte. Lembremos ainda que em várias notícias sobre os conflitos que envolveram os países dessa comunidade, o tráfico de drogas, ditaduras, doenças sempre foram bases consistentes para construir nossa repulsa a ela. No Governo Lula, percebemos o quanto essa mirada de rejeição foi proposta. Mesmo depois de ter deixado a Presidência, essas relações entre Lula, a CPLP, África, corrupção e ditadura se manteve. Em 2014, já no DAS PRESENÇAS AUSENTES | 271 Governo Dilma, a Folha traz um único registro em que tratou sobre o ingresso da Guiné Equatorial na CPLP (Figura 56). Figura 56: Ingresso oficial da Guiné Equatorial na CPLP Fonte: Acervo da Folha, ed.12/07/2014, Mundo, p. 14. A única fotografia utilizada na notícia foi resgatada do ano de 2008, onde aparecem Lula e o “ditador” daquele país se cumprimentando. O jornal destaca o apoio de Lula para que a Guiné Equatorial entrasse no “bloco” dos lusófonos, “mesmo sob o protesto de entidade de direitos humanos”. A Folha centra crítica no filho do presidente Mbasogo, “acusado pelos Judiciários dos Estados Unidos e da França de corrupção e de lavagem de dinheiro”. 7.1.3 Imagen Por meio da imagen, entramos na terceira dimensão da Análise Semiótica e, aqui, propomos refletir sobre duas propostas entrelaçadas, que se fundamentam entre si e estão, a nosso ver, na base do regime visibilização sobre a comunidade lusófona nos dois jornais: o aspecto das forças immunitas, na concepção apresentada por Esposito (2012), e as marcas de nossa herança colonial, ou de colonialidade, de acordo com pensamento de Quijano (2009). Enxergar essa dimensão nos ajuda a experimentar o conjunto dos significados desses rastros verbo-visuais, articulados em rede textual, e que nos permite acessar imaginários coletivos em que os jornais propõem seus regimes de visibilização. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 272 Essa imagen está assentada em fundamentos históricos, de uma história oficializada e seus modos de apagamentos e manipulações, mantendo-se colonialidades para assegurar um percurso immunitas, do não reconhecimento e de desobrigação para com essa comunidade. As propostas de imunidade e colonialidade que estamos indicando não são, como afirma Abril (2013), a soma dos objetos que foram representados, mas algo que somos levados a construir em razão de nossas interações e das tensões, entre as ausências presentes e as presenças ausentes. Nesse campo, os exemplos são indicativos dessas relações e não estão presos às expressões concretas, mas nos impelem a outras conexões não plenamente visíveis. Imagen de Imunidade. Relembremos que, ao contrário de communitas, a condição de immunitas abriga toda ação expressa no não compromisso, na não responsabilidade, no sentir-se completamente isento, sem qualquer possibilidade de vínculo com o Outro e, muito menos, sem dívidas para com ele. Sobre os jornais e a CPLP, percebemos que nesses 20 anos foi pavimentada uma proposta de experiência jornalística para levar os leitores de O Globo e da Folha de S.Paulo a não se reconhecerem como membros dessa comunidade. Isso se deu desde a ausência da mais básica informação de que existe essa comunidade até as nítidas manifestações de rejeição e combate. Essa ação política dos jornais tem fundamentos identitários e históricos, e que passam por racismo e por uma defesa de classe. Ou seja, a condição immunitas não implica em uma indiferença como uma não-ação. Esse exercício de imunidade pressupõe uma forte ação do nós para que o Outro, essa diferença indesejada, não se aproxime. Assim como O Globo, a Folha também acompanhou a conferência da CPLP em 2002, realizada em Brasília. Relembremos que em 2001 e 2002 o Brasil ocupava o cargo da Secretaria-Executiva dessa entidade. O registro da Folha de S.Paulo sobre esse evento em 30 de julho de 2002 foi: “Comunidade portuguesa firma acordos” (Figura 57). A primeira impressão é que existiu uma conjunção de esforços dos países da CPLP e o resultado disso foi a celebração de inúmeros acordos entre eles. Em O Globo o título da notícia em questão foi: “Acordo vai criar a cidadania lusófona”, na edição de 30 de julho de 2002. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 273 Figura 57: O perigo da mobilidade na CPLP Fonte: Folha, ed.30/07/2002, Mundo, p.10. Ao manusear o texto desse registro na Folha, percebemos que os países debateram, superficialmente, o combate ao vírus da Aids e aos meios para facilitar a mobilidade na CPLP. O jornal insiste que essa é uma comunidade em que entre seus membros existem “cinco países africanos entre os mais pobres do mundo”. Na disposição gráfica na página, destaca-se também um grande box em que o jornal informa que o presidente Fernando Henrique negou dinheiro ao Timor-Leste, que participava da reunião da CPLP pela primeira vez como um país independente. Entretanto, grande parte da notícia é uma entrevista com Dulce Pereira, então secretária executiva da CPLP, e o foco foi o da mobilidade. No registro, informa-se que seria aprovado um acordo em que a livre circulação dos povos dessa comunidade seria garantida. “A intenção é facilitar a circulação das pessoas”, diz o jornal. Na verdade, o que foi acordada foi redução de taxas e a implantação de visto de múltiplas entradas para “médicos, jornalistas, empresários e diplomatas”. O jornal – como ator político e moral – logo esclarece que não deve haver grande “imigração de africanos” no Brasil porque “os limites impostos ao ingresso nos países da CPLP permanecerão praticamente inalterados” (Folha, 30/07/2002, p. 10). Relembremos que essa notícia em O Globo foi publicada na página policial. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 274 Entendemos que existe aí uma forte ação immunitas proposta pelos jornais diante da ideia de “livre circulação” nessa comunidade, ou seja, nós não aceitamos partilhar nosso espaço com o Outro, o estrangeiro indesejado, mesmo membros da mesma comunidade. Por essa lógica immunitas, não temos qualquer obrigação e compromisso com esse Outro. Essa é uma imunidade ativa, racista e classista porque o problema dessa “livre circulação”, da “cidadania lusófona” não é o português, o europeu branco, rico e desejado, mas o africano pobre e negro, que foi construído na história e no regime de visibilização do jornalismo como o ignorante, o doente, o criminoso, o traficante, o perigo, o indesejado. Percebemos que a imunidade é fortemente convocada pelos jornais quando reduzem e transformam as falas do presidente Lula sobre a escravidão no Brasil e as dívidas históricas que temos para com África ao “tom emocional” (Folha, 03/11/2003, p. 4), a uma lembrança afetiva que se perdeu no passado, isto é, sem amparo racional, político e econômico. Nessas condições, não temos nenhuma dívida para com África, não nos sentimos obrigados a nenhum tipo de reconhecimento e de reparação. Para os jornais, os africanos é que nos devem: votos no Conselho de Segurança da ONU, petróleo e eternos agradecimentos por pífios convênios que assinamos. Da mesma forma experimentamos imunidade nas notícias dos conflitos nas nações da CPLP. Do Timor-Leste à Guiné-Bissau, os registros nos dois jornais propõem ausência e indiferença do Brasil. Mesmo sendo da mesma comunidade e convocados a agir, não cultivamos nenhuma obrigação, nenhum dever para com eles. Como fissuras, encontramos algumas raras notícias em que essa condição immunitas foi revelada na superfície visível. Isso ocorreu em razão de entrevistas do ex- embaixador José Aparecido, em uma reação dele por não ter sido escolhido para comandar a CPLP. De 1997 a 1999, Aparecido teve algum espaço em O Globo. Em 30 de novembro de 1997 (O País, p. 11), existe um pequeno registro em O Globo em que José Aparecido diz que os “governos de Brasil e Portugal desprezam a CPLP”. Essa notícia teve como centro a demissão do secretário de Estado de Negócios Estrangeiros de Portugal, José Lamego, que tinha uma postura mais favorável à CPLP. No lugar de Lamego assumiu Jaime Gama, aliado do embaixador Filipe Lampreia (ministro de Relações Exteriores do Brasil). Os dois (Gama e Lampreia), segundo Aparecido, agiam contra a comunidade lusófona. O jornal informa que Lamego vinha enfrentando oposição dentro do Governo Português em razão de dar atenção “aos países africanos de língua portuguesa”. Ou seja, a aproximação com as nações africanas parece não ser somente indesejável no Brasil. Também em O Globo em 30 de janeiro de 1999 (O Mundo, p. 11), DAS PRESENÇAS AUSENTES | 275 José Aparecido voltou a criticar o abandono da CPLP pelo governo brasileiro, o não apoio a independência do Timor-Leste e o não envolvimento com os pleitos dos países africanos. Imagen de Colonialidade. Na grande maioria dos registros sobre a CPLP nos dois jornais emergem rastros que podem ser caracterizados como de colonialidade. Eles convocam sutilmente seus leitores para experimentar e confirmar uma lógica de mundo construída desde o Brasil Colônia, em que a vida se divide, de um lado, em superiores e os mandatários, e do outro, em inferiores, servos, subordinados. Essa é uma formação ideológica que vem das expansões imperialistas do século XV, que associa o europeu à condição moderna, à “raça branca”, à civilização, ao racional, e o Outro, bárbaro, primitivo, não-europeu, aquele com “raças de cor”, de modo especial, a “negra” (QUIJANO, 2009, p. 99). Tal é a força dessa ideologia que ainda hoje ela impera, sobranceira. Faz a cabeça do senhorio classista convencido de que orienta e civiliza seus serviçais, forçando-os a superar sua preguiça inata para viverem vidas mais fecundas e mais lucrativas. Faz, também, a cabeça dos oprimidos, que aprendem a ver a ordem social como sagrada e o seu papel nela prescrito de criaturas de Deus em provação, a caminho da vida eterna (RIBEIRO, 1995, p. 72). Parece ser essa perspectiva que atravessa, com centralidade, a projeção acerca das identidades no Brasil e que, muitas vezes, são expressas nos jornais. Vejamos um exemplo. Relembremos que O Globo, em 17/07/1997, trouxe uma notícia que lembrava o primeiro ano da CPLP. O enfoque era o medo da presença dos “africanos” entre nós, em razão da ideia que se discutia em uma conferência da entidade sobre a “livre circulação” entre as nações de língua portuguesa. O jornal tranquilizava sua audiência ao garantir que os governos brasileiro e português não iriam permitir tamanha ousadia. A Folha de S.Paulo também se lembrou do primeiro aniversário da CPLP. Em 15 de julho, esse jornal publicou uma curta notícia no final da página 4, junto com outras notícias locais (de São Paulo) sobre criminalidade. Entre informações de homicídios, fraudes, fugas, estava o registro sobre o primeiro ano da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e o título foi: “Africanos querem ter direitos iguais a portugueses no Brasil” (Figura 58). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 276 Figura 58: Primeiro ano da CPLP e a o impedimento à comunidade Fonte: Acervo da Folha, ed.15/07/1997, São Paulo, p.4. Fizemos questão de publicar toda a página para revelar a dimensão dada à notícia e o local onde foi editada ao tratar de uma conferência da CPLP em seu primeiro ano, ou seja, de uma comunidade ainda em formação. Ao tratar de um imaginário de livre trânsito nessa comunidade, o jornal propõe uma reiterada experiência jornalística que ancora a ideia de mobilidade à editoria de crimes, de forma que a CPLP divide o espaço com: “Garota é acusada de jogar bebê em bueiro”, “Homicídios caem 20% no final de semana”, “Três presos serram grades e escapam da sede da PF”, “Procuradoria denuncia 54 réus da lista do bicho”, “Menores conseguem arma e fogem da sede da Febem do Tatuapé”, (Folha, 15/07/1997, p. 4). Essa associação temática da CPLP com crime, violência, insegurança ocorreu várias outras vezes na Folha e em O Globo nos 20 anos da CPLP. Lembremo-nos da rota do tráfico de drogas, dos registros de conflitos, da “cidadania lusófona”, entre outros casos de polícia. Essa notícia da Folha (15/07/1997) que lembra o primeiro ano da CPLP é sobre uma reunião dos países da comunidade, ocorrida em Salvador, Bahia, e o tema dominante, segundo o jornal, foi a mobilidade. A Folha afirma que “os africanos de língua portuguesa querem que o Brasil estenda a eles o mesmo direito de livre circulação que é concedido aos DAS PRESENÇAS AUSENTES | 277 portugueses” que chegam às terras brasileiras, isto é, sem visto de entrada prévio nos consulados. O jornal trata como caso de polícia o fato dos “africanos” dessa mesma comunidade pedirem ao Brasil “o mesmo direito de livre circulação” que tem os portugueses aqui. Imediatamente, mesmo sem uma manifestação de fala direta oficial do governo brasileiro na notícia, a Folha, como se a resposta a esse pedido dos “africanos” fosse natural, já responde com indicação clara para a própria resposta oficial do Brasil: “Governo brasileiro recebeu pedido com reservas” (Folha, 15/07/1997, p. 4). Essa frase é a de apoio, acima do título da notícia. No texto, o jornal afirma que esse direito de igualdade de tratamento aos portugueses, ao qual os africanos se referem, será negado por conta do “perigo do tráfico de drogas”. Temos aqui um modo de visibilização para a rejeição e combate, ou no mínimo, o controle e a disciplina. Na prática, essa justificativa do jornal, sugerida ao governo brasileiro, revela a colonialidade e a condição racista de nossas relações sociais. O perigo em questão não é a droga, mas o Outro, negro e pobre, africano. Essa é mais que uma negação naturalizada ao direito de livre circulação e de equivalência aos portugueses no Brasil, mas uma contínua violência que faz retomar as nossas heranças coloniais visíveis no regime de visibilização para criminalizar os “africanos” no campo visível e, para tentar impedir o reconhecimento identitário deles entre nós, ou nosso entre eles, como comunidade. 7.2 Invisibilização por presença Depois de perceber por meio da Análise de Conteúdo, no capítulo anterior, que a comunidade lusófona foi objeto da experiência jornalística de invisibilização por ausência, mas considerando que essa ação não é absoluta e deixa rastros presentes, partimos para investigar esses vestígios, reconhecendo-os como potências que podem nos ajudar a entender sobre o movimento dos dois jornais para a recorrente ausência da CPLP neles. Em outras palavras, as raras notícias encontradas são resultado de uma narrativa com torções de palavras e silêncios a configurar uma experiência do invisível. Nessas condições, podemos falar do outro modo de invisibilização, agora, por presença nos registros. Para isso, articulamos o olhar crítico sobre a história, de forma a empregar valor aos indícios, (GINZBURG, 1989) e a fazer conexões semióticas em uma mesma visada sobre os rastros, considerando visualidad, mirada e imagen (ABRIL, 2013). DAS PRESENÇAS AUSENTES | 278 Apesar de não termos optado por analisar as poucas notícias seguindo uma linearidade temporal, foi importante ter iniciado com os registros mais próximos da criação da CPLP em 1996. Neles, observamos que essa comunidade lusófona, antes mesmo de ser criada, já era tratada na Folha de S.Paulo e em O Globo como um fora de nós, sem qualquer vinculação histórica e identitária. Era o Outro negro, africano, pobre e distante de nós, portanto, indesejado. A sutil exceção dentro da diferença era Portugal, percebido tão somente na perspectiva econômica, como uma ponte de acesso ao mundo civilizado. Os jornais até enxergavam a CPLP, mas como “bloco” econômico “pobre e fraco”, não como comunidade. Como bloco, o Brasil poderia se aproximar se fosse para estabelecer uma relação de mando sobre os países da África lusófona e o Timor-Leste. Em alguns registros, a CPLP era uma moeda, “um ativo”, de pouco valor internacional que o Brasil agregava para si e que podia ser negociado com as grandes potências globais (Folha, 14/07/1996, p. 6). Esse foi nosso cartão de visita geral: nós, civilizados ao lado de Portugal e à frente e à distância dos demais países da CPLP. Esses últimos, os Outros, mesmo vestidos como gente, tinham pés descalços – a cor da pele – para que não se esquecessem dessa condição de subordinados. A entrevista do presidente Fernando Henrique – aquele “que morou muitos anos fora”–, bem na véspera da criação da CPLP, foi um nítido cartão de visita nosso para essa comunidade e para nós (Folha e O Globo, 16/07/1996). Os textos dos jornais sugerem que negros e pobres, caipiras e atrasados, devem ter sua mentalidade “criolla” apagada para que possam, na lógica do presidente FHC e reproduzida em destaque pelos jornais da Casa Grande, acertar os passos com a globalização, com o moderno, com o “encantado”. Não há, desde o começo, a ideia de reconhecimento, de comunidade e, muito menos, de nossa inserção nela. Ao contrário, os vestígios estão ali, visíveis, para que se enxerguem as diferenças, as relações entre superior e inferior, civilizado e primitivo, mando e obediência, um jogo entre a visibilização racista que criminaliza o Outro e a invisibilização que apaga o reconhecimento e o pertencimento a uma mesma comunidade. Emergiram alguns rastros de parentesco entre Brasil e África, mas essa foi uma ação para marcar diferenças, principalmente ao destacar o peso econômico, reforçando as relações capitalistas e neocolonialistas de dominador/dominado. No Governo Fernando Henrique, os africanos da CPLP foram identificados como os nossos “primos pobres” (Folha, 18/07/2000) e recebem o “perdão de dívidas”. Os jornais criticam a ação como um “prejuízo à economia brasileira”, mas a justifica porque os países pobres terão, assim, a obrigação de votar em seu “primo rico” para uma vaga no Conselho de Segurança da DAS PRESENÇAS AUSENTES | 279 ONU. Há uma profunda inversão da lógica histórica de credor/devedor entre Brasil e África. Somos nós os que têm dívidas para com África – com nós mesmos –, e não o contrário. Essa condição de “primos” aparece no Governo Lula a reforçar que nós somos os ricos e que o trânsito permitido é de nós para eles, e não o inverso: “Lula chega à África no papel de primo rico” (O Globo, 20/07/2004, p. 8). Em 2003, logo no início do Governo Lula, encontramos um registro que sintetiza o ápice da invisibilização por presença da CPLP em nós. Esse rastro emerge para denunciar a nítida opção pelo apagamento dessa comunidade. Sete anos depois da institucionalização da CPLP e de poucas notícias sobre ela, a Folha (12/07/2003, p. 10) destaca que o presidente Lula estava propondo criar uma comunidade de países de língua portuguesa. Ou seja, essa notícia é uma presença expressiva a confirmar a ausência, o invisível. A materialidade nela é a própria torção das palavras e dos silêncios a denunciar a invisibilização. Os rastros das notícias sobre a comunidade no Governo Lula são fundamentais para entender o modo de invisibilização por presença. Diferentemente dos registros do período de Fernando Henrique, em algumas notícias com Lula emergiram filigranas, nas falas diretas dele, que apontavam para uma vinculação identitária entre Brasil e África. O presidente justificava muitas de suas ações com os países daquele continente como um resgate sobre a escravidão e a dívida histórica. Entretanto, essas citações curtas eram engolidas pela angulação do viés econômico (“bloco”) que os dois jornais buscavam imprimir nas poucas notícias sobre a CPLP. Na Folha e em O Globo, Lula foi festejado, de modo especial no início do governo, como um agente de grandes empresários brasileiros que o presidente levava em sua comitiva para fazer “bons negócios” na África. Essa é uma ação de colonialidade alinhada à lógica dos valores desses jornais, que prevê a expansão e liberdade do capital, a exploração e o domínio dos “fracos”, com o uso da retórica e da farsa do desenvolvimento dos países pobres. Ao insistir em falar em escravidão e dívidas históricas, o discurso de Lula foi reduzido e tratado pelos jornais como de fundo “emocional”, afetivo (Folha, 03/11/2003, p. 4), sem amparo na razão. Todavia, algumas ações do Governo Lula, no sentido de estabelecer uma relação externa Sul-Sul, concretizaram-se, a exemplo de abertura de embaixadas nos países da África, introdução da História da África no ensino no Brasil, cota raciais, criação da universidade para alunos da CPLP, envio de professores ao Timor- Leste, imposto zero aos produtos angolanos, entre outras. Essas decisões possibilitavam, mesmo que muito timidamente, pensar em uma aproximação identitária entre Brasil e DAS PRESENÇAS AUSENTES | 280 África e na própria ideia de comunidade. Para esses jornais – vozes político-narrativas da elite nacional brasileira –, o Governo Lula forçava uma linha que para eles deveria ser mantida intransponível entre nós e o Outro. Assim, O Globo e a Folha ampliam as desqualificações e as invisibilizações dessa comunidade e dos países africanos lusófonos. Para esses jornais era impensável o Brasil inserir-se, mesmo como líder, entre os países pobres da África. Se durante o Governo FHC a invisibilização da CPLP era motivada por questões econômicas (bloco pobre) e racistas (crioulo), no Governo Lula a justificativa da ausência era a insistência do presidente em aproximar-se dessa comunidade alegando dívidas históricas e motivações identitárias. Por isso, no decorrer de duas décadas, nas notícias sobre a CPLP nesses dois jornais encontramos palavras-chave que se repetem e que se acentuaram no Governo Lula: pobreza, miséria, doenças, tráfico de drogas e armas, corrupção, golpes, em uma nítida referência também identitária de medo, perigo, contágio, rejeição, apagamento e exclusão. O peso econômico nas notícias cedeu espaço a essas associações que criminalizam as ideias e ações do Governo Lula em relação à África. Assim, os jornais sugerem uma experiência jornalística em que os leitores podiam usar a notícia como um “repelente” para imunizar-se, proteger-se, rejeitar e combater a aproximação com essas “más companhias”, como foram tratados os africanos em editorial de O Globo (06/07/2010, p. 6). Para ampliar e reforçar essa repulsa, os dois jornais associam diretamente o presidente Lula aos “ditadores” na África: “Lula desfila em Rolls-Royce ao lado de ditador” (O Globo, 28/07/2004, p. 12); “Lula se reúne com ditador africano para selar acordo” (Folha, 05/07, 2010, p. 9); “Ditador respeita democracia e direitos humanos, diz Lula” (Folha, 06/07/2010, p. 10); “Bloco lusófono incluirá ditadura africana” (Folha, 12/07/2014, p. 14). Destacamos que nos 20 anos de CPLP, a maioria dos presidentes dos países africanos não apareceu com falas diretas nesses dois jornais, à exceção de Joaquim Chissano e de José Maria Neves, respectivamente de Moçambique e Cabo Verde. Além da ausência dos demais, as falas desses presidentes serviram para que os jornais reforçassem associações entre drogas, pobreza, miséria, doenças, corrupção, ditaduras e a África lusófona. Nesse caso, a presença do Outro serve para confirmar e criminalizar o Outro. Nessa mesma categoria, verificamos um elevado número de entrevistas com os presidentes portugueses. Os dirigentes europeus tiveram mais espaço que os demais na DAS PRESENÇAS AUSENTES | 281 Folha, e principalmente em O Globo, o que ratifica uma lógica editorial pautada em valores políticos e econômicos eurocêntricos. Nas notícias com os presidentes e os primeiros-ministros portugueses, O Globo e a Folha enfatizaram ações que poderiam beneficiar os empresários brasileiros que investissem em Portugal. A CPLP e os países africanos, nessa ótica, estiveram completamente ausentes, mas logo surgiram quando os jornais se lembraram das aproximações do Governo Lula com a África. A CPLP e os países africanos eram o “problema” nas entrevistas com os dirigentes de Portugal. Existiu uma nítida cobrança, em O Globo e na Folha, para o combate à ideia de livre circulação no espaço lusófono. Na prática, os jornais buscaram exercer a função de construtores e vigilantes de muros entre Brasil e África, e de ponte econômica entre Brasil e Portugal. A mobilidade foi submetida ao critério econômico para brasileiros e portugueses, e reacendeu vivamente o racismo em relação aos africanos, isto é, esse um debate marcado profundamente por nossas heranças coloniais. Talvez esteja aí a questão-chave na compreensão do regime de visibilização da CPLP nos dois jornais brasileiros: o medo do livre trânsito do Outro, negro e pobre, africano e timorense entre nós. Nesse quesito, ampliaram-se as narrativas de medo, repulsa, de criminalização e o combate para que esse Outro fique confinado onde está, que não se aproxime. Dirigentes portugueses asseguraram nas entrevistas que as imposições, limitações, restrições à circulação de africanos não se alterariam, mas que os brasileiros seriam bem tratados e teriam “Status especial” (O Globo, 06/08/2002, p. 30). Todavia, isso não se aplica a todos os brasileiros, apenas os que têm condições de investir em Portugal seriam bem-vindos. Lembremos que em conferências da CPLP, o tema da mobilidade entrou timidamente na pauta, mas os dois jornais trataram dessa temática como caso de polícia e o motivo estava explícito: possibilidade de livre circulação dos “africanos”. Outro episódio em que vemos nitidamente o regime de visibilização presente para a invisibilização é o do acordo sobre a ortografia. Nas notícias da unificação da escrita, os povos da África lusófona, do Timor-Leste e das demais regiões não foram ouvidos, citados e lembrados como falantes, escritores, pensadores. Os textos em O Globo e na Folha sobre esse acordo trataram apenas de Brasil e Portugal, envolvendo as academias de letras e intelectuais desses dois países. Angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses, guinéu-equatorianos e timorenses não tiveram nos registros dos jornais qualquer influência nesse debate, isto é, ficaram completamente invisíveis. No entanto, na medida em que esse acordo não se confirmou, os jornais responsabilizaram os povos da DAS PRESENÇAS AUSENTES | 282 África lusófona pelo fracasso. Ali estava “o africano”, o problema visível, o falante de um “português fraco” (O Globo, 15/03/2008, p. 2). Esse Outro ignorante, miserável, o perigo a ser combatido esteve em todas as notícias de conflitos que envolveram os países da África e o Timor-Leste nesses 20 anos da CPLP. Os registros esporádicos detalhavam os golpes de Estado, e lembravam rotineiramente que esses países eram pobres, dirigidos por ditadores e corruptos, envolvidos com tráfico de drogas e armas, e possui uma população doente (Aids, Ébola, Malária). Os jornais não se esqueceram de enfatizar que essas nações eram da comunidade lusófona, da CPLP. Há ainda uma indiferença ativa, lembrando o que aconteceu com a luta pela independência do Timor, e as crises em Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Essa indiferença tentava disfarçar qualquer possibilidade de traço identitário entre nós e eles, ao mesmo tempo em que exigia nossa repulsa e combate à aproximação com esses países. Analisamos que apenas na categoria Cultura existiram alguns raros vestígios em que a associação miséria, crime, tráfico de droga, ditadura e países africanos lusófonos não esteve tão visível. Algumas notícias, mesmo pontuais e encravadas em meio a textos mais elaborados nos cadernos de Cultura, chegaram a lembrar da escravidão e da dívida histórica que temos com África (Folha, 13/03/2000, p. 10). Por meio de incomuns rastros nas notícias de Cultura, enxergamos que, mesmo timidamente, existiram denúncias desse processo de indiferença, de nenhuma atenção e importância, da ausência, da invisibilização dessa comunidade lusófona no Brasil. Entretanto, os jornais sempre buscaram ancorar essas raras reflexões na Cultura, geralmente de intelectuais, na análise histórica de um passado distante e apartado de nós, com motivação afetiva e sem qualquer implicação política, social e econômica. Esse foi o mesmo tratamento dado às falas de Lula ao convocar as identidades. Em resumo, a dimensão da visualidad no regime de visibilização dos dois jornais, e analisada por meio dos rastros nas notícias em seis categorias (Presidente Fernando Henrique, Presidente Lula, Presidentes Diversos, Acordos Institucionais, Conflitos, Cultura) possibilitou perceber uma presença visível que faz falar e mostrar mais da ausência. Essa coletânea constituiu-se em um objeto que nos olha e nos cobra a ação narrativa para dizer do invisível que está ali, com vários minutos de silêncio. Na dimensão da mirada, o primeiro aspecto a destacar é a construção de um olhar para a ausência, uma ausência do Brasil como integrante da comunidade lusófona, a exemplo dos registros em Conflito e Cultura; ausência pontual dos “africanos” no acordo ortográfico; ausência da própria comunidade ao noticiar, em 2003, uma “nova criação” da CPLP, que já tinha sete DAS PRESENÇAS AUSENTES | 283 anos de instituída. Emergiu também a mirada de indiferença do Brasil para com a comunidade e seus países da África e o Timor-Leste, a exemplo de alguns registros com os presidentes Fernando Henrique e Lula, e nas notícias de Conflito. A indiferença do Brasil foi tão ativa e parcial em benefício da Indonésia quando da luta em Timor pela independência, que essa ação chegou a ser criticada em alguns raros registros nos jornais. As tramas percebidas na visualidad também revelaram a mirada da diferença como uma constante em quase todas as notícias diretas sobre a CPLP. Essa comunidade era o Outro para o Brasil. Mesmo ao ser considerado “primo”, a qualificação econômica de rico, para nós, e pobre, para eles, marcava a diferença que se associa à relação de mando/obediência, diferença que os jornais mantiveram no Governo Lula como alerta ao perceber a aproximação identitária do presidente do Brasil com África. Será nesse ponto que a diferença ganha imediatos contornos de uma mirada de rejeição, que não implica apenas na ação do repelente para imunizar-se do contato com a diferença, mas no combate ao Outro, “o africano”, negro, pobre, criminoso, que ameaça cruzar a fronteira e ficar entre nós. Relembremo-nos que as notícias acerca da mobilidade, de “cidadania lusófona” foram tratadas pelos jornais como casos de polícia. Nessas condições, podemos enxergar a dimensão da imagen construída no regime de visibilização em O Globo e na Folha, isto é, um imaginário em torno da CPLP em que parece ser impossível reconhecê-la e experimentá-la como comunidade, de que somos parte e na qual estamos implicados pela história e pelas identidades. O apagamento reiterado dessa possibilidade, ou seja, de construir uma experiência communitas (ESPOSITO, 2012), onde o sentido dessa comunidade está na obrigação, no dever, no cuidado com os semelhantes, faz sugerir que esse regime de visibilização dos jornais baseia-se em uma ação política que cultiva o valor immunitas, que desenvolve, como se natural fosse, uma imagen de imunidade. Os rastros que mobilizamos estão visíveis na Folha e em O Globo para que possamos experimentar as ausências, a não comunidade, o não reconhecimento e sequer produzirmos alguma sensação de pertença. Essa condição imunitária não é passiva. Sentir- se desobrigado, sem qualquer responsabilidade e/ou dívida histórica implica em agir contra o Outro porque ele ameaça a nos lembrar de que somos dessa comunidade e, portanto, temos deveres para com todos. A imagen de imunidade não é, em hipótese alguma, de neutralidade. O Outro aqui é o “africano”, negro e pobre, um criminoso nato; é uma eterna ameaça ao nós, porque está próximo e nos convoca ao pertencimento. Por isso, a imunidade é o não reconhecimento ativo, uma repulsa que combate a ideia de comunidade. DAS PRESENÇAS AUSENTES | 284 Entretanto, sugerimos que esse imaginário é atravessado em nossas relações sociais pela imagen de colonialidade. Invisibilização, não reconhecimento, desobrigação, rejeição e combate à comunidade em razão da presença do “africano” estão fundamentados em um processo histórico que retoma nossa formação desde o Brasil Colônia. Os jornais de referência da Casa Grande propõem uma experiência jornalística baseada em um imaginário social em que as relações de mando/obediência, de superiores/inferiores, de civilizados/primitivos, de brancos/negros, relações que parecem naturalizadas. As notícias sobre essa comunidade, em que a presença majoritária dos povos da África é percebida, a imagen de colonialidade é convocada para marcar, em fronteiras quase intransponíveis, o nós e o eles, buscando-se reforçar as relações sociais de nossas heranças coloniais. A relação permitida com esse Outro à distância é de controle, comando e punição. A invisibilização por presença revela como a trama verbo-textual proposta de experiência jornalística na Folha de S.Paulo e em O Globo ajuda a construir a comunidade invisível, ausente, mas combatida permanentemente, ou seja, há alguma presença viva nessa experiência invisível. Os rastros presentes e bem visíveis a formar a coletânea neste capítulo denunciam os parâmetros eurocêntricos a fixar muros entre nós. A invisibilização materializada nas poucas notícias visíveis configura um Brasil que tenta não enxergar os longos e profundos fios de pertença com os povos da África e da Ásia, dando forma a um regime de visibilização, nesse caso, com ênfase no invisível. Entretanto, a nosso ver, essa experiência do invisível proposta pelos dois jornais é uma ação política de tentar impedir que essa comunidade torne visível o Outro que nos constitui e que somos e que já está, de forma inexorável, entre nós. CONSIDERAÇÕES FINAIS | 285 CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência do visível e do invisível em nós mesmos O percurso que propusemos e realizamos nos possibilitou pensar no jornalismo como uma das experiências narrativas no mundo e do mundo. Indicamos que a primeira tarefa para esse exercício foi deslocar o jornalismo de sua concepção mais estruturada, normativa e presa a produtos, plataformas tecnológicas e práticas profissionais para uma perspectiva que tenta percebê-lo como um espaço de relações sociais, um lugar vivo, incontrolado e atravessado por tensões e possibilidades. Isso não implica, em hipótese alguma, reduzir a importância das lógicas operativas de jornalismo, das estruturas empresariais e suas relações promíscuas de poder, muito pelo contrário. O que se propôs foi o convite para o exercício a outros olhares além das molduras dos quadros conhecidos. As inquietações que nos mobilizaram para este trabalho – e que não terminaram com o ponto final – podem ser resumidas no incômodo de uma presença significativa no ambiente das atividades jornalísticas, com fortes braços estendidos nos espaços de estudos sobre o jornalismo, que reconhece o visível como o todo e único lugar possível dos sentidos. O violento processo seletivo do cotidiano é resultado, em boa parte, do falar e do ver acordados, mas em razão de uma série de não ditos e de não vistos impedidos. Se gravitarmos em torno tão somente da visibilidade, poderemos estar rodeando o próprio visível e não perceberemos que existem possibilidades nele mesmo e, além dele. Procuramos sugerir que no espaço da experiência que indica o jornalismo não existe somente a superfície, mas várias camadas entrelaçadas de sentido ainda não ditas e não vistas. Defendemos, em boa parte deste trabalho, que a percepção dessa experiência nos envolve em um ambiente múltiplo e fecundo que enriquece o enxergar o mundo. Lembremos que a experiência é um espaço vivo e incontido, onde as relações sociais se tecem em movimento, onde os jogos de força dos sujeitos mobilizam as disputas, e uma delas é a de poder narrar o mundo. E poder narrar implica também poder calar. Primeiro, estamos dizendo que nas expressões narrativas existem também o silenciar e o não ver, ou seja, toda presença contém as ausências, e vice-versa. Segundo, o jornalismo transita nesse lugar como possibilidade, propondo falar e ver, mas também não dizer e não mostrar. Com essa reflexão, a centralidade do jornalismo sobre a realidade precisa ser resignificada, porque ele, como conhecemos, perde a força de gênese, de mediação ou de palavra final sobre a informação. A percepção da experiência aqui CONSIDERAÇÕES FINAIS | 286 implica elevar os sujeitos à condição de partícipe desse processo, em que estamos todos em relação, não como uma audiência vazia e destinatária, mas como agentes de valor decisivo, constituindo-se também como uma força conformativa e/ou reativa às propostas apresentadas nas superfícies jornalísticas. Assim, sugerimos que o jornalismo, como uma experiência constitutiva de frenéticas tensões políticas que emergem em narrativas verbo-visuais, pode ser visto no plano visível a partir da indicação de alguns atores privilegiados. Mas é preciso reconhecer que, nessee mesmo espaço, acima e abaixo, dos lados, dentro e fora, existem camadas invisíveis que podem e devem ser objetos de interrogações e outras narrativas, embora sempre impertinentes ao visível. Os atores em questão neste trabalho são os jornais Folha de S.Paulo e O Globo. Todavia, eles não são somente periódicos diários brasileiros, mas atores políticos, sociais e culturais que mobilizam um regime de crença acerca do que falam e do que mostram, renovando sempre a imaginação de que são referências do verdadeiro. Como agentes/atores políticos e sociais estruturados, eles exercem um poder de propor o todo visível, como o único e o possível, e veraz. É nesse ponto que reside o ângulo mais crítico de nossa reflexão sobre os estudos mais tradicionais de jornalismo. A perspectiva normativa prende-se a esse visível, e sobre ele formula muito bem, mas não avança para as camadas mais profundas, para o silenciado e o que ficou invisível. Por isso, sugerimos que o jornalismo é a experiência social que constrói e participa de um regime de visibilização, onde coabitam, no mesmo objeto, o dito e o não dito, o visível e o invisível, não como pares opostos, incompatíveis, autoexcluíveis; ao contrário, como necessários e complementares. Talvez o principal desafio seja perceber que o jornalismo, sedimentado socialmente como o lugar do visível, também abriga inúmeras camadas invisíveis. Esse é um processo que ocorre desde a seleção do noticiável, com inclusões e exclusões e que resulta na superfície visível. Ora, na prática, experimentamos aquilo que foi dito e foi mostrado, mas essa mesma experiência está carregada daquilo que não foi dito e do que não foi visto, compondo esse mesmo regime de visibilização. Em outras palavras, também experimentamos nesse cotidiano, muitas vezes sem a devida percepção, as ausências, os silenciamentos, as invisibilizações. O conjunto de textos jornalísticos à nossa disposição na arena visível é resultado do jogo de forças entre o dizer e o calar, o incluir e o excluir, o mostrar e o esconder. Entretanto, o calado, o excluído, o escondido, não desparecem da experiência, eles continuam ali a exigir nossa ação narrativa. Ou seja, o que foi julgado CONSIDERAÇÕES FINAIS | 287 como não noticiável não se perdeu no tempo e no espaço, mas continua ali à espera de nossa ação de enxergar e de narrar, a epoché, como disse Merleau-Ponty (2012). Diferentemente do silêncio, que é um elemento central na linguagem para o mínimo de inteligibilidade, e que permanecerá nas expressões, inclusive depois delas, a opção de não dizer e não mostrar é uma ação política, a ação de silenciar. A decisão editorial de não divulgar um determinado tema, muitas vezes justificada por frágeis critérios técnicos, ou de publicar com propostas de agenciamentos que atendem a interesses específicos, configura-se no que temos chamado de torção dos silêncios e das palavras e que vai resultar no visível e no invisível. O que buscamos sustentar neste trabalho foi que se a decisão de não dizer e de não mostrar for reiterada, se o silenciamento não for apenas pontual, mas se estender ao longo do tempo, estamos diante de experiência jornalística cuja proposta é a da invisibilização por ausência. Todavia, essa ausência não é o nada, o vazio; ao contrário, é um objeto, o inexistente está ali, prenhe de sentidos, como a ausência presente a exigir de nós ação interrogativa e narrativa. Nossa reflexão avançou ao perceber que a invisibilização, como resultado do excluir e do jogar às sombras, de forma reiterada, também se dava de outro modo. A inclusão na superfície dos mesmos textos verbo-visuais, com repetidos agenciamentos, pode impossibilitar outros olhares sobre esses acontecimentos, sobre o mundo indicado. Nesse caso, vamos ter uma experiência jornalística visível, mas limitada e pobre, a tentar encobrir uma experiência invisível rica em possibilidades, muitas delas, libertadoras. Do ponto de vista metodológico, aí está o lugar, na materialidade expressa, para mergulhar e perguntar: o que não vemos aqui? Sugerimos que essa é uma ação de perceber as torções das palavras e dos silêncios a produzir a invisibilização pelo dizer e mostrar. Relembremos Merleau-Ponty (1991, p. 350), convocou-nos para que enxerguemos nos textos das notícias na superfície visível aquilo que aparentemente estaria oculto, “o sangue, o corpo, a roupa íntima, o interior das casas e das vidas”. Quando propusemos subverter a pergunta clássica “O que vemos aqui?”, vinda da teoria dos frames, estávamos fazendo problema ao visível, a uma superfície que parece acordada dentro do jornalismo. Perguntar sobre o que não vemos faz pensar não somente nos reiterados silenciamentos, mas nas próprias configurações das narrativas visíveis, objetos das torções verbo-visuais. Nessas condições, os textos presentes são como potências para discutir a tensão visível/invisível. Neles, há desde um mantra verbo-visual que transforma estereótipos no verdadeiro até a presença de longos minutos de silêncio, às vezes, de difícil percepção, que conforma o visível e o invisível. Ou seja, assim como a CONSIDERAÇÕES FINAIS | 288 ausência não é o nada, muito ao contrário, a materialidade visível também não se constitui do todo dito e visto. Será a partir das narrativas sobre as ausências percebidas que poderemos experimentar a invisibilização. Se foi um desafio pensar o jornalismo como uma das experiências sociais, com todas as implicações que isso requer, e que nelas o invisível tem o mesmo peso que o visível para o regime de visibilização, as dificuldades se tornaram mais estimulantes aos refletirmos sobre a metodologia para lidar com a invisibilização no jornalismo. Como materializar o invisível? Qual o método? A resposta aqui é categórica: é impossível. Entretanto, essa questão não pode ser enfrentada de forma apressada e, por isso, propusemos dois caminhos entrecruzados para fugir da contradição fatal ao se imaginar o invisível concreto. O primeiro é considerar o movimento do invisível, e não o invisível propriamente dito, ou seja, o que enxergamos nos objetos é a ação, que é a invisibilização e, não, o invisível em si. Assim, acompanhamos o movimento, a torção das palavras e dos silêncios no regime de visibilização porque ela deixa vestígios, os quais consistem em texto e ganham nossa ação narrativa. Contar a invisibilização, dizer do caminho é fazer a experiência do invisível. O segundo caminho é considerar a metáfora como método e ação hermenêutica, conforme Carvalho (2016), isto é, dizer do invisível sem que ele perca sua condição. O invisível somente existe e tem sentido na metáfora, como metáfora. Neste trabalho, utilizamos o minuto de silêncio para pensar o invisível, um minuto repleto de sentidos e significações (não é um vazio), e que somente se realiza por meio da narrativa. Além de apresentar esses dois aspectos centrais para lidar com o invisível no regime de visibilização no jornalismo, de forma específica no debate metodológico, também optamos por considerar a articulação de três caminhos coerentes que nos ajudaram a compreender esse regime: ter em mãos o objeto visível, o todo visível do jornalismo, isto é, o conteúdo definido e, de posse dele, contrastar presenças e ausências ao longo do tempo; considerar que o visível deixa rastros – os objetos são compostos por múltiplas historicidades – que, submetidos ao olhar crítico da história, permitem-nos enxergar as opções políticas para o visível e, em especial, para o invisível; e mobilizar esses vestígios, reuni-los em coletânea, e perceber seus potenciais semióticos que permitem pensar sobre as camadas invisíveis e as propostas de visibilização no jornalismo. Envolvemos o visível na trama verbo-visual, a enxerga a visualidad, mirada e imagen (ABRIL, 2013). Este estudo tem claras limitações, e elas não devem ser entendidas como interdição de um processo reflexivo e potencialmente fecundo, em especial, sob dois aspectos: pensar o jornalismo como umas das experiências narrativas no mundo e sobre o CONSIDERAÇÕES FINAIS | 289 mundo; e considerar o invisível como um elemento político e presente nesse espaço de experiência. Isso implica desvencilhar-se de produtos, práticas e teorias sobre o jornalismo que gravitam somente nas materialidades e circundam nas visibilizações das superfícies. Além desses desafios, o trabalho agrega, talvez, a maior dificuldade: pensar nos caminhos metodológicos para melhor lidar com o jornalismo, a experiência e o invisível. Diante das reflexões teóricas e metodológicas sobre o jornalismo e a experiência do invisível, buscamos um fenômeno em que a tensão visível/invisível é medular: as identidades. O Outro, enquanto alteridade fabricada por nós é uma diferença que transita da visibilização que nos constitui como somos e, assim, afastamo-nos dela, até uma invisibilização como parte de uma luta para que nós não reconheçamos o Outro como uma semelhança entre nós. O jornalismo tem papel importante nas configurações identitárias e esse processo ocorre no regime de visibilização. Sobre as identidades, analisamos um caso concreto. Ao aproveitar que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) completou 20 anos de criada em 2016, investigamos como se deu o regime de visibilização dessa entidade em dois jornais brasileiros: a Folha de S.Paulo e O Globo. Essa ação, para fazer sentido à proposta de enxergar o visível e experimentar o invisível no jornalismo, exigiu conhecer o conteúdo visível em duas décadas de notícias e submeter esse corpus à análise crítica da história. Nesse ponto, foi fundamental refletir sobre a fabulação das identidades no Brasil, tendo em vista que estamos tratando de uma comunidade da qual somos parte, e seus membros têm relações constitutivas entre nós. Como estamos a lidar com dois atores privilegiados nesse regime de visibilização, O Globo e a Folha, que se apresentam à experiência jornalística, e também temos, diante de nós, uma discussão sobre comunidade, foi fundamental inserir em nosso percurso quem são esses que falam e quais suas histórias, como se relacionaram com as temáticas que envolvem a ideia de comunidade. Esse é um procedimento aparentemente teórico, mas que, na discussão sobre o regime de visibilização e o invisível, tornou-se uma exigência da metodologia. Da mesma forma, recorremos à história sobre a lusofonia e a CPLP para perceber as possibilidades dessa comunidade ser pensada como communitas, de acordo com Esposito (2012), considerando-se que o ambiente global contemporâneo está povoado por forças políticas immunitas. As análises realizadas nos encaminharam para os dois modos de invisibilização que já tínhamos apontado. No regime de visibilização em O Globo e na Folha existe a construção de uma invisibilização por ausência, por quase que completa inexistência de CONSIDERAÇÕES FINAIS | 290 registros sobre a comunidade lusófona em 20 anos da CPLP nas páginas dos jornais. Encontramos somente quatro pequenas notícias, em média, por ano, o que faz essa comunidade não existir, sendo engolida na avalanche cotidiana de informações publicadas. Ou seja, nessas condições é impossível que mesmo os leitores rigorosamente cotidianos dos dois jornais possam, por meio destes, produzirem algum tipo de lembrança sobre CPLP. Os 80 registros que encontramos na Folha e os 81 em O Globo são, ao mesmo tempo, o todo visível desse regime de visibilização e a própria materialização a denunciar a invisibilização. Esse pequeno volume de notícias em 20 anos denuncia mais a não noticiabilidade do que a noticiabilidade, mais o invisível do que o visível. Entretanto, percebemos que ao interrogar os rastros das notícias sobre a comunidade lusófona, vasculhar os textos verbo-visuais, emergiram vestígios sociossemióticos e históricos que ajudaram a responder à questão: “O que não vemos aqui?”. Em outras palavras, mobilizando os raros registros, pudemos indiciar o porquê de a comunidade lusófona no Brasil ter sido objeto da invisibilização nos dois jornais em duas décadas. No mesmo movimento, pudemos perceber como o visível configura o invisível, e vice-versa. As raras notícias visíveis revelaram uma invisibilização por presença, e esse é o outro modo da experiência do invisível. O Globo e a Folha não trataram a CPLP como comunidade, apenas como um bloco econômico pobre e problemático, em especial, por ser majoritariamente africano e negro. O não reconhecimento da CPLP no Brasil tem, a nosso ver, fundamentações históricas, identitárias, racistas e classistas. Quando o Brasil se aproximou dessa comunidade, os jornais o destacaram em uma condição de liderança, de comando, de superioridade, revelando uma postura neocolonial, em que os países africanos são tidos como meros ativos políticos que poderiam ser negociados no mercado internacional. Isso nos remete às peças, às levas de escravos, objetos de valor sendo vendidos nos mercados do Rio de Janeiro no Brasil Colônia. Aqui também relembramos da imagem do cartão de visita produzida por Militão de Azevedo (1879), em que aparecem o senhor e os seus escravos. O Outro é visível como moeda de troca a valorizar o senhor. Mesmo quando os jornais trataram as nações da África como “primos pobres”, tal marcação de parentesco servia somente para delimitar a diferença classista dos brasileiros, os “primos ricos”. Nos registros em O Globo e na Folha há, até mesmo antes da institucionalização da CPLP, a associação permanente e insistente entre pobreza, miséria, crimes, drogas, corrupção, ditadura e os países lusófonos da África e o Timor-Leste. Esses vínculos foram muito mais reforçados com a implantação, no Governo Lula, de uma política externa que CONSIDERAÇÕES FINAIS | 291 aproximava o Brasil dessa comunidade, sob alegação identitária e de dívida histórica para com África. Angolanos, cabo-verdianos, guineenses, guinéu-equatorianos, moçambicanos, são-tomenses e timorenses estão invisíveis nas notícias sobre o acordo ortográfico e na relação de compadrio empresarial entre Brasil e Portugal. Entretanto, eles ganham ampla visibilização nos poucos registros, com presença cativa nas páginas criminais de O Globo e da Folha, quando esses jornais se empenham na luta para impedir qualquer possibilidade de “livre circulação” no espaço lusófono, na verdade, no Brasil e em Portugal. A invisibilização por ausência e, também, a partir da presença de um visível repetido e insistente ao longo de 20 anos, possibilitou-nos perceber que o regime de visibilização dos jornais sobre essa comunidade propõe uma experiência jornalística do invisível. Esse processo vai da completa inexistência do Outro, com episódios de indiferença e de não reconhecimento, e que esteve atravessado em todo nosso percurso, até a tentativa de fixar uma profunda diferença intransponível entre nós e “o africano”, negro e pobre, criminoso nato, aquele que rejeito, combato e recorro à polícia se ele aproximar-se. Nessas condições, a experiência do invisível nesses jornais é uma ação de força contra a ideia da própria comunidade, de um lugar em que seus pares têm deveres e obrigações recíprocas. O Globo e a Folha cultivaram e reforçaram valores radicalmente immunitas, isto é, onde os membros da comunidade não se reconhecem, não aceitam deveres e nem partilhas, buscam uma imunidade de rejeição e de confronto. Essa proposta de experiência jornalística identitária de exclusão, diferença e controle sobre o Outro, no caso a CPLP, negra, pobre, africana, não deve ser tomada por surpresa. A Folha de S.Paulo e O Globo compõem um segmento empresarial no Brasil que se utiliza do jornalismo para o exercício de poder oferecer ao público uma experiência de mundo baseada em valores históricos, de um liberalismo arcaico capitalista, liberal e neoliberal, e que, cotidianamente, imprime os traços autoritários de nossa herança colonial a partir da lógica eurocêntrica, do dominador. Não foi sem sentido que trouxemos um capítulo com as histórias constitutivas desses dois maiores jornais do Brasil. A invisibilização da CPLP em O Globo e na Folha, agentes de referência para a elite nacional e internacional, não foi um lapso. Essa ausência reiterada é uma ação política, com fundamentos econômicos, identitários e racistas, e está amparada na história desses dois jornais. Essa herança colonial autoritária, baseada na relação de mando/obediência, de superior/inferior, de civilizado/primitivo, de branco/negro estava visível nas poucas notícias, no Outro a ser controlado e criminalizado, a exemplo do atrasado “caipira” e de CONSIDERAÇÕES FINAIS | 292 “mentalidade criolla”; dos africanos que querem ter os mesmos direitos que os portugueses têm no Brasil; da rota de tráfico de drogas que sai da África; do medo das doenças e, por isso, o uso de repelentes; do “Brasil, Portugal e as ex-colônias portuguesas na África”; do “português fraco”; entre outros exemplos de colonialidade, como diz Quijano (2009). Nas raras brechas que aparecem nas falas diretas, seja do presidente Lula, seja em algum registro na editoria de Cultura, onde se convoca a escravidão e dívida histórica do Brasil para com África, os jornais logo classificam as falas como de “tom emocional”, afetivo, de um passado distante, sem amparo no mundo contemporâneo e globalizado. Na medida em que os jornais propõem uma experiência narrativa que não reconhece a comunidade, aprisionando-a em camadas profundas e impedindo-a de fazer memória, eles manifestam o desejo de apagamento identitário da “mentalidade criolla”, uma opção racista e que tem endereço nos nossos vínculos com África. Não reconhecer, invisibilizar, repelir, combater o Outro que nos constitui é uma ação de força de atores políticos movida pelo medo de que nós nos enxerguemos no Outro e eles em nós. Colocar em permanente invisibilização, por ausência e por presença, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, guinéu-equatorianos, moçambicanos, são-tomenses, timorenses e até portugueses, como foi a proposta de experiência jornalística na Folha e em O Globo ao longo dos 20 anos da CPLP, é uma ação identitária que, a nosso ver, impede a ideia de comunidade. Mais ainda: essa é uma ação que busca, principalmente, apagar a possibilidade de que enxerguemos a nós mesmos, de que acertemos as nossas contas históricas, de que reconheçamos as nossas dívidas, não para com o Outro, oposto e distante de nós, mas para com um que habita desde sempre entre nós. A experiência do invisível talvez impeça que reconheçamos a nós mesmos, o quem somos. Por isso, no caso específico da CPLP, a invisibilização construída pelos jornais brasileiros não está em África e no Timor-Leste, mas em nós mesmos. REFERÊNCIAS ABRAMO, Cláudio. A regra do Jogo. São Paulo: Companhia da Letras, 1988. ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. ABRIL, Gonzalo. Análisis crítico de textos visuales: Mirar ló que nos mira. Editorial Síntesis, Madrid, 2007. ______. Cultura visual y espacio público-político. Cuadernos de Información y Communicación, vol. 15, p.21-36, 2010. ______. Tres dimensiones del texto y de la cultura visual. 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Paulo em que emergiram rastros para a invisibilização Nº DATA TÍTULO LOCAL 01 14/07/1996 FHC formaliza em Lisboa novo bloco Brasil, p. 6 02 18/07/1996 Brasil destina US$ 4 mi para a África Brasil, p. 5 03 15/07/1997 Africanos querem ter direitos iguais a portugueses no Brasil São Paulo, p. 4 04 19/06/1998 Combates se intensificam na Guiné-Bissau Mundo, p.15 05 13/04/1999 Presidente viaja para “revalorizar” Brasil, p. 6 06 06/11/1999 Cultura na África é garrafa do náufrago Ilustrada, p. 10 07 13/03/2000 Temos uma dívida com a África, diz Katia Matosso Brasil, p. 10 08 12/04/2000 Martinho busca sons d´além mar Ilustrada, p. 5 09 18/07/2000 Presidente perdoa dívida de Moçambique Brasil, p. 7 10 01/07/2001 Ex-marxista governa Moçambique à Delfin Mundo, p. 21 11 22/08/2001 “Moçambique” revela conflitos do país Ilustrada, p. 5 12 30/07/2002 Comunidade portuguesa firma acordos Mundo, p. 10 13 12/07/2003 Presidente propõe criação de bloco de países de língua portuguesa Brasil, p. 10 14 17/07/2003 Junta militar lidera golpe e toma o poder em São Tomé e Príncipe Mundo, p. 12 15 30/10/2003 Lula pedirá votos da África para conselho Brasil, p. 6 16 03/11/2003 Na África, Lula critica falta de ambição da Petrobrás Brasil, p. 4 17 04/11/2003 Lula anuncia “imposto zero” para produtos angolanos Brasil, p. 4 18 27/07/2004 Presidente é recebido ao som do funk carioca Brasil, p. 4 19 22/10/2004 Brasil dá primeiro passo para unificar a língua Cotidiano, p. 7 20 28/03/2005 Brasil exporta professor para o Timor Leste Cotidiano, p. 6 21 08/04/2007 Em turbulência, Timor elege presidente Mundo, p. 17 22 12/02/2008 Ramos-Horta é transferido em estado grave Mundo, p. 13 23 25/05/2008 Reforma ortográfica Editorial, p. 2 24 30/09/2008 Lula sanciona o novo acordo ortográfico Cotidiano, p. 1 25 11/01/2009 Países lusófonos da África não têm data para adotar acordo Cotidiano, p. 5 26 03/03/2009 Militares matam a tiros presidente da Guiné-Bissau Mundo, p. 17 27 05/07/2010 Lula se reúne com ditador africano para selar acordo Poder, p. 9 28 06/07/2010 Ditador respeita democracia e direitos humanos, diz Lula Poder, p. 10 29 14/04/2012 Exército sequestra premiê da Guiné-Bissau Mundo, p. 20 30 04/10/2013 Nobel da paz sobra engajamento do Brasil com lusófonos Mundo, p. 16 31 12/07/2014 Bloco lusófono incluirá ditadura africana Mundo, p. 14 305 APÊNDICE B Relação dos registros em O Globo em que emergiram rastros para a invisibilização Nº DATA TÍTULO LOCAL 01 14/04/1996 “Vamos tratar muito bem os brasileiros” O País, p. 12 02 09/07/1996 Mário Soares faz críticas ao Brasil e causa surpresa O Mundo, p. 26 03 16/07/1996 FH: brasileiro pensa como caipira O País, p. 3 04 17/07/1997 Países de língua portuguesa contra drogas O País, p.11 05 10/09/1997 Presidente de Portugal reafirma amizade com Brasil O País, p. 8 06 30/11/1997 José Aparecido diz que governos do Brasil e Portugal desprezam CPLP O País, p. 11 07 17/06/1998 Navios da Marinha portuguesa retiram outros 70 brasileiros de Guiné-Bissau O Mundo, p. 30 08 18/07/1998 Regras da CPLP mudarão português escrito no Brasil O País, p. 11 09 31/01/1999 Aparecido critica atuação do Brasil no caso Timor O Mundo, p. 11 10 06/09/1999 Anarquia no Timor O Mundo, p. 21 11 20/04/2000 “É preciso ver a história com outros olhos” O Mundo, p. 33 12 18/07/2000 FH prega união contra males da globalização O Mundo, p. 33 13 28/01/2001 “Na verdade, sempre estivemos abandonados” O Mundo, p. 44 14 30/07/2002 Acordo vai criar a cidadania lusófona O País, p. 12 15 06/08/2002 “Status especial para brasileiros” O Mundo, p. 30 16 18/07/2003 Brasil integrará missão a São Tomé e Príncipe O Mundo, p. 27 17 04/11/2003 Lula anuncia investimento do BNDES em Angola O País, p. 9 18 26/07/2004 Lula chega à África no papel de primo rico O País, p. 8 19 28/07/2004 Lula desfila em Rolls-Royce ao lado de ditador O País, p. 12 20 01/09/2007 Trava-Língua Prosa & Verso, p. 1 21 13/01/2008 Trampolim africano para droga na Europa O Mundo, p. 39 22 29/01/2008 “O Timor precisa de mais brasileiros” O Mundo, p. 32 23 12/02/2008 Estado de sítio em Timor O Mundo, p. 27 24 15/03/2008 Acordo precisa empolgar africanos Prosa & Verso, p. 2 25 27/07/2008 Universidade do Ceará vai formar africanos O País, p. 13 26 30/09/2008 Lula elogia padronização da língua O País, p. 13 27 03/03/2009 Presidente da Guiné-Bissau é assassinado O Mundo, p. 28 28 06/07/2010 “Negócio são negócios” O País, p. 10 29 06/07/2010 A política externa das más companhias Editorial, p. 6 30 06/11/2010 Laços culturais forjados com violência Prosa & Verso, p. 1-2 31 06/05/2014 “A questão da África está mal discutida” Página 2, p. 2 32 22/10/2015 Angola chamando Segundo Caderno, p. 1 306 APÊNDICE C Amostra de fichas com catalogação de rastros nas edições da Folha de S.Paulo DATA TÍTULO RASTROS NO CONTEÚDO 14/07/1996 FHC formaliza em Lisboa Novo bloco - FHC formaliza; - Mais um bloco internacional; - Unido pelo idioma; - Não chega a ser um bloco potente nem tem as ambições comerciais do Mercosul; - E a diplomacia brasileira sempre trabalhou com a tese de que o país não pode vincular-se preferencialmente a qualquer deles, mas tratar de ser um “global tarder” (literalmente, comerciante global). É claro, de toda forma, que fica implícita nessa configuração a ideia de buscar apoios para a candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; - Contar com o voto de cinco países africanos de língua portuguesa é sempre um ativo importante para a diplomacia brasileira, por pobres e fracos que sejam. 18/07/1996 Brasil destina US$ 4 mil para a África - O presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou ontem a ampliação dos programas de cooperação com países africanos de língua portuguesa; - Em contrapartida, o Brasil ganhou o endosso formal dos seus seis sócios da CPLP para a candidatura de uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas; 15/07/1997 Africanos querem ter direitos iguais aos portugueses no Brasil - Os países africanos de língua portuguesa querem que o Brasil estenda a eles o mesmo direito de livre circulação concedido aos portugueses, que podem visitar o país sem a necessidade de obter visto nos consulados; - A proposta foi recebida com reserva pelo governo brasileiro porque há casos de pessoas desses países presas no Brasil por tráfico de drogas. 19/06/1998 Combates se intensificam na Guiné- Bissau - Mané foi afastado sob acusação de contrabandear armas para guerrilheiros ligados a movimentos separatistas; - Denúncias por parte das autoridades senegalesas e francesas não conseguiram pôr fim ao tráfico de armas e ao envolvimento das autoridades militares guineenses; - Guiné-Bissau é membro da CPLP; - O Brasil é contra uma força de intervenção. 13/04/1999 Presidente viaja para ‘revalorizar’ – Timor será tema em Portugal - Trata-se da primeira excursão presidencial desde o colapso do real em janeiro, cujo efeito político mais perceptível, no plano internacional, foi o de ter provocado o que a revista britânica “The Economist” batizou de “desvalorização de uma Presidência”; - O segundo será no dia seguinte, já em Lisboa, com um grupo de empresários portugueses; - A visita a Portugal seria mais de compadrio, dado ao relacionamento histórico entre os dois países, não fosse o Timor Leste; 307 - Trata-se de uma ilha que pertenceu a Portugal até 1975, ano em que foi invadida pela Indonésia, que a mantém ocupada até hoje; - O Itamaraty também emitiu seu comunicado, na quinta-feira, para dizer que “considera que todas as partes envolvidas, inclusive a resistência timorense, devem abster-se de recorrer a atos de força”; - É o tipo de linguagem que tende a reforçar o desconforto dos timorenses com o que chamam de ‘dubiedade’ do Itamaray; - Mesmo antes de uma eventual independência, Xanana Gusmão já reivindica um lugar para o Timor Leste na CPLP, que reúne, além de Brasil e Portugal, as antigas colônias africanas de Portugal; - O motivo da viagem a Portugal, em todo caso, não é o Timor Leste ou a CPLP, mas a cúpula anual Brasil/Portugal. Não fosse pelo Timor, seria uma cúpula festiva, girando em torno dos festejos pelos 500 anos de descobrimento do Brasil. 06/11/1999 Cultura na África é garrafa do náufrago - (Entrevista/Mia Couto) - As línguas acompanham outros fenômenos que são mais determinantes, como as trocas comerciais e os espaços econômicos. Nós pertencemos a espaços do ponto de vista econômico, geográfico e político muito diferenciados. O Brasil não está preocupado com o sul da África. Isso não tem de ser visto como uma coisa dramática. Não temos de fazer a defesa desta comunidade como se isso fosse um objetivo em si mesmo. Vejo o problema de forma mais pragmática. 13/03/2000 Temos uma dívida com a África, diz Katia Matosso - (Entrevista/ Katia Matosso) - Temos um problema de identidade que se origina no momento de nossa separação de Portugal. Durante muito tempo a tendência dos historiadores e dos intelectuais foi jogar a culpa sobre o período colonial. Nossa personalidade tardaria a vir porque fomos colônia; - Esse problema de identidade só será resolvido quando começarmos a nos pensar não mais como colonizados, mas como parte do Império Português; - O Brasil desempenhou um papel extremamente importante nesse império, precisamente após o século 17. Não era um apêndice de Portugal. - O Brasil, desde o princípio do século 17, mantinha relações diretas com a África no comércio de escravos. O tráfico realizado por Portugal só existiu no começo. 12/04/2000 Martinho busca sons d´além mar - Mesmo buscando parceiros em terras distantes, Martinho diz que “Lusofonia” não é um trabalho à parte em sua discografia. - “Ainda que o Brasil seja um país negro, os artistas dos países africanos que falam português são mais populares na Europa”, diz Martinho da Vila. 18/07/2000 Presidente perdoa dívida de Moçambique - O presidente Fernando Henrique Cardoso perdoou 95% da dívida externa de Moçambique; - A ação de FHC resultará no impacto de US$ 450 milhões na dívida interna brasileira; - FHC incorporou o papel de líder do bloco formado por sete países e anunciou o repasse de US$ 1,5 bilhão para várias ações 308 no continente africano; - De uma vez só, FHC mandou recados para dissidentes políticos de Angola, cobrou união do grupo para enfrentar os efeitos da globalização, estabeleceu prioridades para o desenvolvimento comum, distribuiu verbas para o treinamento de pessoal e disponibilizou tecnologia para o tratamento de Aids; - O discurso do presidente foi voltado principalmente para os “primos pobres” africanos; - A comitiva brasileira é a maior na reunião. Se desloca em 15 carros, sendo algumas vans, enquanto as demais usam no máximo seis veículos. Os seguranças brasileiros são os mais ostensivos, mantendo FHC isolado todo o tempo dos jornalistas. 309 APÊNDICE D Amostra de fichas com catalogação de rastros nas edições em O Globo DATA TÍTULO RASTROS NO CONTEÚDO 14/04/1996 “Vamos tratar muito bem os brasileiros” - O primeiro-ministro de Portugal (António Guterres), que chega hoje ao Brasil, quer virar uma página negra nas relações entre os dois países; - A CPLP vai abrir as portas da Europa para o Brasil e as do Mercosul para Portugal? - as empresas brasileiras terão muito mais facilidade para se instalarem no mercado europeu se usarem Portugal como plataforma de lançamento; - a força da presença do Brasil no mundo é motivo de orgulho para os portugueses que tiveram alguma coisa a ver com isso no passado e que, de alguma forma, participam dessas realidades; 09/07/1996 Mário Soares faz críticas ao Brasil e causa surpresa - Mário Soares afirmou ontem que o Brasil não pode ignorar a invasão pela Indonésia do Timor Leste, ex-colônia portuguesa; - afirmou que o Brasil não deve sobrepor os interesses econômicos aos direitos humanos quando negocia com a Indonésia; - É compreensível que o Brasil queira vender seus produtos para a Indonésia, mas a sociedade civil brasileira tem que pressionar mais contra a invasão do Timor – disse Mário Soares; 16/07/1997 FH: brasileiro pensa como caipira - (jornal) A rejeição que os brasileiros têm à globalização da economia é resultado da falta de informação e também da mentalidade caipira e provinciana; - (FHC) Como vivi fora do Brasil durante muitos anos, vivi na Europa, na América Latina, no Chile, na Argentina, me dei conta disso; - São caipiras (os brasileiros) que desconhecem o outro lado e, quando conhecem, encantam-se; - Sem dúvida nenhuma, é uma variante da mentalidade criolla – afirmou Fernando Henrique. 17/07/1997 Países de língua portuguesa contra drogas - O Brasil e os demais países de língua portuguesa vão combater conjuntamente o narcotráfico; - Um assessor do Itamaraty explicou que a preocupação do Governo brasileiro em formalizar um acordo multilateral contra as drogas tem como alvo a rota do tráfico do Brasil para África, de onde as redes de traficantes alcançam a Europa e os EUA; 10/09/1997 Presidente de Portugal reafirma amizade com Brasil - O presidente de Portugal Jorge Sampaio vê no Brasil vontade política de apressar a criação de uma comunidade econômica dos países de língua portuguesa; - Sampaio lembrou, em discurso na Federação da Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp) que a integração poderá facilitar o acesso de empresas brasileiras à países da União Europeia. 310 30/11/1997 José Aparecido diz que governos do Brasil e Portugal desprezam CPLP - A partir de agora, alfinetou o embaixador, a comunidade ficará completamente entregue aos chanceleres Jaime Gama, de Portugal, e Luiz Felipe Lampreia, do Brasil, responsáveis pela desclassificação da proposta no contexto das políticas externas dos dois países; - Nem Gama nem Lampreia vêem a CPLP como prioridade; - Considerado pelos analistas políticos do país como uma figura com luz própria e membro histórico do Partido Socialista, o ex- secretário dos Negócios Estrangeiros vinha, desde o início do governo do primeiro-ministro António Guterres, em 95, se chocando com o chanceler Gama, a quem era subordinado. Um dos motivos do conflito era exatamente a CPLP e a atenção que Lamego dava aos países africanos de língua portuguesa; - O embaixador ainda criticou o Governo brasileiro, lembrando que se a língua portuguesa não fosse falava por 165 milhões de brasileiros seria um mero dialeto na Europa; - O Brasil despreza uma proposta que deveria ser tocada com empenho. 17/06/1998 Navios da Marinha portuguesa retiram outros 70 brasileiros de Guiné- Bissau - Embaixada brasileira na capital está fechada e não há notícias sobre o embaixador; - Temos armas para acabar com a guerra rapidamente, com mísseis, ameaçou ele, insistindo na saída do presidente João Bernardo Vieira, acusado de corrupção e tráfico de armas; - O premiê português, António Guterres, pediu uma reunião do conselho da CPLP para discutir o conflito. 18/07/1998 Regras da CPLP mudarão português escrito no Brasil - Depois de oito anos de discussão, as semelhanças e diferenças da língua portuguesa falada e escrita dos dois lados do Atlântico foram oficializadas ontem, na reunião dos chefes de Estado da CPLP; - O novo acordo ortográfico entrará em vigor assim que o Governo de Cabo Verde oficializar sua adesão junto ao Parlamento Português – explicou o secretário da Embaixada do Brasil em Lisboa; - Com as guerras que eventualmente ocorrem em Angola, São Tomé e Guiné-Bissau, as negociações vinham sendo adiadas. 31/01/1999 Aparecido critica atuação do Brasil no caso Timor - Embaixador diz que política para países lusófonos é vacilante e afirma que Portugal é mais ativo; - Aparecido acusa o chanceler Luiz Felipe Lampreia de desenvolver uma política externa sem ritmo e vacilante em relação não só ao Timor, mas também aos países de língua portuguesa da África; - Segundo o criador da CPLP, Portugal é muito mais ativo que o Brasil nessa área; - Enquanto o chanceler brasileiro fazia mediação de telediplomacia, o ministro de Negócios Estrangeiros de Portugal foi a zona de conflito em Guiné-Bissau; - Aparecido ressalta que a presença brasileira na África de expressão portuguesa não deve apenas ser decorrência de uma colonização comum, mas também uma exigência política de maior integração na área do Atlântico Sul.