UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE EDUCAÇÃO OS SIGNIFICADOS DA ALFABETIZAÇÃO E DO LETRAMENTO PARA ADULTOS ALFABETIZADOS DISSERTAÇÃO Iara Silva Lúcio Belo Horizonte, 2007 Iara Silva Lúcio OS SIGNIFICADOS DA ALFABETIZAÇÃO E DO LETRAMENTO PARA ADULTOS ALFABETIZADOS Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Dra. Francisca Izabel Pereira Maciel Belo Horizonte Faculdade de Educação da UFMG 2007 Dissertação Intitulada Os significados da Alfabetização e do letramento para adultos alfabetizados, de autoria da mestranda Iara Silva Lúcio, a ser argüida pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: Prof. Dra. Francisca Izabel Pereira Maciel – Orientadora Prof. Dra. Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca – FaE/UFMG Prof. Dra. Leiva de Figueiredo Viana Leal – UNINCOR/EDUCATIVA Prof. Dra. Maria Lúcia Castanheira – FaE/UFMG (suplente) Prof. Dra. Delaine Cafiero Bicalho – FALE/UFMG (suplente) Prof. Dr. Oto Neri Borges Coordenador do programa de Pós-Graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social Belo Horizonte, 3 de setembro de 2007 À minha família, que lutou para que eu vencesse na vida; em especial, às minhas tias Isabel Lúcia e Maria Reis, a quem devo a persistência e a coragem de seguir em frente. AGRADECIMENTOS Há pessoas em nossas vidas que nos deixam felizes pelo simples fato de terem cruzado o nosso caminho. Simplesmente porque cada pessoa que passa em nossa vida é única, sempre deixa um pouco de si e leva um pouco de nós. Portanto, é com alegria que agradeço a todas elas que me deram o privilégio de conhecê-las, ao longo de minha trajetória acadêmica. À minha orientadora Francisca Izabel Pereira Maciel, com quem, nesse percurso, pude contar e a quem passei a admirar ainda mais. À Gladys Rocha, amiga com quem aprendi muito ao longo desses anos e pude adquirir cada vez mais experiência e amadurecimento. Meus sinceros agradecimentos ao Ceale, que me acolheu nesses dez anos e que me proporcionou um crescimento intelectual. A todos que compõem o Ceale, que sempre propiciaram um ambiente de trabalho favorável e facilitador à minha jornada. À professora Maria de Lourdes Dionízio, pelas preciosas reflexões sobre o meu trabalho e pelas sugestões de leituras. Há várias pessoas a quem eu gostaria de dedicar especial atenção pela importância que representaram: Meus agradecimentos à minha irmã Patrícia Lúcio pela tradução dos textos de língua inglesa. À grande amiga Gesiela Lacerda, sempre presente nos momentos alegres e difíceis, e de quem sempre guardarei profundo carinho e respeito. À querida Amanda Elisiário, que sempre compartilhou entusiasticamente dessa minha trajetória. À Kátia Gardênia, colega de orientações no mestrado, pessoa convicta, delicada e sensível, que passei a respeitar e a admirar. À colega de mestrado Margarete Miranda, uma pessoa de visão, entusiasta e motivadora. À equipe de monitores-professores do Proef-1, um grupo que é exemplo de trabalho, com alegria e dedicação. Aos amigos e colegas de trabalho da Escola Municipal Professor Amílcar Martins, em especial, Sérgio, Rosimeire, Lúcia, Zé Antônio e Mary, exemplos de pessoas com uma forma toda especial de ser e incentivar, mesmo distantes. Aos amigos e colegas da Escola Municipal Vereador Jésu Milton dos Santos, que me apoiaram durante todo o período em que cursei o mestrado, em especial, Dalva, Léia e Maria Ferreira. Aos colegas de mestrado, que compartilharam comigo o sonho de me tornar pesquisadora. À Lúcia Helena Junqueira, pelo profissionalismo e pela competência no processo de revisão textual da minha dissertação. À Faculdade de Educação e a seus Professores, responsáveis pela minha formação. Meus agradecimentos especiais aos participantes da pesquisa, meus ex-alunos do Proef-1, que me proporcionaram a felicidade de conhecê-los fora do contexto da sala de aula. Das Utopias Se as coisas são inatingíveis... ora! não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas! Mário Quintana SUMÁRIO RELAÇÃO DE FIGURAS -------------------------------------------------------------------- 9 RESUMO ---------------------------------------------------------------------------------------- 10 ABSTRACT ------------------------------------------------------------------------------------ 11 INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------- 12 - 27 CAPÍTULO 1 A CONSTITUIÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NA UFMG: O PROJETO DE ENSINO FUNDAMENTAL DE JOVENS E ADULTOS 1º SEGMENTO – PROEF-1 ---------------------------------------------------------- 28 - 43 CAPÍTULO 2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS --------------------- 44 - 79 2.1 A abordagem etnográfica na pesquisa educacional ---------------------- 44 - 50 2.2 Os participantes da pesquisa e o processo de coleta de dados ------- 50 - 63 2.3 Contribuições da Análise da Conversação (AC) para o processo de transcrição das entrevistas ----------------------------------------------------------- 64 - 70 2.4 A identificação de falantes nas transcrições -------------------------------- 71 - 74 2.5 Em busca de normas para transcrição --------------------------------------- 74 - 75 2.6 Concepções de discurso e o processo de análise dos dados ---------- 76 - 79 CAPÍTULO 3 TRAJETÓRIAS DE VIDA DE ADULTOS ALFABETIZADOS: LEMBRANÇAS DE UM PASSADO COM RARAS OPORTUNIDADES DE USO DA LINGUAGEM ESCRITA ------------------------------------------------------------- 80 - 153 3.1 Memória e os processos de produção da lembrança --------------------- 80 - 85 3.2 Memória e oralidade: a produção sócio-histórica de sentidos ---------- 85 - 89 3.3 A inserção no mundo da escrita – momentos distintos de interação com o objeto escrito: a infância, a adolescência e a vida adulta ------------------- 89 - 129 3.4 “Cego também anda, cego também enxerga”: visões de adultos alfabetizados sobre o analfabetismo ------------------------------------------- 129 - 153 CAPÍTULO 4 ANALFABETISMO VERSUS ALFABETISMO: OS LUGARES DE CONTRUÇÃO DO SUJEITO LETRADO -------------------------------------- 154 - 194 4.1 As relações estabelecidas entre o analfabeto e o alfabetizado: refletindo sobre os conceitos de proximate illiterate e isolated illiterate ------------ 154 - 171 4.2 Leitura e escrita: atividades socialmente situadas e circunscritas nas interações dos participantes com e no mundo ------------------------------- 171 - 194 CAPÍTULO 5 A EXPERIÊNCIA DA REESCOLARIZAÇÃO NO PROEF-1 ------------- 195 - 241 5.1 Concepções de alfabetização de adultos circunscritas na história do Proef- 1: o discurso oficial e o discurso dos egressos ------------------------------ 195 - 217 5.2 A apropriação da linguagem escrita: os significados da alfabetização e do letramento dos egressos do Proef-1 -------------------------------------------- 217 - 241 CONSIDERAÇÕES FINAIS ------------------------------------------------------ 242 - 248 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ------------------------------------------- 249 - 257 ANEXO ----------------------------------------------------------------------------------------- 258 RELAÇÃO DE FIGURAS Figura 1 – Livro de reza de José ------------------------------------------------------- 177 Figura 2 – A oração intitulada "À Santa Chaga da mão direita" está localizada na parte superior direita do livreto ------------------------------------------------------ 178 Figura 3 – Manuais de legislação de trânsito: alguns dos materiais impressos identificados na sala de Alberto, no trabalho ----------------------------------------- 180 Figura 4 – Jornal popular “Aqui” - O baixo custo do jornal e o destaque dado ao esporte são alguns dos motivos que levam Alberto a adquiri-lo ---------------- 220 Figura 5 – Folhas de aposta, comprovantes de jogos lotéricos e anotações de números encontrados no local de trabalho de Alberto----------------------------- 221 10 RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo discutir a interrupção do processo de escolarização na EJA, a partir da análise das expectativas e dos significados de alunos egressos de um projeto de Educação de Jovens e Adultos em relação à alfabetização e ao letramento. Buscamos analisar a visão dos participantes sobre o analfabetismo, focalizando as representações do significado de ser analfabeto num grande centro urbano e observando a aquisição das habilidades de leitura e de escrita como condicionantes para a interrupção do processo de escolarização. O desenvolvimento desse estudo implicou a utilização de alguns instrumentos de pesquisa, do tipo etnográfico, possibilitando o levantamento de um grande volume de dados, cuja análise permitiu não apenas a apreensão das percepções dos participantes sobre o que é ser analfabeto/alfabetizado, mas também a reflexão sobre os efeitos da alfabetização, ou seja, as implicações da aquisição da língua escrita em suas vidas e nas vidas de pessoas com as quais convivem. Percebeu-se, neste trabalho, que os participantes compartilham o desejo de aprender a ler e a escrever para lidar com as questões do cotidiano de maneira autônoma. Dessa forma, sua inserção num espaço formal de aprendizagem da palavra escrita, em momentos distintos de suas vidas, significou uma maneira de participar de eventos e práticas de letramento, mesmo que fosse necessária a ajuda dos outros. Acreditamos que cada participante deixou o projeto de EJA porque, do seu ponto de vista, houve uma “conclusão” de um processo, ou seja, os sujeitos admitiram deter um estatuto de sujeito letrado. Nossa pesquisa pretende, dentre seus desafios, refletir sobre a importância de oferecer oportunidades educacionais para que os adultos possam desenvolver o letramento, num contexto marcado por um grande número de iniciativas voltadas para EJA. Assim, para que essas oportunidades se concretizem, é necessário, primeiramente, conhecer as reais demandas que os adultos analfabetos e recém-alfabetizados têm em relação à aquisição da escrita, bem como compreender como eles se percebem como sujeitos da EJA. Palavras-chave: Alfabetização. Práticas de leitura e de escrita. Educação de Jovens e Adultos. Evasão escolar. 11 ABSTRACT This research had as objective to discuss the interruption of the schooling process at EJA analysing the expectations and understanding that egress students of the Education for Young and Adults project have in terms of literacy. We analyzed the participants view of illiteracy with a focus on the representations of the understanding of being illiterate in a major urban area and further analyzed the acquisition of reading and writing skills as condition of the interruption of the schooling process. This study required the adoption of ethnographic survey instruments that allowed a large volume of data to be assessed and from its analysis the study could investigate participants´ perception of what is to be illiterate / literate, but above all, to reflect about the effects of literacy namely, the implications of the acquisition of the writing language in theirs own lives and in the lives of the people associated with them. There was the understanding that the participants shared the desire of learning to read and to write in order to deal with daily life independently and the inclusion of a formal learning of the writing word in different times of theirs lives meant an ability to participate in events and practices of literacy without the need of help from others. We believe that each participant left the EJA project because, from their point of view, there was a “conclusion” of a process, in other words, the subjects had established that from that moment they had become literate subjects. One of the big challenge that the research imposes is to offer – in a highlited context for a great number of initiatives directed to EJA – educational opportunities to develop adults literacy. And to offer the opportunities, firstly, is necessary to know the real demands of illiterate adults and newly-literate ones have in relation to the acquisition of the writing ability in addition to understanding how they perceive themselves as EJA subjects. Key-words: Literacy. Reading and Writing Practices. Education of Young and Adults. Schooling Evasion. 12 INTRODUÇÃO A presente pesquisa está relacionada ao contexto de minhas experiências com a Educação de Jovens e Adultos (EJA), vivências essas ligadas às atividades de ensino e de extensão exercidas durante e após a graduação em Pedagogia, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No momento, exerço a função de alfabetizadora de jovens e adultos na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte e atuo como pedagoga, coordenando uma equipe de professores do 2º e 3º Ciclos do Ensino Fundamental, na Rede Municipal de Ensino de Contagem. A inserção, desde o ano de 2003, nessas duas redes de ensino tem-me possibilitado interagir com públicos diferenciados e assumir papéis distintos ora como docente, ora como supervisora. Considero que esse transitar “dentro” e “fora” da sala de aula me permite a interlocução e a troca de experiências entre diferentes atores sociais, e a reflexão sobre a prática pedagógica: estar “dentro” representa ser professora no sentido estrito da palavra, que assume práticas e posturas diferentes da então coordenadora, que vê o processo de ensino-aprendizagem com um olhar “de fora”. Das ações que orientam a minha prática, considero que as relacionadas à docência se configuram como as que mais me inquietam, uma vez que o contato direto com os alunos, a percepção de suas dificuldades e necessidades têm-me despertado o desejo de encontrar soluções para os problemas do cotidiano da sala de aula. Em 1995, justamente quando ingressei na Faculdade de Educação da UFMG, minha primeira experiência foi como professora numa escola pública estadual do ensino noturno, quando então, ainda estudante universitária, iniciava o processo de compreensão das dimensões e contradições da educação, sobretudo do ensino dirigido aos sujeitos fora da faixa etária regular. O contato com os estudantes da escola noturna influenciou a minha inserção na atividade de extensão na Universidade, pois foi a partir das dúvidas e das dificuldades enfrentadas na sala de aula que percebi a importância de buscar um espaço de interlocução que me possibilitasse a reflexão de minha prática educativa. Assim, as minhas inquietações me conduziram ao Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos da Universidade Federal de Minas Gerais 13 (PAJA). Por meio de um processo seletivo, ingressei no PAJA no ano de 1997, quando então passei a atuar como monitora-professora numa turma de alfabetização. O ingresso no PAJA se configurou como um marco na minha formação, já que pela primeira vez assumi a tarefa de alfabetizar. Em 1999, o PAJA sofreu mudanças na sua estrutura organizacional e pedagógica, passando a ser denominado Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos – 1° segmento (Proef-1). Nesse contexto, após novo processo seletivo, continuei atuando na alfabetização, até o ano de 2001. O encerramento da bolsa de monitoria, entretanto, não significou a perda do vínculo com o Proef-1, uma vez que continuei participando das atividades no projeto, inicialmente como voluntária e, posteriormente, na coordenação da área Alfabetização, Leitura e Escrita. O trabalho na coordenação foi bastante rico, já que tive a oportunidade de repassar aos novos monitores-professores a experiência da alfabetização, de refletir, agora com o olhar de fora da sala de aula, sobre as necessidades dos alunos da EJA e de propor novas estratégias de trabalho, visando atender aos seus interesses. A participação na atividade de extensão na UFMG não se limitou à atividade de monitoria no Proef-1. No ano de 2000, tive a oportunidade de atuar no Programa Alfabetização Solidária (PAS) como coordenadora setorial. Durante dois anos, acompanhei o trabalho desenvolvido por alfabetizadores de jovens e adultos do município de Ladainha/MG, coordenando reuniões mensais e visitando turmas de alfabetização localizadas na zona rural. No PAS conheci uma realidade diferente da vivenciada no Proef-1, pois até aquele momento, a referência em EJA se restringia ao contato com alunos jovens e adultos, inseridos num grande centro urbano, público este diferente daquele inserido num contexto rural. Compreendi que um dos grandes desafios no ensino de EJA é reconhecer as especificidades do público atendido e ampliar o conceito de jovem e adulto para além da delimitação da faixa etária. Também percebi que a realidade na qual vive o sujeito adulto é uma importante faceta que compõe o perfil do aluno; compreender, pois, essa particularidade é fundamental para garantir um ensino que atenda as suas necessidades. Oliveira (2001), ao discutir as particularidades dos jovens e adultos em processo de reescolarização, afirma que não se pode categorizar todos os jovens e adultos num grupo homogêneo, tomando apenas como critério a 14 idade, ou seja, considerando-os apenas na condição de “não-crianças”. Isso porque não é qualquer jovem ou adulto que está reingressando no processo educativo; trata-se de sujeitos que tiveram negado o acesso à escola ou que dela foram excluídos. Além do mais, esses sujeitos também possuem especificidade cultural. Essa especificidade, porém, não se enquadra no modelo abstrato de adulto esperado pela escola, correspondente “ao estudante universitário, o profissional qualificado que freqüenta cursos de formação continuada ou de especialização, ou a pessoa adulta interessada em aperfeiçoar seus conhecimentos em áreas como, por exemplo, artes, línguas estrangeiras ou música”; nem no modelo de jovem, “aquele com uma história de escolaridade regular, o vestibulando ou o aluno de cursos extracurriculares em busca de enriquecimento pessoal” (p.15-16). É necessário pensar historicamente quem são os sujeitos que ingressam na EJA; quais são suas expectativas diante do retorno à escola; que conhecimentos têm a respeito do “mundo externo, sobre si mesmo e sobre as outras pessoas”, para não correr o risco de defini-los por aquilo que não são e, em nome de uma educação igualitária, acabar oferecendo um ensino homogêneo que valorize determinado grupo cultural. É por entender que não se pode generalizar o público jovem e adulto dada a sua especificidade — mesmo porque, como afirma Oliveira (2001, p. 15), os termos “jovem” e “adulto” delimitam um determinado grupo de pessoas que guarda em seu interior uma diversidade de grupos culturais da sociedade contemporânea — que a pesquisa em questão focaliza sujeitos adultos recém- alfabetizados, inseridos em um grande centro urbano. O contato com a realidade educacional urbana e rural, portanto, me fez repensar as minhas práticas de ensino e perceber a importância de produzir materiais didáticos diferenciados que contemplem as necessidades dos diferentes grupos sociais inseridos na EJA e no desafio de produzir materiais que levem em consideração as práticas sociais de letramento. À medida que minha experiência, tanto no Proef-1 quanto no PAS, foi sendo ampliada, ingressei na área da formação docente. A participação em cursos de capacitação de alfabetizadores de Jovens e Adultos do PAS e a coordenação de área Alfabetização, Leitura e Escrita no Proef-1 e, atualmente, 15 a Subcoordenação do referido projeto ampliou minha visão sobre a EJA para além das práticas em sala de aula e fez-me perceber a importância de uma formação específica e de qualidade para o alfabetizador, uma vez que, como diz Rocha (2004), a prática da alfabetização deve ser pensada para além de uma ação assumida por aqueles munidos apenas de boa vontade e de interesse no ensino da leitura e da escrita. Finalmente destaco a relevância para a minha formação a experiência que adquiri no Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (Ceale), órgão no qual o Proef-1 está alocado e a partir do qual se significa. O contato com o Ceale, iniciado em 1997, permitiu-me (e ainda tem-me permitido) a inserção numa gama de possibilidades de atuação na área da alfabetização e, atualmente, vem oportunizando o contato com a pesquisa. Foi a partir das inquietações e dúvidas do trabalho com a alfabetização de jovens e adultos no Proef-1 que me encaminhei na pesquisa acadêmica e pude construir, durante o mestrado, algumas reflexões que hoje estão descritas neste trabalho. Cabe, ainda, destacar a importância do trabalho coletivo como condição fundamental para a execução das atividades exercidas no Ceale; por meio da cooperação e da troca de experiências, tenho construído estratégias que visam superar os problemas que surgem no percurso de minhas práticas. * * * A temática da Educação de Jovens e Adultos vem ganhando cada vez mais espaço nas pesquisas sobre educação no Brasil. Nos últimos anos, observou-se um crescimento do número de estudos que se propõem a compreender as dimensões desse campo. Muitas das pesquisas na área de EJA debruçam-se sobre diferentes enfoques, tais como políticas públicas de Educação de Jovens e Adultos: Haddad (1991), Di Pierro (2000); alfabetização e letramento: Ribeiro (2004, 2001), Durante (1998), Oliveira (1992); formação de professores: Hernandez (1991), Leal e Albuquerque (2004, 2005); educação matemática: Fonseca (2001, 2002, 2002a). Entretanto, de acordo com Haddad 16 (2002), apesar do aumento do número de teses e dissertações em EJA1, bem como a ampliação da produção de artigos e documentos que tratam dessa modalidade de ensino, há campos pouco ou mesmo ainda não explorados. Dentre os diferentes enfoques dados à EJA, o tema da evasão despertou o nosso interesse por se constituir num problema que se mostra ainda mais expressivo no âmbito da Educação de Jovens e Adultos. De acordo com Haddad (2002), até o ano de 1998, foram notificados apenas três estudos que abordam as visões dos alunos da EJA sobre a evasão. Silva (1987), em seu estudo intitulado Interpretação qualitativa da evasão no contexto escolar: o caso do Centro de Estudos Supletivos de Vitória, aponta críticas à instrução individualizada como método único para EJA. Comerlato (1994), na obra Os trajetos do imaginário e a alfabetização de adultos, discute a alfabetização por meio do imaginário do aluno, procurando desvendar os motivos da evasão e os fatores que impossibilitam a aprendizagem. Por último, Foltran (1993) analisa o fenômeno da evasão/abandono escolar, sob a ótica do aluno adulto, na pesquisa Voltando aos bancos escolares: um estudo da questão com os alunos do grupo de alfabetização de adultos do Balneário de Camboriú. Também consta em Haddad (2002) uma pesquisa desenvolvida por Ragonesi (1990), classificada como um estudo no âmbito das políticas públicas de escolarização de jovens e adultos em diferentes níveis de governo e que apresenta contribuições para a compreensão da temática do abandono escolar. A autora analisa o fenômeno da evasão do ponto de vista político e levanta algumas questões visando a uma reflexão mais ampla sobre os possíveis caminhos que possam levar a EJA a se constituir em um instrumento de democratização social e educacional. O levantamento de teses e dissertações2 defendidas posteriormente ao estudo de Haddad (2002) possibilitou-nos identificar outros estudos que abordam a questão da evasão/abandono na EJA. No entanto, a maioria desses 1 A pesquisa do tipo “Estado da arte”, coordenada por Haddad, engloba a produção acadêmica discente em EJA de programas nacionais de pós-graduação em educação expressas exclusivamente em teses e dissertações no período de 1986-1998. Dos 1.300 títulos levantados, 183 pesquisas compuseram o corpo do estado da arte, sendo 166 dissertações e 17 teses. 2 O levantamento das teses e dissertações que abordam a temática da evasão na EJA foi realizado entre os dias 03 e 04 de outubro de 2005 através dos sites www.capes.gov.br e www.acaoeducativa.org.br. O número de ocorrências totalizou 21 trabalhos, sendo 18 dissertações de mestrado e apenas 03 teses de doutorado. 17 trabalhos oferece um tratamento de certo modo periférico a essa temática, cuja discussão, na maioria das vezes, torna-se complementar aos diferentes debates propostos3. Assim, o estudo dos processos de ensino e de aprendizagem na EJA (Oliveira, 2000), a pesquisa sobre as dificuldades cognitivas e afetivas da leitura e a formação do leitor (Silva, 2003) e a análise das percepções dos jovens e adultos analfabetos sobre o aprendizado da leitura e da escrita (Silva, 2002) configuram-se em estudos em que a evasão é uma das facetas que compõem um corpo de discussões mais amplas. Dentre os autores que colocaram a questão da evasão na EJA como principal foco de discussão, destacamos as pesquisas de Brito Filho (2001) e de Fonseca (1996)4. O estudo de Brito Filho (2001) tem como tema central o ensino noturno na escola pública de Educação Básica e as condições sociais e econômicas que influenciam no processo de evasão escolar, repetência e, conseqüentemente, no fracasso dos jovens e adultos trabalhadores. O autor busca analisar as representações sociais dos professores e dos alunos sobre a escola noturna e os fatores condicionantes que geram o fracasso escolar. Suas reflexões centram-se nos problemas do ensino público brasileiro dirigido aos alunos-trabalhadores e oferecem subsídios para a compreensão das condições sociais e suas influências no fracasso da escola, especialmente no ensino noturno. 3 A seleção das pesquisas se deu a partir da leitura dos respectivos resumos. Foram selecionados os estudos que tratam diretamente do tema da evasão e aqueles que, de uma forma mais sintética, colocam o objeto em questão em pauta, sugerem uma reflexão sobre o tema sem, no entanto, colocá-lo como principal eixo de debate. Os trabalhos que apenas fizeram referência à evasão e, portanto, não se propuseram a analisar o fenômeno não foram selecionados. Assim, dos 21 estudos levantados, apenas seis dissertações de mestrado compuseram o recorte de pesquisas selecionadas. Seguem os estudos em questão: BRITO FILHO, Galdino Toscano de (2001). Ensino noturno: influência das condições sociais no fracasso escolar. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; FONSECA, Fábio do nascimento (1996). Fatores determinantes da evasão numa experiência de educação de adultos trabalhadores: um estudo de caso. Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa; OLIVEIRA, Andréa Roberta de (2000). Educação de jovens e adultos: um estudo sobre o processo de ensino e aprendizagem. Universidade Federal de São Carlos; SILVA, Danilson Alves da (2003). Literatura e educação: como o aluno adulto descobre a literatura? Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; SILVA, Aparecida Borges dos Santos (2002). Educandos e educadora no Projeto Sim: A luta por escolarização no difícil cotidiano vivido. Universidade Metodista de São Paulo; RENEUDE DE SÁ, Maria (2002). Conhecimento letrado e escolarização: A visão de camponeses assentados da reforma agrária em Alagoas. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 4 O estudo de FONSECA (1996), apesar de ter sido produzido dentro do período em que foi realizada a pesquisa de HADDAD (2002), não fez parte do corpo de trabalhos analisados pelo autor. Diante da relevância de seu estudo, optou-se pela sua inclusão no levantamento. 18 Já Fonseca (1996) focaliza os fatores determinantes da evasão numa experiência educativa realizada com jovens e adultos trabalhadores da indústria da construção civil na cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba. Ao caracterizar o universo da indústria da construção civil e a sua força de trabalho, Fonseca procura identificar os significados da escola para os operários-alunos. A realidade concreta da escola e os limites estipulados à prática educativa no canteiro de obras configuram-se, segundo o autor, como um dos fatores determinantes da evasão. As análises das pesquisas levantadas revelaram que grande parte dos estudos que focalizaram o problema da evasão/abandono escolar na EJA se atém aos problemas vivenciados pelo sujeito que vive o processo de retomada dos estudos. Observa-se que, por se tratar de sujeitos trabalhadores, subempregados ou mesmo desempregados, conseqüentemente, é estabelecida uma estrita relação entre as dificuldades inerentes à própria existência do sujeito adulto e à sua saída da escola: problemas ligados à dificuldade de conciliar trabalho e estudo; o cansaço em decorrência da dupla jornada trabalho-escola, que é estendida para o período noturno, e a migração, sendo que, neste último, há uma relação estrita com a questão do trabalho, em que muitos necessitam deslocar para outras regiões diante da oportunidade de empregos temporários. Juntam-se a esses fatores os problemas de saúde, familiares bem como as dificuldades financeiras. Reneude de Sá (2002) chama de condições pessoais adversas os fatores que interferem negativamente na trajetória do aluno da EJA. Em seu estudo sobre o fracasso escolar, observa que as causas da perda da motivação e conseqüente abandono dos processos de escolarização pelos jovens e adultos5 estão ligados à não concretização das aprendizagens desejadas e esperadas. A autora conclui que outro fator gerador de fracasso está ligado a questões mais amplas que remetem aos tipos de políticas públicas de educação promovidas historicamente pelo estado brasileiro, caracterizando-se por ações emergenciais, de curta duração, sem 5 Os sujeitos da pesquisa eram formados por camponeses assentados da reforma agrária no estado de Alagoas, na região nordeste do Brasil, participantes, no período de 1998-99, de um curso de alfabetização do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). 19 continuidade, desenvolvidas em condições precárias, especialmente pela improvisação de professores e da infra-estrutura. Como se observa, a discussão sobre a evasão na EJA tem-se dado, sobretudo, a partir de aspectos mais gerais no âmbito de políticas públicas ou levando em consideração as condições de existência dos sujeitos que inviabilizam a sua permanência na escola. Embora reconhecendo a pertinência e significado desses fatores, a experiência no Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos da UFMG – 1º Segmento (Proef-1) nos instigou a pensar sobre outros motivos que levaram participantes do projeto a interromper a escolarização. Isso porque o formato do Proef-1 diferencia-se dos cursos de EJA descritos e criticados nos estudos de Brito Filho (2001), de Fonseca (1996) e de Reneude de Sá (2002). Desde a sua institucionalização no ano de 1999, o Proef-1 tem atuado no âmbito da educação de pessoas jovens e adultas. Diferentemente das políticas de educação que promovem a EJA por meio de ações emergenciais e de curta duração, os alunos vivenciam um tempo mínimo de dois anos de permanência que pode ser reduzido ou se estender, tendo em vista as suas necessidades e aprendizagens. Além disso, o projeto coloca a possibilidade de continuidade de estudos com correspondência até o quarto ano do Ensino Fundamental, viabilizando o prosseguimento da escolarização aos interessados em concluir o Ensino Fundamental e Médio. No que se refere aos problemas de estrutura e organização dos cursos de EJA, também apontados nas pesquisas em questão, vemos que, enquanto muitos alunos adultos sofrem no país com as condições precárias das escolas e com a falta de profissionais capacitados para o exercício da prática educativa, os estudantes do Proef-1 vivenciam uma estrutura moderna, com recursos didáticos que auxiliam o trabalho dos monitores-professores, estes últimos inseridos num processo continuado de formação. Entretanto, o que nos instigou a realizar esta pesquisa é o fato de que, mesmo com todos esses fatores que, num primeiro momento, sugerem favorecer a permanência do adulto na escola, há aqueles que deixaram os estudos. Mas por quê? Antes de aprofundarmos essa questão, gostaríamos de destacar que o Proef-1 já havia sido pesquisado por Campos (2003), que analisou a questão 20 da infreqüência do aluno da EJA na escola no âmbito das relações de trabalho. Apesar de sua pesquisa não se ater à temática da evasão, uma vez que a proposta é compreender, de um lado, as razões que levam o adulto trabalhador a procurar a escola e, de outro, identificar as possíveis causas da infreqüência às aulas, a autora reitera que os problemas de ordem social e, sobretudo, econômica são fortes condicionantes para a evasão na EJA. Conforme o fragmento: Ressalta-se, aqui, que a infreqüência não está relacionada com o mesmo conceito de evasão. A evasão escolar na EJA pode ser registrada como um abandono por um tempo determinado ou não. Diversas razões de ordem social e principalmente econômica, que transpõem a sala de aula e vão além dos muros da escola, concorrem para a evasão escolar dentro da EJA (p.136). Respeitadas as especificidades do estudo de Campos (2003), uma vez que sua atenção esteve voltada para o aluno inserido no processo de ensino- aprendizagem, mas que não freqüenta a escola regularmente, enquanto que nos atentamos para os que deixaram o projeto definitivamente, vemos que, por ser um estudo que, como o nosso, tomou como foco o Proef-1, consideramos necessário destacar a posição da autora em relação às motivações que levaram os adultos investigados a faltarem às aulas. De forma semelhante às pesquisas sobre a evasão aqui descritas, as explicações de Campos (2003) sobre a infreqüência dos alunos adultos remetem para as questões ligadas ao trabalho — o cansaço, a garantia do emprego por serem funcionários efetivos da Universidade, a falta de cobrança nos departamentos em que atuam e a aposentadoria; ao funcionamento do curso — a permanência no projeto por um longo período sem, no entanto, conseguir aprender a ler e a escrever, os problemas de relacionamento com o monitor-professor, a resistência aos métodos de ensino; a problemas de saúde — o cansaço físico e mental, os problemas de visão, de pressão e cardíacos e os problemas com bebida; e a fatores de ordem pessoal — a falta de força de vontade para estudar, a chegada em casa tarde da noite e a não concretização da expectativa do aprendizado rápido (Pp.150-151). Nesse sentido, o problema da infreqüência dos alunos trabalhadores investigados por Campos (2003) se justifica porque o Proef-1 21 Não está conseguindo despertar em seus alunos jovens e adultos as motivações intrínsecas e extrínsecas. Não se observou nos alunos jovens e adultos servidores da UFMG participantes do PROEF-1 uma construção de uma motivação interior capaz de fazê-los criar um espaço de liberdade, de decisão, de autonomia que os fizesse buscar a concretização efetiva de se alfabetizar (p.162). Desde já destacamos que a nossa posição distingue-se da apresentada por Campos (2003) por considerarmos que a causa da saída dos participantes dessa pesquisa do Proef-1 está relacionada a questões mais amplas, para além da falta de motivação para estudar. Dessa forma, a compreensão dos fatores que levaram os alunos adultos a deixarem o projeto implica refletir sobre as razões que motivaram o reingresso à escola, o que envolve a busca pelo entendimento do modo como pensam e aprendem. Para isso é preciso, conforme afirma Oliveira (2001): (...) transitar pelo menos por três campos que contribuem para a definição de seu lugar social: a condição de não-crianças, a condição de excluídos da escola e a condição de membros de determinados grupos culturais envolvidos em atividades de trabalho e lazer mais relacionadas com a sociedade letrada, escolarizada e urbana (p.16) (grifo nosso). Acreditamos que esses campos têm importante ligação com os sentidos atribuídos à escola e que interferem na decisão de inserir e deixar esse espaço educativo. Sabe-se que os alunos da EJA inserem-se num contexto marcado por adversidades que muitas vezes dificultam ou mesmo inviabilizam o reingresso e a permanência na escola. De acordo com Fonseca (2002), se, de um lado, a busca do sentido na/para a educação escolar não está circunscrita apenas à EJA, de outro, é nessa modalidade de ensino que se deve ter as atenções cada vez mais voltadas para o entendimento das razões que levam pessoas que não tiveram acesso à escola ou nela não permaneceram (re)ingressar no processo de escolarização. Nas palavras da autora, quando falamos em alunos da EJA Lidamos aqui com estudantes para quem a Educação Escolar é uma opção adulta, mas é também uma luta pessoal, muitas vezes penosa, quase sempre árdua, que carece, por isso, justificar-se a cada dificuldade, a cada dúvida, a cada esforço, a cada conquista. É permeada e constituída por essa demanda que a busca do sentido da escolarização se coloca na EJA como uma indagação fundamental (aflita ou latente) a todos quantos 22 se envolvem com o ensino e a aprendizagem dos conteúdos escolares, particularmente em tempos de questionamento da identidade profissional do professor, dos objetivos, das responsabilidades e das perspectivas da Educação e dos papéis institucionais (p.1) (grifo da autora). Para Fonseca (2002), a compreensão do sentido da educação escolar para pessoas adultas torna-se ainda mais necessária quando estamos diante de sujeitos que, apesar das dificuldades na vida particular, profissional, comunitária e, por que não, também escolar, decidem por inserir-se na escola ou nela permanecer. Segundo a autora, o estudo das razões do ingresso e da permanência na escola noturna, mesmo com todas as adversidades impostas pelo cotidiano urbano, impõe ao pesquisador não o desafio de compreender a evasão que esvazia as salas de aula ao longo do ano, mas justamente as razões da permanência daqueles alunos e daquelas alunas que prosseguem seus estudos (p.1). E as razões dessa permanência estão, segundo Fonseca (2002), intimamente ligadas à possibilidade e à consistência dos esforços de constituição de sentidos nas atividades que a Escola desenvolve, nas idéias que ali circulam, nas relações que ali se estabelecem (p.1). As reflexões de Fonseca (2002) sobre a importância de compreender os sentidos que os alunos da EJA conferem ao ensinar e ao aprender a matemática escolar nos instigaram a repensar a nossa visão sobre a evasão na EJA. Observamos que as pesquisas em EJA que levantamos estabelecem uma relação estrita da evasão com a não concretização das expectativas em torno do ingresso na escola. O termo evasão nesses estudos denota a idéia de abandono do curso antes da conclusão de um processo educativo e, portanto, sugere que o aluno não aprendeu, não foi aprovado, não conseguiu o diploma ou, conforme as conclusões de Campos (2003), a escola não despertou no aluno adulto as motivações intrínsecas e extrínsecas para nela permanecer regularmente, uma vez que ele não conseguiu se alfabetizar. Nesta pesquisa, incluímos uma variável que, a princípio, acreditamos ter uma importante relação com a questão da saída do aluno da EJA da escola e que, ao mesmo tempo, busca superar o sentido pejorativo que normalmente é conferido ao termo evasão: a aprendizagem. A aprendizagem é aqui entendida para além daquilo que o professor considera como conhecimento a ser adquirido pelo aluno e, nesse sentido, remete à aquisição de determinadas 23 habilidades de leitura e de escrita que, tomadas pelo sujeito como o objetivo de sua inserção na EJA, definiria, portanto, o momento em que ele consideraria seu curso concluído. Assim nos propusemos a refletir sobre a saída dos alunos da EJA da escola numa outra perspectiva: a proposta é compreender a interrupção do processo educativo por aqueles que, do nosso ponto de vista, poderiam dar continuidade ao processo de aprendizagem da leitura e da escrita, mas que optam por não fazê-lo, uma vez que suas expectativas em torno da aprendizagem são distintas da nossa visão etnocêntrica sobre o que deveria ser aprendido. Dessa forma, uma questão norteou nosso trabalho: como explicar a saída de alunos que apresentaram êxito escolar durante o período em que freqüentaram as aulas? Entende-se por êxito escolar o fato de o aluno, ao reingressar no processo educacional, se apropriar das habilidades básicas de leitura e de escrita. Consideramos como habilidades básicas de leitura e de escrita as capacidades adquiridas no processo de alfabetização: O (...) conjunto de técnicas – procedimentos e habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita: as habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de escrita (Soares, 2004, p.91). Um fato ocorrido em 2001 envolvendo os alunos em processo de alfabetização e a pesquisadora, na época, monitora-professora do Proef-1, nos ajuda a esclarecer melhor nossas indagações. Na turma de alfabetização,6 um dos alunos se destacou no grupo por assumir um discurso sobre a escolarização diferente dos demais colegas. Durante todo o seu processo de alfabetização, sempre deixou claro que tinha o interesse de apenas aprender a ler e a escrever. E pelas suas colocações, percebia-se que aprender a ler significava a aquisição, como ele próprio dizia, do “básico”, ou seja, da tecnologia da leitura e da escrita. Durante a sua permanência no Proef-1, o aluno em questão não demonstrou interesse em dar continuidade aos estudos, uma vez que seu objetivo era “aprender a ler e a escrever para depois aprender inglês”. Segundo o aluno, sua profissão de mecânico exigia a leitura de manuais de máquinas e de equipamentos importados, sendo, portanto, 6 O evento ocorreu numa turma de alfabetização do Proef-1, alocada na Faculdade de Educação da UFMG, e que funcionava, na época, das 18h às 20h30min. 24 necessário aprender a língua estrangeira, língua essa que seria adquirida somente após ser alfabetizado. Sua postura gerava polêmica na turma, formada por alunos que reforçavam os discursos veiculados na nossa sociedade de que somente através da escolarização teremos acesso ao mundo da escrita, de que é importante estudar para se ter um diploma, e ainda de que a não escolarização é sinônimo de ignorância. O aluno deixou o Proef-1 assim que foi alfabetizado. Sobre a situação descrita, consideramos que as expectativas dos alunos da EJA em torno do reingresso à escola e do próprio processo de escolarização divergem muitas vezes da nossa visão sobre o que deve ser ensinado/aprendido. Batista e Ribeiro (2005) consideram que a duração da escolarização não se constitui num mecanismo que garanta a efetiva inserção dos sujeitos na cultura escrita, uma vez que há que considerar a questão da diferenciação da experiência escolar dos sujeitos e grupos sociais enquanto limitador do poder equalizador da duração da escolarização sobre o acesso a níveis mais altos de alfabetismo. De acordo com Batista e Ribeiro, cada indivíduo ou grupo tem maneiras próprias de conceber a instituição escolar e, conseqüentemente, as práticas de leitura e de escrita estabelecidas nesse lugar social. Isso significa que a experiência escolar diferenciada gera diferentes modos de conceber as relações dentro da escola, criando uma relação diferenciada com a leitura e a escrita, letramentos diversos e, conseqüentemente, formas e possibilidades de inserção na cultura escrita também distintas. É importante destacar que a diferenciação da experiência escolar, segundo os autores, pode decorrer do modo como os grupos sociais dão significado ao domínio da língua escrita tanto dentro quanto fora da escola. Assim, enquanto que para determinados sujeitos as formas e os mecanismos de transmissão de valores e do saber escolar acerca do ler e do escrever podem ser bem recebidos e valorizados, outros grupos podem conceber tais formas e mecanismos como um risco de perda de suas identidades. Tendo em vista as idéias dos autores, questionamo-nos até que ponto os diferentes significados atribuídos ao domínio da leitura e da escrita interferem na tomada de decisão de ser alfabetizado e/ou de dar continuidade aos estudos. 25 Esta pesquisa tem por objetivo discutir a interrupção do processo de escolarização na EJA, a partir da análise das expectativas de alunos egressos de um projeto de Educação de Jovens e Adultos em relação à alfabetização e ao letramento. Buscamos analisar a visão dos participantes sobre o analfabetismo, focalizando as representações do significado de ser analfabeto num grande centro urbano e observando a aquisição das habilidades de leitura e de escrita como condicionantes para a interrupção do processo de escolarização. Duas questões básicas norteiam nosso estudo: o que conduz os sujeitos ao reingresso à escola? Por que, após um período de permanência na escola, interrompem o processo de reescolarização? Ressaltamos que a definição do objeto de estudo se deu a partir de um longo percurso que nos exigiu reconstruir a própria idéia de evasão e abandono na EJA. * * * As análises constantes deste estudo estão estruturadas em cinco capítulos. No capítulo 1, apresentamos o histórico do Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos 1º Segmento – Proef-1, que representa historicamente uma importante faceta da inserção da UFMG no campo da EJA, que é a alfabetização. No capítulo 2, apresentamos a abordagem metodológica que norteia o presente estudo, bem como as especificidades dos processos de coleta e de análise de dados. Inicialmente discutimos sobre a etnografia e seu desenvolvimento no campo educacional, à luz das reflexões de Green, Dixon and Zaharlick (2005); André (2005); Peirano (1995); e Healt (1982). Em seguida, destacamos os critérios para a seleção dos participantes da pesquisa e as implicações da escolha da entrevista, da ida ao campo, da observação e da descrição, como instrumentos de coleta de dados. Posteriormente, refletimos, sobre o processo de transcrição das entrevistas, debatemos sobre a relevância da identificação dos falantes nas transcrições, e definimos as normas de transcrição das falas dos participantes, baseadas nas contribuições 26 de Cameron (2001), de Garcez (2002), de Marcuschi (2005) e de Preti (2002). Por se tratar de um trabalho com o propósito de analisar os depoimentos orais de adultos alfabetizados sobre o significado da alfabetização nas suas vidas, nos propusemos a discutir a idéia de discurso, uma vez que, nas vozes dos participantes, ecoam não apenas suas percepções sobre alfabetização/analfabetismo, mas também o discurso autorizado da sociedade sobre ser/estar alfabetizado. No capítulo 3, intitulado Trajetórias de vida de adultos alfabetizados: Lembranças de um passado com raras oportunidades de uso da linguagem escrita, desenvolvemos uma análise da inserção dos participantes na cultura escrita, da infância à fase adulta. Considerando a relação oralidade e memória no campo do discurso, a primeira entendida como “... um lugar sócio-histórico de produção e circulação de sentidos” (Payer, 2005, p.47) e a segunda, tratada do ponto de vista da formulação dos eventos passados em oposição à noção de resgate da memória, os relatos são analisados tendo em vista, as condições de produção dos conteúdos da memória e o papel da dinâmica social no conteúdo da produção. Os fatos narrados acerca da infância, destituída de escola e de escrita, e de grande parte da vida adulta, impossibilitada do exercício autônomo de práticas de uso da leitura e da escrita demandadas no meio urbano, são, portanto, frutos de uma reelaboração, em que elementos de hoje, são incorporados aos relatos orais. As análises revelaram que, ao mesmo tempo em que a vida na zona rural e as raras oportunidades de acesso à escola, não lhes possibilitaram a alfabetização, o envolvimento com práticas de letramento na zona urbana, conjuntamente com o ingresso nos cursos e projetos de alfabetização de adultos, viabilizaram a aquisição de certa autonomia em situações de uso da leitura e da escrita. No capítulo 4, Analfabetismo versus alfabetismo: os lugares de construção do sujeito letrado, o objetivo é investigar aspectos do processo de letramento dos participantes, no espaço familiar, em dois períodos distintos de suas vidas, antes e após a alfabetização e, desse modo, aprofundar a compreensão sobre o papel da família no processo de letramento. Num primeiro momento, as relações estabelecidas entre o analfabeto e o alfabetizado são analisadas, à luz dos conceitos de Basu and Foster (1998) e, num segundo momento, a noção de letramento é discutida no âmbito das 27 interações estabelecidas entre as pessoas, idéias essas propostas por Barton and Hamilton (1998). Essas discussões são as bases na pesquisa para a definição de categorias analíticas que incidem sobre os diferentes modos de ser letrado. No último capítulo, analisamos a experiência dos participantes da pesquisa no Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos -1º Segmento Proef-1. Inicialmente destacamos a trajetória de três participantes no projeto Alfabetização de Adultos que, no ano de 1985, compuseram a turma-piloto de alfabetização, coordenada pelo então professor da Faculdade de Letras da UFMG, Daniel Alvarenga. Destacamos, nesse momento, os fundamentos teóricos que orientaram uma prática pedagógica pioneira na Universidade. Posteriormente, um salto na história é dado a fim de analisar as percepções dos cinco participantes sobre o Proef-1, atentando para as aprendizagens adquiridas no projeto que, segundo os depoimentos, ultrapassaram o âmbito da alfabetização no sentido estrito. Conclui-se que o Proef-1 lhes proporcionou um crescimento pessoal e o desenvolvimento de certas habilidades de leitura e de escrita, bem como a participação em eventos e práticas de letramento — antes possível somente através de relações mediadas por outras pessoas. A partir desse momento, percebe-se que a interrupção do processo de escolarização na EJA, não se deu de maneira repentina, e sim, após a aquisição de conhecimentos considerados fundamentais, do ponto de vista de cada participante, para o exercício autônomo da linguagem escrita, o que lhes garantiram o estatuto de sujeito letrado. 28 CAPÍTULO 1 A CONSTITUIÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NA UFMG: O PROJETO DE ENSINO FUNDAMENTAL DE JOVENS E ADULTOS 1º SEGMENTO – PROEF-1 No ano de 2006, o Núcleo de Educação de Jovens e Adultos da UFMG – NEJA7 – em comemoração aos 20 anos de atividades do Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos da UFMG, promoveu o 2º Seminário: Universidade e Educação de Jovens e Adultos8. Ancorado na necessidade de discutir e divulgar as realizações da UFMG no campo da EJA, o evento possibilitou, de um lado, o resgate das primeiras ações desencadeadas na Universidade, em prol da inserção de pessoas jovens e adultas, excluídas do processo regular de escolarização, e, de outro, a constituição de um espaço de interlocução para o debate das contribuições da produção de conhecimento acadêmico nesse campo entre docentes e discentes de cursos de graduação e de programas de pós-graduação da UFMG e de outras instituições, coordenadores dos projetos de extensão, ensino e pesquisa em EJA, monitores e ex-monitores dos projetos e educadores em geral. A celebração de duas décadas de atividades do Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos da UFMG veio mostrar que a inserção e o investimento da Universidade nesse Programa têm não apenas representado uma forma de democratização do ensino, mas também significado a 7 Constituído em 1995 como um espaço de interlocução entre docentes de diferentes áreas interessados na temática da Educação de Jovens e Adultos, o NEJA — inicialmente denominado Grupo de Estudos em Educação de Jovens e Adultos (GEJA), configurando-se posteriormente como núcleo de pesquisa e formação — atualmente tem articulado diversas iniciativas de formação de educadores de jovens e adultos na UFMG e incentivado o desenvolvimento de projetos de extensão, ensino e pesquisa em EJA. Das inúmeras ações desencadeadas no NEJA, destaca-se a participação de professores de diversos departamentos da FaE e demais unidades da UFMG na coordenação desses projetos, na docência nos cursos de licenciatura ou habilitação em Educação de Jovens e Adultos do curso de Pedagogia ou no Programa de Pós-graduação. Também merece destaque a constituição de um importante acervo de publicações (nacionais e estrangeiras) referentes a esse campo de estudo e a promoção de eventos, visando ao intercâmbio com diferentes instituições, no intuito de promover a socialização do conhecimento em EJA (ver www.fae.ufmg.br/neja). 8 O evento foi coordenado pelo NEJA, em parceria com a Escola Fundamental do Centro Pedagógico (CP), o Colégio Técnico (COLTEC), a Faculdade de Educação (FaE/UFMG), o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), a Pró-reitoria de Extensão, a Pró-reitoria de Recursos Humanos, a Pró-reitoria de Graduação, a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro (ver www.fae.ufmg.br/eja20anos/siteneja.swf). 29 reafirmação da sua responsabilidade social do ponto de vista tanto da formação profissional de educadores de jovens e adultos quanto da constituição de oportunidades de reescolarização. Dos nove projetos de extensão, ensino e pesquisa que atualmente compõem o Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos da UFMG9, o Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos – 1º Segmento (Proef-1) representa historicamente uma importante faceta da inserção da Universidade no campo da EJA, que é a alfabetização. Criado na metade da década de 80 do século XX, quando então professores da Faculdade do Departamento de Lingüística e Teoria da Literatura da Faculdade de Letras10 reuniram-se num grupo de pesquisa com o propósito de desenvolver estudos sobre a aprendizagem da língua escrita, o projeto, inicialmente denominado Alfabetização de Adultos11, tinha como objetivo alfabetizar os funcionários da UFMG. O trabalho desenvolvido por esse grupo de pesquisa objetivou investigar o papel dos conhecimentos lingüísticos do adulto em processo de alfabetização na construção de seus conhecimentos sobre a escrita. Para a realização dessa pesquisa, uma turma-piloto de alfabetização, composta por 11 trabalhadores de diferentes unidades acadêmicas da Universidade, foi instituída. A constituição dessa turma-piloto, alocada na Faculdade de Letras (FALE) e coordenada pelo professor Daniel Alvarenga, auxiliado por uma bolsista de graduação, possibilitou pela primeira vez a inserção de trabalhadores analfabetos da 9 Atualmente o Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos da UFMG reúne os seguintes projetos de extensão, ensino e pesquisa, voltados para a escolarização de jovens e adultos e para a formação inicial e continuada de professores de EJA: Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos – 1º Segmento (PROEF-1); Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos – 2º Segmento (PROEF-2); Projeto de Ensino Médio e Profissional de Jovens e Adultos – (PEMJA); Projeto Especial de Formação de Educadores de Jovens e Adultos (PEFEJA); o Ciclo de Debates: A EJA no Horizonte; Grupo de Discussão sobre EJA; Nossa Escola Pesquisa Sua Opinião (NEPSO – Pólo MG); Projeto de Aprimoramento Discente: Análise do Material Didático Voltado à Educação de Jovens e Adultos; Projeto de Pesquisa Integrado: Negociação de significado em situações de ensino-aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos. Todos esses projetos são coordenados pelo Núcleo de Educação de Jovens e Adultos – NEJA (ver www.fae.ufmg.br/eja20anos/siteneja.swf). 10 Integravam a esse grupo de pesquisa os professores da Faculdade de Letras da UFMG Daniel Alvarenga, Maria da Graça Costa Val, Milton do Nascimento, Orlando Bianchini. A coordenação da pesquisa ficou sob a responsabilidade da Professora Eunice Maria das Dores Nicolai - ver nota da p.28 em ALAVARENGA (1988). 11 Até a sua configuração atual o Proef-1 recebeu diferentes denominações: Inicialmente Projeto Alfabetização de Adultos, passando a Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos (PAJA) e, finalmente, Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos – 1º Segmento (Proef-1). 30 UFMG no processo de aquisição das habilidades básicas de leitura e de escrita. Dados mais gerais sobre a trajetória dessa pesquisa foram apresentados na Seção Pesquisas em Andamento da Revista da Faculdade de Educação da UFMG, Educação em Revista nº.7/jul/1988. Consta nesse periódico que, a partir do trabalho no grupo de pesquisa em questão, um modelo teórico de ordenação lingüística foi desenvolvido e utilizado na produção de material destinado à alfabetização de adultos. Conforme descrito por Daniel Alvarenga (...) foi estabelecida uma ordenação lingüística com base nos critérios propostos por Míriam LEMLE, em seu artigo “A tarefa da Alfabetização: etapas e problemas no português”, publicado em “LETRAS DE HOJE, PUC/RS 15 (4): 41-60”. De acordo com tal ordenação, foi produzido um material para alfabetização de uma turma-piloto, constituída de funcionários da UFMG (p.65). Com base nos primeiros resultados obtidos com a turma-piloto, o modelo inicial de ordenação lingüística foi reformulado12 e aplicado no 2º semestre de 1986 em três novas turmas de alfabetização, ao mesmo tempo em que a turma-piloto dava continuidade ao processo de aquisição da leitura — através de uma leitura intermediária centrada na frase e no texto — e iniciava a atividade de escrita13. As responsabilidades atribuídas a esse grupo de pesquisa permaneceram até o 1º semestre de 1987, porém isso não significou o fim das atividades, uma vez que novas demandas de investigação e dos próprios funcionários foram colocadas. 12 A reformulação do modelo deve-se, sobretudo, a algumas limitações da ordenação inicial formulada a partir dos critérios de Mirian Lemle e que foram percebidas tão logo iniciada a atividade de alfabetização na turma-piloto. O fato de o modelo operar apenas com as relações entre fone e letra gerou a necessidade do grupo de pesquisa aplicar um modelo que levava em consideração as dificuldades nos níveis da sílaba e da palavra e nas relações dos alfabetizandos com os processos de leitura e escrita (ver Educação em Revista. nº.7, jul., 1988, p.65). 13 A nova ordenação proposta pelo grupo de pesquisa previa a separação dos processos de leitura e escrita na alfabetização. Ao considerar que o ensino da leitura deve preceder a aquisição da escrita, os alunos da turma-piloto foram inseridos inicialmente na atividade decodificação dos símbolos gráficos, ou seja, no processo de transformação de grafemas e fonemas (aquisição da leitura). Somente após maior familiaridade com o ato de ler que os adultos participantes do projeto iniciavam as atividades voltadas para a apropriação da escrita, portanto, eram inseridos no processo de codificação (ver Educação em Revista, n.7, jul., 1988, p. 65). Essa concepção de alfabetização proposta por esse grupo de pesquisa será aprofundada posteriormente. 31 Posteriormente, uma nova proposta de estudo foi desenvolvida, de agosto de 1987 a julho de 1990, por um grupo de docentes da FALE dos Departamentos de Lingüística, de Teoria da literatura e de Letras Vernáculas, juntamente com professores da Faculdade de Educação do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino. Com financiamento dos Conselhos de Pesquisa e de Extensão da UFMG e do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), a pesquisa Fundamentação e Proposta para uma Ordenação do Conteúdo da Alfabetização contou com um grupo ampliado de bolsistas da FALE, já que novas turmas de alfabetização foram constituídas. Essa nova pesquisa envolvendo um grupo maior de pesquisadores objetivou divulgar os resultados do primeiro projeto e ao mesmo tempo dar continuidade aos trabalhos. No ano de 1988, foram divulgadas as seguintes tarefas a serem realizadas pelo grupo de pesquisa: 1º.) produção de textos teóricos sobre alfabetização no sentido de se divulgarem os resultados do primeiro projeto; 2º.) análise dos resultados de nova testagem, dessa vez em turmas da comunidade não universitária; 3º.) elaboração e aplicação de material para a leitura intermediária; 4º.) reelaboração de material de escrita, testando paralelamente à leitura intermediária nas turmas que já sabem ler (Educação em Revista, n.7, jul. 1988, p. 65). Podemos perceber que as primeiras iniciativas a favor da constituição de um projeto de alfabetização de jovens e adultos na UFMG resultaram tanto em um trabalho de extensão quanto em um trabalho de pesquisa. Enquanto a atividade de extensão significou uma tentativa de garantir o aprendizado da leitura e da escrita a pessoas inseridas no contexto da Universidade, mas de certa maneira excluídas do acesso ao conhecimento, a atividade de pesquisa configurou-se na necessidade de compreender os mecanismos relacionados ao processo aquisição da linguagem escrita pelo adulto analfabeto. Atualmente a discussão em torno da importância da integração ensino, pesquisa e extensão tem-se intensificado nas universidades. Fato que comprova essa tendência é o crescimento dos espaços de interlocução — congressos, seminários, fóruns e outros eventos — que, dentre outras finalidades, buscam refletir, discutir e analisar o papel da universidade e da sociedade na construção de conhecimento e na transformação social. Linhares, Carneiro e Silva (2004), num trabalho apresentado no 7º Encontro de Extensão 32 Universitária da UFMG14, afirmam que pesquisa e extensão são dois eixos congruentes e complementares. A troca de saberes sistematizados, acadêmico e popular traz, segundo os autores, benefícios para ambas as esferas, conforme o fragmento: (...) tanto a extensão vem-se beneficiando de pesquisas complementares quanto o resultado de algumas pesquisas vem sido alterado pela influência das atividades de extensão. Não raro, as atividades de extensão têm colaborado muito com as pesquisas dando subsídios claros para a explicação na alteração de alguns dados (p.1). Ensino, pesquisa e extensão são as bases que orientam as ações da universidade, bases essas que foram redefinidas, sobretudo nos anos 80, momento marcado pelo fortalecimento da sociedade civil, principalmente nos setores comprometidos com as classes populares. A inclusão da atividade de extensão na Constituição e a criação do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras15, no final da década de 80, garantiram o seu reconhecimento legal e ao mesmo tempo instituiu uma nova concepção de extensão universitária baseada não mais no assistencialismo, e, sim, na articulação com o ensino e a pesquisa, através da organização e assessoria dos movimentos sociais que emergiam. No relatório do Plano Nacional de Extensão Universitária (2000/2001)16, elaborado pelo Fórum 14 O 7º Encontro de Extensão da UFMG foi realizado simultaneamente ao 2º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, sediado pela Universidade Federal de Minas Gerais, de 12 a 15 de setembro de 2004. Dos 649 trabalhos inscritos no Congresso, a UFMG contribuiu com 148 (22,8% do total), que compõem os Anais do 7º Encontro. Os trabalhos foram incluídos em dez temáticas: Avaliação Institucional da Extensão Universitária, Comunicação, Cultura, Desenvolvimento Regional, Direitos Humanos, Educação, Gestão da Extensão, Meio Ambiente, Saúde, Tecnologia, Trabalho (ver Anais do 7º Encontro de Extensão da UFMG, disponível em: http://www.ufmg.br/proex/arquivos/7Encontro/Direitos27.pdf). 15 O Fórum Nacional de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas foi criado no ano de 1987 durante o I Encontro Nacional de Pró-reitores de Extensão. O Fórum é uma entidade voltada para a articulação e definição de políticas acadêmicas de extensão, comprometido com a transformação social para o pleno exercício da cidadania e o fortalecimento da democracia. São membros natos do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, com direito a voz e voto, os Pró-Reitores de Extensão e titulares de órgãos congêneres das Instituições de Ensino Superior Públicas Brasileiras (ver PLANO NACIONAL DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA 2001/2002, disponível em: http://www.preac.unicamp.br/arquivo/PlanoNacionalDeExtensao.pdf). 16 Nessa versão atualizada, consta a informação de que a versão original do Plano Nacional de Extensão lançada em 1999 foi elaborada pelos membros da Coordenação Nacional do Fórum, gestão 1998/1999, com a participação do Prof. Luiz Roberto Lize Curi, Diretor do Departamento de Política do Ensino Superior, SESu / MEC (ver PLANO NACIONAL DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA 2000/2001). 33 Nacional de Pró-Reitores de Extensão, consta esse novo papel da extensão acadêmica: (...) esse tipo de extensão – que vai além de sua compreensão tradicional de disseminação de conhecimentos (cursos, conferências, seminários), prestação de serviços (assistências, assessorias e consultorias) e difusão cultural (realização de eventos ou produtos artísticos e culturais) – já apontava uma concepção de universidade em que a relação com a população passava a ser encarada como oxigenação necessária à vida acadêmica. Dentro desses balizamentos, a produção do conhecimento, via extensão, se faria na troca de saberes sistematizados, acadêmico e popular, tendo como conseqüência a democratização do conhecimento, a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade e uma produção resultante do confronto com a realidade (Plano Nacional de Extensão Universitária, Pp.3-4). Sobre a atividade de pesquisa, consta no relatório: A pesquisa, tanto a básica quanto a aplicada, deveria ser sistematicamente direcionada ao estudo dos grandes problemas, podendo fazer uso de metodologias que propiciassem a participação das populações na condição de sujeitos, e não na de meros expectadores (Plano Nacional de Extensão Universitária, p.3). Se a integração ensino, pesquisa e extensão vem se consolidando ao longo dos anos numa das metas das universidades, é preciso reconhecer que estamos, na verdade, diante de objetos indissociáveis. Numa palestra proferida no II Simpósio Multidisciplinar, A Integração Universidade-Comunidade, realizada em outubro de 1996, o Pró-reitor Comunitário da USJT17 Alberto Mesquita Filho discutiu sobre o Princípio da Indissociabilidade Ensino- Pesquisa-Extensão. De acordo com o Pró-reitor: Chega a ser paradoxal eu me propor a falar sobre integração de objetos indissociáveis (...) O paradoxo, no entanto, se resolve se pensarmos no conceito de princípio não como algo meramente estático, inerte e absoluto, mas como uma bússola a nos guiar ou nos orientar na vastidão de nossa existência (...) O que o princípio da indissociabilidade ensino-pesquisa- extensão pretende nos garantir é que, se nos aproximarmos deste ideal, estaremos próximos da perfeição. Ou seja, a universidade será tão mais eficiente, no cumprimento de seus objetivos nobres, quanto mais associados estiverem seus componentes básicos. Uma vez que acreditamos nesse princípio, espero ter justificado nossa procura desse ideal (Mesquita Filho, 1997, p.138). 17 Universidade São Judas Tadeu. 34 O discurso da indissociabilidade também está presente no relatório do Plano Nacional de Extensão Universitária (2000/2001), de acordo com o documento: A Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidades e Sociedade (p.5) (grifo nosso). O projeto Alfabetização de Adultos surge, portanto, nesse contexto de mudança do papel da extensão acadêmica, configurando-se a partir da integração com o ensino e a pesquisa. Os resultados obtidos dessa integração são sentidos na forma como o trabalho no Proef-1 é atualmente organizado: ao se colocar como atividade de extensão e como campo de pesquisa, desde a sua constituição, o Proef-1 vem cumprindo o seu papel de produção de saberes e de inserção da comunidade. Os esforços empreendidos para a construção de um fazer coerente e fundamentado teoricamente não representaram para os jovens e os adultos do projeto uma trajetória linear e sem percalços. A constituição do Proef-1 deve ser entendida numa dimensão processual, uma vez que as tentativas de consolidar as suas atividades foram marcadas por momentos de avanços e de recuos, constituição essa determinada, entre outros fatores, pelas possibilidades de limites dos participantes envolvidos nesse percurso (Rocha, 2004a). Assim, no que se refere aos momentos marcados por percalços, podemos destacar o período em que o projeto deixou de ter continuidade. Com o encerramento da atividade de pesquisa envolvendo os pesquisadores da FALE e da FaE, no 2º semestre de 1990, houve a interrupção do trabalho de alfabetização. Uma nova tentativa de formar um novo grupo de pesquisa foi proposta no ano de 1993, dessa vez envolvendo professores da Faculdade de Educação e da Escola Fundamental do Centro pedagógico (CP). A finalidade do grupo, naquele momento, era dar início a um curso de alfabetização de jovens e adultos no âmbito do Projeto Supletivo do Centro Pedagógico da UFMG18. Como o projeto de suplência era responsável pelo atendimento de 18 O Projeto Supletivo do Centro Pedagógico da UFMG foi criado em 1986 em resposta à demanda formulada por alguns professores do Centro Pedagógico e por um grupo de funcionários da Universidade, através de seu órgão representativo – ASSUFEMG. Inicialmente, 35 pessoas das camadas populares interessadas em concluir a 5ª até a 8ª série do Ensino Fundamental, a proposta era criar um projeto que se integrasse ao de suplência, voltado para a reinserção de jovens e adultos analfabetos ao processo de aquisição da leitura e da escrita. No entanto, apesar da concessão de seis bolsas de monitoria para estudantes de graduação e da realização de atividades de formação inicial, essas ações foram interrompidas. O mês de outubro de 1995 foi marcado pelo surgimento do Grupo de Estudos em Educação de Jovens e Adultos (GEJA). Alocado na Faculdade de Educação, esse grupo interdisciplinar foi constituído a partir da reunião de professores dos diferentes departamentos dessa faculdade e de outras unidades da UFMG que exerciam atividades de ensino, pesquisa e extensão na área da EJA. Paralelamente à criação do GEJA, as atividades em prol da alfabetização na Universidade foram retomadas com a criação, no referido mês, do Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos (PAJA). Sob a coordenação dos Professores Daniel Alvarenga e Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca, do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação (DMTE/FaE), da professora Maria Helena A. R. Starling (FaE/UFMG) e componentes do GEJA, foram constituídas seis turmas de EJA, quatro funcionando na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), no Campus da Universidade, e duas na Faculdade de Farmácia, Unidade esta alocada, na época, na região central de Belo Horizonte. Funcionários da UFMG, trabalhadores de empresas que prestam serviços à Universidade e membros da comunidade externa, interessados em iniciar ou dar continuidade ao seu processo de alfabetização, compuseram as turmas em questão. É importante destacar que o PAJA surge num contexto de diversificação do público adulto atendido pelo projeto, que passa a não ser mais caracterizado apenas como aqueles pertencentes ao quadro de funcionários efetivos da UFMG. Se, inicialmente, o projeto surge da necessidade de atender a funcionários analfabetos que atuavam nas diferentes unidades do Campus, a sua criação objetivou instituir um curso preparatório para Exames Supletivos; posteriormente, com a mudança de concepção de ensino voltada para o público jovem e adulto, somada à própria autonomia adquirida pelo Centro Pedagógico no processo de certificação do Ensino Fundamental, o Projeto Supletivo passa a se configurar no atual Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos 2º Segmento – (Proef-2) (ver SANTOS, 2003). 36 partir de agora uma nova clientela é incorporada ao processo de ensino- aprendizagem. A própria expansão das turmas do PAJA, que passam a ser alocadas também fora do Campus, pode ser considerada uma condicionante para essa diversificação do alunado. Ao atender essa demanda externa, o PAJA viabilizou a inserção de pessoas analfabetas ou pouco escolarizadas, interessadas em melhorar suas condições de vida através do reingresso à escola; entretanto, a prioridade no atendimento aos funcionários da UFMG foi mantida. Essa prioridade não significou apenas a garantia das vagas nas turmas de EJA. O interesse da UFMG de promover a Educação de Jovens e Adultos, por meio da reescolarização de seus funcionários, produziu outras ações voltadas para o incentivo ao reingresso à escola. Coube à Divisão de Recursos Humanos (DRH) intervir junto às chefias das unidades acadêmicas para que fossem garantidas aos funcionários as condições necessárias para sua inserção no PAJA. Diante do fato de as aulas ocorrerem sempre no período da tarde — de terça à quinta-feira, no horário de 15h às 17 h — todos os funcionários interessados em participar do projeto passaram a ser liberados de suas atividades. Posteriormente, a Divisão de Recursos Humanos também passou a fornecer vale-transporte aos funcionários que trabalhavam em unidades acadêmicas distantes das turmas do projeto. Com a sua institucionalização, o PAJA passou a contar com seis bolsistas de trabalho, bolsas essas concedidas pela Fundação Universitária Mendes Pimentel (FUMP). Após serem submetidos a processos de seleção, os alunos do curso de pedagogia e das licenciaturas da UFMG assumiram a função de monitores-professores. Responsáveis pelas aulas ministradas nas turmas de EJA, os monitores-professores recebiam o apoio da coordenação do projeto sob a forma de capacitações ocorridas a cada novo processo seletivo e também nas reuniões pedagógicas. As atividades de formação continuada no projeto foram organizadas em função das demandas colocadas pelos monitores-professores. Nesse sentido, os encontros se constituíram em momentos de discussão dos problemas que surgiam no decorrer do processo ensino-aprendizagem, de planejamento e de avaliação. 37 Dois objetivos primordiais foram mantidos não apenas para o PAJA, mas também para os outros projetos de EJA19 que compõem o Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos da UFMG: o primeiro, já destacado anteriormente, é garantir o atendimento prioritário aos funcionários da UFMG. O segundo é contribuir para a formação de alunos da graduação, por meio de estágios e monitoria, contribuindo, assim, para a formação de profissionais capacitados para atuar no campo da Educação de Jovens e Adultos. Esses objetivos foram constituídos ao longo de duas décadas de trabalho e atualmente encontram-se consolidados como metas do Proef-1. No Relatório de Atividades do Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos da UFMG, divulgado na III Semana do Conhecimento da UFMG20, é reiterada a importância dos referidos projetos de EJA de favorecerem bolsistas e estagiários à formação no campo da EJA: A inserção neste Programa, por sua vez, confere aos licenciados uma oportunidade privilegiada de formação profissional, teórico-prática, como educadores de jovens e adultos, acompanhada e orientada pelos professores da Universidade que atuam nos diversos cursos de Licenciatura e nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. Além disso, o espaço educativo deste Programa, suas atividades e produção, suas demandas e propostas oferecem a docentes, pós-graduandos e licenciados um espaço particularmente rico e receptivo para a realização de estágios e pesquisas que tenham como objeto a Educação Básica, a Educação de Jovens e Adultos, a Formação Docente ou outras relações que se estabelecem ao espaço escolar (Giovanetti, 2002, p.26). Um fato significativo na trajetória do PAJA está na sua integração no quadro de projetos vinculados ao Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG (Ceale). No final de 1997, o Ceale assume a coordenação do projeto, em parceria com o GEJA, o que se mantém até o presente momento. Com a sua inserção no Ceale, o PAJA passou a contar com os recursos administrativos e pedagógicos desse órgão instituído pela FaE e que, na época, já despontava como importante centro de pesquisa do país. A veiculação do PAJA a um espaço de formação e produção de conhecimento 19 Estamos nos referindo, aqui, ao Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos – 2º Segmento e ao Projeto de Ensino Médio – PEMJA. 20 A III Semana do Conhecimento da UFMG foi realizada simultaneamente ao 5º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, de 25 a 29 de novembro de 2002 (ver http://www.ufmg.br/proex/arquivos/co_coordcomext_5Encontro.pdf.). 38 favoreceu ainda mais a sua consolidação no campo da alfabetização, constituindo-se hoje num referencial em EJA. Esse novo contexto de mudanças também foi marcado pela aposentadoria da professora Maria Helena A. R. Starling e também pelo falecimento do professor Daniel Alvarenga. Em função desses acontecimentos, uma nova coordenação, em caráter provisório, é instituída como forma de manter a continuidade das atividades do Projeto. A Coordenação Pedagógica na área da alfabetização foi assumida por Luciana da Silva, ex-monitora do PAJA, sob a orientação da professora Ceris Ribas, então diretora do Ceale, juntamente com a professora Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca, da área de ensino de Matemática, e da professora Maria Heloísa Alkimim, que assumiu a Coordenação Geral do Projeto. O desafio nesse momento foi de constituir um grupo de trabalho coerente com as idéias do professor Daniel Alvarenga, que valorizava a prática da alfabetização vinculada à pesquisa. O afastamento das docentes Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca e Maria Heloísa Alkimin das coordenações do PAJA, a primeira por motivo de qualificação profissional e a segunda por não fazer parte do quadro de professores efetivos da UFMG, fez com que, em outubro de 1998, a professora Gladys Rocha, lotada, na época, na Escola Fundamental do Centro Pedagógico (CP), assumisse, a convite do Ceale, a coordenação do PAJA e a Coordenação de Área de Alfabetização, Leitura e Escrita do projeto. O ano de 1999 foi marcado pela transformação do GEJA em NEJA, mudança essa que ultrapassou o âmbito da sua denominação: a constituição do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos significou a inserção desse grupo interdisciplinar em atividades de pesquisa e de formação. Sendo um de seus objetivos articular as diversas iniciativas de formação de educadores de Jovens e Adultos na UFMG, o NEJA passa a atuar de maneira mais expressiva na integração entre os três projetos de extensão na área de EJA da Universidade, que correspondem ao 1º e 2º Segmentos e o Ensino Médio. A partir de então, o PAJA deixa de ser uma estrutura isolada para se tornar parte de um Programa Institucional. As demandas colocadas pela atual Reitoria, em relação à formação de seus funcionários, passou a ocorrer de modo mais intensivo e, conseqüentemente, o projeto passou a estabelecer uma interlocução mais 39 próxima com a Pró-reitoria de Extensão (PROEX) e com a Pró-reitoria de Recursos Humanos (PRO-RH). Ao mesmo tempo, a implementação de uma estrutura administrativa no PAJA viabilizou a constituição de uma estrutura organizacional capaz de realizar registros mais sistemáticos dos alunos, dos monitores-professores e dos estagiários. Foi nesse momento que o projeto conseguiu, por meio da FUMP e com o apoio da PRO-RH, a alocação de uma vaga de bolsista de manutenção para o trabalho de apoio na secretaria do projeto. Houve, ainda, alterações na origem e no valor das bolsas destinadas aos monitores-professores, que passaram a ser pagas pela PROEX e tiveram seu valor aproximado ao das bolsas de iniciação científica. Cabe, ainda, destacar que, no âmbito pedagógico, ocorreu uma ampliação do conceito de Educação de Jovens e Adultos: o PAJA tinha como objetivo inicial atender jovens e adultos interessados na aquisição e/ou desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita – alfabetização. A partir da reestruturação, o Projeto passa a atender os jovens e os adultos interessados no processo de reescolarização, correspondente aos quatro primeiros anos do Ensino Fundamental – da alfabetização à 4ª série. Esse novo formato colocou a necessidade de redefinição do nome do projeto, pautada, basicamente, na ampliação dos seus objetivos e da sua abrangência que, atualmente, não se restringe ao domínio de habilidades iniciais de leitura e de escrita ou a dois campos formais do conhecimento — Língua Materna e Matemática — e coloca a possibilidade de continuidade de estudos com correspondência até o quarto ano de escolarização do Ensino Fundamental. Outro aspecto que corroborou para essa alteração foram as novas nomenclaturas propostas pela LDB. Assim, o Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos (PAJA) passou a ser denominado Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos – 1º Segmento (Proef-1). Ao longo dos seus 22 anos, o Proef-1 manteve turmas alocadas em diferentes unidades da UFMG, dentro e fora do Campus da Universidade: Faculdade de Letras (FALE), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), Instituto de Ciências Biológicas (ICB), Centro Pedagógico (CP), Faculdade de Farmácia e Faculdade de Engenharia. Também ocorreram mudanças nas nomenclaturas das turmas de EJA em função de mudanças na concepção de ensino-aprendizagem e de alfabetização. 40 Inicialmente, no PAJA, as segundas e sextas-feiras eram dias reservados para reuniões pedagógicas e de planejamento, sendo as aulas ministradas de terça à quinta-feira, perfazendo uma carga horária de 7h/a semanais. A necessidade de oferecer aos alunos um processo de ensino de aprendizagem mais contínuo fez com que a segunda-feira fosse incluída na atividade de docência, enquanto que os encontros pedagógicos realizados nas sextas-feiras foram mantidos. Assim, com a institucionalização do Proef-1, as aulas passaram a ocorrer de segunda à quinta-feira, e a carga horária foi ampliada para 10h/a. O dia reservado para reunião e planejamento possui um significado especial não apenas para os coordenadores e monitores-professores, mas, sobretudo, para os alunos dos projetos de EJA da UFMG. No Relatório de Atividades do Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos consta a importância do tempo pedagógico: A adoção de uma semana letiva com menor número de dias de aula não é incomum em programas de EJA e, se permite a toda a equipe encontrar-se regularmente, concede também a seus alunos, em geral trabalhadores, uma noite em que possam tratar de seus compromissos com a família, a comunidade, o descanso ou o lazer (Giovanetti, 2002, p.27). Até o primeiro trimestre de 2007, o Proef-1 mantinha 06 turmas de EJA, sendo 03 iniciais e 03 de continuidade (pós-alfabetização), duas delas alocadas na Faculdade de Educação e quatro na Escola Fundamental do Centro Pedagógico, funcionando nos períodos da tarde (de 15h00min às 17h00min) e da noite (de 19h00min às 21h00min), respectivamente. No início do mês de junho, após acordo estabelecido entre o Ceale e a Pró-Reitoria de Extensão, duas novas turmas de alfabetização e de continuidade foram instituídas para atender aos trabalhadores que exercem atividades no Projeto Campus 200021. 21 O Projeto Campus 2000 foi instituído no ano de 1998 e objetiva a implementação da “Cidade Universitária da UFMG”, legitimada pela Reforma de 1968. O empreendimento prevê a construção das novas sedes de faculdades e a reforma de prédios já existentes, viabilizando assim a transferência de unidades acadêmicas localizadas na região Centro-Sul de Belo Horizonte, para o Campus Pampulha e na modernização de faculdades já estabelecidas nesta área. Sete projetos compõem o Campus 2000: as novas sedes da Faculdade de Educação, da Faculdade de Farmácia (cujas obras já foram finalizadas), da Faculdade de Ciências Econômicas e da Escola de Engenharia (ainda em processo de construção); a ampliação das instalações do Departamento de Química e do Instituto de Geociências; e a construção do prédio do Departamento de Fisioterapia/ Terapia Ocupacional (FTO) anexo à Escola de Educação Física. Para além do princípio da concentração das Unidades Acadêmicas da UFMG, o Campus 2000 visa à integração humana e ao aperfeiçoamento do aparato técnico e 41 As referidas turmas alocadas na Faculdade de Educação funcionam das 18h10min às 20h10min, ampliando para oito o número de turmas de EJA do projeto. No total, 30 trabalhadores terceirizados foram inseridos no processo de escolarização, o que para muitos significou o primeiro contato com a educação formal. A proposta é promover a alfabetização na perspectiva do letramento, proporcionando a essas pessoas que estão há muito tempo longe dos bancos escolares ou que não tiveram passagem pela escola um contato com a linguagem escrita, para que possam, a partir da aquisição de novos saberes, juntamente aos conhecimentos que já possuem, fazer uso deles em suas vidas. O princípio do atendimento prioritário aos funcionários da UFMG no Proef-1, conforme já destacado, continuou mantido, no entanto, como podemos perceber, temos assistido a um considerável aumento do número de pessoas da comunidade externa no universo de alunos atendidos. Dos 130 alunos que hoje estudam no Proef-1, apenas 05 são funcionários efetivos da Universidade, enquanto que a grande maioria faz parte da comunidade externa, ao contrário do que se observou no início de sua constituição, em que a turma-piloto era formada basicamente por trabalhadores da UFMG. Esse fato é explicado pela própria natureza do projeto na sua constituição inicial: o projeto idealizado pelos pesquisadores da FALE tinha como finalidade a alfabetização dos funcionários da UFMG. Com o tempo, a redução da demanda interna constituiu-se numa realidade no Proef-1, em função de alguns fatores, como, por exemplo, a aposentadoria de funcionários, o avanço de alunos para o Proef-2 e também a própria saída de alguns funcionários que, dessa forma, não deram continuidade aos estudos. Quanto a esse último caso, essa pesquisa desenvolvida no âmbito do Proef-1 objetivou a compreensão e a análise das possíveis causas dessa não continuidade no processo de reescolarização. científico da instituição e configura-se como a adequação da capacidade física instalada ao projeto acadêmico de graduação, pós-graduação e ênfase na pesquisa de caráter interdisciplinar - premissa fundamental do Projeto de Desenvolvimento Institucional da UFMG nas últimas décadas. Disponível em: http://www.ufmg.br/campus2000/apresentacao/index.htm 42 Atualmente, a Coordenação Geral do Proef-1 é representada pela Diretora Geral do Ceale Francisca Izabel Pereira Maciel, que assumiu suas funções no projeto em 2005. Em 2007, a professora Adla Betsaida Martins Teixeira, do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da UFMG, foi convidada para atuar na vice-coordenação do projeto. Diante da demanda provinda do Projeto Campus 2000, duas monitoras foram selecionadas este ano para atuar nas turmas recentemente instituídas. Nesse sentido, o projeto conta com oito monitores-professores, alunos dos cursos de Pedagogia (quatro monitoras) e de Letras (dois monitores e duas monitoras). O Proef-1 tem atuado no sentido de se constituir numa referência no campo da alfabetização, na formação de pedagogos e licenciados da UFMG e como campo de pesquisa, mantendo, assim, as idéias defendidas pelos professores pesquisadores pioneiros. Além de proporcionar uma oportunidade de escolarização aos jovens e adultos, o Proef-1 tem despertado nos monitores-professores o interesse de desenvolver seus projetos de monografia na área de alfabetização de jovens e adultos, assim como de produzir conhecimento sobre a EJA e de participar dos eventos promovidos nessa área. Por meio dessas iniciativas, o Proef-1 tem-se constituído numa referência na área da Educação de Jovens e Adultos. A partir do trabalho que realiza, suas experiências são divulgadas, pesquisas são produzidas e materiais didáticos específicos para o público jovem e adulto são elaborados. A constituição de um projeto de pesquisa e extensão na área da alfabetização em EJA na UFMG, como se observou, deu-se gradativamente, com a participação de professores pesquisadores de diferentes departamentos da FALE, da FaE e do CP, de bolsistas de graduação das unidades acadêmicas em questão, de grupos de pesquisa e formação, como o NEJA e o Ceale, e de órgãos administrativos da Universidade: a Coordenadoria de Assuntos Comunitários (CAC), a Divisão de Recursos Humanos (DRH), o Departamento de Pessoal (DP), a Pró-reitoria de Administração (PRA), a Pró- reitoria de Extensão (PROEX) e a Pró-reitoria de Recursos Humanos (PRORH). A edição nº. 9 do mês de julho de 2006 da revista Diversa apresenta uma análise da importância da parceria entre a universidade e a sociedade na produção do conhecimento. Ensino, pesquisa e extensão são considerados os 43 pilares que orientam o “fazer” da universidade: enquanto que os projetos de extensão possibilitam a integração entre os saberes acadêmico e popular, a pesquisa produz conhecimento científico e tecnológico que, devolvidos à sociedade, visam à resolução dos problemas do cotidiano. Conforme a Pró- Reitora de Extensão da UFMG, Ângela Dalben, “A universidade determina e modifica a sua atuação de acordo com as mudanças da sociedade. É impossível ficar alienado à dinâmica social (p.1)”. É essa a busca de todos aqueles que compõem o Proef-1. 44 CAPÍTULO 2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS 2.1 A abordagem etnográfica na pesquisa educacional O desafio para alcançar os objetivos propostos nesta pesquisa esteve intimamente relacionado ao desafio de definir os procedimentos metodológicos. Por se tratar de um trabalho com o propósito de investigar as expectativas e os significados da alfabetização para adultos egressos do Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos 1º Segmento (Proef-1), tendo como foco a perspectiva do sujeito alfabetizado, a partir da análise integrada de seus relatos, vemos a necessidade de recorrer a estudos sobre os procedimentos de coleta de dados na pesquisa do tipo etnográfico. A decisão de recorrer aos pressupostos da etnografia nesta pesquisa justifica-se pelo fato de seus princípios orientadores também serem aplicados em estudos que se propõem investigar as ações e as interações estabelecidas pelos sujeitos em ambientes fora do contexto escolar. No decorrer do processo de investigação, recorremos a determinadas estratégias de coleta de dados eleitas à luz de reflexões teóricas, a fim de tornar coerentes as escolhas e o direcionamento do trabalho. Os estudos de Green, Dixon and Zaharlick (2005); André (2005); Peirano (1995); e Healt (1982) sobre a etnografia e seu desenvolvimento no campo educacional orientaram a escolha de alguns instrumentos, como a entrevista, a ida ao campo, a observação e a descrição. A escolha desses instrumentos implicou a compreensão dos aspectos que caracterizam um estudo do tipo etnográfico. Ter em mente os princípios dessa linha de investigação foi importante, uma vez que há sempre o risco de se confundi-la com a etnografia no sentido estrito. O debate em torno do significado da etnografia não é recente. No início dos anos 80 do século XX, num estudo intitulado Ethnography in Education: defining the essentials, desenvolvido a partir de idéias colhidas num seminário sobre etnografia, Health (1982) indaga sobre o significado da etnografia e problematiza as características fundamentais que identificam um estudo etnográfico. Tais questões são discutidas num momento em que os 45 pressupostos da teoria etnográfica foram disseminados no campo da pesquisa educacional. Nesse trabalho, a autora em questão aponta os eixos que diferenciam a etnografia, no sentido pleno do termo, dos estudos etnográficos — desenvolvidos em qualquer espaço institucional, como, por exemplo, escolas, hospitais, etc. — que fazem uso de alguns dos métodos e teorias da etnografia. Ao afirmar que os métodos e as teorias usados pelos antropólogos são os diferenciadores da etnografia pura dos estudos etnográficos, Health apresenta os princípios da pesquisa etno-histórica, da unidade de estudo, do trabalho micro-etnográfico, das investigações lingüísticas e da análise de artefatos, e indica como alguns desses métodos podem ser aplicados na pesquisa etnográfica na educação. A discussão sobre a lógica etnográfica de investigação tem gerado um conjunto de críticas de trabalhos que se intitulam “etnográficos”. Tradicionalmente, os educadores têm-se apropriado dos métodos etnográficos sem a devida compreensão das bases teóricas, dos propósitos e das metas assumidos pelos antropólogos. Pesquisas de observação somadas à utilização de certos métodos qualitativos têm sido consideradas suficientes para serem qualificadas como etnográficas. Green, Dixon and Zaharlick (2005) defendem que é possível falar em etnografia e educação, enquanto abordagem de pesquisa, e apresentam a etnografia como um modo de fazer pesquisa, organizada em certos procedimentos e pautada numa concepção de cultura. As autoras apontam alguns princípios considerados fundamentais para entender a etnografia em educação, enquanto lógica de investigação: a etnografia deve ser entendida como o estudo da cultura e envolver uma perspectiva contrastiva e holística. O estudo de práticas culturais, de acordo com Green, Dixon and Zaharlick, busca a compreensão de padrões culturais e das práticas cotidianas do grupo. Mais do que a simples descrição dos acontecimentos, a idéia é compreender o significado social dos fatos. É o estudo do grupo sob a ótica da perspectiva êmica22. 22 De acordo com as autoras em questão, ERICKSON, F. (1986), em Qualitative research, afirma que o desenvolvimento da etnografia se deu, sobretudo, com o surgimento da antropologia como disciplina, no século XIX, somado aos interesses da expansão colonial pelas nações colonizadoras. Relatos mais detalhados e completos dos exploradores acerca das comunidades remotas da África e da Ásia tornaram-se mais detalhados e completos, 46 A busca do etnógrafo da educação está em tornar visíveis práticas cotidianas internalizadas no grupo e, portanto, tomadas como “naturais”. Para tanto, é necessário mergulhar num processo de estranhamento do que é percebido como comum, em busca de uma teoria da cultura construída no interior das práticas sociais. A construção da teoria da cultura está atrelada à lógica de investigação, tanto na história intelectual do etnógrafo que se posiciona como membro, quanto na ecologia intelectual23 da qual faz parte. Quando se considera uma perspectiva contrastiva, estamos tratando de modo a tornar visíveis diferentes aspectos e práticas no interior de uma dada cultura. Segundo as autoras em questão, há três formas de materializar a perspectiva constrastiva no trabalho de pesquisa: utilizando a triangulação (dados-métodos-teoria); considerando a relevância contrastiva, que permite observar e explicar práticas e processos êmicos, ou seja, o conhecimento cultural no grupo; e identificando os pontos relevantes24, fatos que se tornam visíveis por meio das diferenças de enquadre. No que se refere à perspectiva holística, Health (1982) já alertava sobre as dificuldades de os estudos etnográficos delimitarem as fronteiras que separam uma comunidade analisada das demais comunidades, ou seja, de se estabelecer um elo entre as questões singulares e o contexto geral (generalização). Para Health, o desafio da etnografia está em estabelecer o ganhando configuração científica. Ao final do século XX, a descrição minuciosa sobre “o que era o grupo” e não “o que deveria ser mudado no grupo” passa a se constituir num critério definidor da “boa” prática etnográfica no trabalho de campo. DOBBERT (1984), no estudo intitulado Ethnographic research: Theory and application for modern schools and societies, discute que, até os anos 1960, na prática da observação, imperava a perspectiva do etnógrafo. A descrição do grupo se dava sob a ótica de um estranho, diferente da perspectiva que toma o ponto de vista dos integrantes do grupo na compreensão dos fenômenos. Desse modo, a perspectiva ética remete à descrição pura dos fatos, sob a ótica do pesquisador, enquanto que na perspectiva êmica, o pesquisador toma o significado que os participantes atribuem às suas ações sem estabelecer julgamentos. O processo descritivo na pesquisa etnográfica está em constante busca da perspectiva êmica (ver GREEN, DIXON and ZAHARLICK, Pp. 23-24). 23 O conceito de ecologia intelectual foi proposto por TOULMIM, S. (1972) em Human uderstanging e remete à idéia de que o conhecimento científico é constituído nas relações junto a membros de uma comunidade que compartilham formas de agir, pensar, fazer ciência. O argumento de Toulmim é que não existe uma ciência, mas “ciências” construídas pelos grupos que compartilham idéias semelhantes. A ciência é constituída pelo grupo que cria um conjunto coletivo de conceitos, práticas e ações e que são adotados em comum. A teoria, para ser válida, necessita ser aceita pela comunidade, e os participantes da ecologia intelectual definem maneiras de lidar com o saber e produzir conhecimento. Para melhor detalhamento da questão, ver GREEN, DIXON and ZAHARLICK, Pp.19-21. 24 Pontos relevantes na etnografia são os diferentes pontos de vista, compreensão, interpretação no âmbito das práticas culturais. “São pois, aqueles em que as diferenças de entendimento, ação, interpretação e/ou participação se tornam marcadas” (GREEN, DIXON and ZAHARLICK, p.42). 47 diálogo entre as situações observadas no grupo pesquisado com outros contextos. Entender que a etnografia envolve uma perspectiva holística, de acordo com Green, Dixon and Zaharlick (2005), é considerar que o estudo do grupo perpassa a compreensão das relações estabelecidas entre parte-todo. A questão que se coloca, porém, é mais abrangente, uma vez que a dificuldade está no entendimento do significado de todo. O todo pode ser uma comunidade ou parte de um conjunto que se identifica numa unidade social. Sua dimensão, portanto, não é limitada. No interior de uma comunidade, podem ser identificados diferentes todos. Erickson (apud Green, Dixon and Zaharlick) considera que “o todo” não é o tamanho da unidade de análise, mas é a unidade de análise que o etnógrafo identifica como “todo”, seja esse todo uma comunidade, um sistema educacional, uma sala de aula ou o começo de uma aula. Nesse sentido, a visão analítica deve levar em conta como as partes se relacionam com esse “todo”. A delimitação dos limites do evento a ser analisado perpassa o conceito da relação parte-todo. A definição desses limites leva em conta como a situação, em termos de aspecto cultural, é tomada pelo grupo. A idéia é perceber como os eventos são localmente realizados no grupo e em seguida compreendê-los, levando em conta outras instâncias mais amplas. Outro aspecto que merece atenção nas discussões acerca de pesquisas do tipo etnográfica refere-se à ida ao campo. De acordo com Green, Dixon and Zaharlick (2005), o trabalho de campo etnográfico envolve uma abordagem interativa-responsiva como lógica-em-uso. Isso significa que as decisões não são tomadas, a priori, sem que antes ocorra o contato com os membros. As decisões são tomadas, portanto, somente após o início da coleta dos dados e a análise, após seu término. Mas que relações há entre a pesquisa de campo e a etnografia? Quais as críticas dirigidas às pesquisas de natureza etnográfica? Por que o debate em torno da etnografia é polêmico? Onde estão situadas a pesquisa de campo e a etnografia no contexto da pesquisa científica brasileira? Essas questões são debatidas por Peirano (1995), no ensaio A favor da etnografia, cujo título já revela o ponto de vista da autora em defesa da etnografia como lógica de investigação. Tal defesa está ligada à busca de uma verdadeira etnografia, que 48 será alcançada com a retomada da abordagem comparativa e a criação de um novo tipo de escrita antropológica, princípios estes defendidos por Nicholas Thomas25. Peirano (1995) discute cinco argumentos que consagraram N. Thomas como grande crítico da etnografia tradicional: 1- a interpretação antropológica está centrada no estudo “dos outros”, sendo esse “outro” entendido como “ser diferente” e exótico; 2- a pesquisa de campo e a descrição etnográfica (ambas de natureza política) fabricam essa idéia do “outro”, homogeneízam-no e negam o significado de sua cultura; 3- a antropologia não está livre de problemas, daí a necessidade de eleger uma nova forma de escrita; 4- a noção de exótico deve ser criticada; 5- a antropologia comparativa (fora dos moldes da comparação positivista) deve ser retomada, com a criação de um novo tipo de escrita antropológica (relacionando o geral com o local)26. A reflexão de Peirano (1995) sobre esses argumentos é feita a partir do resgate das obras de Malinowski e de Evans-Pritchard, clássicos da literatura etnográfica. Ao focalizar a questão da co-autoria etnográfica — em Malinowski — e da visão da etnografia como tradução e da metodologia concebida como impacto — em Evans-Pritchard —, a autora destaca que N. Thomas vê a necessidade de se pensar em um processo de reinvenção da história teórica da antropologia, já que uma análise mais minuciosa dos textos sobre pesquisa de campo revela a reprodução de questões de ordem teórica e metodológica do início do século XX, as quais são tomadas como originais pelos antropólogos. Essas questões constituem nos problemas inerentes à etnografia, que estão associados ao modelo canônico27 que impera na maneira de entender a disciplina. Peirano (1995) afirma que “nem todo bom antropólogo é necessariamente um etnógrafo” (p.48), já que muitos não incorporam ao seu 25 Considerado um “rebelde” na comunidade científica, principalmente pela produção da polêmica obra Against ethnography, N. Thomas é um dos principais teóricos pós-modernos (se não o principal) preocupado com o modo como os antropólogos anglo-saxões têm estudado tradicionalmente as sociedades coloniais. Diante da repercussão de seu pensamento, Peirano realiza uma Análise do Discurso de sua obra, retomando os principais aspectos que caracterizam a etnografia bem como seus problemas. Para uma discussão dessa questão, ver PEIRANO, 1995, Pp. 31-33. 26 Ver PEIRANO, 1995, Pp. 35-36. 27 O modelo canônico se fixa nas pesquisas de campo que, orientadas por teorias totalizadoras, realizam análises locais de eventos tomados como exóticos (ver PEIRANO, 1995, p.37). 49 trabalho a pesquisa de campo, um dos principais eixos constitutivos da etnografia. Sua preocupação está na tendência de uma teoria geral da cultura ocidental se sobrepor ao aspecto microscópico e artesanal da pesquisa antropológica. Ao resgatar o pensamento de Edmund Leach28, adverte do problema da diferença entre o “nós” e o “eles” ainda prevalecer nos estudos dos antropólogos. No que se refere ao contexto brasileiro, de acordo com Peirano, a problemática da diferença materializada no “nós” em contraposição ao “eles” ainda prevalece no meio acadêmico, sendo apenas identificado numa outra perspectiva: diferente dos EUA e Europa, que se adentram em comunidades longínquas, no Brasil o estudo está centrado em “nós mesmos” e, nesse sentido, a idéia da diferença é construída diante da busca das “especificidades” dos grupos sociais. Peirano vê a possibilidade de uma outra disciplina, como a psicanálise, contribuir no estudo etnográfico e de os dados etnográficos antropológicos se constituírem em alvo de reanálise. Ao antropólogo é dada a possibilidade de uma nova configuração interpretativa aos dados, e a incompletude dos estudos é vista positivamente em detrimento das análises fechadas. E, conforme Michael Fischer, “mesmo nas repetições históricas há algo novo que, com sorte, pode ser vislumbrado” (Peirano, 1995, p.35). Ainda a respeito da abordagem etnográfica, André (2005) afirma que a diferença entre a etnografia desenvolvida pelos etnógrafos e pelos estudiosos da educação está no foco de atenção dos pesquisadores: enquanto os primeiros preocupam-se com a descrição da cultura de um grupo (práticas, valores, linguagens, crenças, significados), os segundos se debruçam no processo educativo. “O que se tem feito, pois, é uma adaptação da etnografia à educação, o que me leva a concluir que fazemos estudos do tipo etnográfico e não etnografia no seu sentido estrito” (p.28). Diante dessa diferença de enfoque, certos procedimentos da etnografia não necessitam ser aplicados à pesquisa em educação, tais como a longa permanência no campo, o contato com outras culturas, a utilização de amplas categorias de análise de dados. Quanto ao tempo de imersão no 28 Ver PEIRANO, 1995, p. 52. 50 campo, a autora também destaca que a presença do pesquisador será maior ou menor em função dos objetivos específicos do trabalho e, portanto, dependerá da sua disponibilidade, da sua experiência em trabalho de campo ou mesmo da sua aceitação pelos participantes do estudo. André (2005) reitera os pensamentos de Health (1982) e Peirano (1995), ao afirmar que um trabalho pode ser apresentado como de natureza etnográfica quando o pesquisador faz uso de determinadas técnicas associadas à etnografia, como a observação participante, a entrevista e a análise de documentos. Subjacente ao uso dessas técnicas, há o princípio da interação constante entre o pesquisador e o objeto pesquisado, sendo o pesquisador o principal instrumento de coleta e análise. Nessa perspectiva, o instrumento humano, ou seja, o pesquisador se coloca numa posição ativa frente aos dados, fazendo uso das melhores técnicas de coleta, podendo rever as estratégias adotadas ao longo do desenvolvimento da pesquisa. O estudo em questão parte da utilização de instrumentos da etnografia, cujo objetivo é, tendo como referência relatos singulares, estabelecer uma análise qualitativa do processo. Busca-se localizar, no interior das peculiaridades de cada sujeito pesquisado, aspectos que possam contribuir para desvelar os significados da alfabetização para adultos, inseridos num contexto urbano letrado, e, desse modo, compreender as razões que levaram os sujeitos a deixarem a escola. Especial atenção é dada a episódios referentes às práticas de letramento exercidas antes e após o processo de alfabetização e às novas relações estabelecidas nos diferentes espaços sociais em que ocorre o uso da leitura e da escrita. 2.2 Os participantes da pesquisa e o processo de coleta de dados Frente às possibilidades de exploração da abordagem etnográfica, esta pesquisa foi conduzida por um trabalho de campo, em que foram feitas visitas aos locais de trabalho e às residências dos participantes, a fim de observar as interações em sua manifestação natural. É importante destacar que os primeiros contatos com os sujeitos ocorreram no segundo semestre de 2005, ainda na fase exploratória da pesquisa, momento em que se deu a seleção dos participantes. 51 A princípio houve o interesse de selecionar um grupo heterogêneo, composto por pessoas tanto do sexo masculino quanto do feminino e que fizessem parte da comunidade interna e externa da UFMG. Além dessa heterogeneidade, era fundamental um ponto em comum entre os participantes: todos deveriam ter sido alfabetizados no Proef-1 e evadidos tão logo tivessem adquirido as habilidades básicas da leitura e da escrita. Nesse primeiro momento, foram selecionadas quinze pessoas em potencial. Ao longo da atividade de investigação, os critérios iniciais para a escolha dos participantes da pesquisa tiveram que ser reavaliados, tendo em vista algumas questões pertinentes. Destacamos, inicialmente, o problema da localização dos ex-alunos, uma vez que alguns dados presentes nas fichas de matrícula se encontravam desatualizados. A maior dificuldade estava na localização das pessoas da comunidade externa ou que prestaram serviços na Universidade por meio de empresas terceirizadas, ao contrário do que ocorreu nas tentativas de localização dos funcionários efetivos da UFMG. Os contatos com os funcionários efetivos se deram por telefone e, em seguida, pessoalmente, no intuito de esclarecer os objetivos do trabalho e obter a autorização de participação no estudo. Inicialmente foram selecionados seis participantes, no entanto, ainda na fase exploratória, o silenciamento de um dos sujeitos frente às tentativas de contato indiciou o não interesse de participar da pesquisa. Graue and Walsh (2003) trazem importantes contribuições a respeito da questão da ética no campo da investigação. A abordagem da ética adotada pelos autores centra-se no plano do respeito aos sujeitos pesquisados. Ao tomar a ética como “ser justo”, remetem a Bruce Jackson29, que vê a importância de colocar-se na posição do sujeito sempre que houver dúvidas se determinada ação é ética ou não. Imaginar-se envolvido em uma situação e sentir-se como mera amostra de estudo de que não queira participar é sinal de que não se deve submeter o outro às mesmas condições. Graue and Walsh chamam a atenção para a necessidade de se obter a permissão do sujeito ou grupo pesquisado, uma vez que é “a permissão que permeia qualquer relação de respeito entre as pessoas” (p.76). A princípio essa 29 JACKSON, B. (1987) Fieldwork. Urbana: University of Illinois Press. 52 permissão seria negociada entre pesquisador e participante, no entanto, isso não costuma ser observado quando os sujeitos da pesquisa são crianças. Nas relações estabelecidas em nossa sociedade, são os adultos que detêm o poder, dão a permissão e fixam as regras. A crítica dos autores centra-se, portanto, no problema da nossa cultura não tomar o ponto de vista da criança que, na maioria das vezes, não é consultada (mas, sim, seus pais) sobre o desejo de fazer parte de um estudo. Mesmo focalizando a questão ética na perspectiva da investigação com crianças, é possível transpor as discussões de Graue and Walsh para esta pesquisa. O comportamento ético está ligado à atitude que se leva ao campo e implica a interpretação subjetiva dos fatos. Assim, mesmo que o desejo de não fazer parte da pesquisa não tenha sido explicitado por um dos sujeitos eleitos, as ligações telefônicas não retornadas, as justificativas apresentadas para não receber a pesquisadora em sua residência, como a falta de tempo e o excesso de trabalho, se configuraram em indícios da sua decisão de não ser incluído no estudo. Coube a nós apenas respeitar a sua vontade e não estabelecer julgamentos sobre a sua recusa. A tentativa de eleger somente pessoas que foram alfabetizadas no Proef-1 também se configurou num problema durante o processo de seleção dos participantes. Isso porque há que considerar as dificuldades de se delimitar a fronteira que separa o alfabetizado e o não alfabetizado. Se a inserção do usuário efetivo no mundo da escrita se dá pela alfabetização (aquisição de uma tecnologia) e pelo letramento (o desenvolvimento de habilidades que garantem o uso efetivo dessa tecnologia) ainda assim, há elementos que os distinguem, cuja compreensão tornou-se fundamental para a seleção dos participantes desta pesquisa. Neste estudo, apropriamo-nos do conceito de alfabetização de Soares (1998, 2004), ao considerarmos alfabetizado o sujeito que adquiriu a base alfabética, ou seja, aquele que detém a habilidade de codificação de fonemas em grafemas e de decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de escrita alfabético. O desafio que se colocou no processo de investigação foi de identificar os sujeitos que ingressaram no Proef-1 e, após um período de vivências no projeto, adquiriram a tecnologia da leitura e da escrita. Em outras palavras, 53 como definir de maneira segura que o processo de aquisição da tecnologia da escrita, isto é, o conjunto de técnicas — procedimentos, habilidades — necessárias para a prática da leitura e da escrita ocorreu, exclusivamente, no âmbito de um projeto de educação de jovens e adultos? Estamos cientes de que a resposta para essa questão é relativa, uma vez que a aquisição de conhecimentos sobre a escrita pelo adulto analfabeto deve ser compreendida, tendo em vista suas diferentes experiências vivenciadas, por meio de processos formais ou não formais de aprendizagem. Conforme Galvão (2004): Ao lado da escola, diversas outras instâncias também contribuem para que pessoas utilizem com maior freqüência e propriedade a leitura e a escrita: o trabalho, o sindicato, o partido, a igreja, a biblioteca do bairro, a associação, o clube... (p.150). Não desconsiderando o lugar social ocupado pela escola como a instituição em que, por excelência, ocorre o aprendizado da leitura e da escrita (Soares, 2004), o acesso ao mundo da escrita também pode ocorrer em outras instâncias não formais. Além disso, em se tratando de pessoas adultas analfabetas, temos que levar em conta as sucessivas entradas e saídas da escola ao longo dos anos, e mesmo se tratando de experiências escolares marcadas pelo fracasso e/ou pela exclusão, esses espaços também podem ter se constituído em momentos de aprendizagens que foram sendo acumuladas a outras experiências ao longo da vida. Diante dessas questões, elegemos, dentre os egressos do Proef-1, aqueles que compuseram a turma inicial de alfabetização e que, diante do desejo pela ampliação dos conhecimentos sobre o sistema de escrita, vivenciaram a experiência da reescolarização. Esta pesquisa, portanto, focaliza a análise em cinco adultos, trabalhadores efetivos da Universidade Federal de Minas Gerais, com no mínimo 20 anos de exercício nas áreas de manutenção geral e que participaram do Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos - 1º Segmento (PROEF-1), entre os anos de 1999 a 2004. O recorte temporal justifica-se por demarcar, respectivamente, o processo de mudanças de ordem 54 administrativa e pedagógica que resultaram na atual estrutura do Proef-130, bem como a saída dos participantes dessa pesquisa do projeto. Por se tratar de pessoas com estabilidade empregatícia, a localização dos sujeitos, como foi destacado, deu-se com facilidade e as primeiras conversas ocorreram nas suas respectivas unidades de trabalho, no Campus da UFMG: Lineu31, 66 anos, foi servente de obra por 26 anos e atualmente exerce a função de porteiro num dos prédios do Instituto de Ciências Biológicas (ICB); José, 67 anos, trabalhou como jardineiro durante 27 anos no Instituto de Ciências Exatas (ICEX) e atualmente está afastado, aguardando a aposentadoria; Alberto, 44 anos, 20 anos dedicados à Universidade, atualmente é auxiliar de eletricista na Escola de Educação Física (EEF); Vander, 54 anos, com 27 anos de exercício como servente de obra, é funcionário do Departamento de Manutenção (DM); Davi, 52 anos, jardineiro, com 27 anos de trabalho, atua no Horto do Campus. O reencontro com os egressos do Proef-1, porém, chegou a causar, inicialmente, estranhamento para a maioria dos ex-alunos. Com exceção de Vander, com quem eu costumava me encontrar no Campus da Universidade, já fazia alguns anos que eu não mantinha contato com os outros ex-alunos. Esses não se lembraram, de imediato, do meu nome, mas tão logo foi dito que se tratava da então professora alfabetizadora de EJA, suas memórias remeteram ao período em que participaram da turma inicial de alfabetização do Proef-1. As conversas estabelecidas com os participantes se constituíram em ricos momentos de interlocução, onde eventos de um passado recente foram lembrados. Fatos ocorridos em sala de aula, nomes de antigos colegas e das monitoras-professoras, lugares visitados foram alguns dos aspectos destacados nas primeiras entrevistas. Os depoimentos, a seguir, ilustram as percepções dos participantes sobre a experiência no Proef-1: José: Eu achei... Eu gostava de tudo, né? Mas o que eu achava muito interessante e até hoje falo e costumo até comentar com os colega meu... Mas que eu achei muito bonito é da... É da... É da gente... É da gente ser muito carinhoso com as professora... Fala professora né? 30 Ver Capítulo 1, páginas 38-39. 31 Os nomes dos participantes da pesquisa são fictícios. 55 Que tava no projeto ensinando a gente... É... Vem umas menina mais nova, bem mais nova que a gente podia ser pai delas umas duas ou três veiz... E aquele... Aquele carinho com a gente... Como se percebe, José avalia positivamente a sua participação no projeto. Inicialmente, diz ter “gostado de tudo”, mas logo em seguida deixa claro que uma das lembranças mais significativas foi a relação de afeto estabelecida entre os alunos e as monitoras-professoras. Observa-se, também, em seu depoimento, que a diferença de idade entre as professoras e os alunos foi demarcada pelo participante e indicia o quanto é significativo para o adulto em processo de reescolarização criar um vínculo de respeito e de confiança entre a professora mais jovem e o aluno com maior experiência de vida. Já Vander se lembrou da primeira aula com a professora Aline32, que precisou ganhar a sua confiança e a dos demais alunos da classe, uma vez que assumiu a turma inicial de alfabetização em substituição a uma outra professora: Vander: Mas aí oia, presta atenção assim... Aí eu pensei assim... Aí eu oiei falei assim... Aí chegou a Aline. Aí... Aí que eu vi falei assim... No dia que eu fui lá primeiro... Falei assim: “Aí eu vou hoje...” Falei assim: “Se eu for na aula e gostar... Bem, se não for... a partir de hoje eu não vou mais (...) Mesmo igual eu falei pra Aline já... Mas como eu diz a... É porque é... Acho que Deus iluminou aquela pessoa... Naquele momento daquela hora... Nossa... No primeiro dia da aula dela... Eu fui assim falei assim... Ai eu falei assim: “Ah, não dá pra... Não... Não dá pra ir sem ir na aula não... Falei assim: “Eu vou”. Percebemos que Vander se mostrou inseguro diante da chegada de Aline, o que o levou, inicialmente, a questionar a sua própria permanência no projeto, devido ao receio de não conseguir se adaptar ao perfil da nova alfabetizadora. Entretanto, como se observou, tão logo os trabalhos foram iniciados, Vander não teve dúvidas quanto ao fato de continuar freqüentando as aulas, uma vez que a identificação com a monitora-professora ocorreu de imediato. 32 Os nomes das monitoras-professoras também são fictícios. 56 Lineu também se lembrou com saudades do tempo em que lecionei na turma de alfabetização do Proef-1. Também se referiu a outras duas monitoras com quem, segundo ele, estabeleceu um forte laço de amizade: Lineu: Maize... Ah, agora que eu tenho saudade daquele tempo que você que era a nossa professora... A Maria Cecília... A... Gabriela, né? (...) Outro dia encontrei com ela (Gabriela) ali (no ICB)... (...) Eu... Eu... encontrei com ela (Gabriela) ali. E agora encontrei com você... O Bernardo33 ((seu colega de trabalho)) não... Não sabia que você queria conversar comigo não... É porque... Cheguei ali o Batata: “Ó Lineu a Iara, a Iara quer... Topar com você pra vê você...” Eu Uai: “Ó... será que ela vai embora?” e aí... Deu vontade de encontrar com você mesmo... Para Alberto, os lugares que visitou durante a permanência no projeto não apenas ampliaram seus conhecimentos, como também lhe permitiram criar vínculos com os colegas de classe. Uma das lembranças mais significativas foi a viagem que realizou à cidade de Ouro Preto, lembranças essas retratadas em fotografias tiradas durante o passeio e que ainda hoje permanecem em sua sala de trabalho na Escola de Educação Física da UFMG: Alberto: É... Eu aprendi com vocês muita coisa entendeu? Conheci vários lugar igual, cidade de Ouro Preto né? Que nós foram muito bom... Pesq.: A excursão? Alberto: É... Depois é... Depois o Davi também foi... Foi lá na (cidade de) Itabira. Lá... Diz ele, ele falou que não foi não tão bom igual... Cá no Ouro Preto... Pesq.: Que é mais longe? Cansou mais? Alberto: Não, é que ele falou comigo: “Ah, eu fui... Mas acontece que eu fui eu se senti muito triste... Porque você mais o Oscar não foi comigo”, entendeu? Pesq.: Faltou companheiro... Alberto: Isso... Pesq.: Pra visitar a cidade... Alberto: Isso... Aí realmente eu tenho recordação de vocês todas lá no meu álbum... A participação no Proef-1 significou para Davi muito mais que a aprendizagem da linguagem escrita; possibilitou-lhe ampliar o grupo de convívio e, sobretudo, conhecer melhor os próprios companheiros de trabalho, uma vez que a rotina diária no Campus impedia-os muitas vezes de falar de outros assuntos diferentes dos normalmente discutidos na lida: 33 Os nomes dos colegas de trabalho também são fictícios. 57 Davi: (...) Mas depois nesse... É... Nesse entrusamento que foi fazendo com a gente, foi incentivando a gente, a gente foi se abrindo, foi encontrando um colega, outro colega. (...) Davi: É o seguinte... A pessoa se convive, aprendi muito... Que você aprende a conviver com as pessoa, conhecer as pessoa. Eu... A gente tava trabaiando aqui (no Campus da UFMG), cê não conhecia nada, cê num conhecia ninguém, ninguém te conhecia, cê fica tipo numa prisão... Então foi muito bom você conhecer um conhecer outro... Pesq.: Você está falando que essa coisa de reunir o grupo, pra conversar... Davi: Isso é muito importante, né? Todos os sujeitos se dispuseram a participar da pesquisa e se sentiram felizes em poder contribuir, de alguma forma, com o estudo. Novos encontros puderam, então, ser agendados e passaram a ocorrer nos locais de trabalho dos ex-alunos e em suas residências. À medida que os contatos foram sendo estabelecidos, foi possível registrar, por meio de conversas informais ou de entrevistas gravadas, relatos que remetiam tanto ao período de suas vidas em que eram analfabetos quanto ao novo lugar em que se encontram atualmente, enquanto sujeitos alfabetizados. Esses dois lugares foram devidamente demarcados pelos participantes, cujas vozes presentes nos relatos permitiram claramente identificar mudanças na maneira de interagir com o mundo. As declarações de José ilustram bem essas reflexões. No passado, ele enfrentou dificuldades para participar da vida na cidade grande, dificuldades essas que, segundo ele, teriam sido menores se soubesse ler e escrever: José: É porque quando eu vim pra aqui (pra Belo Horizonte)... Pesq.: Hum.. José: (pausa) Foi muito difícil igual eu te falei, foi muito difícil o comecinho né? Pesq.: Hum... José: A primeira coisa é conhecer... É conhecer a cidade, conhecer o centro, pra você desenvolver... Pra você sair, trabalhar, andar sem precisar de ninguém. Foi muito difícil. Pesq.: Fala um pouco dessa dificuldade. José: Então foi muito difícil porque... No começo a gente depende que os outro anda com a gente, quando tá começando a andar só a gente tem que preguntar muito então... Foi um pouco difícil por aí. Pesq.: Hunrum... 58 José: Que é o primeiro começo do fato aí no centro da cidade, do serviço é você conhecer a cidade. Eu acho que isso é o primeiro ponto né? (...) Primeira dificuldade foi aprender andar, conhecer, aprender a ler um pouco... Isso no começo. Entretanto, hoje se percebe uma pessoa capaz de ler “muitas coisas” e de lidar com as situações do cotidiano com maior autonomia: Pesq.: Então tem coisa que o senhor não entende quando o senhor lê e tem coisa que o senhor entende ou o senhor não entende nada? José: Não... Entendo muita coisa... Pesq.: Muita coisa? José: É... Muita coisa... Pesq.: O que que o senhor entende? José: Então eu ia pegar uma conta de luz eu não sabia... Hoje eu leio ela toda... Sei... Sei quando ela tá... Ela... Ela... Ela... Se ela veio mais cara se mais baixa, o vencimento que eu não sabia, hoje sei tudo, então quer dizer que eu sei muita coisa... (...) José: (...) Chegava no supermercado... Pesq.: Hã... José: Né? Eu não sabia, eu não sabia os preço que tinha lá, na... Na... Nas praquinha. Pesq.: E agora? José: Na loja também do mesmo jeito... Hoje, hoje não, vou chegando e sei de tudo. Precisava de chamar minha esposa ou meus, meus dois menino pra me acompanhar pra mim não perguntar os outro. Pesq.: Hãrã... José: O ônibus também é difici... Era difici até na data que eu entrei derradeira vez com vocês ((se referindo ao Proef-1)). A coleta de dados foi feita, principalmente, por meio de observações participativas e entrevistas, no intuito de pesquisar o que representou ser alfabetizado na fase adulta e em que medida as aprendizagens adquiridas podem ser compreendidas enquanto condicionantes da não continuidade dos estudos. Erickson (2001) reconhece que a observação possibilita ao pesquisador perceber, de maneira aparente, o que as ações das pessoas significam para elas. Diante desse fato, considera que a observação deve caminhar juntamente com o ato de perguntar, para confirmar tais sentidos. 59 Para Erickson (2001), é importante que o pesquisador assuma uma postura crítica frente às interpretações e compreensões dos participantes. Segundo o autor, cabe ao etnógrafo “ir além do que os atores locais entendem explicitamente, identificando os sentidos que estão fora do alcance da consciência dos atores locais” (p.13). Essa foi a nossa busca no processo de invertigação. As entrevistas foram realizadas durante os meses de outubro de 2005 a junho de 2006. Os depoimentos foram gravados em fitas de áudio, gerando cerca de 40 horas de gravação. Foram feitos registros na forma de notas dos contextos e das impressões dos sujeitos, além disso, foram identificados materiais escritos que contribuíram para a análise dos dados. As entrevistas ocorreram tanto nas unidades de trabalho quanto nas residências. As visitas às residências possibilitaram a observação das interações estabelecidas na esfera familiar. Os encontros se constituíram em ricos momentos em que foi possível identificar diferentes formas de interação com a leitura e a escrita. Como exemplo, podemos citar o fragmento abaixo, em que Lineu revela à pesquisadora que costuma praticar a leitura da Bíblia em casa: Lineu: É todo dia de manhã cedo a gente lê um versículo (da Bíblia). Pesq.: E tem mais algum outro material que o senhor usa aqui (em sua residência)? Lineu: Livro aí até tem muito, mas eu... O que eu leio assim memo de manhã é só memo (a Bíblia) de manhã. Pesq.: Hunrum... Lineu: Pega a Bíblia, lê um versículo tal... Igual te falei, vou pro serviço. Uma das preocupações colocadas no processo de entrevista foi diminuir o quanto possível a relação de dominação que se estabelece entre o entrevistador e o entrevistado. Isso porque a pesquisadora atuou como monitora-professora dos participantes deste estudo. Foram muitos os elogios dirigidos não apenas a mim, mas também a outras monitoras-professoras, os quais podem muito bem significar admiração e carinho pelos anos dedicados ao projeto, mas que, numa situação de entrevista, podem representar a verbalização de um discurso que o entrevistado acredita que o outro espera receber. Na primeira entrevista concedida, Vander não mediu elogios aos integrantes do Proef-1: 60 Vander: (...) Que pra mim é o caso que eu tô falano é igual, igual cê foi... Igual Cê foi... passou muitas pessoa ali (no Proef-1) na... Na... Com nós ali... Mas... Não é porque tá perto do cê, que eu tô falano isso... Pesq.: Hãrã... Vander: Mas são, são quatro pessoa que me deixou assim, na memória mesmo foi ocê, a Aline, a Paula e a Michele... Pesq.: Olha que bom... Que bom! Foi possível perceber que algumas opiniões e pontos de vista dos participantes variaram sutilmente, tendo em vista o espaço no qual a entrevista era realizada — no trabalho ou em casa. Também houve situações em que essas variações ocorreram dentro do mesmo espaço interacional, em função, por exemplo, da chegada da esposa, da presença do filho ou de amigos. No depoimento abaixo, a chegada de Cláudia, esposa de Lineu, muda os rumos da conversa estabelecida entre a pesquisadora e o entrevistado. É bem possível que, sem a sua presença, Lineu teria mantido a idéia de que não teve oportunidade de acesso à escola assim que migrou para Belo Horizonte devido à falta de oportunidade. Percebe-se que a participação de Cláudia34 na entrevista faz com que Lineu reavalie o seu ponto de vista: Pesq.: (...) E fora da UFMG teve algum momento que o senhor tentou estudar aqui em Belo Horizonte? Lineu: Não. Pesq.: Por que não? Por que não estava precisando? Lineu: Inclusive não surgiu... Não surgiu oportunidade não. Claúdia: Você não quis bem... Lineu: Ondé? Claúdia: No Orôncio ali... Lineu: Orôncio... Pesq.: Onde? Claúdia: Colégio aqui pertinho (de casa) que tinha aula... Lineu: É... Foi bom... Foi bom ela falar que... Que eu tinha até esquecido. Bourdieu (1997) discute a relação de comunicação entre pesquisador e entrevistado, e destaca o risco de o primeiro assumir uma postura que exerce 34 Os nomes das esposas e dos filhos dos participantes são fictícios 61 uma violência simbólica capaz de afetar as respostas dos interrogados. Para o autor, a única forma de se reduzir drasticamente a violência simbólica é praticar o exercício da “escuta ativa e metódica”: Tentar saber o que se faz quando se inicia uma relação de entrevista é em primeiro lugar tentar conhecer os efeitos que se podem produzir sem o saber por esta espécie de intrusão sempre um pouco arbitrária que está no princípio da troca (principalmente pela maneira de se apresentar a pesquisa, pelos estímulos dados ou recusados, etc.) é tentar esclarecer o sentido que o pesquisado se faz da situação, da pesquisa em geral, da relação particular no qual ela se estabelece, dos fins que ela busca e explicar as razões que o levam a aceitar de participar da troca (p. 695). O autor também discute os efeitos que a relação desigual entre entrevistador e entrevistado pode acarretar na atividade da entrevista: É o pesquisador que inicia o jogo e estabelece a regra do jogo, é ele quem, geralmente, atribui à entrevista unilateral e sem negociação prévia os objetivos e hábitos, às vezes mal determinados, ao menos para o pesquisado. Esta dissimetria é redobrada por uma dissimetria social todas as vezes que o pesquisador ocupa uma posição superior ao pesquisado na hierarquia das diferentes espécies de capital, especialmente do capital cultural. O mercado dos bens lingüísticos e simbólicos que se institui por ocasião da entrevista varia em sua estrutura segundo a relação objetiva entre o pesquisador e o pesquisado ou, o que dá no mesmo, entre todos os tipos de capitais, em particular os lingüísticos, dos quais estão dotados (p. 695). De acordo com Bourdieu (1983), a aceitação ou recusa de um dado discurso decorre de um elemento que independe do sujeito; são as posições sociais nas quais o sujeito está inserido, num determinado campo, numa esfera social mais ampla que define a sua legitimidade. O valor daquilo que se diz tem um peso sobre essa aceitação ou recusa. Um discurso tem um valor maior ou menor em função do capital de autoridade de quem fala, para quem fala e como se fala. Esse capital de autoridade (entendido enquanto o discurso reconhecido como correto, adequado à situação) é dependente do conjunto dos “capitais” que o sujeito falante possui, que estão presentes na situação de comunicação: seja lingüístico, econômico, social, cultural. Ou seja, não é apenas o conjunto de conhecimentos lingüísticos, mas também o modo como ele é avaliado no mercado e pelo qual as pessoas atribuem preço numa situação discursiva. O capital lingüístico é constituído pela posição social das pessoas e também subjetivamente, sendo esse último entendido em função de uma apreciação subjetiva que cada sujeito faz. 62 José, por exemplo, parece compreender muito bem a relação de dominação que se estabelece entre os participantes numa relação discursiva. Ao final de uma das entrevistas que concedeu, acabou revelando que a sua preocupação naquele momento estava muito mais em apresentar uma fala correta do ponto de vista lingüístico e gramatical, uma vez que a expectativa era de que o seu desempenho seria avaliado pela pesquisadora (ou pela sua professora?). A preocupação de José não esteve, portanto, centrada no que dizer e sim no como dizer. Ao ser esclarecido de que o interesse estava no conteúdo de suas falas, a atividade de entrevista passou a ser menos tensa: José: Aquela vez que você fez comigo lá, fala entrevista, né? Lá no... No... ICEX... E... Ocê passou aquilo pra alguém? Não né? Pesq.: Não, ainda não. Porque eu tô... Depois que eu faço... Que grava... Aí eu pego e copio tudo. Eu vou escutando e vou digitando... (...) José: É o que eu falei pro cê. Só que a gente num sabe interpretar a... Direito e fala muitas coisa que a vez num dá pra você. E... Com o gravador que eu falei você vai digitando... Depois você vai colocando tudo no lugar... Aquelas... Aquelas conversas que a vez fora do lugar cê vai colocar ela no lugar que você quiser... Pesq.: Como assim fora do lugar? José: Que a vez eu falo uma aqui, sarto ela, ela num dá continuamento... Cê entendeu? Pesq.: É. Que a gente quando conversa a gente muda de assunto? José: Num é isso não... É. Aí, aí você vai por. E têm umas que a vez ela não arrima uma com a outra. Eu falo arrima... Modo que a gente não sabe explicar, fala arrima... Pesq.: Como assim? José: Arrimar é mesma coisa que ocê contar. Pesq.: Ah, você acha que você fala uma palavra... José: É... Que ela a vez, ela não dá aqui nessa palavra aqui. Vamo supor aqui ó: Biba... Pesq.: Bíblia... José: É, a vez eu falo outra palavra ela não dá pra você... Pesq.: Entender... José: Entende ela aqui... Pesq.: Não, eu entendi tudo que o senhor falou... José: E o continuamento aqui né?... Então igual eu falei. A vez chega lá, você vai achar de repente. Aí você vai por tudo... Arrumadinho... Pesq.: Ah, não isso é tranqüilo... Porque o senhor falou muito bem... José: Cê acha? Pesq.: Falou muito... Acho... Achei que sim... 63 José: Achei... Achei que eu num falei bem não... Pesq.: O que que o senhor acha que faltou então pra falar bem? José: Achei que foi muitas coisa ali que... Tava meio errado, mas... Pesq.: Errado como? Mas num era uma conversa? José: É. Pesq.: Então? A gente conversou sobre o tempo de escola... José: Foi... Pesq.: Conversou do tempo que o senhor era pequeno... José: É... Pesq.: Quando veio aqui pra Belo Horizonte... O que que poderia tá de errado lá? José: Ah, num sei achei que a vez podia ter alguma coisa assim, fora da... Coisa... Aí mas ocê sabe o que num encaixar num lugar deve encaixar na outra... (risos) Pesq.: (risos) José: O que eu pensei foi isso... Bourdieu (1983) afirma que “o domínio prático da gramática não é nada sem o domínio das condições de utilização adequada das possibilidades infinitas, oferecidas pela gramática” (p.158). O simples domínio da gramática sem a capacidade de fazer uso das situações lingüísticas, tendo em vista a situação social da qual participa, não garante sucesso no processo de comunicação. Nas trocas lingüísticas há, portanto, uma relação de luta simbólica, e esse fenômeno também é observado na entrevista. Cabe ao pesquisador ter essa consciência e ficar atento para não se sobrepor ao discurso do outro, impedindo que este explicite seu ponto de vista. Quando os capitais do pesquisador são maiores que os dos entrevistados, há uma relação assimétrica que gera um efeito de censura. O entrevistador acaba censurando tudo aquilo que não corresponde a suas expectativas e “aceita” sem questionar o que espera ouvir. É preciso, portanto, valorizar o entrevistado, pois, caso contrário, não haverá uma verdadeira situação de comunicação com o outro, mas, sim, uma estratégia de obter informação do outro. Assim buscou-se, durante as entrevistas, exercer a prática da escuta, sem a pretensão de julgar as atitudes do entrevistado, mas compreender o objeto de estudo a partir do seu ponto de vista. 64 2.3 Contribuições da Análise da Conversação para o processo de transcrição das entrevistas Os pesquisadores no campo da educação lidam a todo o momento com a análise de textos (falados ou escritos), produzidos por diferentes atores, em situações ou contextos sociais diversificados. No que se refere a esta pesquisa, durante o processo de coleta de dados, foram levantados um volume significativo de dados na forma de fala, produzidos pelos participantes. Em decorrência desse fato, algumas questões foram pertinentes: como analisar esses materiais de forma sistemática, original e compreensiva? No que se refere aos relatos coletados na atividade de entrevista, como realizar a sua transcrição, garantindo uma reprodução fidedigna, considerando os detalhes não apenas verbais, mas entanocionais e paralingüísticos, e ainda outras informações consideradas relevantes para a análise? As considerações de Cameron (2001) sobre a Análise da Conversação (AC) contribuíram para melhor esclarecimento dessas questões. De acordo com a autora, a AC é uma abordagem que se atém aos estudos do discurso falado, mas o termo “conversação” pode, a princípio, sugerir um campo de análise restrito, que engloba apenas os estudos das interações face a face. Tal reducionismo é contestado e, entendendo a conversação num sentido mais amplo, Cameron esclarece que a AC tem sido aplicada em inúmeras pesquisas, sejam aquelas preocupadas com as falas institucionais e políticas, ou circunscritas nas conversas telefônicas, nos gêneros da mídia, dentre outros. A preocupação com o texto falado (e não o texto escrito), produzido nas interações entre dois ou mais sujeitos num período determinado, em que ocorrem trocas de turnos (a cada momento a palavra é tomada por um dos participantes), se constituem em algumas das particularidades da AC prescritas pela autora. Outro aspecto que deve ser considerado na AC é a ocorrência de padrões seqüenciais durante a fala e a descrição dos mecanismos que as estruturam. Em outras palavras, busca-se compreender as regularidades produzidas durante as trocas de turnos e o que desencadeia uma determinada fala logo após a outra. 65 A AC diferencia-se da etnografia da fala. Enquanto a abordagem etnográfica busca relacionar a fala com o seu lugar de ocorrência, ou seja, relaciona o comportamento verbal ao contexto local em que ele ocorre, a AC centra-se na fala em si. A etnografia da fala considera relevantes aspectos que transcendem o âmbito da fala como a identificação dos participantes, a variedade de língua ou línguas que utilizam, seus conhecimentos sobre os temas da conversação, suas crenças e valores. A AC, ao contrário, toma a fala dos participantes como instrumento que abarca todos os indícios necessários para a análise. Tal idéia remete ao que Cameron denomina de uma versão pura da abordagem da AC centralizada nos dados. A autora reconhece a importância da análise dos dados empíricos para além do seu conteúdo verbal, no entanto, considera a análise minuciosa das interações faladas um convite à identificação e reflexão de padrões presentes em falas aparentemente não marcadas. O desafio está na análise das informações que os participantes da conversação não consideram relevantes, ou seja, é a busca pelo entendimento do óbvio. O falante corrente seleciona o falante seguinte e, logo em seguida, a fala do segundo participante é devolvida àquele que iniciou a conversação. Une-se a esse “modelo” o fato de que na atividade conversacional “um falante fala de cada vez”. O que a princípio pode ser um fato banal foi considerado por Harley Sacks uma forma complexa de interação em que negociações e renegociações locais são construídas durante a conversação. Segundo Cameron, o que gera a organização do turno não é um esforço natural do falante e sim os requisitos elegidos pelos falantes que conduzem a uma conversação ordenada e não caótica. Mas como os participantes administram o turno de modo a produzir os resultados desejados? Como os sujeitos percebem o momento da troca de turno? A utilização de outros recursos que vão além das estruturas lingüísticas opera a tomada de turno e a AC é a abordagem que tenta tornar explícitas as regularidades exercidas pelos falantes em situações particulares e locais. Cameron critica a posição dos analistas que, na busca por padrões seqüenciais regulares, criam princípios universais considerados válidos em toda atividade conversacional. Para a autora, é preciso levar em conta as questões culturais que orientam a organização do fluxo da conversação, 66 atividade coordenada e não aleatória que se estende no tempo. A troca de turno é regida pela alternância de pares adjacentes que ocorrem um após o outro e são mutuamente dependentes. Isso significa que o falante corrente lança para o segundo falante algumas possibilidades de retorno, restringindo, assim, o que deve ser dito por aquele que tomou o turno. Pergunta-resposta, saudação-saudação, convite-aceitação/recusa são alguns exemplos de pares adjacentes que apontam para o falante certas escolhas sobre o que deverá ser dito. De acordo com Cameron, Brown e Levinson perceberam que as escolhas estão atreladas às avaliações dos falantes que consideram os atos intimidadores ou não. Diante disso, é possível identificar, dentre as escolhas, padrões de possibilidades de alternativas: respostas positivas por serem “preferidas” tendem a serem diretas; respostas negativas consideradas “despreferidas” são, portanto, acompanhadas por hesitação e precedidas de justificativas. As questões discutidas por Marcuschi (2005) na obra Análise da conversação dialogam em alguns aspectos com as discussões de Cameron. A preocupação de Marcuschi está em compreender o que fazemos quando conversamos; quais são os esquemas que determinam a atividade conversacional; como a palavra é tomada numa conversa e em que sentido os conhecimentos e fatores lingüísticos e não lingüísticos interferem na conversação. Para o autor, a conversação é uma prática social cotidiana bastante comum, que propicia a construção de identidades sociais e podem se constituir num mecanismo de controle social e requer diversas coordenações de ações que transcendem a habilidade lingüística, sendo necessário, portanto, compreender seus mecanismos35. A década de 60 marca o surgimento da AC, momento em que as pesquisas centravam no estudo das estruturas organizacionais da língua. Sob influência das linhas da Etnometodologia e da Antropologia, o princípio norteador da AC era a descrição dos aspectos estruturais da conversação, convencionalizados dentro de um sistema de regras. Somente no início dos 35 Sendo as conversações naturais o seu principal foco de análise, a atividade conversacional é analisada por Marcuschi a partir de materiais empíricos concedidos por pesquisadores de Recife/PE, um rico conjunto de informações que se configuram em exemplos reais das reflexões do autor. Ver nota da página 6 em MARCUSCHI (2005). 67 anos 80, a partir dos estudos de J. J. Gumperz36, a preocupação da AC volta- se para a importância dos conhecimentos lingüísticos, paralingüísticos e socioculturais nas interações face a face: a influência da interpretação na conversação. Marcuschi expõe alguns resultados dessas duas perspectivas, refletindo sobre as conseqüências de se pensar a atividade conversacional em termos de organização e de interpretação. O autor não coloca em xeque a importância de uma perspectiva em detrimento da outra e revela que a AC não é uma atividade aleatória e, portanto, livre de regras complexas. Sendo altamente organizada e passível de ser estudada com rigor científico, a atividade conversacional é fruto das relações estabelecidas entre os participantes. Nesse sentido, as decisões tomadas pelos falantes não se dão exclusivamente no âmbito das estruturas organizacionais, mas são decisões interpretativas decorrentes das interações entre interlocutores inseridos num contexto sociocultural. Sendo o objeto de análise da AC as conversações reais coletadas empiricamente, o autor discute a questão da transcrição de conversações. De imediato, esclarece que não há melhor transcrição, mas, sim, transcrição que melhor atinge os objetivos do pesquisador. É com base nos objetivos da pesquisa que as decisões acerca do processo de transcrição serão tomadas: a escolha dos símbolos para marcar as falas, a troca de turnos, os silêncios, a respiração, a entonação, as pausas, dentre outros recursos verbais e não verbais37. De acordo com Marcuschi, a atividade conversacional é constituída basicamente por cinco características: 1- interação entre dois ou mais falantes; 2- ocorrência de uma ou mais trocas entre falantes; 3- seqüência de ações coordenadas; 4- realização simultânea entre falantes; 5- interação centrada. Os 36 GUMPERZ, John J. (1982). Discourse Strategies. Cambridge, Cambridge Univ. Press e GUMPERZ, John J. (1982ª). Language and social identity. Cambridge, Cambridge Univ. Press. 37 Para efeito de esclarecimento o autor sugere no processo de transcrição das conversações a utilização do sistema ortográfico seguindo a escrita padrão, sem desconsiderar que se trata de produções orais reais. Também apresenta um modelo de transcrição pautado em alguns sinais mais comuns: falas simultâneas; sobreposição de vozes; sobreposições localizadas; pausas; dúvidas e suposições; truncamentos bruscos; ênfase ou acento forte; alongamento vogal; comentários do pesquisador; silabação; entonação; repetições; pausa preenchida, hesitação ou sinais de atenção; indicação de transcrição parcial ou de eliminação. Fica claro, no entanto, que tais sugestões configuram-se num referencial e que não podem ser tomadas como o único modelo possível. Ver MARCUSCHI, 2005, Pp. 10-13. 68 princípios organizadores da conversação são problematizados de maneira detalhada, seguindo uma orientação do micro para o macro: o turno, as seqüências e, posteriormente, os organizadores globais. Ao recorrer às idéias de Sacks, Schegloff and Jefferson38, Marcuschi esclarece que o turno é definido como aquilo que o falante faz ou diz enquanto tem a palavra, sendo o modelo da conversação pautado na tomada de turno. Para Marcuschi, a dificuldade não está apenas na identificação do pesquisador de quando se constitui ou não um turno, mas, sim, o que gera essa mudança e qual o melhor momento para que ela ocorra. Falar um por vez; a escolha ou não pelo falante corrente de quem tomará o próximo turno; a utilização de mecanismos reparadores de tomada de turno em situações envolvendo falas simultâneas e sobreposições; os momentos marcados por pausas, silêncios e hesitações são considerados organizadores locais da atividade conversacional. O autor alerta, porém, que esses organizadores baseiam-se no modelo americano de interação e sendo a conversação determinada não apenas por conhecimentos lingüísticos, mas também paralingüísticos e socioculturais, é preciso considerar o caráter contextual das regras que orientam as trocas de turno. Marcuschi (2005), seguindo a proposta do lingüista H. Stenger39, distingue dois tipos de diálogos: os assimétricos e os simétricos. Nos diálogos assimétricos, como a própria denominação da palavra indicia, a relação entre os participantes na atividade conversacional é desigual. Apenas um dos participantes tem o direito de iniciar, orientar, dirigir e concluir a interação e, portanto, pressupõe o exercício do poder de um participante sobre o outro. As entrevistas, os inquéritos policiais e as interações em sala de aula configuram- se, segundo o autor, em modelos de diálogo assimétricos. O pesquisador, estando ciente da natureza assimétrica da entrevista, poderá criar mecanismos que visam reduzir as distâncias entre ele e o entrevistado. Quanto aos diálogos simétricos, apenas esses correspondem a uma conversação no sentido estrito. Numa conversação diária, por exemplo, pressupõe-se que os participantes têm 38 SACKS, H.; SCHEGLOFF, E. E. and JEFFERSON, G. (1974) A simplest Systematics for the organization of turn-takiing for conversation. Language, 50, 696-735. 39 As idéias de Stenger são extraídas pelo autor em DITTMANN, 1979, Pp.5-6. Dittmann, Jürgen (1979) Einleitung — Was ist, zu welchen zwecken und wie treiben wir Konversations- analyse?. In: —, ed. Arbeiten zur konversationsanalyse. Tübingen, Max Niemeyer. Pp.1-43. 69 o mesmo direito à auto-escolha da palavra e das decisões sobre o tema da conversa. Entretanto, para o autor, a idéia da simetria de papéis e de direitos na conversação é de certo modo relativa, uma vez que, nas interações face a face, os sujeitos estão atrelados às diferenças de condições sociais, econômicas, culturais e de poder que tornam desiguais as condições de participação no diálogo. De acordo com Marcuschi, “a própria construção e negociação de identidades na interação bem como a apropriação da palavra ficam afetadas por essas condições” (p. 16). Marcuschi discorre sobre os aspectos estruturais e organizacionais da análise da conversação e demonstra que a atividade não se constitui num conjunto aleatório e sucessivo de turnos, pelo contrário, trata-se de uma atividade complexa e organizada por situações de cooperação e coordenação. As tomadas de turno, as seqüências e os organizadores globais ganham forma por meio de decisões mútuas envolvendo os falantes. É o que se percebe no diálogo estabelecido com Davi, que interrompeu a entrevista por alguns instantes para relatar sobre um crime de estupro ocorrido em seu bairro. Davi explica que comprou o jornal popular “Aqui Notícias” na esperança de obter informações sobre o fato. Seu interesse era de alertar a sua filha para o crescimento da violência da cidade. Observa-se que a construção do discurso ocorre por meio da parceria entre pesquisadora e participante. Conforme estabelece Marcuschi, a conversação é, portanto, um processo dinâmico e cooperativo e se funda numa produção conjunta, sendo, portanto, uma atividade de co-produção discursiva. Essa construção do discurso pode ser percebida nas palavras em destaque: Pesq.: E o que mais te interessa nesse jornal? Davi: Uai, esse jornal a gente comprou pra lê saber alguma notícia o que que tá acontecendo, né? Igual tinha acontecido um estrupamento com uma... Uma nossa vizinha aí... Pesq.: É mesmo? Davi: Aí diz que tava no jornal... Eu comprei. Acontece que num desses jornal num tava não... Pesq.: Não foi esse não... Davi: É... Desse tinha, só que num tava comigo ((explica que a notícia saiu numa outra edição do jornal)). Aí eu falei assim “há, vou comprar pra ver e mostrar pra minha menina”. Explica as coisa, fala com a menina da gente, ingnora como é que o... As coisa tá o mundo, né? Era até colega dela, né? Agora ela num tá saindo com ela não. Aí eu sempre falava com ela, brigava 70 com ela: “cuidado que essa menina num é de confiança de ficar saindo”. Falava, falava, falava, falava... Aí agora tem tempo que ela (sua filha) num tá mais se envolvida com ela (vizinha), porque... Ela (sua filha) passou pra ser crente, vai pra igreja, sai do serviço, vai pra igreja, então o tempo fica mais... Pesq.: Mais curto... Davi: Mais curto. Arrumou um namorado que também é crente, aí muda o... Pesq.: O estilo de vida... Davi: de vida, é. As idéias de Cameron (2001) e Marcuschi (2005) acerca da Análise da Conversação apresentadas anteriormente viabilizaram a tomada de algumas decisões nesta pesquisa. Entendendo que no processo de investigação pesquisadora e participantes interagem mutuamente, assumindo papéis de co- produtores discursivos, os dados obtidos nas entrevistas configuram-se num conjunto de formas de interação verbais e não verbais, originários de relações mútuas que envolveram a negociação (consciente ou não) sobre o que deveria ser dito ou não dito. Além disso, ao reconhecer a natureza assimétrica das relações na entrevista — já alertada por Bourdieur (1983) e retomada por Marcuschi (2005) — reconhecemos as limitações dessa atividade e o quanto é importante relativizar as declarações dos participantes. Outro aspecto relevante refere-se ao fato de que grande parte dos dados coletados na pesquisa se constituiu em textos falados, o que exigiu o uso de símbolos para marcar as falas dos participantes, a fim de criar um padrão coerente e compreensivo dos registros. Os eventos singulares, como hesitações, reelaborações, retomadas, que a princípio não seriam considerados relevantes, são, nesta pesquisa, percebidos como reveladores, uma vez que podem contribuir para a apreensão dos significados atribuídos às práticas de uso da leitura e da escrita, ou seja, à importância ou não de ser participante de certas práticas de letramento em detrimento de outras. Por fim, é preciso estar ciente de que certas respostas dadas à pesquisadora, mais do que significar as reais idéias dos sujeitos, podem se configurar em “respostas preferidas”, ou seja, os sujeitos dizem aquilo que, a princípio, imaginam que o pesquisador queira ouvir e não necessariamente o que pensam. Cabe a nós, pesquisadores, estar atentos a esse fato. 71 2.4 A identificação de falantes nas transcrições A respeito da atividade de identificação de falantes nas transcrições de fala-em-interação, mais do que o resultado de uma prática simples e objetiva, trata-se de um procedimento dotado de status analítico pleno. Ochs (1979), uma autora clássica nas discussões sobre o uso da linguagem em interação social, considerou a transcrição de fala como atividade analítica em sua totalidade, uma prática significativa e de fundamental importância em pesquisas. A identificação de falantes envolve a atribuição de uma determinada identidade aos participantes. Sendo produtos pautados por determinados propósitos analíticos, as transcrições estão sujeitas a discussões de ordem teórico-metodológica que exigem do pesquisador a justificativa de suas escolhas acerca dos procedimentos de transcrição. Garcez (2002) apresenta seis dos nove pontos levantados por Duranti40 que remetem à discussão das questões teórico-metodológicas acerca da preparação de transcrições: a transcrição é um processo seletivo; não há transcrição perfeita e sim versões diferentes, revistadas e, portanto, os formatos de transcrição variam; sendo produtos analíticos, os textos das transcrições devem ser atualizados e comparados com o material a partir do qual foram produzidos; as escolhas devem ser explicitadas, o que exige do analista a consciência crítica das implicações teóricas, políticas e éticas do processo (Pp.84-85). Garcez analisa a posição de alguns autores sobre os procedimentos para a identificação dos participantes em transcrições. Associados a diferentes tradições de pesquisa, tais estudiosos promoveram um verdadeiro embate de idéias na tentativa de estabelecer qual das ações seria a mais recomendável nessa atividade. Representante das posições da Análise Crítica do Discurso (ACD), Michael Billig41 realiza forte crítica ao discurso de Emanuel Shegloff42, representante da “retórica fundadora da análise da conversa” (AC). Billig sugere que, no processo de transcrição e análise, a identificação dos falantes 40 DURANTI, A. Linguistic anthropology. Cabridge, Cabridge University Press, 1997. 41 BILLIG, M. (1999a). Whose terms? Whose ordinariness? Rhetoric and ideology in conversation analysis. Discourse & Society, 10 (4), Pp. 543-558. 42 SCHEGLOFF, E. A. (1997). Whose text? Whose context? Discourse & Society, 8. 72 não ocorra por meio da utilização de nomes próprios e, sim, por categorias identitárias ou de pertencimento de grupo, como, por exemplo, homem/mulher, pai/filho, amigo/amiga, professor/aluno. Tal procedimento é justificado por representar os papéis sociais que os participantes assumem nas relações estabelecidas na sociedade43. Schegloff, em resposta a esses argumentos, considera que os representantes da ACD, preocupados com a definição de categorias identitárias, acabam selecionando certas categorias em detrimento de uma multiplicidade de identidades sociais que possam ser relevantes para os participantes. Em outras palavras, o analista se fecha numa categoria de identidade escolhida por ele próprio e encerra a identidade dos participantes num limite pré-estabelecido. Essa atitude vai contra a perspectiva êmica, já que não toma o ponto de vista dos participantes — que certamente se reconhecem em outras categorias — mas, sim, impõe certas categorias de identidade aplicadas de maneira exógena em detrimento de outras. Para Schegloff, a identificação por nomes próprios se constitui numa alternativa viável no processo de transcrição, uma vez que o nome é utilizado, na maioria das vezes, pelos próprios participantes nas situações de fala-em- interação. Enquanto o nome próprio se constitui numa categoria aparente, pois identifica o gênero, as demais categorias devem emergir dos dados no processo de transcrição e análise dos turnos. Debate semelhante ao de Billig e Shegloff ocorreu, segundo Garcez (2002), entre Firth e Wagner e outros seguidores da AC, e Long, Gass, Kasper e demais representantes da corrente denominada Aquisição de Segunda Língua (ASL) acerca do uso da linguagem na compreensão de processos internacionais. Novamente as críticas dos analistas da conversação frente à posição dos analistas da ASL recaem no uso de categorizações de identidade em seus estudos. 43 De acordo com GARCEZ (2002), M. BILLIG toma como exemplo os problemas inerentes à transcrição da fala-em-interação numa situação como a de um estupro em que a identificação dos envolvidos fica comprometida caso seja feita a identificação através do uso de nomes próprios. Nesse sentido, reforça seu posicionamento a favor da identificação por categorização identitária, nesse caso, estuprador/vítima, como forma de garantir ao leitor a identificação dos papéis de cada sujeito na situação analisada. Ver GARCEZ, p. 86. 73 Para Wagner44 e, posteriormente, Firth e Wagner45, o modelo de uso da linguagem e a compreensão do processo interacional adotado pela ASL são equivocados. Nos estudos desenvolvidos pelos ASL, o emprego de categorizações, como falante nativo (FN) versus falante não-nativo (FNN) para identificar os participantes em transcrições, traduz um padrão de “normalidade” para as práticas e o discurso daqueles pertencentes ao primeiro grupo, em detrimento de uma categorização de “aprendizes” ou mesmo de “comunicadores deficientes” aos pertencentes ao segundo grupo. Long46 reconhece que esse problema trata de uma não-questão para a ASL, que não percebeu a possibilidade de outras categorias identitárias diferentes daquelas definidas pelos analistas. Garcez (2002) se posiciona a favor dos argumentos de Schegloff e colaboradores, em detrimento da visão da ADC e da ASL. Considera as identificações por meio de categorias identitárias equivocadas, pois estreitam as possibilidades de identificação de outras categorias, além de se constituírem em categorias eleitas pelos próprios estudiosos e não na perspectiva dos participantes. Na visão do autor, a identificação por nome leva em conta esses problemas e minimiza a imposição de categorias, privilegiando a perspectiva êmica na pesquisa. Ao realizar um breve levantamento de práticas de identificação de falantes nas transcrições em alguns periódicos especializados, Garcez chama a atenção para o fato de, nas pesquisas brasileiras, ainda prevalecer a categorização identitária, mais precisamente a categorização social didática professor/aluno, diferente dos estudos internacionais onde se observa maior incidência da identificação por nome47. Essa constatação conduz à seguinte reflexão: é preciso problematizar se realmente os participantes assumem exclusivamente uma categoria identitária em toda a extensão da transcrição. 44 WAGNER, J. (1996). Foreing language acquisition though interaction – a critical review of research on conversational adjustments. Journal of Pragmatics, 26, Pp. 215-235. 45 FIRTH, A. e WAGNER, J. (1997). On discourse, communication. and (some) fundamental concepts in SLA research. The Modern Language Journal, 81 (3), Pp. 285-300. 46 LONG, M. H. Construct validity in ALA research: a response to Firth and Wagner. The Modern Language Journal, 81 (3), Pp. 318-323. 47 De acordo com GARCEZ (2002), além da baixa representatividade de trabalhos que apresentam dados de transcrição no Brasil (14/137 no total), apenas 3/14 deles utilizam nomes próprios para a identificação dos participantes, sendo que a metade deles (7/14) identifica os sujeitos por categoria identitária professor/aluno. (Ver GARCEZ, p. 93). 74 Sobre a identificação dos falantes, nesta pesquisa, baseamo-nos nas idéias de Garcez (2002) e, portanto, elegemos a identificação por nome próprio para nos referirmos aos participantes deste estudo. A escolha justifica-se por acreditarmos que é nas interações que os sujeitos definem seus papéis e constroem suas identidades. O desafio está em perceber esses diferentes papéis assumidos pelos participantes, não definindo a priori categorias identitárias. 2.5 Em busca de normas para transcrição As reflexões sobre o processo de transcrição da fala coletada na atividade de entrevista favoreceram a construção de algumas normas para transcrição para esta pesquisa. O quadro a seguir foi baseado em exemplos extraídos de Marcuschi (2005) e Preti (2002) e, de acordo com as declarações dos referidos autores, tais exemplos configuram-se em referenciais dentro de um leque de possibilidades. 75 Ocorrências Sinais Exemplos Afirmação . - Como é que chama a sua esposa? - Maria. Silabação - - - - In-fra-ção gra-ví-ssi-ma sete ponto. Interrogação ? Você chegou a ver? Exclamação ! Aí ela fala: “Ah que bom!” Fala pausada ... É... Porque esse... a... Gente estuda um pouquinho, né? Pausas prolongadas Pausas longas (pausa) Pausas curtas (pequena pausa) Quando eu... embarquei na... primeira... Transcolim... (pausa) Aqui eu falei assim: “Ó gente, será que eu que tô nesse mundo adentro?” Pequena pausa ao longo da fala Uso da vírgula Olha, ela, ela fez o... É como diz, né? Ela tem o quarto ano lá da roça. Entonação enfática Letra maiúscula Não vou deixar. AMANHÃ VOCÊS PODE TRABALHAR VIU... Comentários da pesquisadora ((minúscula)) Porque eu não entendia ((fala sorrindo)) se ele tava aberto ou se tava coisa, o carro dava uma trela eu... ((bate uma mão na outra, simulando uma batida de carro)) Palavras e expressões subentendidas (minúscula) Ele tá aqui (na Universidade). Você sobe a (Avenida) Amazonas direto. Incompreensão de palavras ( ) Temente a Deus ( ) todo domingo você vai na igreja as igreja estão cheia, entendeu? Pausa preenchida, hesitação ou sinais de atenção Reprodução de sons Hunrum... Ah... Hã? Citações (onde ecoa a voz do participante e/ou de outros) : precedido de “ ” Aí quando foi um dia os companheiro falou: “Ah, não! Vamos passar aqui por baixo no Parque Municipal cê sai lá é mais fácil”. Para indicar que o trecho representa apenas parte da fala (...) Foi bom ela falar que eu tinha até esquecido (...) Eu falei: “Ô Ozéia quando surgir uma vaga lá você fala comigo que eu vou estudar também”... Alongamentos de vogal A vogal é repetida, a depender da duração Aquela casinha pequeniniiiiiiha Aí eu te levo lááááá... 76 2.6 Concepções de discurso e o processo de análise dos dados Diante da complexidade do texto falado, compreender o termo “discurso” tornou-se necessário e, nesse sentido, o pensamento de Mills (1997) se constituiu num dos referenciais no processo de análise das entrevistas. Sara Mills, em Discourse (1997), delineia os contextos teóricos dentro dos quais o termo discurso é utilizado, identificando, assim, os seus significados. Segundo a autora, ao mesmo tempo em que o termo tem sido freqüentemente usado nas diferentes disciplinas — teoria crítica, sociologia, lingüística, filosofia, psicologia social, dentre outras — não há um termo genérico que o defina. Ao contrário, o que se observa é uma variação de significações entre as disciplinas e no interior delas. Mills propõe uma forma de mapear os caminhos em busca da definição de discurso: é preciso recorrer concomitantemente aos dicionários, à etimologia da palavra (contexto da pronúncia), e a termos utilizados em contraste ao discurso. Quanto a este último, a autora traça os meios pelos quais diferentes autores dão sentido ao termo. Na visão de David Crystal48, discurso pode ser definido, dentro da lingüística, em contraste à idéia de texto. Para compreender seu significado, é preciso distinguir linguagem oral e escrita, ou seja, Análise do Discurso de Análise de Textos. Enquanto o discurso foca na estrutura da língua falada — entrevistas de conversação, comentários, falas — o texto foca na estrutura da língua escrita — textos e ensaios, avisos, capítulos, etc. Autores como Hawthoorn49 se opõem ao contraste entre texto e discurso. Segundo Mills, o maior problema está na dificuldade de delimitar a fronteira que separa discurso e texto, uma vez que, na literatura, identificamos estudos que tratam das questões que envolvem discurso oral ou escrito e texto oral ou escrito. Outra tentativa de definição do termo discurso foi proposta, segundo Mills, por Émile Benveniste50, ao contrastar discurso com sistema de linguagem. Benveniste toma a linguagem enquanto instrumento de 48 Ver MILLS, 1997, P. 3. 49 Ver MILLS, 1997, P. 3. 50 Ver MILLS, 1997, P. 4. 77 comunicação expressada no discurso. Sendo a sentença construída na fala humana em ação e, portanto, com inúmeras variedades que não se definem a priori, a linguagem deixa de ser concebida enquanto um sistema de signos e passa a representar um sistema de comunicação. Ao tomar discurso como domínio da comunicação, Benveniste contrasta o termo com a história (distinção francesa em decorrência do uso de diferentes tempos passados para a narrativa formal de eventos falados). Discurso seria, nesse sentido, cada pronúncia assumida entre falante e ouvinte, sendo o primeiro munido da intenção de influenciar o segundo. Linguagens falada e escrita são consideradas como discurso: o discurso oral inclui todas as formas do dizer, da expressão mais simples até a mais elaborada; o discurso escrito — presente em todos os gêneros em que há um falante que diz algo para um outro — ecoa as “vozes” do oral ao longo da história. De acordo com Mills, a teoria estruturalista e pós-estruturalista criticou a idéia da linguagem como mera atividade de expressão e como um veículo de comunicação. A linguagem define os teóricos estruturalistas: é um sistema com regras, limitações e efeitos próprios definidos no pensamento e expressões dos indivíduos. Outros teóricos, como Roger Fowler51, contrastam discurso com ideologia. Para esse autor, “’Discurso’ é fala ou escrita vista do ponto de vista das crenças, valores e categorias que ele incorpora” 52. (Mills, 1997, p.5). A ideologia constitui formas de ver o mundo, de organizar e representar as experiências que se inserem num contexto comunicativo, materializadas no discurso. Para Mills, essas diferentes definições de discurso indiciam o quanto o termo é flexível, sendo, pois, necessário demarcar que concepção é adotada no estudo: “O que é necessário é ser capaz de decidir em qual contexto o termo está sendo usado e assim à qual significado está vinculado” 53. (Mills, 1997, p.7). Nesse sentido, a autora elege o pensamento de Michael Foucault54, 51 Ver MILLS, 1997, P. 5. 52 “‘Discourse’ is speech or writing seen from the point of view of the beliefs, values and categories which it embodies. (Todas as traduções são de nossa responsabilidade). 53 “What is necessary is to be able to decide in which context the term is being used, and hence what meanings have accrued to it”. 54 Ver MILLS, 1997, P. 6. 78 que, a seu ver, foi capaz de isolar em seu trabalho a variação de significados que o termo vem acumulando. Foucault delineou três definições para discurso: 1- o domínio geral de todas as declarações; 2- um grupo indivisível de declarações; 3- uma prática regulada que abarca um número de declarações 55 (p. 6). Mills analisa a influência dessas diferentes definições dentro das diversas correntes teóricas. Na Cultural Theory Critical, o discurso é entendido num sentido geral sob dois aspectos: tratado como fala e conversação (influência da etimologia francesa) ou como domínio geral da produção e circulação de declarações baseadas em regras. Na perspectiva de Mikhail Bakhtin56, discurso refere-se a uma “voz” dentro de um texto ou posição da fala (de que lugar a fala é produzida, a voz de autoridade). Na Linguistics, alguns teóricos, como Brown and Yule57, vêem o discurso como sentenças de uso abstrato, enquanto Sinclair and Coutthard e Carter and Simpson58 tomam como parte estendida de texto com organização interna, coerência e coesão, indo além das pronúncias ou sentenças. Já outros lingüistas defendem a idéia de que o discurso é definido no contexto em que ocorrem as pronúncias. Para os teóricos da Social Psychology e da Critical Discourse Analysis, as diferentes significações de discurso unem-se aos princípios da Linguistics e da Critical Theory. Tanto os psicólogos sociais quanto os analistas críticos relacionam o termo com as relações de poder e as estruturas resultantes das pronúncias autorizadas. Os primeiros, porém, fazem uso da metodologia derivada de análises de discurso e análises de conversação, enquanto os segundos tomam as metodologias da lingüística e da teoria cultural para compreender o funcionamento do discurso e seus efeitos sobre os participantes. Tendo como fonte os relatos orais de adultos egressos do Proef-1, temos concentrado a atenção, neste trabalho, em três aspectos da problemática das expectativas e significados da alfabetização: 1.) o que motivou o ingresso no Proef-1; 2.) o que moveu a interrupção do processo de 55 1- “the general domain of all statements”; 2- “an individualizable group of statements”; 3- “a regulated practice which accounts for a number of statements. 56 Ver MILLS, 1997, P. 7. 57 Ver MILLS, 1997, P. 8. 58 Ver MILLS, 1997, p. 8. 79 continuidade de estudos; 3.) as práticas de letramento de que os sujeitos têm participado. Em relação ao ingresso no projeto, focalizamos, principalmente, os aspectos referentes às representações de escola na infância; o analfabetismo, mais precisamente, o significado de ser analfabeto num grande centro urbano e as relações estabelecidas com o objeto escrito; e os significados atribuídos às práticas de leitura e escrita. No que se refere ao segundo aspecto, consideramos que a aquisição das habilidades básicas de leitura e escrita se constituem numa condicionante para a saída do projeto. Sendo assim, por último, destacamos o uso que os participantes têm feito da linguagem escrita. Nesse sentido, a resposta à questão “para os egressos do Proef-1 “O que significa ser alfabetizado?” pressupõe estar ciente de que, ao tomar como objeto de análise os depoimentos orais de adultos alfabetizados sobre o significado da alfabetização nas suas vidas, há que se considerar a distância entre o discurso autorizado da sociedade sobre ser/estar alfabetizado e as reais expectativas dos sujeitos. Isso porque, nas vozes dos participantes, ecoam não apenas suas percepções sobre a alfabetização, mas também outros discursos. 80 CAPÍTULO 3 TRAJETÓRIAS DE VIDA DE ADULTOS ALFABETIZADOS: LEMBRANÇAS DE UM PASSADO COM RARAS OPORTUNIDADES DE USO DA LINGUAGEM ESCRITA 3.1 Memória e os processos de produção da lembrança A lembrança é a sobrevivência do passado (Bosi, p. 53). Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (Bosi, p.55). (...) a “matéria-prima” da recordação não aflora em estado puro na linguagem do falante que lembra: ela é tratada, às vezes estilizada, pelo ponto de vista cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situado (Bosi, p.64) Os fragmentos extraídos da obra de Bosi (1994) Memória e sociedade: Lembranças de velhos expressam, respectivamente, os pensamentos de H. Bergson59, de M. Halbwachs60 e de F. Bartlett61 sobre a memória e os mecanismos de produção da lembrança. Mais do que diferentes definições de memória, tais conceitos repercutem na maneira como concebemos o objeto do passado. Memória, como define o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, é a Faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos (...) Aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já vividas; lembrança, reminiscência (p.1890). Vista nesse aspecto, memória é um termo genérico que designa uma faculdade da mente responsável pela retenção de acontecimentos pretéritos aprendidos ou vividos na/pela experiência humana. Mesmo quando definida à 59 BERGSON, Henri (1959). Matière et mémoire. In: Henri Bergson, Oeuvres. Paris: PUF. 60 HALBWACHS, Maurice (1925). Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Félix Alcan e HALBWACHS, Maurice (1956). La mémoire collective. Paris: PUF. 61 BARTLETT, Frederic (1932). Remembering. Cambridge: Cambridge University Press. 81 luz da psicologia, a palavra ainda guarda a idéia de que o conteúdo do passado pode ser “retido” na mente e “revivido” no tempo presente. Memória, nesse sentido, é concebida como: Função geral que consiste em reviver ou restabelecer experiências passadas com maior ou menor consciência de que a experiência do momento presente; é um ato de revivescimento. Termo geral e global para designar as possibilidades, condições e limites da fixação da experiência, retenção, reconhecimento e evocação (p.1890). Essa concepção de memória como uma espécie de “máquina” programada para registrar os fatos e as situações vividos se aproxima das idéias difundidas por H. Bergson. De acordo com Bosi (1994), em meados do século XX, Bergson elaborou uma “rica fenomenologia da lembrança” (p.43), ao propor o debate sobre tempo e memória, definindo esta última como um processo pelo qual os acontecimentos do passado vêm à tona na mesma forma e intensidade quando vividos no tempo pretérito. Assim, por meio da lembrança, o sujeito revive suas experiências anteriores: Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (Bosi apud Bergson, p. 47). Nessa perspectiva, o papel da consciência está, portanto, em colher e escolher o que não é atual, trazendo-o à tona. Nesse sentido, memória é concebida como conservação do passado. O pensamento bergsoniano recebeu críticas de novas teorias sobre a memória, porém os próprios conceitos dicionarizados indiciam que o princípio da conservação ainda está presente em nosso imaginário. Segundo Bosi (1994), M. Halbwachs inaugurou um novo modelo explicativo sobre o processo de produção das lembranças, ao colocar em pauta o princípio da memória e suas relações com o psiquismo e a sociedade. A chamada teoria psicossocial ampliou as discussões ao dar tratamento à memória como fenômeno estritamente relacionado ao meio no qual o sujeito está inserido e, portanto, entendido à luz de estudos que buscam apoio nas teorias sociológicas. 82 O verbete “memória social”, presente no Dicionário de Ciências Sociais, esclarece que, ao propor o debate sobre o caráter social da construção da memória humana, Halbwachs absorve-se das idéias de Durkheim62, pensador que tomou a questão da memória como ponto de partida na argumentação em defesa da especificidade das representações coletivas. Durkheim procurou mostrar que, do mesmo modo que não podemos reduzir a memória mental à simples memória física, não há possibilidade de reduzir a memória coletiva a aspectos individuais. Tal demonstração foi retomada por Halbwachs, que procurou dialogá- la com a literatura psicológica e com os princípios filosóficos de Bergson. Se com Durkheim temos o modelo do “individual versus o coletivo”, com Halbwachs vemos claramente uma oposição entre “o psicológico e o social”, introduzindo ainda nesse debate a associação da memória às questões do tempo e da história. O fragmento abaixo expressa a perspectiva sociológica adotada por Halbwachs no estudo sobre a memória, presente em sua obra Les cadres sociaux de la mémoire: Falamos nossas lembranças antes de evocá-las; a linguagem e todo o sistema de convenções sociais que lhe é solidário permitem, a cada instante, reconstruir o nosso passado (HALBWACHS, M. Op. cit., p. 279) — ou, como ressalta F. Châtelet, o prefaciador da mesma obra: Pois, enfim, o que significa dizer que, no fundo, só há lembrança socializada sem dúvida, seria necessário escrever: social — senão que não se trata de uma função, nem de uma faculdade do psiquismo normal, do pensamento, do homem, do sujeito, mas de uma instituição? (op. cit., p. x). (Dicionário de Ciências Sociais, p. 740). De acordo com Bosi (1994), o fato de não atentar para os estudos da memória em si, mas para os “quadros sociais da memória” fez com que Halbwachs saísse do campo individual e adentrasse o âmbito das relações sociais, interferindo nos processos que culminam na lembrança dos fatos passados. Assim, as relações a serem determinadas ficam adstritas à realidade interpessoal das instituições sociais: A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo (Bosi apud Halbawchs, p.54). 62 DURKHEIM, Émile (1985). Les règles de la méthode sociologique. Paris. 83 A teoria psicossocial não vê a possibilidade de o sujeito conseguir manter “... intacto o sistema de representações, hábitos e relações sociais íntimas da infância”, isso porque “a menor alteração do ambiente atinge a qualidade íntima da memória” (Bosi, p.55). Nesse sentido, a memória individual está atrelada a uma memória grupal, que, por sua vez, prende-se à memória coletiva de cada sociedade. Não há memória que fuja das determinações do presente. O hoje influencia diretamente o curso da memória, sendo a linguagem o seu principal instrumento socializador. O princípio da memória coletiva é constituído graças ao poder da linguagem que liga no mesmo espaço histórico cultural a imagem do sonho, o que é lembrado da vigília atual. Imagens e sonho podem, num primeiro momento, ser aparentemente de natureza individual, no entanto, os dados da coletividade imbricados na própria língua indiciam a influência grupal no resgate ao passado: “... o maior número de nossas lembranças nos vem quando pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam” (Bosi apud Halbawchs, Pp.54-55). Ainda confrontando o princípio da conservação do passado e a teoria psicossocial, percebe-se que, enquanto o primeiro dá ao sujeito o poder de conservar em si o passado de modo inteiro e autônomo, vemos na segunda a preocupação em relativizar esse princípio, ao sugerir um outro viés que explique os processos que culminam na lembrança: “se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar” (Bosi, p. 54), portanto, as lembranças passadas estão condicionadas às relações estabelecidas no meio em que vivemos. O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbawchs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual (Bosi, p.55). Para Bosi, no processo de reconstrução dos eventos pretéritos pelo velho, ocorre um processo de “desfiguração” do passado. Isso porque as lembranças resgatadas estariam imbricadas de valores e ideais do presente. 84 Assim, nesse processo de reconstrução, o passado ganha nova forma a partir de uma leitura individual e grupal, remodelada pelo sujeito que lembra. Diante desse fato, é inaugurado o princípio ideológico presente nesse processo de resgate. Introduzem-se nessas discussões as relações entre a memória e o contexto. Os primeiros registros sobre a memória e o contexto foram cunhados por C. Bartlett, que utilizou o conceito de “convencionalização63” para ligar o processo cultural de um dado momento histórico ao trabalho da memória: o que foi evocado (lembrança) sofre uma modelagem no contexto de idéias e valores dos sujeitos que evocaram. Em outras palavras, Bartlett considera que o conteúdo adquirido na experiência é alterado quando lembrado, embora a forma seja conservada. O argumento de Bartlet é que incorporamos novos dados em nosso esquema mental, a tal ponto que o ato de lembrar representa o processo no qual reconstituímos fatos e situações de maneira imaginária, processo este constituído na relação que se estabelece entre nossas ações no mundo atual com nossas experiências passadas. A lembrança, portanto, é nada mais do que detalhes significativos que aparecem comumente sob a forma de imagem ou linguagem. Bartlett também distinguiu “o que se lembra” de “como se lembra”. A matéria da recordação (o que se lembra) está condicionada pelo interesse social que o fato tem para o sujeito, enquanto que no modo da recordação (como se lembra) entram variáveis ligadas à psicologia da personalidade, temperamento, caráter, etc. Nesse sentido, observa-se uma estrita relação entre o ato de lembrar e a relevância do fato recordado para o sujeito que recorda. Os grupos tendem a criar esquemas de narração e de interpretação dos fatos. Trata-se de “universos de discurso” e de “significados” que gera uma versão legitimada dos acontecimentos. Enquanto de um lado a organização grupal orienta o ponto de vista dos sujeitos que constroem a sua imagem para 63 De acordo com BOSI (1994), o conceito de convencionalização foi desenvolvido pelo etnólogo W. H. R. Rivers que o utilizou no ensaio The History of Melanesian Society. Segundo a autora, “Convencionalização, para Rivers, é o processo pelo qual imagens e idéias, recebidas de fora por um grupo indígena, acabam assumindo uma forma de expressão ajustada às técnicas e convenções verbais já estabelecidas há longo tempo nesse grupo. Bartlett utilizou as idéias de Rivers transpondo o conceito para a área psicossocial e postula que a “matéria da prima” da recordação não aflora em estado puro na linguagem do falante que lembra”. (Ver BOSI, 1994, p. 64). 85 a história, de outro há estruturas de narração em que não se observa a presença da elaboração grupal. Neste último caso, não se observa um conjunto de sujeitos que se encarregariam de consagrar determinado evento pretérito, gerando, portanto, o esquecimento de certos acontecimentos ou situações. Quando o objeto evocado não é precedido de um reforço, de um apoio dos outros, o que foi lembrado é interpretado como sonho ou fruto da imaginação, o objeto evocado não foi, portanto, modelado pela ideologia grupal. A evocação solitária (mais próxima da lembrança imagem de Bergson) se sobrepõe ao que o grupo toma como legítimo. Das discussões realizadas, fica a importância de se refletir sobre a “inerência da vida atual ao processo de reconstrução do passado” (Bosi, p. 66) e saber que o princípio da construção social da memória está baseado na idéia de que “... a ‘nitidez’ da memória não deva ser avaliada isoladamente, mas posta em relação com toda a experiência social do grupo” (Bosi, p.65). Tomando o pensamento de Bartlett: “sempre fica o que significa” (p.66), entendendo que “ficar” não é do mesmo modo que antes, ele é alterado. 3.2 Memória e oralidade: a produção sócio-histórica de sentidos Assim, ao considerar a importância da formulação das memórias que não puderam se processar na história, está- se falando sobre a possibilidade de um trabalho cuidadoso de produção discursiva da memória e do passado. Isso é bem diferente da idéia mais simples de “resgate da memória”, que suporia uma memória discursiva que já está lá, significada e pronta para ser dita (Payer, p.55). Rememorar envolve processos de associação e de retomadas, e, no processo de reconstrução do passado, o sujeito que lembra re-faz as suas experiências a partir das interações com o outro e o ambiente. Para Montenegro (1992), os acontecimentos passados podem ser recuperados através da memória. Presente nos livros, nos documentos, nos discursos de dirigentes, nos filmes e narrada sob o ponto de vista do grupo dominante, a história oficial guarda um passado que diverge, na maioria das vezes, das lembranças presentes nas memórias dos indivíduos e dos diferentes grupos sociais que vivenciaram os acontecimentos numa outra perspectiva: dos vencidos, dos perseguidos, dos resistentes. Seja individual ou coletiva, a 86 memória carrega em si uma singularidade e é através do nosso olhar sobre o momento atual que as situações passadas são reconstruídas. Montenegro vê a possibilidade de resgatar imagens “perdidas” no tempo. Tendo como matéria a memória, a história oral é um instrumento de apoio nesse processo de reconstrução do passado. Através dos relatos de pessoas que participaram de eventos passados, é possível recuperar uma série de momentos da história e construir novas interpretações, levando-se em conta novos olhares sobre os fatos pretéritos. Nesse sentido, o conteúdo do passado pode ser resgatado na atividade de entrevista. A análise dos relatos orais possibilita a apreensão de formas de pensamento, valores, maneiras de compreender a realidade, mudanças e permanências nos hábitos dos entrevistados. A história de vida narrada está repleta de elementos que nos ajudam a conhecer “... a história em que a memória em tela foi construída” (Montenegro, 1992, p.150). O fragmento abaixo expressa as idéias do autor sobre o trabalho de memorar: O ato de entrevistar, de sentar para ouvir as memórias, aproxima-se bastante da maiêutica socrática. Esta seria a própria “arte” de fazer, através do diálogo, com que os homens fossem aproximando-se do bem, da verdade, do justo, que estava depositado em cada um. O trabalho de memorar, que se estabelece através do diálogo entre entrevistador e entrevistado, assemelha-se à maiêutica socrática, sobretudo pela empatia que deve existir. O entrevistador deverá colocar-se na postura de parceiro de lembranças, facilitador do processo que se cria de resgatar as marcas deixadas pelo passado na memória. Entretanto, vale destacar que a relação que se estabelece entre o sujeito e o passado (da memória) está em constante mudança, diferentemente da “verdade” socrática (Pp.149- 150). Considerar que as relações entre o sujeito e o passado estão em constante mudança significa reconhecer que as lembranças são resgatadas num processo de reconstrução dos fatos aprendidos ou vividos no tempo pretérito. Sob o olhar do presente, o sujeito reconstrói os eventos do passado, diferente da filosofia socrática que concebe a verdade enquanto elemento imutável e, portanto, conservada no tempo e no espaço. Payer (2005) reconhece a importância da oralidade no processo de produção e circulação de sentidos, no entanto, opõe ao termo resgate, em defesa do princípio da formulação histórica da memória no processo de 87 produção discursiva do passado. As lembranças não são resgatadas, tal como os fatos foram constituídos no passado. O conteúdo da memória “não está lá”, pronto no passado, aguardando emergir nas profundezas da memória. Para a autora, é preciso refletir sobre as condições de produção dos conteúdos da memória e o papel da dinâmica social no conteúdo dessa produção. Da mesma forma que há conteúdos que retornam da memória, outros são esquecidos, esquecimento este necessário ou imposto nas relações com o mundo real. O conteúdo do que foi lembrado jamais será tal como o evento passado. Para efeito de esclarecimento, cabe, nesse momento, refletir sobre o termo “resgate”, proposto por Montenegro (1992) de modo a não cometermos equívocos e erroneamente entender seu pensamento sob a ótica de H. Bergson. Diferente de Bergson, que defendia a possibilidade de retenção e posterior emersão das experiências passadas pelo sujeito, tal como vividos no tempo pretérito, Montenegro toma a memória como um processo de reelaboração do real e defende a idéia da “construção” ou “produção” de uma outra história, extraída dos relatos orais. O autor vê a possibilidade do resgate da memória coletiva e individual no processo de construção dos acontecimentos passados, não como ocorreram anteriormente, mas como forma de se elaborar uma nova versão dos fatos históricos. Não podemos descartar, porém, os riscos de se eleger o termo “resgate”, uma vez que tal escolha pode sugerir a retomada dos ideais bergsonianos. Nesse sentido, Payer (2005) assume uma postura mais segura ao pensar que devemos (...) considerar as condições de produção do retorno atual dos conteúdos dessa memória histórica na dinâmica social. Há certas condições em que o retorno da memória é possível, mas há também condições em que o esquecimento, necessário ou imposto, atinge o conteúdo da memória, obscurecendo-o ou transformando-o de um modo incontornável, e o que se poderá dizer dessa memória não coincidirá com um conteúdo que “já está lá” (p.47). Se Montenegro (1992) fala da importância da entrevista como recurso que ajuda a colher informações sobre o passado, Payer (2005) destaca os problemas com os quais nos deparamos após o processo de coleta de dados. Para a autora, os relatos colhidos não podem ser tomados como meros dados empíricos, isso porque, em matéria de textos orais, inclui o contexto histórico 88 de produção dos relatos. Nesse sentido, a autora toma os dados obtidos nas entrevistas como fatos discursivos e, portanto, constituídos nas relações sócio- históricas, sendo necessário tomar as lembranças produzidas, livres de neutralidade. Há que se considerar, portanto, uma formulação de conteúdo da memória: Formular, nessa perspectiva, significa dar estatuto de linguagem (de real, portanto) a sentidos que, apagados, não foram ou não são possíveis ao sujeito no conjunto do dizível. Formular significa então poder acolher sentidos apagados que, embora sem lugar, não deixam de funcionar no sujeito de um modo constitutivo; significa trazê-los à tona, dar-lhes um destino (Payer, p.55). As pesquisas que lidam com textos orais, nos estudos da linguagem ou na história, requerem, segundo Payer, a reflexão sobre questões ligadas à Análise do Discurso e em que sentido este campo de estudo dialoga com a questão da memória e da oralidade. Quando se dá um tratamento eminentemente empírico à oralidade, estamos considerando-a fora do seu contexto histórico de produção. Os dados devem ser tomados como fatos discursivos, ou seja, a oralidade é historicamente produzida, entendendo por oralidade, “um lugar sócio-histórico de produção e circulação de sentidos” (p.47). Ao reconhecer que a oralidade deve ser entendida como prática discursiva, Payer recorre ao pensamento de Michael Pêcheux e deixa clara a interferência das condições de produção externa à língua, no modo como o discurso oral é construído. Em outras palavras, o que é dito, em grande parte, foi constituído da incorporação de diferentes “vozes”. Quando os adultos alfabetizados dizem sobre o tempo passado, em que eram analfabetos, suas lembranças não são “resgatadas” e muito menos produzem um discurso imparcial. Dos fatos lembrados, muitos reforçam o discurso oficial sobre o analfabetismo e mesmo reconhecendo certa individualidade, nas falas dos participantes também ecoam discursos da sociedade sobre “ser analfabeto”. Seus relatos estão, portanto, imbricados de elementos (discursos) já constituídos acerca dessa condição. Nesse sentido, não podemos negar que os discursos produzidos durante as entrevistas estão envolvidos nos embates das práticas discursivas que se conflitam na sociedade. 89 A proposta, portanto, é compreender o que os adultos alfabetizados lembram e de que forma tais lembranças são formuladas, levando-se em conta que se trata de um discurso sobre “ser analfabeto”, produzido por aqueles que se encontram hoje num outro lugar: de pessoas alfabetizadas. A essas questões junta-se o fato de que diferentes discursos externos ao sujeito sobre o analfabeto e o analfabetismo também entrecruzam nas falas e nos ideários sobre “ser analfabeto”. 3.3 A inserção no mundo da escrita – momentos distintos de interação com o objeto escrito: a infância, a adolescência, a vida adulta Neste tópico, discutiremos os aspectos da trajetória de vida dos ex- alunos do Proef-1, focalizando os modos de inserção no mundo da escrita. Nosso intuito é discutir, à luz das reflexões de Galvão (2004, 2002), Galvão e Soares (2004), Soares (2004), dentre outros autores, as semelhanças e as particularidades em relação às oportunidades de acesso à cultura escrita, da infância à fase adulta, que hoje reflete na maneira como os participantes percebem o objeto escrito e com ele interagem. Galvão (2004) analisa as possíveis relações entre os níveis de alfabetismo e as práticas de letramento de entrevistados participantes da pesquisa do INAF64 e algumas variáveis, como o nível de leitura dos pais, a presença ou não de materiais escritos em casa, na infância, e os usos da leitura e da escrita pelos pais e parentes. Partindo de questões, como “A prática de leitura é um bem que se herda e que se lega?”; “O gosto pela leitura é adquirido na família, com os pais e as mães, ou é possível adquirir esse gosto em outras instâncias sociais?”, a autora analisa alguns dados sobre alfabetismo e associa os níveis dos entrevistados às experiências com a leitura e a escrita na infância, na família e reflete em que medida o pertencimento etário, social e geográfico está relacionado aos usos da escrita pelos pais e pelos participantes do estudo. 64 Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional. 90 De acordo com Galvão, as relações entre os graus de alfabetismo dos entrevistados e a relação que seus pais ou parentes mantinham com o mundo da escrita estão, segundo os dados do INAF, diretamente relacionadas. Nesse sentido, quanto maior o nível de alfabetismo dos participantes, menor o índice daqueles cujos pais e mães são analfabetos. Em contrapartida, a grande maioria dos entrevistados classificados como analfabetos teve pais e mães que não sabiam ler nem escrever65. Os dados do INAF também revelam uma relação estrita entre a capacidade em usar a escrita e a presença de materiais escritos nas casas dos entrevistados, no período da infância, bem como os usos efetivos desses materiais pelos pais ou parentes. Constata-se que a proporção de analfabetos que nunca conviveram com nenhum material de leitura é bem maior do que aqueles que foram classificados nos níveis mais altos de alfabetismo66. Seguindo essa tendência, o contato com grande diversidade de materiais escritos em casa, na infância, se deu entre os grupos que apresentam maior nível de alfabetismo. Nesse sentido: Constata-se, assim, que os entrevistados que mais apresentam uma relação de intimidade com o mundo da cultura escrita tiveram em suas casas, ainda durante a infância, contato com uma grande diversidade de materiais escritos (p.130). Para Galvão (2004), diante dessas constatações, é possível pensar a respeito de “... um alto grau de reprodução no que se refere aos usos da leitura e da escrita, entre as diferentes gerações” (p.128). Além do nível de alfabetismo do entrevistado estar relacionado ao nível de alfabetismo de seus pais ou parentes, verifica-se a tendência das novas gerações apresentarem maior nível de alfabetismo em relação aos seus antepassados. Observa-se, portanto, que as gerações futuras têm superado as gerações anteriores, o que, 65 Os dados do INAF revelam o quanto é desigual a relação entre pessoas classificadas como analfabetas e aquelas com maior nível de alfabetismo. Enquanto apenas 10% dos analfabetos entrevistados informaram que tiveram pais e mães que sabiam ler e escrever, o índice entre os sujeitos classificados no nível 3 de alfabetismo é de 56%. Situação semelhante é observada quando são analisadas as correlações entre o grau de instrução dos participantes da pesquisa e a capacidade de ler e escrever de seus pais e mães. Essas desigualdades refletem no modo como a leitura e a escrita são transmitidas às futuras gerações. Sobre essa questão, ver GALVÃO, 2004, Pp.128-129. 66 Para efeito de esclarecimento, enquanto 42% dos analfabetos não conviveram com nenhum material escrito na infância, entre os sujeitos que alcançaram o nível 3 de alfabetismo, o índice é de apenas 3% (ver GALVÃO, 2004, p.129). 91 na visão da autora, indicia certo esforço por parte dos pais de buscar estratégias para que o filho os supere, bem como o esforço do filho de superar a geração anterior de tal maneira que consiga escapar do seu destino natural. Tomando-se, de maneira geral, alguns aspectos da trajetória de vida dos egressos do Proef-1, observa-se uma relação estrita entre seus níveis de alfabetismo e suas práticas de letramento com as variáveis discutidas por Galvão (2004). A respeito dos sujeitos desta pesquisa, consideramos que a inserção deles no mundo da escrita pode ser melhor compreendida se levarmos em conta o nível de leitura de seus pais, a presença ou não de materiais escritos nas suas residências, durante a infância, e os usos que seus pais ou parentes fizeram da leitura e da escrita. Em outras palavras, o perfil dos nossos entrevistados se enquadra nas tendências verificadas pelo INAF. Os participantes desta pesquisa tiveram pais e mães analfabetos ou com baixo nível de escolaridade. Oriundos de cidades do interior de Minas Gerais, onde as condições de acesso à escola e as práticas de letramento são bastante restritas, eles tiveram pouco ou nenhum contato com materiais de leitura na infância. Além disso, a maioria não guarda lembranças de momentos em que participaram de práticas de leitura, quando seus pais, suas mães ou parentes realizaram a leitura de materiais escritos. Neste último caso, a própria condição de analfabetos dos pais e parentes ou mesmo a dificuldade de acesso aos materiais de leitura certamente se configuraram em fatores que restringiram ou até mesmo inviabilizaram a inserção dos sujeitos em situações que envolvem práticas de letramento. De acordo com Galvão (2004), embora os resultados do INAF revelaram que os filhos de pais analfabetos ou com pouca escolarização e que tenham tido pouco ou nenhum contato com materiais de leitura em casa, durante a infância, tendem a apresentar baixo nível de alfabetismo, essa correlação não pode ser considerada determinada. Isso significa que, mesmo que a relação estabelecida entre as gerações anteriores, no que se refere à leitura e à transmissão desse hábito às novas gerações, configure-se como forte tendência estatística, ou seja, quanto mais anos de estudo os pais possuem, maior a probabilidade de que eles ajudem seus filhos nos estudos, 92 há uma parcela da população brasileira que rompe a barreira do óbvio67. De acordo com Galvão: (...) é estatisticamente improvável que alguém com muitos anos de escolarização, com um bom nível de alfabetismo não tenha tido, em casa, contato nenhum com materiais de leitura durante a infância. Por outro lado, não se pode negligenciar que, mesmo entre aqueles com poucos anos de estudo ou que apresentam baixos graus de letramento, constata-se uma significativa presença de materiais escritos nas casas onde passaram a infância (...) Assim, se por um lado, parece que o contato com materiais de leitura diversos desde a infância constitui um fator muito importante para que, quando adulto, o indivíduo alcance maiores níveis de alfabetismo, por outro lado, essa correlação não pode ser tomada de maneira absoluta. (p.130). Para Lahire (1997), as estatísticas constituem-se em produções de dados, freqüentemente arbitrários, que não incorporam as configurações específicas dos fenômenos, uma vez que a realidade é compreendida numa perspectiva macro. Se, por um lado, as teorias da reprodução analisam globalmente o meio social de origem, e as práticas familiares cotidianas são explicadas sob a ótica da condição de classe, por outro, o autor reconhece a heterogeneidade das camadas populares e busca compreender as diferenças de resultados escolares, a partir da análise de trajetórias singulares. Lahire (1997), no entanto, reconhece que assumir uma postura radical e renegar as análises estatísticas em prol da incorporação dos princípios etnográficos na pesquisa não garantirá, por si só, o entendimento da realidade. Agindo dessa maneira, estamos apenas modificando o foco de análise, e o que não pode ser identificado, em virtude do distanciamento, que é próprio da visão macro, também deixa de ser percebido se nosso olhar estiver direcionado para apenas uma pequena parte do real. Na visão do autor, a sociologia diferencia-se das demais disciplinas tanto por ter seu modo de pensar relacional quanto por evitar que certos traços sociais sejam tomados de modo absoluto. A sociologia, portanto, configura-se num instrumento que pode ajudar na compreensão de casos específicos, sem anular as contribuições das análises baseadas em aspectos globalizantes. De acordo com Lahire: 67 Nesses casos, o sucesso escolar do aluno estaria associado a outros fatores, como o incentivo dos pais nos estudos (ver GALVÃO, 2004, p.138). 93 Quando queremos compreender “singularidades”, “casos particulares” (mas não necessariamente exemplares), parece que somos fatalmente obrigados a abandonar o plano da reflexão macrossociológica findada nos dados estatísticos para navegar nas águas da descrição etnográfica. E, geralmente, a questão do elo ou da articulação entre estas duas perspectivas não se coloca nem àqueles que, etnógrafos ou estatísticos convictos, falam do mundo de modo diferente, mas como o mesmo sentimento de dar conta do essencial. Ora, em vez de fazer de conta que a compreensão de casos singulares acontece por si só, colocando-nos de imediato e ingenuamente do lado daqueles para quem a questão da representação ou da generalização não causa nenhum problema, optamos, no quadro de uma antropologia da interdependência, por estudar explicitamente uma série de questões (singularidade/generalidade; visão etnográfica/visão estatística; microssociologia/macrossociologia; estruturas cognitivas individuais/ estruturas objetivas...) a respeito de um objeto singular limitado. E, sobretudo, questionar a prática — muito criticada nos estatísticos — que consiste em juntar, em uma mesma categoria, realidades consideradas diferentes, e que, logicamente, implica sacrificar sua singularidade (p. 14). Galvão (2004) também reconhece as limitações das pesquisas estatísticas que não conseguem explicar a multiplicidade de fenômenos e, ao reiterar as idéias de Michel de Certeau68, considera que a análise das histórias de trajetórias particulares pode auxiliar a ultrapassar a análise estatística que tende, como é de sua natureza, “a tornar óbvio e linear aquilo que é inventado cotidianamente” (p.142). A análise dos percursos de sujeitos singulares favorece a compreensão do modo como a leitura e a escrita estão inseridas em suas vidas. “Auxiliam a dar rosto, ‘carne e osso’ a quem, em muitos estudos, encontra-se diluído em variáveis como origem social ou grau de escolaridade” (Galvão, 2004, p. 142). Ao esclarecer sobre as implicações de se apreender a realidade sob a ótica de trajetórias singulares em detrimento da eleição de princípios globalizantes, Galvão remete às idéias de Jacques Revel69: Uma realidade de análise não é a mesma dependendo do nível de análise — (...), da escala de observação — em que escolhemos nos situar. Fenômenos maciços, que estamos habituados a pensar em termos globais (...) podem ser lidos em termos completamente diferentes se tentarmos apreendê-los por intermédio das estratégias individuais, das trajetórias biográficas, individuais ou familiares, dos homens 68 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. 69 REVEL, Jacques. Apresentação. In: Revel, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p7-14. 94 que foram postos diante deles. Eles não se tornam por isso menos importantes. Mas são construídos de maneira diferente (Galvão apud Revel, p. 142). As questões discutidas anteriormente justificam a análise de alguns aspectos referentes ao modo como os sujeitos da pesquisa têm-se relacionado com a escrita. A atenção, nesse momento, estará voltada para certas peculiaridades que tornam suas histórias de vida singulares. Essas particularidades merecem ser refletidas, uma vez que poderão oferecer subsídios para entender o significado da leitura e da escrita para os entrevistados. Neste texto, para refletir sobre os diferentes níveis de habilidade de letramento dos participantes, focalizaremos a análise dos seus relatos, partindo do pressuposto de que não é possível analisar o discurso sem considerar o contexto em que ele é produzido. Discurso é, aqui, considerado na perspectiva de Foucault, ou seja, é a prática social de produção de textos (orais ou escritos), sendo, portanto, uma construção social de produção e não individual, e que deve ser analisado, levando-se em conta seu contexto histórico-social, suas condições de produção (Fischer, 2001). Discurso é fala ou escrita vista do ponto de vista das crenças, valores e categorias que ele incorpora (Mills, 1997). É, portanto, o resultado da interação entre os interlocutores que produzem textos verbais e não-verbais, que refletem uma visão de mundo determinada, necessariamente, vinculada à do(s) seu(s) autor(es) e à sociedade em que ele(s) vive(m). Um dos sujeitos desta pesquisa é Lineu, filho de pais analfabetos; seu pai e sua mãe nunca freqüentaram a escola e ele considera que a falta de interesse dos pais o impediu também de estudar. A figura do pai é lembrada com respeito, mas, ao mesmo tempo, com certo rancor por não lhe ter dado a oportunidade de conhecer a escola na infância: Lineu: (...) Inda foi há poucos dias eu mais minha esposa conversando, eu o... O estudo quarquer poquinho já ajuda muito, né? Pesq.: É mesmo? Lineu: Ajuda muito. Porque quando eu vim pra aqui (Belo Horizonte) porque... Eu... Fui nascido e criado na roça, vim de lá. Com cinco, nove ano de idade... Aí meu pai, com idade de sete ano (pequena pausa)... Arranjou uma enxada pra mim, eu e outra pro meu irmão que nós somo 95 gêmio (...) Aí... Meu pai é falecido... Acho que você memo... Acho que você mesmo que... Que... Que nós tava estudando cê falou... Você mesmo ou a Maria Cecília? ((o fato relatado por Lineu se refere a monitora-professora Maria Cecília)) Falou assim pra gente... O que que a gente tinha que contar na... Na adolescência (...) Aí ela falou... Que a gente contar... Se tinha saudade da adolescença eu falei: “Se... quem dera tivera jeito de esquecer”... Pesq.: É mesmo? Lineu: Era um prazer... Pesq.: Não tem saudade... Lineu: Não tenho saudade porque a gente sofreu muito. Igual eu tô dizendo... Meu pai já é falecido... Maize... Tem aquele ditado: “falar a verdade não merece castigo”. Ele era tão ruim pra nóis... Lineu se considera uma pessoa que passou por muitas dificuldades na vida, sobretudo durante os 38 anos em que viveu no interior. Entretanto, acredita que essas dificuldades poderiam ter sido amenizadas, caso dominasse a leitura. Natural de Alvarenga, pequena cidade do interior de Minas Gerais, passou a infância até a fase adulta trabalhando na roça até o momento em que, aos vinte e dois anos, se casou e, conforme seu depoimento, pôde viver livre do poder de seu pai. Assume uma postura cética quando cogitado das dificuldades impostas pela vida na zona rural, o que pode ter inviabilizado o seu ingresso na escola. Para Lineu, a longa distância entre a casa e a escola, bem como a sua inserção precoce no mundo do trabalho não tiveram tanta importância quanto a falta de apoio. O não incentivo do pai, que, segundo Lineu, “nunca falou: ‘vai na aula hoje pra cê vê quantos aluno tem’ teve maior peso na sua não escolarização: Lineu: Mas aí sobre o estudo. Aí (meu pai) não deu estudo nem um dia pra nóis, né? Pesq.: Então você não foi à escola quando você era pequeno... Lineu: Não. Eu saí do... Do poder dele com vinte e dois ano, casado. Casei com vinte e dois ano de idade. Ele nunca falou: “Vai na aula hoje pra cê vê quantos aluno tem”... Não. Só serviço... Reconhecemos o quanto é limitado estabelecer apenas um modelo explicativo que justifique o não acesso à escola de pessoas que hoje se encontram na fase adulta. É consenso que é preciso levar em conta um conjunto de fatores — econômicos, sociais, culturais, políticos — na análise 96 das trajetórias de sujeitos que não ingressaram ou não permaneceram na escola. Não desconsiderando o peso dos problemas que o cotidiano lhes impôs, como a falta de escolas, o difícil acesso a elas ou o trabalho precoce, dentre outros, chamamos a atenção para a justificativa apontada por Lineu sobre o desinteresse de sua família na sua inserção no ensino regular. O que a princípio caracteriza-se como uma explicação reducionista, uma vez que o não acesso à escola é justificado devido à falta de interesse da família, em especial à dureza do pai que se manteve “indiferente aos desejos do filho de estudar”, pode revelar aspectos que explicam a não escolarização de Lineu e que merecem ser analisados. Mesmo considerando suas declarações excessivas, já que apontam apenas um culpado pela sua não inserção na escola, seu discurso contém elementos fundamentais que remetem para a relevância do incentivo dos pais nos estudos do filho. De acordo com Galvão (2004), a análise de trajetórias individuais evidencia que os níveis de utilização da leitura pelos sujeitos não são determinados apenas por fatores econômicos, sociais e geográficos. A “mobilização familiar”, expressada por meio do uso de determinadas estratégias e práticas cotidianas, explícitas ou não, tem-se revelado como uma importante condicionante na configuração das práticas de letramento de pessoas de trajetórias marcadas por percalços e dificuldades. Filhos de pais e mães analfabetos ou com poucos anos de escolarização, que receberam influências positivas quando crianças por meio de atitudes, muitas delas inconscientes, romperam a barreira do óbvio e prosseguiram em suas trajetórias como leitores: no passado, foram incentivados a ler em voz alta, e seus pais, mesmo não sendo capazes de compreender o significado do que aprendiam, vistoriavam periodicamente seus cadernos, no intuito de avaliar se estavam limpos, organizados e se a letra estava legível. Essas ações representam, segundo Galvão (2004), atitudes de esforço por parte dos pais para que seus descendentes consigam superar as limitações impostas pela vida. Conforme as idéias de Lahire: Moral do bom comportamento, da conformidade às regras, moral do esforço, da perseverança, são esses os traços que podem preparar, sem que seja consciente ou intencionalmente visada, no âmbito de um projeto ou de uma mobilização de recurso, uma boa escolaridade. Inúmeras características próprias à forma escolar de relações sociais 97 estão próximas desses traços: apresentação pessoal ou apresentação dos exercícios, cuidado com os cadernos e atitudes corretas (Galvão apud Lahire, Pp. 145-146). Mesmo não sendo possível apontar uma resposta segura e precisa que explique os reais motivos que inviabilizaram o acesso de Lineu à escola, podemos, no entanto, problematizar se a convivência num ambiente familiar marcado pelo estímulo aos estudos teria refletido de forma positiva em sua vida. É possível, portanto, especular em que medida o não esforço por parte dos pais para que freqüentasse a escola se constituiu numa condicionante para que Lineu acabasse herdando o “destino natural” da família. Dessa forma, Galvão (2004) afirma que (...) “herdar” o hábito de ler e “transmiti-lo” não é algo que se dá naturalmente, mas exige um trabalho e um esforço cotidianos, tanto por parte das gerações que “legam” quanto daquelas que “herdam” (p. 149). Se a mobilização familiar, em alguns casos, tem forte peso no sucesso escolar dos sujeitos, parece que não exerceu tanta influência na vida de Alberto. Natural de Inhapim, pequena cidade do interior de Minas Gerais, Alberto foi criado, desde o seu nascimento, pelos tios, ambos analfabetos. Apesar de analfabeta, sua tia sempre insistiu que ele estudasse e não mediu esforços para matriculá-lo e dar-lhe condições para que freqüentasse a escola. Por diversas vezes, encaminhou-o pessoalmente até a sala de aula e sempre comentou da importância dos estudos; porém, Alberto, depois de inúmeras reprovações, não chegou sequer a concluir a primeira série. Por que, mesmo com todos os incentivos de sua tia, Alberto não permaneceu na escola? A análise do fragmento abaixo favorecerá a busca das possíveis respostas. Numa das entrevistas concedidas, Alberto comentou sobre suas primeiras experiências escolares e destacou o interesse de sua tia para que estudasse, desejo este que a impulsionou a percorrer longas distâncias para levá-lo à escola: Alberto: Ó, minha primeira vez que eu entrei na aula é... Eu estudei Grupo Escolar... Grupo Escolar é... Padre Francisco. É... Essa escola fica localizada no... Cidade São José. Hoje é cidade, município São José. A gente morava na... Na roça e o lugar mais próximo da gente estudar era nesse local. Então tinha que ir andar mais ou menos... A gente saía de casa mais ou menos oito horas da manhã a turminha, chegava lá mais ou menos meio dia. Quando tava... 98 A gente tava com bons amores de estudar a turma entendeu? Nós estudava direto. Agora, quando não tava também a turma juntava todo mundo, os pequenos e os grande e matava aula. Brincava o dia inteiro vadiando até na hora da aula terminar pra... Inclusive a professora uma vez colocou um bilhete na minha... No meu caderno e mandou entregar pra minha tia... Entregando nós. É... Dizendo assim... “Mãe de Alberto Pedro da Silva”. É... “Divino Sebastião da Silva”. É... “Gilson de Alziras”... “Nós gostaria de saber porque os alunos estão faltando de aula desse jeito...” Por que lá era assim, a gente ganhava material três vezes por ano. Começo de janeiro. Uma semana primeiro de janeiro ganhava três caderno, um lápis, uma borracha e um apontador. Quando era no meio do ano ganhava mais três caderno e um lápis, uma borracha e um apontador. Chegava no fim do ano também. Não faltava material não, que o Estado fornecia material pra gente. Aí depois um tempo mudamos de lá aí... Mudei pra... Pra Ipatinga. Ipatinga também era um cantão de roça desesperado que só a gente via lá a Usiminas de gado, mais nada. Foi ano que meu tio, minha tia me levou uma distância mais ou menos daqui (do Campus da UFMG) até o Hospital Don Bosco assim pra... Pra pôr eu numa aula. A professora chamava... Chamava Possedina. (...) Alberto: Quando a minha tia me deixou lá (na escola) a professora... Falou meu nome: “Eu? Ficar aqui”? Aí sartei o muro e fui embora. Aí eles falaram: “Ah tem um aluno sartando muro lá ó”. Deixei material, deixei tudo pra trás. Cheguei em casa ((fala com voz de surpresa)): “Uai eu que devia ter chegado e cê já tá em casa?” Falei: “Fui embora não vou estudar naquela escola não”. Minha tia voltou comigo me pôs eu na aula de novo aí tal aí depois acostumei. Aí estudei beleza com ela, a professora lá entendeu? Mas só o que eu falei toooodo fim de ano pra estudar... Eu num... Eu tinha que arrumar um problema pra eu sair da aula. (...) Pesq: Porque você não queria ficar? Alberto: Era complexo de escola mesmo. Pesq: Complexo? Alberto: É. Falava: “Ah, não adianta nada não. Tem muita gente aí que tá vivendo sem estudar, pra quê? Meu tio não tem estudo nenhum e tá vivendo e... Minha tia também nem assinar o nome também num... Não sabe e tá vivendo”. Bobagem entendeu? Pesq: Entendi. Alberto: Já sabe capinar, já sabe trabalhar ne roça, pra que isso? Apesar de Alberto, inicialmente, ter afirmado que não teve maiores dificuldades de acesso e de permanência na escola, as suas declarações revelam o contrário. Fica claro, por exemplo, que o tempo gasto para chegar à escola, se não constituiu na principal causa de seu não sucesso, certamente representou um fator dificultador. Alberto também revelou que costumava “matar aula” sempre que surgia uma oportunidade. Podemos, então, questionar 99 o porquê dessas fugas, já que, além do esforço por parte de sua tia para que estudasse, há também dois elementos que podem ser vistos, de certo modo, como facilitadores à sua permanência na escola. Estamos nos referindo à entrega de material escolar gratuito aos alunos e, numa instância menor, mas não menos importante, ao bilhete enviado pela professora, que sugere preocupação com suas faltas e o desejo de compreender os motivos delas. As questões que se seguem podem nos orientar na busca pelo entendimento das razões que levaram Alberto a não permanecer na escola: Mas que sentido teria o saber escolarizado, numa realidade que exigia do sujeito saber roçar, lidar com o campo, exercer o trabalho na roça? Como aprender a ler e a escrever, se seu lugar social não oferece oportunidades de uso da leitura e da escrita? Em outras palavras, se as demandas que recaem sobre o sujeito são normalmente aquelas que estão voltadas para o trabalho no cotidiano da roça, que sentido teria o aprendizado da leitura e da escrita nesse contexto? E, conforme as palavras de Alberto: “Ah, não adianta nada não. Tem muita gente ai que tá vivendo sem estudar, pra quê? Meu tio não tem estudo nenhum e tá vivendo e... minha tia também nem assinar o nome também num... Não sabe e tá vivendo. Bobagem entendeu? (...) Já sabe capinar, já sabe trabalhar ne roça, pra que isso?” Sabe-se que o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita está estritamente relacionado às oportunidades de acesso à escrita (Rocha, 2004). É comum ouvirmos de pessoas que passaram pela escola que “desaprenderam”, situação bastante comum, principalmente entre aqueles que passaram por programas e projetos que concebem a alfabetização como um fim em si e não se orientam para a perspectiva da continuidade do aprendizado. Temos como exemplo o MOBRAL, movimento em prol da alfabetização, que não veio acompanhado de políticas públicas voltadas para a democratização do acesso à escrita aos sujeitos atendidos. Consideramos, ainda, um outro fator, agregado aos demais descritos, que nos ajuda a compreender melhor a trajetória de Alberto: provavelmente não tenha conseguido superar as sucessivas entradas e saídas da escola, já que era obrigado, em função das constantes reprovações, 100 reiniciar o novo ano letivo na mesma série a qual tinha cursado, mas não concluído. Em outras palavras, o insucesso escolar provavelmente inviabilizou a continuidade dos estudos. Também fica claro que o que gerava as suas entradas e saídas na escola não era, necessariamente, uma vontade imensa de parar de estudar, mas, sim, o trabalho na roça, que lhe exigia ausentar-se sempre nos últimos meses do ano. Podemos, então, dizer que as constantes reprovações na primeira série, o ingresso precoce no trabalho na roça, somado à pouca exigência do saber escolarizado no seu universo cultural podem ser considerados condicionantes para a não continuidade de Alberto na escola, no período da infância. O fragmento abaixo, em consonância com o anterior, reforça ainda mais tal hipótese: Alberto: (...) Mas é igual não foi por falta de... Interesse da, né? Da minha tia não. Ela matriculava a gente, punha a gente na aula, tal... Mas quando chegava... A gente ficava doido que chegava o mês de outubro... Pesq: Hum... Alberto: Pra gente sair da aula pra... Não completar o semestre que a gente via que a gente ia tomar bomba... Pesq: (pausa) Deixa eu entender como é que é? Explica melhor. O senhor ficava doido pra chegar outubro que poderia sair? Alberto: Isto. Para gente trabalhar na roça. Pesq: Mas por que o senhor já sabia que ia tomar bomba? Alberto: É que a gente sabia a... A gente (pausa)... Era fraco na minha aula mesmo entendeu? Se a pouca relevância do saber escolarizado na vida de Alberto se constituiu numa das prováveis justificativas para a sua saída da escola, é bem possível que o desconhecimento desse saber tenha inviabilizado a permanência de José nessa instituição. Como os demais sujeitos descritos até o momento, José também é filho de pai e mãe analfabetos e que nunca freqüentaram a escola. Nascido na cidade de Caratinga, no interior de Minas Gerais, José diz que a entrada na escola não foi fácil, já que seu pai não se interessou que estudasse, mas, sim, que iniciasse o quanto antes o trabalho na roça: José: Desde idade de cinco ano eu trabalhava. 101 Pesq.: Na roça. José: Na roça... Assim, trabalhava assim: levano comida é... Como purun... Como é que fala? É purungo, né? De água pra poder pros companheiro na roça... Pesq.: O que que é purungo? José: Tempo de plantar... Vou explicar... Tempo de... De plantar... Pesq.: Hã... José: Entendeu? Com a faquinha ali... Eles ia cavando e a gente plantando feijão. A gente jogava os feijão nas cova e tampando. Milho do mesmo jeito. Batatinha eles fazia aquele rego de batatinha assim, a gente ia pondo esse tanto, tanto, ia pondo assim... Pesq.: Isso com cinco anos... José: Com cinco ano. A gente que fazia... Todo, todo mundo lá. As criança toda... (...) José: Outra hora os pai fala, obriga eles assim: “Ah meu filho não vai tra... Não vai pra aula... Porque vai estudar? Vai ajudar eu trabalhar”... Então tirava os filho pra trabalhar. Pesq.: Hunrum... E o senhor teve que trabalhar... José: Ah eu com dez ano eu tomava conta de casa sozinho entendeu? Segundo José, foi graças aos incentivos de alguns vizinhos que seu pai o matriculou numa escola rural, localizada a algumas horas de caminhada, em estrada de terra. Entretanto, acabou permanecendo apenas oito dias, tanto que prefere se declarar uma pessoa que nunca estudou quando criança. De acordo com José, o que desencadeou a sua saída da escola foi o fato de ter sofrido discriminações por causa da sua cor negra. José diz ter sofrido com as “indiferenças da professora” e que, após sofrer “uma corça com vara de marmelo”, seu pai decidiu tirá-lo de vez da escola. Como não havia outra escola na região, acabou deixando de estudar. Como já observado anteriormente, alguns aspectos da trajetória escolar de José se assemelham aos dos demais sujeitos, como a pressão sofrida no contexto rural, na inserção precoce no mundo do trabalho, a falta de escola, bem como a necessidade de percorrer as longas distâncias ou mesmo a falta de interesse dos pais nos estudos, gerada, sobretudo, pelo desejo e/ou necessidade de que os filhos trabalhem. O depoimento de José, porém, nos instiga a compreender melhor essa relação estabelecida entre professora e aluno, relação essa que, na perspectiva do sujeito que narra suas lembranças, focaliza os fatos, sobretudo, na violência sofrida na infância. 102 Embora não possamos descartar a possibilidade de que José sofreu discriminação racial na escola, é possível também afirmar, a partir da análise de sua fala, que a sua não participação numa prática escolar devido ao desconhecimento de uma conduta própria de aluno pode ter condicionado uma atitude de reprovação e de repressão por parte de sua professora. Estamos nos referindo à prática da reza e ao ritual da hora cívica, realizados sempre antes do início das aulas, e que José informou de que todos na escola deveriam participar. Entretanto, enquanto os colegas conheciam as orações e sabiam cantar o Hino Nacional, José diz que nem ele nem seus pais sabiam: José: (...) ela (a professora) por causa da cor me deu uma corsa de vara de marmelo... Tinha que chegar (na escola) e rezar... Fazer oração comum e cantar o Hino Nacional... Como os pais sabia? Não sabia... Eu também não sabia. Os outros alunos sabia... No final deu hora do recreio, ela (a professora) só não deixou eu ir... Não sei porque, acho que era por causa da cor. Pegou uma vara de marmelo bateu... Fiquei com medo de falar em casa porque ia apanhar duas vezes... Soares (2004) afirma que o acesso ao mundo da escrita é tradicional e consensualmente incumbido à escola por meio da escolarização. A escola é concebida como o lugar social em que ocorre o ensino e o aprendizado da leitura e da escrita e, nesse sentido, a alfabetização escolar é considerada o padrão para todas as demais modalidades que visam à aprendizagem da leitura e da escrita. A autora afirma ainda que o senso comum e setores da educação têm considerado natural e inquestionável o vínculo entre alfabetização e escolarização, de tal maneira que o processo de aquisição da tecnologia da escrita, mais do que um componente essencial, tem sido confundido com a própria escolarização inicial. Se, por um lado, a relação entre alfabetização e escolarização recai no âmbito do óbvio, o vínculo entre letramento e escolarização não parece tão natural, tanto que os níveis precários de letramento da população têm sido relacionados, principalmente, a problemas no processo de alfabetização. Pensar numa relação direta entre alfabetização e letramento é reconhecer que a simples aquisição da tecnologia da escrita garantiria por si só o seu uso efetivo. Tal convicção dificulta a compreensão das relações entre o papel da 103 escola no desenvolvimento das habilidades de uso da leitura e da escrita e, conseqüentemente, a inserção do sujeito no mundo da escrita. Soares (2004) considera que a discussão do vínculo entre letramento e escolarização pressupõe o entendimento desse segundo termo. A escolarização é definida como o conjunto de aprendizagens que as pessoas adquirem na escola e que implica um processo de ensinar/aprender conhecimentos específicos próprios dessa instituição de ensino. Porém, o papel da escola vai além do ensino da tecnologia da leitura e da escrita, e vincular a alfabetização à escolarização é ignorar as outras instâncias de aprendizagem existentes. Soares (2004) afirma, ainda, que não são apenas as pessoas que passam pelo processo de escolarização; os conhecimentos, as práticas sociais, os comportamentos também são escolarizados e, portanto, se constituem em objetos de aprendizagem na escola. Assim, a autora destaca os dois sentidos do termo escolarização: a palavra é entendida no âmbito da “pessoa”, quando são pensadas questões sobre as relações entre os níveis de aprendizado escolar e os níveis de letramento (escolarização da criança, do jovem, do adulto). Quando remetemos a um “conteúdo” a ser aprendido, a palavra orienta as reflexões sobre as relações entre práticas escolares e práticas sociais de uso da leitura e da escrita (escolarização da escrita). Como podemos perceber no depoimento de José, suas lembranças do curto tempo em que passou pela escola remetem, sobretudo, a alguns comportamentos escolarizados, ou seja, próprios do ambiente escolar, os quais o participante demonstrou não conhecer. A escola cria rituais e rotinas que são impostas tanto aos alunos quanto aos demais atores sociais, e conhecer suas regras torna-se fundamental para a participação nesse lugar social. Consideramos que o desconhecimento de José sobre certas práticas escolares tenha dificultado a sua permanência na escola e que, somado às atitudes de repressão por parte da professora, devido ao seu não saber, tenha, enfim, gerado a sua saída. Apesar do não ingresso ou da não permanência na escola ao longo de suas trajetórias, Lineu, Alberto, José e os demais sujeitos desta pesquisa adquiriram, cada um à sua maneira, saberes sobre a escrita. Podemos, então, afirmar que, mesmo na infância ou quando ainda eram adultos analfabetos, 104 estiveram inseridos na cultura escrita. Mas como se deu essa inserção? Quais as especificidades da relação que sujeitos originários de uma cultura regida, sobretudo, pela oralidade estabelecem com a cultura escrita? O acesso, o contato e a apropriação do escrito/impresso se deram através de que práticas? De acordo com Galvão (2002), as pesquisas que tradicionalmente focalizam a história da cultura escrita no Brasil tendem a considerar a escolarização, as práticas de escrita e o contato com o impresso como os mediadores para a inserção no mundo da escrita. A autora afirma que, considerando apenas a inserção na escola, as práticas de leitura e escrita e o contato com materiais impressos, normalmente exercido pelos grupos sociais dominantes, seria possível dizer que na metade do século XX — período da história do Brasil marcado pelo restrito acesso à escola e por altos índices de analfabetismo da população — apenas uma pequena parcela da população brasileira se relacionava com a escrita. Em contrapartida, a grande maioria da população pertencente ao grupo dos analfabetos ou com baixo ou nenhum nível de escolarização se encontrava desvinculada da cultura escrita. Galvão (2002) considera anacrônica a compreensão dos mecanismos de inserção na cultura letrada que se baseia apenas na análise da circulação do impresso, na freqüência à escola e nas práticas de escrita da população no passado. A autora ressalta que as relações com o mundo da escrita são bastante complexas e, portanto, não há um modelo único que explique a inserção dos sujeitos na cultura escrita. Grupos marcados pelas tradições orais utilizam formas particulares de inserção em práticas de letramento, muitas delas não valorizadas pelos grupos sociais dominantes. Para Galvão (2002), as camadas populares fazem uso de formas peculiares para relacionar com o objeto escrito. A análise das trajetórias de homens e mulheres leitores/ouvintes de folhetos de cordel70 levou a autora à conclusão de que é possível pensar na relação entre a inserção no mundo da escrita e a tradição oral. Ao discutir as relações entre analfabetos e semi- analfabetos, mediadas pela leitura em voz alta, sendo a memorização facilitada pela situação de leitura e pela própria estrutura e organização dos folhetos, a 70 Tais questões são discutidas a partir dos resultados de uma pesquisa que realizou sobre as experiências de leitura/audição de folhetos de cordel por moradores do Recife, oriundos da região metropolitana ou do interior de Pernambuco e do estado da Paraíba. Ver GALVÃO, 2002. 105 autora constata modos distintos de inserção no mundo da cultura escrita, ligados às tradições orais. A (re)construção do público leitor/ouvinte e dos modos de ler/ouvir literatura de cordel nas décadas de 30 e 40 do século XX, viabilizou a compreensão de que pessoas pouco habituadas com o universo da escrita se inseriram em práticas de letramento e que tais práticas se constituíam em verdadeiros momentos de prazer e desprendimento. De acordo com Galvão (2002), o que caracteriza a aproximação desses sujeitos ao mundo da escrita é a mediação do outro, a oralidade e a memorização. Na relação que o leitor/ouvinte estabelece com a escrita, há a presença de outros leitores/ouvintes. Isso significa que a leitura dos folhetos de cordel caracteriza-se pela presença marcante de uma coletividade. O principal locus educativo71 em que as práticas de leitura ocorriam não era a escola, mas os espaços onde circulavam esse gênero textual: nas feiras, onde os folhetos eram adquiridos, e nas residências dos leitores/ouvintes, onde ocorriam reuniões coletivas de que participavam familiares, vizinhos, amigos. A leitura oralizada viabilizava a inserção de analfabetos em práticas de letramento e era exercida por pessoas normalmente alfabetizadas ou com habilidades consideradas satisfatórias pelo grupo. Ao recitador de versos, mais do que saber ler, eram exigidas outras habilidades, como a fluência, o tom de voz e a entonação adequados; era necessário saber manter o ritmo e destacar determinadas frases, ou seja, a performance do narrador era fundamental para a leitura dos folhetos. Outro componente que caracterizava a leitura de folhetos é a memorização do seu conteúdo. A prática da memorização, na perspectiva do sujeito, significava a apropriação da leitura no sentido de uma retenção, tornando a leitura desse gênero textual mais próxima daqueles com pouca intimidade com o universo da escrita. A aquisição do folheto representava a possibilidade de apropriar-se concretamente da história nele contida. Em muitos casos, a aprendizagem da leitura é associada ao cordel, cujos textos, inicialmente, eram memorizados e, posteriormente, aprendidos. O contato com folheto viabilizava a alfabetização autodidata, na qual outros objetos de escrita eram, aos poucos, incorporados à leitura. 71 Ver GALVÃO, 2002, p, 117. 106 As reflexões de Galvão (2002) nos ajudam a pensar sobre o modo como os sujeitos da pesquisa, ao longo de suas trajetórias, se inseriram na cultura escrita. O fato de não terem tido a experiência da escolarização não significa, portanto, que estiveram à margem de práticas de leitura e de escrita ao longo dos anos. Podemos dizer, então, que, em virtude de suas experiências diferenciadas com a escrita, decorrentes de relações estabelecidas na família, no trabalho, na igreja, entre outros espaços, os sujeitos construíram em maior ou menor grau conhecimentos sobre os usos e as funções da escrita. A leitura de materiais religiosos, iniciada na infância e prosseguida ao longo da vida, foi para Vander um meio para desenvolver as habilidades de leitura. Natural de Santa Rita do Itueto, localizada no interior de Minas Gerais, sua trajetória escolar se assemelha à de Alberto: também freqüentou repetidas vezes a primeira série, sem, no entanto, concluí-la. Apesar de sua passagem sem sucesso pela escola, diz ser uma pessoa que “nunca deixou de estudar”, já que foi orientado desde cedo pela sua mãe a recorrer à Bíblia no aprendizado da leitura. Sua “boa leitura”, expressão utilizada pelo próprio participante, é, portanto, atribuída à mãe, que promovia círculos de leitura da Bíblia em sua casa e que envolvia todos os membros da família. Cada dia, uma pessoa recebia a tarefa de ler algum trecho, enquanto os demais presentes participavam como ouvintes. Tal tarefa era incumbida, sobretudo, aos seus pais e, em algumas situações, aos irmãos. Segundo depoimento de Vander, por não ter ainda aprendido a ler, sua mãe foi a grande incentivadora para a sua inserção no mundo da escrita, conforme o relato abaixo: Vander: (...) Nunca deixei assim de estudar não... É... Mas estudava assim... Mas a... A minha mãe... A minha mãe um dia falou pra mim assim: “meu filho, cê pega a Bíblia que ocê vai aprender a lê...” É o que eu fazia... É... Eu... Eu aprendi, aprendi a lê... Todo o dia eu lia a Bíblia (...) apanhava a Bíblia e lia... Ao realizar a leitura em voz alta dos versículos, a mãe de Vander atuava como mediadora da relação do filho com esse objeto, e, mesmo não sendo ainda alfabetizado, Vander pôde, nesses momentos, vivenciar práticas de letramento. Semelhante ao que Galvão (2002) identificou com os sujeitos 107 leitores/ouvintes dos folhetos de cordel, a leitura da Bíblia promovida na casa de Vander também foi marcada pela presença de uma coletividade, o que nos permite pensar que esse espaço em que a escrita circulava se constituiu num importante locus educativo. Essa relação estabelecida entre o oral e o escrito provavelmente proporcionou não apenas para Vander, mas também aos seus familiares um modo de apropriar-se da leitura. No fragmento abaixo, a autora destaca a importância do vínculo social estabelecido pela leitura coletiva e que viabiliza a participação de sujeitos analfabetos em práticas de letramento: Esses leitores/ouvintes, mesmo quando eram analfabetos, pareciam se sentir mais à vontade em um mundo já marcado pela presença da escrita, pelo fato de poderem dela partilhar por intermédio de instâncias coletivas de sociabilidade (Galvão, 2002, p.123). Outros aspectos da vida de Vander merecem ser aqui destacados, por nos ajudar a compreender as especificidades da sua relação com a escrita. Dentre os sujeitos desta pesquisa, Vander é o único a afirmar que seu pai e sua mãe freqüentaram a escola. Apesar de não terem concluído o ensino fundamental — nem seu pai nem sua mãe passaram da primeira série — tal fato parece ter, de algum modo, refletido positivamente em sua vida. Os conhecimentos dos pais sobre a escrita podem ter favorecido a inserção do filho no mundo da escrita, já que, mesmo não tendo condições financeiras de se manter na escola — e aqui vêm à tona novamente os problemas existenciais que dificultam a inserção e a permanência na escola — Vander teve a oportunidade de participar de situações envolvendo o uso efetivo da leitura. Esse participante também foi o único a se lembrar da presença, em casa, de material escrito na infância, basicamente a Bíblia. Além disso, foi ele também que destacou o uso da leitura pelos pais ou parentes, situações que, conforme já destacado, são consideradas por Galvão (2004) indicadoras de um maior nível de alfabetismo entre os participantes da pesquisa do INAF. Estamos cientes de que a leitura da Bíblia, praticada pelos pais de Vander, por si só não pode seguramente comprovar que eles são leitores competentes, já que é comprovado que as práticas de leituras desse material são mediadas pela oralidade e, conforme Galvão (2004), em muitos casos, a leitura realizada em família é, na verdade, o reencontro, no impresso, com trechos já memorizados (p.131). Entretanto, consideramos que a construção da 108 relação de Vander com a leitura se deve, dentre outras razões, às especificidades em sua trajetória familiar. Tal hipótese ganha maior sustentação quando analisamos a trajetória de Davi, que, como Vander, também teve pais alfabetizados. Natural de Passa Bem, localizada no interior de Minas Gerais, Davi não se lembra de seu pai ter freqüentado a escola, mas afirma que ele “não era analfabeto”. Quanto à sua mãe, diz que estudou somente em casa com parentes — prática bastante comum no passado — e que aprendeu a ler e a escrever, porque “sempre foi muito curiosa”. Guardados os aspectos subjetivos de seu depoimento, vemos novamente a relação estrita entre pais alfabetizados e filhos com maior nível de alfabetismo. Outro aspecto semelhante é a influência de parentes que mediavam a relação de Davi com o objeto escrito. Sua mãe, por exemplo, foi quem o ajudou a andar pela cidade de Belo Horizonte na juventude, uma vez que, ainda analfabeto, não era capaz de circular pela cidade autonomamente: Davi: O emprego... Eu arrumei o primeiro emprego, deu muito trabalho... Minha mãe que me levou, minha mãe que me buscava... Levava no emprego... Pesq.: Por que que ela te levava e te buscava? Davi: Por que eu não sabia andar, uai... Pesq.: Ah... Não sabia andar... Davi: Não sabia andar... Não sabia... Pesq.: E ela sabia lê? Davi: Lê? Ela sabe. Aí ela me levava e... Ai depois eu aprendi, né? Ir sozinho. Alguns aspectos que tornam as trajetórias de Davi e de Vander distintas merecem ser aqui discutidas. Davi diz não ter se relacionado (ou pelo menos não se recorda) com a escrita dentro de casa na infância. Não há relatos que remetem à presença de materiais impressos e nem de situações em que seus pais praticavam a leitura. De acordo com Davi, não havia em casa nem mesmo a Bíblia ou livros religiosos, conforme o fragmento abaixo: Pesq.: Então na sua casa quando você era criança não tinha, por exemplo, um caderno, ou um livrinho... Davi: Ah não conhecia isso não. Pesq.: Nem aqueles livrinho de igreja. Davi: Não conhecia isso não. 109 Pesq.: É... Folhetim sabe esses folhetins de reza? Davi: Pois é isso não existia não. No tempo nosso não tinha não. Pesq.: E como que seu pai aprendeu a escrever? Davi: Não sei como é. Pesq.: Ele nunca te falou se já freqüentou escola? Davi: Não, não conversava esses assunto com a gente não. Apesar dessa constatação, um aspecto da relação com a escrita na trajetória familiar de Davi foi revelado: seu pai costumava exercer a prática da escrita, normalmente quando tinha que comprar ou vender algum produto, mas não podia se dirigir pessoalmente à zona urbana. Nesses momentos, costumava anotar numa folha de papel uma lista de produtos dirigida ao comerciante que ficava incumbido de entregar as encomendas a Davi ou de recolhê-las, caso se tratasse de uma venda. Essa escrita produzida por seu pai foi denominada por Davi como “ordem escrita”, uma estratégia utilizada por seu pai para se relacionar com os comerciantes da região, mesmo não podendo participar diretamente das transações. Chama a atenção o fato de Davi ter dito que nunca participou dos momentos em que seu pai exercia a prática da escrita. Segundo ele, a relação do pai com os filhos era bastante fechada, cabendo a ele e aos irmãos apenas acatar as suas ordens e realizar as tarefas que lhes eram demandadas. Dessa forma, apesar de percorrer longas distâncias a cavalo, transportando num bornal mercadorias e dinheiro, nunca soube o teor das informações contidas nos bilhetes, nem o valor em dinheiro que carregava. Cabia apenas ao vendedor a execução de todas as tarefas: retirar a mercadoria, conferir o peso, anotar o que foi entregue e, por fim, repassar o dinheiro a Davi. O depoimento abaixo torna clara a relação, de certo modo, passiva de Davi, diante de uma situação em que a escrita está presente: Davi: O pai da gente escrevia pedindo o vendeiro: “manda isso e isso pra mim” que ele chamava uma orde escrito. Pesq.: Ah então como se fosse uma lista, uma lista de compra. Davi: É, e pedindo e chamava orde né? (...) Davi: Aí ele (o comerciante) chegava lá ele via se a gente tivesse vendendo alguma coisa estava no... Em cima do... Do animal eles tirava, oiava, pesava, anotava e o que tava escrito 110 tava pedindo no... No... No bilhete aí eles colocava tudo direitinho pra gente de novo e... Ia pra casa. Pesq: Então quer dizer que seu pai escrevia. Davi: É meu pai escrevia. Pesq.: (...) Ele costumava escrever mais vezes? Davi: Só se ele escrevia pra ele só, ele na... Presença nossa não. (...) Pesq.: Mas ele escrevia. Se tivesse que ler a lista que alguém entregasse pra ele: “Aqui ó isso aqui é o material que você pediu” ele conseguia falar qual que era? Davi: (pequena pausa) Ah, com certeza né? Só que ele não falava por que tinha é... Era muito em... Segredo né? Porque... Pegava isso aqui, dá licença, ((pega a minha pasta)) pegava isso aqui ((simula colocar algo dentro da pasta)), fechava, punha aqui, fechava, a gente não podia abrir... Punha aqui dentro... Fechava... Não podia abrir. (...) Davi: Não abria não. Nunca abri, nunca abri. Falava que não podia, não podia. Punha lá e... Chegava lá... Pronto. Chegava lá... Procurava por lá... Chegava lá... Procurava. Não sei. Aí procurava fulano. Procurava a pessoa que podia pegar e abrir e olhar... Olha pro cê vê se fosse no dia de hoje, tivesse roubado dele, roubava né? Que aquela vez acontecia de mandar dinheiro, manda dinheiro dentro de bornal, mandava tudo. Então... A gente não sabia contar, não conhecia o que que era dinheiro. Identificamos no contexto descrito anteriormente uma relação estrita entre escrita e poder. Gnerre (1998) considera que a linguagem — e podemos aqui incluir a linguagem verbal ou não-verbal, oral ou escrita — é para nós um modo de nos referirmos ao que conhecemos do mundo, ao como conhecemos o mundo, ao para que conhecemos o que sabemos do mundo, ao mesmo tempo em que somos, dialeticamente, produtos desse processo de conhecimento. Nesse sentido, podemos dizer que a linguagem não é neutra, mas, sim, uma construção social e histórica nas suas variações lingüísticas, seja ela representada na variação culta ou popular. Ao longo dos tempos, a língua escrita passou a ser considerada meio fundamental de acumulação e transmissão de informações e conhecimentos. No entanto, nas palavras do autor: A linguagem não é usada somente para veicular informações, isto é, a função referencial denotativa da linguagem não é senão uma entre outras; entre estas ocupa uma posição central a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa de fato ou acha que ocupa na sociedade em que vive. As pessoas falam para serem ouvidas, às vezes para serem 111 respeitadas e também para exercer uma influência no ambiente em que realizam os atos lingüísticos. (Gnerre, p.5). É o que podemos perceber da relação que se estabeleceu entre Davi e seu pai, em que o segundo detinha certos conhecimentos sobre escrita e, nesse sentido, exerceu um poder sobre o primeiro que era destituído desse saber. A linguagem escrita representada no bilhete viabilizou a interlocução entre seu pai e o comerciante — mesmo não se tratando de uma interação face a face, estamos aqui diante de uma situação de interlocução — mas ao mesmo tempo impediu que Davi participasse diretamente dessa relação. Não cabia a qualquer pessoa o acesso ao texto produzido e, portanto, a tarefa de Davi era procurar a “pessoa que podia pegar e abrir e olhar”. Não é de se estranhar que, na perspectiva de Davi, a escrita era vista como um “segredo” e, portanto, não era exercida por seu pai na presença dos filhos. Gnerre (1998) considera que, a partir dos objetivos que queremos atingir numa situação de interação, a qual envolve a fala ou a escrita, desenvolvemos diferentes discursos que serão considerados válidos ou não se empregados num contexto sócio-cultural apropriado. Os sentidos das palavras são, portanto, constituídos, tendo em vista o lugar social em que se situa o sujeito que as emprega. Assim, mesmo que Davi tivesse, naquele contexto, tomado alguma decisão por conta própria — solicitado um produto diferente do que aqueles registrados no papel, questionado o valor de alguma mercadoria, etc. — o lugar que ocupava naquele momento não lhe dava o poder de questionamento. É fato que, embora não tenha se lembrado do convívio com materiais impressos na infância, bem como de ter participado de práticas de letramento na família — será que realmente não conviveu e/ou não participou? — Davi desenvolveu, ao longo de sua trajetória de vida, conhecimentos sobre a escrita. Também é fato que Davi e Vander se relacionaram de maneira mais autônoma com a escrita, nas situações observadas pela pesquisadora, em detrimento de Lineu, Alberto e José. Seus desempenhos em situações que demandaram o uso da leitura, no entanto, nos levam a crer que esse aprendizado ocorreu não apenas na infância, mas, principalmente, com a vinda para Belo Horizonte. Se os conhecimentos dos sujeitos em questão foram construídos, sobretudo, das 112 relações estabelecidas num grande centro urbano, por que se constituem em saberes tão diferenciados? Certamente a resposta para essa questão está nos modos distintos de inserção dos sujeitos na cultura escrita. Em seu trabalho, Galvão (2002) faz uma referência a um estudo de sua autoria, intitulado Processos de inserção de analfabetos e semi- alfabetizados no mundo da cultura escrita72, e aponta alguns fatores que parecem exercer forte influência na inserção dos leitores/ouvintes no mundo da escrita: A alfabetização inicial dos sujeitos, ocorrida por processos autodidatas e de escolarização formal73, permitiu aos participantes do seu estudo uma maior participação no mundo letrado. Além disso, a inserção na cultura urbana viabilizou que pessoas originárias das zonas rurais e que tiveram raras experiências com práticas de leitura e escrita vivenciassem eventos e práticas de letramento nos grandes centros urbanos e, conseqüentemente, adquirissem gradativamente maior familiaridade com a cultura escrita. Um terceiro fator decisivo para a determinação dos graus de letramento e que dialoga com as questões discutidas anteriormente refere-se ao seu pertencimento de gênero. A apropriação dos espaços urbanos e o contato com a escrita pelos sujeitos estavam ligados a ser homem ou ser mulher. Enquanto os espaços de convivência dos homens eram mais diversificados, os das mulheres eram mais restritos, e, para muitas, as relações eram estabelecidas, sobretudo, no ambiente doméstico. A maior participação nas agências socializadoras estava diretamente associada a uma maior possibilidade de interação com o objeto escrito. Conseqüentemente, os homens apresentavam maiores níveis de letramento em relação às mulheres. Por fim, a ocupação profissional também pode ser considerada um importante fator para maior ou menor intimidade com a escrita. Os menores níveis de letramento foram identificados entre os que exerciam funções manuais, assalariadas ou autônomas de subsistência e, entre as mulheres, as que exerciam ou não tarefas exclusivamente em casa. 72 GALVÃO, Ana Maria de Oliveira (2001). Processos de inserção de analfabetos e semi- alfabetizados no mundo da cultura escrita. In: Revista Brasileira de Educação. Belo Horizonte, n. 16, jan/abr. 73 A autora reconhece a importância da escolarização formal, mas não a coloca como principal mecanismo para a inserção de sujeitos adultos na cultura escrita, dado que o ingresso na escola não se constitui numa prerrogativa para as experiências de letramento. 113 Esses fatores apontados por Galvão (2002) nos ajudam a compreender como se deu a inserção dos sujeitos desta pesquisa na cultura escrita. Constatamos, por exemplo, que as primeiras experiências com a escolarização na fase adulta não ocorreu no Proef-1, mas a partir de sucessivas entradas e saídas em alguns cursos e programas de alfabetização. Com exceção de Vander, todos os participantes passaram por processos de escolarização antes de ingressar no Proef-1. Esse ingresso foi possível, graças à inserção na cultura urbana, inicialmente, com a vinda da zona rural para o centro da cidade natal e, posteriormente, com a migração para a capital mineira. Para alguns dos participantes, a experiência no MOBRAL representou o primeiro contato com práticas escolares de leitura e escrita; no entanto, pode-se dizer que o tempo de permanência deles no programa foi relativamente curto. De acordo com os depoimentos, o tempo médio de freqüência no MOBRAL foi de dois a três meses, período em que foi possível apenas aprender a assinar o nome. A expectativa, porém, era adquirir outras habilidades, como ser capaz de ler e escrever, desejo esse que não pôde ser concretizado, dada a própria organização e princípios filosóficos do Movimento Brasileiro de Alfabetização, que dificilmente viabilizava a formação de leitores e escritores. Conforme o depoimento de José... José: Eu tava com 33 ano eu vim aqui pra, pra Belo Horizonte ai primeira coisa que eu procurei foi a escola. Aí tinha o Mobral, alembra? Pesq.: Ah, o Mobral, lembro... José: Tinha lá em Contagem, mas como lá foi pouco tempo, eu quase num aprendi nada, mas... Aprendi assinar meu nome lá. ... E também de Lineu: Lineu: (...) Aí eu já fui na escola, mas de lê, não aprendi nada. Lá não. Pesq.: Lá não? Lineu: Não. Não aprendi nada. Pesq.: E quanto tempo o senhor ficou lá no MOBRAL? Lineu: Não, lá ficamo... Não chegou dois mês... 114 Galvão e Soares (2004) esclarecem que as ações voltadas para a alfabetização de jovens e adultos, no Brasil, foram organizadas, sobretudo, no formato de campanha. O MOBRAL, por exemplo, configurou-se como um movimento paralelo e autônomo em relação ao Ministério da Educação e que, sob a forma de uma campanha em âmbito nacional, recrutou a população para a tarefa de alfabetizar. Pessoas comuns, munidas apenas de boa vontade e desejo de ensinar a ler e a escrever, assumiram as turmas de alfabetização, compostas por grande diversidade de trajetórias, o que exigiria, a princípio, um educador capacitado para o exercício da prática escolar. Conforme as declarações de Galvão e Soares (2004), o despreparo do alfabetizador que, em sua maioria, era desprovido de experiência e competência para atuar em sala de aula, somado ao caráter não contínuo do ensino contribuíram, dentre outras razões, para o não sucesso do MOBRAL. De acordo com os autores em questão, as campanhas e os programas de alfabetização em massa se constituem em: (...) ações emergenciais que, desconsiderando a educação como um processo que exige tempo e maturação, buscaram, primordialmente, baixar as estatísticas do analfabetismo. Muitas ações foram, nesse sentido, realizadas sob a marca da improvisação, do voluntariado, da transposição de métodos e materiais didáticos da escola para crianças para a escola de adultos. O acesso à leitura e à escrita deixa de ser visto, portanto, como um direito, para ser considerado como uma ação emergencial, às vezes missionária, caritativa (p.53). Chama a atenção o fato de a experiência de Alberto e de Lineu no MOBRAL ter-se dado, respectivamente, por influência de parentes e de pessoas do seu convívio. Alberto, por exemplo, na juventude, não mais freqüentava a escola regular, mas, conforme seu relato, era pequeno no tamanho, mas velho para estudar junto às crianças no Ensino Fundamental. Por ter sido o responsável por acompanhar a sua tia até a escola noturna, acabou também participando das aulas no MOBRAL. O depoimento abaixo indicia que as turmas do MOBRAL absorveram tanto pessoas jovens — como Alberto, que, na época, tinha apenas dezesseis anos — quanto adultas, que compartilhavam, no mesmo espaço, o desejo de aprender a ler e a escrever: Alberto: (...) Depois é... A gente entrou no MOBRAL. Já ouviu falar no MOBRAL? 115 Pesq: Já. Alberto: Pois é a gente… Entr... Eu já entrei pra estudar no MOBRAL à noite. Pesq: Quando que o senhor estudou no MOBRAL à noite? Alberto: Olha eu estudei foi... Antes de eu vir pra cá (para Belo Horizonte). Nossa professora era a Marina. Legal pra danar... (...) Pesq: Então você já era adulto quando o senhor entrou no MOBRAL. Alberto: Não porque a minha tia... Entrou na aula. Podia entrar na aula ela era um pouco idosa aí então a gente ia com ela. (...) Alberto: (...) Ela ia e estudava e pra mim não ficar lá parado aí a professora pegou e arrumou uns livros pra mim poder estudar também junto com eles. Pesq: Quando o senhor foi com a sua tia pro MOBRAL o senhor não estava mais na escola de manhã não? Alberto: Não, não tava nem de manhã nem à noite. Pesq: O senhor estava fora da escola. Alberto: Fora da escola Pesq: E aí acompanhando a sua tia... Alberto: Aí eu estudava no MOBRAL à noite junto com ela. Pesq: Aí foi a professora que te chamou ou você que teve o interesse de ficar lá aproveitando o tempo? Alberto: Não, teve um levantamento de... Pessoas que não tinha leitura nenhuma... Aí... Pegou fez uma ficha lá e fez a minha tia. Mas dela ir eu fui com ela... Pesq: Hunrum... E o senhor lembra quantos anos o senhor tinha? Alberto: Ah eu era pequeno, mas velho eu era entendeu? Pesq: Como assim pequeno e velho? Alberto: Que eu tinha... Nessa época aí eu tinha idade de uns... Dezesseis ou dezessete anos... Eu vim pra cá (para Belo Horizonte) com uns vinte anos de idade. Já a entrada de Lineu no MOBRAL ocorreu aos 28 anos, na sua cidade natal. O convívio com a família que o acolhera, após a separação no casamento, influenciou a sua primeira inserção na escola e, conforme seu relato, lhe garantiu apenas desenhar o próprio nome de forma precária: Lineu: (...) Mas quando eu fichei aqui (em Belo Horizonte) (pequena pausa) eu não sabia nada... Mas nad... Mas pra falar em nada, não era nada mesmo... Pesq.: Nada o quê? (...) Lineu: Não conhecia nada não... 116 Pesq.: Nem as letras de seu nome... O senhor assinava o nome? Lineu: O... O meu nome eu desenhava ele mar mal... Pesq.: E quem te ensinou desenhar o nome? Lineu: (pausa) E... Nós e... Estudou uns dia lá depois deu casado, quer dizer é... Lá na cidade (de Alvarenga). Depois deu casado nós estudou uns dia à noite lá aí eu aprendi... (...) Lineu: (...) Aí eu separei, fui pra casa de família, é... Aí eu entrei no MOBRAL um pouquinho... Acho que não foi sessenta dia... Pesq.: E por que que o senhor entrou no MOBRAL? Lineu: (pequena pausa) Porque a... Essa casa que eu fui morar... Casa de família a esposa do, do cara... E três filha... Freqüentava, estudava no MOBRAL... Aí eu morando com eles dentro de casa, animei também... Pesq.: Incentivou... Lineu: É. Me chamou. Aí eu fui e aprendi um pouquinho. Mas só assinar o nome mar mal... Aí vim pra aqui (para Belo Horizonte)... Mas de lê? De lê nada. Enquanto Alberto e Lineu freqüentaram o MOBRAL em turmas alocadas nas suas respectivas cidades de origem, a experiência de José ocorreu na cidade de Belo Horizonte. Sua trajetória se assemelha, sobretudo, à de Lineu — também ingressou no MOBRAL na fase adulta e, durante a permanência no curso, aprendeu apenas a assinar o nome: Pesq.: (...) Qual foi seu objetivo (no MOBRAL) era aprender assinar o nome? José: Meu objetivo era aprender lê mesmo. Pesq.: Lê mesmo... José: Só que eu vim pra cá sortero, e tava morando com a minha irmã, aprendi a assinar meu nome lá, aí o MOBRAL parece que acabou... Aí eles deram um... Um... Um... Certificado... Pesq: Hãrã... José: Como a gente não é analfabeto. Foi só isso. Pesq.: Mas o senhor aprendeu a ler alguma coisa no MOBRAL? José: Lá não aprendi não. Pesq.: Não... Só assinar o nome. José: Só assinar o nome. Foi pouquim... Note-se que, apesar de ter recebido um certificado de que não era mais analfabeto, José considera que aprendeu pouca coisa durante sua experiência no MOBRAL. Percebemos em seu relato a presença de duas concepções de alfabetização distintas: enquanto, para o MOBRAL, bastava 117 assinar o nome para que o sujeito fosse desvinculado da condição de analfabeto, para José era preciso muito mais; sua expectativa era aprender a ler. Tendo como foco as trajetórias de Alberto, Lineu e José, percebemos que a inserção numa turma de alfabetização do MOBRAL, seja no interior ou na capital, retrata a realidade de muitos brasileiros que, em virtude do não acesso à escola na infância ou do fracasso escolar, acabaram sendo absorvidos pelos programas e cursos de alfabetização, que visam ao atendimento a pessoas fora da faixa etária própria. No caso dos sujeitos em questão, a inserção no MOBRAL não lhes garantiu a alfabetização no sentido estrito, em virtude da própria concepção de alfabetização subjacente ao Programa que se restringia, em muitos casos, a um exercício de aprender a ‘desenhar o nome’ (Galvão e Soares, 2004, p. 45). A primeira experiência escolar de Davi também ocorreu em Belo Horizonte. Na fase da adolescência, dos quatorze aos dezessete anos, freqüentou a escola regular, mas, devido às reprovações, acabou abandonando as aulas. Nota-se que ele se responsabiliza pelo seu não sucesso escolar, ao afirmar que nunca conseguia realizar as provas aplicadas nos finais das etapas de ensino: Davi: Já estudei... É... Em grupo, mas foi assim... Segundo... É... Segundo ano era é... Rapazinho, né? Então não dava conta de se lembrar... Pesq.: Rapazinho quando? Davi: Quatorze anos, né? Pesq.: E antes disso já tinha entrado na escola? Davi: Não. Eu fiquei... Até o... Até os quatorze... Depois eu passei pra noite... Depois quando chegava na época da prova eu não fazia prova... Pesq.: Por quê? Davi: Sei lá... Sempre me acontece esses tipo de coisa... E nunca eu consegui... Copiar... Copiar... Lê, lê eu lia... Assim... Faltando algumas palavras... Apesar de não ter concluído a série a qual cursava, Davi considera que essa experiência de escolarização lhe possibilitou “ler alguma coisa”. Entretanto, é preciso refletir sobre sua concepção de leitura, uma vez que, como podemos observar em seu depoimento, diz que a atividade era realizada 118 “Assim... Faltando algumas palavras”. É bem provável que essa “leitura” seja fruto da memorização de textos provindos de cartilhas e livros de leitura que, como sabemos, costumavam ser recitados pelos alunos e alunas que só conseguiam “ler” as palavras e frases que haviam sido trabalhadas na turma e que eram decoradas. Essa hipótese pode ser estendida à prática de escrita, que, ao contrário da leitura, Davi diz nunca ter conseguido aprender. Podemos perceber que sua expectativa diante do aprendizado da escrita na escola regular era de “conseguir copiar”. Mas não podemos negar que Davi demonstrou ter, durante a atividade de investigação, uma maior intimidade com a prática de leitura em relação aos colegas de trabalho Lineu, Alberto e José. Entretanto, o ingresso de Davi durante a adolescência na escola regular e, posteriormente, no Proef- 1, por si só não explica essa sua maior familiaridade, mesmo porque, como já foi destacado, ele não foi o único que vivenciou a experiência da escolarização. Tendo em vista ainda que Vander não participou de cursos e projetos de alfabetização num período anterior à sua inserção no Proef-1, mas em contrapartida apresentou maior intimidade com a linguagem escrita em relação aos demais sujeitos nas situações observadas durante a pesquisa, podemos, então, intuir que o ingresso na escola pode favorecer, mas não determinar a participação autônoma dos sujeitos em eventos e práticas de letramento social. Isso porque há diferenças significativas entre letramento escolar e não escolar e a aquisição do primeiro favorece, mas não garante necessariamente o uso efetivo das práticas sociais de leitura e escrita. Segundo Soares (2004), os conceitos de evento de letramento, proposto por Healt74 e de práticas de letramento, desenvolvido por Street75, orientam a distinção entre letramento escolar e não escolar. Segundo a autora, a escola promove o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita, levando- se em conta a perspectiva do modelo autônomo de letramento, ou seja, o modo como as práticas de leitura e escrita são materializadas no seu interior não leva 74 HEALH, Shirley B. (1982). Protean shapes in literacy events: ever-shifting oral and literate traditions. In: D. Tannen, (edl.). Spoken and written language: exploring orality and literacy. Norwood, N.J.: Ablex, Pp.91-117. e HEALH, Shirley B. (1983). Ways with words: language, life and work in communities and classrooms. Cambridge: Cambridge University Press. 75 STREEET, Brian V. (1984). Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press. 119 em conta os contextos sociais em que tais práticas são exigidas. A escrita é tratada, portanto, como um instrumento neutro e objetivo. Os eventos e as práticas de letramento demandados na vida cotidiana, porém, diferem dos eventos e das práticas de letramento escolar, uma vez que os primeiros surgem em decorrência de necessidades reais de uso da leitura e da escrita e que são exercidas espontaneamente pelos participantes. Os eventos e as práticas de letramento escolar visam à aprendizagem de determinados saberes ligados ao uso da leitura e da escrita, legitimados pela sociedade como fundamentais para a formação do leitor/escritor competente. Nesse sentido, as atividades envolvendo o material escrito não são interpretadas naturalmente, e, sim, automatizadas, a fim de responder às exigências de uso da leitura e da escrita próprias do contexto escolar76. Soares (2004) destaca que, considerando que os saberes e as práticas transmitidos pela escola são resultados da transposição didática77 ou empregando um outro termo, são “saberes a ensinar” 78 , a leitura e a escrita podem ser pensadas em termos de práticas de letramento a ensinar, ensinadas e adquiridas. Isso significa que, dentro de um leque de possibilidades, alguns eventos e práticas são selecionados pela escola e transformados em objetos de ensino, porém, nem todos ocorrerão na instância real da sala de aula, bem como apropriados pelos estudantes79. A escola se consagrou como o lugar social de ensino e aprendizagem de conhecimentos e práticas específicos, mas que, devido ao seu grande prestígio na sociedade, tem sobreposto aos eventos e práticas de letramento social. Certos comportamentos de letramento que fazem sentido apenas no contexto escolar são transportados para fora da instituição e, como tem 76 Estamos nos referindo ao fenômeno da pedagogização do letramento (ver SOARES, 2004, p. 107). 77 CHEVALLARD, Yves (1997/1991). La transposición didáctica: del saber sábio al saber enseñado. Buenos Aires: Aique. 78 PERRENOUD, Philippe (1993). Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote. 79 Ao lançar mão de alguns dados do INAF, Soares destaca a forte influência da transposição didática das práticas de leitura e escrita e da pedagogização do letramento no contexto escolar. A reflexão desses fenômenos contribui para melhor compreensão das relações entre letramento e escolarização. Alguns aspectos de sua análise chamam a atenção: dentre as práticas de leitura e escrita exercidas pelos estudantes participantes da amostra, predominam as práticas essencialmente escolares. A leitura de livros didáticos e de apostilas, por exemplo, sobrepõe a leitura de livros técnicos, teóricos e ensaios, bem como de textos de maior circulação no contexto social, como os jornais (ver SOARES, 2004, p. 108). 120 ocorrido com a alfabetização, o letramento escolar tem-se constituído no padrão para as modalidades não escolares de letramento. Entretanto, a participação nos eventos e nas práticas de letramentos está muito mais ligada às nossas experiências sociais e culturais do que ao próprio conhecimento do saber escolarizado. Esse argumento torna-se ainda mais consistente, quando consideramos as diferenças de nível de alfabetismo dos participantes da pesquisa em relação às suas esposas. Se, por um lado, Galvão (2002) constata, em seu estudo, que os graus de letramento são determinados, dentre outras razões, pelo pertencimento de gênero, ou seja, os homens normalmente se apropriam com maior facilidade dos espaços urbanos em detrimento das mulheres e, conseqüentemente, têm maiores possibilidades de contato com a escrita, em nosso estudo nos deparamos com a seguinte situação: com exceção de Davi, cuja esposa era analfabeta, as esposas dos demais participantes são alfabetizadas. Outro fato importante é que três esposas apresentam, segundo seus respectivos maridos, maior familiaridade com a linguagem escrita. Eles assumiram a função de provedores da família e, portanto, exercem uma ocupação profissional — um outro fator apontado por Galvão, ligado a um maior grau de letramento — já as mulheres atuam como donas de casa. Estamos nos referindo às esposas de Alberto, José e Lineu, que, além de dominarem, sobretudo, a habilidade de leitura, assumiram o papel de mediadoras da escrita nas situações de uso de que participam seus maridos. O depoimento abaixo esclarece melhor essa questão: Pesq.: Mas ela (sua esposa) lê bem? Lineu: Ela lê bem... Pesq.: Por quê? Ela estudou quando criança? Lineu: Ela estudou... Pesq.: Ela estudou até que série... Lineu: Estudou... Até quarta série, só. (...) Pesq.: Ah, então ela lê... Quando o senhor... Ainda não era do Projeto ((me referindo ao Proef- 1)) é... Havia momentos em que ela lia pro senhor? Você pedia pra ela ler... Ela te ajudava ou não, se virava sozinho... Lineu: Lê, lia... É lia assim uma... Uma coisa... Na... Não... Virá sozinho? Virava não! Pesq.: Não? Lineu: Não eu... Num sabia nada... 121 (...) Pesq.: E como é que chama a sua esposa? Lineu: Cláudia. A princípio, poderíamos atribuir os conhecimentos da esposa de Lineu sobre a escrita ao fato de ter vivenciado a experiência da escolarização na infância. O mesmo poderíamos dizer a respeito de Sandra e de Lúcia, esposas, respectivamente, de Alberto e de José, que freqüentaram os primeiros anos do Ensino Fundamental sem, no entanto, concluí-lo, mas que, diferentemente dos seus maridos, conseguiram se alfabetizar. Embora a alfabetização e a escolarização possam viabilizar (mas não determinar) a inserção no mundo da escrita (Soares, 2004), alguns eventos observados nos levam a crer que, ao assumirem certas funções, principalmente na família, que demandavam o uso efetivo da leitura e da escrita, sejam em práticas de letramento escolar e social, essas mulheres demonstraram possuir certas competências que denotam uma maior intimidade com a escrita. O acompanhamento dos filhos nas tarefas escolares foi assumido pelas esposas não apenas porque os maridos tiveram que trabalhar fora, mas também porque não eram capazes de ensinar o dever de casa nem avaliar se as atividades foram realizadas. José, por exemplo, atribui o sucesso escolar de seu filho caçula ao fato de Lúcia ter deixado de trabalhar e passado a monitorar o desempenho do filho na escola. Observa-se, no depoimento abaixo, que Lúcia se reconhece uma pessoa que contribuiu positivamente na alfabetização de seu filho; vemos, aqui, um pouco além, considerando que o conhecimento de certas práticas de letramento escolar pode ter sido fundamental nessa orientação: Pesq.: E quem ensinava o dever de casa? José: ((aponta para Lúcia)) Pesq.: Ah, sua esposa? José: É... (risos) Pesq.: Era a senhora Lúcia que ensinava o dever de casa? Lúcia: Eu que ensinava... Pesq.: E o senhor não dava uma olhadinha... José: Não, não tinha jeito... Pesq.: Pra saber se tinha feito certinho? 122 José: Num dava pra mim saber... Se eles tivesse feito errado ou certo... (...) Lúcia: Mas esse aqui ((aponta para o filho mais novo)) quem foi que alfabetizou ele fui eu... Pesq.: É mesmo? Foi a senhora que alfabetizou o... Lúcia: Alfabetizou... Pesq.: Seu segundo filho? Lúcia: Foi por isso que eu parei de trabaiar... Se eu não paro de trabaiar era perigoso dele não ter terminado o segundo grau não... Pesq.: Ah, porque ele sozinho... Tinha que fazer as coisas sozinho? Lúcia: Ele tinha dificuldade... (...) Pesq.: A senhora ensinou como? Lúcia: Do mesmo jeito que as professora passava os dever lá pra ele com os livro. Eu fui orientando ele então, daqui dali... Até que consegui... Verifica-se que as esposas também assumiram o papel de mediadoras da palavra escrita nos eventos e práticas de letramento, demandados fora de casa. José, por exemplo, diz que dependia de Lúcia para que pudesse realizar tarefas consideradas hoje por ele muito simples, como, por exemplo, identificar endereços: Pesq.: E porque (a leitura) fazia falta naquela época? José: É... Fazia farta que relação... Igual eu dei o número (da minha residência) pra você procurar a rua aqui... Pesq.: Isso. José: E a gente não acha, não acha o nome da rua. Então falta. Precisava perguntar. Eu perguntava... Pesq.: Hunrum... José: Quando eu num tava junto com ela (a esposa) e nada eu perguntava... Foi possível perceber uma relação de parceria entre aquela que detém a capacidade de usar autonomamente a leitura e a escrita e aquele que depende do outro para resolver situações demandadas no cotidiano. Com exceção da esposa de Alberto, as esposas de José e de Lineu precisavam acompanhar os maridos até o centro da cidade, quando eles ainda não eram alfabetizados. Essa situação é observada no depoimento de Lineu a seguir: 123 Lineu: Ela (Cláudia) sabe ler. Ela tem uma leiturazinha boa. Ela estudou até a quarta série só, mas ela lê bem. Pesq.: (...) quando o senhor casou com ela, ela já sabia ler. Lineu: Sabia. Pesq.: Então tinha momentos que você precisava dela? Pra levar em algum lugar, pra ir junto... Lineu: (pequena pausa) Não... Aí... Nóis não... Quer dizer, nóis não tem saído junto não. Pesq.: Mas naquela época, quando o senhor não sabia ler. Lineu: Ah, não aí precisa... Aí precisava! Pesq.: Aí você saía com ela? Assim, por exemplo... Lineu: Saia, saia... (...) Pesq.: (...) Aí ela ia com você pra te ajudar... Lineu: Pra ajudar é... (...) Lineu: Cê já pensou a vez eu a na cidade... Ah... Número tanto, naqueles prédio né? Pesq.: Hunrum... Lineu: Aí sabia? Sabia não. Agora hoje eu sei. Eu... Eu preciso de ir número qualquer no centro aí eu... Eu vou oiano que eu acho ele. Sandra ainda realiza a leitura de cartas e de documentos bancários para seu marido, uma vez que, segundo Alberto, ainda hoje não é capaz de realizar esse tipo de tarefa. Observamos no depoimento abaixo que, a sua esposa costuma escrever cartas para parentes que vivem no interior, o que indicia, também, o domínio da escrita: Pesq: Uma dúvida, uma coisa me deixou com dúvida. Ela (sua esposa) consegue ler, ela escreve, disse que escreve cartas ? Pra quem que ela escreve cartas? Alberto: Pros parente dela e tal... Pesq: Sempre teve esse hábito de escrever cartas? Alberto: Ela escreve muito bem entendeu? Documento meu coisa lá na hora que chega ela lê, entendeu? Essa função mediadora das relações com a escrita normalmente era (ainda são, em algumas situações) estendida aos filhos, porém, ao longo do processo investigativo, percebeu-se que a relação de dependência entre pai e filho era, de certo modo, secundária em relação ao forte vínculo estabelecido entre esposa e marido, que chegou a se constituir numa relação de cumplicidade. Na entrevista a seguir, a participação de Lúcia nos ajuda a 124 compreender essa relação de cumplicidade entre esposa e marido. Vemos que Lúcia esteve sempre presente na vida de José, mesmo nos momentos difíceis, quando passou por problemas de saúde: José: Quando eu fui fazer o caterismo lá (no Hospital Belo Horizonte), Lúcia que foi (até a capela do hospital)... Foi eu não. Lúcia: Eu deixei um... Um pedido de... José: De oração... Lúcia: De oração. José: Eles mandou (um folheto religioso) pelo correio... Eles mandou pelo correio... Pesq.: Como assim eles mandam pra vocês? José: Manda... Pesq.: Vocês vão lá, faz o pedido... Lúcia: Deixa o endereço, faz o pedido, deixa num... Numa... Numa caixinha... Deixa o pedido lá com seu endereço e telefone, aí depois eles manda pra gente... (...) José: Aí ela foi lá né que a... Tem que pediu... A oração pra quem tá doente é bão né? Aí pediu... Ela pediu a oração... Lúcia: Eu num achei que eles mandava nada em casa não por que... Oração só, deixei por escrito lá... Recebi as oração... E deixei o pedido... Assinei o pedido lá... E deixei, enfiei na urna... Sobre o fato de as esposas apresentarem, segundo seus maridos, maior familiaridade com a escrita, vemos que todas não apenas adquiriram a tecnologia da escrita, como também são capazes de responder às demandas de uso social. Nesse sentido, acreditamos que seus desempenhos em relação aos maridos se devem muito mais por dominarem o letramento social. A análise do depoimento abaixo reforça o argumento de que o uso autônomo da escrita se deve, sobretudo, às experiências sociais e culturais nas quais estamos inseridos. O fragmento refere-se ao relato de Vander sobre as habilidades de leitura e escrita de sua esposa Maria. Como se vê, mesmo apresentando maior escolaridade que seu marido, Maria, por não praticar a escrita no seu cotidiano, apresenta maiores dificuldades de fazer uso desse objeto: Pesq.: E... Como é que se chama a sua esposa? Vander: Maria. 125 Pesq.: A dona Maria, ela sabe lê? Vander: Olha, ela, ela fez o... É como diz, né? Ela tem o quarto ano lá da roça. Pesq.: Tem diploma de quarto ano. Vander: Tem. Pesq.: E ela lê? Vander: Olha... Ela... Se ela lê... Ela não gosta de ler muito não. (...) Pesq.: E escrever? Vander: Sabe muito bem... Ela escreve muito bem entendeu? (...) Pesq.: Mas como, ela escreve carta, escreveria um bilhete? Vander: Não, escreve... Não, a letra dela... Pesq.: Uma lista de compra... Vander: Não a letra dela é muito boa... Conforme o relato, Maria chegou a concluir a quarta série do Ensino Fundamental e, de acordo com o seu marido, é capaz de ler e escrever. Se atentarmos para suas declarações, percebemos que há momentos em que Vander hesita ao responder às perguntas como se necessitasse, antes de tudo, de informar o contexto em que se inserem as condições de formação de sua esposa: Diz que Maria fez o quarto ano, mas “lá da roça”; a respeito da leitura da esposa, não diz inicialmente que ela sabe ler, mas prefere responder com uma negativa: “ela não gosta de ler muito não”; e sobre a capacidade de escrever de sua mulher, prefere dizer que “a letra dela é muito boa”. Nesse último caso, é possível afirmar que o conceito de escrita de Vander está mais direcionado à capacidade de Maria de registrar, utilizando uma letra bonita — podemos aqui, então, intuir que Maria provavelmente sabe copiar muito bem — do que a capacidade de fazer uso dessa escrita numa situação social — a escrita espontânea de um bilhete, por exemplo. Não é nossa intenção, aqui, avaliar o desempenho de Maria, mesmo porque os elementos que temos sobre o seu desempenho foram descritos por Vander e, portanto, representam um ponto de vista subjetivo. O depoimento de Vander, porém, indicia que o fato de ter menor nível de escolarização não significou ser dependente da esposa. Ao contrário, de acordo com Vander, é Maria quem, na verdade, “pega carona”, ou seja, costuma depender de sua ajuda. Além disso, é possível intuir que a independência de Vander, 126 provavelmente, deve-se ao fato de ele sobressair em certas situações que demandam o letramento social. É possível, também, cogitar que os saberes de Maria se aproximam mais do “saber escolarizado” que, como já descrito, contribui, mas não é garantia para o efetivo exercício da leitura e da escrita. No depoimento abaixo, vemos claramente que Vander afirma que, em termos de “estudo”, Maria “sabe mais”, no entanto, é categórico ao dizer que é capaz de resolver cálculos mentais com maior desenvoltura, mesmo sendo uma pessoa de “pouco estudo”. Pesq.: E a Maria, teve algum momento da sua vida que a ela te ajudou? Vander: Não, nunca. Pesq.: Fazer alguma coisa... Vander: Não. Pesq.: Andar na cidade... Vander: Não, não, não... (...) Pesq.: Qual que era a dificuldade então se não precisava da Maria? Vander: Não... É... É... Não digo assim é... É... A gente fala assim é... Como diz, não é que não precisava entendeu? Mas tem hora ô Iara que eu... Que eu... O meu... O meu... O pouco, o meu pouco estudo, meu tem hora que dá show no que ela, que ela, no caso que ela sabe mais do que eu. Pesq.: O pouco estudo que o senhor tem você acha que tem hora que o seu ajuda mais do que o dela? Vander: Eu creio que sim. Eu creio, não é o caso que eu tô falando do negócio das conta (de matemática)? Pesq.: Hunrum... Vander: Aí não entendo, eu já poucos dia agora ela perguntou assim, eu não sei o que ela, ela, ela, um negócio de uma conta lá que assim eu não sei se quantas vezes num sei assim, pra ver quanto dava. Aí eu rapidinho pensei aqui na cabeça, somei, somei rapidinho falei assim: “Ah, dá tanto”. Aí... E ela não acreditou não. Aí o meu menino já tem a... A... Já tem a oitava série, aí ela pediu pra ele, ele falou assim: “tá certo mesmo”. (risos) Pesq.: (risos) Ah... Vander: Entendeu? Pesq.: Entendi. (...) Vander: (...) aí é como diz isso tudo aí ela pega garupa é comigo. Pesq.: Ah, ela pega carona com você? Vander: É... É... Garupa comigo (risos). Pesq.: Ah... 127 Vander: Tudo que ela for resolver é comigo. É importante deixar claro que consideramos que as habilidades de leitura não apenas de Vander, mas também dos demais sujeitos desta pesquisa, mesmo que distintas, foram construídas no decorrer de suas trajetórias, seja por processos formais de escolarização, seja pelo uso efetivo dessa tecnologia em práticas sociais que envolvem a língua escrita. Acreditamos que a intimidade com a linguagem escrita foi sendo desenvolvida nas vivências em diferentes esferas educativas, nos processos autodidatas, nas experiências recebidas na escola regular ou mesmo nos programas e cursos de alfabetização. Entretanto, consideramos, também, que parte dos saberes adquiridos sobre a escrita se deve à inserção no Proef-1. Tal argumento se sustenta, já que os próprios participantes reconhecem que certos conhecimentos foram adquiridos com a participação no projeto. Nesse sentido, acreditamos que a imersão no Proef-1 proporcionou aos sujeitos a ampliação dos seus saberes sobre a escrita. Vemos que a razão do ingresso no Proef-1 é, antes de qualquer coisa, o aprendizado, mas cabe aqui esclarecer que a idéia de aprendizado torna-se subjetiva, uma vez que as demandas de uso da leitura e da escrita são diferenciadas, tendo em vista os lugares sociais de construção do sujeito letrado e as demandas de uso colocadas nesses lugares. Para efeito de esclarecimento dessa questão, tomemos o depoimento de Vander que, como já declaramos, é quem tem apresentado maior intimidade com a escrita em relação aos demais participantes. Mesmo não tendo passado por cursos e projetos de alfabetização de adultos, antes do ingresso no Proef-1 — o que reforça a hipótese de que seus saberes sobre a escrita foram construídos em outros espaços — considera que esses conhecimentos não eram suficientes para participar autonomamente de certos eventos e práticas de letramento, como, por exemplo, o uso do caixa eletrônico. As declarações de Vander abaixo nos mostram que, em alguns momentos de sua vida, também dependeu da ajuda do outro para fazer uso da leitura: Vander: (...) às vezes você vai num certo lugar você tem dificuldade pra fazer as coisa... Você tem que depender dos outros... E hoje eu graças a Deus sei, resolvo sem depender dos outros... 128 Pesq.: Sozinho... Vander: Sozinho, graças a Deus... Pesq.: O que que o senhor dá conta de fazer sozinho? Vander: É a mesma coisa, por exemplo, eu uns anos atrás eu não chegava num banco, num... Eu num... Eu num tirava... Eu tinha dificuldade de tirar dinheiro, tinha dificuldade pra tirar extrato, tinha dificuldade pra tirar qualquer coisa... Pesq.: E hoje? Vander: E hoje não, graças a Deus... Pesq.: Tem que pedir ajuda pras moças... Vander: Não. Esses dia memo eu tava... Foi um dia desse mesmo eu tava dando uma bronca com um colega lá... Pesq.: Hã... Vander: Assim: “Engraçado” Falei assim ó: “Eu era assim também, mas ocê...” É... Me pediu pra ajudar... Falei assim: “Ô meu filho, não nego”... Pesq.: Ah te pediu pra ajudar no caixa. Vander: É. Aí eu falei assim: “Ó, eu também fui assim... Agora ocê tá vendo que ocê precisa... Porque a gente não pode... Às vezes você procura gente com... Que num... Não dá problema não tem nada, mas as vez se você depende dos outros você vai chegar um tempo, chega perto numa pessoa... Estranha que ocê nem sabe quem é que é... Quem que num é... Pesq.: Pode levar o dinheiro, né? Vander: Ocê chega assim... Por exemplo, igual o caso dele, ele... Ele me dá... Ele passa a senha pra mim, passa o cartão... Eu preciso tirar o dinheiro pra ele ou pra ensinar ele tirar o dinheiro. Que eu sei tudo, entendeu? Mas como é eu falei assim: “Ó filho, cê para, ocê pensa porque eu também já fui assim...” Agora hoje eu graças a Deus eu, não tenho dificuldade não acho nada difícil de encontrar pra ter... Eu mesmo resolvo tudo... Agora não porque às vezes cê acha gente, que tem a gente pra ajudar... Pesq.: Hunrum... Vander: Mas não é toda hora que cê tem a gente não... Entendeu? Pesq.: E antigamente, antes de entrar no projeto (Proef-1) o senhor não dava conta... Vander: Não... Não dava não menina! Podemos, então, afirmar que alguns saberes adquiridos no Proef-1 foram relevantes para Vander no exercício autônomo de uma prática de letramento social. O mesmo pode ser dito dos demais sujeitos desta pesquisa, cujos depoimentos remetem a situações de uso da escrita que antes não eram capazes de lidar e que, com a inserção no projeto, passaram a exercer com autonomia80. Poderíamos aqui apresentar novos exemplos que vão desde 80 Essas experiências serão discutidas no Capítulo 5. 129 poder embarcar no ônibus, fazer compras no supermercado ou mesmo andar pelo centro da cidade sozinho. O desafio, nesse momento, está em delimitar a fronteira que separa os significados do letramento para essas pessoas, ou seja, quando cada sujeito passa a se considerar um sujeito letrado? Consideramos que a busca pela resposta certamente oferecerá subsídios para compreendermos as razões da não continuidade dos estudos no Proef-1. De imediato, acreditamos que o conceito de letramento na visão dos participantes, muito mais que uma questão de instrumento, torna-se uma questão de estatuto. A noção de estatuto pode ser entendida como o sujeito que deixa o projeto porque já pode ser considerado letrado pelo outro — nesse caso, a família exerceria um importante papel na definição desse estatuto — diferente daqueles que permanecem na escola porque, na sua perspectiva, é a prática no curso de EJA que lhes dá esse estatuto de “letrado”. São questões que serão retomadas num outro momento. 3.4 “Cego também anda, cego também enxerga”: visões de adultos alfabetizados sobre o analfabetismo Esta parte do trabalho apresenta uma análise dos depoimentos dos participantes da pesquisa com o foco na visão destes, a respeito do analfabetismo. O propósito é tentar apreender os significados da inserção numa sociedade letrada em que a circulação e a interação com a escrita ocorrem de maneira mais expressiva e complexa. Sendo o objeto de análise constituído pelos relatos de adultos alfabetizados, consideramos importante demarcar o lugar ocupado por cada participante na produção do discurso: o lugar daqueles que participam, hoje, autonomamente de certas práticas de leitura e de escrita, antes possíveis somente a partir da mediação com o outro. As análises dos depoimentos apontam para diferentes experiências vivenciadas em Belo Horizonte, ao longo dos anos, o que permite reconhecer, de certo modo, o caráter subjetivo dessas narrativas. Nesse “universo discursivo”, porém, percebemos que há situações em que seus relatos dialogam não apenas entre si, mas também com os discursos produzidos na sociedade sobre o analfabetismo, o analfabeto e a alfabetização. Nesse sentido, os fatos narrados a respeito de grande parte da vida adulta, 130 impossibilitada do exercício autônomo das práticas de leitura e de escrita demandadas no meio urbano, são analisados, levando em conta a dimensão coletiva da produção do discurso. Como já foi destacado, Vander, José, Davi, Alberto e Lineu são homens que nasceram em diferentes cidades do interior de Minas Gerais, não tiveram acesso à escola durante a fase da infância ou permaneceram muito pouco tempo não conseguindo se alfabetizar. Diante das dificuldades impostas pela vida, tiveram que deixar suas cidades ainda jovens e migrar para um grande centro urbano em busca de melhores condições de vida. Sujeitos cujas trajetórias, respeitadas suas particularidades, se assemelham à de outros adultos descritos por Rocha (2004): (...) adultos com uma infância caracterizada pelo trabalho, sem lembranças que remetam ao lúdico, ao brincar, que têm na lida diária pela sobrevivência suas referências de caráter, hombridade, dignidade... Sujeitos cujas memórias estão impregnadas pelas marcas da exclusão social. (p.128) O discurso dos participantes sobre o analfabetismo remete, sobretudo, aos primeiros anos que sucederam suas chegadas à capital mineira. Isso pode ser explicado diante do fato da vinda para Belo Horizonte ter significado a imersão num ambiente de maior circulação e interação com a escrita, gerando a necessidade de participar com maior intensidade de práticas e de eventos de letramento antes não demandadas no meio rural. Essa necessidade de uso da leitura e da escrita num grande centro urbano tornou mais visível a condição de analfabetos dos participantes, que passaram a estabelecer uma relação de maior dependência com aqueles que dominavam o código escrito. É possível afirmar que a migração para Belo Horizonte no final da década de 70 e início dos anos 80 se constituiu num divisor de águas nas trajetórias dos participantes. A transferência do interior para a capital foi movida pelo desejo de ter acesso aos recursos, bens e serviços disponíveis nesse lugar social, como forma de lhes garantir melhores condições de vida e de trabalho. Esse desejo foi explicitado por Alberto que, consciente das dificuldades impostas ao trabalhador na roça, decidiu tentar construir sua vida numa cidade grande. Sua primeira oportunidade de trabalho ocorreu numa construtora, onde, durante alguns meses, exerceu a função de pedreiro. Por 131 meio dessa experiência, Alberto teve, pela primeira vez, o acesso à carteira assinada, direito que lhe foi negado durante o período em que trabalhou na lavoura. Também foi nesse período que recebeu regularmente pelo seu trabalho, renda considerada pelo participante uma verdadeira “fortuna” se comparada ao que conseguia adquirir trabalhando no interior. É fácil entender por que Alberto, mesmo tendo que voltar para a sua cidade natal, logo após a conclusão das obras, não hesitou em retornar para Belo Horizonte tão logo surgiu uma nova oportunidade: Alberto: De primeiro trabalhei na Santa Bárbara trabalhei… É… Nove mês na Santa Bárbara construção civil. Pesq.: Então veio de Inhapim pra Belo Horizonte, trabalhou nove meses na Santa Bárbara… Alberto: Isso. Voltei pra lá de novo. Depois voltei pra aqui de novo… Pesq.: Voltou ainda antes? Alberto: Voltei pra lá… Pesq.: Por que o senhor voltou? Alberto: Voltei porque eu falei assim: “Já mandou a gente embora, dispensou, acertou com a gente”… Minha família mora lá, entendeu? Eu vou… Eu vou pra lá… Mas não quero trabalhar mais na roça, quero trabalhar aqui entendeu? Porque o… Lá na roça, aquele negócio… É… As coisa era... Era não, é bem difícil entendeu? Pesq.: Hunrum… Alberto: Mas aí pra gente… Trabalhar, trabalhava… Trabalhava pra morrer e não via recurso porque… quando a gente colhia, todo mundo colhia, as coisa saía barato. Cê tinha que vender do preço que eles queria, não do preço que ocê queria… É… Aí, realmente quando… Trabalhei com carteira assinada pra cá… Aí que eu fiquei reconhecendo os direitos que a gente tinha mais… Recurso… (...) Alberto: Porque a primeira vez que eu vim pra aqui (Belo Horizonte), a primeira semana que eu trabalhei que eu recebi o meu envelope de pagamento, pra mim foi mais de um ano de serviço lá no interior. Pra falar com você (pausa) é... Eu não conhecia dinheiro (pausa). Pesq: Como assim não conhecia dinheiro? Alberto: Não conhecia. Trabalhava, colhia as coisa, mas não conhecia dinheiro. (...) Alberto: Aí quando... Passei a trabalhar aqui quando eu recebi o meu primeiro envelope de pagamento. O cara pegou e falou assim: “Você... Ass... Confere, abre o envelope e confere e assina aqui”. Quando ele me entregou e passou por cima de nota fiquei até bobo: “Mas gente, será que tudo isso aqui é pra mim?”. Eu tava... Isso aí... ((fala baixo)) entendeu? 132 Nesse último trecho do depoimento, percebe-se que a vinda de Alberto para um grande centro urbano possibilitou a sua participação numa prática de escrita. A assinatura do próprio nome passou a fazer parte de seu cotidiano, o que lhe permitiu colocar em prática uma habilidade adquirida no período em que freqüentou a escola no interior. Entretanto, Alberto admite que seus conhecimentos sobre a escrita, naquela época, limitavam-se ao registro do nome, uma vez que não era capaz de produzir textos, bem como compreender o que estava escrito. Chamamos a atenção para o fato de a prática da escrita do nome ainda se constituir na principal demanda de uso da escrita não apenas na vida de Alberto como dos demais participantes. Há tempos já se sabe que lemos muito mais que escrevemos, entretanto, consideramos importante demarcar que, no caso dos participantes desta pesquisa, a necessidade de escrever fora do contexto do trabalho ainda hoje é muito rara. Davi, numa das entrevistas concedidas, destacou que, basicamente, utiliza a escrita para assinar o seu nome no livro de ponto no trabalho. Chama a atenção o fato de o participante admitir que sua escrita não mudou muito desde a sua saída do Proef-1. Ao apresentar um documento com a sua assinatura, percebeu-se que, embora o seu nome e primeiro sobrenome estivessem registrados de maneira legível, o mesmo não aconteceu no seu segundo sobrenome. Ao ser solicitado a escrever a palavra “Azevedo”, Davi não fez uso de todos os elementos gráficos necessários para que a escrita ficasse correta. O participante admitiu que há momentos em que chega a ter dificuldades para se lembrar das letras de seu nome, situação que, para ele, é inadmissível, já que, do seu ponto de vista, é possível se esquecer de tudo, menos do registro do próprio nome: Davi: Deixa eu ver se num tem uma assinatura aqui ((abre a sua carteira na tentativa de encontrar um documento com a sua assinatura))... Pesq.: Você assina o livro de ponto todo o dia? Davi: Hã? Pesq.: O livro de ponto. Davi: A foia. Pesq.: A folha? Davi: É... Aqui ó ((mostra a sua carteirinha de identificação)), tipo essa aqui, (a letra) não mudou tá vendo ó, essa aqui... 133 Pesq.: Essa é a sua assinatura. Davi: É. Agora, rubrica é... Picar as letras como diz assim... Pesq.: ((Tento ler o seu nome no documento)) É... Davi Oliveira... Davi: Oliveira de Azevedo. Pesq.: De Azevedo. Davi: Teve um dia deu um branco, que eu misturei esse (sobrenome) com esse de cá aqui... Deu um problema, tive que rasgar a folha de novo... Tornar... Fazer... Aí eu falei assim: “que que é isso, mas não é possível, meu nome... posso esquecer tudo, meu nome não...” (risos) A vinda para Belo Horizonte significou mais do que um simples deslocamento de uma região para outra: produziu nos sujeitos uma espécie de “choque cultural”. A rotina na roça, antes marcada pelo trabalho na lavoura, foi substituída por uma rotina urbana, regida pelo trabalho na construção civil. Semelhante ao que ocorreu durante a permanência no interior, essa nova vida também foi marcada pela luta pela sobrevivência, luta essa, entretanto, diferenciada, uma vez que os participantes tiveram que se ajustar à realidade e construir novas maneiras de interagir com o mundo: era preciso aprender a “se virar”, aprender a andar no centro da cidade, aprender a se relacionar com as pessoas com as quais passaram a conviver, sobretudo, no ambiente de trabalho. Entretanto, antes de tudo, era preciso, conforme depoimento de Lineu, aprender a “desacostumar” com a vida na roça e se “acostumar” com a nova vida na cidade grande: Lineu: Hoje eu falo assim... Porque, quer dizer, mas é o desacostume... A vez a pessoa desacostuma com uma coisa e acostuma com a outra... E iguale quando eu vim pra aqui (pra Belo Horizonte). Uai até eu acostumar... aqui e desacostumar de lá eu sofri demais... Muitos ano... Foi muitos anos... Aquela vontade de... Voltar pra lá. Pesq.: E o que mais era difícil aqui quando o senhor veio pra cá? Lineu: Pois é porque não tinha acostumado aqui e não tinha desacostumado de lá. Aquela vontade de... de... É... Aí depois que eu acostumei aqui e desacustumei de lá... Uai eu saia de férias... E quando... Esse relógio aqui ó ((mostra o relógio em seu pulso)) Eu entrei (na UFMG) em oitenta quando completou um mês... Um ano. Aí eu saí de férias falei: “Ah, vou no interior”. Comprei esse relógio, pra mim passear lá... Agora, quer dizer que eu tenho... Eu tenho vinte e quatro ano e meio (de trabalho na UFMG) né? Pesq.: Hunrum... 134 Lineu: Aí a gente ia... Ficava lá (na roça) o mês todinho... E achava pouco. No dia que tava vespano que tinha que retornar o serviço né? Que a gente vinha embora... Mazi quase que era iguale um boi pro açougo... (risos) Pesq.: (risos) Lineu: Ia à força... (risos) Pesq.: Não queria ir não? Lineu: Não queria ir não! (risos) Com base nesse depoimento, percebemos que os primeiros anos de vivência em Belo Horizonte não foram fáceis para Lineu. Seus desejos caminhavam em direção contrária à necessidade de permanecer nessa cidade. Sua vontade era de, o quanto antes, retornar à sua cidade natal, uma vez que sua linguagem, seus valores, seus comportamentos mantinham-se fortemente ligados à cultura do interior. Esse retorno, entretanto, só era possível durante as férias no trabalho, período esperado com muita ansiedade, diferente do momento do retorno à lida na capital, que despertava em Lineu sentimentos de angústia e de tristeza e que, somado a uma grande vontade de ficar, o fazia sentir-se acuado, sem saída e, conforme seu depoimento, como um “boi em direção ao açougue”. Pelo depoimento de Davi, logo abaixo, percebe-se que a vinda para Belo Horizonte também foi um processo doloroso. Os aspectos que caracterizam a vida no campo e a vida na cidade foram demarcados pelo participante em detalhes e indiciam o quanto a saída do seu lugar de origem significou a perda de certos elementos que compõem a sua identidade: Davi: A vida (no interior) era... É assim... Não era uma vida agitada né? Era uma vida sossegada, as porta não tinha fechadura, tinha aquelas fechadura, mas assim... Tipo tremela... É... Pra cachorro não entrar no lugar. Cê chegava, enfiava a mão no buraco você abria, então... Fechava ali pronto. Pesq.: E como que foi a vida aqui em Belo Horizonte? Davi: No início ruim demais. Pesq.: Me explica, ruim como? Davi: Ah... Tudo agitado, tudo diferente, você tava acostumado com comida de fogão a lenha, depois veio gás, você não conhecia o que que era... Você não conhecia o que que é gás. É... Aquela casinha pequininiiiiiiiinha, aquele trem esquisito é... Cada pessoa de um jeito... Nó gente, nós sofreu muito até a gente... Chorava a gente... Doido pra voltar pra roça de novo. Pesq.: Por que que chorava? 135 Davi: Ah porque... Agüentar um... A mesma coisa você tá acostumada aqui na cidade, aí eu te levo você láááááá... Pra roça lá pra aqueles cantão. Só conviver com aquelas pessoa, com o jeito deles... Nossa... É difícil demais... Imagina só vim calçar... Calçar sapato, eu vim calçar sapato depois que eu vim pra aqui. Eu não calçava, não sabia o que que era calçado. Ter que deixar a cidade natal para viver numa cidade grande implicou mudanças no estilo de vida de Davi. Foi preciso criar novos hábitos, aprender novas maneiras de interagir com o outro, adaptar-se aos novos sabores, enfim, inserir-se numa cultura urbana. Se antes, na roça, as “tremelas” nas portas eram utilizadas apenas “pra cachorro não entrar no lugar”, na cidade grande as fechaduras e os cadeados tornaram-se necessários para se proteger da violência. A tranqüilidade no campo e as relações baseadas numa maior proximidade com o outro foram substituídas pela pressa e pelo cotidiano marcado por relações mais formais e impessoais; e nesse novo lugar social, a fronteira que separa o público e o privado tornou-se muito mais demarcada. Para Davi, o fogão a lenha, agora substituído pelo fogão a gás, deixou a comida menos saborosa, entretanto, podemos dizer que, para além dessa avaliação, seu discurso revela a dificuldade de compreender os novos valores, códigos e símbolos com os quais passou a interagir. Como Lineu, Davi também ficava “doido pra voltar pra roça de novo”, mesmo com as limitações impostas pela vida no campo onde, conforme seu depoimento, até a vinda para a capital, “não sabia o que que era calçado”. Entretanto, à medida que Davi, Lineu e os demais participantes foram recriando as suas vidas na capital e, conseqüentemente, passaram a se sentir parte integrante da realidade urbana, mudaram seus pontos de vista e hoje afirmam que não mais gostariam de deixar essa nova vida: Pesq.: E hoje? Lineu: Agora não... Agora lá (na roça) tem... Ah já tem quase uns doze ano ou mais por aí e eu vou lá porque tem... Meus parente é tudo de lá... Pesq.: Hunrum... Lineu: É... Até eu for sozinho se for... A esposa for... Aí... Ainda tá bom... Mas se eu for sozinho, uma semana eu já acho muito... É... Uma semana já quer voltar pra trás... Mas por quê? Porque acostumou aqui, desacostumou de lá. 136 Em seu ensaio “Educação como prática da liberdade”, publicado pela primeira vez em 1967, Paulo Freire discutiu a respeito das implicações de se pensar a inserção do homem no mundo em termos de acomodação ou de integração. Segundo o autor, o homem não está apenas no mundo, mas com o mundo, é parte integrante da sua construção e, diferente dos animais, se relaciona nesse mundo, constrói cultura e compartilha da produção dessa cultura. Nesse sentido, as pessoas não são apenas expectadoras da realidade, elas são movidas pela sua singularidade e por uma pluralidade que se entrelaçam, permitindo-lhes modificar o mundo. No fragmento abaixo, Freire (1999) defende a integração do homem no mundo em detrimento de sua acomodação. A integração é percebida como uma atividade estritamente humana e resulta da capacidade de ajustar-se à realidade e ao mesmo tempo transformá-la, unindo-se a esse viés o poder de optar sobre seu destino: Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura. A integração ao seu contexto, resultante de estar não apenas nele, mas com ele, e não a simples adaptação, acomodação ou ajustamento, comportamento próprio da esfera dos contatos, ou sintoma de sua desumanização, implica que tanto a visão de si mesmo, como a do mundo, não podem absolutizar-se, fazendo-se sentir-se um ser desgarrado e suspenso ou levando-o a julgar o seu mundo algo sobre que apenas se acha. A sua integração o enraíza. Faz dele, na feliz expressão de Marcel, um ser “situado e datado” (Pp.49-50). Para Freire (1999), quando o homem perde a capacidade de optar, torna-se um ser destituído de poder de decisão, submetido “(...) a prescrições alheias que o minimizam” (p.50). Suas escolhas, na verdade, não são suas e sim ações submetidas aos desejos dos outros que lhe impossibilitam de integrar-se no mundo, tornando-se, desse modo, um ser acomodado. A luta travada pelo homem na sociedade em prol da sua humanização lhe permite criar mecanismos contra a opressão. Diferente dos animais que estabelecem contatos no âmbito de relações reflexas, o ser humano integra-se por meio de relações reflexivas: Portanto, enquanto o animal é essencialmente um ser da acomodação e do ajustamento, o homem o é da integração. A sua grande luta vem sendo, através dos tempos, a de superar os fatores que o fazem acomodado 137 ou ajustado. É a luta por sua humanização, ameaçada constantemente pela opressão que o esmaga, quase sempre até sendo feita – e isso é o mais doloroso – em nome de sua própria liberação (p.51) Tendo em vista essas reflexões, podemos, então, entender esse processo de “acostumar-se" com a vida na cidade grande e de “desacostumar- se” com a vida na roça, expressado por Lineu, não no sentido de uma acomodação que, na perspectiva freiriana, remete à idéia de adaptação do sujeito a uma nova realidade na qual não pode interferir e transformá-la. As declarações coletadas nas entrevistas deixam claro que o distanciamento da cultura do interior e a inserção no mundo urbano ocorreram a partir de um processo de integração, onde novas maneiras de interagir no e com o mundo foram sendo internalizadas. Podemos dizer, então, que, entre a luta a ser travada na cidade grande em busca da melhoria da qualidade de vida e a opressão a que eram submetidos no campo, todos os participantes desta pesquisa optaram pela luta, por acreditar serem capazes de responder aos desafios que lhes foram impostos com a migração. O depoimento de José, logo a seguir, dá maior sustentação a essas idéias. Mesmo se tratando de um diálogo mais extenso, consideramos necessário incorporá-lo ao nosso debate. Nesse fragmento, José discorre sobre as limitações impostas pela sua condição de analfabeto, limitações essas que, no entanto, não o impediram de enfrentar essa realidade: José: (...) Primeiro passo que eu dei foi aprender ((a andar na cidade de Belo Horizonte))... Pesq.: E como que você aprendeu? José: Eu aprendi andar porque eu... Eu... Eu tinha muita disposição, né? Eu confio muito ne mim. Ainda eu penso assim, o lugar que ocê... Confia ne você, quer dizer que precisou te ajudar, mas você também tem que dar as suas caminhada sozinho porque você não pode ficar acompanhando a vida toda junto com companheiro. Pesq.: Me explica melhor isso então. Então quer dizer que... Antes você dependia de alguém... José: É de... Mas quando eu cheguei... Quando eu cheguei por aí no início eu dependia porque... né? A gente tinha expediente, tinha não medo, mas sempre tinha que ter um pra... Caminhar com a gente. Pesq.: E depois. Como que você passou a caminhar sozinho? José: Aí eu falei com... Com meu, minhas irmã, minha sobrinha e meu sobrinho que... Certo determinado tempo já não precisava ir andar comigo mais não que eu andava sozinho, andava sozinho caminhando porque, eu acho que, eu tinha que fazer isso. E eu consegui, eu consegui. 138 Pesq.: Uma dúvida: o senhor caminhava sozinho, mas já sabendo todos os lugares ou teve que ir conhecendo? José: Ah não, mesmo no centro eu tive que conhecer sozinho, eu sempre tive que conhecer sozinho, andar sozinho... Pesq.: Então o senhor ainda não sabia, o senhor ia mais pela... vontade de ir sozinho? José: É vontade de ir sozinho, mas sem conhecer. Sem conhecer, sem conhecer ia e voltava. Pesq.: E como que o senhor fazia pra resolver suas coisas lá sozinho se o senhor não conhecia? José: A gente perguntava. A gente perguntava, aí perguntava por isso que eu falei pra você que era difícil, a gente perguntava algumas pessoas aquelas de mais idade, outros mais novo, outros que a gente olhava pra ele assim achava que eles tinha uma boa vontade de dar explicação... Pegar ônibus que é difícil pegar ônibus que eu não sabia ler então é difícil pegar ônibus também. Tinhas essas dificuldade toda entendeu? Difícil pegar ônibus, que a vez a gente andava muito outra hora pegava ônibus descia mais longe um pouco, lugar mais estranho que não conhecia né? entendeu? E sobre trabalho, eu... Eu consegui trabalho sozinho, trabalhei no depósito da Antártica, fiquei conhecendo isso tudo através de... Belo Horizonte quase tudo através, trabalhando no depósito da Antártica e saía pra ir vender com, com o motorista, a gente saía pra esses bairro todo Caetano Furquim é... Nova Lima, Alto Serra... Concavavi... (risos) Capibari... Entendeu? Esses bairro aí a gente aprendeu a andar quase tudo. Hoje eu quase não sei mais depois que eu parei de fazer essas entrega e saí efetuando essas entrega, a gente parou. O centro, rodoviária no centro a gente entregava no centro tudo através disso. Entendeu? Então a gente aprendeu por aí, mas tudo é coragem. Pesq.: Hunrum... José: Coragem e força porque cheguei num... Num... (...) Quem me ajudou muito que me... Fez esforço pra mim vim pra aqui eu vim pra aqui e andou um mucado e falou: “agora você cuida” ((bate as mãos)) “agora é com você”. Pesq.: Quem que disse isso com o senhor? José: Minhas irmã e meus, meu cunhado né? “Agora você cuida”. Mas não assim, pra falar que tá abusando não, porque né? Eu também... Fiz o meu expediente, a minha coragem eu falei: “não, eu tenho que andar é... Só eu mesmo e resolver as minhas coisa sozinho”. O depoimento de José expressa esse sentimento de luta travada pelo analfabeto no cotidiano de uma sociedade letrada: impedido de circular pela cidade com autonomia, necessitou da ajuda, sobretudo, de familiares para não se perder. Entretanto, a vontade de ir e vir por conta própria, somada às aprendizagens adquiridas, sobretudo, nas relações que estabeleceu no trabalho, permitiu-lhe, a partir de erros e acertos, atingir esse objetivo. Chama a atenção em seu discurso o fato de considerar a sua coragem e força como fundamentais para a conquista de uma relação menos dependente com o 139 outro. Diante das dificuldades que lhe foram impostas na cidade grande, José preferiu optar por buscar a autonomia, uma vez que tinha a consciência de que era preciso “dar as suas caminhadas sozinho”, pois a pessoa não pode ficar “acompanhando a vida toda junto com o companheiro”. No depoimento abaixo, Vander também afirma que teve que “apanhar” muito para se adaptar à nova vida em Belo Horizonte. Entretanto, ao contrário dos demais participantes, afirmou que não passou por dificuldades para circular na cidade: Vander: Ô Iara é como digo que tem hora... É... A gente... A gente depois que a gente... A gente apanha... Muito... Pesq.: Apanha? Vander: Apanha... Pra depois a gente passar a saber a viver... Pesq.: Hunrum... Vander: Porque eu apanhei... Pesq.: Apanhou como? Vander: Assim é... Por exemplo, a maneira do cê sair e resolver suas coisas, entendeu? Pesq.: Hãrã... Apanhou na vida... Vander: É. (...) Pesq.: Você tinha dificuldade pra ir em algum lugar? Se precisasse de ir ao centro da cidade, resolver alguma coisa... Tinha dificuldade? Vander: Isso aí não... Isso aí já... Não... Isso aí é... Toda vida nunca me bateu... Mas digo assim... Você chegar, por exemplo, às vezes apresenta dificuldade de preencher um... Um... Um endereço... Por exemplo, ou às vezes, por exemplo, aí... Chega num... Num... Coisa, por exemplo, pra preencher... “Ah, é... eu quero os dados assim... Assim... Assim...” Então eu tinha dificuldade e hoje eu não tenho... Pesq.: Ah, agora o senhor quis dizer que... Ir pra algum lugar, ver as placas e... Isso não tinha problema não... Vander: Não... Esse negócio de andar esse negócio de... Ô, ô Iara é... Tinha não. Pesq.: Mas como é que o senhor fazia? Vander: Não, eu... Tenho... Não eu... Eu sei... Eu aprendi um pouco... Olha pro cê vê... Eu não tinha... Qualquer que é... Ler esses trem eu lia... Eu não tinha dificuldade pra lê, não. A minha dificuldade mais, Iara era escrever... Pesq.: Escrever... Vander: Escrever. Pra lê não... 140 Vander se julga uma pessoa perseverante e curiosa, qualidades que considera fundamentais para enfrentar os desafios e aprender a resolver seus problemas num grande centro urbano. Acreditamos que, juntamente a esses aspectos, o fato de Vander ter afirmado dominar a tecnologia da leitura pode ter favorecido a sua integração num ambiente letrado. Pelo depoimento, percebe-se que suas dificuldades estavam relacionadas ao uso da escrita, fato que não o impediu de circular autonomamente pela cidade, uma vez que, nas situações que lhe eram demandadas, a habilidade de leitura (leitura de placas, localização de endereços, embarque em ônibus, etc.), se sobressaía. Entretanto, é preciso relativizar essa noção de domínio da leitura, já que, conforme já destacamos81, mesmo que a aquisição de certos conhecimentos sobre a escrita tenha favorecido a sua circulação pela cidade, esses saberes não foram considerados suficientes por Vander para que participasse de outros eventos e práticas de letramento. Uma das primeiras tarefas realizadas pelos participantes, assim que chegaram a Belo Horizonte, foi a retirada de documentos pessoais para ingressar no mercado de trabalho. Lineu, por exemplo, informou que, até a sua vinda à capital, não era portador de CPF, documento que lhe foi exigido para trabalhar como pedreiro numa obra na UFMG. Ao falar das dificuldades por que passou para adquirir esse documento, Lineu destacou sua impossibilidade de caminhar sozinho pelo centro da cidade; além disso, sua fala indicia que depender de alguém para ir e vir despertava dentro de si certo mal estar, já que, do seu ponto de vista, pedir ajuda incomodava as pessoas: Pesq.: A primeira vez que o senhor veio pra cá pra ficar, o que era mais difícil aqui? Lineu: (pausa) É pra ficar... Quer dizer... O mais difícil é igual eu já te falei, o mais difícil é a leitura, pra andar aqui... (...) Lineu: Foi difícil ué... Porque iguale quando eu fichei aqui (na UFMG)... (pequena pausa) Aqui na Universidade eles pedia o CPF. “Ah cê vai buscar o CPF lá no Ministério da Fazenda”. Aí eu tinha que arranjar uma pessoa pra ir comigo, eu não ia sozinho... Chegava lá eles falava: “Não, ocê é... É empregado cê não precisa de CPF não...” Precisa de CPF é quem mexe com negócio umas coisa assim... Não precisa não... Pesq.: Voltava... 81 Ver páginas 127-129. 141 Lineu: Eu vinha... Chegava aqui... Eles: “Precisa sim”... Pois eu arranjei gente pra ir comigo. E ficou a luta. Dispois eu arranjei jeito aí eu fui sozinho: “Ah não num vou... Perturbar os outro mais não”... Fui umas três veiz, gente foi comigo... Aí depois eu fui sozinho... Pesq.: E como é que foi ir sozinho? Lineu: Fui sozinho mais perdi... Meu Deus do céu! Perdi, mas desorientei... (pequena pausa) Quanto mais eu via que eu tava perdido mais eu andava... Nosso Deus! Mas foi um sacrifício pra mim... Achar lugar de vim embora... Aí vim. Mas não trouxe CPF ainda não. Cheguei aqui... Pesq.: Chegou sem o CPF... Lineu: Cheguei. “Não, precisa...” Aí eu fui. A segunda vez perdi de novo. Perdi mais aí eu ti... Eu... Alembrei da... Da primeira vez né? Pesq.: Hãrã... Lineu: Aí disprocupei... Precisando de sair, mas num sabia onde que ia... A vez eu entrava numa loja assim com quem que tava tranqüilo... Com quem que queria comprar, oiava uma coisa, oiava outra... Aí chegava na porta da loja assim, oiava onde é que eu ia... Aí saia... Aí... Eu achei o lugar mais de jeito... De sai... Ah, mas foi sacrifício. O mais difícil pra mim foi isso... Pesq.: Hunrum... Lineu: O... Num saber, quer dizer, não tinha leitura, não sabia andar no centro, porque era novo aqui né? Pesq.: Hunrum... Lineu: Foi a maior dificuldade. Como vemos, depois de algumas idas ao centro acompanhado, Lineu também tomou a iniciativa de andar pela cidade sozinho. Seu discurso se assemelha aos discursos de Vander e de José, no sentido de que foi preciso força de vontade e coragem para enfrentar os desafios. Essa coragem pode ser entendida como uma forma de se “rebelar” dessa condição de dependência imposta pelo analfabetismo. Percebe-se, entretanto, que a decisão de Lineu de percorrer a cidade sozinho se deve ao fato de o participante acreditar que estava “perturbando” as pessoas. Observamos que sua visão sobre o analfabeto era de alguém que incomoda o outro e que, portanto, representa um estorvo para a família e para todos a quem solicita ajuda. Entretanto, o desejo de resolver os próprios problemas sem a mediação com o outro esbarrou na impossibilidade de exercer autonomamente certas práticas de leitura. Diante dessa situação, por diversas vezes, Lineu se viu “perdido” na cidade, situação que o deixava “desorientado”. Entretanto, seu relato revela que as constantes idas e vindas ao centro sozinho, mesmo que isso lhe tenha custado grande sofrimento, lhe possibilitou pouco a pouco o 142 aprendizado, uma vez que foi acostumando-se com a arquitetura dos prédios, com o traçado das ruas, ou seja, com a realidade urbana. Apesar de ter aprendido a circular pela cidade, Lineu reconhece que essas dificuldades teriam sido menores caso dominasse a leitura. Lineu hoje se considera uma pessoa “livre” para ir e vir, porém essa autonomia foi conquistada somente após anos de convivência em Belo Horizonte, somados ao conhecimento sobre a linguagem escrita que adquiriu no contato com espaços formais e não formais de aprendizagem da escrita. As primeiras experiências de Alberto em Belo Horizonte também foram marcadas pela dificuldade de se adaptar ao ambiente letrado. Dentre os problemas que enfrentou, lembrou-se do dia em que acabou se “perdendo” no centro durante o retorno do trabalho para casa. Da mesma forma que Lineu, Alberto também destacou o vínculo de dependência que ele, ainda analfabeto, teve que estabelecer muitas vezes com colegas de trabalho e até policiais. No depoimento abaixo, Alberto, ao sair em busca do seu Fundo de Garantia, dá detalhes das dificuldades para conseguir encontrar um endereço de uma agência bancária. Observa-se que o medo de Alberto ao pedir informações não está na possibilidade de sua condição de analfabeto ser revelada e sim na figura ameaçadora da polícia, percebida naquele contexto político e social do início dos anos de 1980 como uma autoridade repressora e que poderia lhe fazer algum mal: Alberto: Eu empreguei na... Santa Bárbara eles depositaram meu Fundo de Garantia na Caixa Econômica Federal na Rua é... (pausa) é... Rua... Esqueci... Só sei que ela corta de lá no bairro... No Barro Preto e sobe pra aquela avenida vai lá pra Praça da Assembléia. Rua Araguari. Pesq: Hunrum... Alberto: E eu fiquei perdido em Belo Horizonte um dia caçando aquela rua... Rua Araguari. Tinha que achar pra mim... Ir na Caixa Econômica Federal. Aí eu cheguei, aí eu cheguei perto de dois policiais entendeu? Tremendo de medo cheguei perto dele falei: “Ô, companheiro uma informação de vocês. É... Dá pra vocês me informar aqui aonde fica essa rua?”. “Pois é pra a... Subir e descer a (Avenida) Augusto de Lima toda”. Falou comigo: “Ó, cê vai pra essa avenida abaixo ATÉ você cê encontrar... (pausa) o Mercado... O… Mercado Central. Quando você encontrar o Mercado Central você vai fazer... Você pergunta onde fica o Mercado Central a pessoa vai te informando aí abaixo”. Quando eu cheguei no Mercado Central aí eu peguei tomei informação com outro policial ele pegou e falou comigo: “Ó, você atravessa essa praça” 143 (pausa) hoje sei falar que é a Praça Raul Soares “e sobe a (Avenida) Amazona. Quando você subir a Avenida Amazona você sobe à direita. Quando você subir à direita você vai... Encontrando outros policiais na rua você pergunta. Não deixa esse endereço sumir não se você deixar você não vai chegar lá não”. E ele já todo amassadinho todo rasgado de tanto eu ficar mostra um mostra outro, entendeu? A dependência de Alberto foi sendo reduzida com o passar do tempo, à medida que foi familiarizando-se com a vida no ambiente urbano. Ao longo dos meses, passou a desenvolver estratégias próprias para circular na cidade, como, por exemplo, eleger pontos de referência, como prédios, praças e monumentos, no intuito de facilitar o seu deslocamento. Entretanto, como é possível perceber no depoimento abaixo, essas estratégias lhe proporcionaram maior autonomia sem, no entanto, lhe garantirem que os riscos de se perder novamente fossem totalmente descartados. Pesq.: O senhor falou que… Tinha dificuldade, precisava da ajuda de algumas pessoas, pra resolver algumas coisas? Alberto: Tinha. Pesq.: Que coisas eram essas que o senhor precisava de ajuda? Alberto: Ah muito… Igual eu te falei… Muitas coisas… Eu… É igual… Belo Horizonte memo… Belo Horizonte… Eu… Fiquei aqui mais ou menos…. Perdido aqui uns tempo… Pesq.: Ficou perdido? Alberto: Fiquei… Entendeu? Aí depois foi com o tempo que eu fui conhecendo e... Vivendo e também foi mudando os nome da rua... Colocando os... Outro... Entendeu? (...) Alberto: E pra voltar (do trabalho) eu fazia assim eu... Aí que eu fiquei sabendo que era (Avenida) Santos Dumont, essa avenida era Santos Dumont. Eu marquei mais ou menos o local e... Aí quando foi um dia os companheiro falou: “Ah, não vamos passar aqui por baixo no Parque Municipal cê sai lá é mais fácil”. Aí eu perdi o rumo fiquei quase uma ou duas horas sem achar o ponto (de ônibus). (...) Pesq: O senhor disse que tinha... A sua referência ((para circular em Belo Horizonte)) era a Santa Casa. Alberto: Era a Santa Casa. Aí eu... Aí eu aprendi o caminho (do trabalho para a casa) depois, ficou tranqüilo, bom entendeu? Pesq: Mas você se orientava pelas placas? Como é que era a orientação? Alberto: Ah, muitas vezes é igual eu te falei eu tinha que esbarrar até em polícia pra... Pra pedir informações. 144 Pesq: E por que que o senhor tinha que pedir informação? Alberto: Exatamente porque eu... Era estranho no lugar... Não conhecia nada igual eu esbarrar com esses prédio vinte andares de altura... Pesq: Hum... Alberto: Entendeu? Circular pela cidade de Belo Horizonte demandava tamanho esforço que Alberto considerou o cansaço mental gerado nesse processo de ir e vir muito maior do que o próprio esforço da lida, no trabalho pesado na obra. O conhecimento das regras de trânsito, dos símbolos e dos ícones com os quais passou a interagir se constituiu num dos grandes desafios a serem superados: Alberto: Isso (viver em Belo Horizonte) era uma novidade muito grande pra gente (pausa). Quando eu ia chegar... Quando eu ia andar dentro de Belo Horizonte eu ficava mais cansado do que o dia que eu tava... As horas que eu tava trabalhando. Pesq: E por que o cansaço? Era por quê? Alberto: Correr em frente o sinal de ônibus... Porque eu não entendia ((fala sorrindo)) se ele tava aberto ou se tava coisa, o carro dava uma trela eu... ((bate uma mão na outra, simulando uma batida)). Pesq: Mas o senhor não sabia que hora tinha que atravessar não? Alberto: Não, não, eu não entendia nada de sinal não. Pesq: Nem o sinal, nem as cores. Alberto: Não (pausa). Pra mim não tinha... Pra mim não tinha significado nem amarelo, nem verde, nem vermelho não. Com o tempo que fui aprendendo... Pesq: Foi aprendendo... Alberto: Com o tempo. A leitura também foi com o tempo. Merece destaque o fato de que, mesmo com todas as dificuldades pelas quais passou na cidade grande, Alberto considera que, em momento algum, sentiu-se envergonhado diante de sua condição de analfabeto. Conforme sua fala abaixo, todas as vezes que necessitou da ajuda alheia para resolver os problemas do cotidiano, recorreu, sem receio, tanto às pessoas do seu convívio, quanto às pessoas desconhecidas, que passavam nas ruas: Pesq.: E como é que era ficar aqui sem saber ler e escrever? Alberto: Uai era aquele negócio né? Quem vive... Quem vive de pergunta vai em frente né? Pesq.: Então o senhor perguntava… 145 Alberto: Isso. Pesq.: Sem problemas... Alberto: Isso. Pesq.: E tinha vergonha de perguntar? Ficava acanhado? Alberto: Não... Pesq.: Não tinha essa coisa de: “Ah... Vão saber que eu não sei...”. Não tinha esse problema não? Alberto: Não, falava na tora assim e falava. Pesq.: Então nunca teve vergonha de não saber... Alberto: Não. José, numa das entrevistas que concedeu, também afirmou que nunca teve medo ou vergonha de ser analfabeto e nem de ter que pedir ajuda às pessoas para interagir com a linguagem escrita. Seu depoimento revela uma visão de analfabetismo que diverge do conjunto de discursos constituído em nossa sociedade de que o analfabeto é cego e incapaz, algo de que se deva envergonhar. No fragmento abaixo, José afirma que sempre ignorou esse discurso, mesmo quando partiu de sua própria família, no momento em que decidiu sair do interior e tentar a vida em Belo Horizonte: José: (...) eu fico felize de ter chegado no que eu cheguei... Pesq.: E como é que é essa felicidade, felicidade de quê? José: (sorri) Ah... De que... ((aponta os três dedos para o alto)) Pesq.: O senhor diz que fica feliz... Você tá pontuando com o dedo... Vamos lá... José: É... Eu vim da roça sem nada, né? Sem nada. Inclusive eles falava pra mim: “que que cê vai fazer em Belo Horizonte... Cê é cego”. Pesq.: Falava assim com o senhor? José: Falava. Pesq.: Quem que falava? José: Própria mamãe. É... Porque ela não queria que eu viesse, né? “Cê é cego”... É... Cego porque não sabia lê. Pesq.: E o senhor achava isso, seu José? José: Ah, se eu achasse não estava aqui menina... (risos) Pesq.: Então não dava ouvido... José: Nunca dei. Entendeu? Me sinto felize, né? Pesq.: Então o senhor falou, que veio da roça... José: É. Pesq.: Te chamavam de cego... E aí? 146 José: Chamava... Pesq.: E o que que você falava? José: Falei: “cego também anda, cego também enxerga”. A minha resposta né? Aí num me falaram mais nada não. Vim embora. Cheguei aqui eu consegui tudo. Consegui aprender um pouquinho de leitura, título... Já eu num tinha os documento deu pra mim tirar tudo aqui em Belo Horizonte. Que a vez foi só uma situação que ocê... Já, já cresci... Pesq.: Hunrum... José: Só deu tirar meu documento aqui eu já cresci. Tirei e escrevi. Eu assinei. Mau... Mau assinado, mas assinei. Pesq.: Hunrum... José: Entendeu? Já não fico felize com isso? Pesq.: Claro, com certeza. José: Né? Agora, todas firma que eu entrei só firma boa. Que vez, a vez a gente que tem... Que tem um grande... Leit... Uma grande formação a vez não chegou no que eu tô hoje. Percebemos, portanto, que José tem uma percepção de si e do analfabetismo não como algo de que deve se envergonhar, mas como um desafio a ser superado por meio do esforço e das aprendizagens adquiridas nas relações estabelecidas com as outras pessoas. José se considera uma pessoa realizada por ter conseguido construir uma vida digna, por meio do trabalho, e nos mostra que ser analfabeto não o desqualifica como pessoa. É categórico ao dizer que, se tivesse se preocupado com o estigma que o termo “analfabeto” carrega, não teria chegado tão longe. Orgulha-se de ter conquistado o direito de assinar o próprio nome em documentos, habilidade essa desenvolvida após o ingresso no MOBRAL, em Belo Horizonte. Podemos observar que a retirada de documentos, garantida através do aprendizado da escrita do próprio nome, significou para José um crescimento pessoal em sua vida, um indício de vitória. Outros aspectos do discurso de José sobre o analfabetismo também podem ser identificados a partir da análise da continuidade do diálogo que se estabeleceu entre o participante e a pesquisadora: Pesq.: (...) você disse que não se importava dela falar que você era cego, então quer dizer que você não se sentia mal por isso. José: Sinto não. Pesq.: O que que você sentia, então? Por não saber ler e escrever? José: Eu sentia que era eu superior (risos) sem saber ler, sem nada... 147 Pesq.: Mesmo sem saber escrever... José: Porque eu tinha coragem, tinha coragem de... de... de enfrentar qualquer coisa que desse pra mim enfrentar... Pesq.: Então não sentia, por exemplo, medo, vergonha... José: Não, as vez os amigo falava comigo assim, que eu era bobo eu era isso... Eu não sentia nada disso... Pra mim eles estava elugiando... Pra mim era elugio... Pesq.: Não tinha nada a ver... José: Não... Não tenho raiva deles até hoje num falo isso pra poder... Falar que... Que eles tava me atrapalhando, nem nada... Pra mim eles me ajudou... Pesq.: Mas... O senhor também não tinha medo ou vergonha de dizer para uma pessoa que não sabia ler? José: Nunca tive... Até hoje. Dois pontos básicos devem ser levados em consideração na análise do relato em questão: inicialmente é preciso refletir de que lugar o entrevistado fala e para quem é dirigida a sua fala e, posteriormente, a importância de demarcar as lembranças de José sobre o analfabetismo e como essas lembranças são formuladas. Podemos dizer que estamos diante de um adulto alfabetizado, que relata à pesquisadora as suas percepções sobre o analfabetismo. Observamos a segurança do “José alfabetizado”, que afirma que nunca sentiu receio de ser enquadrado no grupo daqueles destituídos da capacidade de ler e escrever. José afirmou que nunca se abalou, nem mesmo quando as pessoas remetiam sua condição de analfabeto a termos pejorativos: “ser analfabeto é ser cego, é ser bobo”. José (hoje) diz que ser chamado de analfabeto era, portanto, um “elogio”, algo que o fazia se sentir “superior”, mesmo “sem saber ler, sem nada”. Pretérito e presente se entrelaçam na sua fala. Quando diz que não se incomodava/incomoda de ser chamado de analfabeto, há indícios do presente influenciando seu relato. Nota-se que há momentos em que literalmente responde às perguntas no presente, o que indicia ainda não ser capaz de realizar certas práticas de leitura e de escrita: Pesq.: (...) então quer dizer que você não se sentia mal por isso. José: Sinto não. Pesq.: Mas... O senhor também não tinha medo ou vergonha de dizer para uma pessoa que não sabia ler... José: Nunca tive... Até hoje. 148 Ao discutir sobre as divergências do discurso dominante e dos sujeitos analfabetos sobre o analfabetismo, Rocha (2004) nos alerta sobre o poder do discurso oficial na divulgação e legitimação de um modelo estereotipado de adulto analfabeto. Na década de 70, por exemplo, o discurso higienista subjacente ao MOBRAL orientou uma forma de conceber o analfabeto ou o analfabetismo: (...) a visão de que o analfabeto é um “coitado”, “um homem desesperançado e angustiado”. Atribui-se a esse sujeito a condição não apenas de marginalizado, mas de “doente”, de “deficiente”, alguém incapaz de lidar não apenas com a linguagem escrita, mas com a própria cultura, um ser que, por ignorância e tristeza, torna-se um dos principais responsáveis pelo subdesenvolvimento do país, motivo pelo qual o analfabetismo – mal que afeta as pessoas – precisa ser erradicado (Rocha, 2004, p.52). Sobre o discurso de Miguel Couto, produzido na década de 20 do século passado, que coloca em dúvidas a capacidade do analfabeto de raciocinar, entender, criar e se desenvolver, a autora destaca ainda que: Esse discurso, embora hoje reconhecido como excessivo, parece já conter os elementos fundamentais que orientam muitas das percepções que, ainda hoje, se têm do que significa ser analfabeto numa sociedade como a nossa (Rocha, 2004, p.67). Conseqüentemente, esses discursos interferem na produção dos nossos próprios discursos e o que fica em nosso imaginário normalmente refere-se a um sujeito cego, incapaz, causador e não vítima do subdesenvolvimento, e que gera atraso à nação. De tanto ouvirem que é vergonhoso não saber ler e escrever, as pessoas não-alfabetizadas acabam internalizando esses discursos. É o que ocorre com Lineu, que, diferente de José e Alberto, diz ter-se sentido muitas vezes humilhado por expor sua condição de analfabeto para as pessoas. Lineu se recorda da vez em que permaneceu por horas num ponto de ônibus, sem compreender a razão do atraso do coletivo, fato que só pôde ser esclarecido quando uma pessoa que também aguardava no ponto lhe indicou o ônibus que deveria embarcar. Chamamos a atenção para o tom irônico em sua fala, em resposta à pergunta da pesquisadora se sabia ler quando chegou a Belo Horizonte: 149 Lineu: Foi quando eu fichei aqui (na UFMG)... Pro cê vê o... O... Como é que eu sabia lê ((fala ironicamente)): Eu fichei e ainda fazia hora extra até oito hora... Aí quando é um dia... Esse (ônibus) São Bernardo o número dele era cento e onze. Era três um na frente, né? Cê lembra? Cê num lembra não, né? Cê é nova... Era cento e um o número dele. Agora hoje é... É... Vinte e quatro zero dois. Pesq.: O ônibus... Lineu: O ônibus. Agora é vinte e quatro zero um. Era três um assim na frente... Ai nesse... Logo no fragante que eu fichei aqui, eles mudaram o número do ônibus... Logo pra de... Cento e onze pra vinte e quatro zero dois. Aí eu larguei do serviço, lá fazia hora extra, eu larguei do serviço e fui pro ponto do ônibus ali lá na (Avenida) Antônio Carlo... E tá passando ônibus, foi... Foi... Cheguei lá oito e pouca... Deu oito e meia, nove hora e lavai e num passa ônibus de jeito... Eles passava, mas... Mas eu não conhecia ué... É por causa de lê, né? Pesq.: Hãrã... Lineu: O cento e onze não passou... Aí chegou, chegou um cara ele falou: (pequena pausa) “tem tempo que ocê tá aqui?” eu falei: “tem tempo tem mais de uma hora que eu tô aqui...”. “São Bernardo não... não... não passou não?”. Eu falei: “não passou não”. Mas passou foi muito! (risos) Pesq.: (risos) Lineu: Aí ele oiou assim e falou: “vem um lá, vinte e quatro zero dois”. Aí veio chegando já foi entrando: “Esse é o São Bernardo?”. Pro cê vê... Mas a gente é tão humilhado, né? “Esse é São Bernardo?”. Quer dizer que tá o nome lá, mas eu não sabia... “Esse é São Bernardo?“ “É”. Aí eu... Eu confiei nele e entrei. Percebe-se que, ao relembrar o passado, a ênfase é posta na vergonha de ter a sua condição de analfabeto revelada. Chamamos a atenção para a perplexidade de Lineu que descobre, por intermédio de uma outra pessoa, que o ônibus tão aguardado já havia passado no ponto por diversas vezes. Da perspectiva de Lineu, sua demonstração de surpresa com a chegada do coletivo significou uma declaração ao outro de que não era capaz de ler: “Esse é o São Bernardo?” (...) “Quer dizer que tá o nome lá, mas eu não sabia”. O que está subentendido no depoimento de Lineu é a concepção de que o analfabeto não apenas sofre com as dificuldades impostas numa sociedade letrada, como também passa pela humilhação de ter que depender dos outros. Sua fala indicia que, mais do que depender, o analfabeto precisa, antes de tudo, confiar no outro: “Aí eu... confiei nele e entrei”. Como vemos, a maneira como Lineu percebe o analfabetismo se diferenciou de Alberto e de José, que, mesmo reconhecendo que não eram 150 capazes de ler e escrever, não encararam essa situação como vexatória. Para Lineu e, como também veremos a seguir, para Davi, era bastante constrangedor assumir a condição de analfabeto: Pesq.: Como que você vê a sua vida hoje... Em relação ao tempo que você ainda não sabia ler e escrever. Davi: A gente vive bem melhor bem melhor porque você... Vivia no mundo, vivia com medo... Pesq.: Com medo? Davi: É ficava com medo das pessoa, com medo de conversar... Com medo de fazer uma coisa errada... Pesq.: Medo por quê? Davi: Porque não tinha esclarecimento, você num batia papo com ninguém, você não conversava com ninguém... Pesq.: Mas por que você não conversava? Davi: Você ficava constrangido né? Pesq.: Hã... Davi: Porque não tinha ninguém pra... Assim... Chegar... A gente conversar, seja uma pessoa amiga pra conversar com você. Quando uma pessoa se dirigia pra conversar com você conversava... É... Com medo... Pesq.: Medo de quê? Davi: Medo que é difícil explicar... É... Porque... O que que seja falar, começava falar sobre o que queria... É um medo assim... É... Diferente né? De coragem de expor... Observamos, nesse depoimento, que Davi relaciona o analfabetismo à exclusão. Para Davi, ser analfabeto vai além do desconhecimento da tecnologia da escrita, significa viver isolado numa cidade grande e não poder se relacionar com o outro, devido ao medo e à insegurança de conversar. Esse medo de interagir com as pessoas se deve ao constrangimento de ter a sua condição de analfabeto revelada. Isso porque, na perspectiva de Davi, o analfabeto não tem esclarecimento e, por ser ignorante, não é capaz de se integrar ao grupo daqueles que detêm o saber – saber aqui entendido como erudição. Vemos claramente que o analfabetismo está, portanto, relacionado à falta de conhecimento, mais precisamente ao saber escolarizado. A falta de esclarecimento gerou em Davi o medo de se expor, uma vez que, do seu ponto de vista, o analfabetismo pode ser revelado não apenas porque o analfabeto não detém a tecnologia da leitura e da escrita, mas, sobretudo, por não 151 dominar conhecimentos gerais que lhe permitam interagir nas diferentes esferas sociais. Na conversa a seguir, Davi relembra o período em que precisava marcar no papel suas impressões digitais, já que ainda não era capaz de assinar o próprio nome. Nota-se que o participante, em consonância com a visão social sobre o analfabetismo, relaciona a condição de analfabeto à cegueira: Pesq.: Você chegou a marcar o dedo? Davi: Já. Pesq.: Como é que era isso? Davi: Era... O... Tinha um piloto (tinteiro), né? A gente levava o dedo assim... Registrar... Pra... Registrar... Pesq.: O que você sentia? Davi: A gente ficava assim... Esquisito... Ficava no escuro, né? Porque você enxergava... Mas ao mesmo tempo não, porque... Cê via as coisas, mas num tava vendo... Pesq.: Como assim? Davi: Num tinha noção de nada, cê num sabia lê. Cê via uma bola... Ah... Cê via um A... Ah... Cê via aquilo ali cê não sabia se tava fazendo... Cê fazia o que os outro mandava. Porque num enxergava... Como se fosse uma criança como começasse andar... Ela via os outro andando... Ai a gente ia... Pesq.: E o que que você sentia? Davi: A gente ficava na... Querendo aprender um pouquinho... No fragmento abaixo, Rocha (2004) fala sobre os sentidos que o analfabeto atribui ao ato de marcar com o dedo no papel nas situações em que lhe é exigida a sua identificação. São reflexões sobre as declarações de Davi: O significado social de ser analfabeto subjacente à vergonha de sujar o dedo, às expectativas em torno da aprendizagem e mesmo ao aparente paradoxo que vai da vergonha ao orgulho de freqüentar uma turma de alfabetização, talvez tenha na associação entre analfabetismo e ignorância sua variável mais significativa – “Eu me sentia cega”. Essa forma de se perceber parece guardar profundas relações com a internalização da visão social que se tem do sujeito analfabeto ou pouco escolarizado. Acerca desse tipo de introjeção, dessa “autodesvalia” que, muitas vezes, caracteriza o oprimido, Freire (2002b, p. 50) diz: “De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que nada podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isso, terminam por se convencer de sua ‘incapacidade’. Falam de si como os que não sabem [...] (Rocha, 2004, Pp.83-84). 152 No depoimento abaixo, Vander explica que, se no início, sentiu-se envergonhado por ter que retomar os estudos depois de muitos anos, pois não sabia qual seria a repercussão desse retorno, hoje percebe que tomou a atitude correta. Acredita que todas as pessoas que não dominam a leitura e a escrita deveriam enfrentar o desafio de voltar a estudar, já que o aprendizado da linguagem escrita lhe permitiu conquistar maior autonomia. Ter que depender do outro para lidar com as situações do cotidiano que requerem o domínio da linguagem escrita também é percebido por Vander como algo vergonhoso: Vander: Agora você vê as coisas hoje em dia você vê a pessoa hoje em dia com um desenvolvimento depois de (estudar)... Num teve a oportunidade de novo agora tô tendo de... conhecer numa certa idade, eles estão desenvolvendo, isso não é vergonha não ué. Pesq.: Hunrum.. Vander: Vergonha é como diz é eu... É eu chegar, chegar num certo determinado lugar e não der conta de resolver o problema e ficar dependendo dos outros... Pesq.: Hunrum... Vander: Agora eu é como diz eu graças a Deus é como diz por mim eu sou o tipo da pessoa que eu... Eu... Eu encaro a minha vida eu levo minha vida e sei é como diz, eu sei aonde eu posso entrar, como eu vou, como eu posso, eu posso sair em qualquer lugar, que graças a Deus tenho na consciência a tranqüilidade, não tenho dificuldade em nada. Pode-se dizer que, em linhas gerais, identificamos nos depoimentos dos participantes desta pesquisa duas visões distintas sobre o analfabetismo: o ponto de vista de Lineu, Davi e Vander se aproximam da visão social de que ser analfabeto é estar com os olhos vedados, é estar excluído da sociedade e, portanto, é algo de que se deve envergonhar. O analfabeto se sente humilhado por necessitar da ajuda daquele que domina a linguagem escrita; é o estorvo na vida de parentes, de amigos e de pessoas fora do convívio, às quais precisa recorrer. Esse modo de se perceber como analfabeto e de perceber o analfabetismo é fruto da incorporação dos discursos veiculados em nossa sociedade e que acabam por interferir no modo como produzimos nossos discursos. Nas suas vozes ecoam outras vozes que produzem uma visão que inferioriza aqueles que são destituídos de um saber valorizado socialmente. 153 Na contramão desses discursos, identificamos nos depoimentos de José e de Alberto uma visão de analfabetismo como um problema que lhes dificultou, mas não lhes impediu a inserção no mundo urbano. O analfabetismo pôde ser superado por meio do esforço e da coragem de enfrentar os desafios impostos ao analfabeto. Esses sujeitos demonstraram não ter tido vergonha da condição de analfabetos e não se perceberam como inferiores porque tiveram que pedir ajuda. Todos os participantes, entretanto, mostraram-se capazes de superar as adversidades e as dificuldades impostas na sociedade letrada, superação essa possível, sobretudo, a partir da participação do outro na mediação das relações com a linguagem escrita. Sobre essa questão, daremos destaque, no capítulo a seguir, para o vínculo estabelecido com a família, que teve papel fundamental na inserção desses sujeitos na cultura escrita. 154 CAPÍTULO 4 ANALFABETISMO VERSUS ALFABETISMO: OS LUGARES DE CONTRUÇÃO DO SUJEITO LETRADO 4.1 As relações estabelecidas entre o analfabeto e o alfabetizado: refletindo sobre os conceitos de proximate illiterate e isolated illiterate Esta pesquisa levou-nos a investigar os usos que os sujeitos da pesquisa fazem da leitura e da escrita, logo após a aquisição do código escrito no sentido estrito, uma vez que os dados muito nos revelaram sobre os usos sociais da linguagem escrita quando eles ainda eram analfabetos. Como se viu até o momento, os participantes destacaram nas entrevistas que dependeram/ainda dependem, cada um a seu modo e necessidade, da mediação do outro para que pudessem/possam participar das atividades que envolviam/envolvem o ler e o escrever. O modo como os participantes se apropriaram/apropriam do objeto escrito e as relações que estabeleceram/estabelecem com as pessoas que dominam e utilizam autonomamente o código alfabético nos instigaram a pensar sobre o lugar que o outro alfabetizado ocupa nas suas vidas, sobretudo na esfera familiar. Para ancorar a nossa análise, encontramos em Basu and Foster (1998) os conceitos que nos ajudam a pensar em termos relativos à noção de analfabetismo e de analfabeto. De acordo com Basu and Foster (1998), tradicionalmente o nível de letramento de um país é medido através da literacy rate 82. Essa taxa representa a porcentagem da população considerada letrada dentro do total da população adulta de uma região ou grupo social. Juntamente com a taxa de letramento, outros indicadores sociais vêm sendo agregados para avaliar o padrão geral de um país, como, por exemplo, idade, sexo e situação do domicílio, nível socioeconômico, dentre outros. 82 A expressão em inglês é aqui traduzida como taxa de letramento. 155 Partindo do princípio de que a taxa de letramento é deficiente por não dar visibilidade aos sujeitos iletrados que interagem com a leitura e a escrita nas relações que estabelecem com pessoas letradas, os autores em questão desenvolveram uma medida resultante do effetive literacy83 de uma sociedade. Essa medida leva em consideração a presença de um membro letrado no ambiente doméstico que atua mediando as relações entre os membros iletrados e a escrita, viabilizando o acesso à informação e a participação nos eventos e práticas de letramento84. Segundo os autores, a presença de um familiar letrado em casa gera uma externalidade positiva (positive externality) aos membros iletrados, que são favorecidos com a presença daquele que é capaz de fazer uso da leitura e da escrita, conforme o fragmento: Estamos certos de que, tendo um membro letrado em casa, pode fazer uma diferença substancial para cada membro não letrado, no que se refere ao acesso à informação e na execução de tarefas que requerem habilidades de leitura e de escrita. Em outras palavras, membros da família letrados geram uma externalidade positiva ou um tipo de bem público para os membros iletrados85 (p.1734) (grifos dos autores). O princípio da externalidade positiva traz, segundo Basu and Foster, conseqüências na avaliação da distribuição do letramento, uma vez que a presença ou não de um familiar letrado acarretaria num diferente padrão de letramento: as oportunidades de uso da leitura e da escrita são diferenciadas, tendo em vista os lugares sociais e as reais demandas dos sujeitos. Enquanto para uma determinada pessoa a participação num evento de letramento lhe demanda o domínio da tecnologia da escrita, para outra essa exigência não é fundamental, já que se dispõe de alguém que estabeleça a mediação com a escrita. Diante desses fatos, a medida de letramento efetivo torna-se relevante por permitir que certos benefícios do letramento sejam evidenciados nos censos86. 83 A expressão em inglês é aqui traduzida como letramento efetivo. 84 Para maiores detalhes sobre como foi obtida a medida de letramento efetivo proposta pelos autores, ver BASU and FOSTER, 1998, Pp. 1735-1736. 85It is our contention that having a literate member in the household can make a substantial difference for each illiterate member is accessing information and accomplishing tasks that require literacy skills. In other words, literate household members generate a positive externality or a kind of public good for illiterate members. 86 De acordo com os autores, diversos estudos reforçam o princípio da externalidade positiva. GREEN, S. E.; RICH, T. A.; and NESMAN, E. G. (1985) em Beyond individual literacy: the role 156 É o que se observa na relação dos participantes dessa pesquisa com os seus familiares. Conforme já destacamos87, Lineu, José e Alberto afirmam que suas esposas detêm certos conhecimentos sobre a escrita que os ajudaram/ainda ajudam em situações que lhes exigem a habilidade de leitura e escrita. Por assumirem/ainda assumem o papel de mediadoras da palavra escrita, principalmente, no período em que seus esposos eram analfabetos, tudo leva a crer que as esposas geraram/ainda têm gerado uma externalidade positiva em seus membros. Para efeito de esclarecimento, vejamos outras situações identificadas nas entrevistas. Lineu se emociona quando fala da participação de sua esposa Cláudia nos momentos em que ele necessitou exercer práticas de leitura e de escrita. Segundo o participante, ele sempre pôde contar com o apoio da esposa, seja para resolver questões práticas, como fazer compras no supermercado ou mesmo ler as suas correspondências, seja para realizar a leitura dos versículos da Bíblia, quando ainda não era alfabetizado: Pesq.: Então a Cláudia tinha hora que ela lia pro senhor. Lineu: Lia. Pesq.: Lia o quê? Lineu: Assim no que no... Assim no... No... Na Bíblia alguma coisa assim? Pesq.: Ah, ela chegava a ler a Bíblia pro senhor? Lineu: Não, assim muito pouco... ((aqui Lineu afirma que hoje a sua esposa não precisa mais ler a Bíblia para ele...)) Pesq.: Isso na época que o senhor não sabia ler? ((mas quando reforço que estamos conversando sobre o seu passado...)) Lineu: Ah não! ((confirma que Cláudia não apenas o auxiliava na leitura da Bíblia...)) Ah não... Na... Naquela época não. Naquela época os livro, ela me ajudava nos livro que eu, que eu levava daqui né? ((... mas também o ajudava quando estudava no projeto de alfabetização da UFMG, durante os estudos em casa)) (...) of shared literacy for innovation in Guatemala. Human Organization, vol. 44, Pp. 313-321, identificaram a alfabetização da família como uma variável-chave na propensão de fazendeiros da Guatemala. Os autores concluem que um fazendeiro iletrado cujos familiares são letrados não está em desvantagem em relação a um fazendeiro letrado. Num trabalho mais recente, FOSTER, A. D. and ROSENZWEIG, M. R. (1996) em Household division, inequality and rural economic growth, mimeo. Philadelphia: University of Pensilvânia, concluíram que a produtividade da agricultura familiar está veiculada ao nível educacional do membro mais educado da família e estes ganhos são maiores para os membros cujos níveis educacionais são os mais baixos (ver BASU and FOSTER, p. 1734). 87 Ver páginas 120-125. 157 Pesq.: E ela lia pro senhor... Lineu: Ela lia. Pesq.: Mas por que, ela achava legal (os livros)? ((questiono se Cláudia lia os seus livros escolares por curiosidade, por interesse próprio...)) Lineu: Não, não, eu pedia pra mim também... Né? Naqueles livro eu pedia bastante vez pra ela. ((...mas Lineu reafirma que a leitura era feita porque ele solicitava a sua ajuda)) Pesq.: Hã... Lineu: E ela me ajudava. Pesq.: Ela te ajudava. Lineu: Ajudava. Do ponto de vista do participante, o fato de sua esposa saber ler foi fundamental para que pudessem melhorar a vida em Belo Horizonte. Enquanto Lineu era responsável pelo orçamento doméstico, as tarefas que exigiam a leitura e a escrita ficavam a cargo de Cláudia. No trecho a seguir, Lineu recorda que a participação de sua esposa foi imprescindível até mesmo para a aquisição do seu lote, já que foi na leitura de uma placa afixada num campo aberto onde costumava levar a família, aos domingos, a passeio, que Cláudia descobriu que poderiam adquirir o terreno e realizar o sonho de deixar a favela onde residiam: Lineu: Os menino tava pequeno. Isso aqui ((aponta para o chão da sala de estar)) era uma grama... (...) Quando veio um dia nós tava sentado aqui. A Cláudia, ela chama Cláudia, cê sabe... Aí ela virou pra trás assim ó e oiou num poste aí ó tinha uma praca. Cláudia: Vende. Lineu: À venda. Quer dizer que eles tinha lutiado tudo. Aqui era uma área grande... (...) Aí ela falou: “Uai isso aqui tá lutiado ali”. E tava mesmo. Aí eu comprei esse lote aqui. Já no depoimento abaixo, Cláudia afirma que foi a responsável por realizar todas as tramitações para a compra do lote em que foi construída a casa em que residem atualmente: Cláudia: (...) quando foi fazer a escritura do nosso... Do nosso terreno aqui foi eu que fiz... Por causa dele não saber lê... Né? Foi eu que corri atrás pra mandar tirar a escritura, foi registrado, foi eu que fiz... Ajudo... Aí as coisa que... Que cabe leitura e que ele não dá pra ele fazer eu que faço... 158 Conforme já destacamos, José também recorreu à esposa durante muito tempo, para que pudesse exercer a prática da escrita. Por diversas vezes, recorreu à Lúcia nos momentos em que precisou assinar documentos, analisar informações bancárias, realizar a leitura de cartas, dentre outras situações. Apesar de afirmar que também recorria à ajuda dos dois filhos, a relação de parceria construída junto à esposa, ao longo dos anos, fez com que ambos assumissem, respectivamente, a função de ouvinte/relator e de leitora/escritora. Na situação descrita abaixo, José nos informa que, antes da alfabetização, a participação de Lúcia nas interações com o objeto escrito era bem mais expressiva em relação aos dias de hoje: Pesq.: Como é que o senhor fazia nessa época que o senhor não sabia ler e escrever? José: Que não sabia ler e escrever certas coisas levava pra esposa, mazi... Entendeu? Pesq.: Que tipo de coisa, por exemplo? José: A gente levava pra esposa, que vez a gente não dava conta né? (...) Pesq.: Por que antes (de ser alfabetizado) então a sua esposa tinha uma participação muito forte... José: Tinha por que... A vez eu resolvia... Mas se fosse o caso de... De... Escrever alguma coisa de... De caso de leitura tinha que ir com ela pra ela ler pra me falando lá pra você vou falar assim: “vou tratar com você um negócio”, mas depende da leitura ((bate as mãos)) entendeu? Aí ela, ela falava e eu te falo: “então vou fazer pra você isso, isso, isso” e ela passava. Para além dessa relação de dependência com o familiar, percebe-se que a presença de um membro alfabetizado em casa, de alguma maneira, favoreceu a todos os participantes, no que se refere à aquisição de conhecimento e de informações. A esposa que lê e escreve e os filhos e netos que tiveram/têm acesso à escola exerceram/ainda exercem uma externalidade positiva no ambiente doméstico e contribuíram/contribuem para que os participantes, hoje alfabetizados, mas que ainda mantêm uma relação de menor intimidade com a escrita, em relação aos seus parentes, participem dos eventos e práticas de letramento. Para Basu and Foster (1998), tendo em vista o princípio da externalidade positiva, a medida de letramento efetivo torna-se relevante por 159 permitir que certos benefícios do letramento sejam evidenciados. Para os autores, mais do que simplesmente obter o número de analfabetos num país ou região, é preciso identificar se há, entre aqueles que não sabem ler e escrever ou com pouca familiaridade com a escrita, pessoas capazes de fazer uso da leitura e da escrita e que certamente exercem a função mediadora. Conforme os autores: “Tudo o que se precisa é ter acesso a uma pessoa letrada que está disposta a promover os serviços que requerem o letramento”88 (p. 1734). E, reiterando a declaração de Cláudia, esposa de Lineu: “Aí as coisa que... Que cabe leitura e que ele não dá pra ele fazer eu que faço...” As declarações de Alberto, a seguir, nos mostram que esposa e filha ainda atuam como mediadoras nas relações que ele estabelece com a escrita. Segundo o participante, são elas que normalmente lêem as cartas bancárias que ele recebe em casa, já que ainda apresenta dificuldades para compreender as informações contidas: Pesq: (sua esposa lê pra você) Só em casa mesmo, em caso de correspondência... Alberto: É só aqueles... Só comparação. Chega um... Um documento meu que... Se quiser ler eu falo: “Ó tá aí se quiser ler lê, não quiser também”... (...) Alberto: Extra... É... Extrato de banco, coisa tal, contas entendeu? Pesq: Ela lê hoje ainda? Alberto: Lê. Pesq: Mas ela lê pra você porque você precisa que ela lê pra você ou por que... Alberto: Não, eu falo: “Ó, não tô entendendo não, lê aí pra mim pra mim saber o que que é isso aí” entendeu? De acordo com Basu and Foster (1998), tendo em vista a presença de pessoas alfabetizadas e não alfabetizadas ou com pouca intimidade com a escrita, que convivem num mesmo espaço, é preciso distinguir dois tipos de pessoas iletradas na avaliação da distribuição do letramento: o proximate illiterate (iletrado proximal) e o isolated illiterate (iletrado isolado). Enquanto o iletrado proximal interage com, pelo menos, um membro familiar letrado e, 88All one really needs is access to a literate person who is willing to provide the requisite literacy services. 160 conseqüentemente, usufrui certos benefícios do letramento89, o iletrado isolado, como o próprio termo designa, não dispõe, em casa, de alguém que lhe proporcione tais benefícios90. Pensando nesses conceitos, em termos de distribuição do letramento, vemos uma mudança substancial no modo de avaliar os índices de letramento de um país ou região, uma vez que, num cenário homogeneamente distribuído, a presença de iletrados proximais refletiria na taxa de letramento91. No que se refere aos participantes da nossa pesquisa, os conceitos de Basu and Foster (1998) nos permitem pensar que as relações que estabeleceram/ainda estabelecem com os seus parentes alfabetizados os colocam na posição de iletrados proximais: se no passado, quando eram analfabetos, usufruíram os benefícios do letramento promovidos pela esposa e filhos, atualmente, com a alfabetização, mesmo tendo conquistado certa autonomia em alguns eventos e práticas de letramento demandados no seu meio social, ainda usufruem esses benefícios, nas situações em que ainda não são capazes de exercer a escrita sozinhos. Com relação a Davi, podemos afirmar que a noção de benefício que uma pessoa letrada promove aos membros pode ser percebida na relação que o participante estabelece com seus filhos. Gisele, que acaba de concluir o ensino Médio, e André, que chegou a cursar dois períodos na faculdade, assumem o papel de mediadores da palavra escrita nas situações em que seu pai não é capaz de fazer uso desse objeto sozinho. Percebe-se que, por serem usuários efetivos da língua escrita, ambos ajudam seu pai nas tarefas que exigem, sobretudo, a escrita, como o preenchimento de cheques e de formulários, bem como a leitura de textos com informações mais complexas, como documentos. No fragmento abaixo, vemos que os benefícios promovidos 89 Os autores alertam para situações em que a proximidade de uma pessoa letrada não se constituiria necessariamente num benefício para o iletrado. Chamam a atenção para a tensão que se estabelece numa relação em que uma esposa iletrada teria menos esforço em extrair dotes, caso o marido não fosse letrado. Também podemos pensar em diferentes externalidades para membros de uma mesma família, ou seja, se quem é letrado é o homem ou a mulher ou até mesmo ambos, isso trará conseqüências nas relações diante da diferenças de gênero (ver BASU and FOSTER, p.1735). 90 A respeito da construção da medida que estabelece os benefícios externos que uma pessoa letrada promove aos membros iletrados da mesma família, ver BASU and FOSTER, p.1736. 91 Se essa distribuição, ao contrário, for avaliada, levando-se em conta a taxa de letramento estabelecida por meio dos critérios tradicionais, essa situação não é observada, dado que não é levado em conta o analfabetismo em termos “proximais” e “isolado” (ver BASU and FOSTER, p.1734). 161 por seus filhos também foram estendidos à sua esposa já falecida, que, segundo Davi, aprendeu a “desenhar o nome” graças à ajuda recebida: Pesq.: A sua esposa sabia ler e escrever? Davi: Na... Ela estava começando a... Aprender, escrever o nome dela e tudo. Pesq.: Ela estava na escola? Davi: Estava não, aprendeu em casa com eles. Pesq.: Quem estava ensinando? Davi: Os menino. Pesq.: Os filhos? Davi: O... Que... Os filhos ensinava pra ela, ela... Olhava... O caderno dos menino ia... Pegando ia copiando o que ela olhava lá pegando e copiando assim. Aí foi assim que ela aprendeu... Pesq.: Na hora que eles estavam estudando? Dever de casa. Davi: É que eles pegava o caderno né? Aí ela pegava... Ela começou assim copiar tipo assim né? Olha aqui ela fazia cá. A vez ela não sabia... O que que ela tava escrevendo aqui, mas ela olhava essa letra aqui ó aí ela desenhava né? Fazia tipo um desenho então fazia aqui. Davi afirmou que seus filhos sempre desejaram que ele estudasse, pois queriam que o pai não dependesse tanto deles e nem dos outros. Entretanto, se diz uma pessoa que não se dedicou às aulas no Proef-1 como deveria, uma vez que ainda necessita de ajuda, sobretudo, para fazer uso da escrita. No depoimento a seguir, Davi afirma que seus filhos costumam brigar com ele sempre que solicita ajuda: Pesq.: O que que você costuma... Precisa ler? Você precisa ler pra quê? Davi: Ah... Alguns boletins (informativos da UFMG) que sai... Alguns boletins assim... Ou alguma coisa que passa no jornal... Assim... Pesq.: Jornal escrito? Na banca de revista? Davi: Não... Esses jornal escrito é até difícil, as vez passa assim na televisão, outra ora é... Algum papel que a gente, vai oiar algum documento... Aí a gente pega e lê ele... Quando eu tô com dificuldade eu peço meu menino pra poder... Ele até me xinga: “não, falei pra você pra num continuar na aula? (os professores) Estão fazendo todo o esforço pro cê e você num quer... Você tem que se virar sozinho...”. (...) Pesq.: Você queria que seus filhos estudassem e eles queriam que você estudasse? Davi: É... A briga é essa... Eu querer... É com o estudo (...) Aí eles fica sempre brigando comigo: “também num vou fazer nada pro cê não, tudo você pergunta... Num vou fazer nada 162 pro cê não porque o senhor num quer estudar... Falo pro cê pra estudar você num quer... Falo com você, você num quer”. Apesar do conflito com os filhos, quando o assunto é voltar a estudar, Davi diz que procura sempre se informar assistindo a telejornais ou ouvindo o rádio para não ficar, como ele mesmo diz, isolado do mundo. Durante o processo investigativo, Davi nos revelou que, ao se tornar viúvo, passou a se preocupar com a união da família, que passou por muitas dificuldades para se adaptar à nova vida. O desejo de se aproximar dos filhos fez aumentar ainda mais o interesse pela busca por informação, já que, à medida que aumentavam a escolaridade, era cada vez mais difícil ficar por dentro das conversas dos filhos. Na casa de Davi, há diversos materiais impressos — livros didáticos e de pesquisa, livros de literatura, enciclopédia, livros religiosos e de receita, dicionário, manuais, dentre outros — a maioria adquirida por ele para que seus filhos estudassem. Percebemos que o participante não mediu esforços para oferecer aos filhos a oportunidade de concluir os estudos: comprou materiais escolares, incentivou-os a não deixar a escola e, há cerca de dois anos, comprou um computador. Dos sujeitos pesquisados, Davi é o único que possui computador e acesso à internet em casa. Apesar de nunca ter utilizado o computador e de não saber como se acessa a internet, sempre que necessita de alguma informação solicita aos seus filhos. No trecho de uma entrevista abaixo, Davi tenta justificar as razões para a não utilização do computador. Chamamos a atenção para o fato de Davi sempre deixar claro que o uso dessas tecnologias fica por conta de seus filhos: Davi: Olha, eu por enquanto eu tava sem óculos e nunca tive curiosidade, paciência pegar aquilo não que... Por exemplo, cê vai usar o computador vai usar a internet cê vai gastar ficar muito caro... Pesq.: Ah, você tem internet? Davi: Tenho. Aí os menino usa... André: Só uso no fim de semana ((aqui o filho contradiz a justificativa dada por Davi para não utilizar a internet)). Davi: Fim de semana que eles (seus filhos) usa (o computador). Aí eu nunca peguei aquele crick, nunca tive assim aquela curiosidade assim... Pesq.: Você tem e-mail? 163 Davi: O André tem, num tem André? É importante destacar que a aplicabilidade da medida de letramento efetivo proposta por Basu and Foster (1998) é feita a partir da utilização de dados censitários92: os autores constataram que, levando-se em conta a taxa tradicional de letramento, mais da metade da população da Índia seria considerada iletrada93. Em contrapartida, tendo em vista a medida de letramento efetivo, observa-se que o universo de iletrados proximais, ou seja, de pessoas que têm parentes que são letrados é bastante significativo94. A medida de letramento efetivo, nesse sentido, não ignora que uma parcela significativa da população indiana iletrada tem acesso a tarefas que requerem o letramento. De acordo com Basu and Foster, os estudos baseados exclusivamente na tradicional medida de letramento ignoram a parcela da população que tem acesso, por meio da mediação com a pessoa letrada, a tarefas que exigem o uso da leitura e da escrita. Esse novo olhar para o fenômeno da alfabetização e do analfabetismo gera, segundo os autores, impactos quantitativos na avaliação do letramento onde a taxa de letramento efetivo supera a taxa de alfabetização tradicional na predição ou explicação de outros benefícios que dependem do letramento. Os autores, porém, alertam que o estabelecimento de uma medida de letramento efetivo não implica necessariamente uma maior incidência de pessoas letradas e nem o aumento do status quo daqueles incluídos no grupo dos iletrados proximais. A abordagem proposta para avaliar o nível de letramento tem a pretensão de estimar, de maneira mais precisa, o benefício do letramento partilhado pelos iletrados, bem como diferenciar grupos sociais que, certamente, seriam indistingüíveis95. Na visão de Basu and Foster, a 92 Dados do censo da Índia de 1981 e tabulações de alfabetização de SHARMA, O. P and RETHERFORD, R. D. (1993). Literacy trends in the 1980s in India. Office of the Registrar General and Cesus Commissioner of India, Occasional Paper no.4. (ver p.1741). 93 De acordo com o senso de 1981, a taxa de letramento na Índia é de 43,3% (ver tabela da página 1742). 94 As porcentagens da população indiana que são iletradas proximais e iletradas isoladas eram em 1981, respectivamente, 31,7% e 25% (ver tabela da página 1742). 95 Segundo os autores, a relação entre a taxa de letramento é inversamente proporcional aos níveis de iletrados proximais, o que significa que as regiões com os maiores índices de letramento apresentam níveis mais baixos de iletrados, que são iletrados proximais, e, conseqüentemente, observa-se um menor impacto da externalidade dentro das famílias nas 164 abordagem de letramento efetivo tem uma importante aplicabilidade nos países em desenvolvimento, onde as taxas de analfabetismo são significativas, e há demandas por estudos sobre os impactos da relação entre as pessoas alfabetizadas e analfabetas que compartilham o mesmo espaço de convivência. Sobre as possíveis causas para as variações do iletrismo proximal entre as regiões, os autores também consideram a relação de gênero sobre a extensão do letramento. Algumas regiões da Índia com altas taxas de iletrados proximais também são marcadas por grandes diferenças de gênero, enquanto que, em outras, ocorre o inverso, ou seja, há forte diferença de gênero, mas nível relativamente baixo de iletrados proximais96, sugerindo, nesse caso, a relevância do sistema de castas97. Para Basu and Foster (1998), os estudos devem caminhar em direção à busca de novas variáveis que possam ser agregadas às questões de gênero e às relações sociais regidas por castas. Os autores, porém, mesmo reconhecendo que, numa avaliação geral, a relação entre a taxa de letramento e o iletrismo proximal é neutra para o gênero, eles se propõem a analisar casos específicos em que a medida de letramento é sensível para esta variável. Recorrem às idéias de Anand e Sen98, que construíram um gender-equity-sensitive-indicadtor99 para o letramento100, cujo indicador resultante é uma medida de benefício geral sensível à distribuição dos benefícios do letramento entre os gêneros. Também justificam o interesse de analisar a distribuição do letramento, tendo como foco o gênero: Mesmo quando não há nenhuma questão particular sobre a desigualdade de gênero por si, se acontecer que as mulheres são mais efetivas do que os homens na geração de externalidades na família, então uma regiões mais letradas. Para efeito de esclarecimento, a taxa de letramento nos estados indianos de Kerala, Mizoram e Goa, em 1981, era, respectivamente, 81.6%, 74% e 65.3% e os índices de iletrados proximais de apenas 16.7%, 21.8%, 26.4%. Em contrapartida, as menores taxas de letramento foram notificadas nos estados de Arunachal Pradesh, 25.6%; Rajasthan, 30.1%; e Bihar, 32.1%, que, por sua vez, apresentaram maiores índices de iletrados proximais: 28.1%, 35.1% e 32%. Ver BASU and FOSTER, p. 1742. 96 No estado de Haryana, por exemplo, a diferença de gênero é de 32%, ao passo que o índice de analfabetismo proximal é de 39.4%. Já a diferença de gênero em Tamil Nadu é de 28% e a taxa de alfabetismo proximal, 29.7% (ver BASU and FOSTER, Pp. 1742-1743). 97 Por se tratar de um estudo que focaliza a Índia, sociedade regida por esse sistema. 98 ANAND, S. and SEN, A. (1995). Gender inequality in human development: theories and measurement, Human Development Report Office Occasional Paper 19. Ney York: UNDP. 99 Aqui a expressão foi traduzida por indicador sensível à eqüidade dos gêneros, ver p.1745. 100 O indicador proposto por ANAND e SEN foi baseado no equally distributed equivalent (ede) “equivalente igualmente distribuído” de ATKINSON, A. B. (1970) On the measurement of inequality. Journal of Economic Theory. Vol. 2, Pp. 244-263. (ver BASU and FOSTER, p. 1745). 165 questão geral para uma maior medida de letramento efetivo poderia se traduzir em uma questão específica para um maior letramento da mulher101 (p.1745) (grifos dos autores). Tendo em vista essa perspectiva, é possível, então, pensar que, em termos de externalidade na família, uma pessoa iletrada terá maiores benefícios se em contato com uma mulher letrada, em detrimento de um homem letrado. A medida de letramento efetivo deixa de ser tratada como uma questão geral e se constitui numa questão específica, o que, segundo Basu and Foster, sugere a emergência de uma maior alfabetização para a mulher, vista aqui como melhor provedora da externalidade na família102. No tópico 3.3, destacamos o quanto a participação da esposa de José na educação de seu filho fez a diferença para que concluísse os estudos103. Esse fato nos permite dizer que, se por um lado, a presença de um membro alfabetizado favoreceu a inserção de José e a do filho no mundo da escrita, por outro, o fato de esse membro ser do sexo feminino, na perspectiva de Basu and Foster, se constituiu num peso a mais para a promoção de letramento. No decorrer de nosso debate, vemos que, mesmo com a alfabetização, José, Alberto e Lineu ainda recorrem às suas esposas para se relacionarem com o objeto escrito sempre que estão diante de situações consideradas complexas para eles. O mesmo pode ser dito sobre Davi, que mantém uma relação de dependência com os dois filhos, e a figura feminina, 101Even when there is no particular concern about gender inequality per se, if so happens that females are more effective than males in generating literacy externalities in the household, then a general concern for greater effective literacy could translate into a specific concern for greater female literacy. 102 O estudo de Basu and Foster nos esclarece sobre a limitação da taxa tradicional de letramento onde os índices são definidos apenas em termos numéricos e, portanto, não levam em conta se a proporção de iletrados está distribuída de maneira heterogênea ou homogênea entre os domicílios. Na perspectiva da medida de letramento efetivo, tal fato se constitui num importante diferencial, já que a presença ou não de pessoas letradas no ambiente familiar pode gerar impactos positivos ou não para o letramento de crianças, bem como viabilizar a interação de iletrados com situações que exigem o uso da escrita. Além disso, os autores sugerem uma medida de letramento efetivo própria para tratar a questão de gênero, medida essa que dá visibilidade aos benefícios do letramento que dois gêneros proporcionam aos analfabetos. A medida de letramento efetivo proposta por Basu and Foster pode, portanto, influenciar as campanhas de alfabetização, de maneira que se estabeleça como meta a presença em todos os domicílios de, pelo menos, uma pessoa alfabetizada ou mesmo que as ações em prol da alfabetização sejam focalizadas, por exemplo, nas mulheres. Ver BASU and FOSTER, Pp.1746-1747. 103 Ver páginas 121-122. 166 mediando as suas relações com a escrita, é representada pela filha caçula. Na conversa a seguir, Lineu explica que, antes da alfabetização, ele necessitava da presença da esposa ou dos filhos para interpretar as informações contidas nas contas telefônicas, de luz e água: Lineu: Conta de telefone... De luz... Conta de telefone... É... Mesmo conta de telefone, de água... Agora... Agora eu... Eu... Num... Num... Pelo... Telefone tá bloqueado pra... Pra num... Num ligar celular, né? Pesq.: Hunrum... Lineu: Mas antes de tá eu... A conta de telefone vinha alto... É... Olha aí pra eles: “Porque vinha alto assim”? Aí ela (Cláudia) lia: “Ah é... É isso.”... Pesq.: Ah, o senhor não lia não? Lineu: Não... Não... (...) Pesq.: A conta de telefone então o senhor não entendia muito bem por que que ela vinha alta... Lineu: Não... Pesq.: Então aqueles detalhes assim... Lineu: É... Pesq.: Aquelas informações assim era melhor a Cláudia dar uma olhada... Lineu: É... Pesq.: A mesma coisa a conta de luz, a conta de água? Lineu: Mesma coisa... E afirma que, mesmo com a alfabetização, não são todas as coisas que ele consegue ler sozinho: Pesq.: Mas se o senhor precisasse de lê uma coisa importante... Lineu: Ah, não... Pesq.: Eu vou receber um documento, uma carta... Um documento... Lineu: Não... Não... Aí eu peço, eu peço pra eles... Pesq.: Aí o senhor pede pra quem? Lineu: Pra Cláudia ou pra qualquer (filho) menino que tiver aí a gente pede... Pesq.: Aí eles lêem... Mas agora o senhor... (pequena pausa) Agora não precisa mais ou precisa? Lineu: É costuma alguma coisa a gente lê, mas... (pequena pausa) Não é todas coisa né? Cientes de que uma análise mais detalhada do papel das esposas dos participantes na externalidade na família, e de que os benefícios do 167 letramento que elas oferecem aos seus membros extrapolam os objetivos desta pesquisa, consideramos fundamental demarcar que as reflexões de Basu and Foster (1998) podem ser estendidas a este trabalho. Seus conceitos contribuem para uma melhor compreensão do lugar ocupado pelo adulto analfabeto nas relações estabelecidas num ambiente urbano letrado: considerando que as relações que os participantes estabeleceram/estabelecem com a escrita eram/ainda são mediadas por pessoas alfabetizadas, não há, entre os sujeitos em questão, quem tenha assumido posição de isoled illiterate. Se os participantes, ao longo de suas vidas, têm interagido com a linguagem escrita, sobretudo, nas relações estabelecidas na família, podemos, então, dizer que o lugar ocupado nas relações em que ocorre o uso da escrita deve ser entendido em termos de proximate illiterate. Considerando, ainda, que em seus domicílios havia pessoas alfabetizadas e que estas pessoas, durante muito tempo, assumiram/ainda assumem o papel de leitores e escritores, estes familiares geraram uma externalidade positiva para os membros analfabetos. A análise das declarações coletadas nas entrevistas e as observações dos participantes ocorridas no ambiente familiar revelaram que a presença de um membro alfabetizado em casa fez uma diferença substancial para os sujeitos, sobretudo entre aqueles cujas esposas alfabetizadas mediaram a relação com a escrita, durante o período em que eram analfabetos, possibilitando-lhes o acesso à linguagem escrita e a resolução de problemas do cotidiano. Entretanto, mesmo tendo usufruído dos benefícios do letramento proporcionados pela família, para os participantes isso não bastava. Se, por um lado, os sujeitos consideraram que a ajuda dos parentes foi de grande importância para o acesso à linguagem escrita, por outro, o desejo era poder fazer uso da escrita por conta própria, sem a intervenção do outro. Prova disso são suas trajetórias marcadas pela busca pela alfabetização, por meio da inserção em espaços formais de aprendizagem. José, por exemplo, revela no depoimento abaixo que, assim que se casou, chegou a freqüentar algumas aulas numa escola pública, localizada no Bairro São Francisco, em Belo Horizonte. Essa nova tentativa de ingresso na escola — a primeira ocorreu no MOBRAL — partiu do próprio sujeito, que considerou os conhecimentos até então adquiridos — José sabia apenas assinar o próprio nome — insuficientes, 168 uma vez que suas expectativas ainda não haviam sido atendidas. Observa-se, na conversa a seguir, que o interesse do participante era o aprendizado da leitura e da escrita no sentido estrito, já que, em seu ponto de vista, a aprendizagem da língua escrita viabiliza a aquisição de novos conhecimentos: Pesq.: Ah então o senhor estudou numa escola no (Bairro) São Francisco. José: É no São Francisco depois de casado. (...) Pesq.: E porque que o senhor entrou naquela escola? José: Ah, porque eu toda da vida né? Eu penso que a gente saber ler e saber escrever, saber... A gente tem oportunidade de saber mais coisa e... A gente fica mais por dentro do acontecimento que vai acontecendo os que vem vindo... De novo agora. Né? Igual agora passando coisa pela televisão a gente não sabia a vez passa até uma... Uma leitura lá que alguma coisa já passa a gente entende na televisão de leitura né? Pesq.: Hunrum... José: É igual eu precisava de aprender cada vez mais que o jardim, o jardim depende de muito de agropecuária né? Então isso passa pela televisão e passa pelo escrito. Pesq.: Você tá falando aquelas, aquelas reportagens que passam sobre o meio rural? José: É sobre o rural. Então isso tudo faz a gente... Não é? Incentivar mais pra a gente aprender mais que eu quero aprender, eu quero aprender mais, mais, mais. E então não é só por conta do... No é... Não é só do serviço, que a gente... Eu aprendi muito foi mais é por... Por experiência. Né? A parte que eu sabia foi experiência, que eu aprendi né? Aí depois que eu aprendi a... A... A ler um pouco passa... ( ) os nome das pranta... Como é que você vai prantar, a quantidade, o peso... Pesq.: Hãrã... José: O nome dos adrubo... Então ( ) muito pra você que tá... né? Todos os participantes passaram por processos de aprendizagem da linguagem escrita, todavia, percebe-se que a dependência com o outro, apesar de menos expressiva em relação aos primeiros anos vividos em Belo Horizonte, ainda ocorre nas situações que demandam a leitura e, principalmente, a escrita. Dessa forma, são cautelosos quando questionados sobre o que aprenderam ao longo desses anos, preferindo dizer que desenvolveram suas habilidades de leitura e escrita, como se observa no depoimento abaixo de Vander: 169 Vander: Mas e essa aula pra mim ((se referindo ao Proef-1)), igual o caso que eu tô te falano, eu acho muito bom, mas foi excelente... Que eu apren... Não é... Não que eu aprendi, mas desenvolvi muito... Muitas coisas que eu não... O que eu não dava conta de fazê eu fiz. Apesar de os familiares de Alberto, José, Lineu e Davi ainda mediarem suas relações com a escrita, os discursos dos participantes não denotam que hoje são dependentes, pelo contrário, estes se dizem pessoas donas de si e que suas vidas mudaram radicalmente com a alfabetização. Diante dessa constatação, nos questionamos sobre o que deveria ser apropriado para ser considerado independente. Ou seja, na perspectiva dos sujeitos, qual a fronteira que separa essa dependência do outro e a independência? Desde já podemos dizer que ser identificado pela própria assinatura — e não pela marca do dedo polegar direito — e poder circular pela cidade sozinho e/ou sem se perder era um dos principais anseios de Alberto, José, Davi e Lineu. Quanto a Vander, apesar de ter afirmado que não passou por essas dificuldades — ao chegar a Belo Horizonte já sabia assinar o seu nome e não teve dificuldades para circular pela cidade — podemos dizer que, por não saber escrever, também teve que estabelecer uma relação de dependência com o outro. Entretanto, diferente dos demais participantes, esse “outro” era alguém fora do convívio familiar. Nesse sentido, é possível afirmar que a conquista da sua independência foi percebida quando, então, adquiriu a habilidade de escrita. Mas a que prática de escrita o participante se refere? No fragmento abaixo, vemos que, ao se considerar uma pessoa que escreve, Vander, inicialmente, sugere ser capaz de dominar uma prática de letramento — a escrita de bilhete —, mas logo em seguida nos oferece elementos para concluirmos que, na verdade, domina algumas práticas de letramento escolar, conforme se observa nas palavras em destaque: Pesq.: Então hoje o senhor escreve... Vander: Escrevo. Pesq.: E o que que o senhor escreve? Vander: Ah, ô Iara, é igual eu tô te falano... Dá pra... Eu faço muitas coisa assim, igual ocê... Eu... Eu já escrevi... Eu já mandei muita... É igual... Eu mandei uma... Uma... Tive enchido uns bilhete pra Aline, pra Paula... ((Aline e Paula são ex-monitoras-professoras do Proef-1)) 170 Pesq.: (...) Bilhetinhos que você entregava pessoalmente? Vander: Não... Assim... Tipo um... A... Por exemplo, às vezes a gente dava um cartão, a gente preenchia os... Esse... Escrevia os números, escrevia a data que... Mas agora eu... Eu até que reconheço... Mui... Muita dificuldade pra escrever, mas não tenho mais não... Independentemente de dominar ou não uma prática de letramento social ou escolar, é fato que Vander se reconhece hoje como uma pessoa que não mais apresenta dificuldades para escrever. O mesmo pode ser dito dos demais participantes, que se vêem hoje como aqueles que adquiriram, cada um a seu modo, conhecimentos sobre a escrita de maneira que se percebem como pessoas alfabetizadas e autônomas. Não desconsiderando que todos os sujeitos desta pesquisa almejavam ir além dos saberes apreendidos, ou seja, poder ler com fluência e produzir textos, parece-nos que a maior preocupação de todos era simplesmente despir-se da condição de analfabetos. E essa condição era revelada quando estavam diante de situações específicas, que vão desde não poder retirar seu próprio pagamento do banco até não saber qual ônibus embarcar. O limite que estabelece a dependência e a independência, portanto, deve ser percebido na perspectiva de cada participante. É importante demarcar que, se para nós os conhecimentos sobre a escrita adquiridos pelos sujeitos representam ainda muito pouco, tendo em vista as inúmeras possibilidades de acesso e interação com o objeto escrito, para os participantes esses conhecimentos representam algo fabuloso e que lhes garantiu a independência. Entretanto, percebemos, ao longo do processo investigativo, que o fato de os considerarmos incapazes de interagir com situações mais complexas do uso da leitura e da escrita, isso já nos mostra o quanto nossa visão etnocêntrica nos dificulta perceber os modos distintos de inserção na cultura escrita. Enquanto para nós “letrados” há ainda muito que ser desenvolvido, ampliado, aprendido, para os sujeitos, os saberes construídos são suficientes para interagirem no seu lugar social. Essa constatação nos levou a pensar na leitura e escrita para além de uma técnica a ser apreendida e percebida como algo que se realiza no interior dos grupos sociais, onde os sentidos sobre o escrito são construídos, tendo em vista as 171 necessidades, os interesses e os significados dos sujeitos. É o que vamos discutir no tópico a seguir. 4.2 Leitura e escrita: atividades socialmente situadas e circunscritas nas interações dos participantes com e no mundo “Letramento é primeiramente alguma coisa que as pessoas fazem. É uma atividade, localizada no espaço entre o pensamento e o texto”104 (Barton and Hamilton, p.3) Iniciamos este tópico, destacando o pensamento de D. Barton and M. Hamilton (1998), presente na obra Local Literacies - Reading and writing in one community. Chamamos a atenção, sobretudo, para a noção de letramento como activity located que nos instiga a refletir sobre a natureza do fenômeno, tendo em vista uma nova perspectiva de análise que focaliza a leitura e a escrita no âmbito das interações estabelecidas entre os participantes. Para os teóricos em questão, sendo produto da atividade humana, o letramento é essencialmente social e está localizado nas interações entre as pessoas. Juntamente a essa idéia está a concepção de letramento como “aquilo que as pessoas fazem com a capacidade de ler e escrever”, ou seja, como um grupo de pessoas inseridas num mesmo contexto sociocultural, usam a leitura e a escrita na vida cotidiana e constroem sentidos a partir desse uso. Podemos compreender melhor essa questão, tomando, como exemplo, as relações que os sujeitos da pesquisa estabelecem com a escrita no trabalho. Os participantes são funcionários efetivos da UFMG e estão inseridos num lugar social onde a escrita circula de maneira expressiva. Seus depoimentos revelam que a imersão nesse ambiente letrado favoreceu não apenas a construção de conhecimentos sobre a escrita, como também a valorização desse objeto como um importante instrumento de acesso ao conhecimento. Entretanto, o fato de estarem imersos num ambiente letrado — no Campus circula uma infinidade de textos escritos, e grande parte das relações 104“Literacy is primarily something people do; it is an activity, located in the space between thought and text”. 172 estabelecidas nesse lugar social são mediadas por esses objetos — não significa que todos os textos são lidos no sentido estrito. O que se observa é que, dentro do universo de possibilidades de leitura e de escrita, há uma seleção daquilo considerado como necessário e significativo para se ler e escrever. Percebemos, por exemplo, que os participantes buscam se informar dos fatos ocorridos dentro da Universidade, sobretudo, no que se refere às questões trabalhistas. Essas informações normalmente são veiculadas nos folhetos e boletins informativos que são adquiridos nas unidades acadêmicas. Chamamos a atenção, porém, para o modo como os participantes interagem com esse objeto: normalmente são os colegas de trabalho mais engajados com as questões sindicais, que lêem os materiais impressos e posteriormente informam os demais funcionários sobre as questões que envolvem a categoria. Alberto, por exemplo, diz que raramente lê os boletins informativos no trabalho, uma vez que há colegas que repassam as informações para ele: Pesq.: E... E aqui na escola (de Educação Física) tem dia que o senhor lê? Alberto: Argumas vez. Vou falar com... É por que aqui tem muito esses... Boletins (informativos) aqui tem hora que... ATÉ COISA PRA BENEFICIAR NÓS AQUI EU NEM FICO SABENDO. Fico sabendo por que os companheiro: “ah, cê viu o que saiu no boletim?” “Não.” “Isso.” Falo: “Ah, beleza”. Tá bem nós, tudo beleza, mas não for... Deixo pra lá só... (Pausa) Mesmo que não pratique a leitura dos boletins informativos no sentido estrito, Alberto está imerso nesse ambiente letrado e o modo como interage com a escrita, como se vê, se dá a partir das relações que estabelece com os colegas de trabalho. Temos aqui uma visão bem distinta daquela que mostrava a leitura e a escrita como um conjunto de habilidades individuais a serem aprendidas, em que o ato de ler e de escrever estaria restrito ao âmbito do texto. Esta noção individual se distingue da concepção de leitura e de escrita como prática social situada no tempo e no espaço. Nesse sentido, Barton and Hamilton (1998) consideram que o letramento é algo que se faz num determinado lugar social, e a compreensão da sua natureza implica o entendimento das relações estabelecidas entre os grupos sociais, bem como 173 dos pensamentos e significados que estão por trás das atividades sociais e dos textos utilizados nessas atividades. A respeito das práticas de leitura exercidas no trabalho, José revelou que também se interessa pelas informações contidas nos boletins informativos e que às vezes lê esses materiais. Entretanto, diz que, por apresentar muitas dificuldades para compreender as informações, prefere recorrer aos colegas de trabalho para se informar melhor dos cursos oferecidos pela Universidade, dos avisos do sindicato, enfim, dos informes gerais de interesse dos trabalhadores. Observa-se, no depoimento abaixo, que e o verbo “pegar” foi empregado por José no sentido de se apropriar melhor das informações contidas nos textos: José: (...) Outra hora peço os colega pra ler (os boletins) e vê o que eu tô querendo. Pesq.: Ah, tem hora que o senhor lê, me explica melhor... Tem hora que o senhor lê e tem hora... José: Que eu peço os companheiro pra ler que aí eu pego mais coisa. (...) Pesq.: E o que o senhor... Pede aos colegas? Quando é que o senhor pede os colegas? José: É pra ler se tem alguma coisa assim igual nós lá né? Precisa a vez a gente saber se tem se tem algum curso, se tem alguma vaga, alguma coisa que costuma sair no boletim né? Pesq.: Hunrum... José: Um curso que tem que fazer né? Aí a gente olha. Outra hora vem um aviso do sindicato avisando pra isso, pra aquilo, a gente dá uma olhada. Logo em seguida, José nos mostra com clareza o quanto a leitura está circunscrita ao lugar social em que ela ocorre e que o ato de ler, portanto, só faz sentido no interior das relações que estabelecemos com os grupos dos quais participamos. Inicialmente, José revela que a leitura de folhetos e de boletins informativos fica restrita ao seu ambiente de trabalho, uma vez que os temas abordados nesse suporte interessam apenas aos funcionários da Universidade e não a seus familiares: Pesq.: E o senhor costuma pegar os boletins (informativos)? Levar pra casa? José: Boletim eu só leio e jogo fora lá (no Campus). (...) Pesq.: Mas então o senhor não interessa trazer o boletim (informativo) pra casa, por exemplo. José: Não interessa que aqui (em casa) pouca gente lê (risos). 174 Posteriormente, revela que há materiais impressos veiculados no Campus, como, por exemplo, revistas e livros que costuma levar para casa. No depoimento a seguir, vemos que sua concepção de material de “boa qualidade” está relacionada àqueles impressos que tratam de temas gerais do interesse de toda a família. Diferente dos boletins informativos, os livros de “história”, como afirma José, fazem falta, pois são importantes fontes de consulta, sobretudo, para o neto, que cursa a terceira série do Ensino Fundamental. Nesse caso, um objeto escrito, que a princípio é dirigido à comunidade da Universidade, é levado para fora desse lugar social para ser apropriado na esfera familiar: Pesq.: E quando o senhor lê, o senhor lê quais tipos de assunto? José: Costumo procurar assim sobre, sobre a... A... As coisa sobre histora, é um aviso que tem, a vez vai ter um... Um... Um... Imposto uma coisa assim que eu olho. Pesq.: Hãrã... O senhor disse antes que costuma olhar o quê? His... História? José: É... Histora. Outra hora, outra hora é... Aviso né? Que vem pra... Pra gente fazer alguma tem uma coisa mais deferente entendeu? E eu olho. (...) José: Igual as revista vem muito sobre os presidente... Sobre... Né? A gente traz... Outro dia trouxe uma revista, menino usou, tirou muito... Meu neto. Pesq.: Qual revista que saiu sobre o presidente? José: Saiu muita coisa sobre os presidente sobre o Lula sobre o... O Fernando Henrique, sobre o... Esse menino aqui que é do Estado né? O... Enesto... Pesq.: Aécio Neves. José: Enécio Neve. Isso faz muita falta. Barton and Hamilton (1998), ao realizarem uma rica descrição das práticas de leitura e de escrita em uma comunidade local105, nos ajudam a compreender os dois componentes básicos do letramento: as práticas e os eventos. Nas palavras dos autores: Vários estudos têm examinado as práticas de letramento de indivíduos e de grupos, incluindo os usos e os significados do 105 Barton and Hamilton realizaram uma descrição do contexto histórico e contemporâneo da cidade de Lancaster, na Inglaterra, focalizando a história do letramento e suas instituições sociais na virada dos séculos XVIII e XX, delineando, posteriormente, um olhar sobre o letramento na cidade nos anos 90. Os autores identificaram alguns aspectos da natureza do letramento que tornam Lancaster distinta das demais comunidades inglesas. Para melhor detalhamento do assunto, ver BARTON and HAMILTON, 1998, Pp.23-55. 175 letramento para as pessoas e o valor que isso possui para elas (...) nós desejamos contribuir para esse campo de três maneiras distintas. Primeiramente, nós oferecemos uma descrição e uma investigação do letramento em uma comunidade local. Segundo, o livro apresenta uma contribuição para a compreensão teórica do letramento e, de uma maneira mais geral, para a compreensão das práticas sociais e de como as pessoas dotam de sentido suas vidas por meio de suas práticas cotidianas. Ao fazer isso, nós promovemos uma abordagem que é freqüentemente peculiar a outras imagens públicas da leitura, tais como imagens do meio, e nós delineamos a atenção para as leituras vernaculares que são freqüentemente leituras escondidas. Isso nos leva ao nosso objetivo final, que é contribuir criticamente para as discussões públicas sobre letramento, educação e a qualidade da vida local (Pp.3-4) 106. Sobre as propostas dos autores, destacamos a busca pela compreensão da natureza do letramento, tendo em vista o modo como os sentidos são construídos por meio de práticas sociais de uso da linguagem escrita. Partindo da análise de como um grupo particular usa a leitura e a escrita no cotidiano, e quais os sentidos constituídos por meio das práticas sociais exercidas nesse lugar social, os autores propõem uma Social theory of literacy (p. 6), cujos princípios serão, nesse momento, destacados, uma vez que consideramos que suas reflexões trazem ricas contribuições para o nosso estudo. A definição de uma Social theory of literacy implica, segundo os autores, a adoção de uma “abordagem ecológica” 107 (ecological approach) na pesquisa; requer também a definição de um conjunto de proposições sobre 106Several studies have examined the literacy practices of individuals and groups, including people’s uses and meanings of literacy and the value it holds for then; (…) we wish to contribute to this field in three distinct ways. Firstly we offer a description and an investigation of literacy in one local community. Secondly, the book represents a contribuition to the theoretical understanding of literacy, and more generally to the understanding of social practices and how people make sense of their lives through their everyday praticies. In doing this we find that we provide an account which is often at odds with other public images of literacy such as media images, and we draw attention to vernacular literacies which are often hidden litercies. This leads to our final aim, which is to contribute critically to public discussions on literacy, education and the quality of local life. 107 Barton and Hamilton consideram que a elaboração da Social theory of literacy implicou a adoção de métodos específicos e maneiras próprias de lidar com os dados coletados. A abordagem de pesquisa adotada pelos autores é uma “abordagem ecológica” que analisa o fenômeno do letramento integrado a um contexto. Os autores em questão esclarecem ao leitor que os princípios dessa abordagem ecológica estão embasados nas discussões realizadas por BARTON, D. (1994). An Introduction to the Ecology of Written language. Oxford: Blackell, onde o autor reflete sobre uma “ecologia da linguagem escrita”, bem como nas idéias de LEMKE, L. A. (1995). Textual Politics: Discourse and Social Dynamics, London: Taylor and Francis, que adota em seu trabalho uma abordagem “ecosocial” para o estudo das comunidades humanas (ver BARTON and HAMILTON, p.4). 176 natureza do letramento. Partindo de um entendimento de letramento como prática social integrada a um contexto, a leitura e a escrita são compreendidas nas interações estabelecidas com o texto escrito e entre os indivíduos ou grupo de indivíduos. Essas idéias tornam-se mais claras, tendo em vista a concepção de práticas adotada pelos autores: práticas de letramento são formas particulares de uso da linguagem escrita, são processos sociais que conectam as pessoas por meio de cognições partilhadas (shared cognitions) representadas nas ideologias e identidades sociais. De acordo com os autores: A noção de práticas de letramento oferece uma forma poderosa de conceituar a ligação entre as atividades de leitura e de escrita e as estruturas sociais nas quais elas estão imersas e que, ao mesmo tempo, elas ajudam a formar. Quando nós falamos sobre práticas, então, não falamos somente da escolha superficial de uma palavra, mas das possibilidades que esta perspectiva oferece para uma nova compreensão teórica sobre o letramento (p.6) 108. Nesse sentido, a noção de práticas109 remete a formas culturais de utilizar a leitura e a escrita, não sendo, portanto, definidas no âmbito individual e, sim, constituídas por meio de regras sociais que regulam o uso e a distribuição de textos e que orientam o que pode ser produzido e quem pode produzir e ter acesso a esses bens culturais. Práticas são, nas palavras dos autores, “what people do with literacy” (p.6) 110. Essa definição de práticas como modos como os grupos sociais utilizam a escrita em oposição a uma propriedade individual e independente do contexto fica ainda mais clara a partir da leitura do fragmento abaixo: (...) as práticas de letramento são mais utilmente compreendidas como existindo nas relações entre as pessoas, dentro dos grupos e comunidades, mais do que como um conjunto de propriedades que residem nos indivíduos (p.7)111. 108 The notion of literacy practices offers a powerful way of conceptualising the link between the activities of reading and writing and the social structures in which they are embedded and which they help shape. When we talk about practices, then, this, is not just the superficial choice of a word but the possibilities that this perspective offers for new theoretical understandings about literacy. 109 De acordo com os autores, a noção de práticas por eles adotada difere da palavra “prática” tanto no sentido de apreensão de algo por meio da repetição, quanto como a noção de tarefas comuns ou típicas normalmente empregadas nas pesquisas internacionais sobre letramento de natureza surveys (BARTON and HAMILTON, p.7). 110 “O que as pessoas fazem com o letramento”. 111 ... literacy practices are more usefully understood as existing in the relations between people, within groups and communities, rather than as a set of properties residing in individuals. 177 Essas discussões nos instigaram a refletir sobre os diferentes modos de apropriação da escrita pelos participantes. Os contatos estabelecidos com Vander, José, Lineu, Alberto e Davi, sobretudo no ambiente familiar, permitiram observar momentos distintos em que a atividade de leitura configura-se como um importante instrumento de mediação com o mundo e que viabiliza, principalmente, resolver os problemas do cotidiano. Os significados atribuídos ao ato de ler foram percebidos quando os sujeitos avaliaram suas capacidades e grau de autonomia, quando estão diante de determinadas práticas de letramento. Nos momentos marcados por tentativas de compreensão de textos diversos, como, por exemplo, calendário, Bíblia, folheto religioso, manual, jornal, dentre outros, foi possível identificar diferentes níveis de letramento entre os participantes. Chamamos a atenção para o fato de essas apropriações da escrita se configurarem em modos próprios de interagir com esse objeto e que, para os sujeitos em questão, possuem significado único, mesmo se tratando de leituras que, do nosso ponto de vista, são consideradas restritas, tendo em vista suas dificuldades para exercê-las e de compreender o conteúdo dos textos. Numa das visitas concedidas em sua residência, José se dispôs a realizar a leitura de uma oração presente num livreto religioso intitulado “Rosa mística oração + penitência + reparação” (ver figura 1 abaixo). José escolheu a oração “À Santa Chaga da Mão Direita” que, em sua opinião, é uma das mais bonitas. Chamamos a atenção para o fato de a leitura praticada estar centrada, sobretudo, na decodificação, mesmo sendo um texto cujos trechos já haviam sido memorizados pelo participante. Vejamos, a seguir, uma parte da leitura que realizou: Figura 1 - Livro de reza de José 178 José: Meu... ama... Mo... Meu a-ma-li-ci-mo... Jesuis... Jesuis... Cru-ci-ficado... O-ni... o-ni-pe- men-te... o H eu deixei pra trás... Pesq.: Isso, é pra deixar mesmo... José: po-sse... po-sse... Pesq.: A palavra continua aqui ((indico a linha a qual deverá prosseguir)). José: tanto... a... andor... a dor... como... Ma-ri-a... co-mo...to-dos... os... anjo... e... santo... do... senhor.... a... san-ti-da-de... san-ti-fi-ci-ca-do... chi... che-gou... chegar... da... vossas... mão... Ou mãe? É mão né? Pesq.: É mão... José: nesse... es-pe... es-pe-dor.... Pesq.: É a mesma palavra aqui em cima ó ((Indico novamente a próxima linha)). José: É... As mão direita... Pesq.: A mão aqui... José: Esquerda (risos) mão esquerda... e... por... ti... vossos... graça... graças... pelo... pelos... por... se... por se... pe-ca-dor... e... pelos... um... mundo... mundos... pelenguino... Pesq.: Não, prin... José: é prin-ci-pal...mente... pores... a-que-les... que... re-ce-ten-cia... a... re-com-se... se... conseli.... Pesq.: ação... José: ado... Não é? Pesq.: Reconciliação. José: Recoliação... Não dá pra falar direito (risos) Mesmo tendo apresentado dificuldade para realizar a leitura, José diz que está satisfeito por ter conseguido chegar a esse patamar, pois, antes de ser alfabetizado, não conseguia ler sequer o título do livreto. Ao final da leitura, Figura 2 - A oração intitulada "À Santa Chaga da mão direita" está localizada na parte superior direita do livreto 179 o participante, mesmo consciente de que ainda lê “embaralhando” as palavras, avalia que leu bem o texto: Pesq.: E a leitura que o senhor fez agora o que que o senhor achou dela? José: Li eu li até bem. Pesq.: É? José: Tem a vez que eu embaralho um pouco né? A dificuldade de José para realizar a leitura da oração contrasta com a destreza com que Lineu localiza os versículos da Bíblia. No depoimento abaixo, o participante afirma que identifica sem dificuldades as passagens bíblicas, sem que seja necessária a ajuda de outra pessoa: Pesq.: E o senhor acha os versículos (da Bíblia)... Lineu: Acho. Pesq.: Sem dificuldade... Lineu: Assim... De livro... O livro (bíblico), os versículo, aí eu sei... Entretanto, como se observa, José fez questão de frisar que essa destreza se restringe à leitura dos livros bíblicos, uma vez que a leitura de outros gêneros textuais, como ocorre com José, é também realizada com grande dificuldade, alternando a decodificação de palavras com a recitação de trechos memorizados. Vander, ao contrário dos demais participantes nas situações observadas pela pesquisadora, se mostrou habilidoso tanto na localização de passagens bíblicas quanto na leitura delas. Além disso, também demonstrou ter domínio não apenas da leitura de textos de cunho religioso, apesar de serem considerados seus preferidos. No trecho abaixo, o participante novamente informa que, no interior das relações que estabelece com a língua escrita, dificilmente apresenta dificuldades para ler; suas dificuldades estavam relacionadas ao uso da escrita: Pesq.: O que mais o senhor lia além da Bíblia? Vander: Hein? Pesq.: Além da Bíblia, o que mais o senhor lia? 180 Vander: Não... Eu sempre... Ô Iara pra te falar a verdade, além da Bíblia, tudo que pensar eu leio: jornal, revistas, essas coisas assim... Às vezes muita gente fala assim... É... Eu sou muito curioso pras coisa... Sou. Às vezes é como diz assim... Às vezes eu passo num lugar, eu vejo uma praca, um anúncio eu tenho que lê aquilo. Às vezes eu passo num lugar eu vejo um... Acho um papel no chão eu tenho de vê o que... Eu sou curioso... (...) Vander: (...) É igual eu falei pro cê um pouquinho agora a gente tá no... No... Meu caso. É pra dificuldade pra lê nunca tive muito não... Nunca... Qualquer coisa pra mim eu leio assim... Mas o problema que eu tô falano é escrever... Já o esforço de Alberto durante a leitura de um manual de legislação de trânsito (ver figura 3 abaixo) não foi suficiente para relacionar o valor da pontuação e a infração correspondente, conforme o trecho a seguir: Pesq.: Onde o senhor adquiriu essa cartilha de trânsito? Alberto: Comprei na... Comprei na... Como é que chama na... Na banca. Pesq.: Ah, na banca de revista? Alberto: Isso. (...) Alberto: ((começa a ler os tópicos referentes às infrações)) In-fra-ção… Infração… en-di-a... en- di-a. Infração média quatro ponto. In-fra-ção gra... gra-ve cinco ponto (pausa) In-fra-ção gra-ví- ssi-ma sete ponto. Umas coisa assim entendeu? Pesq.: Hãrã. Alberto: Aí eu vou lendo, mas muitas coisa eu já... vou... (pausa) aqui ó... in-fra-ção gra-ve cinco ponto. Lá já mudou. Cá é... Mesmo ritmo só que mudou a posição da... Pra complicar. Pesq.: E quando é que a infração é grave. Alberto: (pausa) in-fra-ção gra-ve... Quando o total é sete ponto. Pesq.: Mas quando a gente faz o quê? Alberto: Quando... (pequena pausa) Avança o sinal é... Pesq.: E aí tá escrito? Alberto: Atropela um pedestre... Figura 3 - Manuais de legislação de trânsito: alguns dos materiais impressos identificados na sala de Alberto, no trabalho 181 Pesq.: Aí tá escrito isso? Onde? Alberto: Não é... Cá na... Aí a gente tem que ir lendo ah... Pra frente para gente... Pra gente acompanhar... Pesq.: Onde é que ta as infrações né? Alberto: um é... Um é explicando as coisa e outro é o resumo por que... Pesq.: E onde que ta o resumo, o senhor sabe onde é que ta? Alberto: Não, aí eu tenho que pegar (sorri) e ler... Percebe-se que, durante a leitura do manual, Alberto também direciona seus esforços para a decifração das palavras. Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao fato de o participante verbalizar trechos já memorizados, ao invés de realizar uma leitura no sentido estrito; tanto que não conseguiu descobrir qual é a infração que, na verdade, gerará a penalidade máxima de sete pontos na carteira. Para ter essa informação, ele próprio reconhece que é preciso pegar e ler. Enquanto Alberto demonstrou ainda ter dificuldades para o exercício da leitura, percebemos que Davi provou ter maior intimidade com esse objeto. A revisão de um texto produzido por um colega de trabalho e que seria, posteriormente, lido durante o encerramento do ano letivo de um curso de EJA, do qual participa, foi uma tarefa considerada por Davi bastante simples. No fragmento abaixo, percebe-se que Davi foi capaz de analisar o texto produzido pelo colega, demonstrando dominar conhecimentos complexos, necessários para que o leitor avalie o gênero textual, bem como o conteúdo do texto, ou seja, Davi identificou que se tratava de um discurso e que as informações nele contidas atingiriam o objetivo do autor: Davi: Júlio César... Um que tira nota dez... Ele passou (do Proef-1) pra (turma do Proef-2) noite vai formar agora... Pesq.: Hãrã... Davi: Vai ter uma festinha. Pesq.: Isso... Davi: E ele tava fazendo um resumo grande, aí ele pegou deu o resumo pra mim lê. Aí eu achei tudo legal: “mas o Davi, mas eu acho que tá faltando alguma coisa aqui”... “Bom, aí é a cabeça do senhor, mas segundo o senhor tá... Elugiano o projeto tá tudo... O senhor começou, no meu entender depois o senhor leva depois cê vai me falar eu acho que o que o senhor vai fazendo aqui tá tudo certinho... Porque, entendeu? O senhor começou a primeira palavra lá em cima o senhor terminou aqui em baixo. Então o senhor não virou a palavra de cabeça pra baixo, o 182 senhor começou a falar de uma coisa, o senhor deu segmento aqui e foi até o fim. E aí eu acho que se o senhor quiser fechar o senhor pode fechar porque se for aumentar mais”... Pesq.: Então o senhor Júlio César pediu pra você dar uma opinião pra ele do texto dele... Davi: É... Tava dando uma avaliação no texto dele... Pesq.: Então você tava avaliando o texto dele... Davi: Isso. Pesq.: E o texto dele tava bom? Davi: Eu gostei... Pesq.: Dava pra entender do início ao fim... Davi: Dava cê precisa ver, ficou uma gracinha... Eu gostei... Pesq.: Hãrã... Ah, então você já tá avaliando o texto do colega? Davi: Ai eu gostei do... Do jeito assim porque é o seguinte: Cê pega um papel você lê, se você prestar bem atenção, você... Dá pro cê saber o que que tá errado o que que tá certo. Pesq.: Hunrum... Davi: À veze em pontuação a gente... Põe vírgula essas coisa é uma coisa que a gente se perde muito... Pesq.: Hunrum... Davi: E é uma coisa muito importante esse tipo de coisa, uma vírgula, uma pontuação. É... Se a gente não entende, a gente esquece... Mas o que eu li dele num repetiu... Uma coisa é eu falar uma coisa e repetir aqui. Então num tem sentido... Ele num repetiu, fez um texto desse tamanho ((gesticula com os braços para mostrar o tamanho do texto)). Depois você conversa com ele pro cê vê você vai gostar... Desse tamanho assim... Na minha opinião... Considerando o princípio postulado por Barton and Hamilton (1998), destacado anteriormente – “literacy praticies are what people do with literacy” (p.6) – podemos afirmar que certas práticas de leitura e de escrita podem não ser consideradas práticas legítimas por um determinado grupo social. Diante desse fato, podemos ainda considerar que certas maneiras de se relacionar com a linguagem escrita, por não serem reconhecidas como legítimas, acabam sendo marginalizadas como atividades inferiores. Se as práticas de letramento são determinadas por questões de ordem social e cultural, tendo em vista as necessidades e interesses dos grupos sociais, nossa visão etnocêntrica e preconceituosa, porém, produz um efeito negativo frente a determinadas apropriações da linguagem escrita: enquanto certas práticas de leitura e escrita são consideradas de prestígio, outras, por sua vez, são colocadas em segundo plano. 183 As práticas de letramento, porém, não são “unidades comportamentais diretamente observáveis” (Barton and Hamilton, p.6). Nos termos de Street112, as práticas envolvem comportamentos, valores, atitudes, sentimentos e relações sociais. Unem-se a esses aspectos a consciência das pessoas acerca do letramento, nossas construções e discursos bem como o modo como dizemos sobre o letramento e o dotamos de sentido. Os eventos de letramento, em contrapartida, podem ser percebidos por observação direta nas interações em que ocorre o uso da linguagem escrita. Nos eventos, os textos escritos se constituem no principal foco interacional, mesmo que as relações estabelecidas sejam marcadas pela linguagem oral. Os eventos de letramento são, de acordo com Barton and Hamilton (1998), atividades regulares e identificadas em diferentes instâncias sociais: em casa, no trabalho, na escola, nas agências de saúde e em outros espaços, e são, nesse sentido, constituídos por procedimentos formais e expectativas no interior das instituições sociais. Vejamos, a seguir, a definição de eventos adotada pelos autores: Eventos são episódios observáveis que surgem das práticas e são modelados por elas. A noção de eventos ressalta a natureza situada do letramento, que sempre existe em um contexto social. Ela é paralela às idéias desenvolvidas na sociolingüística e também, como Jay Lemke pontuou, nas asserções de Bakhtin de que o ponto de partida para a análise da língua falada deveria ser “o evento social da interação verbal”, mais do que as propriedades lingüísticas formais dos textos isolados (p.7). 113 A primeira proposição da teoria social do letramento, desenvolvida por Barton and Hamilton, baseia-se no tripé práticas, eventos e textos: O letramento é mais bem compreendido como um conjunto de práticas sociais; estas podem ser inferidas a partir dos eventos que são mediados por textos escritos (p.8) (grifos dos autores).114 112 BARTON and HAMILTON (1998), recorrem ao pensamento de STREET, B. (1993), extraído na obra Cross-cultural Approaches to literacy, Cambridge: Cambridge Universite Press, e definem as práticas de letramento como processos sociais. Ver p. 6. 113 Events are observable episodes which arise from practices and are shaped by them. The notion of events stresses the situated nature of literacy, that it always exists in a social context. It is parallel to ideas developed in sociolinguistics and also, as Jay Lemke has pointed out, to Bahktin’s assertion that the starting-point for the analysis of spoken language should be ‘the social event of verbal interaction’, rather than the formal linguistic proprieties of texts in isolation. 114 Literacy is best understood as a set of social practices; these can be inferred from events which are mediated by written texts. 184 Podemos perceber que, na perspectiva dos autores, as práticas e os eventos de letramento se constituem em atividades ligadas ao uso de textos escritos. Enquanto os eventos podem ser identificados juntamente com os textos da vida cotidiana nas relações estabelecidas entre os indivíduos, as práticas podem ser apreendidas a partir da descrição dos significados que as pessoas atribuem à atividade de leitura e de escrita nessas relações. De acordo com Barton and Hamilton, um dos aspectos da natureza da leitura e da escrita, identificados nos eventos de letramento, se refere à presença da oralidade e de outras formas de linguagem nas interações que envolvem o uso da palavra escrita. Quando dizemos que os eventos de letramento estão imbricados de diferentes linguagens, isso significa que o uso da linguagem escrita no interior dos grupos sociais é parte integrante de uma variedade de sistemas semióticos115. A leitura e a escrita, nesse sentido, tornam-se apenas mais um dos diferentes recursos de comunicação possíveis aos membros da comunidade. Ao observarmos diferentes eventos, percebemos que o letramento não é compreendido da mesma maneira nos diferentes contextos. Isso implica considerar a existência de inúmeros letramentos. Os letramentos são configurados a partir do exercício de certas práticas de leitura e de escrita, práticas essas percebidas como coerentes na perspectiva dos participantes. A fim de esclarecer melhor essa questão, Barton and Hamilton (1998) afirmam que, dentro de uma cultura, há diferentes letramentos associados a diferentes domínios da vida. Cada cultura cria formas particulares de lidar com as práticas e os eventos, produzindo letramentos diferenciados: na escola, no trabalho, na associação comunitária, dentre outros espaços. De acordo com os autores, domínios são: Domínios são padrões contextuais estruturados dentro dos quais o letramento é utilizado e aprendido. As atividades dentro desses domínios não variam acidentalmente. Há 115 De acordo com Barton and Hamilton, o uso da leitura e da escrita está atrelado a diversos sistemas semióticos, como, por exemplo, sistemas matemáticos, sistemas musicais, sistemas cartográficos, e uma infinidade de imagens não baseadas em textos escritos, etc. Quando lemos uma receita, por exemplo, não recorremos apenas à linguagem escrita para compreender o significado do texto, mas também recorremos aos sistemas matemáticos e até mesmo às imagens conjugadas com a linguagem oral, em se tratando de uma receita veiculada pela TV. Podemos dizer que as práticas e os eventos de letramento estão permeados de outras linguagens, sendo o letramento localizado em relação aos meios de comunicação de massa e novas tecnologias (Barton and Hamilton, Pp. 9-10). 185 configurações particulares de práticas de letramentos e há formas regulares nas quais as pessoas atuam em muitos eventos de letramentos em contextos particulares. Várias instituições subsidiam e estruturam atividades em domínios particulares da vida. Estas incluem a família, religião e educação, que são todas elas instituições sociais. Algumas dessas instituições são formalmente estruturadas, com regras explícitas de procedimentos, documentação e penalidades legais para infrações, ao mesmo tempo em que outras instituições são reguladas pela pressão de convenções sociais e são estruturadas e sustentadas por essas instituições (p.10)116 Ao recorrerem às idéias de James Gee117, os autores em questão afirmam que a casa costuma ser identificada como o primeiro domínio do letramento na vida das pessoas. Esse lugar social exerce importante papel no desenvolvimento da identidade social dos indivíduos, uma vez que as relações estabelecidas entre os participantes e os recursos disponíveis são estruturadas de forma específica. Nesse domínio, certas práticas de letramento são subsidiadas, aprendidas e conduzidas de maneira distinta das demais esferas, o que favorece a construção do sujeito letrado. Tendo em vista a noção de práticas e de domínios, podemos dizer que as pessoas participam das práticas sociais em diferentes comunidades discursivas (Barton and Hamilton, p.10). Entende-se por comunidades discursivas os grupos que se identificam por suas maneiras próprias de dizer, agir, valorizar, interpretar e usar a linguagem escrita. As comunidades discursivas estão diretamente associadas aos domínios, porém, ambos não são facilmente delimitados, dada a dificuldade de se estabelecer a fronteira118 que os separa. 116 Domains are structured, patterned context within which literacy is used and learned. Activities within these domains are not accidental or randomly varying: there are particular configurations of literacy practices and there are regular ways in which people act in many literacy events in particular contexts. Various institutions support and structure activities in particular domains of life. These include family, religion and education, which are all social institutions. Some of these institutions are more formally structured than others, with explicit rules for procedures, documentation and legal penalties for infringement, whilst others are regulated by the pressure of social conventions and attitudes. Particular literacies have been created by and are structured and sustained by these institutions. 117 GEE, James (1990). Social linguistics and literacies: Ideology in Discourses. London: Falmer Press. 118 A dificuldade de delimitar os elementos que distinguem os domínios e as comunidades discursivas reside no fato de que estamos diante de elementos permeáveis e que se sobrepõem uns com os outros. Em uma fronteira podem ser identificados tanto aspectos da esfera da comunidade quanto da esfera da casa. Nesse caso, estamos diante de sobreposições de domínios e um dos aspectos que possibilitará a delimitação dos mesmos é a 186 A instituição escolar tende a subsidiar e estruturar práticas de letramento dominante. As práticas dominantes compreendem formas discursivas e de interação com a linguagem escrita que um grupo social específico utiliza, de modo a construir sentidos que são percebidos como universais. Por serem consideradas legítimas na esfera educacional, tais práticas são conseqüentemente incorporadas nas relações sociais no interior da instituição em detrimento de outras linguagens menos perceptíveis ou subsidiadas. Enquanto certas práticas de letramentos são sustentadas e padronizadas pelas instituições sociais — sobretudo a escola — e relações de poder tornam-nas dominantes, visíveis e influentes, outras são marginalizadas ou mesmo impedidas de serem utilizadas por serem consideradas de menor importância. Essas práticas cotidianas e de menor visibilidade são definidas pelos autores como letramentos vernaculares (vernacular literacies). Em concordância com as idéias de Barton and Hamilton, consideramos que os estudos sobre práticas de letramento devem ser orientados de modo a situar a leitura e a escrita nos diferentes contextos em que são utilizadas. Nesse caso, a documentação dos letramentos vernaculares bem como suas relações com os letramentos dominantes tornam-se fundamentais para a compreensão de como as pessoas se apropriam dos textos a partir de objetivos específicos e constroem sentidos a partir do seu uso119. A situação descrita abaixo nos ajuda a compreender essa questão. Apesar de Lineu ter dito que a leitura que costuma praticar está circunscrita exclusivamente a textos de cunho religioso, vemos que, na verdade, ele também participa, na esfera familiar, de outros eventos e práticas de distinção de comportamentos, ou seja, definir o que é tomado como público e privado (BARTON and HAMILTON, 1998, p.10). 119 Barton and Hamilton destacam alguns estudos clássicos sobre letramento como os realizados por HEATH, S. (1983) Ways with Words: language, life and work in communities and classrooms, Cambridge: Cambridge University Press e por TAYLOR, D. and DORSEY- GAINES, C. (1988) Growing up literate: learning from inner-city families, Londom: Heinemann. A partir dos estudos realizados por HOGGART, Richard (1957). The Uses of Literacy: Aspects of Working. Class Life, London: Chatto apresentam algumas classificações dos usos e funções da leitura e da escrita por indivíduos. Esses trabalhos oferecem importantes contribuições para o campo teórico, uma vez que consideram que existe numa comunidade uma variedade de práticas de letramentos. No entanto os autores alertam que a identificação de usos e funções pouco perceptíveis não é uma tarefa fácil, dado que grande parte dos usos e funções não é estabelecida de maneira rígida. A proposta dos autores, entretanto, é ir além dessa abordagem e examinar como as práticas de leitura e de escrita são subsidiadas e aprendidas no interior das relações sociais, bem como apreender os significados por trás dessas práticas (p.11). 187 letramento. Percebe-se que o participante não mediu esforços para adquirir um livro de plantas medicinais e, mesmo sendo o seu filho o leitor estrito do texto, Lineu também participa dessa relação com o impresso, uma vez que obtém informações, a través do outro. Observa-se que, no contexto descrito, o uso da leitura ocorre para a resolução de um problema de ordem prática: Pesq.: Os livros (na estante) são de quem? São seus? Lineu: É... Inclusive tem um livro de... De... (plantas) medicinal aí... (...) Pesq.: Deixa eu ver: “Saúde pelas Plantas”, o senhor comprou esse livro? Lineu: Comprei. Pesq.: E quando é que o senhor comprou esse livro? Lineu: Eu... Eu... O cara passou vendendo... Pesq.: Ah passou vendendo aqui na porta? Lineu: Passou. E isso é caro. Já tem... Já tem uns quatro ano que esse livro... Custou quarenta e cinco reais... (...) Lineu: Eu... Comprei e deixei aqui. Um dia desse que meu menino tava olhando... Pesq.: E você chegou a ler? Lineu: Não... Aí eu não li nada... Pesq.: Não leu nenhum... Lineu: Não. Pesq.: Mas comprou. Lineu: Mas comprei. Pesq.: O senhor comprou e pensou que ia lê? Lineu: (risos) Não, pensei assim, uma pessoa pode lê e ensinar a gente o remédio que a gente precisa uai... Pra qualquer coisa... (...) Lineu: É igual o meu menino que tava lendo aí outro dia e... Deixa eu vê pra que que ele tava... Pra... Pra fieira... É pra fieira que ele tava lendo... Eu num sei que página aí. Mas é tanta coisa. Ele falou: “Ah isso aí é raiz”. Acha no... No... Mercado Central. Mas os textos por si só não apresentam significados autônomos nem um conjunto de funções independentes. A construção dos sentidos e das funções dos textos está diretamente relacionada ao contexto social de uso. Para Barton and Hamilton, o primeiro passo para a reconceitualização do letramento é admitir que a leitura e a escrita podem assumir múltiplas funções numa atividade interacional. O uso da leitura e da escrita pode ter num 188 determinado momento o papel de substituir a linguagem falada, ou facilitar a comunicação entre os pares, bem como solucionar problemas de ordem prática ou atuar como importante instrumento de apoio à memória. São infinitas as possibilidades de exercício da leitura e da escrita e também infinitos os significados constituídos a partir desse uso. O fragmento abaixo esclarece tais questões: Os textos podem ter múltiplos papéis em uma atividade e podem atuar de diferentes formas para os diferentes participantes em um evento de letramento. As pessoas podem ser incorporadas dentro das práticas de letramento dos outros sem ler ou escrever uma única palavra. Os atos de ler e escrever não são as únicas formas por meio das quais os textos adquirem significado (p.11) 120. Cabe ainda dizer que, sendo as práticas e os eventos construídos culturalmente, devemos entender o letramento para além das ações individuais, deslocando-o para o âmbito das relações sociais, ou seja, os modos como a comunidade utiliza a leitura e a escrita. Para cada grupo de indivíduos, há estruturas que regulam a produção e a utilização dos textos. Deslocar a idéia do letramento como um atributo individual é uma das implicações mais importantes de uma abordagem prática do letramento e uma das formas pelas quais ela se difere de abordagens mais tradicionais (p.12) 121. Podemos, nesse momento, ampliar as discussões acerca do papel da linguagem verbal e escrita na experiência nos diferentes campos da vida cotidiana – na casa, na escola, no trabalho, dentre outros – descrevendo em termos gerais algumas idéias de Gee (2001), presentes na obra Reading as situated language: a sociocognitive perspective. Neste trabalho, Gee discute a questão da leitura numa perspectiva mais ampla, integrando questões de ordem cognitiva e lingüística, interação social, sociedade e cultura. Seguindo uma orientação diferente dos estudos que analisam a leitura, basicamente, em termos de aspectos de habilidades de processamento psicolingüísticos, Gee considera que a leitura e a escrita são indissociáveis, tanto da fala, da escuta e 120 Texts can have multiple roles in an activity, and literacy can act in different ways for the different participants in a literacy event; people can be incorporated into the literacy practices of others without reading or writing a single word. The acts of reading and writing are not the only ways in which texts are assigned meaning. 121 Shifting away from literacy as an individual attribute is one of the most important implications of a practice account of literacy, and one of the ways in which it differs most from more traditional accounts. 189 da interação, quanto das relações ligadas ao seu uso para pensar e atuar no mundo e, portanto, precisam ser compreendidas em sua totalidade122. Gee (2001) não nega o princípio da transmissão primária de informações que normalmente é atribuído à linguagem, mas em conformidade com as idéias de Halliday123 vê esse papel como apenas um de seus aspectos. Nesse sentido, o autor argumenta que a linguagem possui uma variedade de funções, dentre as quais se atêm à noção de ação situada e interação no mundo (Situated action and interaction in the world). Pesquisadores pertencentes a uma mesma ecologia intelectual (Green, Dixon and Zaharlick, 2005) têm compartilhado pontos de vista semelhantes sobre o conceito de linguagem cujas idéias estão reunidas num conjunto de trabalhos intitulados situated cognition studies (Gee, p.715). Para esses estudiosos, o significado na linguagem não é uma representação proposicional abstrata, ele está atrelado às experiências pessoais de ação situada no mundo material e social. Em outras palavras, as experiências pessoais não são armazenadas no cérebro em termos de proposição ou linguagem, mas como imagens dinâmicas internalizadas concomitantemente às percepções124. Gee (2001) considera que o significado das palavras, frases e sentenças são situados, ou seja, estão ligados ao nosso contexto atual. Contexto, de acordo com o autor, não é considerado apenas como aquilo que circunda as palavras ou ações, mas remetem também aos nossos propósitos e valores, nossas ações intencionais e interações. Essa idéia de contexto se aproxima do conceito de Erickson (1981), que considera que os contextos não são simplesmente pensamentos dados por um ambiente físico e nem por 122 Na visão do autor, somente uma análise mais ampla da leitura será possível promover uma discussão mais consistente de questões que permeiam o seu acesso e a eqüidade nas escolas e espaços de trabalho. Ver GEE, 2001, p.714. 123 HALLIDAY, M. A. K. (1994). Functional grammar (2nd. ed.) London: Edward Arnold. 124 A fim de esclarecer melhor essa questão, Gee realiza uma analogia do videotape: as experiências são filmadas no momento em que são vivenciadas; as imagens geradas são guardadas na nossa “biblioteca” mental e novos videotapes são produzidos, reeditados, armazenados aos já existentes. Por meio desses filmes, damos significados às nossas experiências no mundo. Nesse sentido, as imagens construídas das experiências (sejam elas novas ou já internalizadas) são representações e não apenas informações ou fatos. Ciente dos limites de se explicar o processo de significação a partir de uma metáfora, Gee reconhece que a analogia do videotape nos orienta para uma melhor compreensão da noção de linguagem, atrelada às experiências (ver GEE, p.715). 190 combinações de pessoas, mas são constituídos pelo que as pessoas estão fazendo, onde e quando fazem. De acordo com Gee (2001), a partir de uma palavra, frase ou sentença, um conjunto de imagens é reunido e diferentes significados situados são gerados num dado contexto particular, em um tempo e espaço específicos. Dentre uma infinidade de imagens armazenadas, elegemos as mais relevantes para o entendimento ou a constituição do contexto. Na perspectiva de Gee, se a ação personificada e a atividade social são conectadas aos significados situados que a linguagem oral e escrita expressam, o aprendizado da leitura deve ser orientado para além das relações dentro do texto, ou seja, o ensino da leitura deve ser conduzido, levando-se em conta as conexões entre os textos. Gee (2001) discute ainda uma segunda função da linguagem que o autor denomina Perspective-taking. Para fundamentar a discussão recorre a Tomasello125, que considera que as palavras e a gramática da linguagem humana existem para que as pessoas possam obter e comunicar perspective- taking, no sentido estrito da palavra, “tomadas de perspectiva”. Entendemos por “tomadas de perspectiva” como formas diferenciadas de ver o mesmo estado de coisas126. O papel da linguagem não está, portanto, na mera transmissão de informações neutras e objetivas, mas na comunicação de perspectivas, na experiência e ação no mundo, muitas vezes em contraste com perspectivas alternativas e que competem entre si127. Gee torna seus argumentos mais concisos ao introduzir a noção de linguagens sociais (Social Languages) e a idéia de gêneros lingüísticos e de Discurso e suas relações com os modelos culturais (Cultural Models). 125 TOMASELLO, M. (1999). The cultural origins of cultural meaning. Cabridge, MA: Harvrad University Press. 126 Uma maneira de entendermos a noção de perspectivas discutida pelo autor é pensar as diferentes concepções sobre o que é a leitura. Ler pode significar para um indivíduo ou grupo de indivíduos a capacidade de decodificar todas as palavras de um texto ou de fazer uso de pistas não decodificáveis no processo de reconhecimento de palavras. O que torna ambos os conceitos válidos são as perspectivas tomadas por cada participante (GEE, 2001, p 717). 127 A inserção do homem em culturas, grupos sociais, instituições se dá, portanto, por meio do que o autor denomina de “tomada de certas perspectivas na experiência”. Os símbolos lingüísticos são convenções sociais que induzem a construção ou assimilação de uma perspectiva numa dada experiência: as crianças, por exemplo, aprendem como as palavras e as gramáticas são usadas graças ao diálogo intersubjetivo que estabelecem com os adultos ou grupos mais desenvolvidos lingüisticamente. Através do diálogo vai se tornando capaz de identificar os diferentes pontos de vista sobre o que é dito e o quanto as falas diferem ou se aproximam da sua. Com o tempo, vai adquirindo a capacidade de realizar simulações e “imitações” das perspectivas do outro e aprendendo a usar o significado simbólico utilizado pelos diferentes grupos sociais (GEE, 2001, p.717). 191 Linguagens sociais são linguagens pertencentes às diferentes culturas ou grupos sociais e que têm papel fundamental na compreensão dos textos falados ou escritos. Adquiridas pela socialização por meio dos Discursos — termo adotado pelo autor para remeter às linguagens produzidas em oposição ao “discurso” com “d” minúsculo, ligado à linguagem em uso — as linguagens sociais só têm significado no interior dos próprios discursos. Compostas de uma variedade de estilos, padrões de vocabulários, sintaxe (estrutura da sentença) e conectores do discurso (que garantem a integração textual), as linguagens sociais transcendem a estrutura gramatical e por serem diferenciadas, cada uma delas é conectada a atividades sociais específicas (ações e interações no mundo) e identidades socialmente situadas. Estamos imersos num ambiente repleto de linguagens sociais diversificadas, produzidas por diferentes grupos sociais: médicos, intelectuais, gangues, amigos, políticos, alunos, dentre outros. Podemos tanto ser capazes de desempenhar uma identidade particular ao fazer uso desta linguagem social ou de reconhecer tal identidade, quando não estamos dispostos ou mesmo não podemos participar ativamente. Nas palavras de Gee: Conhecer qualquer linguagem social específica é conhecer como suas características de seu delineamento são combinadas para carregar uma ou mais atividades sociais específicas. É conhecer, também, como o delineamento de suas características lexicais e gramaticais é usado para desempenhar uma específica identidade socialmente situada, isto é, sendo, em um dado momento e lugar, um advogado, um membro de uma gangue, um político, um humanista literato, um químico, uma feminista radical, uma pessoa do dia- a-dia, ou o que seja (p.718). 128 Um Discurso envolve muito mais do que a linguagem, integra formas de fala, escuta, escrita, leitura, ação, interação, crença, valores, sentimentos e utiliza diferentes objetos, símbolos, imagens, ferramentas, tecnologias para viabilizar o significado de identidades socialmente situadas (Gee, 2001, p.719). Pertencer a determinada cultura ou ser membro de um grupo social é fazer parte de um ambiente em que emergem diferentes Discursos. 128 To know any specific social language is to know how its characteristic design features are combined to carry out one or more specific social activities. It is to know, as well, how its characteristic lexical and grammatical design features are used to enact a particular socially situated identity, that is, being, at a given time and place, a lawyer, a gang member, a politician, a literary humanist, a “bech chemist”, a radical feminist, an everyday person, or whatever. 192 Nós podemos pensar nos Discursos como equipamentos (quites) de identidade. É quase como se você tivesse um quite de ferramentas cheio de procedimentos específicos (i. e., formas de lidar com as palavras, condutas, pensamentos, valores, ações, interações, objetos, ferramentas e tecnologias) em termos dos quais você pode atuar com uma identidade específica e engajar em atividades específicas associadas com aquela identidade (Gee, p. 719-720). 129 Gee (2001) afirma ainda que um Discurso está imbricado de outros Discursos numa relação mútua (de concordância) ou de tensão (de discordância). Através da socialização, as pessoas adquirem modelos culturais que são teorias do dia-a-dia sobre o mundo, socializadas dentro de um Discurso partilhado. Os modelos culturais informam sobre as práticas sociais, nas quais as pessoas engajam, ou seja, definem o que é normal ou natural e o que conta como inapropriado dentro de um Discurso e, portanto, são dotados de valor. Tais modelos são internalizados mentalmente e embora mediados pelos objetos, textos e práticas, são parte do Discurso. Para Gee, as discussões sobre as linguagens sociais, Discurso e modelos culturais são relevantes no debate sobre o processo de aquisição inicial das habilidades de leitura. Um pai que solicita ao filho de três anos de idade a leitura de uma questão impressa num livro infantil está operando com um modelo cultural diferente daquele normalmente veiculado em outros espaços sociais, como a escola, por exemplo. Consciente de que a criança não pode decodificar a escrita, mas pode formular a questão em virtude de dominar os nomes das letras do alfabeto e reconhecer determinadas palavras, o pai contribui para a construção de uma identidade de “leitor” na criança, antes mesmo de que ela adquira plenamente todas as habilidades associadas ao ato de ler. Mesmo que a criança não tenha verbalizado integralmente e formulado a questão ignorando os aspectos sintáticos do texto, na perspectiva do discurso (linguagem em uso), sua construção está correta (Gee, 2001, p.721). Esse fato se constitui para Gee num importante mecanismo que valoriza o engajamento do sujeito com o texto e estimula a sua inserção no universo da escrita, uma vez que o sujeito, ao fazer uso de estratégias não 129 We can think of Discourses as identity Kits. It’s almost as if you get a tool kit full of specific devices (I.e., ways with words, deeds, thoughts, values, actions, interactions, objects, tools, and technologies) in terms of which you can enact a specific identity and engage in specific activities associated with that identity. 193 decodificáveis para a compreensão do texto — relacionar imagem e texto, reconhecer palavras, formular a questão respeitando o gênero textual ao qual se refere, etc. — está adquirindo um modelo cultural diferente daqueles existentes em outros contextos, que certamente a definiriam como “aprendiz” ou mesmo que “não pode ler”. Nas palavras do autor: Juntamente à aquisição de parte específica de certos tipos de linguagens sociais, a criança está também, enquanto parte e parcela da atividade, adquirindo diferentes modelos culturais. Um desses é um modelo cultural sobre o que é leitura. O modelo é algo como: a leitura não é primariamente decodificação letra a letra, mas a produção pro-ativa de estilos apropriados de linguagem e seus significados concomitantes em conjunção com a escrita impressa (p.723). 130 Esse exemplo de Gee remete à noção de Perspective-taking: enquanto para alguns o conceito de leitura está atrelado à capacidade do aprendiz de decodificar todas as palavras de um texto, para outros os processos que permeiam o ato de ler vão além desse aspecto e englobam também a capacidade de fazer uso de pistas não decodificáveis, como, por exemplo, figuras e pistas contextuais, para o reconhecimento de palavras e a construção de significados de um texto. Sobre essa questão, veremos no capítulo a seguir, que os participantes dessa pesquisa fazem uso de diferentes estratégias — decodificáveis ou não — nas relações que estabelecem com os textos escritos. Tendo em vista essas duas visões sobre um mesmo conceito, Gee problematiza sobre qual perspectiva na experiência o termo leitura ou leitura real deve ser empregado, ou seja, em qual das situações é possível estar chamando de leitura? O autor esclarece que o que define uma nomeação em detrimento de outra são, na verdade, as relações de poder que se estabelecem nos grupos, já que no interior das relações sociais diferentes perspectivas competem entre si. Gee defende a idéia de que as dificuldades na leitura normalmente estão relacionadas muito mais com problemas na aquisição de habilidades lingüísticas, como vocabulário, sintaxe e discurso (linguagem em uso) do que 130 In addition to acquiring a specific piece of certain sorts of social languages, the child is also, as part and parcel f the activity, acquiring different cultural models. One of these is a cultural model about what reading is. The model is something like this: Reading is not primarily letter-by- letter decoding but the proactive production of appropriate styles of language (e.g., here a classificatory question) and their concomitant meanings in conjunction with print. 194 questões de ordem fônica. Não negando a importância da consciência fonológica inicial, mas considerando a relevância de outras habilidades iniciais de linguagem para o sucesso da alfabetização, o autor alerta para os riscos do ensino nas escolas, baseado na fonologia. De acordo com Gee, as habilidades lingüísticas e a consciência fonológica iniciais são, na verdade, correlacionadas, e a família, a comunidade e os ambientes lingüísticos da escola funcionam como instâncias formadoras que viabilizam a construção da fala cognitivamente, que contribuirão, conseqüentemente, para o aprendizado da leitura. Dessas discussões fica a idéia de que as habilidades de leitura e escrita desenvolvidas no processo de escolarização não habilitam, necessariamente, a participação efetiva nos eventos e práticas sociais de letramento. Mesmo não negando a importância da escolarização, para uma melhor e bem sucedida participação dos sujeitos nos eventos e práticas de letramento social, essa regra não pode ser considerada de maneira absoluta (Soares, 2004). Considerando mais prudente falar em letramentos “escolares” e “sociais”, pois as demandas de uso da leitura e escrita são múltiplas e “situadas” (Barton and Hamilton; Gee, 2001) e que, portanto, não podem ser totalmente estabelecidas num conjunto de eventos e práticas uma vez que as possibilidades de uso são ilimitadas. A participação em eventos e práticas de letramentos estará atrelada mais pelas experiências sociais e culturais dos participantes que o próprio desenvolvimento formal das habilidades. 195 CAPÍTULO 5 A EXPERIÊNCIA DA REESCOLARIZAÇÃO NO PROEF-1 Concepções de alfabetização de adultos circunscritas na história do Proef-1: o discurso oficial e o discurso dos egressos O objetivo desta seção é tecer mais algumas considerações acerca da constituição do Proef-1 como campo de pesquisa e de escolarização, atentando, sobretudo, para questões ligadas à alfabetização. A pretensão de uma discussão mais detalhada dos processos desencadeados no âmbito da aprendizagem da leitura e da escrita justifica-se por considerarmos importante analisar as concepções de alfabetização subjacentes ao projeto, ao longo de sua história. Os aspectos que remetem ao processo de alfabetização serão, inicialmente, discutidos à luz das primeiras reflexões realizadas pelo grupo de pesquisa da FALE, nos anos 80, a partir das experiências no projeto Alfabetização de Adultos. Essas reflexões viabilizaram a criação de um modelo de ordenação lingüística que significou, na época, uma nova maneira de perceber os processos de aquisição da leitura e da escrita. Em seguida, um “salto” na história será dado, a fim de destacar as percepções dos sujeitos sobre a prática pedagógica no Proef-1, pautada na alfabetização na perspectiva do letramento. Nossa discussão está fundamentada no artigo produzido por Daniel Alvarenga (1988), já citado nesta pesquisa131, no Relatório de Atividades do Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos, elaborado por Rocha (2004a), e no texto produzido por Maciel, Oliveira e Lúcio (2005), que, dentre outras contribuições, apresenta a estrutura organizacional e pedagógica do Proef-1. Entretanto, paralelamente ao discurso oficial sobre a história da EJA na UFMG, materializado nas produções acadêmicas em questão, consideramos necessário também demarcar as percepções dos participantes 131 Ver nota da página 29. 196 desta pesquisa sobre o Proef-1 desde a sua constituição. Enquanto sujeitos da história da EJA na Universidade que vivenciaram, respeitadas as particularidades de suas trajetórias e as diferentes fases do projeto, esses participantes deixam, em seus depoimentos, importantes contribuições no entendimento das concepções de alfabetização. Dos onze trabalhadores da UFMG que, em 1985, compuseram a turma- piloto de alfabetização, instituída pelo grupo de pesquisa da FALE, três participam do nosso estudo. O fato de termos, dentre os cinco participantes investigados, pessoas que vivenciaram a constituição de uma prática educacional pioneira na UFMG nos ajuda a compor, juntamente com o discurso oficial, uma visão sobre o projeto Alfabetização de Adultos. Estamos nos referindo a José, Davi e Lineu, cujos depoimentos abaixo indiciam suas participações na turma-piloto: José: Cê alembra do professore Daniel? Pesq.: Daniel Alvarenga. José: Pois é, ele e o... E o... Milton (do Nascimento) né? Foi quando eles começaram. Pesq.: E lembra o ano? José: Não... Foi quando começaram... Pesq.: O senhor foi da primeira turma então do professor Daniel Alvarenga? Foi quando começou? José: Foi quando começou, no comecinho mesmo. Davi: Você alembra dele, do Daniel? Pesq.: Eu não o conheci. Davi: Ele era de Perdões, a terra dele era perto de Perdões... Um moreninho que dava aula... Pesq.: Você entrou no projeto do Daniel você lembra o ano? Davi: Não tô alembrado, mas foi no início, foi o primeiro... Pesq.: E depois do MOBRAL, qual foi a próxima vez que o senhor entrou na escola? Lineu: Foi aqui na (Faculdade de) Letra. Pesq.: Com o Daniel? Lineu: É com o Daniel. Pesq.: O senhor tinha quantos anos? Lineu: É, quando eu vim pra aqui, pra Belo Horizonte, eu vim com trinta e nove ano... Agora eu num... Iguale eu fichei aqui dia onze de setembro de... De oitenta... Eu num sei quanto tempo passou pra começar aquela aula. Isso aí eu num ((faz sinal com a cabeça que não se lembra)). Pesq.: E vocês foram chamados pra participar? 197 Lineu: Fomo... Embora José, Davi e Lineu afirmem não se lembrarem do ano em que foram inseridos pela primeira vez na turma de alfabetização de adultos, seus depoimentos revelam que suas participações naquele grupo de onze trabalhadores analfabetos ocorreram tão logo a turma-piloto foi instituída, uma vez que, conforme José afirmara, o seu ingresso “foi quando começou, no comecinho mesmo”, enquanto Davi diz que sua inserção “foi no início” dos trabalhos, ou seja, “foi o primeiro” projeto de alfabetização. Outro componente que reforça essa participação refere-se ao fato de os participantes se lembrarem dos pesquisadores envolvidos com o projeto. Ao serem questionados da primeira experiência de alfabetização vivenciada na Universidade, José e Davi responderam, respectivamente, com perguntas semelhantes, que comprovam a participação de ambos na turma-piloto: “Cê lembra do professore Daniel? (...) Pois é, ele e o... E o... Milton né?”; “Você alembra dele, do Daniel?”. Já Lineu foi categórico ao dizer que sua reinserção na escola “foi aqui na Letra”, além disso, também demonstrou conhecer o professor Daniel Alvarenga, ao responder de maneira afirmativa a pergunta da pesquisadora: “É com o Daniel”. Pode-se observar, a partir de seus relatos, que os participantes em questão estabeleceram uma estreita relação entre a primeira turma de alfabetização de adultos constituída na UFMG e os seus idealizadores. Conforme já descrito no capítulo 1 deste estudo132, o grupo de pesquisa que deu início à atividade de alfabetização de adultos na UFMG era composto por professores da FALE interessados em compreender o papel dos conhecimentos lingüísticos do adulto analfabeto no processo de alfabetização. Acreditamos que essa associação direta com o projeto Alfabetização de Adultos, sobretudo, com o professor Daniel Alvarenga deve-se ao fato de o pesquisador ter sido o responsável pela coordenação da turma-piloto e também de sua participação na turma, juntamente com uma bolsista de graduação, ter possibilitado a criação de um vínculo afetivo com os alunos. Essa hipótese ganha sustentação a partir da leitura do fragmento a seguir, em que Davi expõe sua opinião sobre Daniel Alvarenga, considerado por ele um professor 132 Ver páginas 29-30. 198 dedicado. Enquanto a festa de confraternização na turma-piloto, com a participação do referido professor, foi lembrada com satisfação, seu falecimento foi lembrado com pesar: Davi: Seu Daniel, ele estudava língua, né? Ele era professor de línguas... Ele... Ele... Já é até falecido (...) Da festinha... Não sei se eu tenho a fita (de vídeo) lá (em casa) ainda, da festinha que ele fez pra nós (...) Seu Antônio, tava com (a fita de vídeo)... Seu... Esse menino do ICEX que também tava... Pesq.: O José? Davi: É o José... (...) Depois fiquei sabendo que ele (Daniel) tinha falecido, fiquei muito chateado, porque ele era um professor muito dedicado... Pode-se observar que, nesse momento, Davi refere-se a José como um dos colegas da antiga turma-piloto e que, possivelmente, seria um dos detentores de uma fita de vídeo em que foram gravadas imagens da festa de confraternização na turma de alfabetização. Essa fita, infelizmente, não pôde ser recuperada, entretanto a lembrança da participação do colega no projeto, conforme a própria confirmação de José no relato abaixo, nos permite concluir que ambos tiveram um contato mais próximo com o professor Daniel Alvarenga: . José: Coordenador... Ele (Daniel Alvarenga) pode ter sido um coordenador (...) Mas ele nunca deu aula. Ele ia lá (na turma de alfabetização). Pesq.: Visitava? José: Visitava nozi... Ia na sala, conversava, porque ele era gente muito, gente boa, entendeu? Além de confirmar a participação de Davi, Lineu e José no projeto Alfabetização de Adultos, interessou-nos apreender a maneira como o trabalho de alfabetização era conduzido na turma-piloto. Comecemos pela concepção de alfabetização defendida pelo grupo de pesquisa da FALE. Conforme já destacamos, os fundamentos teóricos que orientaram a proposta de trabalho na turma de alfabetização de adultos foram sistematizados num artigo produzido por Daniel Alvarenga, no ano de 1988, momento em que os primeiros resultados da pesquisa foram divulgados. O título do artigo “Leitura e escrita: dois processos distintos” desde já apontava a 199 concepção de alfabetização subjacente à proposta de trabalho na turma-piloto: do ponto de vista do autor, o ensino da leitura e da escrita deveria ser conduzido de modo que a aquisição da leitura deveria preceder à da escrita, dada a natureza distinta de ambos os processos. O ponto de partida de Alvarenga (1988) em defesa dessa tese foi a crítica dirigida à maneira como a atividade de alfabetização normalmente costuma ser desencadeada no Brasil. De acordo com o autor, “faz parte da tradição escolar brasileira a concepção de que os processos de leitura e escrita devem ser considerados conjuntamente e trabalhados na mesma ordem e velocidade” (p.27) havendo, nesse sentido, um princípio implícito na prática educativa de que “tudo o que se ensina a ler ensina-se, imediatamente, a escrever” (p.27). Esse princípio foi criticado por Alvarenga, que recorreu ao pensamento de Emília Ferreiro a fim de dar sustentação às suas idéias. No trabalho intitulado “A representação da linguagem e o processo de alfabetização”, presente na edição de fevereiro de 1985 da Revista Cadernos de Pesquisa133, Ferreiro destaca que, na tradição norte-americana, o ensino da leitura normalmente antecede o da escrita, diferentemente do que se observa nos países da América Latina, em que os dois processos são desenvolvidos concomitantemente. Essa constatação abriu precedentes para que Alvarenga apresentasse algumas diferenças entre a leitura e a escrita, os quais, segundo o próprio pesquisador, “não são novos e nem nossos” (p.28). Deter-nos-emos, a seguir, a uma breve discussão dessas diferenças. De acordo com Alvarenga, basicamente são dois os aspectos que diferenciam a leitura da escrita: o primeiro diz respeito à direção de cada processo134 e o segundo está relacionado à natureza das regras daí 133 FERREIRO, Emília. A representação da linguagem e o processo de alfabetização. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: (52), fev.1985. 134 O autor esclarece que os processos de leitura e de escrita “(...) têm, por natureza e definição, três momentos: a entrada, o processamento da informação e a saída” (p.28) Assim, no que se refere a leitura, a entrada é a letra – que organizadas compõem sílabas, palavras, frase e texto – o processamento é a decodificação – que diz respeito a apreensão e compreensão de elementos visuais bem como a construção de sentidos – e a saída são os sons como unidade mínima da cadeia sonora ou a imagem mental desses sons. Quanto aos processos de escrita, a situação se inverte. Inicialmente temos o som ou imagem mental do som representando a entrada, o processamento é a codificação, ou seja, a transformação de fonemas em grafemas e a saída é a letra – que unidas compõem as sílabas, as palavras, as frases e o texto. A principal diferença apontada por Alvarenga nos processos de leitura e de 200 decorrentes. Enquanto a leitura (...) é um processo de transformação de informações visuais em imagens mentais, externalizáveis na cadeia sonora, a escrita (...) é um processo de transformação de imagens mentais em informações visuais, externalizadas na cadeia gráfica (p.28). Tendo em vista os diferentes caminhos percorridos nos processos de leitura e de escrita, há que considerar as regras de decodificação para a leitura e as regras de codificação para a escrita. No que se refere à leitura, as regras para a decodificação são gerais135 e, portanto, não comportam exceções136; já com relação à escrita, o processo se inverte, uma vez que a codificação envolve, obrigatoriamente, o conhecimento de algumas regras do código escrito, mas que, na maioria das vezes, engloba convenções e arbitrariedades ortográficas137. Em outras palavras, ao final da década de 1980, Alvarenga defendeu a tese de que, se existem regras fixas para a leitura, isso não ocorre com a mesma intensidade com a escrita e, diante desse fato, o ato de ler não pressupõe a memorização de palavras e sim o reconhecimento e aplicação dessas regras. Com relação à escrita, “em todos os casos não controlados por regras, a aprendizagem se faz palavra por palavra” (p.29); isso implica, na visão do autor, um maior esforço por parte do aprendiz inserido no processo de alfabetização. Concluindo: Essa diferença de natureza entre leitura e escrita faz daquela um processo – do ponto de vista da aprendizagem – muito mais simples do que o processo de escrita. Se a leitura, na sua quase totalidade, é controlada por regras, o mesmo não ocorre com a escrita. Embora haja também regras, essas são, na escrita, em número bem mais reduzido que na leitura, deixando espaço aberto para um grande número de escrita é que os primeiros são submetidos a regras gerais e fixas enquanto que os segundos, apesar da existência de regras, ocorre em sua maioria a convenções e arbitrariedades ortográficas do código escrito (ver ALVARENGA, 1988, p.29). 135 Como exemplo, Alvarenga cita o caso da letra S que, no âmbito da leitura, está submetida a duas regras básicas: entre vogais orais e antes de letra que representa um fone sonoro – caSa, EliSa, meSmo – o som é [Z] e nos outros casos – Sapo, Serpente, paSSa – é [S]. Tais regras são válidas mesmo em situações em que se observa erro de escrita, como, por exemplo, Senoura e Sinema (ver ALVARENGA, 1988, p.29). 136 Alvarenga esclarece que, “com exceção de certas ocorrências de X, todas as unidades gráficas têm valores gerais e fixos no ato de leitura” (ver ALVARENGA, 1988, p.29). 137 As regras de escrita para a letra S envolvem, segundo Alvarenga, maior número de arbitrariedades do que necessariamente regras fixas. A relação [S] há apenas uma única regra de ortografia, sem exceção, que é S de início de palavra antes das vogais a, o u e no caso da relação [S] S ~ Z, em final de palavras, há alguns controles morfológicos: substantivos abstratos derivados de adjetivos – escasseZ, timideZ –; verbos que apresentam Z no infinitivo – faZ, traZ –; e o plural dos nomes grafado com S – páS, bonéS. Alvarenga finaliza dizendo que “nos outros casos não há, sincronicamente, nenhuma regra ortográfica” (ver ALVARENGA, 1988, p.29). 201 arbitrariedades que sobrecarregarão a memória e dificultarão, portanto, a aprendizagem, fazendo da escrita um processo lento e demorado, muito mais do que a leitura (Pp.28-29). Ao defender a idéia de que a aprendizagem da leitura deve preceder à da escrita, dada a maior complexidade da segunda em relação à primeira, Alvarenga (1988) esclareceu que esses argumentos são resultados da reflexão e sistematização a partir da prática na sala de aula, prática essa vivenciada na turma-piloto de alfabetização, alocada na Faculdade de Letras. Conforme declaração do pesquisador: Os pontos de vista desenvolvidos e defendidos neste artigo são o resultado de parte das reflexões feitas no projeto “Alfabetização de adultos”, desenvolvido na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. A necessidade de analisar os processos de leitura e escrita separadamente decorreu de algumas dificuldades de aprendizagem observadas numa turma de alfabetização de funcionários da UFMG (p.28). Num primeiro momento, Alvarenga chega a relativizar suas colocações, ao dizer que não propõe, necessariamente, a dissociação entre leitura e escrita na prática cotidiana da sala de aula. A intenção era de apenas “(...) colocar alguns fatos estruturais e conjunturais que nos obrigam a reavaliar as relações entre esses dois processos” (p.27). Assim, o autor reconhece que o ensino da leitura e da escrita pode ocorrer paralelamente, no entanto, apesar de não negar o princípio da aprendizagem concomitante, manteve a posição de que, por se tratar de dois processos distintos, o objeto da aprendizagem não será o mesmo do ponto de vista da leitura e da escrita. Nesse sentido, de acordo com Alvarenga, a aprendizagem da leitura sempre estará num ponto mais avançado do que a da escrita: De tudo o que foi exposto até aqui, não se depreende, necessariamente, a conclusão de que a leitura e a escrita devam ser tratadas separadamente no tempo. Leitura e escrita podem até ocorrer lado a lado, num mesmo momento, mas certamente, se isso acontecer, o objeto de aprendizagem, nos dois processos, não será exatamente o mesmo. Pode-se, por exemplo, estar em um ponto na leitura e noutro na escrita. Esses dois processos podem ocorrer juntos, mas certamente não poderão estar trabalhando os mesmos elementos. A leitura estará sempre à frente da escrita, o que fará daquela um elemento auxiliar na aprendizagem desta (p.30). 202 Entretanto, apesar dessa tentativa de relativizar a questão, Alvarenga foi categórico ao dizer que, com base nas observações na turma-piloto, os pesquisadores reconheceram a necessidade de instituir uma alfabetização que se inicia com a aquisição da leitura e, somente após uma maior familiaridade com esse objeto da aprendizagem, o ensino da escrita seria iniciado. Mais do que isso: No caso de adultos, temos certa tranqüilidade para afirmar que a leitura deve preceder integralmente a escrita. Isso significa que, na alfabetização de adultos, estamos defendendo a proposta de que a aprendizagem da leitura se dê num determinado tempo e a da escrita num outro tempo posterior. Essa separação radical se sustenta, no nosso entender, por razões teóricas e práticas. Do ponto de vista teórico (...) a facilidade maior do processo de leitura (quase tudo é controlado por regras) faz com que se domine a leitura num tempo relativamente curto, o que não ocorreria se ela fosse tratada paralelamente à escrita. Do ponto de vista prático (nossa experiência com adultos em processo de alfabetização tem-nos indicado essa direção), a leitura é, no dia-a-dia, muito mais importante do que a escrita. Qualquer pessoa assim o sabe: lemos, via de regra, muito mais do que escrevemos. Além disso, dominando a leitura, o adulto (no ex-analfabeto isso é fundamental) resolve a maior parte dos problemas diários que envolvem a escrita: toma-se ônibus, vai-se a qualquer endereço, lêem-se boletins informativos, instruções de trabalho, bilhetes, cartas, jornais, etc. por outro lado, poucas são as situações em que se escreve, na vida, especialmente para aqueles que, por tão longos anos, ficaram sem o domínio da língua escrita (p.30) (grifos nossos). Essa proposta de alfabetização pautada na separação dos processos de aquisição da leitura e da escrita deve ser analisada, tendo em vista o contexto histórico ao qual as reflexões de Alvarenga estão circunscritas. O modelo de ordenação lingüística proposto pelo grupo de pesquisa da FALE foi estabelecido na metade da década de 1980, momento em que não haviam sido realizados no Brasil estudos sobre o letramento. Na verdade, a palavra letramento, na época recentemente introduzida na língua portuguesa, ainda não era sequer dicionarizada e apenas começava a despontar como um novo fenômeno no campo da Educação e das Ciências Lingüísticas (Soares, 1998). Soares (2003), numa releitura do texto As muitas facetas da alfabetização, publicado em 1985 em Cadernos de Pesquisa, nos esclarece que as reflexões promovidas na época sobre o tema da alfabetização já anunciavam, sem ainda nomear, o conceito de letramento. A autora defendeu a tese de que era preciso diferenciar a aquisição e o desenvolvimento da língua 203 oral e escrita, ao contrário dos que atribuíam à alfabetização um significado demasiado abrangente138. Se, de um lado, a noção de aquisição do alfabeto remete diretamente à alfabetização, naquele momento não havia ainda um termo que denotasse a idéia de desenvolvimento da língua. Essa noção de desenvolvimento significa que o aprendizado da língua oral e escrita não se esgota com a alfabetização, uma vez que a aprendizagem da língua materna é um processo permanente, um continuum. Essas reflexões culminaram, posteriormente, no conceito de alfabetismo ou letramento, ambas as palavras de mesmo significado, sendo esta última a que se firmaria no discurso educacional (Soares, 2003). Para efeito de esclarecimento, o termo letramento aparece pela primeira vez em 1986, na obra de Mary Kato139 “No mundo da escrita: perspectiva psicolingüística”, entretanto, de acordo com Soares (1998), nesse estudo, a autora não chega a definir o termo, que é citado por diversas vezes ao longo desse trabalho. A primeira definição da palavra aparece no estudo de Tfouni (1988) 140, quando, então, a autora ensaia uma distinção de letramento com o termo alfabetização. Convém destacar que, com exceção da obra de Tfouni (1988), Alvarenga (1988) fez menção às obras de Soares (1985) e de Kato (1986) em seu artigo. As reflexões das autoras em questão serviram de base para a constituição do conceito de alfabetização adotado na turma-piloto. Alvarenga deixou claro que os argumentos apresentados em seu trabalho sobre as maneiras como devem ser conduzidas as atividades de alfabetização “coincidem com as posições já defendidas” (p.28) e reconheceu que ler e escrever deve ser entendido para além da decodificação de símbolos gráficos em sinais sonoros e percebidos como apreensão e compreensão de significados. Chamamos a atenção para a idéia de letramento subjacente ao 138 Na releitura de “As muitas facetas da alfabetização”, Soares critica a concepção de alfabetização percebida como um processo permanente que se estende por toda a vida. Para a autora, a alfabetização tem um sentido próprio e específico, que é o processo de aquisição do código escrito. Alfabetizar, nesse sentido, (...) significa adquirir a habilidade de codificar a língua oral em língua escrita (escrever) e de decodificar a língua escrita em língua oral (ler) (Pp.15-16) é, portanto, um processo com início, meio e fim, ao contrário do desenvolvimento da língua oral e escrita, que não se esgota com a aprendizagem da leitura e da escrita e que está relacionado ao conceito de letramento (ver em SOARES, 2003, Pp.15-16). 139 KATO, Mary (1986) No mundo da escrita: perspectiva psicolingüística. Ática. 140 TFOUNI, Leda Verdiani (1988) Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Pontes. 204 conceito de alfabetização desenvolvido por Soares (1985) e que Alvarenga cita em seu artigo: Uma teoria coerente da alfabetização deverá basear-se num conceito desse processo suficientemente abrangente para incluir a abordagem “mecânica” do ler/escrever, o enfoque da língua escrita como um meio de expressão/compreensão, com especificidade e autonomia em relação à língua oral, e, ainda, os determinantes sociais das funções e fins da aprendizagem da língua escrita (Alvarenga apud Soares, 1988, p.28). Quanto ao ato de ler, Alvarenga afirma que as reflexões de Kato (1986) nos orientam sobre as diversas teorias que abordam o problema da leitura: Para responder à pergunta ‘o que fazemos quando lemos’, examinamos as várias propostas de modelos de leitura, desde aquela que a vê apenas como um ato de decodificação sonora até aquelas que a vêem como um ato de identificação das intenções do autor e de reconstrução do plano de seu discurso. Embora este último se aproxime bastante do comportamento e dos processos de um leitor maduro, consideramos todos esses modelos como simulações de um tipo particular de estratégia do leitor. O leitor maduro, a nosso ver, vem adquirindo os processos cumulativamente, e o uso de cada um deles é uma função de vários fatores condicionantes, tais como sua maturidade, a complexidade do texto, o gênero, seu estilo individual, etc. (Alvarenga apud Kato, 1988, p.28). Em concordância com as idéias de Kato, Alvarenga afirma que, se, de um lado, o ato de ler não se reduz apenas à decodificação dos símbolos gráficos, uma vez que a atividade de leitura implica o conhecimento e a utilização pelo leitor de diferentes estratégias que visam à compreensão do objeto escrito, de outro, os usos dessas estratégias pressupõem uma maturidade do leitor para lidar com textos de maior complexidade. É através do acúmulo de experiências adquiridas no processo de leitura que o sujeito amplia seu saber sobre a escrita e torna-se capaz de ir além da decodificação dos símbolos gráficos, passando para um nível de leitura mais complexo, como a compreensão dos elementos implícitos ou mesmo externos ao texto. Entretanto, essa maturidade não se faz presente entre aqueles que se encontram num nível elementar de conhecimento sobre o sistema de escrita, portanto, o autor esclarece que o aspecto da leitura adotado pelos pesquisadores da FALE no trabalho na turma-piloto é aquele que remete ao processo inicial de aquisição da escrita, ou seja, à decodificação sonora: Após essas rápidas referências, podemos definir a “fatia” da leitura com a qual trabalhamos. Nossa preocupação se liga às primeiras fases da aprendizagem da leitura, nas quais os 205 leitores são ainda muito dependentes de estratégias ligadas diretamente à decodificação sonora. Não estamos, pois, trabalhando com o leitor maduro, mas com o aprendiz de leitura que, num primeiro momento, se vê obrigado a operar, mais diretamente, com as dificuldades envolvidas nas relações entre letras e sons. No que se refere à escrita, nossa preocupação aqui se relaciona, quase exclusivamente, à ortografia; na verdade, uma parte mínima (mais importante) no ato de escrever (Alvarenga, 1988, p.28). Nesse sentido, não desconsiderando que a atividade de leitura e de escrita ultrapassam o nível da decodificação e da codificação, o objetivo do grupo de pesquisa era lidar com os processos que desencadeiam a alfabetização. Os processos que visam ao desenvolvimento da língua escrita — que mais tarde é identificado como letramento — seriam trabalhados posteriormente, após a aquisição das habilidades básicas do ler e do escrever. Essa concepção de alfabetização se mostra, por exemplo, no depoimento de Davi. O ex-integrante da turma-piloto informou como o processo de alfabetização foi desenvolvido no projeto Alfabetização de Adultos e, conforme seu depoimento, é possível perceber claramente que o trabalho era conduzido, sobretudo, em direção à aquisição de leitura: Pesq.: (...) Você não entrou, por exemplo, no MOBRAL? Davi: Não... Tive no MOBRAL com o Daniel (...) Era como um MOBRAL... Era um livrinho que a gente tinha, fazia aquela cartilha (...) Fazia aquela letra tipo como se tivesse menino entrano no primeiro ano, tipo jardim assim (...) A gente começou foi... As cartilha assim... A gente ficamo... Fiquei um ano que eu alembro. (...) Pesq.: Você falou que (no projeto “Alfabetização de Adultos”) trabalhava assim, como se fosse o MOBRAL? Davi: É, quando começou, assim... Depois foi mudando... Pesq.: Como é que eram as aulas? Davi: Trazia aquelas letrinha pra gente e mostrava, né? E depois a gente tinha que fazer a montagem daquelas letrinhas. Pesq.: E naquela época você sabia ler, Davi? Davi: Não... Ah... Assim... Lê mesmo não, conhecia algumas letras, mas não... Não sabia. Então a gente fazia aquela montagem de letras, punha os nomes assim, depois ele embaraiava, desmanchava elas e depois mandava a gente formar. Aí dava os minutos pra gente formar aquilo pra ver a rapideza por que que... Se a gente tava desenvolvendo se a gente não tava. Aí ele marcava no relógio e dava aquilo pra gente. Quando terminava: “agora tá bom”, aí seguia e ele anotava (pequena pausa) quem levou mais tempo, quem anotou, quem 206 leu, quem conseguiu separar as letra melhor, e aí... Daí ele ia dando os exercício de acordo com o desenvolvimento da... Da pessoa... Ao referir-se à atividade “montagem de letras”, Davi nos ajuda a compor as bases do trabalho de alfabetização na turma-piloto: assim que as letras eram apresentadas aos alunos, estes realizavam a sua “montagem”; inicialmente formavam-se as sílabas e, posteriormente, palavras. Terminada essa fase de formação de palavras, ocorria a “desestruturação” destas, momento em que as letras eram “misturadas” para serem, posteriormente, reorganizadas. Nota-se que, ao longo desse processo de construção e reconstrução, as ações dos alunos eram monitoradas pelo pesquisador, que avaliava o desempenho dos estudantes no intuito de identificar “quem levou mais tempo, quem anotou, quem leu, quem conseguiu separar as letra melhor”. Consideramos que o verbo “anotar”, empregado no pretérito por Davi, indicia que, na turma de alfabetização, também foi dada a atenção ao processo de aquisição da escrita. Entretanto, podemos afirmar que o trabalho com a escrita ocorreu num momento posterior, fato explicitado não apenas em Alvarenga (1988), como também no próprio relatório de atividades da pesquisa desenvolvida na FALE, divulgado na seção Pesquisas em Andamento da Educação em Revista, de 1988. Nesse relatório, consta que a metodologia adotada no trabalho de alfabetização previa (...) desde o primeiro instante de alfabetização, a separação dos dois processos, de leitura e de escrita; a primeira precedendo integralmente a segunda (p.65) (grifo nosso). Com base nas informações descritas no relatório, é possível dizer que a atividade de escrita na turma-piloto se deu no segundo semestre de 1986, logo após a análise dos primeiros dados obtidos pelos pesquisadores. Observa-se que o trabalho foi organizado de modo que a aquisição da linguagem escrita pressupõe primeiramente a aquisição de alguns conhecimentos sobre a leitura, em detrimento da escrita, uma vez que, na visão dos pesquisadores, aprender a ler seria, a princípio, menos problemático do que aprender a escrever. Pode- se concluir que a concepção de alfabetização subjacente ao projeto Alfabetização de Adultos insere-se num modelo que parte do simples para o complexo. 207 Outro aspecto do depoimento de Davi que chamou a atenção se refere à associação feita pelo participante entre o projeto Alfabetização de Adultos e o MOBRAL. Davi não apenas diz que participou do “MOBRAL com o Daniel”, como também informou qual era o recurso didático utilizado no trabalho de alfabetização que, de certo modo, nos ajuda a compreender a razão dessa associação: segundo Davi, o projeto Alfabetização de Adultos “era como um MOBRAL”, uma vez que, durante as aulas, era utilizado “um livrinho”, que ele próprio considera ser uma “cartilha”. O seu depoimento revela também que as ações na turma-piloto eram realmente voltadas para a aquisição da tecnologia da escrita, mas que, do seu ponto de vista, significou a inserção num processo de aquisição da linguagem escrita como se fosse um “menino entrano no primeiro ano, tipo jardim assim”. As percepções de Davi nos instigam a compreender as convergências e as especificidades entre o projeto Alfabetização de Adultos e o MOBRAL, entretanto uma análise mais aprofundada visando comparar os formatos do projeto e do Movimento de Alfabetização ultrapassa os objetivos desta pesquisa. Além disso, não cabe aqui criticar a prática estabelecida no projeto Alfabetização de Adultos, nem mesmo discutir se a associação do ex-aluno da turma-piloto condiz com aquele contexto de alfabetização. Mesmo porque não se pode ignorar que o elemento para essa análise representa um ponto de vista de um sujeito que reporta para o presente as sensações e as imagens de um momento que certamente foi significativo para ele. Apenas julgamos pertinente demarcar a forte presença do MOBRAL – “(...) considerado como a maior ‘campanha de alfabetização’ já instituída” (Rocha, 2004, p.14) – no imaginário das pessoas, mesmo entre aquelas que não participaram como alunos do Programa. Na conversa a seguir, Davi informa que não partiu dele a iniciativa de estudar e explica que a sua inserção no projeto se deu após ser convidado a participar das aulas: Pesq.: Você procurou o projeto do Daniel, por quê? Davi: É... Quando eu... Não foi realmente eu que procurei... Na época, né? Foi na Universidade... É... Com... Os funcionários... Ai veio... Já em... De unidade, unidade... Chamando... Aí a gente resolveu: “Ah, vamo, vamo”... Aí... Aí liberaram a gente... 208 Davi também destacou que, além do apoio da Universidade que liberou os funcionários para as aulas, os chefes de departamento e os próprios colegas de trabalho também incentivaram a todos os interessados de participar do projeto de alfabetização. Esse incentivo mútuo que se estabeleceu, sobretudo, entre os funcionários foi significativo não apenas para Davi, mas para todos os sujeitos desta pesquisa. Suas falas indiciam que o estímulo dado pelo colega teve forte peso na decisão de ingressar no processo educativo. O depoimento de José ilustra essa questão: José: Ah (os colegas) comentava muito dava muito conselho um no outro. Pesq.: Dava conselho? Como que eram os conselhos? José: “Vamo lá que é bom, se ocê, se ocê ficar de hoje, se ocê começou hoje, você vai hoje, amanhã você não vai, você vai amanhã, depois você não vai, depois é ruim pro cê tem que ver se vai todo o dia” Isso era muito bom entendeu? Pesq.: Hunrum... José: Então trazia. Ah isso, isso até fora dos colegas de, de aula também fala isso com a gente. Encontrei muito: “Não, vai mesmo gente, vai mesmo”. O próprio encarregado ele pode ser o que for, mas ele sempre falava com o Lúcio né? Não sei se você conhece o Lúcio. Pesq.: Não. José: “Ô José deve de ir mesmo, deve de ir mesmo, deve de ir mesmo que isso é muito bom, isso... (...) Dava uma força isso aí... Dava uma força mesmo viu? Até fora dos colega lá. Lineu também confirma que houve uma chamada nas unidades acadêmicas no intuito de estimular os funcionários a participarem do projeto. Chama-nos a atenção o fato de o aluno afirmar que a inserção na turma-piloto ocorreu diante do seu interesse de se alfabetizar, uma vez que, na visão do participante, aquele que não sabe ler e escrever não é “senhor de si”: Pesq.: E por que que o senhor entrou no Projeto (de Alfabetização de Adultos?)? Por que que o senhor entrou na aula? Lineu: Por que que eu entrei? Pesq.: Por que que o senhor entrou? Lineu: Eu... Eu interessei pra gente ser maize... Mais senhor de si. (...) Igual eu tô te contando (o analfabeto) não é senhor de si... 209 Lineu, Davi e José disseram que estudaram no projeto Alfabetização de Adultos durante um ano, entretanto, isso não significou que deixaram de participar de outros projetos de alfabetização. Os sujeitos também estudaram no PAJA141, entre os anos de 1995 e 1998, e, posteriormente, no Proef-1. No depoimento a seguir, percebe-se a persistência de José que, movido pelo desejo de se alfabetizar, passou por diferentes experiências de escolarização, vivências essas que se iniciaram no MOBRAL e se encerraram no Proef-1: Pesq.: Então o senhor entrou no Mobral... José: É... Pesq.: Depois saiu... José: É... Pesq.: Aprendeu a assinar o nome. José: Depois passou um tempo que eu tava na Universidade, não sei que tempo não. Sei que passou um tempo... Pesq.: Aí o senhor foi pro projeto do professor Daniel Alvarenga... José: Do Daniel. Depois do Daniel acabou. Aí passou mais 20 ano... Pra depois vim esse projeto que já aí foi projeto igual você tá falando, “jovem e adulto”. Com base na análise dos dados coletados nas entrevistas, podemos afirmar que Davi, Lineu e José buscaram muito mais do que a alfabetização; no sentido estrito definido por Soares (1998), eles desejavam se inserir na cultura urbana letrada e fazer uso da leitura e da escrita com autonomia. Para alcançar esse objetivo, passaram por diferentes processos educativos dentro da Universidade, sendo que, a cada nova experiência, puderam ampliar seus conhecimentos sobre a linguagem escrita. Esses conhecimentos adquiridos, entretanto, não foram considerados suficientes, o que os levou a retornar às aulas, no Proef-1, como se observa na fala de José... Pesq.: Vinte anos depois... José: É... Pesq.: O senhor voltou... José: Voltei. Pesq.: E por que o senhor voltou? José: Ah eu queria aprender mais né? Porque eu aprendi, mas ainda tava muito ruim de leitura. Pesq.: O que o senhor queria aprender mais? 141 Sobre o Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos (PAJA), ver Capítulo 1, página 35-38. 210 José: Hein?... Aprender a ler, escrever. Pesq.: Porque o senhor não escrevia ainda, e não lia ainda? O pouquinho que o senhor tinha aprendido com o Daniel, na época do Daniel não era suficiente pro senhor? José: Nem pra ler não era muito suficiente ainda não. E de Davi... Davi: (...) Quando eu comecei a assinar o nome aí eu comecei a conhecer (os números)... Pesq.: E você aprendeu a assinar o nome foi na época do (Projeto Alfabetização de Adultos coordenado pelo professor) Daniel (Alvarenga) ou no projeto (Proef-1)? Davi: Não... Eu... Aprendi mesmo a... Assinar o meu nome quando eu tava no... No projeto aqui. Pesq.: Do Daniel ou... Davi: Do Daniel, do Daniel. Porque quando eu entrei aqui ((se referindo ao Proef-1)) eu... Assinar o nome eu já sabia, entendeu? Lê alguma coisa eu já... Já sabia, né? Pesq.: Hunrum... Davi: Só não... É... Põe as coisa em pauta em... Lugar certo não, né? As vez lia corrido... (...) misturava tudo, né? Apesar de reconhecerem que a experiência da alfabetização lhes possibilitou se relacionarem com o objeto escrito com maior intimidade, todos os participantes e, nesse momento podemos incluir também Alberto e Vander, consideram que ainda não atingiram o nível de aprendizagem desejado. Para eles, ainda é preciso desenvolver habilidades para que possam exercer plenamente as práticas de leitura e de escrita. A continuidade do diálogo abaixo revela que o desejo de José de se tornar um leitor/escritor competente ainda não foi concretizado, já que sua expectativa era poder ler com fluência e compreender o conteúdo dos textos lidos: Pesq.: E o que o senhor queria assim, ler e escrever pra quê? José: Hein? Pesq.: O senhor falou que não era suficiente... José: Não... Não é até hoje. Pesq.: Não é até hoje? José: Não é até hoje ainda... Pesq.: Hã... José: Entendeu? Eu queria... Eu tinha vontade de, de aprender... Pesq.: Hã... 211 José: Pra mim poder ler assim corretamente e não embarracar quase... Em nada que fosse, entendeu? Pesq.: O que que o senhor está chamando de embarracar? José: Hein? Pesq.: Que que é embarracar? José: Embarracar é assim... Você começa a ler e... Cê num... E não consegue entender o que que tem pra frente. Vander e Alberto foram os únicos que não vivenciaram a experiência da reescolarização na UFMG num período anterior ao Proef-1. Vander informou que tinha conhecimento dos projetos de alfabetização promovidos pela Universidade e lembrou-se de alguns colegas de trabalho, dentre eles José, que estudaram nas turmas tanto do projeto Alfabetização de Adultos, quanto do PAJA. Como os demais colegas, Vander também foi convidado a participar das aulas, mas disse que se recusou porque não se interessou, conforme o depoimento a seguir: Pesq.: A primeira vez que você entrou na aula na UFMG foi comigo (no Proef-1)? Vander: Foi uai... Pesq.: Não tinha entrado outras vezes não... Vander: Não. Aí é o tal negócio é... Tinha aqueles projetos bem antes, tinha as aulas. Pesq.: E o senhor ia? Vander: Não. Pesq.: Nunca foi... Vander: É... Iá um... Um mucado da turma ia quando era ali na... Na Fafich... Pesq.: Na Fafich. Vander: Um mucado de colega meu foi ali... O Oscar entrou lá, o seu José, Everton... Pesq.: Hunrum... Vander: Um mucado de gente entendeu? A... A... O... O... Ah, eu seu que foi um mucado de colega. Pesq.: E você foi chamado também? Vander: Fui... Pesq.: Por que que o senhor não foi? Vander: É o tal negócio que eu tô te falano pro cê... Aí eu falei assim aqui, pra mim parece que assim: “Ah, cê quer de saber de uma coisa... Num... Num me interessa muito e... Num... É pra mim”... Pesq.: Não interessava... Vander: Não. 212 As declarações de Vander nos instigaram a refletir sobre os motivos que o levaram a não participar das aulas. Sua fala indicia uma não identificação com o formato dos projetos que antecederam o Proef-1 que, conforme já destacamos, tinham como principal objetivo a alfabetização dos funcionários da Universidade. Essa idéia torna-se plausível quando analisamos a declaração de Vander, que diz que não se interessou pelas aulas, uma vez que, segundo suas próprias palavras, não “é pra mim”, ou seja, a proposta dos projetos não atendia as suas expectativas. Conforme já descrito nesta pesquisa142, se antes o termo alfabetização constituía um elemento central e, de certo modo, definidor dos projetos que antecederam o Proef-1, a partir da sua institucionalização, passa a compor uma de suas facetas. Essa alteração, aparentemente pouco expressiva, contribuiu para a ampliação do público atendido, visto que o termo alfabetização, embora possa ser entendido numa perspectiva mais ampla, tem, também, uma dimensão estigmatizante para jovens e adultos, visto que o seu oposto — analfabetismo, tomado em sentido latu, refere-se àquele que não sabe ler e escrever. Esse é um fato com que um grande número de jovens e adultos, que poderiam estar inseridos no projeto, não se sentiam identificados, pois já tinham domínio de habilidades iniciais de leitura e de escrita e não reconheciam, no projeto, um espaço possível e/ou para um processo de reescolarização (Maciel, Oliveira e Lúcio, 2005, p.1153). Foi o que se observou nas conversas com Vander, que não se percebia como analfabeto. Na verdade, o objetivo de Vander não era a aquisição da tecnologia da escrita, ou seja, a alfabetização no sentido estrito e sim o desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita. Percebe-se, na conversa a seguir, que Vander tinha o receio de se expor numa turma de alfabetização, sobretudo, por causa da sua idade. Nesse sentido, seu ingresso na escola da Universidade foi durante muito tempo adiado, devido ao medo de passar vergonha de assumir a condição daquele que não sabe, ou daquele que não ingressou na escola no tempo considerado apropriado: Pesq.: E por que não estudou? 142 Ver Capítulo 1, página 39. 213 Vander: Aí... É o tal negócio que ocê fica naquela porque: “Amanhã eu vou, amanhã eu vou” e o tempo vai passando, passando, né? E... Que vê... E aí antes disso aí, bem tempo, mas isso é bem antes desse projeto (Proef-1) aí, há muitos anos atrás, não é da agora não, bem tempo... Aí, antes surgiu um projeto lá na... Na... Lá na, na... Na UFMG pra alfabetização, né? Então só que... Eu pra mim nunca... ((bate as mãos)) Pesq.: Não fazia falta não? Vander: Não... Eu achava que não. Pesq.: Cê achava que não. Vander: Pra mim não... (...) Vander: Mas ficava naquela... Pesq.: Naquela como? Vander: Em dúvida, entendeu? Pesq.: E o que que movia... Vander: Pela minha idade... Pela minha idade... Falei assim: “Ah... Eu num sei...” Ficava naquela: “É feio”... Logo após a sua institucionalização, o Proef-1 passa a atender não apenas as pessoas em processo de alfabetização, mas também aquelas interessadas no processo de reescolarização, correspondendo aos quatro primeiros anos de escolarização. É quando Vander se insere no projeto no intuito de desenvolver, principalmente, a habilidade de escrita que, na sua avaliação, era a prática mais difícil de ser exercida. Entretanto, como se observa abaixo, o seu receio de retornar à escola depois de muitos anos ainda era grande: Vander Aí igual o caso, por exemplo, desse projeto (Proef-1), desse projeto meu, nosso, por exemplo, lá que eu te falei... Eu num acabei de falar com você agora eu tô assim: “como que eu ia entrar na sala de aula”? Se eu não imaginava, num pensava como? No dia que eu vi ocê... Lá assim... Eu entrei... Pesq.: O que você sentiu quando me viu? Vander: Com vergonha! Apesar desse receio, a identificação com o novo formato do projeto fez com que Vander avaliasse seu ponto de vista sobre o retorno à escola. Além disso, o estímulo que recebeu dos colegas de trabalho também influenciou a sua decisão de participar das aulas. Observa-se, no depoimento abaixo, que 214 Vander ficou estimulado ao perceber que seus colegas também se inscreveram no projeto: Pesq.: Então quer dizer que o senhor entrou na aula comigo pra quê? Vander: Hã? Pesq.: Que antes o senhor não quis entrar... Vander: É... (...) Vander: (os colegas de trabalho foram) Fazer a ficha (de inscrição). Aí eu vi... Depois eu vi o... Eu vi quem fazer? Antes disso... Eu vi um mucado de gente fazendo... Aí nesse período que... Que eu vi, aí eu animei também. No discurso a seguir, Vander se mostra uma pessoa ciente de que o ensino voltado para o público jovem e adulto é um direito de todos aqueles que não tiveram acesso à escola: Vander: Mas eu... Eu tem hora que eu fico vendo... Acompanho muito o... O Jornal, esses programa de televisão, por exemplo, a gente vê assim, entendeu? Aí eu vejo muitas notícia falo assim: “Ah, cê quer saber de uma coisa?” Um dia é... Falei assim... Naquele início, naquele dia que entrou... Naquele... Março quando ocê... A primeira vez que eu fui ali (no Proef-1) na UFMG... Aí eu peguei e falei assim: “Ah, cê quer saber de uma coisa, vou... Vou deixar esse negócio de... De ficar pensando besteira, bobagem que isso aí num... Tô vendo tanta gente de idade... Freqüentar sala de aula... Foi: “Por que que eu não vou também”? É o mérito nosso... A experiência da reescolarização de Alberto, na UFMG, também ocorreu somente no Proef-1, entretanto, ao contrário de Vander, cujo ingresso se deu tardiamente por não se identificar com o formato do projeto na sua constituição inicial, Alberto, na verdade, não teve conhecimento das atividades de alfabetização promovidas na Universidade. Somente quando foi feita a divulgação do Proef-1 na Escola de Educação Física, sua unidade de trabalho, ele se viu diante da possibilidade de voltar a estudar. Novamente, observa-se que o ingresso no projeto partiu de uma iniciativa externa ao sujeito que, incentivado a participar e, ao mesmo tempo, apoiado pelo departamento em que trabalha e pelos colegas de trabalho, se insere no processo educativo: Pesq.: Quando o senhor entrou no projeto (Proef-1) o senhor... Como que você entrou? Alguém falou pro senhor, foi você mesmo que procurou... 215 Alberto: Não, eles (os monitores-professores) veio aqui e fez a inscrição... Pesq.: O pessoal do projeto? Alberto: Isso. Pesq.: Vieram aqui... Alberto: É assim se tinha aluno aqui... Funcionário que interessava estudar entendeu? Pesq.: Hãrã... Alberto: É... Aí nós pegou tomou saber a possibilidade da hora... Né? Aí pegou explicou pra nós entendeu? Que era meio horário... De dia... Aí pegou nós interessou... Chama-nos a atenção o fato de os egressos considerarem que a experiência da escolarização no Campus lhes possibilitou muito mais do que a alfabetização, mas, sobretudo, a apropriação do conhecimento. E conhecimento é aqui entendido tanto como ter acesso à informação e construir uma consciência crítica sobre o mundo, quanto tomar conhecimento do outro. A inserção nos projetos de EJA significou para os participantes poder se inserir num grupo e se reconhecer como parte integrante desse grupo. O dia-a-dia da lida os impedia, muitas vezes, de interagir com o outro para além da esfera do trabalho e de conhecer sua história de vida, que normalmente, se assemelha às suas próprias experiências. Fora da sala de aula, o outro era apenas o colega de trabalho, com o qual, devido à pressa e aos problemas impostos pelo cotidiano, não estabelecia maiores vínculos. Todos os participantes afirmaram que algumas das aprendizagens mais significativas foram: conhecer, ouvir e respeitar o outro. A sala de aula constitui-se num espaço de interação e troca de experiências, ultrapassando o âmbito da aprendizagem da língua escrita e se tornando, principalmente, um lugar em que se aprende a se relacionar com o outro. O depoimento de Alberto ilustra essa questão: Pesq.: Tem mais coisas que o senhor faz hoje e não fazia antes? Alberto: (pausa) Ó eu... Pra ser sincero a verdade... Eu respeitava os colega, entendeu? Tratar a pessoa muito bem. Isso também me ensinou demais... Entendeu? Pesq.: É mesmo? No projeto? Alberto: Isso... Também era muito... Meio... Meio casca grossa memo, num sabia nada... Entendeu? Pesq.: Ah, o senhor era mais... Pavio curto? Alberto: É... Isso. 216 (...) Alberto: Que o negócio é esse ó... Aqui (no Campus) a gente trabalha dia-a-dia... Pesq.: Hãrã.. Alberto: A gente não tinha uns... Uns conhecimento com os companheiro... É igual gente boa igual o... Davi, o Oscar, o Fabrício, outros mais entendeu? Aí através da aula como eles estudava junto também, a gente passou a tomar conhecimento com os próprio colega de serviço... Pesq.: Conhecimento do quê? Alberto: Assim por que eles trabalha pra lá, a gente trabalha pra cá... Pesq.: Separado... Alberto: Isso... Separado... Pesq.: Passou a conviver... Alberto: Isso... Da gente... Da gente... Estudar a gente foi conviver a gente ficou sabendo quem é as pessoa... Entendeu? Também percebemos, no discurso de Davi, a seguir, que o dia-a-dia do trabalhador aprisiona cada um deles em seu mundo: Davi: (...) Aquele esforço total que vocês (monitores-professores) tinha, tanto uma parte como da outra como vocês aprendia como também aprendia a conviver com os outro, porque você aprende a muito a conviver com os outro. Eu ganhei muita coisa, igual o Alberto também fala, a gente aprendeu muita coisa com isso porque a gente... Ó quanta coisa que me ajudou, que a gente conheceu as pessoa, ter conhecimento... Pesq.: Cê fala isso assim é porque antes você não tinha muito conhecimento? Davi: Ficava isolado, né? Pesq.: Isolado como? Davi: Uai quantos anos tem que eu trabalho dentro da Universidade? Vai fazer 25 ano mais ou menos. E... E... A gente ficava só no buraco do Horto ali. Dali pra casa de casa pra aqui. No fragmento abaixo, José nos mostra o quanto essa pressão à qual o trabalhador é submetido interferiu diretamente no seu desempenho nas aulas: Pesq.: (...) E lá (no projeto de alfabetização da UFMG) o senhor aprendeu... José: Lá aprendi ler um pouquinho... Um pouquinho porque foi... pouc... pouc... Foi bem tempo... Mas é... Como eu falei... A gente lembrar depois de 30 ano, sem ter noção nem nada, entendeu? A gente não aprende porque a gente fica preocupado. E naquela época ainda tava meio ruim a situação, então preocupava muito é... De... É de... É de ir pro serviço e vortar. Então quer dizer que a gente estudava e estudava, mas não pegava tudo. 217 Pesq.: Mas o senhor aprendeu muita coisa, ou pouca coisa? Como que foi? O que o senhor aprendeu naquela época? José: No entender eu aprendi bastante coisa. Aprendi a conversar melhor um pouco... Pesq.: É mesmo? José: Se abrir um pouco... Entendeu? Entretanto, mesmo com todas as dificuldades por que passou, José avalia que aprendeu muito, principalmente, a se expressar melhor e a se abrir um pouco mais, já que era bastante tímido. Nesse sentido, podemos afirmar que, os sujeitos dessa pesquisa nos mostram que o processo de alfabetização foi um longo percurso para além da aquisição do código escrito, pois tiveram que construir novas identidades num mundo urbano em que as preocupações do dia-a-dia e a luta pela sobrevivência também compunham a realidade dos alfabetizandos. No tópico a seguir, veremos os significados construídos a partir dessas aprendizagens. A apropriação da linguagem escrita: os significados da alfabetização e do letramento dos egressos do Proef-1 Quando pensamos em termos de “diferentes lugares de construção do sujeito letrado”, deparamo-nos com o fato de que os conhecimentos sobre a escrita são apreendidos nas interações sociais estabelecidas entre os participantes de uma comunidade (Barton and Hamilton, 1998), o que contraria a própria idéia de que a escola é o único lugar social da aprendizagem da linguagem escrita (Soares, 2004). Entretanto, os contatos com os sujeitos desta pesquisa revelaram que, se, de um lado, a experiência num grande centro urbano letrado lhes permitiu a construção de conhecimentos sobre a escrita, de outro, a inserção em espaços educativos formais de aprendizagem foi fundamental para que adquirissem a tecnologia da escrita. É o que podemos perceber nas declarações de Alberto, abaixo: Alberto: (...) Até pra mim lê é a... Alguma coisa eu tenho muita dificulidade... Entendeu? A... Eu fiquei mais ou menos uma média de uns... Cinco ou seis ano tava dependendo dos outro pra poder... É... Sacar dinheiro em banco... Pesq.: É mesmo? 218 Alberto: Era... Até nisso eu tinha dificulidade, entendeu? Pesq.: E hoje o senhor tem essa dificuldade? Alberto: Hoje eu não tenho mais... Pesq.: Não? Alberto: Não. Pesq.: Quando é que o senhor passou a não ter mais dificuldade pra isso? Alberto: Ó, a aula de vocês... Depois que eu entrei na aula de vocês ajudou eu bastante porque eu interessei um pouco, comecei a soletrar... Muita coisa. Hoje muitas coisa eu já... Leio entendeu? Pesq.: Já lê. Alberto: Já. É... Assim esbarrando... Com meio... Meio gaguejando ainda... Consigo lê... Mas ai... Vou levando a vida... Pesq.: Mas antes não dava conta de... Alberto: Dava não. Observa-se que, segundo Alberto, a experiência da reescolarização na UFMG lhe permitiu desenvolver a tecnologia da escrita e, em decorrência da alfabetização, pôde fazer uso autônomo do caixa eletrônico. Se antes não era capaz de participar sozinho desse evento de letramento, hoje diz que não precisa recorrer à ajuda do outro para sacar o seu salário, o que para Alberto representa algo bastante significativo. Entretanto, apesar de ainda não dominar todas as capacidades necessárias para ler com fluência e compreensão, uma vez que, conforme seu depoimento, sua leitura ainda está centrada, sobretudo, na decodificação, isso parece não ser um problema para ele, já que os conhecimentos sobre a escrita que adquiriu têm lhe permitido realizar com autonomia as tarefas que, do seu ponto de vista, são as mais importantes. Apesar de ainda ler “... assim esbarrando (...) meio gaguejando ainda”, Alberto diz que vai “levando a vida”, pois já conquistou tudo aquilo que almejou desde a sua vinda para a capital: constituiu família, construiu sua casa própria, pôde garantir que os filhos estudassem, considera-se privilegiado por ser funcionário efetivo da UFMG. O participante diz estar ciente de que o seu nível de domínio da linguagem escrita ainda não lhe possibilita fazer uso desse objeto efetivamente, entretanto, não vê o fato de ainda depender da família como um empecilho em sua vida. Quando perguntado sobre a possibilidade de retornar à escola, Alberto deu a seguinte resposta à pesquisadora: 219 Alberto: Ó eu vou te falar com você... Pesq.: Hã… Alberto: (pausa) Muitas coisas a gente não aprende... Pesq.: Hum… Alberto: Isso também eu acho que isso depende da parte da gente por falta de interesse. (pausa) Entendeu? Quando eu... Que hoje é uma coisa tão moderna já tá sendo até... Pra você... Pro meu rapaz (filho) que tá na aula. Tá fazendo vários cursos. Eu até dou maior apoio nele eu falo com ele: “Você tem que estudar mesmo por que vocês tão chegando agora, a gente já tá indo, o que eu já tinha de fazer eu já fiz. Agora vocês têm muito futuro pela frente. Eu... Tô meio paralisado o que eu já fiz eu fiz, eu tô tranqüilo na minha. Eu dei sorte, tenho meu emprego, tenho a moradia, tenho... Não é muita coisa, mas dá pra... O que eu tinha de fazer eu já fiz. Agora você tão... Tem muito futuro pela frente entendeu tô meio paralisado o que eu já fiz, eu fiz, entendeu? Tô tranqüilo na minha. Dei sorte, tenho emprego, tenho minha moradia, tenho um bem assim... Não é muito coisa não, mas tenho algum que dá pra salvar... A pátria entendeu?” Como se observa, os conhecimentos adquiridos com a inserção no Proef-1 são considerados por Alberto suficientes para participar da vida social, seja na família, no trabalho, na comunidade. Seu discurso chama a atenção pelo fato de considerar que todas as conquistas na vida passam pelo interesse, ou seja, é preciso estar disposto a “correr atrás” para que se possa alcançar o que se deseja. E Alberto é categórico em dizer que não tem mais interesse de freqüentar a escola, uma vez que, em sua opinião, tem um desempenho razoável nas situações que lhe exigem o uso da escrita: semanalmente tenta a sorte nas loterias, assina o livro de ponto diariamente no trabalho, faz uso do caixa eletrônico, é capaz de ler as informações prescritas no seu contra-cheque e, às vezes, compra o jornal popular “Super Notícias” ou o jornal “Aqui”, para ver os resultados do futebol e as notícias policiais. No que se refere a este último, Alberto nos mostra que o sentido da alfabetização ultrapassa o valor pragmático da escrita, uma vez que também pratica a leitura sem desprendimento e como meio de lazer. 220 Na conversa a seguir, Alberto comenta sobre o jornal Aqui, que comprara no dia seguinte ao jogo do Atlético Mineiro, time para o qual torce. Alberto informou que normalmente aproveita a hora do almoço no trabalho ou durante o translado no ônibus para se distrair com o jornal. Chama a atenção o fato de o participante dizer que costuma comprar esse impresso para “ver”, “olhar” as notícias e não para “ler”, o que, de certo modo, indicia que a prática de leitura ainda não é exercida no sentido estrito. No entanto, o fato de Alberto não se ater a todos os detalhes do jornal — afinal, também não é dessa maneira que praticamos a leitura desse impresso? — não significa que devemos desqualificar a maneira como ele se apropria desse objeto. Vejamos o diálogo: Pesq.: O senhor compra o jornal... Alberto: É... Pesq.: Por quê? Alberto: Eu compro pra... Pra mim ver a área do esporte se o meu Galo perdeu, se ele ganhou... (...) Pesq.: E o que mais chamou atenção do senhor nesse jornal? Alberto: Ah, mas eu olho mais a parte do crime. Pesq.: Ah é e... E o que que você acha dessa parte do crime? Alberto: Ah... Algumas... Da... É horrorizante... Alguns... Já é acostumado o dia a dia... Figura 4 – Jornal popular “Aqui” - O baixo custo do jornal e o destaque dado ao esporte são alguns dos motivos que levam Alberto a adquiri-lo 221 Pesq.: Fala um pouquinho dessa leitura ai. Quando é que o senhor lê esse jornalzinho? Alberto: Ah eu... Assim quando eu tô... Na hora do almoço é... Vem dentro do ônibus se tiver mais tranqüilo eu... Da gente dá uma olhada: “Como é que tá o meu time”. “Num tá? “Tá”. “Perdeu”? “Não”. Então: “Ganhou”, “então valeu comprar o jornal”. Pesq.: Ah quando o time ganhou... Alberto: É. Mas eu gosto de comprar é na segunda e na quarta. Pesq.: Por quê? Alberto: Por que é o... É... Não, na segunda e na quinta. Para mim dá o... Esporte. Quando o Galo joga na quarta eu num... Não vou ver (na TV) não... Aí eu falo: “Não, hoje eu vou saber se o meu time ganhou”. Pesq.: Hãrã. Alberto: Né ai... Fico beleza. Aí vou pra área do... Do crime. Figura 5 – Folhas de aposta, comprovantes de jogos lotéricos e anotações de números encontrados no local de trabalho de Alberto Mesmo quando indagado de outras situações em que ainda hoje precisa ser ajudado, Alberto não percebe essa dependência como um problema. De acordo com o participante, a solução está em recorrer sempre às pessoas conhecidas e confiáveis quando precisa resolver algum assunto importante, como, por exemplo, a leitura de uma carta, de um contrato ou o preenchimento de um cheque. É o que se observa no fragmento a seguir, quando estabelecemos um diálogo sobre o termo de consentimento para participar da pesquisa: Alberto: (...) Se a pessoa chegava e me entregava um documento e falasse: “Aqui ó o documento ó, você assina o seu nome” ((simula que assina um papel, demonstrando ser capaz de exercer essa prática de escrita)). Agora se mandasse eu lê o que eu tava assinando por baixo ali, não sabia... Não sabia não, eu não sei (risos) entendeu? Pesq: Não sabia... Alberto: Não sabia. Pesq: Não sei? 222 Alberto: Não, quer dizer... (pausa) Pesq: Quer dizer que o senhor não sabe hoje? Alberto: Alguma... Por que... É igual você não foi correta comigo? Pesq: Hum... Alberto: O que que você fez? Pesq: Eu li o... O termo de... De aceitação... Alberto: Isso. Pesq: Para participar da pesquisa. Alberto: Pois é... É isso que... Entendeu? Pesq: Se eu tivesse pedido pra você assinar aqui sem eu ler... Alberto: Pela... (pausa) Pela boa pessoa que você é, pelo conhecimento que a gente tem com você, que a gente sabe que você não ia fazer maldade com a gente. Se você falasse: “Assina aqui”. Se eu fosse ler esse texto pra você eu não conseguiria. Aí eu podia usar assim com você, falar: “Ó, você me dá licença você me entrega esse papel vou pedir uma pessoa que sabe ler pra ler pra mim se eu posso concordar e possa assinar pra você”. Observa-se, nesse depoimento, que a relação de dependência é mantida na situação descrita, entretanto, para o participante isso não se constitui um problema, uma vez que, do seu ponto de vista, não é vergonhoso pedir ajuda e também não há riscos de ser prejudicado, quando essa ajuda é dada por pessoa de confiança. Alberto vê como problema apenas o fato de não poder tirar a carteira de motorista, um desejo antigo que não pôde ser concretizado. Ao afirmar, no depoimento abaixo, que a leitura não lhe faz falta, Alberto produz dois discursos contraditórios: de um lado, diz com pesar que hoje não pode ter um carro; de outro, diz que hoje em dia não é vantagem ter um documento de habilitação, dados os problemas que afetam os motoristas: Alberto: Não, até que de leitura não, leitura assim igual hoje eu falo que leitura... Mas... Ai... Hoje eu... Falo assim: Ah, não preciso de leitura entendeu? Mas hoje eu vejo e igual se eu tivesse uma leitura mais ou menos beleza hoje eu era... Ter o meu carro, minha carteira de motorista, hoje eu não tenho por causa de meus problema entendeu? Mas mesmo assim, mas hoje em dia pra ter carro é até mais difícil também. Você recebe uma multa, você tem problema com... Petróleo e tem problema com... IPVA e seguro. E eu pagando vale-transporte também eu não vou fazer nada disso. Pesq: Hunrum... Alberto: E... Uma mão lava a outra eu também não vou ter leitura pra isso, tô vivendo. 223 De modo semelhante a Alberto, os outros participantes desta pesquisa também têm se relacionado com o objeto escrito ora autonomamente, ora a partir de relações mediadas por outras pessoas. Entretanto, quando se diz que a experiência da reescolarização na UFMG lhes possibilitou o exercício autônomo de certas práticas da leitura e da escrita, é necessário destacar que a noção de autonomia é aqui entendida não do ponto de vista do domínio de determinados usos e funções da escrita – os eventos e as práticas de letramento exercidos pelos grupos sociais dominantes – e que são percebidos como as únicas apropriações possíveis e legítimas da escrita (Soares, 2004). A noção de autonomia a qual defendemos diz respeito aos diferentes modos de interagir com a linguagem escrita, tendo em vista as necessidades de uso nas relações estabelecidas no interior do grupo social do qual fazemos parte (Barton and Hamilton, 1998). Em outras palavras, ser autônomo significa responder às demandas de uso da leitura e da escrita, independente de as relações estabelecidas com o objeto escrito se enquadrarem ou não ao modelo de “sujeito letrado” valorizado pelos grupos dominantes. Miranda (1991), em seu estudo sobre os usos sociais da escrita no cotidiano de camadas populares, propõe uma análise dos significados da escrita para segmentos da população economicamente desfavorecidos. A partir de uma abordagem etnográfica, a autora situa a palavra escrita no contexto dos valores, das normas, da produção simbólica dos sujeitos. Constata-se que a escrita faz parte do conjunto de valores do grupo pesquisado, juntamente com a religiosidade, o trabalho, a comunicabilidade, a família. A leitura e a escrita se constituem em atividades mediadoras na construção do projeto de pessoa a ser alcançado, ultrapassando as funções informativa e comunicativa, ou seja, a autora desmistifica a existência única de um uso formal e pragmático da escrita e do seu papel enquanto mecanismo de ascensão social. Tomando por base as reflexões de Miranda (1991), percebemos que a escrita representa hoje para Lineu uma forma de expressar a sua religiosidade, não apenas porque com a alfabetização passou a ler a Bíblia, mas, sobretudo, porque encontrou na religião evangélica um modo de inserção na cultura escrita. Na juventude, apesar de ter sido criado num ambiente familiar evangélico, diz que era “desviado” da religião cristã por não praticá-la. Com a vinda para Belo Horizonte, decidiu seguir os preceitos evangélicos, passando a 224 se interessar pela leitura da Bíblia. Hoje sua maior satisfação é poder oferecer a sua residência para uma das diversas reuniões de evangélicos, as quais ocorrem todas as quintas-feiras em seu bairro. No depoimento abaixo, Lineu informa que, durante o estudo bíblico, coordenado pelo dirigente, é feita a leitura da Bíblia e de textos religiosos, leitura essa praticada, sobretudo, pelo dirigente, mas também aberta a todos os demais participantes: Pesq.: Você falou assim que tem reuniões toda quinta na sua casa? É pra leitura da Bíblia? Lineu: É... É estudo bíblico. Pesq.: E como é que é esse estudo? Quem é que vai lá fazer estudo Bíblico? Lineu: (...) Os irmão da igreja... (...) Pesq.: E como é que é esse estudo bíblico? Quem comanda? É o senhor que comanda? Porque o senhor é o dono da casa... Lineu: Não é não... Pesq.: Quem que organiza? O pastor... Lineu: Não é o pastor não. É... Porque essa igreja... (pequena pausa) A nossa igreja é uma igreja que... Essa reunião chama “reunião de célula”. (...) Lineu: Inclusive no... No começo era... Só trocou o nome... Mas era reunião familiar. Dispois passou pra discipulado. Agora é reunião... Agora chama reunião de célula... Da nossa igreja nas quinta-feira tem... Acho que já passou de cento e cinqüenta reunião assim... ((explica que todas as quintas-feiras, cerca de cento e cinqüenta casas do seu bairro realizam esse estudo bíblico)) (...) Pesq.: Então toda quinta tem cento e cinqüenta casas tendo a reunião. Lineu: Isto. Aqueles grupinho. Aqueles grupinho... Pesq.: E cada dia lê um trecho da Bíblia... Lineu: É. Cada dia lê um trecho. Pesq.: E quem que lê esse trecho da Bíblia? Lineu: Quem lê, quer dizer, tem o... O dirigente, o... O líder né? Pesq.: Hunrum... Lineu: Aí qualquer um pode lê. Ele... Ele... Manda lê... Lê pra... Capítulo tanto, versículo tanto... Eu... Eu tem hora que leio um pouquinho... Pesq.: O senhor lê? Lineu: É, leio um pouquinho... Aí... A vez ele (o dirigente) manda lê: “Cê... Procura aí capítulo tanto é... Verso tanto” e lê. Aí falo o versículo né? ((as passagens bíblicas são realmente lidas por Lineu ou recitadas de memória?)) 225 A participação em um desses encontros religiosos na casa de Lineu permitiu a observação de um evento de letramento — um encontro religioso — e a análise das práticas de leitura que se constituíram nesse lugar social. Conforme descrito por Miranda (1991), percebemos que a palavra escrita se constituiu, no contexto em que se insere Lineu, num instrumento mediador das interações entre os participantes e, contradizendo a visão grafocêntrica dos grupos dominantes, que delimitam os modos de uso da linguagem escrita, verificou-se um uso da escrita em função das reais demandas do grupo. Miranda (1991) observou, entre os moradores da comunidade em que pesquisou, níveis diferenciados de domínio das habilidades de leitura e de escrita, que vão desde a presença de pessoas que necessitam da mediação do outro para participar das práticas de uso da palavra escrita, até as que atingiram um nível mais autônomo de interação. Notificou-se, também, que a prática de leitura é mais recorrente na vida dos moradores em detrimento da escrita. Lê-se muito mais do que se escreve, no entanto, essa “leitura” não se enquadra no ideal de leitura concebido nos espaços legitimados. Não se lê necessariamente livros, mas uma infinidade de materiais impressos. O mesmo é observado no que se refere à escrita, prática esta menos recorrente que a leitura, mas existente, ocorrendo a partir da utilização de suportes e recursos gráficos que o meio social impõe e dirigidos a seus pares. Nesse sentido, enquanto evento de letramento, observou-se, naquele contexto, a leitura de um texto de cunho religioso (ver em anexo) pelo dirigente, leitura essa ouvida pelos demais presentes na reunião. No âmbito das práticas de letramento, diferentes sentidos e usos atribuídos à atividade de leitura foram percebidos: para Lineu e demais participantes evangélicos, as passagens lidas eram tomadas como verdade dogmática. Para o dirigente, a verbalização do texto, mais do que uma simples reprodução da linguagem escrita para a linguagem oral, se constitui numa forma de expor para o grupo essa verdade, não como algo vindo de si, mas a própria palavra de Deus. O lugar ocupado pela pesquisadora, que participou da reunião como convidada de Lineu, foi também o de ouvinte, mas não como membro de uma comunidade evangélica, mas como alguém que, com o olhar de fora, busca compreender as relações que ali se estabeleceram. 226 Cabe, ainda, destacar que os significados construídos pelos demais participantes evangélicos certamente diferenciaram dos sentidos construídos pela pesquisadora, durante a atividade de grupo: a minha presença naquele espaço decorreu do interesse de compreender os eventos e as práticas de letramento constituídos no grupo; já com relação aos demais participantes, o que moveu a reunião foi a própria religiosidade. Essa diferença de perspectiva, no entanto, não significou neutralidade por parte da pesquisadora, que também se emocionou, sobretudo, nos momentos de reflexão, quando o dirigente discursou sobre o sentido da vida e da morte, durante os testemunhos de alguns participantes, que agradeceram as conquistas e as mudanças de vida, e das justificativas dadas para as escolhas pelo novo caminho trilhado. Chamamos a atenção para o lugar social ocupado pelos participantes desse encontro religioso na relação com o objeto escrito: a leitura realizada pelo coordenador da reunião não se deu apenas porque o leitor tem boa fluência ou porque utiliza o tom de voz e entonação adequados, conforme descrito por Galvão (2002). Apesar de não negar a importância desses fatores para que a leitura coletiva possa ser exercida, é possível afirmar que esses elementos não se configuraram no principal critério de escolha do leitor. Mais do que saber ler com desenvoltura, o que definiu o leitor do texto bíblico foi o lugar ocupado pelo dirigente na esfera grupal: o dirigente é quem está autorizado a realizar a leitura das passagens bíblicas — apesar de não impedir que outras pessoas também a realizem — e é quem conduz as discussões no grupo. É importante destacar, também, o lugar ocupado por Lineu no âmbito das relações no grupo: o seu papel, naquele contexto, não é o de leitor; as suas responsabilidades estão relacionadas ao fato de ser o dono da casa e, portanto, assume o papel de receber os convidados. Além disso, por saber tocar violão, coube a Lineu fazer uso desse instrumento durante os cânticos, e é ele próprio quem sugere as músicas, todas de memória, e que foram localizadas por sua esposa Cláudia num pequeno livro de orações. Cláudia não pertence oficialmente ao grupo de evangélicos que visitam semanalmente a casa de Lineu, já que, nesses encontros, participam apenas homens. Nesse dia, no entanto, para que pudessem me receber (arrumar a casa, providenciar lanches), abriu-se a exceção para que ela se integrasse ao grupo. Por ser a 227 responsável pelos cânticos no grupo feminino do qual participa, Cláudia, neste dia, cantou, acompanhada de Lineu ao violão. A partir da análise do evento anterior, foi possível concluir que não apenas Lineu, mas todos os participantes desta pesquisa se envolvem a todo o momento em eventos e práticas de letramento, sejam aqueles ocorridos no trabalho, na igreja, na comunidade de que fazem parte, em casa, entre outros espaços. Isso porque Lineu, Vander, Davi, Alberto e José vivem numa sociedade letrada, em que a palavra escrita circula e seu uso ocorre em função das suas reais necessidades. Entretanto, como são adultos recentemente alfabetizados, é fato que ainda não dominam plenamente as habilidades de leitura e de escrita e, portanto, há situações em que não são capazes de exercê-las autonomamente. Lineu, por exemplo, reconhece que tem dificuldade de leitura de algumas passagens da Bíblia e, além disso, não realiza a leitura com fluência, seu maior desejo, conforme o fragmento abaixo: Lineu: E agora eu leio. Até que falei... Em vista daquilo que eu era... Já melhorou muito... Leio um pouquinho, tudo... Mas... É... De vagar. Agora se a gente aprendesse mais aí podia lê mais correto, né? Mais rápido. Pesq.: E o senhor entende o que tá escrito na Bíblia? Lineu: Alguma coisa. Pesq.: Alguma coisa? Lineu: Algumas coisa também.. Se lê assim... Num entende, né? Apesar de reconhecer que ainda apresenta dificuldades para ler, Lineu não se percebe como uma pessoa dependente do outro. Essa idéia pode, a princípio, parecer contraditória, já que o próprio sujeito afirmou que ainda recorre à esposa e aos filhos, principalmente, quando precisa escrever. Entretanto, a questão está em perceber em quais situações Lineu diz que não mais necessita da ajuda alheia para resolver seus próprios problemas, ou seja, é preciso delimitar a fronteira que separa a dependência e a autonomia do ponto de vista de cada participante. Podemos, então, problematizar: a partir de que momento cada participante assumiu o estatuto de sujeito letrado? A resposta para essa questão pode estar na identificação e na análise das situações em que a atividade de leitura e de escrita passou a ser exercida pelos participantes, sem 228 a presença de um mediador, ou quando a mediação com o outro se constituiu numa opção e não numa condição do sujeito. Para efeito de esclarecimento, tomemos outra situação envolvendo Lineu: nos primeiros anos vividos em Belo Horizonte, Lineu tinha dificuldades de realizar compras no supermercado, sozinho. Segundo o participante, para comprar um doce de leite, por exemplo, precisava identificar, entre as embalagens, aquela em que havia a figura que representa a marca do produto desejado; nesse caso, a partir da observação das ilustrações, selecionava o produto que apresentava o desenho de uma “vaquinha”. Apesar de essa estratégia de seleção ter lhe possibilitado a escolha do produto de seu interesse, Lineu não se percebia como uma pessoa autônoma, uma vez que seu desejo era ser capaz de identificar, a partir da leitura dos símbolos gráficos presentes nas embalagens, os produtos do seu interesse. Pode-se dizer que, do ponto de vista de Lineu, sua autonomia era limitada, já que nem sempre podia comprar tudo o que desejava por meio da identificação de figuras e de imagens presentes nas embalagens. Com exceção da lata de doce de leite e de alguns produtos familiares, Lineu, durante muito tempo, teve que escolher entre pedir ajuda aos atendentes dos estabelecimentos comerciais ou ter que fazer compras acompanhado de alguma pessoa da família, normalmente a sua esposa. Frente a essas duas possibilidades, Lineu costumava ficar com a segunda opção, por considerar constrangedor recorrer à ajuda de pessoas estranhas. Após a aquisição da tecnologia da escrita, a satisfação de Lineu não se restringiu ao fato de, ao se dirigir ao supermercado, poder escolher, a partir da leitura das informações presentes nas embalagens, o produto desejado, mas, sobretudo, de assumir, enquanto consumidor, um outro lugar nas relações estabelecidas nesse lugar social: aquele que é capaz de reconhecer e escolher, através da leitura, não apenas o doce de leite preferido, mas qualquer produto nas prateleiras. Do ponto de vista de Lineu, a linha divisória que separa a sua condição de analfabeto e de alfabetizado está na capacidade de realizar sozinho algumas tarefas que demandam o uso da leitura, como ir ao supermercado, embarcar no ônibus correto, ler o seu contracheque, dentre outras, uma vez que, com a alfabetização, deixou de depender, nessas situações, da mediação com o outro. Note-se, no depoimento abaixo, a ênfase 229 dada à inserção na escola na Universidade e às aprendizagens adquiridas nesse lugar social, como fundamentais para a aquisição da tecnologia da escrita: Lineu: Mas aí eu... Eu... Ia ir no supermercado, é... vez fazer compra. Aí eu queria comprar doce de leite (...) Queria comprar doce de leite... Aquele Itambé. Porque o Itambé tinha a vaquinha dum lado. Se não tivesse Itambé não tinha doce... Pesq.: Aí o senhor ao fazer a compra sabia que era o Itambé? Lineu: Não... Eu sabia que era ele por conta da... (vaquinha) Do... Do lado. (...) Lineu: Aí entrei na aula. Vai daqui vai dali quando... Um, um dia eu fui na casa da, da minha Cunhada lá no... No... Na Vila Nova Pampulha. Do vasculantezinho do barraquinho dela, eu tive lá, aí eu já tinha estudado um mucado, né? Já tinha aprendido alguma coisinha... De lá eu oiei lá perto da... Perto daquele ponto (ônibus) do... Do... (pausa) do (Bairro) Mantiqueira... Do ponto do Mantiqueira lá em cima... Lá em cima... Aí perto do vasculantezinho, o vasculante tava meio aberto assim ó ((faz sinal com as mãos))... De cá eu oiei lá em cima na... Numa casa lá e li: “padaria”. Eu: (pequena pausa) “Opa, eu já tô lendo!” (risos). Li padaria. Uai, aí quando é um dia, eu vô daqui lá passo no... No (supermercado) EPA pra comprar umas coisinha lá: “Ah, vou levar um doce de leite”. Aí cheguei procurei oiei... oiei... Não tinha... A vaquinha, não. Aí eu peguei uma, uma lata assim oiei: “doce de leite”. Uai tem sim uai! Aí eu levei... Outro aspecto dessa questão se refere não apenas à visão que Lineu passou a ter de si após ser alfabetizado, mas também a maneira como sua esposa e seus filhos passaram a percebê-lo: observamos que Lineu assumiu um novo lugar na esfera familiar, tornando-se uma pessoa mais independente, que passou a executar tarefas que, do seu ponto de vista, são consideradas simples, mas que antes não conseguia exercê-las autonomamente. A continuidade do depoimento abaixo nos mostra a maneira como Cláudia, esposa de Lineu, expõe sua opinião sobre o marido, antes e após a alfabetização. Observa-se que a percepção de Cláudia sobre o marido era de uma pessoa que, dada a condição de analfabeto, tinha, nesse sentido, a visão “tampada”, remetendo o analfabetismo à cegueira. Entretanto, a partir do momento em que Lineu é alfabetizado, Cláudia avalia a situação como um “choque”, algo novo que foi percebido por toda a família como uma mudança significativa na vida do esposo: 230 Cláudia: Ah (as dificuldades de Lineu) diminuíram muito agora ele tá muito mais tranqüilo... Pesq.: Você viu também mudança no jeito do seu Lineu? Cláudia: Ih... Muito... Pesq.: Lineu antes da escola e depois da escola? Cláudia: Nossa... Melhorou cem por cento... Pesq.: Melhorou em que sentido? Cláudia: Pra sair... Agora tem outro expediente pra sair, pra tomar ônibus, pra endereço... Pesq.: Hãrã... Cláudia: Pra encontrar tal lugar assim, na rua tal... Ele conhece o centro ele lê o nome lá das ruas... Pesq.: Hãrã... O senhor sentiu a diferença também seu Lineu? Lineu: Uai craro uai... Pesq.: Na sua vida? Lineu: Craro... Pesq.: Como um todo? Cláudia: Melhorou... Lineu: É. Numa das entrevistas que José nos concedeu, descobrimos que, do mesmo modo que Alberto, suas expectativas em torno da alfabetização estavam na possibilidade de tirar a carteira de motorista. José nutriu esse desejo durante muitos anos sem, no entanto, concretizá-lo. Uma de suas decepções é não poder dirigir o automóvel que comprou e que acabou deixando para seu filho caçula. Dentre os diversos materiais escritos presentes em sua residência, há um manual de legislação de trânsito que, de acordo com José, foi comprado por ele para que pudesse estudar. Ao ser perguntado se era capaz de ler o conteúdo presente no manual, José demonstrou dominar o conteúdo presente, sem, no entanto, ser capaz de realizar a leitura do texto no sentido estrito. José, entretanto, consegue reconhecer algumas palavras do texto, seja porque as memorizou, seja porque aprendeu a utilizar algumas estratégias de leitura, como, por exemplo, apoiar nas gravuras e nas imagens, bem como identificar letras e sílabas iniciais e finais de palavras. No fragmento abaixo, José explica como conseguia descobrir o significado das palavras contidas no manual de legislação: 231 José: A gente conseguia lê cê sabe como quê? Que tudo é pelo desenho... Os cavalete... Tem os cavalete com desenho... Os pirulito, os pirulito também põe. Então se tá aqui... Igual isso aqui é... ((aponta para o forro da mesa da cozinha que contém estampas de frutas)) É uma... A... Um pé de fruta é uma uva né? Cê sabe que aqui tá escrito uva. Então a gente pega... A gente pega mais, lê pelo desenho... Quem não sabe (ler)... Entendeu? Pesq.: Aí o senhor olhava e sabia o que tava escrito por causa do desenho... José: É... A gente sabia por conta do desenho... O desenho tem isso, o pirulito também tem ele... E os desenho... Tinha o... Os desenho dos pirulito e o nome dele por cima.... Aí eu sabia que é... A gente lia... Entretanto José deixa claro que nem todos são capazes de ler desse modo, uma vez que a estratégia de leitura é um conhecimento que precisa ser aprendido: José: Mas não é todo mundo que entende. Isso é... É o meu caso, né? Pesq.: Ah, o senhor entendia... José: Entendia assim né? Pesq.: E tem gente que não entendia não... José: É. ((E prossegue a explicação, dando outro exemplo)) Aqui é uma árvore, uma árvore tem o desenho da árvore num tem? Pesq.: Tem. José: Então aqui por cima se tem um letreiro tem o nome dela. Aí dá pra gente lê mais... Tranqüilo... Pesq.: Mais tranqüilo... José: Mas não que a gente sabia (ler)... (risos) Pesq.: Não sabia? (risos) José: Cê entendeu como é que é? Outro aspecto a ser considerado é que José tem consciência de que há limites para o modo como realiza a leitura, uma vez que nem sempre é possível descobrir o que está registrado. Na continuidade do diálogo, o participante revela que a experiência de escolarização na Universidade lhe permitiu desenvolver essa estratégia de leitura e, ainda hoje, faz uso desse recurso sempre que apresenta alguma dificuldade para descobrir o conteúdo dos textos: Pesq.: E o senhor ainda lê assim hoje? 232 José: Eu, eu quando eu não entendo eu leio assim... Agora, muitas coisa eu num leio mais não. Vou direto... Pesq.: Agora já lê direto... José: Mas eu lia maize é pela iniciais... Ele falou: “Como é que ocê lê?” ”Iniciais...” Né? AVE. Então leio A... AVE... Pesq.: E quando era AVIÃO? José: Hein? Pesq.: E quando era AVIÃO? José: AVIÃO? Pesq.: É, porque AVE... AVIÃO... Como é que o senhor fazia? José: Ah por que... Porque tem um V e um ÃO... Agora, quem me ensinou lê, ensinou assim: “Ó seu José é muito fácil... Aqui isso aqui cê...”. Pesq.: Quem ensinou o senhor ler? José: “Significa aqui, isso significa assim, assim, assim...”. “Se o senhor tem dificuldade, o senhor leu as primeira que chama iniciais...” Pesq.: E quem te falou isso pro senhor? José: Próprios professore aqui (no projeto)... Algum que eu estudei com ele... Foi que eu estudei com eles... Eles já me deu isso aí... “Se ocê tem muita dificuldade que dá: ”DEPÓSITO: Tem o D e o T... DEPÓSITO. Pesq.: É. DE-PÓ-SI-TO. José: É... Pesq.: Aí tem o T... José: É. Mas só, eu só lia a... A primeira. Se eu lia a primeira eu sabia... Pesq.: E hoje? José: Hein? Hoje eu já leio direto... Depósito eu leio direto. É... Lê livro eu leio direto... Leio direto... Agora quando eu num... Tá meio dificultoso eu... Eu passo a procurar a primeira iniciais da... Do... Do nome. Cê viu como é que eu aprendi... Eu aprendi é assim, um pouquinho assim, né? Agora tem umas que dá... Hoje não, hoje leio uma carta, mais direta... É... Eu, eu entendo... É olha a... Conta de luz... Sem olhar a... A... A iniciais. Não precisa mais não. Agora quando eu tenho uma dificuldade, eu vou na iniciais primeiro pra mim poder ler o que tá... Estamos cientes de que o Proef-1 não deve ser colocado como o único lugar da aquisição dos saberes sobre a escrita, uma vez que os participantes, ao longo de suas trajetórias (dentro e fora da escola), construíram conhecimentos sobre os usos e as funções da escrita. Também consideramos prudente descartar o princípio do abandono da escola e propor a idéia de que, do ponto de vista dos sujeitos, houve a conclusão do curso, uma vez que cada participante, a seu modo, apropriou-se de alguns instrumentos 233 que o elevaram à categoria de letrado, ou seja, de pessoa capaz de exercer certas práticas de leitura e de escrita demandadas no seu meio social. Podemos, então, problematizar os possíveis significados de letramento para essas pessoas: pensando no letramento em termos de instrumento, autodenominamo-nos letrados, quando passamos a ser capazes de realizar determinadas tarefas no cotidiano – como pegar um ônibus correto, analisar o consumo de energia, realizar um depósito bancário, assinar o nome no livro de ponto no trabalho, escolher um produto no supermercado – sem que seja necessária a presença de uma pessoa que atuará como mediadora na relação com a escrita. Uma infinidade de situações pode ser aqui colocada, mas o importante é esclarecer que, ao pensarmos na concepção de letramento num sentido mais amplo, ou seja, se a prática de letramento é mais do que instrumento e, portanto, uma questão de estatuto, certamente, o que representa para os participantes não é necessariamente exercer qualquer prática de leitura e de escrita com competência e autonomia, mas exercer aquelas que são valorizadas e necessárias no seu grupo social. Diante da habilidade adquirida – seja aquela que permite ao sujeito não mais recorrer às figuras presentes nas embalagens para a escolha dos produtos ou não mais necessitar da ajuda do colega de trabalho na verificação do seu salário – cada participante não apenas se reconhece, mas também passa a ser reconhecido como letrado pelo outro ou pelo grupo do qual participa. A noção de estatuto, nesse sentido, representa o sujeito que se reconhece e que passa a ser considerado letrado pelos seus pares, porque num período anterior não era capaz de exercer autonomamente determinadas práticas de leitura e escrita. Na conversa a seguir, observamos que o modo como os familiares de José, que vivem no interior, percebem as mudanças em sua vida ultrapassa o âmbito da alfabetização e recai em suas conquistas pessoais, que lhe garantiram o estatuto de sujeito letrado: Pesq.: Me conta como foi essa surpresa, (os parentes) ficaram surpresos por quê? José: Ficaram surpreso porque a gente saiu da roça não é? Sem, sem, ( ) sem nada né? Porque se você não tiver leitura você tá nada, e sem nada mesmo de... De... De coisa. Hoje, hoje e só de eu na... Na... No colégio militar que foi a primeira turma que eu entrei (para 234 trabalhar) mais depressa foi nela né? Quer dizer, é uma firma muito grande e uma firma que depende de muita leitura, depende grau de leitura e eu não tinha nada como é que eu posso ter entrado ali e trabalhado? Quem ajudou eu? Quem foi? Ninguém. Esforço meu e Deus. Deus que me levou pra ali. Então isso eles fala né? Pesq.: Isso o quê? José: Que tô trabalhando (na UFMG) numa firma lá né? Agora eu mostro a carteirinha azul (de funcionário federal) que você já viu ela com nós? Eu mostro eles como é que ela é como é que não é. Com o nome da minha cidade, com o nome do pai da mãe e tudo dentro e eu e a assinatura: “Mas ele aprendeu ler? Não sabia nada?” E o pior que eu saí (da cidade natal) velho, né? Saí com trinta e tantos ano. Pesq.: Então eles (os parentes) ficam surpresos com isso com essa sua mudança. José: É com a minha mudança. Percebe-se que o mais importante é que, ainda que não tenham adquirido a autonomia plena — é possível adquiri-la? — e, portanto, ainda necessitam da participação do outro no exercício da língua escrita — como, por exemplo, preencher uma ficha de inscrição, escrever uma carta, ler um romance, etc. — aquelas práticas que os participantes exercem sem a intervenção do outro e que são significativas tanto para o sujeito que as exerce, quanto para o grupo do qual participa, são consideradas suficientes para que obtenham o estatuto de letrado. Isso porque é o uso que fazem da escrita que lhes dá esse estatuto, ou, nas palavras de Barton and Hamilton (1998), “é aquilo que as pessoas fazem com o letramento”. É o que se observa no depoimento de José, que aponta o que melhorou em sua vida a partir do aprendizado da linguagem escrita: José: No banco tinha que ter companheiro. Agora eu faço tudo, tiro saldo eu tiro o meu... Meu... Coisa direitinho... Eu tiro dinheiro no banco, eu deposito, entendeu? Eu deposito sozinho. Eu tiro... Qualquer coisa... Pesq.: Lê o saldo e o extrato? José: Lê... O extrato passa lá, eu leio tudo. Passa lá eu leio tudo... (...) Pesq.: No dia-a-dia melhorou... José: Melhorou... Porque igual falei com cê a gente, né? A gente tinha dificuldade de chegar, procurar número de roupa, número de casa... Hoje eu... Eu não tenho dificuldade pra isso... Dificuldade de pegar um carro (ônibus), não tenho... Eu precisava de pedir os outro, eu pedia! Pros outro pra parar o carro (ônibus) pra mim porque eu não sabia e... Né? Onde que eu ia... 235 (...) Pesq.: (...) seu José então o senhor falou que o pessoal lá da... Da sua cidade, seus irmãos sentiram mudança e aqui dentro da sua casa, agora na família daqui... José: Aqui também sentiu né? Sentiu por que... Né? Igual a minha esposa: “Ô, mas o José aprendeu mais um pouco agora ele... Já não precisa preocupar tanto pra tá saindo com ele pra poder dar uma força pra ele”. Meus menino (filhos) também né: “Não precisa eu preocupar tanto porque muitas coisa ele pode resolver sem precisar de... De eu tá ajudando porque ele já sabe, já entende, né?” Então... Pra isso foi muito bom também dentro de casa. Pesq.: Por que antes então a sua esposa tinha uma participação muito forte. José: Tinha por que... A vez eu resolvia... Mas se fosse o caso de... De... Escrever alguma coisa de... De caso de leitura tinha que ir com ela pra ela ler pra me falando lá pra você vou falar assim: “vou tratar com você um negócio”, mas depende da leitura ((bate as mãos)) entendeu? Aí ela, ela falava e eu te falo: “então vou fazer pra você isso, isso, isso” e ela passava. Diante dessas realizações, não é difícil concluir por que José descarta a possibilidade de retorno à escola. O participante não vê uma motivação maior para dar continuidade aos estudos, já que, como se vê no discurso abaixo, não há uma razão suficientemente forte — como houve no passado — para se inserir numa instituição formal de ensino. Apesar de não negar que gostaria de desenvolver ainda mais suas habilidades de leitura e de aprender a escrever, pois o participante diz que ainda não adquiriu essa habilidade, do seu ponto de vista, esse crescimento pessoal conquistado ao longo dos anos supera esse desejo: José: Não tenho muita leitura, mas tenho muita sabedoria muitas coisa. Pesq.: O senhor disse que não tem muita leitura? José: É. Pesq.: Então a leitura que o senhor tem dá pra quê? José: Ah dá pra mim viver o resto da vida né? Dá pra mim viver o resto da vida porque... Onde eu cheguei hoje eu não vou mesmo... Por comércio pra... Pra depender de mais leitura, eu não vou mexer com negócio pra depender de mais leitura e nem mais matemática né? Então quer dizer que ela dá né? Mas se eu pudesse... Ir mais eu queria mais... (...) Pesq.: Ótimo. Só a última pergunta. Então, como que é o José analfabeto naquela época e o José que sabe ler e escrever hoje. Tem uma diferença? José: Aí, aí o José é mais ainda (risos/ balança o dedo). Pesq.: Mais ainda como? Balançando... (risos) 236 José: Aí considero o José um... Pelo que já passou comigo considero o José um médico, um doutô (risos)... A partir das conversas, verificamos que os sujeitos da pesquisa avaliam que a experiência da reescolarização lhes proporcionou um crescimento pessoal, e assim se consideram verdadeiros “vencedores”, que conseguiram se sobressair no campo profissional e pessoal, mesmo com pouca instrução. Conforme o depoimento de Davi, o ponto de partida para a sua mudança foi quando aprendeu a assinar o nome, quando, então, passou a se colocar em um novo lugar, como aquele que, através da assinatura, retira os seus documentos pessoais ou mesmo demarca a sua presença no livro do ponto no trabalho. Percebe-se que Davi também coloca a questão do uso do dinheiro como um problema a ser superado, superação essa conquistada a partir das relações que estabeleceu nos grupos aos quais se inseriu: Pesq.: Mas você queria aprender (a ler e escrever) pra quê? Você falou que naquela época ((poucos anos após a sua vinda para Belo Horizonte)) não precisava muito... Davi: Não... Não existia leitura... Mas... Depois duns tempo que a gente... Eu tava (trabalhando) lá no Sesc, por exemplo, aí chegou o (...) pra receber pagamento. Recebia um envelope com as cédula... Tinha que contar aquelas cédula, os outro que tinha que contar as cédula pra gente... Pesq.: Até o dinheiro eram as pessoas que contavam pra você... Davi: Éra cê num... Num conhecia... É... Números, né? E à força foi aprendendo... Ali a gente... Ou o próprio colega de serviço ia falando com a gente... Ou o encarregado da gente... Que eles encontrava muito difícil com aquilo, sabe? Aí aonde foi que eu cheguei ao meno assinar o nome... Quando eu comecei a assinar o nome aí eu comecei a conhecer... Semelhante aos demais discursos aqui apresentados, Davi avalia que a experiência da escolarização na Universidade lhe possibilitou um crescimento pessoal e a conquista da autonomia: Pesq.: E hoje como é o seu dia-a-dia? Davi: Hoje um pouquinho de crescimento que ainda tenho... Alguma coisa que a gente sabe ler melhorou muito, né? Pesq.: Melhorou o quê? Davi: Ah, pra mim, melhorou foi o seguinte, que... Nessa trajetória (da casa para o trabalho) que eu precisava de fazer hoje é uma coisa desembaraçada, né? Ai eu vou tranqüilo, sei... 237 Pesq.: Vai pra qualquer lugar? Davi: Onde é que eu tô entrando, tô saindo... Desde que o português que não seja é... Outras coisa diferente, né? Então... Aí gente vai... Mas de primeiro não, de primeiro ai eu ficava perdido, né? Pra vim no centro tinha que saber o lugar que eu ia... Davi, entretanto, nos mostra que as dificuldades que ainda enfrenta estão muito mais ligadas aos usos que fazemos das práticas. Pesq.: E hoje como é que é? Davi: Uai hoje é... (a vida em BH) É muito corrido... Pesq.: Mas você sente dificuldade hoje? Davi: Pra ser verdade ainda sinto (...) Eu mesmo assim pra mim... Pra depender de... Mexer em... Na cidade ou até outros lugar eu me sinto dificuldade por que... Eu não... Passo anos e anos sem ir (no centro) na cidade... Pesq.: Hum... Davi: Eu venho daqui (da UFMG) que é o serviço meu e daqui pra casa. Pesq.: Hunrum... Davi: Atravesso ali (a Avenida Antônio Carlos) pego meu ônibus vou pra casa, então de lá venho pra aqui. Então não saio pra outro lugar, não vou pra cidade não vou pra outro lugar então o dia-a-dia meu é isso aqui. Então se... Saio de noite se eu for pra cidade tem hora que eu fico perdido. Eu ainda me perco ainda. Pesq.: Mas perdido como? Davi: Você sai de rumo não sei que lado que eu vou... Quando Davi disse que, recentemente, pediu a um amigo que registrasse num papel um discurso que seria pronunciado por ele numas bodas, no interior, a primeira impressão que tive foi a de que o participante, mesmo tendo passado pelas diferentes fases do projeto de EJA da Universidade, ainda não havia se apropriado da escrita. Essa visão inicial remete a uma visão dominante de letramento, que nos impede de perceber outros modos de apropriação da escrita. Entretanto, apesar de Davi não ter produzido uma escrita no sentido estrito, foi ele próprio quem ditou o texto para o amigo e, também, avaliou o seu conteúdo pessoalmente, dizendo que havia ficado excelente. Naquele momento em que Davi diz à pesquisadora que necessitou da ajuda do outro para produzir um texto, ainda não havia me despido desse olhar preconceituoso de que o letramento está relacionado 238 exclusivamente ao âmbito do indivíduo: acreditava que somente aquele que domina o código escrito é realmente um leitor/escritor de textos. Numa rica conversa estabelecida com a professora Maria de Lourdes Dionízio, percebi que o modo como Davi tem-se apropriado da escrita não o desqualifica, pelo contrário, denota que construiu conhecimentos importantes sobre a escrita, o que o habilita como letrado. Davi domina os recursos necessários para produzir um discurso, entretanto, recorre a alguém para que suas idéias sejam colocadas no papel, portanto, exerce uma prática de letramento. O participante sabe que o discurso tem determinadas características, tanto que é capaz de avaliar a produção textual através da leitura no sentido estrito. Na visão de Dionízio, Davi está inserido numa literacia de fronteira e, portanto, devemos entender que ser letrado é ter uma consciência do que se escreve, do como se escreve, de para quem se escreve. Davi tem consciência do gênero textual, e se naquele contexto não possuía os recursos suficientes para que seu texto fosse produzido, foi buscá-los através da interação com o outro. Segundo Dionízio: E ele (Davi) é de fato é um bom exemplo de literacia de fronteira. A percepção dessas questões não é fácil porque remete a preconceitos. E a primeira tarefa do etnógrafo é despir-se de qualquer preconceito. Se vamos com os preconceitos na pesquisa, naturalmente o discurso escorrega e acabamos construindo teses com frases soltas que dizem “mas eles não escrevem nada” (Maria de Lourdes Dionízio). Podemos observar que a partir do momento em que as expectativas em torno da alfabetização foram sendo atendidas, os participantes perceberam que a permanência na escola já não é mais imprescindível. Mesmo reconhecendo o caráter contínuo do processo de aprendizagem, encaram essa possibilidade de ampliação das habilidades de leitura e escrita como algo muito difícil de ser alcançado, como vemos no discurso de Davi, a seguir: Davi: Aprendi assim... Lê alguma coisa... E... Maize... Igual eu tava te falando... Eu leio aquilo que você me mostrar, mas se for pra mim escrever, eu já não escrevo aquilo... Encontro muita dificuldade... Eu tenho é... Talão de cheque tenho tudo, mas não sei encher o talão de cheque. Eu assino, mas não consigo encher. Então eu se encontro assim... Muito difíci nessa... Tipo de coisa assim, as vez eu... Larguei o projeto porque eu fui indo, perdi a paciência... Pesq.: Por que você perdeu a paciência? 239 Davi: É porque eu pelejava as vez eu tinha nervoso pra aquilo, e num conseguia... Pesq.: Nervoso? Como assim? Davi: Aí eu... “Vou deixar isso pra um lado... já tô véio mesmo, vou mexer com isso mais não”. Aí é... Ontem mesmo mãe tava perguntando: “eu pensei que cê tava na aula?...” Falei: “Ah... Eu saí há muito tempo... Ah ela (a monitora-professora) tava me procurando tem muitos dias”. Aí... Saí uma data, tornei voltar de novo... Aí foi falei: “Ah, agora vou sair de vez não tem jeito não...” Aí perde a... A... Ponta da miada... Você não chega onde você quer... Pesq.: E onde você queria chegar? Davi: Hã? Pesq.: Onde você queria chegar? O que que você queria? Davi: A vez eu queria a... Aprender a ler a escrever, né? Contradizendo seu próprio discurso, Davi diz que ainda não aprendeu a ler e a escrever. Entretanto, ao que parece, o modo como tem exercido a leitura e a escrita — nesse caso, a escrita é praticada pelo sujeito através da mediação com o outro — ainda não atende as suas expectativas. No decorrer das entrevistas, percebeu-se que Davi guarda a visão de que a boa leitura é aquela exercida com fluência e a escrita, para ser legítima, deve ser realizada sem erros ortográficos e com boa caligrafia, exigência essa que faz com que o participante não perceba que também cria formas complexas para usufruir desse objeto. Outro fator que merece destaque é que o sujeito reforçou todo o tempo que deixou o projeto porque “a culpa foi minha”, “o desinteresse foi meu” e, apesar de, nas entrevistas, também destacar que aprendeu muitas coisas e que os conhecimentos construídos favoreceram a sua inserção num grande centro urbano, Davi justifica a sua saída com base no discurso que culpabiliza o indivíduo. Vander foi o único a afirmar que ainda tem interesse de retomar os estudos, entretanto, esclarece que essa idéia não é movida pelo desejo de adquirir um diploma ou mesmo obter um benefício com a escolarização, como, por exemplo, ascender-se social e financeiramente. O participante reconhece que as aprendizagens no projeto viabilizaram uma interação autônoma com a linguagem escrita e ele se vê hoje uma pessoa mais desenvolvida. No depoimento abaixo, Vander vê os estudos como um valor em si, uma possibilidade de evoluir ainda mais, já que acredita que ninguém sabe tudo na vida, há sempre coisas novas a serem aprendidas: 240 Vander: Mas agora é como diz, te falando, depois do Projeto pra cá, as coisa melhorou pra... Eu acho, pra mim. Pesq.: Hunrum... Vander: Eu não sei como diz, outro dia ela tava falando, é igual o meu caso que ela (a esposa) falou pra mim: “Ah, se eu fosse você não ia estudar mais não”. Mas eu tenho vontade. (...) Vander: Mas é igual eu tava te falando. Eu falei pra ela (sua esposa), falei assim: “Ó”. Foi o seguinte, eu tava falando pro... Pro né? Pros próprios colegas mesmo falei assim: “Eu não vou, não que seja que eu não vou formar, eu não vou ser, mas só deu sair (do projeto), eu já, eu já sabendo eu já desenvolvido... Eu saindo pra desenvolver o que eu tenho vontade, o que eu tinh, o que eu tinha vontade. Eu se eu vou tocar uma empresa não interessa, se eu vou fazer o... O que... Se eu vou formar não me interessa... Pesq.: Se vai tirar o diploma... Vander: É eu não sei, é eu falo assim, o importante pra mim é eu saber, o importante é eu, é resolver tudo na vida o que eu quero. Assim a respeito da... Da leitura. Pesq.: Mas aqui, o que mais o senhor quer resolver da vida com a leitura, por que o senhor já resolve muita coisa? Vander: Não, resolvo, mas eu aprendi... Mas sempre é como diz, tudo que a gente sabe, e a gente não sabe o que é mais o... O... O... A gente é como diz, a gente aprende, aprende, aprende e nunca que sabe tudo na vida que a gente quer saber. Então quanto... O quanto mais a gente for in... É... Evoluindo... Pesq.: Melhor... Vander: É melhor entendeu? Não que, por exemplo, eu vou... Eu vou formar, vou ser doutor, não... Não é isso. Isso pra mim não influi em nada. Pesq.: Hunrum... Vander: É porque eu tô perto de aposentar também, mas é como diz eu falo assim: o importante pra mim é igual, igual eu tava te falando. O que a gente aprende, a gente aprende, aprende, aprende e nunca que aprende tudo que é o necessário. Porque cada dia que a gente passa a idade da gente vai che... Vai avançando, por exemplo, hoje você é uma coisa daqui mais uns... Uns dois, cinco anos, surgiu uma outra coisa mais importante: “Eu quero aprender isso”. Nunca se aprende tudo na vida. Apesar de ter exteriorizado a vontade de reingressar à escola, Vander ainda não retornou ao Proef-1, nem se inseriu numa outra instituição escolar. Isso não significa que o participante não deseje estudar novamente, pelo contrário, como é possível perceber, suas declarações sobre o sentido da educação denotam a consciência de que a aprendizagem da língua escrita é um processo permanente, ou seja, “nunca que aprende tudo que é o 241 necessário”. O que se percebe, porém, é que há um limite entre o desejo e a concretização deste, já que não podemos nos esquecer de que o participante reconhece que esse retorno não está relacionado a um interesse pragmático e sim a um interesse pessoal. É bem possível que o retorno, após adquirir as habilidades tão almejadas, seja ainda mais difícil, isso porque o sujeito, a partir de agora, não sofre tanto com as demandas de uso da linguagem escrita, que nos são impostas pela sociedade letrada. 242 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta pesquisa, procuramos refletir sobre a interrupção do processo de escolarização na EJA, a partir da análise das expectativas e dos significados que alunos egressos do Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos da UFMG - 1º Segmento (Proef-1) têm em relação à alfabetização e ao letramento. Buscamos focalizar as suas representações sobre o analfabetismo, e delimitar o lugar ocupado pelo analfabeto nas relações estabelecidas com o objeto escrito, num grande centro urbano. Por fim, procuramos discutir as conseqüências acarretadas em suas vidas após a alfabetização, no intuito de apreender em que sentido a aquisição das habilidades de leitura e de escrita se constituíram em condicionantes para a saída do projeto. O desenvolvimento desse estudo implicou adotar alguns instrumentos da pesquisa, do tipo etnográfico, como: a entrevista, a ida a campo, a observação participante, o registro em notas de campo, o que possibilitou o levantamento de um grande volume de dados que, a partir da sua análise, permitiu não apenas a apreensão das percepções dos participantes sobre o que é ser analfabeto/alfabetizado, mas, sobretudo, refletir sobre os efeitos da alfabetização, ou seja, as implicações da aquisição da língua escrita nas suas vidas e nas vidas de pessoas com as quais convivem. Percebeu-se que os ex- alunos do Proef-1 compartilham o desejo de aprender a ler e a escrever para lidar com as questões do cotidiano de maneira autônoma, e a inserção num espaço formal de aprendizagem da palavra escrita, em momentos distintos de suas vidas, significou uma maneira de participar de eventos e práticas de letramento, sem que fosse necessária a ajuda dos outros. À medida que as entrevistas foram sendo realizadas (e transcritas), percebemos a importância de incluir a questão de gênero no processo de análise dos dados. Essa questão emergiu como categoria de análise, uma vez que observamos uma forte participação da mulher mediando as relações dos participantes com o objeto escrito: com exceção de Davi, as esposas dos demais sujeitos são alfabetizadas, e o papel das esposas de José, Lineu e Alberto foi crucial na inserção de seus maridos na cultura escrita, tanto no momento em que eram analfabetos, quanto após a alfabetização, uma vez que 243 continuaram atuando como leitoras/escritoras, porém de um modo menos expressivo. A respeito da indagação “o que motivou o retorno à escola na fase adulta?”, inicialmente, levantamos a hipótese de que a razão seria o aprendizado da língua escrita, mas, posteriormente, tivemos que rever a tese de que esse aprendizado se restringiu à experiência no Proef-1. Se, por um lado, os participantes disseram que não sabiam “absolutamente nada” antes de ingressar no projeto, por outro, revelaram que, ao longo de suas trajetórias em Belo Horizonte, também adquiriram conhecimentos relacionados ao uso da leitura e da escrita, seja em ambientes formais ou não de aprendizagem. Quando dizem que aprenderam “alguma coisinha” estudando no MOBRAL, relacionando-se com os colegas de trabalho ou em casa, junto à esposa e filhos, isso significa que nesses espaços também se apropriaram desse objeto. Nesse sentido, a compreensão dos modos de inserção na cultura escrita pelo adulto implica considerar não apenas a escola como o lugar social da aprendizagem, mas também as outras instâncias sociais que promovem o letramento. Esses lugares de construção do sujeito letrado foram apresentados à pesquisadora a partir do processo de análise dos relatos: percebe-se a importância das relações estabelecidas na família, no trabalho, na igreja, que proporcionaram aos participantes a interação com a palavra escrita. No entanto, não podemos deixar de demarcar a importância da experiência da escolarização na UFMG (tanto num período anterior à institucionalização do Proef-1, quanto no próprio projeto) na alfabetização e no desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita. Três participantes — Davi, Lineu e José — movidos pelo desejo de serem alfabetizados, vivenciaram as diferentes fases do projeto de EJA na UFMG. Suas trajetórias nos mostram que a saída do Proef-1 não foi, como se imaginava inicialmente, repentina, mas após passarem pelo processo de aquisição do código escrito e da construção de conhecimentos sobre os usos e as funções da escrita. Esses sujeitos insistiram, resistiram e permaneceram no projeto, movidos pela busca da autonomia. A experiência tardia de Vander no Proef-1 nos mostra o quanto as expectativas com relação à inserção na EJA interferem na decisão do adulto de ingressar ou não num processo formal de ensino. Apenas quando o projeto muda a sua estrutura e passa a atender as pessoas interessadas na 244 reescolarização e não na alfabetização no sentido estrito — Vander não se percebia como analfabeto —, o participante se identifica com a proposta. Já Alberto percebeu no projeto uma forma de adquirir conhecimentos que lhe garantiriam o exercício da escrita nas situações em que, do seu ponto de vista, deveriam ocorrer, sem a mediação com o outro. Por fim, para além do aprendizado da escrita, os participantes consideram que aprenderam a se relacionar com o outro, que trabalha e convive no dia-a-dia da lida e que enfrenta as mesmas dificuldades impostas pelo cotidiano. Acreditamos que cada participante deixou o Proef-1 porque, do seu ponto de vista, houve uma “conclusão” de um processo, ou seja, os sujeitos estabeleceram que, a partir daquele momento, já detinham um estatuto de sujeito letrado. Podemos, então, dizer que o significado do letramento para essas pessoas não é apenas uma questão instrumental: quando o sujeito passa a ser capaz de usar a língua escrita, antes possível apenas por meio de relações mediadas, percebe-se um sujeito letrado e, nesse sentido, a prática de escrita é mais do que um instrumento, é uma questão de estatuto. Essa noção de estatuto também está relacionada ao fato de o sujeito ser considerado letrado pelo outro que, como vemos, é representado, sobretudo, pela família, que percebe as mudanças ocorridas no sujeito e as valoriza. À medida que a participação em determinados eventos e práticas de letramento passou a ocorrer sem a intervenção do outro, cada participante — e as pessoas com as quais se relacionam — se perceberam como sujeitos letrados, e decidem, então, deixar o projeto. Diante do que já foi exposto, cabe destacar, nesse momento, alguns aspectos relevantes discutidos na pesquisa. A partir da investigação do processo de letramento dos participantes, sobretudo, no espaço familiar, alguns pontos de suas trajetórias foram desvelados. 1. A visão do analfabetismo como mal a ser erradicado e a condição de analfabeto como algo de que se deva ter vergonha O lugar ocupado pelo adulto analfabeto nas relações estabelecidas, sobretudo, na família e no trabalho, foi devidamente demarcado pelos participantes: “ser analfabeto” significou depender do outro, significou não ser 245 “senhor de si”. Três participantes da pesquisa — Davi, Lineu e Vander — reforçaram o discurso oficial e remeteram o analfabetismo à cegueira e a algo de que se deva ter vergonha. Essa forma de se perceber dialoga com a visão social que relaciona o analfabetismo à ignorância e culpabiliza o analfabeto pela sua condição. Os participantes internalizaram esse discurso fortemente arraigado na sociedade, que gera um sentimento de humilhação por não saber ler e escrever. Os depoimentos de dois participantes, no entanto, divergiram do conjunto de discursos constituído em nossa sociedade de que o analfabeto é cego e incapaz. José e Alberto demonstraram orgulho de ter conseguido “se virar” num grande centro urbano, “mesmo sem saber ler nem nada”, embora tenha sido preciso solicitar a ajuda do outro. Apesar das diferenças de ponto de vista sobre o analfabetismo, todos os participantes revelaram que os estereótipos subjacentes ao analfabetismo não os impediram de construir suas vidas com dignidade, mesmo sem saber ler e escrever. 2. A importância da família no processo de letramento As reflexões de Basu and Foster contribuíram para uma melhor compreensão do lugar ocupado pelos participantes da pesquisa nas relações estabelecidas num ambiente urbano letrado. Considerando que as relações que estabeleceram/estabelecem com a escrita eram/ainda são mediadas por pessoas alfabetizadas, não há, entre os sujeitos em questão, quem tenha assumido posição de um iletrado isolado. Se os participantes interagiram, ao longo de suas vidas, com a linguagem escrita, sobretudo, nas relações estabelecidas na família, podemos, então, dizer que o lugar ocupado nas relações em que ocorre o uso da escrita deve ser entendido em termos de iletrado proximal. Considerando, ainda, que em seus domicílios sempre havia pessoas alfabetizadas e que essas pessoas, durante muito tempo, assumiram/ainda assumem o papel de leitores e escritores, estes familiares geraram uma externalidade positiva para os membros analfabetos. A análise das declarações coletadas nas entrevistas e as observações dos participantes no ambiente familiar revelaram que a presença de um membro alfabetizado em casa fez uma diferença substancial para os participantes, sobretudo entre aqueles cujas esposas alfabetizadas mediaram a relação com a escrita durante 246 o período em que eram analfabetos, possibilitando-lhes o acesso à linguagem escrita e a resolução de problemas do cotidiano. Percebemos que o papel das esposas de três participantes na mediação com a linguagem escrita foi de grande importância na promoção do letramento no ambiente familiar. Elas assumiram a educação escolar dos filhos e a administração do lar, ensinando o dever de casa, monitorando os cadernos escolares, realizando a leitura de contratos, a assinatura de documentos, a análise das contas do mês, o orçamento doméstico, dentre outras funções. 3. Os eventos e as práticas de letramento social Considerando o princípio postulado por Barton and Hamilton (1998) – “literacy practices are what people do with literacy” (p.6) – podemos afirmar que certas práticas de leitura e de escrita podem não ser consideradas práticas legítimas por um determinado grupo social. Diante desse fato, podemos ainda considerar que certas maneiras de se relacionar com a linguagem escrita, por não serem reconhecidas como legítimas, acabam sendo marginalizadas como atividades inferiores – práticas e eventos, em sua maioria, situados num âmbito mais pragmático, como, por exemplo, assinar o ponto no trabalho, retirar dinheiro ou fazer depósitos em caixas eletrônicos, fazer compras em supermercado, embarcar no ônibus correto, circular pelo centro da cidade sozinho, etc. Se as práticas e os eventos de letramento são determinados por questões de ordem social e cultural, tendo em vista as necessidades e os interesses dos grupos sociais, nossa visão etnocêntrica e preconceituosa, porém, produz um efeito negativo frente a determinadas apropriações da linguagem escrita. Enquanto certas práticas de leitura e escrita são consideradas de prestígio, outras, por sua vez, são colocadas em segundo plano. A respeito dos participantes da pesquisa, a alfabetização lhes possibilitou uma participação em certos eventos e práticas de letramento, sobretudo, do ponto de vista pragmático. Entretanto foram identificadas situações em que a barreira do pragmatismo foi transposta, revelando outras formas de apropriação da linguagem escrita: ler para passar o tempo, ler para se informar, ler para analisar o texto do outro, ler para “treinar a leitura”, dentre outras situações. 247 4. Os significados da alfabetização e do letramento Soares (1998) afirma que o letramento deve ser entendido tomando as conseqüências acarretadas no indivíduo, quando este sai da condição de analfabeto e adquire a tecnologia do ler e do escrever e, conseqüentemente, participa, sem depender da mediação com o outro, das diversas práticas de leitura e de escrita demandadas na sociedade. Sendo assim, mais do que apreender os significados da alfabetização no sentido de uma análise da concepção do adulto do que é ser alfabetizado, buscou-se, na atividade de pesquisa, apreender os efeitos da alfabetização para a vida dos sujeitos. A alfabetização significou/significa, em termos de conseqüências práticas, a aquisição de certa “autonomia”, possibilitando a participação em eventos e práticas de letramentos antes possíveis somente com a mediação do outro, sobretudo, da família. Mais do que a aquisição de uma tecnologia, o lugar de aprendizagem da leitura e da escrita significou, principalmente, um lugar em que foi possível aprender a conviver, a conversar, a se relacionar com o outro. Por fim, ressalta-se que o conhecimento adquirido através da alfabetização, mesmo não sendo pleno (os participantes reconhecem que ainda apresentam dificuldades na leitura e, sobretudo, na escrita de textos), foi percebido pelos participantes como suficiente no contexto sociocultural com o qual interagem. Nesse sentido, a continuidade de estudos, seja no Proef-1 ou em outra instituição formal de ensino, não foi colocada como uma necessidade, mas como um desejo. Um dos grandes desafios que a pesquisa impõe é oferecer — num contexto marcado por um grande número de iniciativas voltadas para EJA — oportunidades educacionais para que os adultos possam desenvolver o letramento. E para que as oportunidades possam ser oferecidas, é preciso, primeiramente, conhecer as reais demandas que os adultos analfabetos e recém-alfabetizados têm em relação à aquisição da escrita, bem como compreender como eles se percebem como sujeitos da EJA. Nas palavras de Barton and Hamilton (1998): Dentro do campo da educação há uma nova motivação para olhar para além das fronteiras das instituições formais de educação, escolas e colégios, para entender a aprendizagem 248 informal de estratégias e dos recursos que as pessoas usam em suas vidas fora da educação, reconhecendo que as escolas são simplesmente contextos especializados no qual o letramento é usado e aprendido. Idéias sobre a aprendizagem ao longo da vida, a aprendizagem aberta e flexível e noções de pedagogia crítica, que consideram o papel da educação formal dentro de seu contexto cultural e político mais amplo, têm implicações para o estudo do letramento (p.21) 143. 143 Within the field of education there is a new willingness to look across the boundaries of formal educational institutions, schools and colleges, to understand informal learning strategies and the resources which people draw on in their lives outside of education, recognising that schools are just one specialized context in which literacy is used and learning. Ideas about lifelong learning, flexible and open learning and notions of critical pedagogy which consider the role of formal education within its broader cultural and political context all have implications for the study of literacy. 249 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVARENGA, Daniel (1988). Leitura e escrita: dois processos distintos. Educação em Revista. 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