UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA EDUARDO COSTA DE MANCILHA PEGANDO O RITMO: Uma Experiência Etnográfica entre os Ciganos Calon do Bairro Céu Azul, Belo Horizonte - MG BELO HORIZONTE – MG 2017 EDUARDO COSTA DE MANCILHA PEGANDO O RITMO: UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA ENTRE OS CIGANOS CALON, DO BAIRRO CÉU AZUL/BH Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Orientadora: Profa. Dra. Deborah Lima. BELO HORIZONTE – MG 2017 EDUARDO COSTA DE MANCILHA PEGANDO O RITMO: UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA ENTRE OS CIGANOS CALON, DO BAIRRO CÉU AZUL, BELO HORIZONTE - MG Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Dissertação aprovada em: / / BANCA EXAMINADORA Prof. Deborah Lima (orientadora) Prof. Karenina Vieira Andrade (examinadora) Prof. Edgar Rodrigues Barbosa Neto (examinador) Dedico esta dissertação aos calons do bairro Céu Azul, cidade de Belo Horizonte, com quem tive o privilégio de conviver durante esta pesquisa. Agradecimentos Agradeço a todos aqueles calons moradores, provisoriamente ou não, do bairro Céu Azul que cederam seu tempo, e pacientemente estiveram dispostos a contribuir com essa pesquisa, ensinando-me a “pegar o ritmo” durante o tempo em que tive oportunidade de usufruir de sua convivência. Ressalto especialmente o carinho guardado pelos calons Gilberto, Patrícia, Felipe, Bebeca, Lucinha, Ronin e Baiana que engrandeceram este trabalho com seus relatos e ensinamentos feitos de maneira cuidadosa. Sem o acolhimento e o ambiente favorável criado por eles ao longo de toda a pesquisa, não teria sido possível ter concluído meus trabalhos. Também agradeço às agências de fomento, FAPEMIG e CNPQ, que tornaram viável a pesquisa através do seu financiamento. Faço meus votos especiais à minha orientadora Deborah Lima, que com maestria soube me auxiliar no meu amadurecimento acadêmico. Dando-me subsidio teórico, com a indicação de leituras e material bibliográfico relevantes sobre as temáticas discutidas, além de provocar instigantes discussões referentes ao tema da pesquisa. Agradeço pela confiança e incentivo fundamentais para conclusão do trabalho. É igualmente importante agradecer as pesquisadoras do NECI – Núcleo de Estudos Ciganos – Hannah Machado, Juliana Campos, Helena Dolabela e Roseli Correia pela a observância de determinados impasses encontrados no trabalho e o encorajamento à imersão na vida dos calons do bairro Céu Azul. Sublinho meus agradecimentos à ajuda fundamental de Juliana Campos na redação final do texto. Agradeço a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para a construção desse processo, Roseli Correa, Ricardo Oliveira, Paula Berbert, Makota Cássia, Sófia Rapoles, Lívia dos Santos, Lorena Oliveira, Pamilla Vilas Boas, Raissa Leoa, Januaceli Murta, Thiago Heliodoro, especialmente a Camila Rodrigues e Ana Rita, dentre tantos outros presentes durante meu percurso acadêmico e afetivo. Por fim, à minha família, sempre fundamental, pelo apoio irrestrito e incondicional aos meus objetivos profissionais. “Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia”. (Fernando Pessoa, 1913) “Examinar dragões, não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria, é tudo em que consiste a Antropologia. Pelo menos, é no que consiste como eu a entendo (…). Temos procurado, com sucesso nada desprezível, manter o mundo em desequilíbrio, puxando tapetes, virando mesas e soltando rojões. Tranquilizar é tarefa de outros; a nossa é inquietar. Australopitecos, malandros, cliques fonéticos, megalitos: apregoamos o anômalo, mascateamos o que é estranho, mercadores que somos do espanto”. (Clifford Geertz, 2001) 1 Resumo O presente trabalho possuiu dois eixos centrais de análise: o primeiro fomentou discussões relativas aos processos de socialização vivenciados pelos ciganos calons do Céu Azul (Belo Horizonte), e o segundo refletiu acerca da atuação antropológica no contexto específico de regularização fundiária envolvendo esses calons. Os temas desenvolvidos surgiram a partir de um trabalho de campo junto à comunidade que foi realizado durante cerca de nove meses. Durante esse período, pude constatar uma agregação criativa de diferentes agentes não ciganos envolvidos na regularização fundiária pelos calons, e através de um entendimento particular desse processo (a preocupação com a manutenção de acordos históricos firmados com não ciganos e a sua fama de ciganos pacíficos dentro do bairro) ficou nítida a possibilidade de outra interpretação das relações entre ciganos e agentes estatais nesse processo. Concomitantemente, consegui levantar uma discussão sobre um processo específico de socialização entre aqueles calons, denominado por eles enquanto “Pegando o Ritmo”. Através da análise desse conceito, busquei visibilizar algumas situações cotidianas onde foram acionados valores morais, saberes singulares e experiências compartilhadas pelo grupo como marcadores de distinção ou aproximação dos não ciganos. PALAVRAS-CHAVE: ciganos, calon, atuação antropológica, socialização. The presente work has two central axes of analysis: the first one fomented discussions about the socialization processes experienced by the gypsies calons of Céu Azul (Belo Horizonte), and the second one reflected on the anthropological performance in the specific context of land regularization involving these calons. The themes developed emerged from a field work with the community that was carried out during about nine months. During this period, I was able to see a creative aggregation of different non-gypsies agents involved in land regularization by the calons, and through a particular understanding of this process (concern about maintaining historic agreements with non- gypsies and their reputation for being peaceful in the neighborhood) the possibility of another interpretation of the relations between gypsies and state agents in this process became clear. Concurrently, I was able to raise a discussion about the specific process of socialization among those calon, termed by them as “Pegando o Ritmo”. Through the analysis of this concept, I tried to make feasible some everyday situation where moral values, singular knowledge and experiences shared by the group were added as markers of the distinction o approach of non- gypsies. KEYWORDS: gypsies, calon, anthropological practice, socialization. 2 Glossário de Siglas: CRAS: Centro de Referência de Assistência Social. DPU: Defensoria Pública da União. PBH: Prefeitura de Belo Horizonte. PUC - MG: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais URPV (Bota Fora): Unidades de Recolhimento de Pequenos Volumes. UFMG: Universidade Estadual de Minas Gerais. Nuq: Núcleo de Estudos Sobre Populações Quilombolas e Tradicionais. 3 Glossário de Imagens: Página 41: Imagem 1. Mapa do município de Belo Horizonte. Página 42: Imagem 2. Mapa do Bairro Céu Azul. Imagem 3. Mapa do acampamento Calon. Página 50: Imagem 4. Tipos de Liderança. Página 56 Imagem 5. Áreas do acampamento. Imagem 6. Lotes do acampamento. Página 58: Imagem 7. Foto da Rua Novecentos e Um. (data: 23/06/2016) Página 63: Imagem 8. Mapa da mudança de Baiana. Página 64: Imagem 9. Turma do Gilberto. 4 Página 67: Imagem 10. Turma do Vieira. Imagem 11. As lideranças. Página 70: Imagem 12. Foto da reunião orçamento participativo. Imagem 13. Foto dentro URPV. (data: 02/03/2016) Página 107: Imagem 14. Cavalos perto do URPV. (data: 12/11/2015) Imagem 15. Mapa acampamento (URPV). Página 111: Imagem 16: Parentesco das Calins. Página 113: Imagem 17. Rua Novecentos e Um. (data: 10/12/2015) Imagem 18. Mapa casa da Baiana. Página 121: Imagem 19. Fivela suja. Imagem 20. Fivela Limpa. Imagem 21. Foto Baiana e Lucinha. (data: 15/08/2016) Imagem 22. Foto vestido. (data: 15/08/2016) Página 124: Imagem 23 Festa de casamento em São Gabriel (1). Imagem 24. Festa de casamento em São Gabriel (2). Página 128: Imagem 25. Campo de futebol. (data: 09/08/2016) Imagem 26. Córrego Capão. (data: 09/08/2016) Página 129: Imagem 27. Mapa Córrego Capão. Página 136: 5 Imagem 28. Construção habitação. (data: 02/05/2016) Imagem 29. Habitação finalizada. (data: 13/05/2016) Página 142: Imagem 30. Mapa Terreno das irmãs (1). Página 156: Imagem 31. Casa de Leandro. (data: 22/01/2017) Imagem 32. Mapa acampamento. Página 165: Imagem 33. Bares da região. Página 166: Imagem 34. Bar do Nego. (data: 12/10/2016) Página 169: Imagem 35. Baia para os cavalos. (data: 21/03/2016) Imagem 36. Baia para os cavalos (2). (data: 21/03/2016) Imagem 37. Mapa baia para os cavalos. Página 179: Imagem 38. Escondendo da câmera. (data: 23/09/2016) Imagem 39. Mapa Barraca Vieira. Página 183: Imagem 40. Encanamento.(data: 04/08/2016) Imagem 41: Encanamento caído. (data: 04/08/2016) Página 184: Imagem 42. Mapa do encanamento no córrego. Página 196: Imagem 43. Lugares de sociabilidade. Imagem 44. Relações no acampamento 6 SUMÁRIO Introdução/apresentação 7 1. Por de trás das barracas: construindo os contextos de pesquisa. 13 1.1 Meus primeiros passos/escritas: antecedentes e precedentes. 14 1.2 Seguindo os traços dos calons: entrada, resistência e possibilidades. 21 1.3 Estereotipias ciganas: uma história em continuum. 31 1.4 Uma breve apresentação dos interlocutores. 40 2. Agregando-me: O caso da regularização da turma do Céu Azul. 43 2.1 Negociando termos: tipos de lideranças. 46 2.2 Tecendo e destecendo políticas: equivocações e atuação. 75 3. A pesquisa através dos seus protagonistas: puxando as linhas do comum. 101 As Calins Baiana, Patrícia e Lorena: entre ciganos e brasileiros. 101 Pegando o ritmo com o Felipe e Gilberto. 162 Conclusão 201 Bibliografia 202 Anexos 207 7 Introdução/apresentação “[...] o risco está nisso, em que se pode partir de qualquer coisa mas depois há que chegar, não se sabe bem a quê mas chegar [...]”. (Júlio Cortázar, 1977) “Uma antropologia que jamais ultrapasse os limiares de suas próprias convenções, que desdenhe investir sua uma imaginação num mundo de experiência, sempre haverá de permanecer mais uma ideologia que uma ciência” (Roy Wagner, 2010 O presente texto só pôde ser elaborado enquanto um exercício de afetação e aprendizado de outras possibilidades de entender e criar o mundo (tal como a experiência etnográfica é pensada por Márcio Goldman, 2006), que se deu através da tentativa contínua de compreender a realidade ao mesmo tempo que a vive (assim como propõe Tim Ingold (2011) com seu conceito de discrição - análise) e por isso minha análise partiu da relação de interlocução estabelecida pontualmente com as pessoas calon1 habitantes do espaço social compreendido pela área do acampamento2, situado no bairro Céu Azul, na cidade de Belo Horizonte, durante o período compreendido entre o final de 2015 e começo de 2017. Baseada nas minhas impressões etnográficas das vivências compartilhadas com a essa turma calon, propus-me na dissertação desenvolver particularmente sobre duas grandes temáticas distintas, que impreterivelmente em alguns momentos se tocam ao longo texto. Ambas guardam semelhança na singularidade em reorganizar suas experiências e atualizar acontecimentos novos, por exemplo, minha chegada ao acampamento, de maneira particular através de outras referências morais3 envolvendo a relação com não ciganos. O primeiro tema apresentado trata de contextos de interação envolvendo ciganos e não ciganos (garrons), principalmente aquelas situações referentes à resolução de demandas de 1 Existem vários etnônimos classificatórios usados por diferentes grupos ciganos para nomearem suas experiências de pertença étnica, e performances/construção das suas ident idades. Dentre tais variações nominais que implicam em última instância em diferenças na organização social e cosmologia, calon são um dos exemplos dessa forma nominal utilizada para diferenciar grupos ciganos singulares. O pesquisador Dimitri Fazito apont a precisamente como tais especificidades classificatórias, em última instância, traduzem-se nas “diferenças de origem, laços e interesses” (FAZITO, 2000, p. 22). 2 Foram dois termos recorrentemente usados pelos sujeitos de pesquisa calon ao fazer referência a um determinado tipo específico de habitação do espaço social generalizadamente feita por diversos grupos ciganos. As duas principais nominações foram através da terminologia acampamento e rancho. O tempo investido no trabalho de campo não foi suficiente para a percepção das nuances pertencentes as especificidades de uso dos dois termos. 3 Tal como aponta Roy Wagner (2012, p. 83) sobre a moralidade ser uma miríade de comportamentos esperados dentro de uma convenção compartilhada. 8 diversas naturezas, por exemplo, serviço de atendimento médico e escolarização para adultos, suscitadas por ambos os lados. As ações realizadas em prol dessas demandas, consequentemente, envolveram diferentes regimes de entendimento sobre o político frente aos conflitos, atividades e mobilizações pertencentes aos andamentos dos processos de negociação realizados entre ciganos e não ciganos. O primeiro embate entre calons e garrons presenciado foi justamente aquele mantido ao longo de toda pesquisa, em que faço referência à instauração progressiva do processo de regularização fundiária da área compreendida pelo acampamento, como a comunidade cigana denomina a sua área habitada. A principal controvérsia girava em torno da titularidade de parte dos terrenos habitados por essa turma, atribuídos a Renê Santana, filho do notório ex-técnico de futebol Telê Santana, e por conta da ausência de documentação comprobatória da titularidade da área, formou-se um cenário de incertezas e disputas frente à veracidade das informações vinculadas e os tratados firmados entre alguns calons com o Renê Santana. A condução dos imperativos imprescindíveis à elucidação da titularidade dessa área ocasionaram desdobramentos de outras questões complexas sobre as características desse terreno, por exemplo, a informação pela PBH- Prefeitura de Belo Horizonte – da pertença daquele acampamento dentro de uma APA – Área de Preservação Permanente -, e a previsão de um projeto viário de grandes proporções afetando parcela da área reivindicada por Renê Santana – construção da via 220, e assim causando ainda mais incerteza da segurança da área. O segundo tema desenvolvido versa sobre os mecanismos específicos de invenção elaborados pelos interlocutores a partir dos seus próprios modos criativos de uma vida cigana, por exemplo, as maneiras pelas quais se estabeleceram contextos comuns de socialização entre aqueles calons. Tentei relatar as constantes formas de invenção de um ethos comum de moralidade entre os diversos calons em que pude manter contato, principalmente através de alguns conceitos chaves, como a frescura, ser popular e pegando o ritmo. Optei na descrição mais detida de alguns calons com os quais tive maior proximidade durante a pesquisa, e o investimento desse detalhamento visou apresentar alguns parâmetros de moralidade e comportamento coletivo, orientações, expectativas e experiências compartilhadas socialmente. Uso esses parâmetros de socialidade como auxílio para perceber aquilo que considerei como processo de pegar o ritmo, expressão usada pelos meus interlocutores, entendida enquanto um fluxo complexo de aprendizado e de atualização das convenções através de ações inesperadas e criativas dos seus membros. Assim como uma diferenciação identitária dentro de uma dinâmica de re-invenção constante dessa convenção em termos de manipulação, domínio, 9 inovação de certos parâmetros comuns e esperados pela turma. A expressão pegando o ritmo seria um mecanismo usado para captar a cultura calon vivenciada e observada, e enquanto cultura aproximo-me de uma ferramenta conceitual e uma postura específica de lidar com a diferença, assim como exposto por Roy Wagner: “É apenas mediante uma invenção dessa ordem que o sentido abstrato de cultura (e de muitos outros conceitos) pode ser apreendido, e é apenas por meio de contraste experienciado que sua própria cultura se torna visível. No ato de inventar outra cultura, o antropólogo inventa sua própria e acaba por reinventar a própria noção de Cultura” (WAGNER, 2012, p.29) A problemática das estratégias organizacionais construídas e as disputas entres tipificações de agências políticas particulares, apareceram de maneira recorrente, principalmente através das composições, associações e remanejamentos de possíveis parceiros dentro de um campo relacional complexo envolvendo agentes estatais, vizinhos, membros de ONGS, estudantes universitários, políticos entre outros. Essas movimentações trouxeram à luz lógicas diferenciadas de mobilização e composição de alianças e agência política acionadas pela turma em contextos específicos de construções dessas conexões com os garrons4 . As diferentes perspectivas sobre as ações políticas e seus espaços de funcionamento ganhou visibilidade a partir do contraste entre as atuações e posturas de pessoas calon e brasileiros frente a algumas demandas pontuais expostas e defendidas de maneira díspares, por exemplo, a oferta de escolarização feita pelos brasileiros e seu repúdio pela turma. A partir desses embates surgiram disputas sobre os sentidos acerca da própria legitimidade e os imperativos de funcionamento das organizações administrativas em contato com o grupo, por exemplo, a eficácia da deliberação e participação democrática em traduzir ou criar espaços de entendimento cosmopolíticos5 (STENGERS, 2007) entre as múltiplas pessoas envolvidas. Se esses espaços institucionais não foram propícios a instauração de espaços dialógicos e mais sensíveis aos diferentes modos de conceber a natureza das distintas agências políticas imbricadas nas interações entre ciganos e garrons, busquei individualmente propiciar um ambiente de interação diferente entre pesquisador e interlocutores. Propus na interação construída com essa turma (como se referem a seus próprios coletivos), fomentar um espaço 4 Os termos mais comuns empregados pelos calons sujeitos da pesquisa para diferenciar-se dos não ciganos foram as terminologias brasileiro/brasileira e garçom/garrin. Recorrentemente, encontra-se na bibliografia sobre calons referência não somente aos termos referidos anteriormente, mas a uma constituição da pessoa calon baseada na diferenciação com os não ciganos. Como referência olhar: Ferrari, 2010. 5 Entendo o conceito de cosmopolítica, ou contextos cosmopolitas, enquanto um esforço de análise visando substituir uma "economia de valor moderno” (STENGERS, 2007, p.46) por outros critérios de fundamentação pautados por concepções nativas de política. Da mesma maneira, como aponta Roy Wagner, na tentativa de reconhecer os pontos etnocêntricos pelas quais partimos das diferentes pesquisas (WAGNER, 2012), e conscientemente, ponderar os limites dos conceitos utilizados para nossas explanações. 10 relacional mais favorável às negociações dos compromissos esperados de ambas as partes sobre o produto da minha pesquisa, e a possibilidade de assessorá-los em algumas demandas. Esse foi um artifício encontrado para minha inserção e aproximação ao grupo de maneira reflexiva, porém as tratativas e negociações dos termos da minha aceitação dentro daquela socialidade, e por conseguinte, as possíveis atuações exercidas junto ao grupo no auxílio das suas demandas apresentadas enquanto contrapartida à prática antropológica, mostraram-se inoperantes e igualmente problemáticas a partir do momento que percebi minha precipitação em relação a determinadas premissas relacionais a atuação etnográfica . Visava firmar uma espécie de pacto etnográfico (KOPENAWA; ALBERT, 2015) e como tal, sensível aos meandros de um cenário permeado por desentendimentos de interesses e concepções particulares de ambas as partes. Até certo ponto julguei progredir rumo a uma confluência de entendimento sobre meu exercício antropológico e as premissas de maior transparência, porém, diante de uma série de frustrações das expectativas geradas por aqueles calons em contraste com as minhas reais possibilidades de atuação para alcance das suas demandas, acabei por ser reposicionado de um parceiro efetivo para um lugar mais ambíguo, algo mais próximo de um aliado em potencial6. Já no segundo tema, busquei levantar questões relativas às especificidades presentes em um tipo determinado de constituição de socialidade realizada pela turma do Céu Azul. A maneira pela qual habitam não somente o acampamento, mas um amplo campo territorial descontínuo, evidencia conjunturas interacionais construídas localmente e contextualmente na vizinhança, além de uma microrregião assistida por uma complexa projeção de movimentações, articulações e cooperações entre determinadas localidades ao longo de uma vasta área de influência comercial e de alianças políticas entre ciganos, e entre ciganos e brasileiros. A dinâmica urbana própria da região do bairro Céu Azul e adjacências, além da área compreendida por sua espacialidade mais ampla, conjugada às particularidades históricas da chegada dessa turma à cidade de Belo Horizonte, propicia explanar sobre as cooperações estabelecidas com outros acampamentos e as diversas atividades componentes da participação nos nichos sociais e econômicos encontrados no bairro do Céu Azul. Tais apontamentos ainda se agregam a outros imperativos presentes na construção do cotidiano do grupo, assim como interações, construções e concepções ricas e específicas de uma ideia ímpar de/da cidade. 6 A questão fundamental posta não era minha incapacidade de atuar em determinadas esferas esperadas pelos interlocutores calon, mas o próprio o cenário complexo de dissonâncias e expectativas do meu lugar dentro daquele socialidade. Ora enquanto necessário para o atendimento de determinadas demandas, ora figurando em lugar de espera estratégica para possíveis ajudas futuras. 11 Outro aspecto importante envolvido na gestão territorial perpassou pela especificidade das atividades vinculadas a regimes calon de mobilidades específicas, por exemplo, a mudança da localidade de morada fruto das alianças matrimoniais, a comercialização em diferentes escalas, e as rotas tradicionais de fixação durante viagens motivadas por situações diversas. O conjunto de elementos elencados demonstra que o vínculo histórico com a região passa por uma complexa concepção da duração da pacificação do mundo garron compreendida naquela região, por exemplo, como ouvi recorrentemente dos meus interlocutores garrons: “Todo mundo conhece os ciganos aqui”7 . Por isso, precisamos desviar o foco da origem e da vinculação ancestral ao espaço físico para a originalidade de manter fortes conexões locais com o espaço social baseados em um sucesso econômico de encontrar os nichos comerciais desocupados ou valer-se de forma hábil daqueles já tomados por brasileiros. Desse modo, esta dissertação está dividida da seguinte forma: no primeiro capítulo, intitulado “Por de trás das barracas: construindo os contextos de pesquisa”, exponho de forma breve minha trajetória acadêmica na área da ciganologia, apontando especificamente a importância de algumas alianças estabelecidas anteriormente dentro de um contexto de pesquisa com outra turma, localizada no bairro São Gabriel, em Belo Horizonte, no fomento a um ambiente propício à minha aproximação e realização da atual pesquisa dentro do acampamento da turma, localizada no bairro Céu Azul. Sinalizo a imprescindibilidade desse background para a definição da temática pretendida inicialmente, que sofreu modificações diante da própria dinâmica do meu campo. Apresentar as transformações substanciais ocorridas no meu enfoque, metodologia e sujeitos de pesquisa podem contribuir para a atuação e compreensão de outros contextos similares envolvendo pessoas calon. Apesar, evidentemente, desta dissertação tratar especificamente dos sujeitos calon do Céu Azul, não poderia evitar de tratar questões tão caras, não somente à prática antropológica, mas à construção do conhecimento e seus compromisso éticos-epistêmicos. Porém, tais apontamentos serão apresentados tão somente quando guardarem consonância com as discussões relacionadas a esta pesquisa, assim como coloca Judith Okely sobre os desvios despropositados de explanações meramente pessoais dentro do texto: “aqui o passado do 7 Esse fragmento foi selecionado de uma entrevista realizada com Gilberto, um dos ciganos calon moradores da turma, do bairro Céu Azul, e se figura como um dos recorrentes exemplos da explicações concernentes às justificativas de permanência deles no território. No capítulo 4 aprofundo -me nos argumentos relativos à construção dessa territorialidade. 12 antropólogo é relevante apenas na medida em que se relaciona com a experiência de trabalho de campo, análise e escrita”8 (OKELY, 1993, p.111). No capitulo dois, nomeado como “Agregando-me: o caso da regularização da turma do Céu Azul”, primeiramente abordo meu suposto engajamento que erroneamente antecedeu o próprio entendimento das lógicas nativas sobre a agência política, e através de uma série de equivocações na minha participação dentro de uma ação de regularização fundiária envolvendo a turma alvo da pesquisa, reposiciono minhas análise através do prisma das alianças e associações construídas com brasileiros em um diferente contexto de interações feitas diante de demandas recebidas ou feitas pelos meus interlocutores. Descrevo a minha tentativa de uma contrapartida frente à minha atuação enquanto pesquisador dentro do acampamento, e consequentemente minha captura numa rede polivalente, que horas se desfaz e se refaz em associações temporárias, permeada pelos mais diversos tipo de motivações e estratégias de como envolver os não ciganos nas resoluções de algumas questões pontuais dentro da rotina do grupo. Isso fica evidenciado na percepção do calons alvo de pesquisa em relação à atuação de alguns servidores públicos com envolvimento direto com a comunidade, e suas concepções próprias sobre “resolver nossas coisas” com a intervenção não cigana em determinadas ocasiões pontuais (cito aqui as visitas feitas por equipes de campo do CRAS- Lagoa ao acampamento, as relações desses calons com os documentos e tentativas de inseri- los numa “maior participação cidadã”). Por último, no capítulo três, nomeado Pegando o Ritmo, apresento as implicações da minha posição de pesquisador, com hábitos acadêmicos, homem (segundo eles afeminado), solteiro, garron, letrado, tímido, e posteriormente, residindo próximo a eles, na minha inserção dentro dinâmica de socialidade daquela turma calon. Além das considerações sobre as adequações do meu comportamento ao jeito calon de performar a postura corporal, voz, vestir-se e se expressar, estritamente relacionado aos contextos por mim presenciados, também exponho o que chamei de experiência do excesso entre os homens, e as atitudes necessárias ao desempenho de se tornar homem, por exemplo, a da provocação, a de dar o “perdido”, o comportamento nas festas, a forma de falar, os traquejos, os créditos oferecidos, a relação com os carros, as tecnologias (telefone celular), e os conceitos de frescura e ser popular. 8 Tradução livre do trecho em inglês: “Here the anthropologist's past is relevant only in so far as it relates to the experience of fieldwork, analysis and writing”. 13 Capítulo 1. Por de trás das barracas: construindo os contextos de pesquisa. Antes de avançar na apresentação mais detida das principais temáticas desenvolvidas dentro do contexto envolvendo propriamente, e de forma mais delimitada, a turma do Céu Azul, julgo imprescindível expor uma conjuntura mais ampla congregando situações etnográficas anteriores que proveram substancialmente as condições necessárias para a construção de alguma espécie de vínculo com aqueles calons interlocutores pesquisa, assim como, orientaram e deram subsídios no amadurecimento das escolhas dos temas que perpassaram este trabalho. Este capítulo visa, em última instância, expor os imponderáveis presentes na realização do trabalho de campo e as estratégias compostas com intuito de melhor acessar as invenções culturais (cf. WAGNER 2010) tão versáteis engendradas pelo grupo calon, além das minhas próprias para compreendê-los. Situar o trabalho etnográfico, e antes de tudo, posicionar-me como alguém atravessado por uma gama de questões éticas e sobre os limites de atuação antropológica, acaba por recolocar a empreitada antropológica como intrinsecamente vinculada aos compromissos postos e tencionados junto ao grupo participe da dissertação. Aproximo-me da afirmação do antropólogo Ricardo Seiça Salgado sobre a necessidade primordial da fundamentação e localização quando se faz etnografia, segundo o autor: “A etnografia é um termo de significados flutuantes, negociados ao longo da história da antropologia, ela carece sempre de um enquadramento com o desenho da investigação” (SEIÇA, 2015: 27). Por tanto, afirmo que não existe etnografia sem uma relação específica construída dentro de uma conjuntura ímpar de “circunstância e localização” (SILVA, 2009, p.172) e, por isso, o trabalho de campo se mostra permeado por algumas questões substantivas que permitem o acesso e permanência ao lócus de análise, e original e substancialmente, propiciam o tipo de fomento teórico, elaboração dos dados, e postura de engajamento dentro de cada contexto de pesquisa, tal como descrito novamente por Ricardo Seiça Salgado frente à relação entre etnografia e teoria antropológica. Segundo ele: “Sobretudo, a partir do momento em que se pensa a etnografia enquanto modo de ação, como uma experiência que é vivida, que é registrada, e sempre numa relação aberta e íntima com a teoria, isto é, enquanto modo de expressão. É aqui se podem potenciar relações, conexões possíveis com questões e dimensões mais amplas” (SEIÇA, 2015, p. 27). 14 1.1 Meus primeiros passos/escritas: antecedentes e precedentes. Talvez ao se elaborar um texto surja uma experiência de outra ordem, pois escrevivenciar9 sobre os próprios caminhos trilhados durante a pesquisa é ainda traçá-los de certa forma. Pergunto-me quais as diferentes trilhas me levaram até meus interlocutores, e delas quantas foram traçadas por convicção? Como se manter no caminho ondulante/fragmentário das fronteiras? (Ana Rita Referência, exposição oral) “Tentar encontrar o desenho certo na tapeçaria de seus próprios escritos pode ser tão desanimador como tentar encontra-lo na própria vida: tentar tecê-lo pos facto – ‘Isto é exatamente o que eu pretendia dizer’ – é uma verdadeira tentação”. (Clifford Geertz, 1989) “Compreender-se, portanto, mas também se revelar”. (Philipe Ariès, 1989) Não poderia me furtar em expor esta narrativa antropológica enquanto o encerramento de um tipo de vivência que se finaliza na escrita, ou seja, um terminal do conjunto das vivências em campo, e como tal, emerge como uma das muitas possibilidades de desdobramentos advindos dos contatos instituídos e restabelecidos com distintos sujeitos10no intercurso desta pesquisa. Esse término não diz respeito exclusivamente aos vínculos construídos durante essa dissertação, especificamente entre os anos 2015 e 2017, mas abrangem o período em que estabeleci algum tipo de relação com os diferentes interlocutores calon citados durante o texto. Minha escolha em alargar este recorte temporal veio como estratégia textual visando auxiliar na descrição das formas pelas quais este presente trabalho guardou ressonâncias com atividades anteriores realizadas em outro contexto envolvendo pessoas calon de outros acampamentos. 9 Termo usado pela escritora e professora de literatura da UFRJ Conceição Evaristo para descrever o processo criativo de relatar os próprios acontecimentos da vida (Fonte: palestra ministrada no SESC PALADIUM/Belo Horizonte, dia 27/04/2015). 10 Ao citar “sujeitos de pesquisa” não faço referência somente aos meus interlocutores de pesquisa calon, mas, também, aquelas pessoas não-ciganas que mantiveram alguma ordem de relação no intercurso da pesquisa comigo ou com a turma do Céu Azul. 15 Usar esse recurso se fez valoroso, pois minha própria aproximação ao principal alvo desta dissertação, a turma do bairro Céu Azul11, grupo localizado atualmente no bairro Céu Azul, na cidade de Belo Horizonte, esteve intimamente ligada às interações mantidas preteritamente com a turma calon do São Gabriel, residente atualmente no bairro São Gabriel, também localizado na mesma cidade, através de duas outras atuações de carater acadêmico acompanhadas anteriormente junto ao grupo. As articulações cunhadas nesse período compuseram uma conjuntura particularmente interessante de análise que propiciaram minha participação/observação de uma dinâmica parental específica envolvendo uma gama de espaços-territórios, principalmente congregando dois grupos diferentes e mutáveis situados na mesma região urbana12. Por isso, diante desse cenário, antes de desenvolver sobre as implicações reais do meu posicionamento dentro das movimentações/articulações contidas nessa malha13 comum entre/de calons, e as estratégias cunhadas buscando minha permanência dentro dela, apresento como efetivamente construí meu acesso, apesar de limitado e inconstante, a esse circuito específico de lugares, bairros, cidades em que se tece constantemente a socialidade desses coletivos calon. Meu contato inicial com a turma do São Gabriel se deu quando eu participava do Núcleo de Estudos em Populações Quilombolas e Tradicionais (NUQ/UFMG) 14, especificamente dentro do contexto de atuação deste na assessoria antropológica a esta comunidade calon envolvida em um processo de regularização fundiária do espaço-território habitado pela turma. Dada a centralidade deste processo15 nas decisões tomadas posteriormente na seleção das temáticas 11 Durante o transcorrer do texto haverá uma alternância entre o uso da terminologia “a turma do bairro Céu Azul” e “a turma do Céu Azul” para fazer referência aos calons localizados, provisoriamente ou não, no bairro Céu Azul, na cidade de Belo Horizonte/MG. 12 Coexistir em um mesmo município não significa consequentemente compartilhar algum tipo socialidade. Existe outro grupo cigano da etnia Ron situada em Belo Horizonte que atualmente não mantém nenhum tipo de relação com os grupos citados anteriormente. Ouvi alguns relatos durante o campo sobre a inimizade e tentativa de comércio com ciganos chamados de “ciganos portugueses”, porém não houve êxito. Esse resguardo entre essas comunidades já foi mencionado anteriormente por Fazito (2010). 13 Posteriormente, darei à devida atenção a definição mais detalhada de malha, provisoriamente, ressalto a relação estreita entre as afinidades parentais e os lugares de circulação e paragem das turmas, consequentemente, “a diversificação das alianças, a alteração das relações de poder entre grupos distintos, e também a simples troca de informações ou mercadorias” (Fazito, 2010, p.53). Além das duas turmas mencionadas anteriormente, existem outros grupos envolvidos nas diversas formas de alianças citadas, além das estratégia s de remanejamento e abertura do acampamento para pousos longos e curtos mediante uma série de fatores de ordem econômicas, parentais e situacionais (mortes/roubo/brigas). 14 A sigla significa Núcleo de Estudos em Populações Quilombolas e Tradicionais e fu nciona da UniversidadeFederal de Minas Gerais. O núcleo trabalha com atividades de pesquisa, extensão e assessoria antropológica as populações quilombolas e comunidades tradicionais. É formado por alunos, pesquisadores e professores, e é coordenado pela professora Deborah Lima, do Programa de Pós -Graduação em Antropologia da UFMG. 15 A complexidade envolvida na ação judicial referida, são desenvolvidas com o devido cuidado no artigo “Dilemas sa Diversidade em um Processo de Regularização Fundiária: O caso de Ciganos Calon em Belo Horizonte”, de Deborah Lima e Helena Dolabela. 16 desenvolvidas, enfoque e as próprias pessoas calons escolhidas enquanto interlocutores desta dissertação, apresento de forma sucinta a ação judicial referente a um conflito fundiário envolvendo a turma do São Gabriel e a prefeitura de Belo Horizonte, na gestão do prefeito Marcio Lacerda. O processo todo se iniciou em 2010, a partir do momento em que a turma do São Gabriel, formada por ciganos residentes há cerca de 30 anos no Bairro São Gabriel, na cidade de Belo Horizonte, sofreu uma real ameaça de expulsão do seu acampamento, em virtude do pleito desta área pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) para reassentamento de um contingente de famílias desalojadas devido às futuras desapropriações causadas pela obra viária de uma importante via da cidade, a duplicação da BR-381 (LIMA; DOLABELA, 2015). Devido ao protagonismo da liderança Carlos Rezende Amaral, frente a flagrante ameaça de expulsão sofrida por aquela comunidade, que mantinha uma relação de proximidade com alguns servidores públicos pertencentes à Regional Nordeste16, houve uma reação de resistência da comunidade com apoio de alguns agentes estatais. A partir dessa mobilização, outros parceiros foram se agregando, e um deles foi a Defensória Pública da União que fez a defesa comunidade junto ao seu pleito de permanência no seu território. Ao longo dessa ação judicial, o NUQ produziu dois relatórios antropológicos17 a pedido da Defensoria Pública da União em Belo Horizonte (DPU), em nome de Dra. Giedra Cristina Moreira, visando dar embasamento, por meio de informação técnica, à refutação feita por essa Defensoria ao posicionamento de não aplicabilidade da regularização fundiária ao grupo em detrimento do argumento, sustentado pela Consultoria Jurídica da Secretaria de Patrimônio da União de Minas Gerais (CJU/MG), que a característica de nomadismo do grupo era incompatível com a demanda de posse do espaço-território habitado por eles (LIMA; DOLABELA, 2015). A peça pericial desenvolvida pelo NUQ/UFMG teve papel central na caracterização de alguns aspectos específicos da socialidade do grupo, como também a relação com outras turmas dentro e fora de Minas Gerais. Dentre as informações figurou a construção da historicidade da chegada e permanência daqueles sujeitos ao longo dos 35 anos 16 O município de Belo Horizonte é subdividido em sub-regiões administrativas chamadas de regionais. O bairro São Gabriel está localizado na regional nordeste. 17 O primeiro Relatório antropológico foi elaborado no ano de 2011 por um grupo de voluntários do NuQ, em pesquisa coordenada pela professora Deborah Lima e redigido com os pesquisadores do NuQ Alexandre Sampaio, Bruno Vasconcelos, Deborah Lima, Fernanda Oliveira, José Candido, Maria Luíza Lucas Mariana Frizeiro, Maurício Filho, Paula Pimenta.cf. “Relatório Antropológico sobre o Grupo Cigano Calon do Bairro de São Gabriel, Belo Horizonte” (LIMA; DOLABELA; CAMPOS; GONÇALVES; SAMPAIO, 2011). 17 em que moram na região, o levantamento do número de famílias residentes no local e as conexões parentais existente entre elas. Os elementos probatórios elucidativos de um vínculo duradouro da comunidade com a área pleiteada serviram de subsídios contra o argumento da inaplicabilidade da regularização fundiária para os Ciganos Calon alvo do processo. Após a produção do laudo houve uma reavaliação do pedido pela Superintendência Patrimônio União-SPU, e em outra decisão, foi garantida a demanda da permanência da comunidade no território pleiteado. O NUQ, atendendo então a outra solicitação do poder público, produziu um segundo relatório antropológico18, no ano de 2013, propondo a extensão da real área de uso necessária para manutenção dos costumes, viveres e fazeres pertencentes àquela comunidade cigana Calon em relação à extensão do terreno público disponível, e resguardando as lógicas espaciais do próprio grupo. Um dos argumentos centrais de fundamentação para a delimitação da área regularizada foi a especificidade dos padrões de deslocamento encontrados no acampamento alvo da ação, e as conexões existentes entre a mobilidade, parentesco, comércio e ocupação da região19. Entres as atividades e competências atribuídas ao NUQ/UFMG dentro da atuação pericial, contribuí pontualmente junto ao processo, integrando a equipe de campo encarregada de aplicar questionários socioeconômicos que subsidiaram a feitura do segundo laudo antropológico elaborado pelo núcleo, no acampamento da turma de São Gabriel. Apesar da brevidade desta participação, principalmente contrastando com a totalidade de atividades presentes desde o começo da atuação do núcleo junto à comunidade, ainda assim, esse contato proporcionou uma experiência ímpar dada às informações mais preliminares sobre a área compreendida por aquele acampamento e a especificidade da sua localização na dinâmica da cidade, assim como o acesso a uma série de demandas daqueles interlocutores abrangendo ora 18 O Segundo Laudo contou novamente com a participação de voluntários do NuQ para o levantamento de dados de campo que foram sistematizados e compuseram o texto redigido por Deborah Lima, Helena Dolabela, Juliana Campos, Flora Gonçalves e Alexandre Sampaio, no ano de 2013, cf: “Avaliação da Demanda de Ocupação dos Ciganos Calon do Bairro São Gabriel, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil” (LIMA; DOLABELA; CAMPOS; GONÇALVES; SAMPAIO, 2013). 19 Julguei mais profícuo não esmiuçar detalhadamente os argumentos utilizados durante a elaboração dos dois laudos haja vista a dedicação exigida para uma analise mais pormenorizada sobre a complexidade do contexto do processo. Escolhi, apenas, delongar-me mais na apresentação do panorama geral da ação judicial e colocar referências mais detalhadas sobre o histórico da ação, atuação de diferentes agente públicos e da comunidade supracitada. Somente no capítulo três, toco de forma tangencial explicitando algumas informações sobre mobilidade laboral presente nas diversas atividades que compõe o cotidiano da comunidade daquele grupo. 18 negociações no âmbito coletivo20 , ora interesses na esfera pessoal/familiar, e consequentemente as harmonizações dos conflitos derivados desses tensionamentos. Posteriormente, houve iniciativas de pesquisa voltadas ao aprofundamento dos dados reunidos/coletados durante a feitura das duas peças periciais, por exemplo, o projeto de iniciação científica, desenvolvido por Marilene Ribeiro e Juliana Dutra, através NUQ/UFMG, que problematizou o acesso dos jovens e crianças da turma do bairro São Gabriel, ao ensino público na região através de um levantamento preliminar das escolas municipais com registro de matrícula e atendimento a esse público em particular. A partir desse estudo, interessei-me na investigação das especificidades do ensino escolar dentro das diferentes dinâmicas presentes no cotidiano daquela turma, e aproximo-me novamente desse grupo21, no final de 2013, para a elaboração da minha pesquisa de monografia no bacharelado em Antropologia, na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Optei como tema norteador desse trabalho o ingresso de alunos calon desta comunidade na educação regular ofertada pela Prefeitura de Belo Horizonte, e as tensões advindas do processo de inserção e manutenção dessas crianças nessas instituições públicas de ensino. Dada a dinâmica particular do exercício etnográfico pude também presenciar as modificações ocorridas no acampamento enquanto avançavam as efetivações derivadas das garantias jurídicas associadas à conquista da titulação do território. Posso exemplificá-las tanto pelas transformações ocorridas e com grande visibilidade e percepção externa, principalmente aos olhos daqueles minimamente familiarizados anteriormente com organização espacial das residências, cito, por exemplo, a reconfiguração da distribuição das tendas/casas no território compreendido pela comunidade e a modificação nos tipos de habitações22, principalmente a construção de casas de alvenaria e sua adaptação com uma extensão de lonas recobrindo sua parte frontal. Além daqueles ocorridos em planos mais imperceptíveis e aflorados em momentos conflitivos entre diferentes concepções de espacialidade e adequação das construções dentro de certos parâmetros técnico-científicos e arquitetônicos. Por exemplo, um dos casos acompanhados foram os embates gerados nas visi- 20 Poderia citar como exemplo o pleito por água canalizada, rede de esgoto e padrõ es de luz elétrica. Ainda à época se cogitava a construção coletiva de uma baia para cavalos e mulas. 21 Não conseguiria ter iniciado qualquer atividade de investigação nesse contexto sem o apoio do NUQ/UFMG. Agradeço especialmente a Helena Dolabella que pacientemente me acompanhou nas primeiras incursões no acampamento, e me apresentou a liderança Carlos Amaral, e devido s ua proximidade com ele que pude gozar de receptividade favorável a minha entrada lá. 22 Enquanto “habitações” aponto as diferente maneiras criativas daqueles calons construírem suas moradias. Existe um amplo conjunto de possibilidades de adaptações e estru turas encontradas, não cabendo nesse momento expor mais detalhadamente suas diferenças e variações. 19 tas técnicas entre os engenheiros da COPASA23, membros da comunidade, e arquitetos envolvidos em outros projetos24 paralelos no acampamento. Inspirado pelas transformações latentes percebidas nesse cenário, assim como a própria vontade de manter a proximidade construída na monografia, pretendia prosseguir minha pesquisa no acampamento, porém deslocando o enfoque da temática dos processos educacionais para as problemáticas relacionadas às modificações e permanências ocorridas nas dinâmicas sócio-espaciais daqueles calons após o complexo caso de regularização fundiária enfrentada pela comunidade, e a partir dele, aprofundar-me mais detalhadamente nos argumentos construídos em ambos os laudos produzidos pelo NUQ/UFMG que garantiram a manutenção daqueles interlocutores no seu espaço-território, principalmente aqueles argumentações voltados aos padrões de deslocamento efetuados pelo grupo. Por fim, acabei por priorizar me aproximar da turma do Céu Azul e as principais razões para a escolha na alteração desses interlocutores perpassaram principalmente por dois aspectos, primeiramente pela existência de maior número de material técnico e acadêmico produzido sobre a turma do São Gabriel, fruto da própria atuação do núcleo durante o processo descrito anteriormente, e o outro, a existência uma clara defasagem de informação mais refinada e/ou produção acadêmica relativa à turma do Céu Azul. Por isso, julguei premente a necessidade de suprir tal déficit constatado, não somente por um impulso meramente discricionário, mas, a partir das pesquisas anteriores25, a clara e estreita conexão existente entre ambas as turmas, tanto no âmbito de uma similitude nos processos históricos vivenciados de chegada/pouso/circulação pela cidade de Belo Horizonte, quanto, contemporaneamente, pelo seu reflexo em um fluxo constante de pessoas e objetos dentro de um circuito envolvendo diferentes comunidades ciganas. Diante dessa situação de desinformação verificada, concomitante com a clara percepção da existência dessa rede envol- 23A sigla COPASA significa Companhia de Saneamento de Minas Gerais, uma empresa mista de capital aberto que presta serviço de saneamento básico, gestão de resíduos sólidos e fornecimento de água potável para o Estado de Minas Gerais. 24A garantia de permanência da comunidade na área pleiteada foi construída através e um longo processo que envolveu uma série de agentes, como órgãos municipais, estatais, federais com posicionamentos antagônicos, além de projetos de pesquisa vinculados a UFMG, como “Cidade Alteridade”, sediado na Faculdade de Direito da UFMG, e à época, pela professora Miraci, além dele também uma equipe de arquitetos participantes no núcleo “Morar de outras forma”. 25 Além da minha monografia, “Alguns apontamentos sobre Ciganos Calon em Belo Horizonte, MG: políticas, diferenças e as tensões com a Educação, defendida em 2014, foram produzidas a dissertação, “Casamento Cigano: produzindo parentes entre os calons do São Gabriel (MG)”, Juliana M. Soares Campos, defendida em 2015, e o artigo, “Dilemas da Diversidade em um Processo de Regularização Fundiária: O caso de Ciganos Calon em Belo Horizonte”, de Deborah Lima e Helena Dolabella, de 2015. Até a defesa dessa dissertação estavam em andamento as pesquisas de campo para as teses de Juliana M. Soares Campos e Helena Dolabella, ambas versando sobre o grupo Calon de São Gabriel. As duas pesquisadoras estão cursando o doutorado pelo programa de pós-graduação da UFMG. 20 vendo diversos acampamentos26, julguei imprescindível desviar o foco da dissertação para comunidade situada no bairro Céu Azul. Inicialmente iria investigar as ambiguidades presentes no uso das classificações nomadismo/sedentarismo por diversos agentes públicos como ferramentas conceituais para entender as práticas cotidianas envolvendo deslocamentos e/ou paragens dos ciganos, e o tratamento destes frente as concepções sócio-espaciais específicas de comunidades tão heterogêneas quanto a dos ciganos no contexto brasileiro. Defini meu tema através da inquietação diante de uma decisão judicial negativa sobre a demanda de permanência no espaço-território pleiteado pela turma do São Gabriel dentro do caso de regularização apresentado. A justificativa dada veio sobre o argumento de não compatibilidade entre o pleito de regularização fundiária e a característica nômade dos “grupos ciganos”, ilustrado pelo parecer da CJU/MG contrário a permanência cigana, em que afirma: “Em análise dos autos, verifica-se apenas que as pessoas que supostamente pertencem à comunidade cigana vivem há mais de 20 (vinte) anos numa mesma localidade, ou seja, têm residência fixa, característica que serve apenas para afastar seu enquadramento como cigano que culturalmente são povos nômades” (apud LIMA; DOLABELA, 2015, p.85). Ao transpor essa hipótese inicial do contexto ímpar delineado pelo conflito fundiário do São Gabriel à conjuntura, na época ainda desconhecida, enfrentada pela turma do Céu Azul, ficou nítida a inexistência de uma conjuntura propícia à observação dos pressupostos lógicos contidos nas classificações nomadismo/sedentarismo. Por fim, não constatei esses conceitos sendo operados no âmbito do discurso, tanto através das falas e práticas rotineiras dos calons alvo da pesquisa presenciadas in loco27, quanto embasando ou dando subsidio à ações tomadas por funcionários públicos28 em diferentes situações de interação com os membros da turma do Céu Azul. A solução encontrada foi desviar das premissas que guardavam sentido no caso da regularização do São Gabriel, e buscar as especificidades mantidas entre os membros da tur- 26 Durante o trabalho de campo, entre as conversas corriqueiras com as pessoas calon da turma do São Gabriel, ouvia constantemente menção à turma do Céu Azul, assim como também presenciei o recebimento de parentes desta turma para festas, e também para visitas passageiras visando trocas comerciais ou por motivos afetivos. 27 Não presenciei o uso dos conceitos supracitados pelos sujeitos calon de pesquisa em nenhum momento, porém, tais classificações não são condição sine qua non de entendimento da pluralidade presente das suas práticas sócio-espaciais, e por isso, conceitos êmicos serão apresentados posteriormente como ferramentas mais fecundas de análise. 28 Não negligencio a potencial fecundidade de trabalhos voltados ao aprofundamento dos usos dessas terminologias manejadas por possíveis agentes envolvidos em casos pontuais de discordância classificatória, e são justamente tais embates que propiciam repensar e trazer à tona os numerosos impasses enfrentados ao se deparar com grupos que possuem práticas de mobilidade não hegemônicas, tanto pelos termo s empregados para delimitar deslocamentos, quanto pelo entendimento e sentidos incorporados pelas próprias distâncias percorridas. 21 ma do Céu Azul e diferentes garrons que buscaram alguma espécie de proximidade com eles, assim como as próprias reações do grupo a essa aproximações. 1.2 Seguindo os traços dos Calons: entrada, resistência e possibilidades. Que este pequeno esforço e ajuda contribua para uma dissertação repleta de originalidade e desbravamento, que buscou integrar a visão de um mundo visto somente pelo lado de fora entre um mundo visto através de um caleidoscópio cheio de fragmentos a serem compreendidos e girados, até que um dia os olhos da grande máquina-mão, geradora-giratória e mantenedora desta sociedade possa abrir os olhos e colorir seus pedaços muitos estilhaçados pela labuta diária dessas peças afórmicas que compõem e refletem pelo triangular espelho a sua verdadeira forma, com dignidade, sempre. (Dérika Freire, 2010) “E neste sentido, não chega ‘lançar as redes’ no local certo e esperar que algo caia nelas, é necessário ser um caçador ativo, conhecedor das marés, e lançar bem ao fundo, conduzir para as redes a sua presa e segui-la até aos esconderijos mais inacessíveis” (Ricardo Seiça Salgado, 2015) “A diversidade teórica da antropologia torna difícil generalizar criticamente sobre o campo, por mais oportunas que possam ser certas apreensões críticas das derivas da teorização” (Roy Wagner, 2010) Nesse subcapítulo, busco especificamente discorrer sobre a trama sinuosa entre trabalho de campo e as estratégias narrativas textuais elaboradas, e/ou escolhidas, no intuito de expressar um percurso único e os imperativos de afetividades, suspeitas, suspeições, afetos e negociações associadas aos seus contextos. Assemelho a posição de Roberto DaMatta sobre a busca de “uma fusão de horizontes” – como caracteriza o autor – entre pesquisador e os sujeitos participes da pesquisa. Diz o autor: “Não se coloca a contrapartida deste mesmo processo a identificação dos nativos com o sistema que o pesquisador carrega com ele, um sistema formado entre o etnólogo e aqueles nativos que consegue aliciar ... para que lhe digam 22 segredos, rompam com lealdades, forneçam-lhe lampejos novos sobre a cultura e a sociedade em estudo29 (DaMatta, 1978, p. 8) Além de expor as particularidades da minha aproximação e efetiva construção de um ambiente de esforço de entendimento e estranhamento mútuo, proponho articular alguns dilemas e afetações enfrentados na minha experiência em campo para pensá-las à luz das discussões fomentadas pela área da ciganologia. Para tanto, julguei necessário apontar de forma mais minuciosa as relações estabelecidas com cada um dos principais interlocutores durante meu percurso e, a partir delas, demonstrar como o roll de temáticas elencadas durante a dissertação estão intimamente interligados com um encontro intersubjetivo singular fruto de um tipo de relação de alteridade construída dentro daquele contexto circunscrito. No âmbito da escrita, a estratégia escolhida para expor as informações etnográficas recolhidas e construídas no decurso da minha experiência foi investir em uma descrição mais acurada e ampla de alguns aspectos contidos nos casos observados. Para isso, o recurso textual no qual me apoiei passou pela confecção de trechos mais longos, porém com características fragmentárias e inconclusas, como se fosse um caleidoscópio de pedaços textuais revirados e constantemente referenciados de maneira criativa pelo leitor. Quando efetivamente se chegar às descrições, ficará nítido o aspecto de incompletude desses relatos, por vezes causando a sensação de certo deslocamento das passagens pontuadas, mas, em contrapartida, há neles uma profusão e sobreposição de temáticas congregadas em um único trecho descritivo que poderão ser posteriormente retomados em outros tópicos durante o texto. Minha intenção ao escolher esse método foi tencionar a compartimentação dos múltiplos aspectos componentes da prática etnográfica, e ampliar o escopo informacional a outras agencialidades que permeiam a vida das pessoas e, por conseguinte, adotar uma postura mais cuidadosa na descrição dos casos citados. Acredito que os fragmentos etnográficos, como nomeei esse pedaços inconclusos de relatos de campo, apesar da sua natureza inacabada, auxiliaram-me a abranger a observação aos fatores sensoriais dos fenômenos presenciados, por exemplo, através das descrições sonoras, olfativas, afetivas, discricionais e pessoais. Através deles também busco revelar uma afecção real sobre a temática e deixo esse sentimento transformar a escrita de maneira substancial. A complexidade na escolha da mane- 29 Cabe frisar minha distância às ideias de aliciamento, de compra ou negociações forçosas entre aqueles envolvidos na pesquisa. Na minha visão sobre a prática etnográfica, ambas as partes precisam ser informadas sobre futuros acarretamentos advindos das diversas naturezas que podem assumir a pesquisa, e apesar de cada grupo interpretar ao seu modo, mediante esforços de readaptação ao seu universo às práticas acadêmicas, ainda assim é imperativo de uma pesquisa reflexiva o esclarecimento dos objetivos, fases e possíveis efeitos da pesquisa ao grupo envolvido nela. 23 ira adequada de trabalhar e selecionar os dados etnográficos frente à profusão de informações é um fato largamente presenciado na antropologia, e retoma as primeiras reflexões metodológicas postas por Bronisław Malinowski, tal como afirma o autor: “Caos de fatos, alguns tão pequenos que parecem ser insignificantes; outros, tão amplos que parecem difíceis de serem abrangidos de modo sintético” (MALINOWSKI, 1976, p.150). Fomentar inovações na redação (ou mesmo, aproximar-me de práticas contemporâneas de apresentação da forma final do texto, tais como, feita por Annemarie Moll (2002) na sua pesquisa sobre esclerose múltipla, e pontuo e me aproximo da sua defesa da intrínseca retroalimentação entre forma e conteúdo) não foi mobilizado de maneira fortuita e nem de modo desinteressado para rebuscar as descrições ou desviar o foco dos imperativos organizacionais daquele grupo para uma autoanálise da minha percepção sobre os acontecimentos presenciados, mas, ao contrário, viso primeiramente me posicionar enquanto pesquisador dentre uma miríade complexa de questões éticas e de atuação antropológica, muitas vezes extravasando possíveis limites da pesquisa e, enquanto tal, revelar uma honestidade intelectual frente aos meandros, conflitos e dificuldades tão comuns no trabalho de campo. Não pretendo expor possíveis contratempos banais sem qualquer vínculo com a pesquisa ou sem relação com os interlocutores de pesquisa, pelo contrário, busco pontuar aqueles momentos realmente envoltos por situações reveladoras das dinâmicas de feitura e conclusões de pesquisa. A antropóloga Claudia Fonseca salienta com precisão o devido papel da reflexividade dentro da pesquisa antropológica, e me avizinho a sua postura: “O antropólogo deve inevitavelmente incorporar a tensão entre sua formação intelectual e sua exposição a visões dissonantes do mundo. Nessas circunstâncias, não é surpreendente constatar que as inquietações éticas e políticas do exercício etnográfico, em vez de serem solucionadas com a maturidade do pesquisador, tendem a crescer” (FONSECA, 2008, p.2). Com os fragmentos etnográficos trago a lume uma gama de tonalidades textuais revelando aspectos relacionados às sensorialidades dos fenômenos presenciados e vividos, assim como também menciono as argumentações relativas à necessidade da reflexividade pelo pesquisador, e a partir dela sustento minha preferência por determinada forma de relato de campo. Somo também aos motivos da escolha em usar os “fragmentos etnográficos” como uma defesa da etnografia, e como tal, vislumbro reafirmar a importância significativa das informações etnográficas, não somente os dados construídos em si, que em última instância não existem sem contexto complexo nos quais foram gerados, mas o arcabouço teórico do autor, suas predileções, artifícios, facilidades e efetivas estratégias de condução e negociação frente outras maneiras de conceber o mundo, natureza, trocas, dentre outros. Assim como 24 reflete Roy Wagner sobre a natureza das realidades, como definida por ele: “Realidades [...] são o que fazemos delas, não o que elas fazem de nós ou que nos fazem fazer” (WAGNER, 2012, p.33). Evidentemente, com essa posição, não poderia cair no extremo oposto de um foco demasiado e restrito aos contextos particulares de cada trabalho de campo - conjunturalíssimo etnográfico, primeiro porque, assim como afirma Mariza Peirano, "um antropólogo bem formado teoricamente é um antropólogo bem informado etnograficamente" (PEIRANO, 1995, p.20), segundo ela, não existiria etnografia, eminentemente antropológica30, sem um aprofundamento teórico-metodológico pautado no contexto mais amplo da tradição já cunhada pela disciplina. Escolho dar uma ênfase importante na etnografia, e a partir dela construo minhas argumentações, e dessa forma busco me mostrar fiel aos dados de campo, antes que às reflexões teóricas. E se este trabalho tem algo a oferecer, seria justamente na etnografia que se acha a minha contribuição ao campo de estudos sobre calons. Naturalmente, cada escolha metodológica acarreta determinadas potencialidades e defasagem no entendimento dos múltiplos acontecimentos sobrepostos e pertencentes ao cotidiano de determinado grupo cigano calon, tanto no âmbito da circulação do pesquisador dentro dos diferentes locais de paragem, quanto na abrangência de determinadas temáticas desenvolvidas com certa densidade mediante a facilidade em acesso aos contextos almejados, tal como pontua Marcio Goldman, sobre a limitação do olhar do pesquisador para selecionar os fenômenos de análise, e aproximo-me da sua afirmação referente à presença das nossas preferências e limitações no recortes efetivados: “Eles não me deixaram esquecer, portanto, que os recortes a que submetemos a vida social testemunham apenas nossas próprias incapacidades e limitações" (GOLDMAN, 1999, p.12). De maneira similar, como aponta Roy Wagner na sua perspectiva de usar o termo cultura enquanto recurso metodológico explícito e formador “da cultura do pesquisador”, assim como a sua escolha ser apenas um ponto de vista particular com as devidas implicações que ela acarreta: “Ao escolher um terreno novo e diferente, apenas troquei um conjunto de problemas e paradoxos por outros, e o novo conjunto é tim-tim por tim-tim tão formidável quanto o antigo. Um exame exaustivo desses problemas seria proveitoso, assim como o seria um arrolamento de evidências pró e contra minha posição. Mas, argumentos e evidência dizem respeito a um nível de investigação (e talvez de “ciência”) diferente daquele visado aqui” (WAGNER, 2012, p.20) 30 Não afirmo levianamente a exclusividade da metodologia da etnografia à prática antropológica, entretanto, faz- se necessário diferenciar empreitadas de trabalho de campo munidas de reflexões conceituais como diferença e alteridade, daquelas envolto do mito de Malinowski fundadas em uma suposta autoridade etno gráfica. 25 Dentre os procedimentos metodológicos adotados para as descrições de alguns fenômenos particularidades presenciados durante o trabalho de campo, deparamo-nos não somente com a inclinação a determinadas técnicas e estratégias visando a melhor inserção nos distintos contextos percebidos, mas também com alguns dilemas seminais relativos à maneira pela qual a figuração dos interlocutores de pesquisa no texto final pode gerar interpretações prejudiciais ao próprio coletivo descrito. Às vezes, predileções vistas como banais, como por exemplo, a referência aos interlocutores de pesquisa pelos seus nomes reais pode tocar em questões delicadas no âmbito dos parâmetros éticos de realização do trabalho antropológico. Tal explanação é apresenta por Claudia Fonseca, como “o dilema envolvendo o uso (ou não) do anonimato no texto etnográfico” (FONSECA, 2008, p.4). A opção pelo anonimato prescinde de uma reflexão detida da conjuntura encontrada no momento do estabelecimento e manutenção dos laços etnográficos mantidos e do entendimento dos interlocutores sobre os intuitos, naturezas e posteriores circulações do material, apesar de possíveis dificuldades encontradas para conciliar concepções díspares de expectativa e real importância facultada à pesquisa. No meu caso, em torno de três ou quatro estudantes realizando trabalhos acadêmicos31 estiveram próximos da comunidade de maneira tangencial sem possuir nenhum projeto de longa duração. Dada essa volatilidade e inconstância dos assédios no acampamento, os entendimentos sobre a pesquisa realizada possuíam entendimentos dessemelhantes pelos meus interlocutores calons. No âmbito específico da prática antropológica, as interpretações tomaram contornos interessantes, pois, no decorrer da pesquisa houve perspectivas diferentes do meu papel e a da materialidade final dos estudos mediante meus reposicionamentos a novas conjunturas formadas em decorrência tanto das minhas preferências, quanto das ingerências dos interlocutores calons. Através de um longo processo transversal e contínuo de explicação e exemplificação dos intuitos almejados por minhas intervenções junto à comunidade, consegui criar um espaço de entendimento, que de maneira semelhante, cambiou sensivelmente no desenrolar das interações interpessoais com os calons. Logo ao perceber que meu posicionamento estava pautado em premissas estranhas aos próprios envolvidos na pesquisa, abandonei a pretensão de uma suposta convergência completa nas concepções das minhas ações efetuadas, e percebi que cada um à sua maneira, tanto do meu lado, quanto dos membros daquela turma, interpretava aquela atuação de forma diferente. Li as visões frente à 31 Pela complexidade da temática da publicidade das informações da academia e o entendimento dela enquanto instituição por pessoas fora dos espaços de produção desse conhecimento, apenas ressalto o vasto espectro de interpretações frente a um universo composto por diferentes agentes. 26 minha presença, apesar da fragmentação e marcante incompletude no entendimento real delas, enquanto um voto de credibilidade, ou outra forma, segundo alguns interlocutores, uma flagrante confiança na incapacidade de prejudicá-los. Difícil precisar a anuência dos nossos interlocutores para o uso das informações reveladas, haja vista, a meu ver, que os corriqueiros comentários dando assentimento ao prosseguimento do empreendimento antropológico muitas vezes não vem acompanhado dos esforços derradeiros das explicações sinceras dos possíveis impactos e funcionamento da circulação do material final com o registro de diversas informações da comunidade. Como explicito anteriormente, apesar do diversos regimes de entendimento nos quais são envolvidos o conhecimento e a prática antropológica, a tentativa constante da instauração de ambientes propícios ao mútuo esforço de descoberta entre os saberes do pesquisador e dos interlocutores de pesquisa podem convergir para possíveis entendimentos da pesquisa. Por exemplo, os próprios ciganos começaram a entender minhas atividades enquanto uma vontade de “pegar o ritmo”, ou seja, de aprender diversas atividades que compõe seu mundo. A confiança conquistada com a comunidade, aliada à minha posição política em prol de ressaltar as singularidades históricas do grupo, me levaram à decisão de conservar os prenomes originais 32 como forma de reforçar uma contra-história dos grupos subalternos diante de narrativas históricas hegemônicas, e por isso o registro mais fiel e detalhado das pessoas calons. Pretendia ressaltar esses sujeitos como partícipes centrais, no passado e no presente, da cidade de Belo Horizonte e de sua história. Além disso, busquei com os dados expostos manter a possibilidade de poderem ser usados futuramente, dada a não conclusão do caso jurídico enfrentado pelo grupo. Da mesma forma, refleti com cautela a seleção dos fragmentos escolhidos para serem trabalhados e expostos, pois a responsabilidade enquanto pesquisador prevalece sobre qualquer pretensa riqueza etnográfica das informações, e nesse caso me aproximo da posição do antropólogo Clifford Geertz sobre as consequências da pesquisa e dos possíveis impactos duradouros de uma exposição indevida dos interlocutores de pesquisa. Como diz o autor: “A tese de que o pensar é sério por ser um ato social, e de que, portanto, somos tão responsáveis por ele quanto por qualquer outro ato social. Talvez mais ainda, pois o pensamento é o ato social de maiores consequências a longo prazo” (GEERTZ, 2001, p.30). Apesar do detalhamento na descrição dos fragmentos etnográficos, muitas vezes pontuando minúcias da personalidade de cada membro da turma, mantive a preocupação de não expor os 32 Não inclui o sobrenome para reforçar o modo de tratamento cotidiano bem como para diminuir a exposição dos meus interlocutores. 27 interlocutores de forma demasiada pelos possíveis constrangimentos advindos dos registros das informações confidencializadas. Meu intuito ao relatar com esmero suas predileções, gestos, traquejos e comportamentos, visou revelar uma faceta de maior pessoalidade dos interlocutores, apontando assim, a riqueza contida não somente na organização societária, concepção cosmológica, entre outras características ricas compartilhadas pelo grupo, mas frisar também detidamente os trajetos específicos, as idiossincrasias e preferências particulares realizadas pelas pessoas de maneira tão singular e muitas vezes relegadas por explanações mais generalizantes e pretensamente mais ricas. Meu objetivo em me posicionar a favor das impossibilidades, genialidades, invenções e criações colocadas em funcionamento em lugares diminutos e não esperados dentro da socialidade calon visaram trazer outras possibilidades de análise para o material etnográfico. Logicamente, a produção do material esteve ligada às minhas próprias limitações de acesso e às relações que estabeleci com meus interlocutores, assim como aponta Ricardo Seiça a respeito da pesquisa sempre ser atravessada mediante as próprias particularidades do pesquisador: “A percepção de uma situação é radicalmente influenciada pela personalidade do observador, pelas suas ansiedades, manobras de abordagem (algumas, até, defensivas), as suas estratégias de investigação, as metodologias, as suas decis ões e posições que atribuem significado às observações, a própria razão em ter optado estudar este aspeto e não aqueloutro” (SEIÇA, 2015, p.28). E evidentemente, como mostrado antes, não me detenho de forma unilateral nos fragmentos etnográficos, dando primazia unívoca aos imponderáveis e a particularidade de forma demasiadamente subscrita, pois somente o faço para demonstrar uma retro alimentação entre determinadas trajetórias, trejeitos e particularidades pontuais de cada interlocutor e as temáticas elencadas durante a dissertação. Concordo com Judith Okely quando ela aponta a interconectividade entre diversos aspectos e níveis de interação presente durante a pesquisa. Segundo ela existem: “Ligações entre a experiência do antropólogo do trabalho de campo, outras culturas, outras noções de autobiografia e, finalmente, o texto escrito” (OKELY, 1993, p. 22). Dessa forma, detalhar cada um dos calons/calins pertencentes ao meu ciclo afetivo (de troca, contato, e desentendimento) pretendeu facilitar ao leitor a compressão dos vínculos construídos e algumas características de cada calon/calin selecionados como protagonistas do processo atravessado durante a etnografia. Retomando a questão da experiência do antropólogo, vejo como uma necessidade premente o uso da reflexividade nas pesquisas, e minha posição vai ao encontro da opinião de Roy Wagner referente ao ponto de vista do antropólogo e a qualificação dos objetivos, e segundo o autor: “O antropólogo é obrigado a in- 28 cluir a si mesmo e seu próprio modo de vida em seu objeto de estudo, e investigar a si mesmo” (WAGNER, 2012, p.39). Para isso, além da apresentação detida de cada um dos meus interlocutores mais frequentes, explano como se articularam as estratégias de permanência junto aos ciganos durante minha experiência de campo. Ao longo da pesquisa foram realizados reposicionamentos constantes dentro das relações mantidas com os calons, e por isso, a necessidade de uma administração de determinados tensionamentos que me obrigaram a certos fluxos de ausência e presença devido aos atritos criados por conta de desentendimento advindos da incerta jurídica da titularidade da área do acampamento. Assim como apontado por Hélio Silva sobre a necessidade vital de atenção e cuidado da posição do pesquisador durante o exercício de campo, busquei trazer a reflexividade de maneira central para minha prática e redação do texto, segundo o autor: “De um lado, autopercepção e formulação de trajetórias permanentemente revistas. De vários outros lados, percepções alheias e permissões e restrições de deslocamentos também revistas constantemente” (SILVA, 2009, p.177). A primeira estratégia de campo foi feita através visitas esporádicas ao acampamento da turma do Céu Azul, compreendendo o período aproximado entre outubro de 2015 e agosto de 2016. Como colocado anteriormente, essas datas sempre possuem uma característica artificial, escolhidas somente como forma de expor de maneira mais compreensível a distinção entre algumas etapas vivenciadas ao longo da pesquisa, pois apenas a quantificação temporal enquanto baliza não garante, de antemão, um exercício de alteridade praticado diante das pessoas no qual se interage e busca efetiva em proporcionar um terreno propício de reflexividade, afectação e torção mútua. Apesar de morar na mesma cidade que meus interlocutores, tal coexistência não implicava em proximidade física e nem no compartilhamento de alguns princípios fundamentais ao grupo e, na realidade, a ampla distância do local da minha moradia à época até o bairro onde se situa o acampamento obrigava-me a incursões à região mais breves que ocorriam no período diurno se alongando raras vezes até ao anoitecer. As atividades consumadas durante o lapso temporal citado estão dentro de uma primeira etapa de campo composta por uma experiência de natureza menos densa nas suas informações etnográficas sobre a socialidade interna ao grupo. Contudo, consegui reunir um material expressivo referente às relações de diversas naturezas entre brasileiros vinculados a diferentes instituições, grupos e ONGs, e membros dessa turma. Principalmente, por intermédio do acompanhamento e participação nas 29 controvérsias em torno da instalação do processo de regularização fundiária envolvendo a comunidade pesquisada. Os desdobramentos advindos dessa primeira etapa de campo, composta prioritariamente por aproximação àqueles interlocutores e maior empenho na investigação relativa à situação fundiária da área habitada pela comunidade, levaram-me a optar pela intensificação no acompanhamento de outros afazeres, trocas, festividades, e atividades feitas pelos meus interlocutores calons na própria região circunvizinha do acampamento. Dada a esporadicidade das minhas visitadas e o meu investimento com questões mais circunscritas à relação entre garrons e brasileiros, não conseguia ter acesso ao cotidiano vivido de forma mais regional pelo grupo. Visando uma inserção mais profunda na realidade calon, busquei negociar com os próprios moradores uma possível permissão para minha estadia dentro do rancho33. Apesar de uma receptividade positiva das lideranças a respeito dessa estadia em um terreno temporariamente sem uso no acampamento, não foi possível concretizar minha mudança para lá, e as razões contrárias a meu deslocamento vieram devido à incerteza jurídica envolvendo a área que sofria ingerências regulares do pretenso proprietário dos terrenos, Renê Santana. De qualquer forma, ainda não havia um clima propício para um garron, ainda desconhecido, adentrar-se naquele ambiente tão facilmente e ainda compartilhar e coabitar intensamente aquele espaço. E apesar do acolhimento positivo demonstrado por alguns calons à proposta de mudar-me para lá, e chegou a ser cogitado a compra de material, como lona e toras de madeira, para a construção de uma tenda, penso hoje que tal decisão tenha sido a mais acertada, pois me mudar para o rancho me demandaria um compromisso e cooperação junto à comunidade difíceis de garantir devido ao tempo exíguo da pesquisa, e além de poder gerar constrangimentos ainda maiores do que aqueles já protagonizados durante o convívio com a turma. A solução vislumbrada foi mudar-me para a região circunvizinha à comunidade cigana, por indicação dos próprios calons que foram centrais em ajudar-me na concretização dessa opção alternativa. A partir de uma proximidade geográfica mais estreita, consegui efetivamente ter acesso a uma série de atividades, dinâmicas, e temporalidades antes inacessíveis com uma metodologia de visitas mais espaçadas e de menor duração de permanência nos diferentes ciclos nos quais pude me inserir durante a pesquisa. Depois desse momento, dentre o período de outubro de 2016 a março de 2017, comecei abandonar certos posicionamentos de explícito 33 Essa terminologia foi usada pelos meus interlocutores calons para se referir ao local de morada das turmas. Em certas situações possuíram um sentido similar a acampamento ou pouso permanente, porém, necessitaria de mais campo para conseguir sistematizar uma diferença mais precisa dos seus usos. ferramenta metodológica utilizada, logicamente sobre o prisma de uma objetividade relativa, engajamento à causa territorial da comunidade, sem deixar de me atentar para possíveis ameaças de arbitrariedade ou pressão acometida a eles, e passei a me comportar de forma menos contundente e participativa frente às questões relativas às políticas públicas que tangenciavam em alguns momentos o cotidiano da turma. Por fim, mostrou-se uma escolha acertada distanciar-me estrategicamente dos eventos envolvendo essa ação judicial, e inclinar- me de maneira mais delicada à realidade substancial ocorrida em segmentos micro e macrorregionais perpassados pela turma, e assim, realmente seguir os sujeitos de pesquisas nos seus afazeres diários. Em ambos os casos pautei minha metodologia sobre a égide de seguir a fluidez das movimentações dos meus interlocutores nos diferentes espaços frequentados. Porém, na primeira etapa da pesquisa, acabei seguindo uma dezena de agentes estatais e grupos empenhados na “causa cigana” – reproduzindo uma expressão recorrentemente usada por esses agentes – nos diversos espaços nos quais eram realizadas ações provendo a defesa desse grupo. Já na segunda etapa, quando possível, busquei frequentar as diversas festividades, como casamento de parentes da turma e festas ocorridas em outros acampamentos. Também acompanhei alguns calons nas oficinas de carro, nos bares, nas lojas de eletroeletrônicos, nos “Topa Tudo” (lojas de compra e venda de usados e seminovos), nas padarias, entre outros recintos frequentados nas imediações do acampamento. Por fim, cabe elucidar que minha escolha ao delimitar de forma mais detida alguns interlocutores calon não se pautou em dicotomias entre trajetórias pessoais extraordinárias e parâmetros de entendimento, moral e ética mais estruturais. Meu intuito foi demonstrar o exercício de dupla transformação complementar existente entre contextos socializantes e individualizantes da construção daquilo cunhado por eles de “pegar o ritmo” de sua turma. Para isso, aproximo-me dos processos de diferenciação constantes existentes numa dinâmica específica entre inovação e convecção que tornam os processos coletivos enquanto indivualizantes, e os processos de individuação enquanto socializantes/coletivizantes. Nesse sentido, aproximo-me da ideia Roy Wagner sobre o recurso de diferentes metáforas na construção e reatualização das convecções de determinado grupos, como aponta o autor: “A distinção entre metáforas convencionais, ou coletivas e metáforas individuantes não é contudo perdida; ela fornece um eixo de articulação entre expressões socializantes (coletivas) e expressões que conferem poder (individuativas). Além disso, o aspecto coletivo da simbolização é também identificado como o modo moral, ou ético, da cultura, colocando-se em uma relação dialética com o modo factual” (WAGNER, 2012, p.24). Durante o texto farei novamente as devidas menções às particularidades de cada uma das 30 31 porém não pretendo delimitar artificialmente uma diferença estanque entre as duas posturas, entre um antes e depois de residir perto do acampamento, e na verdade, meu intuito foi somente atentar para a existência de diferentes dinâmicas de campo durante a pesquisa. Concordo com a posição de Judith Okley sobre interconectividade complexa entre diversas etapas e facetas da pesquisa antropológica, e cito como exemplo o trabalho de campo, a redação do texto, a seleção de dados e as relações interpessoais construídas durante todo o processo de pesquisa com os interlocutores: “[...] trabalho de campo e análise posterior constitui uma práxis unificada ... a situação etnográfica é desafiado apenas pela sociedade nativa em questão, mas também pela tradição etnológica sobre a cabeça do etnógrafo. uma vez que ele é, na verdade, no campo, pressupostos do nativo também tornou-se operacional, e toda a situação se transforma em mediação intercultural complexo e uma experiência dinâmica interpessoal34” (OKELY, 1993, p. 22). 1.3 Estereotipias ciganas: Uma história em continuum “Uma história de ciganos deve ser feita de muitas exceções, impossibilidades, contradições, incongruências, contra-sensos. Essa perspectiva tem um cigano que extrapola a coerência que a escrita tradicional do historiador exige; as condições espaciais e temporais individualizam muito os ciganos; a história dos ciganos é a história de um mosaico étnico. Este cigano - total abstração - é como a repetição infinita de um modelo ou motivo que se realiza através de variantes ilimitadas” (Rodrigo Teixeira, 2008) Temos visto que, se tentarmos generalizar conceitos ou hipóteses para compreendermos os ciganos, correremos o sério risco de reificarmos as relações e os fatos, além de, eventualmente, promovermos a exclusão de uns tantos indivíduos, alienando-lhes a própria identidade, ou ainda, instituindo novos estereótipos como a busca pelo “verdadeiro cigano” ou o “cigano puro”, como podemos encontramos na literatura ciganológica. (Dimitri Fazito, 2000) 34 Minha tradução livre do trecho original: “[…] fieldwork and subsequent analysis constitute a unified praxis [...] the ethnographic situation is defied only by the native society in question, but also by the eth nological tradition on the head of the ethnographer. Once he is actually in the field, the native's presuppositions also became operative, and the entire situation turns into complex intercultural mediation and a dy namic interpersonal experience” 32 As dificuldades em elaborar narrativas históricas35 dos ciganos36 brasileiros (do/no Brasil)37 são múltiplas e evidentes. De um lado, a documentação parca dificulta o aprofundamento de casos singulares; de outro, existe a pouca confiabilidade nos relatos encontrados, haja vista a não comprovação de sua veracidade diante de posturas enviesadas e preconceituosas dos seus redatores (MOONEN, 2001). Contrastando com a apontada precariedade documental, figura-se um panorama complexo de trajetórias particulares engendradas por famílias e/ou indivíduos ciganos durante um período compreendido por décadas no território brasileiro, trajetórias estas que muitas vezes foram minimizadas através de classificações limitadoras. Como afirma Rodrigo Teixeira a respeito das generalizações dos documentos no processo de retratar os diversos coletivos ciganos38: “a documentação se detém pouco sobre os ciganos singulares, que se tornam desprovidos de existência. Quase sempre incidem sobre ‘o cigano’, entidade coletiva e abstrata à qual se atribuem as características estereotipadas” (TEIXEIRA, 2008, p. 32). O desafio se coloca justamente no exercício de dimensionar o alcance das interpretações históricas vinculadas às possibilidades oferecidas pela documentação. Caso se apresentem fragmentárias e ausentes em demasia, acabam obrigando a dilatação do recorte temporal investigado, o que pode causar generalizações infundadas. E como se não bastasse os registros históricos não serem suficientes nem confiáveis para uma explanação mais lúcida e assertiva 35 Não me deterei especificamente na historiografia e história cigana no Brasil, apenas levanto algumas posturas interpretativas diante da leitura de algumas informações e narrativas construídas em torno do tema, para uma bibliografia mais específica, olhar: (TEIXEIRA, 2008; MOONEN, 2001.) 36 Como apresentarei durante esse segundo capítulo, a terminologia “cigano” encerra uma polifonia de sentidos, imagens e estereótipos, e por isso mostra-se limitada para agregar uma multiplicidade de diferenças perceptíveis entre grupos originários de diversas localidades, com costumes particulares e dinâmicas sociais específicas. O mais sensato é tratar essas realidades enquanto comunidades ciganas, assim como aponta Teixeira sobre a diferenciação entre essas coletividades, “historicamente diferenciadas... mantendo relações de semelhança e/ou dessemelhança umas com as outras” (TEIXEIRA, 2008, p.6). 37 A maneira de nominar esse exercício historiográfico demonstra as controvérsias de apresentar as trajetó rias de grupos ciganos enquanto no Brasil ou do Brasil. Escolhi, principalmente nesse capítulo que toca em questões referentes a controvérsias sobre narrativas históricas de grupos ciganos, tratar através do termo do/no Brasil visando contemplar situações múltiplas de alguns grupos que não guardaram, e não guardam, senso de pertença com os lugares de origem quando chegaram ao Brasil, como também, contemporaneamente, coletivos ciganos de outros países, provisoriamente em território nacional. 38 Cabe ressaltar a grande dificuldade na confiabilidade de alguns documentos relativos aos grupos ciganos do/no Brasil, haja vista um olhar desinteressado em compreender de maneira aprofundada qualquer aspecto ou dinâmica da vida desses coletivos. Por isso, notadamente, tais documentos muitas vezes se prestam apenas ao registro histórico da presença desses coletivos. Sendo assim, as narrativas histórica sobre os ciganos normalmente partem dos brasileiros com visões estereotipadas desses grupos. Como colocado por Viana: “A história dos ciganos, de maneira geral, tem sido escrita por não ciganos e, nesse sentido, torna -se difícil confirmar sua veracidade, pois tal estudo se dá de forma contrastiva, sempre em relação à cultura gadjé (não cigana) (VIANA DE OLIVEIRA, 2010, p.21). 33 sobre um “conjunto de comunidades dispersas pelas mais diversas regiões do Brasil” (TEIXEIRA, 2008, p.1), outros complicadores se somam a esse panorama pouco favorável para a construção de uma narrativa histórica mais fundamentada e confiável. Posso citar como exemplo, a própria existência de um mosaico intrincado, composto de diferentes grupos com trajetórias históricas ímpares que configura um contexto de pluralidade39 na forma de vivenciar e performar as múltiplas identidades ciganas40, vistas no mundo através de tantas designações: “além de Rom ou Roma, temos também Gypsies, Tinkers ou Travellers, Zingari, Sinti, Manouches, Lovara, Kalderash, Yéniches, Mačvaja e ainda Halab, Ghaga ou Ghajar, para citarmos apenas algumas denominações correntes na Europa, na América do Norte, no Egito e no Sudão” (SEABRA, 2006, p.3), que se encontram presentes no Brasil principalmente através daqueles coletivos que se auto identificam enquanto Rom, Sinti e Calon41 (VIANA DE OLIVEIRA, 2010). A antropóloga Virgínia R. Santos aponta justamente para a heterogeneidade dos percursos desses coletivos diversos, principalmente por possuírem características próprias que proporcionam diferentes experiências de integração regionais e locais42 (SANTOS, 2002). As dificuldades de projetar uma imagem uniforme persistem mesmo quando, por fins meramente especulativos, recorta-se somente uma parcela diminuta dos ciganos, como por exemplo, os calon do/no Brasil. A pluralidade criativa de soluções encontradas pelas famílias ciganas para se estabelecerem em diferentes espaços sociais, bem como os percursos únicos por elas trilhados dentro do território nacional, apontam para a incapacidade de classificações unificadoras no retrato das especificidades históricas de cada grupo. Acerca disso, Santos aponta: 39 Existe uma visível defasagem em trabalhos acadêmicos versando sobre as relações estabelecidas entre diferentes grupos ciganos autodeterminados de maneiras diferentes, por exemplo, a trocas, alianças, casamentos entre grupos calons e rons. Sobre o tema existem algumas menções pontuais nos trabalhos de Fazito (2000), Moonen (2001), Ferrari (2010). 40 Tais denominações não acontecem apenas em face de contraposições aos não ciganos, mas também emergem enquanto diacríticos quando em relação a grupos ciganos diferentes. A diversidade no plano terminológico só expressa uma diferenciação criada através de uma série de estratégias e enfrentamentos diários de reconstrução de posicionamentos que enunciam a diferença. 41 Segundo Teixeira (2008, pp 6-7), existiriam no Brasil três grandes grupos que se diferenciam em sua autodeterminação enquanto ciganos. Os Rom, que se dividem em sub grupos como Kalderash, Matchuara, Lovara e Tchurara), e são associados principalmente à Europa Central, migrando posteriormente, no século XIX, para os países da América e leste europeu. Haveria também outro subgrupo autointitulado Sinti (ou Macouch, dependendo da região da qual fazem parte), normalmente encontrados nos países Alemanha, Itália e França. Especificamente no caso brasileiro, existe uma defasagem enorme referente à situação ou presença dessas comunidades em território nacional. Da mesma forma os Sinti possuem a mesma origem e data de chegada no Brasil. E ainda os Calon, falantes da língua calo, comumente habitantes da península Ibérica, (principalmente Portugal e Espanha), que a partir dela migraram rumo para os países continentais europeus e para a América. 42 Sobre a crítica de uma suposta identidade imutável que representaria todos os ciganos, formando uma cultura única, olhar MARTINEZ (1989); FERRARI (2010); ACTON (1974). 34 “Os pesquisadores e a sociedade tentaram categorizar os ciganos ao longo da história, mas frequentemente esses povos não se entendem como tal, já que entre eles há uma grande ramificação de peculiaridades socioculturais, principalmente pelo estilo de vida, língua, dialeto, profissões, por exemplo. (SANTOS, 2013, p.7) Se a tentativa de tratar analiticamente grupos tão heterogêneos enquanto unidade coesa através de um suposto processo histórico homogêneo é incapaz de traduzir as conjunturas singulares vivenciadas43, e perpetuadas por esses grupos, da mesma forma, a busca de uma coesão através de uma ancestralidade mítica ou uma origem comum a todos aqueles autodenominados ciganos se mostra ainda mais problemática. Apesar das inúmeras controvérsias e da falta de embasamento histórico mais fundamentado, alguns pesquisadores ciganólogos (como PETER GODWIN, 2001; MOONEN, 2000; FORMOSO, 1896), argumentam favoravelmente sobre a existência, por volta de 1000 anos atrás44, de um ancestral comum a esses diversos coletivos supostamente originários da região atualmente pertencente ao subcontinente indiano. Depois de uma série de ameaças sofridas, tais grupos foram forçados a realizar uma dispersão em massa, primeiramente para os países balcânicos e em seguida para os países do resto da Europa (VIANA DE OLIVEIRA, 2010, p. 2). Somente a partir desse movimento é que “espalharam- se pelo continente europeu, deixando de ser um povo homogêneo” (VAZ, 2005, p.6). Diante de um cenário territorial tão amplo e permeado por especificidades regionais, além de um recorte temporal extremamente dilatado e sem a devida correspondência documental para fundamentar voos interpretativos tão abrangentes, aproximo-me da perspectiva de Brazzabeni (2009) sobre a tentativa infrutífera de alguns ciganólogos em encontrar em fatos tão heterogêneos e dispersos entre si um sentimento unificador dos diferentes grupos ciganos. Segundo a antropóloga, aqueles ciganólogos inclinados a uma interpretação favorável a uma ancestralidade comum cigana não conseguem ponderar dois pontos díspares dessa equação, perdendo-se em um sentimento compartilhado de ancestralidade45 frente às dinâmicas locais de integração engendradas pelos mesmos coletivos. Segundo ela, “para mais de vinte anos, os 43 Haja vista a “(re)adaptação às variações regionais constantes, sejam pelas diversidades naturais, culturais, socioeconômicas, políticas, que por sinal, são grandes” (SANTOS, 2013, p.8) 44 Não pretendo expor de forma mais delongada as narrativas históricas construídas sobre as comunidades ciganas no mundo, apenas teço algumas considerações e orientações acerca das posturas frente ao material histórico e sua consonância com as possíveis observações etnográficas encontradas contemporaneamente. Para maior informação sobre as narrativas históricas construídas sobre as coletividades ciganas, olhar: (TEIXEIRA, 2008) 45 As formas pelas quais diferentes coletivos ciganos se apropriam de determinadas narrativas históricas como instrumentos estratégicos para o alcance de demandas de fortalecimento identitário em arenas políticas regionais ou internacionais se mostra variada e de rendimento teórico grande. Aponto não o uso político dessas narrativas, mas algumas posturas errôneas de construí-las como válidas para traduzir percursos tão díspares e complexos na relação entre ciganos e não-ciganos. 35 autores mostram que se deve ter principalmente em conta a história da Europa e da integração local das comunidades diferentes [...] se alguém quiser entender realidades sócio-culturais” (BRAZZABENI, 2009, p. 9). Por isso, para além do caráter incerto da legitimidade e fidelidade dessas narrativas de origem (TEIXEIRA, 2008), cabe aos pesquisadores buscar compreender o desdobramento efetivo de elementos performativos de afirmação identitária presentes em dinâmicas específicas de demarcação das diferenças (FAZITO, 2000). Também entender o panorama oposto, quando simplesmente a vinculação ancestral não é acionada como discurso estratégico nas performances identitárias. Como argumenta Silva Sanchez sobre a natureza ímpar da relação de um grupo Rom46 com seu passado: “Eles não estão preocupados em especificar, ou delimitar sua origem, território e trajetória. Parece, dizem os antigos, que viemos do Egito, mas não estamos interessados nesses fatos históricos da mesma maneira que vocês”47 (SILVA SANCHEZ, 2006, p.31). Enquanto a origem mítica não sustenta a argumentação de uma partilha unificadora, outros ciganólogos buscam nas perseguições, expulsões, violências e degredos sofridos pelas diferentes coletividades ciganas ao longo da história48 um sentimento comum que possibilite refletir a historicidade desses grupos sob um mesmo prisma interpretativo. Escolhem, por exemplo, a violência perpetuada por uma miríade de não ciganos, através ou não de instâncias administrativas, como uma base universal compartilhada pelos ciganos, como afirma Teixeira: “Toda história dos ciganos é, na verdade, uma viagem... nas políticas anti- vagabundos e antiartistas, nas religiões, nas concepções de mundo, com os quais vários grupos ciganos, sucessiva e contraditoriamente, tiveram contato. Nisso a universalidade dos ciganos se manifesta” TEIXEIRA, 2008, p.8). Ainda, como apresenta Silva Sanchez em relação às lembranças marcantes dessas experiências violentas vivenciadas por diferentes grupos ciganos: 46 Uma autoproclamada liderança cigana do grupo Rom, representante da União Cigana do Brasil, também relata a dificuldade de se comprovar uma origem precisa de um grupo ancestral dos diferentes grupos ciganos. Em uma das suas entrevistas sobre o tema afirma não ser possível precisar essa informação, e afirma: “Não se pode dizer que a origem é esta ou aquela”. (VAZ, 2015) 47 Cabe ressaltar, ao se fazer referência às diferentes cosmovisões relativas às temporalidades ciganas, a diferença no tratamento e valorização de passado, presente e futuro. Também a relação complexa interposta entre os três na construção de uma memória social coletiva e, consequentemente, como tais concepções temporais articulam práticas e dinâmicas sociais nos contextos regionais na contemporaneidade. Tentarei, no próximo capítulo, explorar minimamente essa temática no caso circunscrito do grupo calon com quem mantive relação. 48 Sobre perseguições, degredos, expulsões, e outros tipos de violências cometidas contra os ciganos no Brasil, olhar: Teixeira (2008); Schepis (1997); Martinez (1989); Fonseca (1996); Moonen (2000). 36 “Os judeus, ainda segundo Fonseca, “reagiram à perseguição e dispersão com uma monumental indústria da memória. Os ciganos – com sua peculiar mistura de fatalismo e espírito de humor – tornaram o esquecimento uma arte (...) pouquíssimos ciganos conhecem bem sua história coletiva, mas nenhum é inconsciente de sua marca de perseguição” (FONSECA apud SILVA SANCHES, 2006, p.32) Apesar de evitar entrar no mérito sobre o histórico das perseguições relatadas em documentos de diferentes naturezas encontrados tanto no Brasil49 quanto na Europa e, aqui, apenas pontuo com veemência a explicitude desses sujeitos serem historicamente perseguidos, necessito, novamente, atentar para o cuidado que se deve ter quando se buscam grandes narrativas com o intuito de equalizar fenômenos que se desdobram localmente - inclusive aquelas situações belicosas e conflitivas envolvendo comunidades ciganas. Meu desígnio não é desqualificar os trabalhos que contemplam tais temáticas, porém, demonstro preocupação com as grandes narrativas históricas pautadas em premissas de conjunturas desfavoráveis permeando quaisquer relações entre comunidades ciganas e não ciganas, pelo simples motivo dessa postura interpretativa não dar conta da diversidade presente nas negociações e tratativas estabelecidas em casos particulares. Dessa forma, advogo contra uma visão redutora contida em tal postura. Primeiramente, porque a construção das socialidades desses grupos não está necessariamente ligada a um conhecimento histórico desses acontecimentos; muito pelo contrário, as singularidades das concepções temporais permeiam aspectos para além da preservação e acesso deforma memorialística e, na realidade, apresentam complexidade nos “sentidos de espaço e tempo, de momento e lugar” (BRAZZABENI, 2009(2), p.489). Acerca da desvinculação entre a manutenção de uma socialidade cigana e o conhecimento dos processos históricos relatados por outrem, Oliveira aponta: “Ser cigano, pertencer a um povo cigano, não significa necessariamente também conhecer a origem, a história, a cultura, a problemática e a realidade atual deste povo, ou melhor, das diversas minorias ciganas que existem no mundo e no Brasil” (VIANA DE OLIVEIRA, 2010, p.18). Em segundo lugar, uma visão meramente persecutória50 da história encobre as habilidades desses coletivos ciganos de se estabelecerem em diferentes localidades, explorarem seus ni - 49 Não há dúvida da história de perseguição enfrentada por coletivos ciganos no Brasil, atestadas em demasia por relatos e documento relatando justamente medidas repressivas frente à presença cigana em diversas instâncias administrativas. E ainda hoje existem de maneira volumosa casos de violências simbólicas e físicas voltadas contra essas coletividades, apontarei mais detalhadamente sobre os casos perpetradas contra grupos ciganos no estado de Minas Gerais que pude acompanha junto da Secretaria de Direitos Humanos. 50 Cabe ressaltar a dificuldade dos dados sobre os procedimentos das deportações e a fidelidade d a documentação e a correspondência efetiva em prática administrativa. Tais medidas não ocorrem sem as ambiguidades e os conflitos com diferentes instâncias, por isso, além disso, como aponta Moraes Filho, "o rumo posteriormente 37 chos econômicos e se relacionarem com a vizinhança de maneira particular, sendo esses justamente os fenômenos mais relevantes ao se tratar de trajetórias tão plurais, por isso, tais vínculos não podem ser tratados de maneira secundária, pois fazê-lo seria ignorar “assim a realidade retumbante de uma presença secular de grupos de ciganos com diferentes e mais profundos níveis de integração em suas sociedades” (BRAZZABENI, 2009, p.26). Dessa forma, uma suposta generalização das relações entre ciganos e não-ciganos como pautadas exclusivamente em descriminação, violência e anticiganismo minimiza as particularidades das relações pactuadas consoante às pontualidades das dinâmicas territoriais, laborais, econômicas, e regionais ímpares. Como coloca Vaz, essas relações podem “ou não experimentar relações conflituosas com os não ciganos” (VAZ, 2005, p.10), e mesmo sua existência precisa ser interpretada à luz dos mecanismos e redes acionadas pelos ciganos frente às ameaças perpetuadas. Reconheço a abundância dos relatos referentes à belicosidade frente à presença cigana em território nacional e as dificuldades enfrentadas no decorrer da sua permanência nele (atualmente refletidas principalmente pela insegurança jurídica dos terrenos arranchados51). Todavia, devo pontuar o caráter problemático e os perigos de uma leitura superficial das relações construídas mediante embates, conflitos e disputas. Tais querelas precisam ser tratadas com a devida contextualização e dimensão histórica, recolocando sobre os grupos ciganos uma narrativa sob a ótica das dessemelhanças macrorregionais e circunscrita às conjunturas tecidas desde a chegada ao Brasil. Isso permite acentuar os contrates entre ocupações efetuadas por esses grupos em diferentes momentos e identificar suas implicações no âmbito relacional. Ao discorrer sobre a necessidade de apontamentos mais cuidadosos ao tratar uniformemente experiências tão dispares, Teixeira afirma: “Trata-se de uma enganosa generalização, sem dúvida, pois que o espaço e o tempo modificam sensivelmente a constituição desses "sujeitos". (TEIXEIRA, 2008, p.6). O resguardo excessivo nas relações com os brasileiros - pautadas sobretudo na discriminação e violência (SANTO, 2013) -, acompanha muitas vezes o raciocínio de que consequentemente a violência generalizada levaria a uma exclusão dessas comunidades ao entorno e, por conseguinte, ao isolamento. Como pontua Vanelli: tomado pelos deportados, quantos internaram-se nas florestas ou permaneceram nos centros colonizados, é uma questão complexa e de resolução dificílima" (MORAES FILHO, 1981:27, apud VAZ, 2005,p.6). 51 Faço referência estritamente às denúncias de conflito fundiário em que tive acesso enquanto colaborador junto à Superintendência de Comunidades Tradicionais, dentro da Subsecretaria de Igualdade Racial, pertencente à Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania, do Estado de Minas Gerais. Aqueles casos de deslocamentos forçados e violências perpetradas contra comunidade ciganas dentro do Estado de Minas e observados por mim serão apresentados durante o texto. 38 “a problemática da invisibilidade social dos ciganos nômades no Brasil, tendo como diferencial que, por sua cultura étnica, não buscam a inclusão social e econômica, na mesma perspectiva dos povos historicamente excluídos, porque possuem uma estrutura de sociedade própria que se desenvolve em paralelo à sociedade gadjé (não-ciganos). (VANELLI, 2010, p.25) A referida argumentação, tal qual o olhar generalizado sobre a violência e exclusão/isolamento, enseja uma interpretação errônea e desvia o foco de análise das dinâmicas ciganas dentro dos círculos econômicos e sociais por eles engendrados, bem como de seu sucesso ou falha em acessar de forma diferenciada os nichos econômicos de consumo, circulação de mercadorias ou prestação de serviços no âmbito local. Acerca dessa relação entre os dois grupos, Vanelli escreve que “os ciganos são interdependentes no aspecto econômico, já que é na sociedade gadjé a fonte de sua sobrevivência” (VANELLI, 2010, p. 261) Novamente, não pretendo negar, de forma ampla, no contexto brasileiro, um histórico extremamente desfavorável a essas comunidades tratadas recorrentemente através de relatos estereotipados que as associam a características fantasiosas ou, como diz Seabra, “fundadas numa proveniência misteriosa, numa vida supostamente livre e errátil, a que se juntaria uma predileção pela música, pela dança e por outras manifestações de alegria e sensualidade, perfazendo um quadro mais apelativo que o anterior, mas igualmente enganoso” (SEABRA, 2006, p. 1). Porém, faz-se necessário redimensionar, quando possível e de forma mais detida, tais episódios, visando no mínimo evitar uma postura ingênua de interpretar irrestritamente as relações entre ciganos e não-ciganos através de uma “desvinculação social, política, religiosa, cultural e econômica da sociedade dos gadjés” (VANELLI, 2010, p. 254). Logicamente, existe uma grande dificuldade de tratar a história através da “perspectiva de um estudo exaustivo do cotidiano cigano, já que as fontes não propiciavam fazê-lo” (TEIXEIRA, 2008, p.3), por isso, antes de exigir qualquer detalhamento, apenas demonstro a falácia da “estereotipia da figura cigana como sendo universal” (VIANA DE OLIVEIRA, 2010). De qualquer maneira, não sugiro a invalidade de trabalhar com documentação referente aos grupos ciganos no contexto brasileiro - na verdade, o que se tem é o cenário de uma defasagem enorme de textos acadêmicos versando sobre tais assuntos e temáticas. Apenas ressalto que tais segmentos nunca ficaram à margem da história, mas participaram dela à sua maneira (BRAZZABENI, 2009), e, dadas as especificidades mencionadas, não existiria qualquer tipo de paralelismo histórico desses grupos. Na realidade, é preciso entender como tais registros apontam ou sugerem panoramas mais amplos das escolhas locais de cada grupo (ou seja, as possibilidades oferecidas pelas 39 características específicas dos lugares, comércios, disponibilidade de ofícios e sistemas hierárquicos); entender como cada rede parental delimitada aproveitou ou criou estratégias singulares de manutenção e exploração do ambiente ao qual se integrou, no sentido de aproveitar as potencialidades propiciadas por determinadas conjunturas históricas. Dessa maneira, faz-se necessário compreender os casos particulares à luz de panoramas circunscritos no tempo e no espaço, e de que maneira tais conjecturas se dão “como um fator de integração dessas famílias na sua ambiente regional, e de forma mais ampla nacional” (BRAZZABENI, 2009, p. 15). Um evento exemplar desse cuidado interpretativo é apresentado por Alves de Souza & Melo (2010) na sua pesquisa sobre a trajetória familiar através da memória social de ciganos calon moradores do bairro Catumbi, no Rio de Janeiro. Segundo o estudo de caso, fica nítido como, através de uma rede familiar extensa, alguns sujeitos calon tiveram acesso “à administração pública da cidade e à sua florescente vida comercial”, e como tais atividades foram exercidas mediante uma maneira singular daqueles calon interagirem com as possibilidades comerciais presentes na época sem deixarem de operar através de um arranjo parental próprio. Tal análise, além de seu valor histórico, auxilia na compreensão de como atividades desempenhadas atualmente guardam ressonâncias com processos iniciados no século passado por gerações anteriores dos atuais moradores calons do bairro Catumbi. Como explanam os autores do referido texto, “a repercussão dessas atividades na vida dos ciganos pode ser sentida ainda hoje, em especial, a participação institucional no Judiciário” (ALVES DE SOUZA & MELO, 2010, p. 2). O caso ilustra bem como tais grupos não somente se deparam com uma conjuntura singular dos sistemas administrativo e judiciário, mas, percebendo a possibilidade de composição com tal arranjo, se valem dele e se inserem de forma precisa e cuidadosa numa hierarquia permeada de autoridade, notoriedade e status. Ao agregar sua rede familiar em determinados ofícios, influenciaram cabalmente na dinâmica da cidade: tanto no âmbito social, a ponto de as ruas do bairro possuírem referências explícitas a eles, quanto economicamente, enquanto grandes comerciantes de escravos e membros das hierarquias do sistema jurídico da época. A questão central colocada nesse episódio investigado é colocada pela seguinte indagação: “Será esse, então, mais um caso no qual a pertença étnica oferece uma alternativa coletiva para que se desenvolvam estratégias de sucesso econômico e de promoção daqueles que a compartilham?” (ALVES DE SOUZA & MELO, 2010, p. 2). 40 Da mesma maneira tento mostrar um contexto amplo histórico, muitas vezes entremeado de contradições e com oposições de fontes, mas que possibilite pensar como o grupo alvo da minha pesquisa presenciou determinados nichos econômicos em funcionamento e como através de uma maneira própria de se pensar o comércio, a família, parentesco mobilidade. A meu ver, as maneiras locais e também a tipicidade de certas regiões, rotas, bairros, e também a história envolvendo a constituição das cidades podem elucidar, ou pelo menos abrir margem para se interpretar a manutenção de algumas práticas. Por isso, buscando “uma interpretação alternativa à marginalidade territorial e social destas pessoas” (BRAZZABENI, 2010, p. 6), postularia justamente as diferenças dadas pelos meios onde estão presentes, por isso, não me valeria de uma continuidade histórica translocal do disperso conjunto de sujeitos que se autodeterminam como ciganos. Assim como coloca Seabra sobre a importância da localização desses sujeitos ciganos quando se explica possíveis recorrências históricas: Um dos grandes pressupostos deste estudo é o de que não se deve falar de tais grupos sem atender ao contexto mais vasto em que se encontram inseridos, ou semi- inseridos, o qual vai mudando de região para região e de época para época. Daí que seja arriscado produzir generalizações abusivas acerca dos Ciganos. De qualquer modo, é sempre possível discernir semelhanças de família entre comunidades ciganas afastadas no espaço ou no tempo, o que em larga medida se explica pela posição tendencialmente oblíqua que a maioria destas comunidades ocupa face ao universo social e institucional envolvente (justificando-se por isso uma atenção cuidada aos dados recolhidos por outros autores (SEABRA, 2006, p. 3) 1.4 Uma breve apresentação dos interlocutores No decurso do trabalho tive oportunidade de gozar da convivência de diferentes pessoas ciganas advindas de acampamentos localizados em diversos municípios de Minas Gerais, porém mantive convívio mais constante principalmente com um conjunto mias delimitado de calons moradoras no bairro Céu Azul, da cidade de Belo Horizonte. Aqueles que posso considerar como principais interlocutores de trabalho foram o casal Gilberto (Moreno) e Patrícia, Ronin e Poliana, Bebeto (Bebeca) e Renata, Felipe e Larissa, e também, Baiana e sua filha Lucinha. De forma menos intensa e com certa restrição, pude interagir com o casal Vieira e Rosimar, Leandro e Paulinha, Shely e Roseli, Nandinho e Ana, Giovane e Simone, Juninho e Dara e Bandeira e Márcia. Durante a pesquisa, meus interlocutores me identificavam numa condição ambígua de homem solteiro, e por isso, obtive maior acesso ao universo masculino daquela turma. Minha condição de homem apareceu como elemento central para influenciar e limitar as inclinações, 41 ponderações, percursos e efetivos laços mantidos de maneira estreita com meus interlocutores. Concomitantemente a minha performance masculina, muitas vezes realizada de maneira indevida e caricata, figurou o aspecto geracional de maneira importante nesses arranjos. Nesse caso, cada geração apareceu enquanto um marcador significativo de determinados comportamentos esperados ou permitidos/valorizados dentro da turma. A época da minha chegada, no fim de 2015, ao acampamento, localizado entre as ruas Luiz Cantagalli e Novecentos e Um, pertencente ao bairro Céu Azul, divisa com o bairro Lagoa, na cidade de Belo Horizonte, havia cinco casas de alvenaria e sete barracas/tendas pertencentes aos ciganos calons, e mais seis casas de alvenarias pertencentes a brasileiros, dentro da área compreendida pelo acampamento. No caso, o uso pelos calons daquele espaço era compreendido por uma utilização bem singular através dos tratos dos cavalos, catira, troca de habitação de lugares, recebimento da chegada de parentes, e consequentemente sua evasão, porém, essa territorialidade criada através dos afazeres diários mantinha uma complexa negociação constante com o dito proprietário dos terrenos compreendidos pelos acampamentos, Renê Santana. Os terrenos estavam em nome do pai do Renê Santana, Tele Santa, porém com seu falecimento em 2008, suas posses estavam em inventário para serem passados para seus herdeiros, entre eles Rene Santana. A controvérsia sobre a suposta ou não propriedade da área por Renê Santana se deu por conta da natureza do documento apresentando como comprovação da sua titularidade, sendo uma escritura de uma antiga fazenda da região chamada “Fazenda Olhos D’agua”, e por conta da imprecisão do tamanho da área dessa propriedade, somado a suspeita de grilagem através de documentos semelhantes na época em que Telê Santa comprará o documento, o cenário era de incerteza frente a propriedade da área (tratarei com mais calma no próximo capítulo). Nas três imagens que seguem abaixo, a primeira figura representa o município de Belo Horizonte subdividido politicamente em regiões chamadas regionais que exercem funções administrativas do poder executivo. A área em vermelho situa a regional Venda-Nova que congrega diversos bairros, dentre eles, o bairro Céu Azul, sinalizado em azul. Dentro do bairro Céu Azul, o acampamento está localizado aproximadamente dentro da mancha em amarelo, e sua localização administrativamente dele está aproximadamente 95% dentro do Bairro Céu Azul e 5% dentro do Bairro Lagoa. Na segunda imagem, a distância do acampamento, circulado em laranja e, a casa onde residi durante a segunda fase do trabalho de campo, em vermelho. A terceira imagem a baixo mostra a localização das habitações com seus respectivos membros. 42 Imagem 2 43 44 2. Tecendo e destecendo políticas: equivocações, atuação e cosmopolítica. O presente capítulo tem como ênfase a análise de diversos espaços de interação entre garrons e calons sobre política frente às ações ditas enquanto tais, e o entendimento particular sobre os objetivos políticos feito por ambas às partes, principalmente sobre controvérsias envolvendo a ocupação, dinâmica e posse da área compreendida pelo acampamento da turma calon moradora do bairro Céu Azul. Cabe frisar que os ciganos envolvidos nos diversos acontecimentos abrangendo uma concepção particular sobre “demanda política”, o fizeram a partir de uma compressão própria, dentro do seu repertório e convenções, do significado, importância e reação adequada frente a tais proposições. É importante ressaltar também a participação diferenciada dos calons dentro das atividades consideradas enquanto políticas, e inclusive a participação nos momentos de negociação e acompanhamento dos espaços de interação política não somente colocou os interlocutores enquanto pessoas ativas dentro de um cenário complexo envolvendo uma gama de brasileiros qualificados de maneiras díspares, mas decisivamente transformava e tencionava a própria concepção de política usada por tais sujeitos não ciganos, revelando ainda entendimentos diferenciados do fazer político quanto à aproximação peculiar ao pensamento político dos brasileiros. A minha contribuição analítica esteve circunscrita pontualmente à tentativa de elaborar uma perspectiva teórica debruçada no próprio entendimento da turma calon partícipe da pesquisa frente a algumas demandas de brasileiros apresentadas ao grupo enquanto políticas, assim como também entender as atuações perpetradas e as lógicas acionadas por meus interlocutores para conseguir manejar a presença da atuação política brasileira dentro do acampamento. Distanciei-me de uma posição teórica que entende os mecanismos e convenções calons através dos próprios termos não ciganos, por exemplo, concebendo a dinâmica de aproximação e afastamento dos garrons realizadas pelos meus interlocutores calons pelo crivo do cálculo racional, relegando as atitudes dos sujeitos ciganos a teoria dos “Atores políticos, classes, o homem calculista” (Wagner, 2012, p. 18). Rejeitar tal enquadramento não nega comportamentos e atitudes visando interesses particulares e coletivos. Na realidade, somente ressalta uma potência criativa de fazê-los segundo outras lógicas de entendimento. Obviamente, existem interesses nos aspectos mais diversos que possam compor as atividades cotidianas da turma, como o comércio, as relações de trocas, a 45 mudança de moradia, entre outros. Porém, se nego as palavras interesse e cálculo pelo viés teórico citado, tenho como intuito frisar justamente a diferença de entendimento dos mesmos. Por isso, pretendo elucidar que não se trata de um elogio do relativismo de certos aspectos ditos culturais, por exemplo, diferentes formas de perseguir interesses e cálculos dentro de um mundo comum, mas, pelo contrário, de afirmar mundos diferentes no seu concebimento e procurar as diversas formas pelas quais “o homem inventa suas próprias realidades” (Wagner, 2012, p.11). Dessa forma, não é suficiente apenas um trabalho etnográfico mais denso no tocante a extensão temporal; o entendimento do meu posicionamento e a maneira criativa de conceber o outro, enquanto obviação (Wagner, 2012), assim como a concepção da prática etnográfica e os fins do trabalho antropológico, estavam fundamentados em convenções bem delimitadas que foram acionadas dentro uma arena congregando práticas e convenções objetivadas e obviadas por sujeitos com concepções políticas (e do político) diferentes e diferenciadas de maneiras singulares. Nesse ponto, aproximo-me da concepção de Roy Wagner sobre a diferenciação criativa e constante realizada pelas pessoas ao inventar suas próprias culturas e que sobrepõem-se às diferentes metáforas que se retroalimentam tentando fazer e refazer o sentido dos acontecimentos: “Todas as simbolizações dotadas de significado mobilizam a força inovadora e expressiva dos tropos ou metáforas, já que mesmo símbolos convencionais (referenciais), os quais não costumamos pensar como metáforas, têm o efeito “inovar sobre” (isto é, ser reflexivamente motivados em contrate com) as extensões de suas significações para outras áreas. Assim, [...] deriva significado cultural de atos criativos de entendimento inovador, construindo metáfora sobre metáfora de modo a redirecionar continuamente a força de expressão anteriores e subsumi-la em novas construções ”. (Wagner, 2012, p.23) Nesse segundo capítulo, não busco, através de fenômenos explícitos e latentes, pensar em determinadas causas e/ou bases comportamentais dadas a priori, conceber determinados fenômenos e considerá-los enquanto óbvios. Pretendo, por outro lado, mostrar a retroalimentação entre convenção e invenção na criação de determinados entendimentos de mundo, e o faço não enquanto constituição cultural dos processos, mas comparando diferentes contextos e convenções de maneira que os processos de criações deles se façam evidente, através da minha criação criativa frente o outro – visão externa – que é a própria maneira do outro de construir sua realidade, assim como afirma Roy Wagner: “Desse modo, seria um tanto ingênuo esperar que um estudo da constituição cultural dos fenômenos argumentasse a favor da “determinação” do processo, ou de partes significativas dele, por algum contexto fenomênico específico e p rivilegiado, especialmente quando o estudo argumenta que tais contextos assumem seus significados em grande medida uns a partir dos outros” (WAGNER, 2012, p.18). 46 Por fim, ressalto ficar mais nítido neste capítulo o duplo caráter presente nessa dissertação, que somente reflete um percurso específico realizado durante toda pesquisa, e nela coloquei- me enquanto agente atuante na resolução de demandas apresentadas pela turma pesquisada. Dessa forma, elaborei, simultaneamente, uma reflexão teórica acerca da minha experiência etnográfica vivenciada com os meus interlocutores, assim como também firmei um compromisso de ajudar nos pleitos apresentados pelos calons do Céu Azul. Aproximo-me da afirmação de Roberto Cardoso de Oliveira sobre a bivalência, teórica e prática (termo usado pelo autor), de determinadas pesquisas realizadas principalmente no contexto brasileiro: “Quando a pesquisa vai além da construção de conhecimentos e se vê enleada em demandas de ação” (VIANA DE OLIVEIRA, 2004, p.22). No meu caso, a busca de uma contribuição informacional esteve ligada intimamente ao auxílio aos meus interlocutores, porém, justamente nesse ponto, reside o aspecto delicado das relações envolvendo as concepções diferenciadas frente a algumas ideias centrais presentes, sobre o epíteto de uma “antropologia engajada”, “antropologia aplicada” ou “antropologia da ação”; diferencio-as mais adiante. E justamente, destaco neste capítulo, tanto os possíveis desentendimentos, conflitos, desacertos, e mesmo equivocações envolvidas nas tratativas “políticas” entre calons e brasileiros, quanto os problemas dos pressupostos considerados a priori sobre “atuações antropológicas comprometidas” sem o entendimento dos contextos de atuação e também as lógicas políticas (não políticas) de outros grupos. 2.1 Negociando termos: tipos de lideranças “Mas a antropologia nos ensina a objetificar aquilo a que estamos nos ajustando como ‘cultura’, mais ou menos como o psicanalista ou o xamã exorcizam as ansiedades do paciente ao objetificar sua fonte. Uma vez que a nova situação tenha sido objetificada como ‘cultura’, é possível dizer que o pesquisador está aprendendo aquela cultura, assim como uma pessoa aprende a jogar cartas. Por outro lado, visto que a objetificação ocorre ao mesmo tempo que o aprendizado, poder-se-ia igualmente dizer que o pesquisador de campo ‘inventando’ a cultura” (Wagner, 2012, p.51). “Você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem”. (Geertz, 1989) 47 Expus reiteradamente nos tópicos anteriores, a presença de uma conjuntura de impasse, negociação, articulação, e entendimento envolvendo os calons interlocutores de pesquisa e brasileiros presentes em determinados contextos de interação dentro do acampamento. E neste capítulo, descrevo tanto a reação dos ciganos ao modo singular de lidar com a política e demandar questões através do seu epíteto por grupos heterogêneos que circularam pelo território calon, quanto à própria construção de determinadas alianças momentâneas com brasileiros, principalmente devido a habilidades específicas almejadas na resolução de demandas feitas pelos meus interlocutores. Dentro dessa conjuntura bivalente, não somente observei essas ações sendo efetuadas por ambos os lados, sendo de um lado, os brasileiros proponentes de políticas e do outro, uma maneira calon de intermediá-las; mas, efetivamente, participei de forma atuante em uma delas ao também propor determinadas ações sobre a égide da política. Meu destacamento dentre as duas perspectivas citadas, sendo elas a política calon frente à aproximação e aproximação política aos calons, deu-se através da segunda, e não somente pela minha pertença ao mundo brasileiro, dentro da dicotomia brasileiro/cigano; esta, na realidade, aconteceu por um posicionamento particular de pesquisa e um entendimento sobre a maneira mais adequada de estabelecer relações entre pesquisador e interlocutores de pesquisa. Iniciei a etnografia com uma convicção muita resoluta da necessidade de estabelecer uma espécie de vínculo com meus interlocutores calon, que passasse invariavelmente pelo compromisso de prestar uma contrapartida à comunidade cigana. Entretanto, o curso da pesquisa revelou o quão problemático e dificultoso se mostrava almejar construir determinados arranjos de troca52, sem antes, compreender o entendimento dos próprios ciganos da minha presença no acampamento enquanto garron estudado, e, além disso, a particularidade da estruturação de arranjos de alianças momentâneas com garrons feitas pela turma. Aproximar-me convicto da imprescindibilidade da prestação de serviços como contraponto a minha presença enquanto pesquisador dentro da socialidade calon acarretou uma série de questões pertinentes à reflexão sobre a prática etnográfica enquanto vinculada a uma concepção micropolítica, tanto no âmbito da entrada/acesso ao campo, como na construção de relações de ordens múltiplas, tais quais inimizades, afetos e resguardos com os ciganos. Em suma, minha presença colocada sobre o viés da compensação intrínseca aos 52 Estou concebendo os trâmites envoltos nas negociações para o início das investigações como uma espécie de troca, onde existe o câmbio de elementos com uma concretude mais palpável, por exemplo, um material impresso, assim como, a confiança dos meus interlocutores conquistada durante o exercício antropológico. 48 Fragmento etnográfico 1: “A tríplice”. Quedo-me olhando a encruzilhada e sem hesitar entro na rua principal do acampamento. Os caminhos estão abertos. Ao chegar ao meu destino, lembro-me de um conselho amigo: “O seu estranhamento não será menor, porque está fazendo pesquisa na cidade em que vive. Existem várias Belo Horizontes”. Travessias tão curtas para chegar ao campo de pesquisa, porém demandando uma alteridade alheia ao meu preparo de lidar com o outro. Um pouco mais perto ouço o burburinho das conversas dos ciganos, e me recordo vivamente da fala de um dos Calon do São Gabriel que me afirmará assim: “Eles lá no Céu Azul não estão preparados para isso que você faz [pesquisa], não são conversados. Vai caçar o que por lá, fica por aqui mesmo”. Estico as vistas por insegurança de me aproximar mais, e apenas vejo as tendas enfileiradas ao sol até o final da rua. Tão poucas. Tento minimizar a ansiedade e a insegurança do primeiro contato, e espero ser recebido como de costume, daquela forma performática em que os calons abrem os braços e com aquele jeito ágil de falar diziam: “Fica à incômodos causados pela minha prática antropológica, não somente esteve posta numa conjuntura de tensionamento referente à redefinição do meu papel, mas também, somou-se aos arranjos citados, sendo capturada de forma inventiva pelos calons. Expondo de forma mais pormenorizada o histórico da minha inserção na socialidade calon através do epíteto de uma antropologia engajada, poderia tomar como ponto de partida desse esforço as tratativas iniciais realizadas com a turma do Céu Azul para a permissão da feitura da minha pesquisa no acampamento. Foi justamente acessando o viés participativo da minha experiência durante minhas atividades realizadas no acampamento do São Gabriel que expus aos interlocutores calons do Céu Azul meu anseio em construir um entendimento mais dialógico sobre as expectativas mantidas com o fruto do meu trabalho junto à comunidade. Descrevo meu primeiro contato com membros dessa turma e a partir da descrição abaixo e exponho a minha dificuldade em conseguir negociar minha entrada devido à ausência de uma liderança explicitamente definida: 49 vontade. Vai entrando. Senta ai com a gente. Quer um cafezinho?”. Ainda absorto por tais lembranças, sou interrompido por um rapaz de botina e a fivela à mostra que passa lentamente na minha frente. Tinha que aproveitar aquele momento para “pular para frente”53 . De maneira súbita interrompo seu caminhar e digo: “Com licença, você pode falar quem é a liderança daqui do acampamento?”. Havia dirigido aquela indagação a Leandro, e desconfiado como de costume, olhara-me atentamente da cabeça aos pés antes de me responder: “Agora você me apertou, rapaz. Fala com meu pai. Vou chamar ele para você, rapidão”. Fazendo um sinal com as mãos sinalizava ao pai minha presença, e logo quando chegará murmuram de forma tão baixo algumas palavras em Chibi 54 e em português que mal pude compreender a conversa. Pude apenas, dentre elas, distinguir a seguinte frase: “O garronzinho está querendo saber quem é a liderança”, e a resposta rápida: “Pode ir Leandro, eu resolvo aqui”. Um homem de cabelos grisalhos, barba cerrada e a camisa desabotoada diz vagarosamente: “Pois não”. As poucas palavras ditas de maneira resoluta viam de Vieira, pai de Leandro, e diante de um início de diálogo tão direto, tenho dificuldade em me expressar e começo a explicar o motivo da minha visita de forma “travada” 55: “Como vai? ... Estou querendo fazer uma pesquisa aqui ... saber como vocês vivem ... já fiz isso no São Gabriel”. Tentando compreender onde exatamente eu queria chegar com aquele falatório todo, e visivelmente confuso com minha explicação, Vieira arruma sua fivela lentamente e como quem não estava mais prestando atenção, reponde- me: “Essas coisas ai não me entram na cabeça. Sou entendido não”. Aproveitando o movimento de alguns ciganos em frente do Bota Fora, Vieira estica o pescoço e chama, com um assovio alto, dentre todos calons que estavam ali, a atenção para si de um 53 Essa expressão “pular para frente” era usada recorrentemente por meus interlocutores de pesquisa para denominar uma superação da timidez, instigar os catireiros a tomarem uma decisão rápida nas contra propostas e também era utilizada ao cumprimentar alguém que precisava resolver algum problema. 54 Dialeto usado pelos calons para se comunicarem. Seu uso não generalizado, e somente algumas palavras são usadas . 55 Recorrente, presenciei meus interlocutores de pesquisa calon usando o termo “travado” ou “travadão” para classificar pessoas sem o devido traquejo e desinibição na fala, assim como também sem habilidade para conseguir catirar. 50 moço de chapéu que estava sentado em frente sua casa, e me instrui: “Desembola com meu irmão ali”. E no mesmo instante se vira e dá longas passadas rumo a sua tenda. Pronto, agora fico hesitante e com as mãos trêmulas. Escolho as palavras que logo se perderiam: “Você é a liderança daqui do acampamento?”. Com um sorriso largo, mostrando o ouro reluzindo dali, Gilberto responde: “Vamos dizer que sim, menino. Você estava falando com o Vieira... Meu nome é Gilberto. Tudo certo com você?”. O jeito acolhedor de Gilberto me deixará um pouco mais à vontade, e novamente, coloco-me a explicar o porquê da minha presença ali. Com a escuta atenta e uma cara boa, Gilberto presta atenção ao meu relato, porém quando digo: “Gostaria de saber sobre o terreno aqui como anda a situação”, sua mão toca no meu obro, e ele me interrompe: “Deixa falar uma coisa para você menino, essas coisas que você tá falando eu não entendo muito bem não. Fala com o Ronin, ele mora ali está vendo. Diz que você veio aqui na minha casa”. Já confuso, desço até a casa de Ronin, porém naquele momento já havia três ciganos perto do Bebeba conversando e me acompanhando com o olhar. Espero pacientemente Ronin acabar de amarrar seu cavalo, e como desde o primeiro contato tive uma identificação muito forte com ele, já comecei, um tanto quanto ingênuo e ansioso, a expor sobre o processo de regularização no São Gabriel logo de cara. Com sua calma usual, sentando em cima de uma pedra na frente da sua casa, Ronin respondia desinteressado, mas de maneira cortês: “É mesmo, é mesmo”. Desesperançoso, quase despretensiosamente, eu comento “Você conhece o Carlos, Ronan, o Jairo, lá do São Gabriel...”. Instantaneamente o semblante modifica: “O Jairo é meu irmão, uai! Você conhece ele? Passa para dentro aqui, pega uma cadeira. Então você tá (está) falando que você foi lá no bairro São Paulo...você conhece o pessoal então?”. Comentei mais um pouco, explicando que conhecia muita gente lá, mas tinha mais intimidade com a liderança, o Carlos Rezende, e tentei obter a autorização para começar a pesquisa, porém Ronin apenas afirmará: “Vir aqui? Ué, pode sim, trocar uma ideia com gente. Jogar conversa 51 Através desse primeiro contato com a turma do Céu Azul percebi a complexidade presente nas mediações realizadas pela liderança calon (s) dentro do acampamento, e já nessa aproximação inicial à turma, tive dificuldade de reconhecer o papel da chefia de maneira marcada em determinada pessoa. Esse fato aconteceu pela especificidade das características da chefia calon, e para desenvolver acerca da dinâmica, concepção, funcionamento e os lugares de atuação da(s) liderança(s) calon do acampamento do Céu Azul, antes apresento uma premissa básica e norteadora para entender a chefia entre os calons interlocutores de pesquisa. Ela seria a elucidação sobre a abrangência do significado presente no termo “liderança”, e faço essa diferenciação visando delimitar com mais precisão qual o sentido do termo que me norteia nas diferentes discussões levantadas, e a partir dos múltiplos significados originários desse refinamento no uso da categoria, desenvolvo sobre as características de cada liderança e as conjunturas locais/regionais nas quais a atuação e escolha da liderança calon se deu no acampamento do Céu Azul. Por isso, sinalizo a importância do esquema (img 4) das lideranças identificadas durante o campo, partindo dos fora, vejo problema nenhum, não. Você sabe mais ou menos o funcionamento lá no bairro São Paulo”. Imagem 4 52 usos feitos pelos meus interlocutores, visando auxiliar na posterior apresentação da minha argumentação sobre os contextos em que presenciei a referência do termo lida ou momentos de exercício de mando da liderança. Assim como exposto nesse esquema, identifiquei uma série de usos diferentes para o termo liderança e subdividi-os, como estratégia de apresentação, em dois grandes eixos de atuação. O primeiro está concretizado internamente, tanto no âmbito da família (nuclear) / família (extensa), quanto no domínio da turma, e o segundo, pela via da exterioridade que esteve dividida em três outras frações, contemplando a relação com os garrons e o contato com outras turmas. Por último, incluí na classificação externa por falta de termo mais preciso, a categoria do englobamento pontual de garrons no intuito da resolução de determinadas demandas. Evidentemente, esse esquema assemelha-se ao tipo ideal Weberiano, e como tal, não pretende encerrar em si toda a complexidade encontrada nas realidades descritas por eles e nem purificá-los de tal forma gerando uma separação abissal entre os modelos. Na verdade, aproximo-me da afirmação de Max Weber sobre as limitações dos nossos conceitos para explicar os fenômenos sociais: “Um conceito ideal é normalmente uma simplificação e generalização da realidade. Partindo desse modelo, é possível analisar diversos fatos reais como desvios do ideal: Tais construções (…) permitem-nos ver se, em traços particulares ou em seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de nossas construções, determinar o grau de aproximação do fenômeno histórico e o tipo construído teoricamente. Sob esse aspecto, a construção é simplesmente um recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas” (WEBER, apud BARBOSA; QUINTANEIRO, 2002, p. 113). Ao cunhar essas divisões como semelhantes ao tipo ideal, não visei criar uma cisão intransponível entre fenômenos mais circunscritos56 em âmbito local – liderança interna - e aqueles ocorridos na esfera supralocal – liderança externa. Busquei tratá-las a partir dos contextos de atuação presenciados em cada tipo de liderança. Além disso, exercer umas das funções apresentadas nas subclassificações não impedia uma simultaneidade e soma delas, já que uma mesma pessoa poderia congregar em si encargos diferentes. Por exemplo, um “chefe de família” 57, ou em outros termos, um homem (pai/esposo) que dentro de uma família nucle- 56 Seria impossível traçar uma linha definitiva entre esses planos, pois recorrentemente acontecimentos diminutos circunscritos ao acampamento acarretavam desdobramentos macro regionais, assim como o contrário, arranjos realizados em outros acampamentos poderiam impactar decisoriamente na configuração espacial de outrem, e consequentemente exigindo nos dois casos posturas sensíveis da liderança em relação a essas modificações. 57 Meus interlocutores de pesquisa usavam a terminologia líder ao se referirem as pessoas consideradas prestigiadas e com poder decisório dentro de um arranjo familiar composto por Esposo -Esposa e filhos não casados, por exemplo, aquele cigano é líder da família dele. Em todos os casos presenciados dentro do acampamento do Céu Azul, os homens eram considerados lideranças em suas famílias nucleares. 53 ar exercia uma lida58 dentro desse universo mais restrito contemplando sua esposa e seus filhos, poderia, dependendo do desenvolvimento de determinadas habilidades ou por pertencimento a determinado status, exercer outras funções de lida dentro do acampamento. Dentro dessa lógica de multiplicidade nas formas de exercer e de se delimitar as lideranças, dificilmente um acampamento possuirá somente uma pessoa enquanto representante unívoco dos diferentes universos possíveis de atuação enquanto chefe. Assim, da mesma forma, raramente um calon convergirá em si a extensa gama de habilidades, funções e responsabilidades pertencentes a quem fica encarregado da chefia. Tentado apresentar com mais clareza a especificidade circunscrita nas ramificações compostas pela nomenclatura liderança, optei por fazer um paralelo rápido com o contexto encontrado no acampamento do São Gabriel à época em que realizei pesquisa, em meados de 2014. Com essa estratégia, busco criar um panorama comparativo facilitador da minha explanação da conjuntura encontrada no acampamento do Céu Azul, aquele com maior contato com os fenômenos envolvendo as articulações construídas para se delimitar uma liderança. Portanto, partindo do acampamento com menor familiaridade, afirmo que quando conduzia minhas investigações no acampamento do São Gabriel, ainda não tinha uma percepção muito nítida da diferenciação encontrada nas múltiplas formas de exercer a liderança, apenas identifiquei uma centralização muito forte da função de líder no cigano Carlos Rezende do Amaral. Construí esta percepção por dois fatores: primeiramente, através das respostas dadas por outros calons quando os inquiria sobre quem estava na lida59 naquele acampamento; e o segundo, devido à própria atuação central de Carlos Rezende nas articulações “políticas” realizadas contra a ameaça de realocação forçada60 sofrida por aquela turma. Em um primeiro momento, realmente existiu uma percepção mais fácil do exercício de mando na figura de Carlos Rezende, principalmente, porque ele transparecia gozar de uma respeitabilidade e grande influência dentro da turma. Porém, após experienciar mais detidamente a socialidade daquele grupo, percebi uma relação bem mais delicada entre o exercício de mando realizado e a anuência dada pelo restante da turma sobre suas decisões, e por consequência, houve situações limites na definição da influência e do poder decisório relegado à figura daquela liderança (s). 58 A expressão chefe de maneira reiterada foi usada para fazer referência ao exercício da liderança. 59 A expressão “Estar na lida” ou “Ele está na lida”, recorrentemente era utilizada pelos interlocutores calon para fazer referência aquele cigano considerado, momentaneamente ou não, na liderança. 60 O caso foi devidamente exposto no capítulo 1, e apesar da sua brevidade, através dele se consegue ter um panorama sobre o histórico do caso envolvendo a tentativa de expulsão da comunidade do seu território. 54 De maneira breve, cito um relato apresentado por Carlos Rezende que pode ilustrar as tensões encontradas para estabelecer os limites e abrangência de determinadas posturas tomadas pela liderança. O trecho exposto se deu durante uma conversa sobre a Associação Guiemos Kalon, associação presidida por Carlos e que fora de suma importância dentro do contexto de regularização do território daquele acampamento. Na oportunidade de diálogo, Carlos me contará sobre sua decepção em não ter o devido reconhecimento enquanto liderança e presidente da associação, e parte do seu relato foi esse: “Vou largar mão da lida, Eduardo. Cigano não dá valor para isso não. Eu fico sozinho aqui pelejando, e ninguém quer ajudar. O Ronan até até... mas não da conta de segurar o trem na hora que precisa mesmo. E a gente pede uma mixaria de cada um para levantar a associação, e ninguém quer por a mão no bolso. Pessoal fica achando que vou pegar o dinheiro para mim. Vou embolsar. Isso é para colocar uma gasolina no carro. Trocar um pneu. Se preciso ir lá João Monlevade, como que faz? Alguém me liga de última hora. Precisa ter um dinheirinho para isso. Agora se depender do pessoal lá embaixo... Por isso, estou abandonando, não vale mais a pena. Só aborrecimento. Ninguém reconhece o esforço da gente”. Costumeiramente, ouvia comentários do Carlos Rezende ameaçando abandonar a presidência da associação, e consequentemente, também deixar de exercer qualquer tipo de função decisória no âmbito coletivo. Não entro no mérito do real cumprimento desta promessa, considerando que existe uma volatilidade na posição de chefia, e o eventual abandono não implica em abandono definitivo dessa posição; apenas friso as motivações elencadas por Carlos Rezende ao fundamentar sua possível dissidência. Segundo ele, o não reconhecimento por parte da turma do seu empenho em manter a associação, tal como, a falta de contribuição financeira e disponibilidade no auxílio de suas atividades contribuíram decisivamente nas ameaças de abandono, ou pelo menos, nas recorrentes queixas desse déficit apresentado. A partir de outras insinuações realizadas da mesma natureza do relato exposto, que não cabe colocar aqui, comecei a intuir a circunstancialidade da posição do Carlos Rezende dentro da conjuntura encontrada naquele acampamento. Arriscaria afirmar, que seu papel de líder estava restrito à esfera familiar nuclear – liderança interna familiar -, principalmente sobre esposa e filhos; à esfera familiar mais ampla – liderança interna familiar extensa-, exercendo influências em outras famílias nucleares, como por exemplo, a de Ronan e Cristina, e também na relação de determinadas tratativas frente aos garrons – liderança externa com os garrons. Claramente, Carlos Rezende congregava em si três das muitas variedades presentes no escopo 55 abarcado pela nomenclatura liderança, e minha impressão sobre suas reclamações diante da “falta de ajuda” vinha justamente pela ausência da sua influência de maneira mais decisiva dentro da turma. Ao expandir o espectro de classificações nas quais Carlos se enquadrava não visei somente apresentar um refinamento terminológico, mas também atentar para a percepção de outros aspectos envolvendo a chefia calon para além da intermediação exclusiva com os garrons. E apesar de ressaltar a importância em identificar a simultaneidade dessas subclassificações, dada à brevidade do meu campo no acampamento em São Gabriel, não consegui identificar com mais esmero as nuances e desdobramentos presentes na prática enquanto liderança interna. Porém, posso afirmar que a chefia61 é escolhida e exercida a partir dessa conjuntura vivenciada pela turma, e por esse motivo, não se pode defini-la a priori e nem esperar sua imutabilidade, pois características fundamentais para o entendimento do funcionamento desse exercício de mando tocam em aspectos ligados à conjuntura situacional encontrada no acampamento e o acúmulo de prestígio por parte de determinado calon que exerce a função de liderança. Traçando um paralelo entre os diferentes contextos em que cada turma estava inserida, afirmo que as proporções geográficas e demográficas, assim como as configurações familiares, encontradas em ambos os acampamentos, Céu Azul e São Gabriel, eram significantemente diferentes, e por isso, influenciavam de maneiras distintas as formas pelas quais eram exercidas as lideranças em cada uma delas. À época da minha investigação em São Gabriel (no ano de 2014), havia um número elevado de famílias residindo no local que contemplava uma área descontinua, e além das dimensões territoriais e populacionais díspares comparando aos números encontrados no acampamento do Céu Azul (no ano de 2015), residiam em São Gabriel, segundo alguns interlocutores calons, no mínimo duas turmas diferentes: as dos calons cariocas e dos calons mineiros. Consequentemente, esse convívio exigia uma negociação específica visando contornar possíveis atritos e desentendimentos entre elas62. Ainda ressaltaria, destacando as dessemelhanças contidas entre os contextos de 61 Os termos mais comuns para expressar a ideia de liderança entre os meus interlocutores calon s foi através dos termos “chefe” e “líder”. 62 Não tenho informação suficiente nesse trabalho para colocar os tipos de constrangimento e política territorial específica usada pelos calons da turma do São Gabriel para gerir seu território. Apenas recorro a essa configuração para dar subsídio ao entendimento de como as conjunturas de cada acampamento influenciam fortemente na atuação feita por cada liderança (s). 56 atuação das lideranças em cada acampamento, a conjuntura 63 ímpar enfrentada pela turma do São Gabriel dentro da dinâmica fundiária do município de Belo Horizonte. Por outro lado, quando iniciei minhas atividades dentro do acampamento do Céu Azul, em meados de julho de 2015, presenciei uma realidade completamente diferente daquela vista no acampamento do São Gabriel, principalmente, no que tangia ao tamanho da área compreendida pelo território habitado pela turma, assim como no número de habitações e sua distribuição própria dentro do espaço disponível na região. À época, dentro da área compreendida pelo acampamento do Céu Azul, habitavam 12 famílias calons e sete famílias de brasileiros que ocupavam uma parcela de terra dentro do acampamento menos utilizado nos afazeres diários da turma. A própria distribuição das habitações dentro da extensão espacial do rancho, tal como, as diferenças nos tipos de estrutura de moradia, revelavam preferências de interação, filiações, vínculos de parentesco, possíveis alianças, assim como delimitações da abrangência de cada gênero e qualidade de liderança exercida no pouso permanente. Como expus anteriormente, faz-se imprescindível compreender essas dinâmicas, e a partir de uma descrição mais detalhada da própria configuração do rancho, trazer a tona as possíveis lideranças existentes. Para isso, elaborei dois croquis do acampamento para auxiliar na discussão dos dois tipos de lideranças apresentados, interna e externa. O primeiro mapa delimita alguns espaços utilizados para construção de moradia e realização de algumas atividades pelos interlocutores calons dentro e fora do acampamento. O segundo, já indica parcelas do território cigano impedidas de serem utilizadas pelo calons por ingerência de garrons: 63 Como relato no capítulo 1 com mais fôlego, tal turma enfrentou uma ameaça real de realocação compulsória para outros terrenos devido à demanda da área compreendida pelo acampamento pela PBH, e por conta desse fato houve uma mobilização de diferentes agentes, inclusive um protagonista da liderança, Carlos Rezende. 57 5 6 58 Partindo da primeira imagem apresentada, especificamente naquela parcela sublinhada pelo tracejado de cor vermelha, vê-se a presença de seis habitações, sendo cinco casas de alvenaria e uma moradia classificada enquanto tenda. Dentro desse universo de residências existem algumas aproximações entre as casinhas64 que são evidentes, por exemplo, a pequena distância entre as moradias de número um e dois, assim como a lateralidade das residências numeradas do numero três a seis. Assim como aponta Martin Fotta (2017)65, a distribuição geográfica dentro de um determinado pouso permanente ou provisório pode apontar para algumas relações intergrupais, tanto do estabelecimento de alianças, quanto nos vínculos de parentesco mantidos. No caso do acampamento do Céu Azul, cada habitação congregava uma família nuclear composta por marido-esposa e seus filhos, com exceção de um caso que detalharei posteriormente. Na porção delimitada em amarelo no mapa 5, pode-se observar a presença de duas construções: a casinha de número um que abrigava como moradores o cigano Gilberto do Amaral Soares, sua esposa cigana Patrícia, e sua filha cigana Lorena Amaral Soares; e a casinha de número dois que tinha como moradores66 o cigano Felipe do Amaral Soares, sua esposa brasileira Larissa e sua filha cigana Sarah. Como apontado anteriormente, avizinhar-se com outros núcleos familiares não acontece de maneira aleatória, e pelo contrário, revela uma série de compromissos celebrados e de ajuda mútua em diversas atividades cultivadas tanto dentro do universo masculino, quanto do feminino. Os arranjos espaciais das habitações/moradores indica a manutenção permanente de alguns elos de sociabilidade importantes dentro do acampamento. Estar perto de determinado parente traz consigo o privilégio de gozar de inúmeras possibilidades de aliança, tal como a necessidade de resguardos e evitação de conflito quando acontecem desentendimentos, assim como a busca de refúgio quando mediante a instauração de querelas com parentes calons mais distantes. Ainda sobre a casinha um, a ligação existente entre as duas famílias vinha por meio da filiação de Felipe, filho de Gilberto com Patrícia, e irmã de Lorena, e através de um muramento circundando toda a propriedade, havia uma delimitação daquela área como “a casa do Gilberto”. O muro tinha o papel de separar o quintal “da casa do Gilberto” das imedia- 64 A maneira dos interlocutores ciganos diferenciarem a residência brasileira daquelas moradias de alvenaria construída por eles, muitas vezes vinha sobre a terminologia “casinhas”. As “casinhas” era o termo utilizado para delimitar as habitações ciganas de alvenaria, justamente por conta da o rearranjo externo e a lógica espacial externa, assim diferenciando das construções dos brasileiros. 65 Apresentação oral feita no seminário, promovido no SECS São Paulo, sobre as comunidades calon. 66 Essa expressão foi usada pelos calons interlocutores de pesquisa para fazer referência aqueles calons com mais tempo no acampamento ou sem previsão de se mudar do pouso. 59 ções da Rua Novecentos Um, a rua adjacente ao terreno que possuía um fluxo razoável de automóveis e de pedestres. Era justamente o quintal de Gilberto o ambiente propício para o estreitamento dos laços afetivos mantidos entre aqueles familiares, e entre os apoios mútuos prestados naquele local, estavam os auxílios econômicos realizados durante as catiras, e também o aprendizado dos comportamentos considerados adequados que eram passados durante as conversas mantidas ao longo do dia. Além disso, a residência do Gilberto era o espaço preferencial para resolução de querelas envolvendo calons compreendidos pela parcela, denominado no mapa um, enquanto área do Gilberto. A própria construção de alvenaria das duas casinhas, um e dois no mapa um, revelavam uma espécie de conexão mais permanente entres os calons moradores daquele terreno delimitado em amarelo no mapa dois. Apesar das estruturas de habitação de alvenaria não impedirem o deslocamento dos moradores daquele local para outro acampamento, esse tipo específico de habitação, assim como a proximidade observada entre elas, garantia uma maior estabilidade entre aqueles que se avizinham. Abaixo segue uma foto registrando a parte de fora da residência de Gilberto, e um pedaço da Rua Novecentos e Um. Imagem 7 À esquerda, vê-se o muro da casa de Gilberto com o portão pintado na cor amarela. Na parte de cima, duas propagandas de candidatos ao cargo de vereador. Andando, de costas, na Rua Novecentos Um, a calin Renata, esposa de Bebeca, com seu filho Araquém. Os dois prédios na parte de cima da imagem, compõe o conjunto habitacional “Diamante 2”, que ainda possuí mais duas torres não visíveis por essa imagem. 60 De maneira nítida, Gilberto, que recorrentemente também era chamado como Moreno, destacava-se como um calon influente entre os membros da turma do Céu Azul, e exercia uma posição de liderança importante no âmbito interno. Retomando a divisão apresentada anteriormente, despontava como uma liderança interna da sua família, principalmente por possuir qualidades consideradas características de “um bom pai”. Ouvia rotineiramente de outros calons, alguns elogios ao Moreno, principalmente, por não ser um marido violento, manter a Patrícia na linha – garantir sua vergonha -, ser considerado um catireiro67 de grande habilidade – passava muita manta68 -, e pelo papel de autoridade desempenhado sobre seus filhos. No caso de Felipe, que possuía na faixa dos 25 anos, era sublinhada a maestria dos ensinamentos sobre a catira realizada por Moreno, e mesmo ainda sendo considerado novo, Felipe já gozava da sua própria praça - rede de pessoas que se faz catira. Assim como, Lorena, uma calin na faixa dos 12 anos, recebia congratulações por ter um comportamento adequado esperado para sua idade, e consequentemente, recebia as congratulações de ser uma calin comportada. No meu entendimento, o esforço feito por Gilberto em garantir o valor do seu filho e manter a vergonha da sua filha, além de ser considerado um grande catireiro, renomado entre os calons e garrons, fazia Moreno figurar, não somente enquanto líder na sua família, mas enquanto uma pessoa de confiança na resolução de possíveis problemas internos envolvendo brigas, desentendimentos e querelas. Ao mesmo tempo, destacava-se naquela turma como um calon com vasta experiência, principalmente, por conta das inúmeras viagens realizadas dentro do Estado de Minas Gerais e da Bahia para compra e revenda de produtos eletroeletrônicos e equinos. Havia uma respeitabilidade muito grande por sua pessoa por parte dos outros membros do grupo, e dessa feita, a maioria dos calons chamavam-no de tio Gilberto ou tio Moreno. Inicialmente, não compreendia o motivo daquele epíteto, e na verdade ficava confuso com seu uso, porque a utilização do termo era generalizada pelo resto da turma. Pesando no caso dos calons em que determinadas posições e relações de parentesco estabelecidas são tão importantes para elucidar os tipos de comportamentos e compromisso esperados por parte de cada pessoa (CAMPOS, 2015), o uso trivial de tio ao denominar Gilberto, alertava-me para um possível ocultamento de informação por parte dos meus interlocutores. Porém, Felipe certa vez me alertara que a terminologia também era usada para 67 Aquela pessoa considerada como grande maestria na arte de fazer a catira. 68 O ato de ser bem sucedido numa catira. 61 denominar os ciganos mais idosos, tanto calons, quanto calins, e denotava sinal de respeito com aqueles, como dizia Felipe, “que já passaram tanta coisa a mais que nós”. Esse status de calon mais velho, e Gilberto possuía na faixa dos 50 anos de idade, garantia-lhe o privilégio de ser considerado uma pessoa de valor. Por isso, recorrentemente, era consultado sobre diversos assuntos comuns ao cotidiano calon, tais quais, a compra de materiais para reforma das habitações e a melhor forma de cuidar dos animais no acampamento, principalmente os equinos comprados para revenda. Concomitantemente, sua índole calma lhe rendia o adjetivo de “fácil trato”, pois não tinha querelas significantes com qualquer outro membro daquela turma, e como tal, transitava de maneira hábil entre diferentes localidades dentro do rancho. Por congregar essas qualidades de ser um calon mais velho, visto como um bom esposo/pai, considerado uma pessoa de valor e também de palavra, além de gozar de uma fama de eficiente catireiro, Moreno tinha elevado prestígio com aquela parcela do acampamento delimitada pelo tracejado vermelho no mapa um. Pelas categorias elencadas, Moreno influenciava de tal forma os calons daquela área que muitas vezes aquele agrupamento era denominado enquanto turma do Gilberto ou pessoal do Gilberto, e dessa forma, exercia uma liderança interna junto às outras famílias daquele “lado”69 do acampamento. Dentre as famílias influenciadas e pertencentes a essa parte do rancho estava a família composta por Ronin70 e Poliana, ambos com a idade por volta de 30 anos, e sua filha Rafaela, com a idade de oito anos. O calon Ronin era o caçula dentre os irmão de Gilberto. Era considerado aquele com maior facilidade em desembolar com outros calons, além de ser reconhecido pela sua cortesia ao receber os garrons no acampamento, principalmente por ser muito calmo e ter o raciocínio rápido para lidar com situações adversas. As brincadeiras referentes à sua passividade e docilidade comumente eram feitas por outros calons para provocá-lo, como quando, por exemplo, diziam-me haver maracugina na caixa d’água de Ronin como justificativa para sua calma. Ronin, por sua vez, magistralmente usava-se de sua tranquilidade para demonstrar sua facilidade em conseguir contrapor as provocações dos outros com respostas instantâneas e precisas. Ao lado da casinha de Ronin e Poliana, residia o casal Bebeca e Renata, com seus dois filhos, Araquém, na faixa de quatro anos, e Iran, com cerca de dez anos. A proximidade física 69 Havia sempre menção a área do Vieira, a partir da referência da área do Gilberto, enquanto o “lado de lá” ou o “outro lado”, e de maneira inversa, partindo da área do Vieira, fazia-se menção a área do Gilberto da mesma forma. 70 A descrição feita neste momento de alguns calons é mais tangencial, pois somente visa dar subsídios para argumentação sobre a liderança. 62 entre as habitações dessas famílias, próximas de tal maneira que compartilhavam uma mesma parede divisória entre os terrenos, dava-se porque o calon Bebeca era sobrinho de Ronin. Apesar de existir esse tipo de ligação entre os dois, não havia uma resguarda muito grande de Bebeca frente ao Ronin como era de se esperar no comportamento de um sobrinho em relação ao tio. Tal fato se dava porque Bebeca, ainda que seu sobrinho, era dez anos mais velho que Ronin; havia então uma relação delicada entre os dois, devido às expectativas comportamentais esperadas por suas posições etárias. Se por um lado se prévia uma respeitabilidade entre sobrinho e tio, por outro, era compreensível Bebeca não ouvir os conselhos de Ronin ou não acatar nenhuma de suas ordens por ser mais experiente na catira e “ser mais vivido”, como o próprio Bebeca afirmava. Recorrentemente Bebeca me dizia: “O Ronin é meu tio, mas eu sou mais velho que ele, por isso não tem nada a ver não. A gente se trata tudo igual”. De fato havia uma proximidade estratégica e um sentimento afetuoso expressivo mantido entre esses dois calon, principalmente através de algumas atividades empreendidas conjuntamente. Por exemplo, a ajuda recíproca prestada para construção e reparo de suas casas de alvenaria – expansão do banheiro, contenção da encosta do córrego capão que margeava a casa de ambos e a reforma do quintal; o empréstimo de dinheiro efetuado em momentos de necessidade – para quitar dívidas e a compra de automóveis; a lida com os cavalos pertencentes a outrem – acompanhamento do equino evitando o sumiço do animal e os cuidados com a alimentação e saúde; e também a vigília da residência feita mutuamente quando um dos dois saía em viagem e deixava a casa desocupada. Além de existir um auxílio bilateral entre eles em diversas ocasiões comuns presente nas atividades diárias, como a procura das melhores mercadorias para a revenda e compras conjuntas no açougue, havia os momentos importantes e corriqueiros de descontração mantidos através das conversas realizadas na frente da casa de Gilberto ou de Ronin, tidos como espaços importantes de sociabilidade. Por outro lado, algumas características pessoais marcantes de Bebeca e Ronin propiciavam de forma constante o início de uma espécie de querela entre os dois. Na maioria das vezes, era instaurada por de opiniões divergentes sobre os temas mais cotidianos, como por exemplo, alguns comentários referentes à beleza de determinada garrin, a acusação de um garron ser homossexual, a afirmação de uma dívida não paga por um parente próximo, a exaltação da habilidade de catira por determinado calon, entre outros comentários corriqueiros compartilhados. Por Bebeca manter uma postura convicta em suas opiniões, exemplarmente nos momentos de conflito, Ronin chamava-o de “cabeça dura”, e essa acusação revelava um 63 modus operandi totalmente diferente entre os dois em relação ao “caçar briga”, como ouvi de meus interlocutores. O calon Ronin sustentava uma fama de ser pacífico naquela turma, e por isso, dificilmente iniciava algum tipo de confronto com os calons dali ou de outros acampamentos. E justamente por que possuía a imagem de não “brigador” (como ouvia alguns interlocutores fazendo menção aqueles calons mais propícios ao confronto), despontava como uma liderança externa importante. A ausência de querelas significativas com outros ciganos lhe concedia livre trânsito entre os ranchos de São Gabriel e Pedro Leopoldo, tanto para as festas como para seu pouso. Diferentemente de seus dois outros irmãos Gilberto e Vieira, que foram impossibilitados de frequentar determinados espaços de socialização dos calons por conta de alguns atritos que desenvolverei mais à frente. Continuando a descrição das famílias componentes “da área do Gilberto”, ao lado da família de Bebeca e Renata, residiam três pessoas: Danilo e sua esposa Rebeca, e o irmão de Danilo, Rafael. Todos os moradores da casinha cinco eram brasileiros residindo no acampamento, e dentre esses garrons, o que tinha maior destaque entre os ciganos era Danilo. Ouvi histórias divergentes sobre a justificativa de haver garrons morando conjuntamente com os calons, e no caso, um casal de brasileiros convivendo e residindo ao lado de outras habitações de ciganos. Uma das versões, contadas por Ronin, exaltava a excepcional habilidade de Danilo ao realizar as catiras, e segundo este, Danilo havia chegado há cerca de cinco anos no acampamento e, por conta de sua maestria nas trocas efetuadas com ciganos e outros brasileiros, acabou por se enturmar naquele meio e lhe foi concedida a permissão de moradia por Gilberto. Por outro lado, Gilberto já me havia contado uma versão diferente, dizendo ter achado Danilo e Rafael sem rumo pelas imediações do rancho e os dois foram criados, como dizia Gilberto, “no meio de cigano”. Atrás da casinha de Ronin e Poliana, moravam provisoriamente em uma tenda Giovane e Simone, com seus filhos Yuri (6 anos), Marina (4), Yude (3) e Kiora (algumas semanas). Giovane era irmão de Bebeca, e Simone irmã de Poliana. Apesar da habitação estar dentro da “área do Gilberto”, aquele trecho do acampamento normalmente era reservado para o pouso provisório de parentes, e por isso, Giovane mantinha uma obediência ao seu tio Gilberto, e seu irmão mais velho, Bebeca. Porém, ainda assim, Giovane era considerado como alguém “muito brigador”, “arrumador de confusão” e “descontrolado”. Por conta dessas características, foi apelidado de “Giovane doido”. Certa vez, Ronin explicava-me a diferença entre os tipos de brigas e citara justamente Giovane e Bebeca como exemplo para ressaltar a 64 dessemelhança entre elas, segue sua explicação: “Isso né nada não. O Bebeca não está falando com a Patrícia porque brigaram os dois. Coisa boba. Desentendimento. Não rende não. Fica um tempo sem dar papo e depois volta de novo aos poucos. Né briga assim não, é mais porque estranhou, sabe? Ai pessoal evita até acalmar os ânimos. Aqui é tudo parente, não tem como ficar sem se falar assim também não. Agora o Giovane, isso é bicho solto, gosta de arrumar uma confusão. Quando já viu, está brigando. Assim não. Alguém falar um negócio atravessado e você se enfezar, tudo bem. Agora o que o Giovane doido faz, está certo? No meu entendimento não”. A última habitação, de número 7, era a tenda mais próxima do lado classificado enquanto “área do Vieira”. À época da minha chegada, em meados de julho, só residia nela a calin chamada de Baiana. Porém, em setembro sua filha Lucinha chega ao acampamento após o término do matrimônio mantido em São Gabriel, com o cigano Geraldo. Posteriormente, a tenda é deslocada para mais próximo da casa de Danilo e é construída uma casa de alvenaria para abrigar ambas. As duas calins, Patrícia e Lucinha, eram filhas de Baiana, e como tal, mantinham uma proximidade muito grande, influenciando também Lorena, sua neta, que sempre estava na casa da Baiana para relatar como fora seu dia na escola, dentes ouros afazeres. A Baiana era a calin mais velha do acampamento, e por isso as sanções recebidas e o perigo com a vergonha eram minimizados ao ponto dela receber cotidianamente garrons e garrins em sua porta, tanto para seus atendimentos espirituais, quanto para simples conversas descompromissadas sobre o bairro. Após apresentar minimante as configurações espaciais das habitações e as relações de parentesco mantidas entre os membros da parcela do acampamento chamada de “pessoal do Gilberto” ou “turma do Gilberto”, faço o mesmo exercício de apresentar o arranjo mantido no lado rancho nomeado de “pessoal do Vieira” ou “turma do Vieira”. Segue abaixo um croqui do acampamento, datado de setembro de 2017, e um esquema mostrando as relações de parentesco de cada família componente das habitações da “área do Gilberto”: 8 64 65 De maneira semelhante ao arranjo descrito anteriormente, na outra parcela do acampamento também existia um calon com uma influência importante no âmbito local e familiar, de tal ordem que a divisão das áreas do acampamento partia justamente dessa pessoa de renome. No caso, a referência seria Vieira, o irmão mais velho dentre os três filhos de Rafael (pai de Vieira), moradores do acampamento do Céu Azul. E justamente por gozar da posição de calon mais velho da turma, Vieira além de manter um controle sobre a fração citada, ainda mantinha um poder de decisão muito forte sobre os outros calons. Normalmente, em sinal de respeito, todos o chamavam de Tio Vieira, com exceção dos seus irmão e esposa, porém até mesmo seus filhos muitas vezes faziam referência a ele por tal epíteto. Muitas vezes Gilberto me dizia que Vieira era das antigas, por isso não gostava de ter uma relação muito estreita com as autoridades e/ou representantes do poder público. Ainda segundo Gilberto, Vieira somente negociava com os garrons quando era necessário, mediante algum acontecimento mais urgente. Apesar de não saber exatamente qual era o poder aquisitivo71 de 71 Seria leviano pautar a discussão da economia daqueles calons através da cunha de mais rico ou menos rico, porque a especificidade das trocas realizadas pela catira, além de possuir uma insegurança grande, pois os calon s ficam dependendo dos compradores (catireiros), muitas vezes o dinheiro ganho é investido em bens de consumo duráveis, como os automóveis. Dependendo da situação financeira de cada família, existe uma circulação desses objetos e bens de consumo visando a quitação de algum dívida ou mesmo para o sustento básico do lar. Imagem 9 66 cada calon, em alguns momentos se deixava transparecer pelas conversas mais rotineiras que Gilberto e Vieira eram aqueles mais bem sucedidos financeiramente. Dessa forma, Vieira se apresentava tanto como chefe de sua família, de forma mais restrita, que era composta somente por sua esposa Rosimar, quanto como liderança interna dentro de uma família extensa congregando as cinco outras famílias calons pertencentes àquela parcela do território delimitada como “área do Vieira”. Um dos arranjos familiares sobre influência de Vieira era o casal Bandeira e Marcia, e seus quatro filhos, todos moradores da habitação de número 8 no croqui 6. O cigano Bandeira era irmão da esposa de Vieira, e por isso, apesar de estar sob a ingerência contínua dele, ainda gozava de certa autonomia dentro do acampamento. Isso se devia ao seu “jeitão de cigano solto no mundo”. De fato, o único calon com padrão de mobilidade com pouco período de fixidez foi Bandeira, e como tal, era respeitado por ser ainda um dos poucos ciganos que não havia arrumado “um lugarzinho para ficar”, ou ainda, como ouvia de meus interlocutores, “Solto nesse mundão de Deus”. Além disso, Bandeira estava na mesma faixa etária de Vieira, por volta de 55 anos e, portanto, havia uma respeitabilidade muito grande entre ambos por conta de uma série de vivências compartilhadas da época das tropas72. Da mesma forma, os filhos de Bandeira obedeciam aos desígnios de Vieira, principalmente o mais velho e o único casado entre eles, Juninho (Junior). O casal Juninho e Dara, moradores da tenda 13, mantinham uma proximidade grande com Vieira, principalmente pelas pretensões de aprendizado de Juninho sobre a catira, e por isso, ele sempre tentava participar das negociações iniciadas por Viera. As três outras habitações circunscritas àquela porção do acampamento, e todas circunvizinhas a tenda de Vieira e Rosimar, possuíam como habitantes, o casal Shely e Roseli, na tenda 9, o casal Leandro e Paulinha, na casinha 11, e os cônjuges Nandinho e Ana, na casinha 12. Os três esposos citados, Shely, Leandro e Nandinho, eram filhos de Vieira com Rosimar, e possuíam idades dessemelhantes, sendo Shely o mais velho entre eles, na faixa dos trinta anos, e os outros dois, por volta dos 20 anos de idade. Ao mencionar as quatro moradias, de Vieira e seus filhos, é interessante notar que as características das habitações no rancho, por exemplo, construídas em alvenaria ou com lona (tenda), ajudavam a diferenciar aqueles considerados moradores do local das outras famílias classificadas enquanto de passagem. Por exemplo, na “área do Gilberto”, as únicas pessoas residentes em tenda eram Giovane e Simone, temporariamente naquele pouso, e Baiana que apenas resolveu mudar a estrutura da 72 A chamada época das tropas foi um período compreendido há 20/30 anos no qual o principal meio de transporte era feito através dos equinos e a fixação mais delongada dentro de um território era mais rara. Uma espécie de sofrimento social também recorrentemente é associada a esse passado. 67 sua habitação de lona para alvenaria com a chegada de Lucinha, sua filha. Segundo Baiana, ela havia vivido a vida toda debaixo de lona, por isso já tinha o costume daquele tipo de moradia, porém sua filha, Lucinha, já estava morando de casinha no outro acampamento, em São Gabriel, e por isso, resolveu trocar de local e também o tipo da moradia. Agora, no lado considerado “área do Vieira”, os calons residentes nas tendas, os casais Bandeira e Marcia, Juninho e Dara, estavam naquele rancho de forma temporária, enquanto Leandro e Paulinha, Fernando e Ana, moravam em estruturas feitas de alvenaria, e por isso, revelam um maior tipo de vínculo com a área. Pode soar contraditório que, uma das lideranças do acampamento, sendo considerado ainda uma liderança interna de sua família como também das famílias dos seus filhos e da turma de maneira ampla, viva em uma habitação do tipo tenda. Porém a justificativa dada na escolha de “viver debaixo da lona” era semelhante àquela fornecida por Baiana, e segundo Vieira, a razão para isso era o costume de longa data com esse tipo de habitação: “A vida toda morei debaixo de lona, não vai ser agora que vou mudar. A gente se virava, parava uma semana em um lugar, depois uma no outro. E vai se acostumando com aquele ritmo. Para mim, morar em casinha assim igual eles, não dá certo não. É gosto né, essas coisas não explicar. É preferência de cada um”. Após expor minimamente a conjuntura73 apresentada nas duas áreas das principais lideranças do acampamento, coloco em qual contexto efetivamente se deram o exercício das diferentes espécies de chefia encontrada naquela turma. Como já delineado anteriormente, a escolha, permanência e poder de influência desse lugar de mando só guarda consonância mediante as dinâmicas próprias de cada agrupamento e situação vivenciada pelos membros daquele rancho. Antes de entrar nos casos particulares, segue abaixo dois esquemas para facilitar o entendimento da discussão posterior. O primeiro corresponde à associação entre família e residência dentro da “área do Vieira”, e o segundo, aos nomes das diferentes lideranças encontradas em exercício na turma Céu Azul: 73 Lembrando que lido com um dos arranjos presenciados dessa turma, e como tal, datado historicamente, e por isso possuo uma preocupação excessiva em apresentar os arranjos por croquis e também datá-los, porque a própria definição de turma é algo próximo a uma vivência perene de in stabilidade estável, e como tal, não prescinde da mudança. Durante a dissertação irei colocando outros arranjos presenciados e as devidas motivações de mudança. 68 Dito isso, retomo o Fragmento Etnográfico 1 e tento interpretá-lo, a partir daquele relato sobre minha primeira aproximação à turma do Céu Azul, como o comportamento específico observado naquele caso foi sintomático de uma postura mais ampla e recorrente de funcionamento das lideranças dentro daquele grupo, revelando, dessa forma, uma dinâmica própria da chefia calon com suas estratégias cunhadas de circulação, ocultamento e descentralização do poder de mandado. Imagem 10 Imagem 11 69 Entre os ciganos calons do bairro Céu Azul, a liderança pendulou entre os três irmãos, Vieira, Gilberto e Ronin, aqueles considerados os três calons mais influentes do acampamento por outros membros do grupo. Isso aparecia tanto através de comentários despretensiosos feitos nas conversas de outras famílias em relação ao tamanho do nome mantido por um dos três, ou mesmo quando eu perguntava abertamente sobre quem era o calon que assumia um cargo de chefia naquele rancho e, recorrentemente, esses próprios irmãos se referiam uns aos outros enquanto lideranças ativas. Em um primeiro momento, devido a essa multiplicidade e alternância constante de auto referência de poder de mando, supus a possibilidade de certo tipo de ocultação74 da identidade da chefia. Porém depois vim a perceber uma diferenciação nas maneiras de exercê-la e uma ausência de sensibilidade da minha parte de identificar um gradiente de formas e influências possíveis. Segundo alguns interlocutores calons, Gilberto congregava as qualidade necessárias para a realização dessa função, e entre elas posso listar a eficiência, o ser civilizado, o entendimento e o receber bem (ou o bom trato). Explicando mais detidamente os atributos listados, Gilberto, primeiramente, era considerado civilizado por conseguir interagir com os garrons sem alguns embaraços típicos de calons ditos menos dados à proximidade com os brasileiros. No meu entendimento, a expressão ser civilizado denotava aquelas pessoas com a habilidade de conseguir minimamente manter uma postura e uma imagem de confiabilidade aos garrons. Por exemplo, lembro-me que certa vez Ronin relatou que o calon escolhido para a intermediação com a polícia, quando acontecia qualquer desentendimento, era Gilberto; ele os recebia e tentava conciliar a situação. A fala de Ronin sobre a relação com a polícia foi: “Se chega os homi (homens) aqui perturbando, nem tem como eu chegar para desembolar com eles. Só do jeito da gente falar pessoal acha que estamos brigando. Quem vê de fora não entende nada, mas está tudo na paz. Imagina se eu dano de falar alto com os doutores. Gilberto já tem a fala mais mansa, compreende. Sabe lidar”. A referência a “fala mansa” não pode ser entendida no sentido literal, já que Ronin não destacava a característica da voz em si de Gilberto, mas ressaltava justamente a habilidade de seu irmão em conseguir simular um jeito de conversar e interagir mais palatável aos garrons. Se Gilberto ostentava um status de civilizado, o extremo oposto da ausência dessas características era Giovane, seu sobrinho, justamente pela recusa reiterada em tentar qualquer mediação com os garrons quando a motivação para o diálogo fugia de assuntos comuns ao 74 Realmente houve momentos de resguardo diante o repasse de algumas informações, situação normal que visava a própria proteção do grupo, porém a ocultação de determinadas informações foram mais substantivas no âmbito da tomada de decisões das lideranças, e não na sua definição. 70 cotidiano daquela turma. Em suma, Gilberto magistralmente transparecia aos seus interlocutores brasileiros, como mediador da turma, com um comportamento mais próximo do esperado enquanto uma possível docilidade e passividade dos ciganos. E presenciei inúmeras vezes o seu relato, durante as reuniões realizadas no acampamento, salientado as características de “pacífico” e “ordeiro” da turma. Se o atributo ser civilizado passava pelo entendimento daqueles calons como um conjunto de determinadas expressões, gestualidades e comportamentos de figuras consideradas autoridades, doutores e estudadas, principalmente visando uma metonímia desse “jeito brasileiro” para a performance de uma espécie de docilidade, a qualidade de ter entendimento passava pela compreensão daquilo considerado pelos calons como “papo de garron”, que eram as temáticas e vivências dos brasileiros inacessíveis ou de desinteresse da turma. Um dos exemplos que posso citar foi a tentativa de compreensão do funcionamento de dois mecanismos, um administrativo e outro legislativo, de participação e promoção da democracia: o primeiro foi o orçamento participativo75, e o segundo, a ouvidoria76 da câmara municipal de Belo Horizonte. Em ambos os casos, as demandas da comunidade apresentadas77 nesses espaços foram pontualmente três: 1) A observância do horário de enceramento do URPV - Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes; 2) A pavimentação da Rua Novecentos e Um; 3) A instalação de padrão de luz, o fornecimento de água potável e saneamento básico. Seguem abaixo três fotos correspondendo a cada um dos pleitos demandados pela comunidade. Há aproximadamente cinco anos, Gilberto era reconhecido como uma importante liderança externa na negociação com os garrons e a resolução dos problemas elencados como prioritários pela turma. Ouvi esse próprio calon afirmar que antes tinha mais nome que o próprio Carlos (liderança do acampamento do São Gabriel), afirmando que a liderança do São Gabriel era reconhecida pelos garrons, mas entre os próprios calons, não teria todo o prestígio que aparentava ter. 75 O orçamento participativo é mecanismo municipal usado com intuito de promover uma maior transparência e horizontalidade na escolha dos investimentos orçados pelo município. A princípio através de consulta aos cidadãos se faz uma seleção das obras e gastos prioritários para cada região da cidade. Não entro nesse trabalho no mérito do funcionamento desse mecanismo. 76 Corresponde a um órgão de interação com a população criado dentro da câmara de vereadores, e o intuito é ampliar a participação dos cidadãos nas decisões dessa casa legislativa mediante a proposta de leis e audiências públicas. 77 Não presenciei nenhum dos fatos relatos, já que os dois momentos de deliberação com a comunidade cigana aconteceram preteritamente a minha chegada, porém tomei ciência dos acontecimentos via relatos de Gilberto. 71 Imagem número 12 A fotografia foi cedida por Roseli Côrrea, e registra a participação de alguns membros da turma na chamada “Caravana da Câmara”, iniciativa através da ouvidoria da Câmara Municipal de Belo Horizonte para escuta de demandas feitas pelos cidadãos da cidade. A ouvidoria cidadã foi realizada no ano 2013, no acampamento, especificamente na varanda da casa do Felipe, a casa amarela na foto ao lado. Participaram desse evento, partindo da direta para esquerda, Ronin, Bebeca, Felipe e por último de chapéu, Vieira. Segundo alguns calons, nessa oportunidade também foram colocadas as três pautas mencionadas anteriormente. Imagem número 13 A foto ao lado registra o URPV, chamado pelos meus interlocutores calons de “o Bota Fora”. Pela fotografia se percebe quatro divisórias, uma delas parcialmente tampada pelo caminhão, separadas para o uso dos carroceiros, aqueles trabalhadores urbanos que transportam materiais e resíduos para serem dispensados naquele local. A reclamação da comunidade cigana sobre o Bota Fora recaía sobre o despejo irregular de resíduos feito do lado de fora do Bota Fora (ver anexo 1 a foto de material depositado irregularmente ), justamente porque o seu horário de funcionamento era reduzido. 72 Antes, quando gozava de reconhecimento e fama entre os calons, Gilberto frisava ser conhecido não somente no estado de Minas Gerais, mas também em outros estados, como Rio de Janeiro, Bahia e Espírito Santo. Além disso, ele também se relaciona com médicos, policiais, assistentes sociais, membros da SLU (Sistema de Limpeza Urbana), e tantos outros agentes do Estado. Primeiramente, quem frequentava as reuniões do CRAS (Centro de Referência em Assistência Social), do CONEPIR (Conselho de Promoção à Igualdade Racial), de orçamento participativo, entre outros, era Gilberto. Porém, segundo ele: “Não sei escrever e nem ler. Sou analfabeto legítimo. Alguém me passa o telefone ou fala para eu procurar sei lá das quantas, e depois como eu lembro?”. Ao final de muitas reuniões feitas no acampamento, apenas Ronin, Gilberto e seu filho Felipe permaneciam. Apesar de ser tímido e acanhado, muitas vezes Gilberto coloca Felipe para receber os brasileiros em sua ausência, porém, como ouvi diversas vezes de outros calons: “Ele não leva jeito. É muito travadão”. Se antes havia uma participação assídua de Gilberto nesses eventos promovidos por diferentes garrons, gradualmente houve uma ausência de sua participação devido à perda do prestigio de Gilberto junto aos outros calons, ou como ele mesmo havia exposto, a perda do seu nome. Perder o nome, segundo alguns interlocutores calons, seria justamente não ter mais a confiabilidade necessária para ter segurança de estar a frente de determinadas demandas da turma. A causa da perda do seu nome, ou ainda, o motivo pelo qual ele deixou o “nome cair”, se deu por conta de um ocorrido dentro do acampamento datado do ano de 2013 que ocasionou um fluxo negativo muito grande de calons do acampamento. Visando um melhor entendimento desse caso para a perda do nome do Gilberto, antes, apresento um brevemente sobre a chegada do grupo até o atual pouso permanente. Há aproximadamente 35 anos, havia dois lugares de pouso de alguns grupos calons na cidade de Belo Horizonte: a região compreendida pelo Céu Azul e São Gabriel, e redondezas. Como houve mudanças nas imediações dessas regiões, poderíamos tratar enquanto uma região mais extensa do que os bairros. Por exemplo, os ciganos, ao longo desses 30 anos, viveram primeiro no bairro Aarão Reis, depois no Bairro São Paulo, e por último no bairro São Gabriel (LIMA & SAMPAIO, 2011). As memórias desses lugares estavam muito vivas para os moradores do Céu Azul, e devido ao trânsito na época, várias famílias moraram em ambas as regiões (Céu Azul e São Gabriel). Até hoje, a referência ao acampamento do bairro São Paulo pela turma do Céu Azul, na grande maioria das vezes era através da turma do Arão Reis ou do bairro São Gabriel. Assim como alguns calons residiram nas imediações do bairro São Gabriel durante este período, algumas famílias ciganas moraram em três lugares 73 diferentes na própria região em torno do bairro Céu Azul. O calon Vieira me havia afirmado que sua família, aqui fazendo referência aos seus pais, que à época estavam vivos e seus irmãos, acampou perto da lagoa (nova Pampulha), e depois mais perto do acampamento, na Rua Maria de Gertrudes, e também no atual local do pouso. Ainda segundo o Vieira, os três lugares foram habitados concomitantemente por grupos “aparentados” (parentes), e ao mesmo tempo em que moravam ali, houve um fluxo curto de viagens para outros lugares, por exemplo, para cidades de Outro preto, Caeté, e Sete Lagoas. O motivo do pouso permanente dos seus familiares no atual local do Bairro Céu Azul, segundo o Gilberto, aconteceu por conta da doença dos seus pais, primeiro sua mãe, e depois seu pai. E, para conseguir adquirir os terrenos, primeiro seu pai vendeu toda a tropa (cavalos) e depois vendaram as peças de ouro que tinham para conseguir comprar alguns carros e também construir as casas de alvenaria. (Ouvi Gilberto fazendo diferenciação com os ciganos Rons, dizendo que sempre passavam pelo Céu Azul; porém, vinham com carros, e na época os calons só andavam de tropa). Ao mesmo tempo, Vieira complementava a informação afirmando que os ciganos foram expulsos dos dois outros lugares na região do Céu Azul e acabaram sem opção de pouso aos arredores. As características desse pouso, ao longo desses 30 anos de vivência desses calons, passavam por uma local que congregava diferentes turmas de origens distintas, e segundo Baiana, “era um lugar seguro e um ponto de encontro dos ciganos. Uma feira cigana”. E se aquela localidade gozava de um ponto de referência em Belo Horizonte para diferentes calons que passavam e pousavam ali, por outro lado, Baiana afirmava ser um local muito delicado, porque a junção de turmas de origens diferentes acarretava desentendimentos entre elas. Nas palavras dessa calin, as diferenças entre essas turmas eram vistas nos comportamentos incompatíveis entre calons baianos, calons cariocas e mineiros. Para Baiana, as características marcantes desses grupos eram relatadas assim: “o carioca é muito folgado, o baiano brigão, e o mineiro na dele. Não dá certo porque o jeito de viver é diferente de cada um”. Apesar do fluxo constante de viagens e pousos em outros acampamentos feitos por parentes de Gilberto, assim como as diferentes turmas ciganas que historicamente moraram no acampamento do Céu Azul, Gilberto me afirmou que aqueles realmente estão naquele local há mais tempo seriam “parentes de sangue”, ou ainda, “desde sempre só teve família aqui”. O motivo da permanência daqueles calons naquele local, haja vista a mudança e expulsão dos outros dois pousos pelos quais passaram diferentes grupos na região, foi creditado a Rafael, pai de Gilberto, e sua fama de ser uma grande liderança (religiosa, interna 74 e externa para lidar com os garrons). Os relatos sobre Rafael sempre recaíam na sua maestria e habilidade em lidar com os garrons, principalmente, com os considerados garrons estudados, autoridades ou de prestígio. Há cerca de 30 anos, devido ao seu talento nessas negociações, Rafael haveria conseguido acordar com o pretenso proprietário dos lotes compreendidos pelo acampamento, Telê Santana, a permanência dos ciganos naquela localidade. Por isso, se teria “apalavrado” a permissão da liderança cigana com o garron proprietário dos terrenos. A história de chegada e permanência desse grupo nessa região, apesar de fragmentada pela dificuldade de acesso a esse tipo de informação, ajudará a entender os motivos da perda do nome de Gilberto e consequentemente nos desdobramentos para a compreensão da singularidade das relações estabelecidas com a turma e outros garrons durante os embates envolvendo a regularização fundiária (utilizando a ferramenta google maps, juntamente com o relatos de alguns calons, consegui reconstruir o arranjo das habitações dentro do acampamento, durante os anos de 2009 e 2013, justamente o período que compreendeu o ocorrido). Ouvi três versões diferentes para o mesmo caso que ocasionou a evasão em grande quantidade de ciganos dali, há cerca de cinco anos atrás, e essas diferentes histórias foram justamente relatadas por Gilberto e seus dois irmãos. Quem primeiro me apresentou o caso foi Ronin, e segundo ele, o grande fluxo de pessoas para fora do acampamento aconteceu devido a uma briga entre Vieira, seus filhos e Bebeca com outras famílias de calons mineiros moradoras do acampamento. Devido a esse desentendimento, algumas famílias acabaram se mudando para São Gabriel para evitar um constrangimento entre aqueles envolvidos na querela. No mesmo sentido, Gilberto admitia ter ocorrido um desentendimento entre as famílias (não quis especificar os calons que se mudaram), e ainda frisava a intensidade da “briga”, quase levando a hospitalização de um dos calons envolvidos nesse desentendimento. Porém, esse calon justificava a mobilidade dessas famílias para São Gabriel, em virtude da ingerência de Renê Santana que havia pedido a retirada de todos os ciganos com exceção da família de Vieira (nesse caso, a família faz menção aos três irmãos Vieira, Gilberto e Ronin, mais seus parentes próximos). Como na época Gilberto era a liderança interna da turma, recaiu sobre ele a incumbência de retirar todas as outras turmas do acampamento, especificamente, uma turma de calons mineiros, cariocas e baianos. Segundo Gilberto, não houve dificuldade na retirada dos ciganos baianos, porém os ciganos mineiros e cariocas protestaram frente à sua decisão. Os ciganos mineiros acabaram 75 saindo por consequência da briga, e os cariocas78 não se conformaram com a decisão feita pela liderança, pois não haveria motivo para embasar o pedido feito a eles. A justificativa dada pela liderança recaiu no pedido feito por Renê Santana para deixar na área somente aqueles ditos mais “antigos” ou “conhecidos”, porém, ainda sim, Gilberto diz ter sido interpelado por eles da seguinte forma: “Você vai ficar a favor do homem? Do garron? E não da gente?”. Seu ato de “fechar o pouso79” causou uma reverberação negativa significante, e pagando o ônus dessa decisão, Gilberto nunca mais manteria o prestígio de grande liderança junto outras turmas, e por isso, seu nome havia caído não somente com os cariocas, mas com muitas outras turmas também. Segundo ele, “depois que o nome cai, dificilmente o sujeito consegue levantar ele, porque cigano não esquece”, e realmente Gilberto depois desse acontecimento não gozou novamente do prestígio vivido anteriormente. A última versão sobre a causa da saída desse grande contingente de calons do Céu Azul veio-me através de Vieira. Seu relato ia em direção de uma espontaneidade do fluxo negativo80 dos ciganos, sem nenhuma ligação com qualquer ingerência externa ou alguma causa interna. Os apontamentos de Vieira eram bem sucintos sobre o assunto, porém ouvi elogios de sua parte pela nova reconfiguração do acampamento. Segundo ele, antigamente haveria ciganos demais no local, e por isso, poderia haver uma confusão entre aqueles considerados pacíficos e conhecidos com os arruaceiros e sem compromisso em manter o nome no bairro. Principalmente por conta da confiança estabelecida com os comércios da região, tanto nos empréstimos prestados por alguns calons da família de Vieira, quanto no saldo disponibilizado para as compras à prazo desses calons. A forma de Vieira se ocultar sobre o tema já indicava uma possível escolha em não relatar integralmente as motivações da saída daquelas turmas do acampamento. Contrariando sua versão, Gilberto dizia ser Vieira aquele quem o obrigou a cumprir a ordem de Rene Santana, e seu acolhimento a ordem veio por ser mais novo que Vieira, e por isso, teve que cumprir seu pedido. Ficou nítido que a manutenção dos vínculos mantidos entre Renê Santana e o calons do acampamento vinham da relação estabelecida entre Rafael, pai de Gilberto, e Telê Santana, pai de Renê Santana, e se nesse caso o acordo mantido entres os dois nortearam a tomada de 78 Faço menção de forma genérica, pois não me foi informado o nome dos membros das turmas dos cariocas, baianos e nem a outra turma mineira. 79 Não permitir que outros ciganos, a não ser os que eram tidos como parentes mais próximos, pudessem acampar lá. 80 A composição desse acampamento variou drasticamente após a evasão advinda da “briga” relatada. Em meados de 2013, quando aconteceu a querela, havia cerca de 30 barracas no acampamento, enquanto na data da minha chegada, presenciei somente 13 barracas no local. 76 decisão para a expulsão das turmas antes moradoras do Céu Azul, de maneira semelhante, essa relação histórica estabelecida revelou influenciar algumas decisões tomadas pelos calons e alguns embates presenciados durante minha pesquisa. 2.2 Agregando-me com os calons: O caso da regularização da turma do Céu Azul Quando cheguei ao acampamento do Céu Azul, como relatado no Fragmento Etnográfico 1, tinha a convicção que poderia auxiliar de alguma forma a comunidade no âmbito do esclarecimento da situação fundiária da área habitada por eles. Porém, desde o início, me deparei com a resistência do grupo em revelar a situação que enfrentavam naquele local. Levou um tempo para conseguir compreender a real situação vivenciada por esse grupo calon na área onde se encontra o acampamento, e isso aconteceu devido a diversos motivos, tanto pelas muitas versões apresentadas do mesmo caso - ora eles afirmavam que eles eram donos do lote, ora que estavam de aluguel, ao mesmo tempo diziam que não pagavam nada e só estavam tomando conta para Renê Santana - quanto pelo resguardo de não passar informações sigilosas a um brasileiro. Quando comecei a frequentar o acampamento com mais assiduidade, fui interpelado por Gilberto com uma documentação que, segundo ele, poderia sanar as minhas dúvidas e consequentemente a série de perguntas que começava a fazer rotineiramente: Fragmento etnográfico 2: “Besta quadrada” O Conselho de um amigo ressoa como uma advertência descompromissada: “Estrangeiro na minha terra pisa devagar”. Ou aquele refrão empoeirado: “Chegue de mansinho que o sambista está dormindo”. Caminhos feitos em consonância com outras trilhas. Novamente ao acampamento. Ainda muito confuso com as informações dos últimos dias. Processando os desencontros iniciais. Talvez muito mal acostumado com a quentura amistosa do São Gabriel. Chego por volta de 13:30. Poucas árvores me recebem e me 77 oferecem sombra. Escondo do sol e dos meus medos. Passando pelo bota fora (RPV) avistei ao longe Ronim agachado fumando, juntamente com sua esposa Poliana sentada no chão com a filha Rafaela no seu colo. Costumeiramente, as diferentes famílias no começo ou fim de tarde ficam debaixo de uma árvore grande do lado da casa do Bandeira. Fico papeando sem muitas pretensões com o Ronin. Ele me fala de uma festa que teria no final de semana na fazenda do Carlinho Boiadeiro, em BH (Ribeirão das Neves), e aos poucos vão se achegando mais calons. Talvez seja melhor eu deixar claro minhas intenções. Falo longamente sobre minha vontade de fazer uma pesquisa que trouxesse algum retorne concreto à comunidade, apesar de sempre colocar aberta e recorrentemente a fragilidade da posição do antropólogo. No meio da minha fala Leandro fala: “Tipo um mapeamento”, o Vieira complementa: “Um censo né?”, Gilberto interrompe: “Isso a gente tem aqui. Vou pegar lá, segura aí”. Gilberto chega com uma brochura e me entrega. Leio o diagnóstico socioeconômico das comunidades Ciganas de BH. Dou uma olhada rápida e vejo só tabelas e mais tabelas. Bebeto me pergunta: “É isso mesmo que você quer fazer?”. Eu havia chegado super inocente falando sobre a regularização da área na lata e depois de receber aquela brochura, respirei fundo e decidi ir com mais calma. “Olha gente, deixa eu explicar direito. Quero fazer um negócio diferente. Está vendo aqui eles colocaram você como um quadrado”. O Danilo falou: “Mas meu irmão é uma besta quadrada mesmo”. Todo mundo riu alto, inclusive eu. O Leandro, irmão do Danilo, me olhou sério. Engasgo e continuo: “Então, eu quero saber coisas como catira...”. De prontidão Vieira me interrompe: “Isso é fácil, catira é o seguinte, a gente compra cavalo e revende para o pessoal”. Para provocar um pouco falo: “Seu Gentil lá do São Gabriel, tinha me falado que catira é um jogo, onde se pode perde e ganhar. E dificilmente alguém passa a perna em Cigano”. Os calons se entreolham e começam a rir. Ronin fala com espanto: “Olha o menino sabe mesmo o que catira”. Gilberto 78 O primeiro material sobre os Calons, do Céu Azul que entrei em contato foi justamente esse documento entregue por Gilberto, o diagnóstico socioeconômico produzido pela CEPPIR (Coordenadoria Especial de Promoção das Políticas de Igualdade Racial), da PBH, assinado em nome de Rosangela Silva. Esse documento foi sintomático de uma visão estreita e fragmentária sobre o conceito de território, e as redes nas quais os calons estão inseridos dentro de Belo Horizonte, pois não se relatou durante todo o documento o contato existente entre a turma do Céu Azul e a turma do São Gabriel, e como tal, os proponentes do diagnóstico tratam ambas as localidades como territórios desassociados e sem nenhuma ligação histórica e nem no presente. A posição equivocada da PBH ignora que por volta de 30 anos esses grupos chegaram juntos em Belo Horizonte e acamparam concomitantemente na região adjacente ao bairro São Gabriel e também da região compreendida pelo bairro Céu Azul. Durante os 30 anos de vivência nesse bairro houve famílias que mudaram para São Gabriel, e também houve o fluxo inverso. As fronteiras entre os acampamentos não são tão nítidas devido às mudanças constantes, e até entre as cidades mais próximas senti essa porosidade entre as fronteiras (ouvi recorrentemente afirmações que Ribeirão das Neves era Belo Horizonte, e que Belo Horizonte era Nova Lima, e que Pedro Leopoldo era Belo Horizonte). E é justamente o fluxo intenso entre calons dentre esses acampamentos que possibilita alianças em diversos âmbitos, tanto de matrimônio, comerciais e na própria produção dos parentes (Campos, 2015). Apesar dos registros do centro de saúde Lagoa localizado perto do acampamento, que possui uma equipe de assistência à família atendendo os ciganos constantemente, e além da documentação da matrícula de EJA (Educação de Jovens e Adultos) alocada na escola Adulto Lúcio, escolheu-se, por parte da PBH, omitir informações de variação numérica das tendas/casas durante os 30 anos em que habitam o bairro. Ainda pior, escolheram retratar o arranjo onde se tem uma quantidade reduzida de residências comparada com anos anteriores. Consegui recuperar junto à comunidade pelo menos quatro situações diferentes de composição do acampamento em um espaço curto de 7 anos (anexo 1, 2 e 3). O cenário complexo de mobilidade e os fluxos não foram relatados no documento, e na verdade, reforçou-se, através dele, uma imagem estática e invariável desta coletividade. Na história de da um largo sorriso e fala: “Me conta mais o que você sabe de Catira”. Entrando no jogo, retruco: “Ué, mas eu vim aqui para você me disser o que é”. O resto do dia se desenrolou em cima da catira. 79 ocupação do território existem registros comprovando uma variação do número de 6 até 40 de tendas/casas. Teoricamente o documento foi feito para dar suporte à regularização fundiária do território ocupada por esse grupo calon, entretanto, não consta um mapa sequer da ocupação dos calons. Foi recorrente a falta de sensibilidade em lidar com as especificidades das diversas formas de experiência no espaço urbano, como a construção de uma memória coletiva e as formas de perceber e interagir com o ambiente (Kevin Lynch, 2010), são radicalmente ímpares e constitutivas das múltiplas imagens de cidades indiscriminadas dentro um modelo hegemônico e ortodoxo de planejamento urbanístico. Existiu uma similitude muito grande entre a forma do diagnóstico usado pela PBH, e um dos laudos elaborados pelo NUQ (Núcleo de Estudos Sobre Populações Quilombolas e Tradicionais) especificamente na cópia da estrutura utilizado pelo último no caso de regularização do São Gabriel, sem, no entanto, se atentar que os critérios elencados dentro desse laudo estavam circunscritos ao contexto particular ocorrido em São Gabriel, e dessa forma não generalizante enquanto método. No caso do NUQ, houve a elaboração de um argumento específico (como apresentado no primeiro capítulo) para responder questões colocadas dentro do processo de regularização fundiária envolvendo a turma do São Gabriel, e por isso, suas explanações só fazem sentido dentro do contexto único visto nesse caso. Ressalto, novamente, a singularidade do processo vivenciado pela turma do São Gabriel, porque outras visões redutoras e generalizantes sobre algumas concepções caras para o entendimento lúcido dos diferentes casos enfrentados pelas comunidades calons apareceram de forma recorrente no caso de regularização envolvendo a turma do Céu Azul. Apesar da insuficiência do documento elaborado para compreender as dinâmicas envolvendo esse acampamento no âmbito local e trans-local, foi a partir dele que consegui ter acesso a alguns garrons, envolvidos da promoção de algumas pautas e demandas consideradas sensíveis a eles, com a turma do Céu Azul. O grupo mais atuante e com proximidade do acampamento foi o Núcleo Capão, organização criada em 2013 através da parceria com o projeto Manuelzão, e atualmente possui Roseli Silva (Professora da Escola Municipal Adulto Lúcio) como coordenadora. O principal objetivo do grupo seria a revitalização do córrego capão (conhecido também como córrego dos navegantes) através de algumas atividades e projetos, por exemplo, resgate da história do córrego, relação com moradores mais velhos da região, a criação de um parque linear, plantio da mata ciliar e verificação da qualidade da água. Segundo Roseli, a comunidade cigana entraria no escopo de atuação do grupo, porque o córrego atravessaria o território da comunidade e afetaria a vida da comunidade. 80 No ano de 2015, passei a frequentar as atividades e reuniões promovidas pelos participantes do Núcleo Capão, visando estimular a discussão sobre a presença do grupo cigano na região e perceber quais eram as percepções dos membros do núcleo sobre o acampamento. Uma das pautas colocadas durante os encontros passou pela implementação do EJA (Educação de Jovens e Adultos) para atender a turma do Céu Azul. Houve uma experiência anterior de escolarização com esse público na Escola Municipal Adulto Lúcio, inclusive com a participação da professora Roseli dentro do processo da montagem do material e também no acompanhamento das aulas. A implementação se deu em 2013, e durou menos de um ano, com aulas regulares duas vezes por semana, e segundo Roseli, os calons começaram a deixar de frequentar aos poucos e não justificaram os motivos da evasão. Como havia trabalhado com o tema da escolarização de jovens calons do acampamento do São Gabriel durante a monografia, tomei para mim a pauta do Núcleo Capão, e tentei junto ao grupo, como forma de compensação pela minha pesquisa, criar um entendimento sobre a possível volta do EJA e a participação deles no processo. Ao conversar com o grupo percebi um desinteresse generalizado na retomada do curso, e somente Leandro se mostrou inclinado a aceitar a proposta, mas não poderia, pois, segundo ele, não haveria valorização do estudo pelos ciganos: “O cigano diz que tem interesse... que valoriza o estudo. Se você falar com eles que o Leandro (ele) está estudando, todo mundo vai elogiar pela frente e fazer uma festa que só vendo, mas por trás... pessoal começa a falar de você. Começa a reclamar que você está sumido, que não liga mais para os parentes. Você tem que estar disponível, sabe? Brasileiro é bicho bobo, mas o estudo... imagina se eu tivesse feito um curso. Podia estar rico agora”. O calon Ronin também mostrou ter interesse em retomar as aulas do EJA, porém não poderia fazer sem outros calons e nem frequentar sozinho a escola, e, segundo ele, como a maioria não mostrava iniciativa em “retomar os estudos, não iria contra a vontade “da maioria” ou ficar “contra eles”. Tentando minimizar a impossibilidade de frequentar o ambiente escolar, Ronin ressaltava que as crianças já estavam indo regularmente no Adulto Lúcio Cardoso, e por isso, quando alguém do acampamento precisava de ajuda em alguma leitura, por exemplo, de documentos, eram justamente as crianças que davam esse suporte (Felipe, Leandro e Larissa também eram alfabetizados). Não insisti em levar adiante a proposta do EJA aos calons, porém, enquanto frequentava o Núcleo Capão tive contato com o CRAS Lagoa (Centro de Referência em Assistência Social), e tomei conhecimento de um recurso disponível para a comunidade, especificamente visando melhorar a infraestrutura do acampamento. Juntamente com a coordenadora do 81 CRAS, Elia Cristina, montamos um projeto de uma tenda escola para o uso do recurso, e fiquei encarregado de passar a proposta para os calons. Depois de explicar a proposta da tenda escola, que visava a criação de uma tenda dentro do acampamento para a ministração das aulas com a professora Roseli, peço ao Gilberto para me passar a lista do material necessário para a construção daquela estrutura. Aquele calon, animado com a possibilidade em me explicar todo o processo de montagem de uma habitação daquela natureza, detalha-me com calma as etapas necessárias para a montagem da tenda. Porém quando buscava confirmar a permissão dele para realizar o projeto, Gilberto dizia não ser necessário, porque caso fosse, a própria turma já teria se mobilizado para conseguir construir um barracão para essa finalidade. Aceito a negativa e só expliquei para ele que era um recurso já conquistado e caso não fosse usado seria devolvido, e Gilberto com toda a paciência que lhe era particular me diz: “Se você der as toras (madeiras para sustentação) e as lonas, cada um vai pegar um pouco e vai sumir com elas, e ninguém não vai nem ver cheiro de tenda... deixa eu falar com você Eduardo, você amigo nosso, a gente tinha um barracão aqui, mas o homem pediu para tirar tudo. Não tem mais festa por esses lados. Ali mesmo, do lado Ronin, ele não deixa a gente usar nada. Você está querendo ajudar, mas não sabe como funciona”. Nesse momento, impactado com a frase de Gilberto, busco mais informações relativas a relação entre o pretenso dono dos terrenos e os calons. Para isso, aproximo-me de Ronin, visando descobrir os motivos do impedimento do uso daquela parcela do acampamento, e ele em reposta me entrega um mapa com pedido de loteamento da área. Fragmento etnográfico 3: “A doutora” Vejo-me novamente explicando o motivo do meu campo. Buscando ao menos propiciar um momento de criatividade mútua nessas tentativas. Saindo da minha atuação, puxo uma conversa sobre a posse dos terrenos no acampamento, e quase prontamente o Ronin traz uma planta e estende no chão: “Tem uma doutora que está tentando ajeitar as coisas aqui de lote para gente”. Sem entender nada fui tentar localizar onde respectivamente as casas estavam localizadas nos lotes do mapa: “Onde você está aqui Gilberto?”. Ele de um salto da cadeira e já foi apontando: “Deixa eu te explicar, eu morava aqui tá vendo, e 82 depois fui para cá. E meu irmão morava aqui e depois trocou de lugar com o Bebeto que cedeu o lugar para o Leandro”. O Vieira falou: “Aqui em cima tinha tudo gente, ai foi descendo até aqui embaixo. Essa aqui foi para Pedro Leopoldo. Esse, nosso irmão Jairo, mudou para São Gabriel”. Dei uma olhada no mapa, e pensei comigo como aquele documento era insuficiente para captar toda complexidade dos arranjos parentais e mobilidade do grupo. Continuei ouvindo a restituição, e Ronin aponta: “Aqui antes tinha muita árvore, e o rio era limpo, tinha até gente que pescava. Tinha umas 30 barraca ou mais. Antes só meu irmão e meu sobrinho (Gilberto e Felipe) arrumaram casa, agora quase todo mundo está de casinha”. Repliquei: “Aqui em cima, porque vocês não moram?”. O Shely disse desconversando: “Isso tem dono, é o do Renê Santana, filho do Telê Santana, mas a doutora está ajeitando para gente”. A “doutora” mencionada era a Defensora Pública Ana Cláudia da Silva Alexandre, do setor Especializado em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais. Até aquele momento, apesar de reiteradamente afirmar que precisaria estar lá durante o ano todo, eles pensavam que seria um funcionário ordinário da prefeitura, e por muitas vezes ouvia comentários: “Você trabalha para prefeitura? Trabalha para vereador? Trabalha no posto de saúde?”. Antropólogo era um “bicho muito raro” (a maneira pela qual os calons muitas vezes me chamavam) ali e totalmente dispensável. Aproveitando a informação, entro em contato com Roseli e com a defensora Ana Cláudia e articulo uma audiência pública pelo Núcleo Capão para conseguir entender melhor a situação fundiária da área e os possíveis processos ou pleitos envolvidos. Consigo convencer a comunidade a comparecer. No dia da audiência, dia 30/08/2015, foi a Ana Cláudia que abriu com a fala: “Primeiro, deixa eu fazer um histórico para comunicar os interesses da comunidade e do núcleo capão. Nossa atuação é em prol da comunidade tradicional para valorizar e defender o território. Não vivemos da mesma forma. Eles possuem questões próprias. As pessoas não são iguais por questões de etnia, pertencimento, comércio, 83 laços familiares. Eles estão aqui há mais ou menos 30 anos. Não basta o Renê falar que é dele. Isso não caracteriza o direito de propriedade. O único documento que temos no momento é o do parcelamento do solo. Perguntamos a prefeitura quem seria dono da área. Não houve resposta até o momento, e o tempo de resposta já venceu para que não tenha que entrar com uma ação jurídica. A questão possessória avança conforme os dados que a gente vai recolhendo e reconhecendo os tramites legais. O poder público não tem informação. Os registros não apareceram. Estamos em fase de levantamento de dados A questão do território para a comunidade tradicional para sua reprodução. A história da tomada de território. Não vamos resolver aqui, nosso objetivo é garantir a posse tranquila para comunidade utilizar. Eles têm que se adequar ao poder público. Encontrar uma leitura um conceito território definido”. Após a fala da defensora, Gilberto afirma não ter segurança na relação com o Rene: “O dono não cumpriu com nós. Se fosse outro lugar fixo, qualquer um estava bom. E você é que vai negociar. A gente nem sabe por onde começar. O pessoal prefere ficar aqui... já somos conhecidos, já temos nossos compradores, e lugar para criar cavalo. Não tem tanta cisma com a gente”. E Ronin completa ele: “A gente não quer ficar rico. Já moramos de tenda. Agora queremos um lugar para os meninos ficarem bem. Não queremos sair. Saber quem é bom de paga e quem não é. Para os compadres. Se fosse invasão aqui, mas não é. A gente só queria um espaço está separado, a gente não mistura com a invasão e vivia satisfeito já. Mas, eles são homens poderosos. Ele falou a gente saiu (fazendo menção ao pedido de Renê Santana)”. Essa primeira reunião elucidou parcialmente a situação fundiária da região e as disputas, algumas silenciosas, presentes nos diversos interesses conflitantes naquela área. A partir dela me informei que o território habitado pela turma do Céu Azul estava em uma área reclamada pelo Renê Santana, pretenso proprietário dos terrenos, porém nunca houve a validação dessa posse mediante a apresentação comprobatória. A própria defensoria havia tentado uma conciliação entre o Renê Santana e a turma, chegando a intimá- lo judicialmente a apresentar 84 os documentos registrados da área, porém nunca houve a resposta e nem comparecimento por ele em nenhuma das reuniões de conciliação propostas. Tive acesso ao processo de regularização, em meados de setembro de 2015, justamente no momento em que a defensoria constava a não validade do pedido de loteamento encontrado no documento em posse do calons, e o pedido de esclarecimento aos diversos setores da PBH para conhecimento da titularidade da área, porém houve omissão da prefeitura, na gestão de Marcio Lacerda, em ceder às informações. Completando o quadro de insegurança jurídica, existiam três projetos já orçados para serem implantados parcialmente ou integralmente na área habitada pela comunidade. Um deles seria um novo anel rodoviário até Confins que iria cortar por Lagoa Santa e passar pela região, o segundo seria canalizar o córrego capão que passa dentro do território calon, desviando de forma a impossibilitar uso de grande parcela de terreno ocupado pelo grupo, e por último, a construção de um conjunto habitacional - diamante dois - bem próximo ao acampamento. Além dessas informações vinculadas na reunião, o espaço da reunião pôs em clara dissintonia entre o que a concepção de “se fazer justiça” fundamenta e a preocupação premente da comunidade com o poder exercido pelo Renê Santana e sua influência dentro da região. As perguntas realizadas durante a reunião pelos calons eram todas sobre a veracidade das informações passadas por Rene Santana sobre os terrenos e a liberação ou não das áreas interditadas por ele no acampamento para construção. Depois da reunião, ouvi repetidamente Gilberto exigindo celeridade nas respostas buscadas pela defensora, pela afirmação que “As coisas para a gente é para ontem”, enquanto a Ana Cláudia pedia compreensão da morosidade da justiça e espera das respostas vindas da prefeitura: “Não posso atuar enquanto não obtiver as respostas dos ofícios, porque preciso traçar um plano de ação baseado nelas”. A incompatibilidade das temporalidades me dificultou intermediar as informações da regularização aos Calons, pois qualquer notícia nova, como por exemplo, que não houve fatiamento do terreno e por isso em sua integralidade haveria apenas um proprietário da área, mostrava-se irrelevante caso não fosse para esclarecer quem era realmente proprietário, porque qualquer decisão tomada pelo grupo deveria vir mediante uma certeza da ausência da posse por Rene Santana. Acabei ficando desestimulado em tentar articular qualquer entendimento entre as partes, porque enquanto esperava a resposta demandada para a prefeitura, e mediante a ausência de novas informações que pudessem dar embasamento à outra possível tomada de decisão pela turma, ouvia de Gilberto a seguinte frase: “Não precisa se preocupar com a gente não. Estamos acertados com o Renê de cada um ficar no seu 85 lotinho. Até agora ele está cumprindo a palavra dele, e por isso a gente também vai cumprir”. Havia uma ambiguidade nesta relação com Renê Santana, de ora demandarem com urgência a informação sobre o processo durante meu trabalho de campo, e ao mesmo, devido a morosidade do processo e falta de resposta da prefeitura, continuarem mantendo o acordo com o Rene Santana. A manutenção do acordo com esse garron, além das características históricas, vinham por conta do receio da grande influência e do elevado poder aquisitivo ostentado por ele, e o relato etnográfico abaixo ajuda a perceber esse receio. Fragmento Etnográfico 4: “Peixe grande e peixe pequeno” Reviso meus papeis de campo na noite anterior antes de ir novamente a campo. Debruçado no papeis e agora sobre a esquina, e espio de longe. Atento o movimento morno dos ciganos e não ciganos ali no bairro. São 11h30min. Policio-me sempre. Chegar depois do almoço. Entro apreensivo na Rua Luiz Cantagalli, percorro uma curta distância e novamente debruçado sobre a calçada descansam os restos de frutas, legumes, madeiras, panos, papeis, misturados a cachorros e moscas. Vestígios do ABC (Céu Azul) esticados sobre a calçada. Chegando ao acampamento, encontro Bebeto sentado em cima de uma pedra fumando, de frente para o rio. Percebo que a casa do Ronin está fechada, e do Gilberto também. Aproximo-me dele, e de forma sincera me diz: “Está sumido meu caro?”. E com entusiasmo, respondo: “Fala, Bebeto, tudo certo? Estava com dengue, fiquei uma semana de cama”. E ele comenta a situação: “Aqui tudo mundo já pegou dengue, estava vendo isso aqui, é puro esgoto, atrai mosquito demais. Junta aí nessas sujeiras. Daquele cano sai só sujeira. Você tem que ver, mas do outro lado ali é mais limpa um pouco”. Sento um pouco também a beira do “esgoto”, e indago: “E a reunião lá, o que você achou?”. Vejo Bebeto levantar indignado, arruma o boné e da cusparada no chão: “Deixa falar a verdade procê (para você), a doutora fugiu, deu com os burros na água. Saiu da peleja. Doutor não dá certo não com cigano. 86 Agora, menos aficionado na regularização fundiária, e mais consciente de sua morosidade, deixei que o parentesco tomasse cada vez mais um lugar central nas conversas corriqueiras em campo. Na própria literatura antropológica é notória a importância da família na vida calon, tanto relacionado ao casamento, alianças, catira, e a noção de pessoa (Coradini, 2014; Ferrari, 2010; Ferreira, 2014; Fazito; 2000; Lorenzon, 2012), e não seria diferente, sua centralidade para entender a mobilidade desse grupo (estes pontos serão discutidos no capítulo 3). Durante minhas visitas a campo, deparo-me novamente com a professora Roseli Correa que me informa ter ouvido em um evento da PBH, a Rosângela (coordenadora do CEEPIR) afirmando discordar desse trânsito de pesquisadores dentro do acampamento e me repassa o relato da gerência das posições das tendas feita pelo Renê Santana dentro do acampamento. E ela enquanto coordenadora do capão, propõe novamente uma reunião, dentro do acampamento, especificamente na casa do Gilberto, para tratar da presença do Renê Santana e a ilegalidade das mudanças das habitações naquela local. Quem vai querer mexer com nós, a gente não tem dinheiro”. O Bebeto amarra o cavalo dele e completa: “Quem vai caçar problema mexendo com pobre? Onde a gente mora está bom demais. Só não botar a gente morando em prédio. Você ouve os peidos dos outros, até outras coisas dá para ouvir. A gente fica engaiolado”. Estava escutando e olhei momentaneamente o córrego de novo. Logo, Bebeto comentou: “Aqui antes tinha muito peixe miúdo, hoje você pesca só bota, lata, essas coisas. Veja bem... como a prefeitura vai confrontar peixe grande? O Renê é aquele peixão, tubarão, sabe? A gente aqui é miúdo, piabinha. Somos a pesca... A gente só não quer ir pra predinho. Como vamos coloca o cavalo lá? Vamos cria cavalo no porão?”. E tentando alertar Bebeca para minha condição de peixe pequeno, digo ter limitações decisórias na minha atuação enquanto antropólogo, e Bebeca me diz: “Você que está na liderança. Está na frente disso para nós. Você igual a gente, não tem poder, mas é mais entendido e estudado. Compreende melhor o que está acontecendo. Como seu nome está crescendo... está crescendo valor aqui, a gente coloca você ai para dar essa força”. 87 Recuso-me a ir à reunião, explicando para Roseli a situação de acordo entre os calons e Renê Santa, e nossa limitação em interferir nessa negociação, principalmente sem nenhuma informação relevante mais recente advinda das pesquisas documentais realizadas pela Defensoria. De qualquer forma, a reunião estava marcada, e por conta da insistência de Gilberto em acompanhá-la, acabei participando dela de maneira menos atuante. Novamente, a Doutora Ana Cláudia é convidada para participar daquela atividade promovida pelo Núcleo Capão, e aquele espaço acabou por ser usado integralmente pela defensora para atualizar as informações relativas sobre o processo em andamento. Segundo sua equipe, a Defensoria havia entrado com uma ação judicial para obter resposta do município de Belo Horizonte, pois os prazos dos requerimentos das informações sobre a posse da área haviam todos expirados. O único dado fornecido foi que parcela do território do acampamento estava dentro de uma APA (Área de Preservação Permanente), porém o mapa (retirado do aplicativo google maps) fornecido pela SUDECAP (Superintendência de Desenvolvimento da Capital) não especificava e nem detalhava a localização exata da APA. Por fim, a reunião foi encerrada com a defensora se comprometendo a ter acesso ao inventário do Renê Santana, e aquele ato se mostrava importante para conseguir elucidar algumas dúvidas referentes à veracidade do testemunho de Renê Santana sobre a posse das áreas no acampamento. Com a morte do seu pai, Telê Santana, no ano de 2006, os bens herdados por Renê Santana estavam sendo inventariados, e por isso, a ausência de documentação comprobatória da área, registro de imóvel no cartório, era feita sob a justificativa do seu trâmite dentro do inventário do seu pai. Com acesso ao inventario de Telê Santana, poder-se-ia ter consciência, caso realmente houvesse, da espécie de documentação das áreas possuídas por ele. Naquele momento, sem poder avançar na regularização fundiária, aproveito a reunião dos calons após a outra reunião e proponho a criação de uma associação similar à Associação Guiemos Kalon, com sede em São Gabriel. Fragmento Etnográfico 5: “Parece ser” Após a reunião, apesar de todos estarem cansados, dada às circunstancias da conversa, sinto uma maior abertura para tentar algo mais pragmático, e lanço a proposta: “Vocês já pensaram em fazer uma associação? Fundar uma aqui. Seria como se fosse uma ONG, tem uma sede, um presidente e dá mais força para vocês chegarem nos lugares. Conquistar as coisas”. E Leandro pontua cirurgicamente sobre meu comentário: “Pensava que associação era a gente. Você, Elia, 88 Roseli. O pessoal que quer ajudar nós aqui”. Dei uma risada, porque a associação era justamente aquilo realizado pelos calons, uma aproximação muita específica sobre a política feita pelos garrons, e respondi: “Sim, é verdade também, mas a associação tem mais peso para as coisas burocráticas”. O Gilberto, novamente lembra: “A gente não sabe nem assinar o nome, não adianta. O pessoal indica os telefones e depois não sabemos por onde começar. Porque você não representa a gente ai nessa tal associação”. Achando que era brincadeira do Gilberto: “Fica meio estranho um brasileiro representar os ciganos, você não acha”. O Giovane falado de maneira séria: “Você coloca um chapéu. Passa um cinto. Põe bota. Chinelo não. Pendura umas correntes de ouro. Quem vai saber que você não é cigano?”. E intrigado respondi: “Mas tem o jeito de falar...”. Giovane me provocando: “Outro dia você estava me imitando aqui me falaram”. Eu ri alto e imitei rapidamente: “Então, mas é só imitar né, não é ser cigano”. O Ronin falou: “Precisa ser cigano não. Toda mão tem brasileiro aqui que viaja e vai fazer catira com a gente. Coloca um chapéu fica lá no meio. O pessoal acha que ele é cigano. Está lá com nós. Com chapéu. Ninguém suspeita. Ajuda a catira. Ele passa como cigano. A gente sabe que não é. Está entendendo?”. E provocando Gilberto comentou: “Você que é liderança Gilberto, botá ordem aqui”. Puxando um cigarro e acendendo lentamente, Gilberto me responde desanimado: “Deixa te falar Eduardo, aqui antes eu mandava mesmo, era liderança mais conhecida em qualquer lugar aí afora. Ganhei até prêmio de liderança mais votada, mas você sabe né, depois que fechei aqui para outros ciganos... porque o Renê pediu para ficar só os mais antigos, cabo meu nome”. Eu retruquei: “Você não conseguiria explicar que foi porque o Renê pediu e tentar abrir de novo?” Balançando a cabeça o Gilberto me respondeu: “Adianta nada não, eu tinha que ter defendido os ciganos, não importa o motivo eu tinha que ter ficado do lado dos ciganos, como fiz o acordo com ele, perdi meu nome”. Tentei mais uma vez mostrar a importância da associação: “Associação do Carlos, não ajudou ele em São Gabriel”. E Gilberto 89 Apesar de tentar ficar mais longe de temas relacionados “a demandas” envolvendo a turma do Céu Azul, durante o tempo que me distancio no acompanhamento do caso de regularização fundiária, ao perceber de novo que depois de quase dois meses não existia nenhum avanço substancial, procuro me aproximar novamente de João Pio, da Secretaria de Direitos Humanos, que naquele momento estava articulando pesquisadores para elaboração de políticas públicas para comunidades ciganas no Estado de Minas Gerais. Durante minha presença na Secretaria de Direitos Humanos me foi pedido para articular um encontro das lideranças ciganas de Minas Gerais, e opinar sobre o caso da comunidade calon “moradora” (termo Calon usado para designar pessoas que não estão morando provisoriamente no acampamento) residente há aproximadamente 30 anos no território, na cidade de Betim- MG, e que foram expulsos por conflito com pessoas envolvidas com o tráfico de entorpecentes. Em um dos encontros propostos dentro da secretaria, também pude rever a liderança do São Gabriel, Carlos Amaral, e conversar sobre a situação dos Calons em Minas Gerais, e pretendíamos por intermédio das indicações de Carlos, uma série de visitas em outros acampamentos. Nessas viagens focaríamos, nos aspectos salientados pelo Carlos como os principais problemas enfrentados pelas comunidades ciganas no Estado, sendo elas a terra, a polícia e falta de acesso à saúde. A grande expectativa da possibilidade de ter uma amplitude maior de informações das diferentes situações vivenciadas pelos grupos Calons, em Minas Gerais, começou a ser frustrada quando o Carlos comentou da impossibilidade de fazer essas viagens sem o “Raden” (dinheiro) para bancar as despesas das viagens. Apesar do interesse legítimo do estado de Minas Gerais, através da Secretaria de Direitos Humanos, em tentar construir políticas públicas para as comunidades ciganas no Estado, novamente uma visão generalizante a partir do caso do São Gabriel, possibilitou articulações mais profícuas com outras lideranças e os contextos singulares vivenciados por outros grupos no estado de Minas Gerais. Nesse momento, como não morava no bairro Céu Azul, ainda fazia visitas de forma mais esporádicas no acampamento, e por isso, especificamente no mês de junho (2016) havia ido somente duas vezes fazer trabalho de campo, justamente pelas atividades prestadas dentro da me diz: “Lá é diferente. Lá não é de particular. E pessoal ia passar corrido com eles (expulsar), e ai eles se ajuntaram e conseguiram ficar. Resolveram do jeito deles. Do jeito que deu. Aqui se precisar a gente faz a mesma coisa”. 90 Secretaria de Direitos Humanos que me estavam demandando uma dedicação grande. Devido à minha distância ao grupo durante esse período, não tinha acesso aos principais acontecimentos comentados dentro do cotidiano da turma, muito menos acompanhava o caso de regularização fundiária, principalmente após a ausência de novas informações relevantes que pudessem mudar o panorama da situação. Porém, de forma inesperada, Ronin me procura para avisar que Renê Santana está novamente frequentando o território, e dessa vez, não somente exigia a mudança das tendas de lugar, mas coagia a comunidade a assinar um contrato de compra e venda de algumas parcelas do acampamento. O próprio Renê Santana afirmou (registrado em vídeo pela comunidade) que estaria tomando aquela atitude para auxiliar os ciganos a conquistarem documentação da área, ou como ele mesmo afirmou (trecho retirado do vídeo citado): “A gente está fazendo isso para garantir a tranquilidade da comunidade”. A manutenção de uma espécie de compromisso com Renê Santana aparentava vir por duas razões, a primeira em manter o acordo firmado entre o pai de Renê Santana, Telê Santana, e o pai de Gilberto, Rafael, haja vista que Renê Santana não havia “quebrado sua palavra”; a segunda, era por conta do receio de entrar em confronto com Rene Santana sem a garantia da titularidade certa da área. Na última reunião no acampamento, Gilberto havia afirmado não ter força para ir contra a vontade de Renê Santa, porque o prestígio e “poder” (os calons usavam poder no sentido da influência de determinada pessoa no judiciário, legislativo e executivo) acumulado por Renê Santana inviabilizaria qualquer tipo de tratativa com ele. Exponho abaixo um trecho da reunião que elucida bem a relação ambígua com Rene Santana, ora afirmando vínculos históricos, atuais, e ora buscando saber a legitimidade da documentação apresentada por ele. Fragmento Etnográfico 6: “Filho Rei” dDrrdoRei” Estava naquele momento acompanhando a reunião chamada pelo Núcleo Capão, com a presença da Doutora Ana Cláudia, para tratar da ingerência de Renê Santana sobre a área do acampamento. A reunião mal havia começado, e com sua sinceridade particular, Gilberto começa: “Ele tem mais poder que nós. Te falar a verdade. Quem vive na favela tem mais poder que nós. Ele tem mais poder que nós. A palavra dele vale mais que a nossa.... e a nossa palavra não é nada. Eita, nós é cigano sabe como é cigano né. Nossa palavra para ele não 91 tem poder nenhum, e a palavra dele para muita gente importante tem”. A Roseli propõe registrar a presença dele através de boletim de ocorrência, e pergunta a defensoria se resolveria esse tipo de registro. E Gilberto ao ouvir isso, responde indignado: “Fazer boletim de ocorrência a polícia ainda prende nós na presença dele. A gente vai chamar a polícia e vai ver ele. Eu vou prender vocês não é ele não. Ai acabou, vai botar o filho do rei contra um filho de um cigano. O pai dele já foi rei umas três ou quatro vezes. Vai apresentar um filho de um rei e um filho de um cigano para ganhar uma questão. Claro que quem vai ganhar é o filho do rei sempre. Cigano já está errado de partida para eles”. E a defensora Ana Cláudia tenta alertar Gilberto para a importância daquele procedimento: “A gente não pode pensar assim. Vocês têm o direito e isso que vocês têm que entender. Vocês tem que encaminhar para gente, e eu posso inclusive pedir o registro da ocorrência registra na defensoria pública a ocorrência e encaminha para a polícia para que a polícia tenha o registro disso. Um ofício meu para polícia tem efeito de uma representação. À medida que a defensoria pública comunica para polícia que cometeu algum ato de ameaça, coação, qualquer coisa, qualquer tipo de situação assim. Chegou esse documento oficialmente na polícia, ela não pode falar que não sabia de nada. Ela tem que abrir o procedimento imediatamente, e tomar as providências. É um órgão público oficiando a autoridade policial do que está acontecendo. Se tiver esse tipo de dificuldade fazer boletim de ocorrência para vocês, na realidade é um ato de um agente público que gera inclusive responsabilidade desse agente público. Recusar fazer boletim de ocorrência porque ela é da etnia cigana. Isso é grave e tem que ser inclusive conhecido. Mesmo que isso não tenha que acontecer dessa forma, eu posso encaminhar se e estiver isso formalmente para delegacia de polícia um ofício comunicando o que ele tem feito aqui isso com certeza absoluta vai fazer com ele pare de vir aqui. A gente tem que registrar isso”. E Gilberto muda o discurso, reforçando a amizade com o Renê Santana: “Ele vem entra aqui dentro, senta aqui comigo, bebe café. Sai aí com 92 Ainda tentando entender a relação mantida entre os calons e Renê Santa, novamente Ronin entra em contato comigo para me avisar da possibilidade do Renê Santana ir ao território de novo, na quinta-feira (16/06/2016), e pede minha ajuda para verificar se ele possuía a documentação da área e também para explicar se o acordo proposto por ele era “honesto”. Atendendo seu chamado, no outro dia chego na tenda de Vieira e vejo uma aglomeração de garrons e ciganos, e pela primeira vez tenho contato com o Rêne Santana, e vejo pessoalmente apontando e regulando a circulação dentro da área. Antes de ir me inteirar do motivo da sua presença, deparo-me com um grupo de calons observando de longe a cena, e antes de cumprimentá-los, Gilberto me empurra levemente: “Vai campeão, desembola (resolver) para gente. Corre lá”. Inicio a conversa com Renê e seus advogados, e finjo ser estudante de biologia interessado no córrego capão, e os ciganos percebem a mentira contada e somente me olham, sinalizando que não me desmentiriam para ver ser Renê falava alguma coisa. Demagogicamente, o Renê Santana afirmava que seria melhor para os ciganos a mudança das tendas proposta, porque, segundo ele, a prefeitura nunca tinha feito nada no local e esse contrato de compra e venda firmado entre eles ajudaria na melhoria dos serviços públicos para o acampamento. Pergunto dissimuladamente aos advogados sobre a regularização nós um abraçando o outro aí. Ele chega numa boa. Ele vem abraça nós. Diz que a gente não vai perder nada aqui. Ele vem mais de 30 anos, o pai dele e ele. Eu só não conheço a mãe dele, porque a mãe dele mais antiga”. E Ana Cláudia compreendo o discurso diz: “Vocês são amigos deles, eu entendo. Isso serve para nós como defensoras aqui, e até para vocês que estão como comunidade, não forma de viver deles eu não posso intervir. Eu respeito o seu jeito de relacionar com ele. Não vou mandar um B.O para delegacia se eu vou atrapalhar uma amizade”. E por último, mais uma vez, Gilberto coloca a complexidade do sentimento frente ao Renê Santana: “ A gente quer saber se ele está agindo errado com nós. Ele pode estar rindo na frente e enganando a gente, agindo de má fé. A gente não tem conhecimento de nada. –As vezes ele quer prejudicar a gente, e está fingindo que é amigo nosso. Está querendo dar facada por trás. Aí fica difícil. A gente não pode falar mal do cara, porque ele ajuda nós muito tempo, por isso eu não sei sinceramente o que fazer”. 93 fundiária da área, e uma das advogadas responde que nunca foi avisada de qualquer procedimento dessa natureza, apesar da defensora intimar mais de duas vezes o comparecimento de Renê e seus advogados a comparecerem na defensoria para tratar sobre o caso. A advogada do Renê garantiu a posse dos terrenos pelo seu cliente e afirmou a impossibilidade de usucapião, porque, apesar de cederem a área para os ciganos, segundo ela, Renê sempre registrava a presença da comunidade como uma ocupação irregular no território, e por isso, estaria resguardado o seu direito de proprietário. Depois da saída do Renê, converso francamente e aconselhando eles a não assinarem o contrato até todos entenderem melhor a situação e os motivos da sua pressa em querer assinar um acordo formal. Além das próprias contradições percebidas na sua fala, ao dizer que doaria a área para a comunidade, mas, ao mesmo tempo, seriam cobrados 50.000 reais dos ciganos (segundo ele para fins de despesas cartoriais) por uma área que ele não havia apresentado o registro. E mesmo Vieira, que era a pessoa que ressaltava a importância em manter o acordo firmado com Renê Santana, pedindo minha ajuda, disse: “São mais de 30 anos de confiança. Seu pai deixou a gente ficar aqui. Agora a gente é amigo. Confia um na palavra do outro. Não sei porque precisa de contrato logo agora. Você não entende ainda menino, está pegando o ritmo aqui da gente. Brasileiro não engana o cigano, muito difícil. Catiramos Minas a fora, e não erramos uma. A única coisa que o garron dobra (engana) a gente é em documento. Não conhecemos. Não temos entendimento. Então buscamos alguém para dar uma mão”. No dia seguinte (18/06), vou à defensoria pública relatar a coação feita a comunidade, e a defensora do caso, Doutora Ana Cláudia, espanta-se pela coincidência entre o pedido feito pelo Renê e o recebimento do inventário do Telê Santana pela defensoria. A investida de Renê Santana a comunidade se deu em resposta à constatação pela defensoria da ausência de registro da área e afirma haver somente uma escritura pública de uma antiga fazenda chamada “Olhos d’água”, e por isso a necessidade de se fazer uma cadeia dominial da área para esclarecer os possíveis proprietários reais envolvidos no litígio. A defensora ainda me alerta que a atitude tomada pelo Renê se configurava uma manobra visando facilitar a própria regularização da área em seu favor, pois criaria documentação comprobatória do acordo realizado com a comunidade. Comunico a ausência de documento ao Gilberto por telefone e vou ao território explicar a recomendação da defensora em não assinar o contrato de compra em venda, pois ele poderia não ter validade legal, e, além disso, poderia ajudar o próprio Renê a efetivar a regularização da área do acampamento em seu nome. 94 Naquele momento, tento explicar ao Gilberto que tanto a comunidade quanto Renê tinha direito sobre a área, porém o uso tradicional do território, devido ao histórico de ocupação da área, pela turma seria um argumento favorável na disputa pela posse, e esse calon me afirma manter o acordo sem assinar o contrato. Na quarta-feira (22/06), dessa vez é Ronin que me liga para avisar a preferência da “ciganada” em assinar o contrato com Rene, e no mesmo dia na parte da tarde, junto a alguns membros do Núcleo capão, e o João Pio, da Secretária dos Direitos Humanos, vamos ao território para explicar a situação, e mesmo assim eles ainda queriam outra opinião para a tomada de decisão sobre o contrato. Nesse momento, mantinha contato com mais frequência com Gilberto e Ronin sobre essas tratativas, enquanto Vieira começava a e me evitar. Articulo uma reunião no dia seguinte dia (23/06), com o NUQ81, a defensora pública e a comunidade para falarmos do caso de regularização do São Gabriel e reforçarmos que o contrato não teria valor legal e que só fortaleceria uma futura ação de regularização do próprio Renê Santana. Houve uma percepção mais nítida, a partir da atuação do NUQ, da vontade dos calons em continuar mantendo as relações estabelecidas com o Renê Santana, e o desinteresse no processo da regularização fundiária. Após essa reunião, Gilberto me dizia a importância de não entrar em confronto com o Renê: “A gente não pode entrar em confronto com ele. Muito forte. A gente é pacífico. Demorou para conseguir fazer nosso nome no bairro. No pessoal confiar nos ciganos. Se a gente briga com o Renê, ai a acaba tudo. Ficamos sem nada. Cigano não tem força. O homem compra todos os advogados. A polícia está a favor dele, o prefeito, todo mundo”. Apesar de reforçar a necessidade de manutenção do vínculo com pretenso proprietário da área, Gilberto garante a posição contraria da comunidade em assinar o contrato, porém pede um papel (documento) que pudesse proteger e dar alguma garantia a turma, e a defensora Ana Cláudia se compromete a elaborar uma resolução aos possíveis órgãos envolvidos atentando para inviolabilidade das residências e do território cigano durante o processo de regularização. O calon Gilberto me pede para ir a sua casa mais uma vez conversar sobre o caso, e quando chego lá de manhã, coincidentemente o Renê estava no acampamento instruindo seu funcionário na limpeza de uma parte do terreno com o trator (anexo 4). Tento argumentar expondo sobre as reuniões realizadas junto com a defensoria, as várias intimações encaminhadas a ele, e a última resolução instruindo aos órgãos envolvidos no processo em guardarem inviolabilidade do território cigano. E ouço sua justificativa dizendo que nunca 81 Os integrantes do Núcleo presentes foram Deborah Lima, Juliana Campos e Helena Dolabela. 95 tinha sido informado e se foi intimado as cartas chegaram a sua casa em Pedro Leopoldo e por isso não teve acesso ao processo, e nesse momento, mostro documentação cedida pela defensoria comprovante seu conhecimento dos tramites do processo, inclusivo com pedido dos seus advogados para a defensoria não ter acesso ao inventário do seu pai. Diante dessas informações, Renê afirma não existir nenhum processo em andamento e tenta confundir os calons presentes dizendo que minha atuação junto a comunidade era visando uma futura candidatura a vereador, e se dependesse de mim nada mudaria no acampamento. Logicamente, desminto sua fala e chama-o de mentiroso dizendo que não impediria os ciganos de assinarem o contrato caso quisessem, porém queria deixar nítido para a comunidade as contradições em seu posicionamento. Começa uma discussão mais intensa entre mim e o Renê Santana e os Calons ficam em volta observando, e apesar olharem com espanto e felicidade alguém enfrentando o “homi” (homem), apaziguam o bate boca me retirando de perto de Renê Santana. Gilberto me chama no canto, e diz: “Tem como não está vendo, o homi é poderoso demais, não deixa ninguém falar. Aumenta voz, e não temos peito para contradizer ele”. Coincidentemente, a professora Roseli passava perto do acampamento e se inteira do acontecido. Primeiramente, ela também tenta conversar com Renê sobre a situação da área, porém, depois dele negar qualquer conhecimento do processo como havia feito comigo, Roseli começa a acusar Renê de manipulador e desonesto, porém ele continuava a ordenar a limpeza de parte do terreno sem se incomodar. Tentando uma alternativa para impedir o avanço do trator sobre aquela parcela do acampamento, Roseli entra em contato com a defensora Ana Cláudia e relata a presença e modificação do Renê no território, e a sugestão da defensora era o contato com a polícia militar para o registro da sua presença através de boletim de ocorrência. Recomendo não chamar a polícia militar, porque aquilo começaria um conflito com o Renê e essa não era a vontade da comunidade, porém a defensora me responde que aquele já era um conflito intransponível e o efetivo já estava a caminho da comunidade. Constrangido, fui avisar que a Polícia Militar estava a caminho do acampamento, e que não tinha envolvimento da requisição do efetivo policial na área. Alguns calons repetiam: “Polícia não, os ciganos não se dão com polícia, Eles não gostam dos ciganos”. Ao tomar conhecimento da chegada de uma viatura no local, Rene Santana não se despede de ninguém e vai embora de maneira discreta. A defensora me manada a recomendação expedida à policia militar instruindo-a não deixar ninguém fazer modificações no território cigano devido ao processo de regularização da área. Quando finalmente a viatura chega, Gilberto me pede para 96 conversar com a polícia, receoso de poder acontecer algum mal entendido. Explico calmamente aos dois policiais que foram até o local todo o contexto de regularização enfrentada pelo grupo e mostro o documento expedido pela defensoria, e um deles me diz: “Isso não vale nada, cadê a assinatura do juiz”. Explico com calma que havia um processo de regularização fundiária e aquele documento tinha validade legal de orientar a conduta da PM em relação às modificações no território. Os dois policiais afirmavam que a área era do Rene Santana, e por isso, o resultado do processo seria favorável para ele. Nesse momento a defensora me liga para atualizar as informações sobre o ocorrido e diante da recusa dos cabos em acatar a recomendação pede para conversar com um dos dois, porém ambos se negam a conversar com a defensoria, e ela somente pede para anotar o nome e o batalhão dos dois. Enquanto isso, o funcionário do Renê que condizia o trator pergunta se poderia continuar o trabalho, ou se haveria algum problema. Um dos cabos pede para o funcionário ligar para o Renê Santana e passar o telefone para ele, e após 15 minutos de conversa. O cabo libera a retomada da atividade pelo tratorista. Indago ao oficial porque ele poderia falar com Telê Santana ao telefone e mesmo não poderia ser feito com a defensora pública, a sua justificativa era que o Renê Santana era conhecido de todo mundo do bairro, e era de amplo conhecimento que os terrenos seriam deles. Por conta da minha pergunta, o soldado me leva para delegacia para fazer o boletim de ocorrência, e a todo o momento fazia questão de reforçar a titularidade de Renê da área. Volto ao acampamento somente no dia 28/06/2017, e Gilberto me avisa que outros ciganos já tinham assinado o contrato no escritório do Renê Santana no dia anterior, e frisa tentando me consolar: “Fiquei do seu lado, sabe? Confiei que ia dar certo. A gente sabe que você tentou, mas é assim mesmo. Nossa única opção era essa, por mim a gente não assinava, mas o Vieira é o mais velho e decidiu que ia ser melhor ficar com o homem para não dar confusão. Não posso ficar contra o Vieira. Se ele decidiu. Acabou. Estou com ele”. Aproveitando minha presença ali, pede-me para eu olhar se a documentação estava toda correta, digo que aparentemente sim, e que o problema não era no conteúdo, mas no ato em sim, e uso a seguinte metáfora: “Gilberto, seria como se você fizesse uma catira envolvendo um cavalo. A catira está certa. Os dois acordaram. Está tudo bem, mas você estão tomando manta. Levando um cavalo cego”. E Gilberto animado comenta minha fala: “Isso, quero saber se a catira está certa com homem. Se está tudo no conforme, está bom para gente. Toma a manta a gente sabe que tomou, mas não podemos fazer nada. Pelo menos a gente arruma um lugarzinho certo para ficar”. 97 Aproveitando aquela conversa, proponho algo mais informal como um memorial sobre a comunidade com algumas informações básica que poderiam valer como proteção legal para comunidade caso o acordo com Renê Santana trouxesse alguma complicação inesperada. Eles topam uma reunião com o NUQ82 para explicar melhor sobre as possibilidades de fazer o memorial e os impactos sobre a comunidade. Segunda-feira (01/07) marcamos uma reunião, e eles falam dos abusos dos policias no acampamento, inclusive ressaltando que eles haviam ficado do lado do Renê Santana da última vez, e traz um depoimento que Renê haveria dito que se a gente (NUQ, defensoria, Núcleo Capão, ect.) estavam articulando para ajudar a turma com auxílio jurídico, ele iria aparece com o dobro de advogados no acampamento. Em primeiro momento, Gilberto diz que Vieira ainda estava cismado comigo, por conta, do ocorrido com a polícia, e o medo deles eram entrar em confronto com brasileiro. Segundo Gilberto, foram anos para criar uma boa fama dos ciganos dentro do bairro, e por isso, o medo dele era perder esse nome por conta de desentendimento com o Renê, e consequentemente, por conta da sua força, com outras pessoas na região. Quando estávamos saindo novamente derrotados do campo, o Gilberto chama a gente e fala que os ciganos lá eram muitos desunidos, e que na verdade a família do Vieira era única resiste ao memorial e que ele tentaria convencê-los. Depois de alguns dias foi aceito a feitura do memorial devido a minha promessa de não entrar em confronto direto com o pretenso proprietário. A última situação vivenciada foi quando finalizava a redação da dissertação, o próprio Vieira me liga para relatar que o acordo não estava sendo respeitado por Renê, e que por isso, queria minha ajuda para ver o que poderia ser feito. Novamente proponho retomar a regularização, porque com a mudança na PBH, haveria uma chance de conseguir as respostas demandas anteriormente, e da mesma forma, Vieira concorda e somente me pede para fazer tudo na “surdina”, ou seja, sem manter nenhum tipo de confronto direto com o proprietário. E até onde consegui acompanhar antes da finalização da dissertação, a Cepir havia acatado o novo pedido da defensoria para informe da titularidade da área. Por fim, visei com esse capítulo, apesar do seu teor mais etnográfico e discricionário de uma série de atividades ocorridas em sucessão, elucidar a singularidade encontrado no caso de tentativa de regularização do Céu Azul através da minha atuação junto ao grupo. Nas primeiras aproximações e propostas de pesquisa não tive a compreensão da natureza das relações estabelecidas com os interlocutores de pesquisa calon, principalmente devido a minha preocupação excessiva na necessidade dos acordos serem baseados primeiramente, e 82 Dessa vez, estavam presentes Juliana Campos e Helena Dolabela. 98 quase exclusivamente, em algum tipo de contrapartida83 vinda da minha parte, e por isso, a premissa de déficit a priori norteava um possível pacto na formação de qualquer tipo de arranjo relacional. A minha crença em propiciar efetivamente um espaço de interlocução ao prestar alguns serviços à comunidade logo se revelou insuficiente, porque minha convicção sobre a suposta atuação antropológica menos hierarquizada, na verdade, figurava enquanto um pressuposto84 teórico sem ressonância com as maneiras específicas pelas quais tais interlocutores me inseriram em determinados momentos dentro da sua socialidade mediante a percepção das conjunturas propícias ou não das minhas atuações. A situação de impasse protagonizada, para além dos desconfortos presenciados, não inviabilizou a construção de vínculos com a turma, e ademais, foram justamente as equivocações presenciadas na tentativa de fomentar um espaço de maior simetria que propiciaram a construção do corpo substancial dos dados etnográficos apresentados nesta dissertação. Se eu não estivesse disposto a uma experiência de dissonância e desabituação frente à outra realidade, assim como coloca Onfray (2010) sobre a experiência de ser estrangeiro85, pontuando que essa inadequação não deve se subsumir tão somente as anedotas ou peripécias da etnografia, as costumeiras “saias justas”, “jogos de cintura” e “soluções criativas” encontradas nos diversos constrangimentos sentidos no trabalho de campo (Bonetti; Fleischer, 2007, p.32), mas efetivamente um processo contínuo de transformação, mais ou menos latentes em determinadas situações, das percepções e expectativas sobre a própria pesquisa, não presenciaria determinadas conjunturas e reações das pessoas calon que são descritos nesse texto. A riqueza de dados não derivou da insistência em tentar repactuar nas mesmas premissas dantes estabelecidas qualquer tipo continuidade aproximativa, mas, ao contrário, surgiu de uma negociação de sentidos advinda de um exercício de rever meus posicionamentos e os termos estabelecidos de um possível novo acordo, evitando maiores equívocos durante minha assistência à comunidade. A necessidade premente de repensar e ressituar dentro de uma 83 Não tive a parcimônia em questionar sobre a própria natureza e as maneiras de efetuar tais compensações durante as realizações das atividades de assessoria, somente após diversos contrassensos construiu -se um panorama mais inequívoco das minhas precipitações. 84 Posicionava-me de forma favorável à uma disposição ao engajamento advindo da prática antropológica, e efetivamente as iniciativas empenhadas na sua realização, porém no intercurso da pesquisa pude aprimorar minha percepção sobre os pressupos tos de uma pesquisa engajada, e os cuidados no tratamento dessa posição em consonância com o entendimento nativo. 85 A experiência de ser estrangeiro se aproxima a abdicação de um lugar de segurança garantido pela estabilidade de um dado conjunto de vivências, traduzindo em uma inclinação aos possíveis equívocos, aproximando -se de um exercício de desterritorialização dos parâmetros dados a priori. Deslocar tal reflexão para o âmbito da prática etnográfica guarda semelhança com ato de se estranhar e s e desnaturalizar no processo de construir uma relação com os sujeitos de pesquisa (Röwer; Cunha, 2014). 99 conjuntura mutável, demonstra as possíveis conexões estabelecidas dentro de um campo relacional mutável, assim como aponta Fazito sobre o imperativo de rever as ferramentas explicativas escolhidas para analisar as realidades das comunidades ciganas: “os ciganos há muito tempo colocam um desafio às teorias sociais tradicionais, exigindo de nós um esforço criativo no sentido de instituir uma nova forma de compreensão de certos fenômenos sociais que não encontram mais resposta satisfatória nas velhas fórmulas” (Fazito, 2000, p.84). Dentre os casos de confrontações e contrastes de entendimentos díspares ocorridos em diferentes ambientes ao longo da pesquisa aquele com maior repercussão que abarcou de forma constante a turma do Céu Azul foi o episódio envolvendo os desentendimentos acerca da conceitualização do espaço social habitado por esses calons dentro das diligências iniciais visando a abertura de um processo de regularização fundiária da área tradicionalmente ocupada pelo grupo. A assessoria voluntária dentro dessa ação foi o primeiro artifício viável encontrado para prestar uma contrapartida ao exercício antropológico realizado dentro do acampamento, e obtive a informação da abertura e instauração desse processo logo no início da etnografia, e por isso, precocemente adentrei-me dentro de um contexto congregando uma gama de pessoas calon e brasileiras numa série de tensões e negociações delicadas frente à condução das medidas jurídicas previstas de um lado, e do outro as atitudes de engajamento dos meus interlocutores. Durante o transcorrer dos embates e desdobramentos presentes nessa trama, por um lado, a discussão perpassou pelo prisma da disputa/conflito fundiária e territorialidade86 no entendimento de alguns brasileiros, e consequentemente, uma miríade de ações foram embasadas nessa fundamentação, por outro lado, via-se a real gestão daquele espaço social por meio de atividades e mecanismos de recriação de vínculos, principalmente através de redes de trocas e relação com a vizinhança (Gay y Blasco, 1999), sem nenhuma menção dos interlocutores calons a uma “luta pelo território”, “garantia de direitos”, “conquista da cidadania”, entre outros léxicos êmicos utilizados por brasileiros partícipes dos momentos de contato entre dois pressupostos distintos de participação e mobilização. 86 Aprofundo-me posteriormente na discussão do uso do conceito de territorialidade na classificação dos vínculos estabelecidos pela turma do Céu Azul com a área compreendida pelo acampamento e adjacências. Apresentarei com mais vagar tal temática devido à delicadeza que uma argumentação inclinada não territorialidade cigana pode acarretar ou aparentar em circuitos outros em que o texto pode ser usado. Ao tratar a relação desse grupo com a área ocupada por meio de outras ferramentas conceituais que não aquela da territorialidade, substancialmente não nego a importância da antiguidade da ocupação a área para construção de vínculos, porém apenas aponto a necessidade de delinear mais precisamente as maneiras particulares pelas quais se realiza tal vinculação com a região. 100 Diante dos desentendimentos e dissonâncias enfrentados ao acompanhar87 e participar da referida ação, acabei por deslocar meu enfoque de uma aproximação calon frente à política para uma política calon frente à aproximação. Essa nova perspectiva me permitiu perceber que as estratégias de composição/decomposição e aproximação/distanciamento dos meus interlocutores calon para com alguns brasileiros (agentes públicos ou não) dependiam da atuação destes – primeiramente, não enquanto agentes do Estado88 envolvidos em diferentes instâncias da administração pública, mas indistintamente como brasileiros; e, posteriormente, segundo algumas características possivelmente favoráveis à resolução de situações específicas (envolvendo, por exemplo, o espaço habitado, a atualização da documentação, melhorias da infraestrutura, denúncias de resíduos descartados irregularmente no acampamento, dentre outros). Logo surgiu uma teia de relações entre pessoas composta conjunturalmente, com características mutáveis, sensível às expectativas criadas, esperadas, e antevistas por diferentes membros da turma calon. Se algumas relações despontavam especificamente no intercurso daqueles acontecimentos envolvendo o litígio, outras de longa data emergiam e se fortaleciam, mostrando um complexo cenário de re-ativação de compromissos históricos, por exemplo, com o proclamado proprietário do terreno. Concomitantemente havia a experimentação da composição com novos brasileiros visando a conquista de infraestururas básica envolvendo as ruas circunscritas ao acampamento, além da averiguação das informações relativas aos terrenos compreendidos pela área por eles habitada. Dessa forma, fez- se necessário observar como efetivamente ocorrem as interações diárias com brasileiros residentes nas imediações. O desenvolvimento da ação envolvendo o território cigano mobilizou diferentes agentes brasileiros circunscritos não somente na problemática89 referente à área ocupada pelo grupo, mas congregou uma série de agendas secundárias agregadas ao passo que progredia esse 87 Minha assessória se deu de maneirar informal acompanhando as tratativas e os procedimentos envolvendo a ação de regularização fundiária citada. Não tive qualquer responsabilidade judicial dentro do processo, como por exemplo, uma assessoria antropológica demandada através de um pedido específico de esclarecimento de informações técnicas e qualitativas do grupo. 88 Apesar de uma discussão ampla da Antropologia do Estado sobre funcionamento efetivo das instâncias administrativas e a problematização das próprias classificações redutores daquilo denominado como Estado, e dada à falta de conhecimento da área, apenas friso os múltiplos interesses individuais, o recursos, informações e sentimentos ambíguos presenciado pela atuação de diferentes sujeitos vinculados a administração pública. 89 Cabe pontuar a não confluência nas percepções referente à gravidade e natureza dos fatos ocorridos du rante a realização e perpetuação do processo de regularização fundiária supracitado, isto porque, a forma pela qual pontuei e conduzi os processos demoram um tempo até se adaptarem ou sofrem transformações capazes de revelar as nuances presentes nas tomadas de decisões, assim como concepções sobre política, dos diferentes membros da turma do Céu Azul ensejados nessa caso. 101 litígio nos diversos locais de desdobramentos da matéria pontuada. Por vezes, algumas dessas demandas subsequentes expostas por brasileiros se mostraram dissonantes com os interesses expressos pela comunidade, enquanto aquelas elencadas como importantes pelo grupo não receberam atenção do poder público e dos brasileiros. As reações estratégicas de posicionamento, aliança e evitação frente aos pleitos colocados revelaram entendimentos díspares sobre a imprescindibilidade de alguns serviços ofertados, além das próprias tratativas e resoluções efetuadas por esses interlocutores no tocante as demandas pontuadas por outrem, e suas iniciativas em possibilitar conjunturas favoráveis para entrada e impedimento de determinados agentes. A conjuntura formada entorno das controvérsias a partir das tratativas para a abertura do processo de regularização fundiária instaladas evidenciaram um tipo de convívio particular com os não-ciganos, especificamente as relações, construídas a partir de uma miríade de categorizações envolvendo suas habilidades, status e influências dentro de determinas mediações e articulações entre nichos comerciais, esferas governamentais e de atuação profissional, acessadas dependendo da particularidade da conjuntura apresentada nas interações. O cenário de incerteza a respeito da legalidade da documentação apresentada pelo proprietário da área, conjuntamente com uma sensação de não confiabilidade instaurada frente as recorrentes manobras e esquivas do pretenso proprietário do terreno em comparecer legalmente à justiça para um acordo entre as partes envolvidas, e uma confiança de um ambiente pacífico de resolução das demandas sem o enfrentamento direto ao requerente da área, possibilitou uma aceitação parcial, momentânea e frágil da comunidade ao prosseguimento da disputa fundiária instaurada. Meus interlocutores calon não pautavam as tratativas em torno da regularização fundiária através da discussão de possíveis competências das instâncias administrativas ou mesmo sobre o prisma da luta pelas garantias de direitos reservado às comunidades tradicionais, mas as viam como perpassadas por diversos fatores como interesses, suborno, correlação de forças e prestígio entre lideranças/famílias calon e determinados brasileiros envolvidos em espaços decisórios e de poder. 102 3. A pesquisa através dos seus protagonistas: puxando as linhas do comum. 3.1 As Calins Baiana, Patrícia e Lorena: entre ciganos e brasileiros. Minha aproximação às diversas pessoas moradoras ou pertencentes temporariamente ao acampamento, localizado no Céu Azul, esteve fortemente marcada, por uma espécie de resistência aberta à minha presença enquanto pesquisador, como já vivenciado em casos envolvendo outras pesquisas com comunidades ciganas (FERRARI, 2010; FOTTA, 2006; OKELY, 1983). E por isso foi permeada por diferentes momentos de desconfortos frente à possibilidade de instauração de um regime regular de visitas de algumas atividades cotidianas nos diferentes espaços frequentados e coabitados, coletiva ou individualmente, por membros dessa turma. Evidentemente, os embaraços testemunhados durante a prática etnográfica são uma condição sine qua non de uma relação de alteridade estabelecida entre pesquisador e interlocutores de pesquisa durante o convívio prolongado do trabalho de campo. Ainda assim, cabe acentuar a singularidade de cada exercício etnográfico mediante a conjuntura enfrentada localmente, tanto no âmbito da proposta em campo (sua execução e duração pretendidas), como na escolha das estratégias metodológicas para conseguir efetivá-lo. Da qualquer forma, os vínculos construídos são constantemente refeitos mediante certas preferências/especificidades encontradas nas relações interpessoais mantidas. Por isso, as conexões firmadas variam de intensidade dependendo de cada membro, obrigando-nos assim, a repensar continuamente os efeitos e consequências dos lugares ocupados numa miríade de possíveis interlocuções. Julgo imprescindível ao nosso exercício a consideração feita por Geertz acerca da dificuldade se posicionar dentro dos diferentes cenários de realização das etnografias. Segundo ele: “Situar-nos, um negócio enervante que só é bem-sucedido parcialmente, eis no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal” (GEERTZ, 1989, p.10). No meu caso, já de forma inicial, fez-se presente, por parte de alguns interlocutores, um comportamento evasivo em relação aos imperativos de investigação do método etnográfico. Por isso, não consegui, à principio, contribuições significativas para subsidiar a construção dos primeiros mapas, esquemas de parentesco, e rascunhos básicos sobre a turma do Céu Azul. Principalmente na fase mais inicial da pesquisa, essas posturas dificultaram a construção de uma abertura mais profícua às minhas investidas contínuas e no 103 estabelecimento de diálogos menos superficiais. Mas apesar desse cenário de condução laboriosa a uma maior acessibilidade com os interlocutores calon, o convívio com a turma transcorria sem maiores animosidades, por isso, não interpretei esse incômodo inicial pela via de algum desgosto voltado a qualquer aspecto pessoal (e até mesmo julguei bem improvável essa hipótese). Também, não vivenciei nenhum caso explícito de conflito insolúvel que acarretasse alguma ofensa que pudesse inviabilizar minha entrada no pretendido lócus de investigação. Como de costume, ocorreram inadequações e gafes pontuais na tentativa de aproximar-me de um comportamento considerado adequado dentro do acampamento, e elas se revelaram em suma mais profícuas do que danosas ao prosseguimento das investigações e ao crescimento de minha confiabilidade com o grupo. Depois de sucessivas visitas, passei a perceber outras movimentações de natureza semelhante àquela realizada por mim, por exemplo, incursões naquele local com o intuito de recolher documentação básica, atualizações de cadastro e mapeamentos voltados à facilitação de atendimento médico e de vigilância sanitária. Diante disso, acabei por associar o mal estar momentâneo da minha presença a uma suspeita mais generalizada em relação a presença de garrons/garrins incitando, buscando, e inquirindo-lhes ao fornecimento de diversas espécies de informações e dados referentes ao acampamento, muitas vezes, sem as explicações razoáveis das motivações desses requerimentos. Dentro desse universo de brasileiros de que tomei conhecimento, figuravam estudantes de universidades, funcionários da prefeitura de Belo Horizonte, servidores do governo do Estado de Minas Gerais, agentes públicos do legislativo e do judiciário, e membros de ONGs que se aventuravam em visitas, nem sempre compromissadas, àqueles Calons. Saliento, para evitar reforçar possíveis estereótipos de isolamento vivenciado pela comunidade, que o comportamento de desconfiança visto não era um estado contínuo e invariável a quaisquer garrins/garrons como um pretenso mecanismo de evitação de contatos. Isto se fazia presente, especificamente, em relação a garrins/garrons desconhecidos que chegavam sem aviso prévio nas tendas/casas buscando informações referentes à documentação, ou mesmo, procurando, sem muito rigor, alguns subsídios e histórias referentes aos “ciganos”90. De certa maneira, pude contornar a situação de completo garron desconhecido devido à minha pesquisa anterior com a turma do São Gabriel. Ilustro, porém como, antes, demonstrou-se essa vigilância e preocupação através do alerta enfático feito a 90 O uso do termo “ciganos”, com aspas, faz referência a uma visão generalizante e menos informadas em relação à multiplicidade de grupos ciganos existentes, assim como às trajetórias históricas diferentes. 104 mim pela calin Patrícia, sobre o cuidado ao receber esse perfil de visitante desejoso em indagar a respeito de minúcias da “vida cigana”: Fragmentos etnográficos 7: “Garrons intrometidos, não conheço”!91. Novamente, chego desacompanhado ao bairro Céu Azul, guardando enquanto companhia apenas as manobras truncadas da caçamba despejando à revelia resíduos de todas as naturezas nas imediações do Bota Fora (URPV- Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes). Não há nenhuma novidade no descarte ilegal de lixo na região e na falta de registro dos veículos pesados recorrentemente depositando material fora da área permitida. Naquele dia, presencio um desses caminhões quase derrubando a deteriorada placa de advertência: ‘Jogar lixo em vias públicas causa inundação nos rios’. De um lado do acampamento, o ‘córrego dos navegantes’ passa costeando toda sua extensão, ao passo que na outra extremidade, veem-se os portões do Bota Fora cerrados e as carroças encostadas em sua grade aguardando para depositar diversos tipos de materiais. Enquanto isso, as criações de Bebeca, galinhas e cavalos - Alazão e Formosa-, solta aos arredores da sua residência acabam subindo para vasculharem entre as sacolas algumas verduras frescas dispensadas pelo sacolão ABC (Sacolão ABasteCer). Passo ligeiro desviando dos detritos depositados e desço o declive para entrar na Rua Novecentos e Um, facilmente identificável pela ausência de infraestrutura básica, como luz elétrica, rede de esgoto, água encanada e asfalto. Espio pela fresta do portão entreaberto da casa de Gilberto procurando alguém que pudesse me recepcionar, e me deparo com sua filha Lorena que normalmente naquele horário estaria em aula, na Escola Municipal Adauto Lúcio Cardoso. Faço os devidos cumprimentos á ela e sua mãe, Patrícia, e logo, a indago sobre os motivos da sua ausência no ambiente escolar: 91 Optei, enquanto estratégia textual, por apresentar cada relato de campo a partir d e trechos nomeados como “Fragmentos etnográficos”. Esse artifício veio pela possibilidade de potencializar algumas descrições mais detalhadas dos locais em que as cenas se sucedem, além de investir em alguns aspectos mais sensoriais pertencentes aos casos relatados. Possibilita, ainda, um trânsito maior entre relatos que posteriormente serão apontados em outros rendimentos analíticos, facilitando a retomada do leitor aos mesmos trechos. 105 “Hoje não tem aula não, Lorena? Que vida fácil, hein?’. E visivelmente satisfeita com a folga, ela externaliza sua felicidade em pequenos pulos, respondendo-me de maneira descontraída: ‘Tem não. Hoje está parada a escola, mas gosto muito de estudar. Quero ser professora quando eu crescer”. Normalmente, ao tocar na temática da satisfação dos calons, matriculados na escola, com seus processos de escolarização, recebia respostas vagas, rápidas e desinteressadas envolvendo a vivencia na escola. Contrariamente, Lorena tinha muito entusiasmo em me mostrar seus cadernos com seus trabalhos, contar as atividades realizadas durante o horário letivo, comentar sobre os professores, e principalmente mostrar suas habilidades ao teclado eletrônico que aprenderá através de um projeto de musicalização promovida pela sua escola. Querendo saber mais sobre sua reação com o ambiente escolar, e em tom de brincadeira, aproveitando sua descontração, pergunto: “Então aposto que você já fez todos os deveres de casa, certo? Vou passar os meus para você fazer então. Não estou mais aguentando”. E quase sem nenhum esforço, Lorena faz sua réplica, lembrando-me o quanto realmente ela era uma calin diferente: “Não me venha com essa. Seu dever você está fazendo agora”. Lorena, apesar de possuir 11 anos de idade, muitas vezes conversava com facilidade com os adultos, e muitas vezes, com ironia demonstrava uma perspicácia em transitar entre os conhecimentos daqueles ditos letrados. Certa vez, perguntei de maneira corriqueira sobre a opinião de Lorena acerca da origem cigana e ela respondeu de maneira resoluta: “Do Egito! A gente veio do Egito. Você não está vendo que sou a Cleópatra (enquanto me respondia, virava o pescoço e colocava uma mão para cima em uma posição para simular ‘um egípcio da época dos faraós’)?”. Posteriormente, já acostumada com minhas idas frequentes ao acampamento, além identificar uma curiosidade a respeito dos aspectos da vida cigana, quando conversava com Gilberto, seu pai em relação à chegada do grupo na região, Lorena, percebendo o teor da conversa, entrega-me um papel escrito à mão afirmando ser um dos 106 seus trabalhos de escola e que poderia me ajudar. O teor dos escrito se referia a uma descrição pedida por sua professora Nilce, uma professora muito elogiada por Lorena, sobre a descrição da ‘cultura’ cigana. Na folha que me foi entregue estava escrito por Lorena o seguinte: “Os ciganos antigos moravam em tendas ou barracas, mudavam de cidade de mês em mês, pois não conseguiam ficar parados em um lugar só. Agora, nos tempos de hoje, os ciganos pararam de mudar. Eles residem em casas. O trabalho dos ciganos são comprar cavalos e revender e trabalhar de camelô para sustentar a família. As festas de casamentos são variadas 3 a 4 dias, com danças, comidas e etc. As vestimentas são vestidos longos com fitas. A maioria dos ciganos gostam de cabelos longos. Alguns ciganos não estudam e outros estudam. A maioria são analfabetos, pois não tinham tempo de estudar, pois mudavam muito”. Costumeiramente, Gilberto e Patrícia diziam prezar pela liberdade de Lorena ressaltando a diferença entre a criação dela e a de outras calin da mesma idade quanto, à oportunidade na escolha de quando se casar. O calon Gilberto era bem veemente quando relatava que sua filha não iria se casar tão nova, porque, dizia ele, as coisas estavam diferentes. Em certa oportunidade, suspeitando da veracidade dessa afirmação, indaguei Gilberto sobre a possível dificuldade de uma noiva com a idade avançada arrumar um casamento. Ele discordando de minha posição, apontou que ela se poderia casar com alguém da sua idade e que, na verdade, o que importava era a moça ter vergonha, ser comportada, obedecer ao marido e de preferência ser “virgizinha” (virgem). Além disso, Gilberto afirmava não deixar sua filha se casar com qualquer pretendente, porque ele iria escolher um marido trabalhador, “sabedor de catira”, “respeitador dos pais”, “bom marido”, “não brigador” e “que sabe se comportar nas festas”. Era justamente nelas que Gilberto afirmara que se conhecia os pretendentes, vigiava o moço para ver ser era “rapaz direito”. E depois e ainda ficava “de olho” para ver se não batia na esposa e “andava com as próprias pernas”, ou seja, se conseguia arrumar seus próprios clientes para a catira sem ficar 107 dependendo da ajuda dos outros calons. Principalmente quando estava recém casado que se observavam esse requisitos, segundo Gilberto. Após aquela conversa com Lorena na varanda da sua casa, sua mãe, Patrícia, que antes apenas observara de ‘canto de olho’ a cena, aproxima-se de forma risonha, e aproveitando o ensejo desse confuso ‘dever de casa’ do pesquisador, conta-me suas ressalvas sobre alguns brasileiros demasiadamente curiosos, e me relatando diz: “Essa história que estou te contando aconteceu mesmo. Uma vez apareceu do nada, não sei da onde, e nem quem era. Um jornalista desses de TV... lá no bairro São Paulo. O povo lá recebeu os garrons direitinho. Até chamou na tenda e ofereceu café passado na hora. Pessoal teve a paciência de responder tudinho ... falou tudo e mais um pouco da vida deles lá. Como os danados pagaram? Eles inventaram que uma velha, coitada dela estava mal mesmo... estava passando fome. Não tinha nada para comer e estava largada lá. Você acredita? Você acha que a gente ia deixar mãe, pai nosso jogado assim? Vou ter falar verdade, inventaram isso para falar mal dos ciganos. A gente não gosta de responder os outros não, porque já fofocam demais que cigano é aquilo, cigano é isso. Imagina se a gente dana de falar pelos cotovelos, ai mesmo que vão cair matando em cima. Outro dia mesmo veio uma moça querendo pegar um monte de documento da Lorena, e não entreguei mesmo não. Não entrego! Não conheço! Não sei o que ela ia fazer com papelada toda que estava pedindo. Vai saber se não vai cortar as poucas coisas que a gente já tem. Temos medo de alguém querendo prejudicar nós por fora. Está entendendo? Por isso ficamos sempre de olho. Às vezes passam umas meninas aí do posto (de saúde) e a gente responde rapidim, e só. Não ficamos dando muita trela para conversa mole de alguns intrometidos”. Ouvia as palavras de Patrícia com certo constrangimento, possuindo convicção que algumas delas serviam para me orientar. 108 A imagem abaixo, imagem número 15, é um registro fotográfico da parte externa do URPV, e da Rua Luiz Cantagalli, principal via do acampamento. Algumas árvores à esquerda compõem a mata ciliar do córrego Capão. A imagem número 16, é um croqui do acampamento com uma sinalização do URPV com uma seta vermelha. No esquema, as habitações em verde são casas de alvenaria, e as em azul são tendas. 14 15 109 Inicialmente, julguei ser uma impressão precipitada da minha parte ver a calin Patrícia enquanto alguém mais restritiva ao exercício analítico de qualquer espécie empenhado na busca de informações menos superficiais sobre o grupo. Fundamentava minha opinião a partir da maneira e contexto nos quais eram feitas referências aos “garrons intrometidos”, sempre no intuito de ressalvar o resguardo às averiguações de toda ordem realizadas naquele locus, inclusive a empreitada antropológica (PEIRANO, 1995) pretendida por mim. Além das histórias contadas a respeito dos garrons/garrins com intuitos lesivos ao grupo, expostas como certo aviso ou mesmo à espera de maior compromisso com a confiabilidade já cedida ao me deixarem iniciar minhas incursões mais frequentes, a calin Patrícia, constantemente, policiava veemente seu esposo, Gilberto, e seu filho, Felipe, durante as dinâmicas do trabalho de campo, principalmente, quando davam depoimentos mais longos na varanda casa de Gilberto. Como construí com ambos uma relação amistosa e também afetiva, as entrevistas eram permeadas por um clima descontraído, e por vezes suas respostas tocavam em pontos delicados. Quando isso acontecia, Patrícia sempre de prontidão sinalizava a impertinência dos comentários da seguinte forma: “Você não vai usar isso, né?”; “Não foi bem assim, não”; “Isso não tem importância”; “Para que é isso mesmo?”; “Coloca essa parte não”; “Está querendo saber demais”. Quando ainda não gozava de maior confiabilidade do grupo, eu permanecia em uma zona ainda indefinida entre um “garron desconhecido” e um “garron estudado” e, recorrentemente a visão que sobrepunha às relações era a de um imaginário construído de mim enquanto um “doutor”92. Por isso muitas vezes minha presença trazia certa curiosidade, como também, por ser uma pessoa “estudada93” criava certas desconfianças e expectativas. A calin Patrícia rotineiramente afirmava sua posição a outras pessoas, propositalmente na minha frente, enquanto uma pessoa “brava” e “desconfiada” em relação ao excesso de interesse sobre os ciganos, e descrevia da seguinte forma seu próprio comportamento: “Pessoal nunca ligou para gente. Quando vem, desconfio mesmo. Sou brava, estou sempre de olho em quem chega aqui em casa”. Suas afirmações soavam como uma espécie de aviso sobre manter meus cuidados nos momentos de aproximação e sobre “chateação” provocadas pelas tentativas de promover algum diálogo mais profícuo. A posição vigilante de Patrícia também era reforçada por outros 92 Quando meus interlocutores diziam “doutor”, faziam menção aos garrons vistos como autoridades, dentre eles, políticos, advogados, funcionários do alto escalão judiciário e também pessoas com alto poder decisório dentro do executivo. Também ouvi referência como “os homi” (os homens), termo também utilizado para identificar a polícia. 93 O termo “pessoa estuda” englobava não somente aqueles garrons considerados com instrução escolar, mas também com cargo alcançado mediante o investimento nos estudos. Segundo meus interlocutores, seriam aquelas pessoas que avançam na vida por conta da escolarização. 110 calons mais próximos a ela. Seu esposo Gilberto, por exemplo, sempre comentava de forma risonha e com tom jocoso quando fazia silêncio por orientação de Patrícia: “A mulher é braba mesmo. Ela falou acabou. Não posso passar por cima da ordem dela. Se não já viu né?”. O cenário de incerteza em relação à minha presença induzia Patrícia a reafirmar continuamente esse comportamento bravo, porém seu sentimento estava mais próximo de uma vigilância frente aos meus pequenos avanços e maior intimidade com a turma do que de uma posição rigorosa. Acabei percebendo que essa característica de “brabeza” (braveza) era utilizada retoricamente como álibi para o estado permanente de suspeita para com os garrons intrometidos. Por outro lado, o comportamento considerado como “brabeza” era associado a uma qualidade herdada dos “calons baianos”. Assim, alguns comportamentos pontuais de Patrícia eram justificados pelo “sangue baiano” herdado principalmente por parte de sua mãe, conhecida como Baiana. Igualmente moradora no acampamento do bairro Céu Azul, Baiana era também uma calin importante na gerência, cuidado, atenção a vários comportamentos considerados essenciais dentro do acampamento. Ao perceber a menção a essa determinada conduta pelo viés da consanguinidade, a marca da “brabeza” de Patrícia logo saiu do âmbito restrito de um posicionamento frente a presenças de garrons94, e figurou enquanto um pilar central do comportamento pertencente ao “Cigano Baiano”. E justamente, o gênio forte da Baiana, e das suas duas filhas, Lucinha e Patrícia, eram creditados a esse temperamento do “Cigano Baiano”, e por isso, os comentários sobre essa fama permeavam as atitudes de Baiana que após reforçar um comportamento impetuoso, logo fazia menção a intensidade vivida na Bahia. Quando indaguei essa calin da sua “brabeza”, ela me respondeu da seguinte forma: “Você me acha ‘braba’? Você tinha que ver como era antigamente. Como pessoal barganhava, fazia rolo, ia para as feiras. Como não deixavam nada barato. Por qualquer coisa já era motivo para dar um sossega leão. Nas festas então, era uaê danado. Duravam muito mais. Festa antes era de emendar um dia no outro sem parar. Não se deixe enganar menino, o (cigano95) baiano é calmo toda vida, mas mexe com ele para você ver”. A característica mais impetuosa aludida ao “cigano baiano” foi descrita de maneira hábil pela calin mais velha da turma ao colocar a devida luz sobre a complexidade do temperamento dual encerrado nesse agrupamento importante para dinâmica comportamental encontrada no acampamento. E partindo dessa descrição mais realista das nuanças guardadas 94 Muitas vezes esses alertas eram expostos no intuito de cobrar uma responsabilidade da minha própria participação no grupo, principalmente vista através da franqueza nas ressalvas de Patrícia. 95 Ressalva minha sobre a delimitação recair sobre os ciganos Baianos, e não os brasileiros Baianos. 111 entre impetuosidade e passividade do “cigano baiano’, é possível que a maneira que descrevi Baiana e Patrícia traga a impressão errônea de serem generalizadamente vistas como pessoas “estouradas” e de “pavio de curto”; na verdade, essas eram características associadas a outros membros da turma, enquanto as duas eram consideradas “mansas”, “de fácil lida” ou mesmo colocadas como “um doce de pessoa” por outros membros do grupo. Pode até soar contraditório remeter-lhes uma docilidade se anteriormente coloquei-as como possuidoras de uma personalidade mais vigorosa, porém, os momentos de flagrante intensidade se davam em conjunturas pontuais onde externalizavam propositalmente e de maneira performativa o comportamento de “brabeza” vinculado ao ímpeto do “cigano baiano”. Um dos exemplos clarificadores da intrincada manifestação desse temperamento mais enérgico pôde ser constatado através da relação entre Baiana, Patrícia e Lorena, três gerações diferentes de calins que mantinham uma relação estreita devido ao laço parental entre elas. Como já exposto, Baiana, a calin mais velha do acampamento, era mãe de Patrícia e Lucinha. Já Lorena era filha da calin Patrícia, e portanto neta de Baiana. O principal resguardo de Baiana era justamente em relação a Lorena e, de forma mais tangencial, com à bisneta Sarah, filha de Felipe e Larissa. Reiteradamente, essa calin mais velha expunha a preocupação em manter a Lorena sempre “asseada”, “arrumada” e “na linha” porque, segundo Baiana, a neta dela tinha valor e por isso não fazia coisas inapropriadas como visitas às “festas atuais ciganas” (nunca me especificou o que seria), ou mesmo se comportar como as garrins do bairro. Ainda segundo ela, sua insistência em não deixar Lorena andar sozinha era justamente para que não aprendesse “o que não se deve” nas imediações do bairro. Para tanto, Baiana dizia manter “rédea curta” com sua neta, ou seja, estava sempre atenta a alguns imperativos comportamentais esperados de uma calin como, por exemplo, o esmero com a aparência por meio de determinadas observâncias em relação às roupas e uma conduta de resguardo principalmente ao mundo garron. No fragmento etnográfico abaixo, além de expor a percepção de alguns membros da turma acerca do ambiente escolar, relato sobre o comportamento de ímpeto associado aos “ciganos baianos”. Para melhor entendimento dessas relações de parentesco entre os protagonistas interlocutores do fragmento etnográfico apresento antes um pequeno esquema ilustrativo do vínculo mantido entre as três calins. 112 A figura 16 representa a relação entre as três calins. No esquema a calin Patrícia está com o nome de Iracema, como também era chamada. Fragmento etnográfico 8: “Viro do avesso!”. “A Calin mais velha do acampamento, Baiana, estava sentada à vontade em frente à sua casa, com o vestido dobrado até a canela e a alça baixa até o ombro, quando meu recebeu. Esbaforida enquanto limpava lentamente com um paninho suas mãos e as costas de suor, e ela mal esperava eu chegar para comentar: ‘Misericórdia, não posso com esse calorão não Dr. Eduardo. Estou derretendo. Está na hora de me dar um piripaque e eu cair dura aqui. O divino espírito santo me livre (fazia o sinal da cruz perto da boca)! Antigamente tinha árvore demais ao redor tudo, hoje não tem nenhuma sombrinha para a gente repousar. Era mais fresco, sabe? Lembro dos meninos pegando preázinho para comer. Conhece preá, Dr. Eduardo? É igual um rato mais gordo. Hoje só tem uns escorpião desse tamanho saindo do mato (rindo mostrou a mão fechada) ... Tinha uma árvore grande ali perto do córrego, todo mundo comia dos fruto que esparramava no chão. Deu na cabeça de um de derrubar, pronto! Uma judiação, derrubaram 113 para fazer lenha. Cigano é assim, deu na cabeça ninguém tira. O baiano então, vou ter falar’. Achegava-me vagorosamente com os cumprimentos costumeiros a Lucinha, filha de baiana que saia para comprar alguns cigarros debaixo do guarda-chuva devido o sol muito forte, e segunda ela, sempre se protegia ao sol naquele horário, porque recorrentemente passava mal com tamanho calor. Ao mesmo tempo que despedia de Lucinha gentilmente tocava o cavalo de Bebeca, e da mesma forma que ele, buscava um refúgio eficiente em meio ao céu sem nuvens que impossibilitava permanecer aos arredores da residência de baiana. Como tanta outras vezes, passamos ao outro lado da rua com as cadeiras a mãos margeando a réstia de sombra até chegarmos a um canto sombreado. Logo, como não poderia ser de outra forma, vendo o movimento perto da sua casa, Ronin se aproxima levantando a cabeça para me cumprimentar. Antes mesmo de conseguir pronunciar os lisonjeiros votos de saudade, Baiana entrega- lhe o “milagreiro doutorzinho96”, solicitando ajuda para passar nas costas. Ronin, porém a interrompe, mostrando predileção por outro método: ‘Minha velha, você tem que se cuidar. Vou pegar uma pomada de arnica que queima tudo logo. É tiro e queda’. Enquanto ela se queixava das dores e recebia a massagem, o fluxo ia se avolumando sem pretensão com a chegada de outros calons que buscavam um lugar na beirada do muro ou mesmo improvisavam pequenos pedaços de papelão para se sentar. Ao longe, Bebeca vinha de mãos dadas com seu filho Araquém (12 anos) de mão dada para levá-lo para tomar banho e depois encaminhá-lo para o ambiente escolar. Araquém não gostava de falar muito sobre a escola, e quando a conversa chegava nesse tema respondia rápido ser bom aluno visando encerrar logo as perguntas. Na verdade, Araquém me dizia adorar andar a cavalo, e assim, sempre via-o de um lado a outro do acampamento. Sempre quando me via, propositalmente, tentava mostrar sua habilidade em andar a cavalo e me perguntava toda vez se eu gostaria de tentar montar, mesmo já sabendo da minha resposta negativa. 96 A referência é ao produto para dores e hematomas chamado de “Doutorzinho”, muito popular na região. 114 17 18 115 Almejando não ficar deslocado em demasia dentro daquele nascente burburinho, puxo conversa despretensiosa com Bebeca a respeito da adaptação de Araquém ao ritmo da escola. No que se referia ao seu filho, o calon Bebeca sempre ressaltava seu orgulho de Araquém herdar suas habilidades, sendo a maestria em andar a cavalo, o envolvimento nas conversas referentes ao cuidado desses animais, e também seu interesse em aprender a fazer catira. Bebeca sempre dizia do seu empenho em colocar Araquém “por diante”, e por isso, desde novo já o incentiva a brincar de fazer umas catirinhas97 para pegar o costume, o jeito do negócio. Para tal, colocava-o para trocar pequenas peças, como fivelas, adereços para cavalo, galinhas, ovos entre outras coisas de menor valor. Como dizia Bebeca: “Vai brincando e brincando, quando viu você, quando assusta, aprendeu a fazer. Senta do lado vai assuntando e acaba pegando gosto pela coisa, e ficando bom. Aprendendo as malícias”. Porém, quando o assunto vigorava no âmbito da instituição escolar, Bebeca coçava a cabeça, e não se interessava nem um pouco, de forma seca já ia dizendo que Araquém fazia tudo ‘direitinho’ e frequentava com regularidade a sala de aula. Todavia, seu relato ia contra a opinião de outros informantes que revelavam a inconstância de Araquém no ambiente escolar, justamente por ter maior feição pelas atividades relatadas. O calo Bebeca não incentivava Araquém a continuar o percurso escolar, porque, não dá para a pessoa ser “estudada” e boa de catira e entender das crias (cavalos, mulas e galinhas), pois se demanda muito tempo para se tornar um catireiro. Ainda ouvi dele que a catira não tinha hora para acontecer, e que, para ele, a escola não deixava a pessoa ajudar os parentes quando precisavam e nem correr atrás das catiras. Apesar de saber da indiferença do assunto para eles, a primeira coisa que me vem à cabeça, e que acabo por perguntar, apenas para quebrar o gelo, já que me via como o único brasileiro ali: ‘Como andam os filhos na escola, Bebeca? Tudo bem?’. E Bebeca desviando do diálogo, apenas balança a cabeça de maneira assertiva, Baiana, porém, com flagrante 97 Termo usado pelos calons alvo de pesquisa para se referirem as catiras envolvendo pequeno valor. 116 disposição aproveita o ensejo, e emenda um comentário sobre a relação dos ciganos com a instituição escolar em sua perspectiva: ‘Já teve vez desses aá (fazendo referências aos alunos da escola Municipal Adauto Lúcio Cardoso) arrumarem confusão com meninos nossos. Fui tirar satisfação lá na escola. Você acha que tenho medo? Sou valente também. Enfrento com certeza, já vi tanta maldade ser feita com ciganos sem motivo nenhum, por pura maldade. Pegar e fazer hora com a cara dos pequeninos. Pregar chiclete no cabelo, e depois ter que cortar um bocado. Chamar de nome feio. Que deus me perdoe, mas se pego um menino desses aprontando com alguém daqui, eu viro ele de cabeça para baixo, e lhe dou logo uma coça. E se mexer com Lorena, a se eles se atreverem a mexer com Lorena, apareço na escola eles vão se arrepender do dia que me conheceram (com o punho fechado para cima franzia o rosto)... Lembro na época de piolho, e que não tinha esses produtos de hoje. Quando tinha um caso de piolho sempre olhavam para o coitado do cigano. A culpa era sempre dele. O menino podia ir asseado que só, e mesmo assim, e era a mesma coisa que nada’. A Patrícia, visivelmente comovida com o tema, e aproveitando a ausência de Lorena que estava na aula, começa a contar as dificuldades de Lorena manter um percurso escolar contínuo devido alguns contratempos sofridos. Esperando a Baiana acabar de falar, Patrícia olhando diretamente para mim começa a relatar: ‘Teve um tempo que tiramos a Lorena da escola. Conversamos, e a velha (fazendo referência a Baiana) pediu para tirar a Lorena da escola, sabe? Não estava gostando das histórias que Lorena contava das professoras, achava sem cabimento muita coisa. Deixamos um tempo fora, porque Lorena pegou pavor da escola. Levamos até no psicólogo, e ele falou que não tinha nada não. Era coisa da cabeça dela, medo mesmo. Não queria ir mais para a escola, não fazia questão. A gente, protegendo tirou, ela de lá. Como ia deixar ir? Em 2014, por aí, graças a deus apareceu a Roseli na nossa vida. A professora da vida da Lorena. Ela ama Roseli de paixão. Colocamos ela aqui do lado, aqui no Adauto (Lúcio Cardoso), e acabou tomando 117 A partir do momento em que tive consciência de uma proteção mais assídua a Lorena, principalmente devido ao seu histórico de insucesso dentro do ambiente escolar98, cambiei decisivamente as minhas interpretações a respeito das motivações nas ressalvas de Patrícia para com os “garrons intrometidos”. Se outrora via seu comportamento enquanto uma desconfiança no intuito de resguardar a comunidade dos pesquisadores, comecei a entendê-lo substancialmente como uma prevenção, dada a situação vivenciada preteritamente por Lorena nos ambientes escolares frequentados. Ter ciência dessa ocorrência (nunca bem esclarecida) envolvendo Lorena, fez-me procurar conhecer melhor a professora do Adalto Lúcio Coelho, Roseli. Já na primeira vez em que fui visto em sua companhia andando nas imediações do acampamento, Patrícia se espantou com a cena, chegando a pronunciar pouco tempo depois quando provoquei Gilberto acerca das suspeitas recaídas sobre mim: “A gente não te conhecia, né. Com tempo que a pessoa vai enturmando, mas não tem nada ver, você amigo nosso. Se a gente suspeitasse, já tinha corrido com você faz tempo daqui”. Realmente, depois do entendimento daquele resguardo por conta da situação vivenciada anteriormente por Lorena, além de uma afetividade expressiva mantida com seu filho, Felipe, e seu esposo, Gilberto, comecei a perceber uma transformação significativa na credibilidade dada ao meu exercício de pesquisa por Patrícia. E ainda, pude lentamente sair de um terreno incerto de “garron desconhecido” para “garron conhecido/amigo”. O resguardo sobre a calin Lorena se deu por conta do seu histórico de insucesso escolar, mas também devido à sua própria condição de calin criança, pois ela ainda não havia se casado (o matrimônio é um importante marcador para a vida adulta). Como a instituição escolar era um ambiente que propiciava um maior contato com os garrons, os cuidados 98 Nunca consegui descobrir os reais motivos da desistência de Lorena da escola anterior, porém pareceu -me ter sido algum caso mais sério. Ao indagar Baiana sobre isso, ela justificou dizendo “a professora deu casca de maçã para os alunos comerem”, e depois não quis mais tocar no assunto. Por isso, acabei não insistindo nesse tema. gosto pela coisa. Estudiosa, você tem que ver. Se não fosse a professora Roseli ela já tinha abandonado, sabe? E mesmo com a Roseli apoiando demais a gente nessa, a Lorena por ser muito sabida podia até passar para o próximo ano, ir para quinta série, e ficar com a professora que acolheu ela, a Nilce. Foi um cansaço só tentando isso aí. Mandando carta, e buscando ajuda dos mais entendidos, e Roseli esteve com nós nessa para passar Lorena para frente, mas no fim não deixaram ela avança porque é cigana mesmo’. 118 relativos ao local sempre eram redobrados. Por isso, a calin Patrícia sempre buscava a Lorena no portão do colégio Adulto Lúcio da Costa, escola municipal localizada nas redondezas (para ver a distância, olhar anexo 2), fazendo questão desse trânsito diário. Um dos motivos da proximidade da turma com a professora Roseli, citada no fragmento anterior, era justamente a busca de informações acerca do comportamento de Lorena dentro da escola, principalmente em relação aos outros estudantes garrons. Como existiam outros alunos calons daquele acampamento frequentando a mesma escola, no horário destinado ao recreio todos eles se reuniam e aproveitavam o intervalo juntos, sem muito contato ou proximidade com os garrons, salvo algumas exceções. Eram justamente as poucas colegas garrins conquistadas no ambiente escolar que frequentavam a casa de Gilberto e Patrícia para brincar com Lorena. A mãe não via problema em deixar as “coleguinhas” da menina irem até sua residência para vê- la. Se por um lado existia essa rara permissão para receber visitas da escola em casa (presenciei somente uma colega de Lorena frequentar o local), por outro, as brincadeiras eram realizadas sob a vigília de Patrícia e Baiana, e sempre simulavam um comportamento considerado feminino, como por exemplo, brincar de ser mãe, de vestir a boneca, fazer comida, passar maquiagem, entre outras. Era no quintal de Gilberto e Patrícia, principalmente nesses momentos de descontração, que diferentes gerações se encontravam e aprendiam mutuamente sobre os comportamentos esperados em cada faixa etária da vida de uma calin. A calin Baiana, como relato no fragmento anterior, gozava de certas “liberdades” em relação a determinadas prescrições de limpeza e comportamento ideal se comparada, por exemplo, a uma calin casada. Sua condição de mulher viúva lhe garantia um cuidado menos intenso e restrito com a vergonha99 do que outras calins, e isso lhe proporcionava uma relação mais estreita com garrons que frequentavam sua residência em busca dos seus trabalhos espirituais ou para conversas mais descompromissadas. A escusa de determinados preceitos por parte Baiana por conta de sua idade e sua condição de viúva não implicava no abandono da valorização desses resguardos; ao contrário, essa calin mantinha uma vigilância contínua sobre suas duas filhas, Lucinha e Patrícia, e principalmente sobre sua neta Lorena. A postura de Baiana para com Lorena era de extremo zelo e afeto. Contudo, havia também de um controle muito exacerbado sobre a conduta da menina tanto dentro dos espaços frequentados no acampamento como fora daquele ambiente, chegando ao ponto de proibi-la 99 Ter a vergonha ou manter a vergonha estava associado as condutas morais adequadas esperadas para as calins. Ver Blasco (1999) e Ferrari (2010). 119 de frequentar sua última escola por julgar inadequado o comportamento de um dos professores (segundo Baiana, um deles teria oferecido casca de fruta para Lorena). Ao mesmo tempo, essa calin mais velha orientava Patrícia nos cuidados com sua neta, instruindo-a sobre a melhor roupa para usar, os brincos mais bonitos, o modo de se maquiar e arrumar o cabelo, e o linguajar adequado para a menina. Já no que diz respeito a Patrícia, enquanto uma calin casada e com filhos, Baiana reforçava constantemente as qualidades de sua filha, afirmando com convicção o respeito adquirido por ser uma calin que conservara a vergonha, apenas fazendo a ressalva ao gênio dos “calons baianos” herdado por ela . Sua outra filha Lucinha, por sua vez, havia rompido recentemente o casamento com o calon Geraldo, residente no acampamento em São Gabriel e, por isso, os comentários da Baiana sobre Lucinha tinham um teor muito diferente daqueles a respeito de Patrícia. Não consegui me aprofundar sobre as motivações do término do matrimônio entre ambos, dado um nítido constrangimento de Lucinha em tocar no tema. Ela apenas justificava genericamente o rompimento da seguinte forma: ‘Quando não é para ser, não é. Às vezes não dá certo. Só isso’. Quem meu deu uma explicação alternativa e melhor fundamentada foi justamente sua mãe Baiana, e através de outro fragmento etnográfico relato sua fala: Fragmento etnográfico 9: “Eu me viro” Com certeza, a calin Baiana era aquela pessoa que me tratava de forma mais performática. Mesmo depois de certo tempo de convívio, volta e meia me tratava como se eu chegasse pela primeira naquele acampamento. A marcação entre garron e calon era feita de tal forma que, mesmo provocando-a constantemente de forma a mostrar que eu havia adquirido algum conhecimento do mundo calon, ela insistia em usar os mesmos argumentos e investidas quando tentava catirar comigo. Logo que cheguei ao rancho, dirigi-me à casa de Baiana e, como de costume, pedi a sua bênção (ato muito apreciado pelos outros calons e principalmente por ela, que sempre reclamava da falta de respeito dos mais novos). Mal havia sentado e Baiana fazia seus votos de saudade, afirmando que eu era exatamente a pessoa a quem ela procurava. Logicamente contente por possuir algum prestígio por parte dela, logo ouço seu comentário: ‘Venha ver, tenho aqui uma 120 fivela que vai fica ótima em você’. Após sua fala, olho de canto de olho para Lucinha, avisando que sabia das artimanhas de sua mãe para tentar me empurrar “alguma coisinha” para catirar, e Lucinha imediatamente sorri de volta entendendo o recado. Entro na sua residência e vejo Baiana mexendo em baú um enorme, e dele tirar uma fivela de sinto empoeirada. Com um pequeno pano limpa o excesso de sujeira, e me diz: ‘Olha aqui que belezura. Vai ficar um homão. Colaca aí para a gente ver. Está vendo é sua cara. Não poderia ficar melhor”. Percebendo que eu reparava a sujeira na fivela e tentava tirar um pouco dela com a mão, a calin retruca: “Não, ela é novinha. Te juro por tudo que é mais sagrado que não tem mês (um mês) que comprei ela. Só passar uma água. Pega uma escovinha e pasta de dente e esfrega de leve. Está nova... Sabe de onde é essa fivela? De Barreiras (cidade na Bahia). Uma fivela abençoada lá e trouxe comigo. Se usar ela nada vai poder te fazer mal. Nem faca, nem bala vai te acertar. Nenhum mal vai te alcançar. Ainda faço uma reza para te proteger, e pronto. Não tem como não fechar negócio’. Naquele momento estava mais interessado em saber mais sobre a questão religiosa, e a provoco: ‘Não sabia que você benzia, Baiana’. E ela, tentando mudar de assunto, responde: ‘Sei fazer umas coisinhas. Umas rezas. Umas bezenduras...mas deixa de história, homem, vamos fechar essa catira aqui’. Aproveito para brincar com ela, e digo: ‘Não sabia que calin fazia catira. Ganha dinheiro com isso?’. E a Baiana, pensativa e colocando a mão na cabeça, me respondeu: ‘Não é catira, não. É catirinha, coisa boba. Ninguém ganha a vida com isso, não. É para comprar um gás, um milho para as galinhas’. Como anteriormente já tinha ouvido sobre uma suposta ajuda financeira de Gilberto, questiono-a sobre esse auxílio: “Deus me livre, pegar dinheiro de genro? Nunca, por isso mesmo me viro... tem gente que já consegue tirar um pouco mais. A Paulinha (casada com Leandro) arruma uns vestidos para as calins de tudo que é canto. Um bocado de gente deixa o tecido e outra encomenda de outra cidade. Tem gente fala que manda até pelo correio. Tudo questão de gosto, uns gosta dos 121 vestidos da Paulinha, outros preferem de outro jeito. Eu mesmo já mexi com costura, mas não aguento mais ficar na máquina que dói minhas pernas demais. Uma agonia que só... Você não tem uma esposa? Compra uma vestido para você ir na festa com ela. Vai ter um festão agora lá, filho do Bandeira vai casar’. Eu, tentando me esquivar da negociação afirmo: ‘Minha namorada não quer mais saber mais de mim não, Baiana. Como vou levar ela para festa?’. E, astutamente, Baiana logo retruca: ‘A gente resolve isso agora. Você pega essa fivela na minha mão e ganha um pó do amor. Você vai passar nela e ela não vai desgrudar mais de você. Não vai olhar para outro’. De novo tentando evitar comprar aquela fivela, digo que estou sem dinheiro no momento e que não poderia comprar nada. Baiana me disse que não teria problema para fechar a negociação, porque eu era uma pessoa que honrava o nome com a turma e, por isso, confiava em mim para quitar a dívida no tempo combinado. Diante daquela armadilha colocada pela persuasão de Baiana (que era acompanhada pelas entonações de concordância de Lucinha), vi-me mais uma vez obrigado a fechar aquela catira com as duas, apesar de saber que levaria prejuízo. Em uma última investida contrária àquela catira, retruquei não ter previsão para pagar, que poderia demorar a acertar todo o valor acordado; da mesma forma, Baiana, diz que eu poderia pagar ‘um tanto agora, e um tanto depois’. E ela começa a tirar, um por um, os vestidos do enorme baú, e vai colocando-os abertos em cima da cama enquanto elogia cada peça. Começo a reparar em uma foto em uma pequena moldura pendurada na parede. Vejo nela Lucinha e seu ex-marido, Geraldo. Baiana, percebendo meu interesse demasiado pela fotografia, logo diz: ‘Esse aí não presta, não. Metido a valentão. Era noiado, sabe? Bebia demais, usava droga e saia do ar. Ninguém quer isso para a filha. Melhor sozinho que mal acompanhado’. 122 21 22 20 19 A primeira imagem é um registro fotográfico da fivela comprada na mão de Baiana e, como se percebe, a peça está bastante velha, desgastada e também com um pedaço quebrado. A segunda foto é a mesma fivela, porém limpa - a qual vendi posteriormente por um preço maior a outra pessoa do acampamento, em minha primeira catira . No momento da venda me foi argumentado que se estaria pagando pelo melhor estado dela, porque, segundo um dos interlocutores: “cigano não teria paciência para isso (a limpeza)”. A terceira imagem é uma foto de Baiana, à direita, e Lucinha, à esquerda. O único registro fotográfico autorizado para colocar no trabalho foi esse, por não aparecer o rosto de nenhuma das duas calins. 123 Quem primeiro insistiu em levar-me a uma “autêntica festa cigana” foi Patrícia, e como à época eu ainda andava com trajes “típicos de brasileiro”, vestimentas distantes daquelas usada por membros da turma do Céu Azul¸ foi-me sugerido frequentar suas festividades trajado com aquilo considerado enquanto “roupa de cigano”. Isso, segundo essa calin, me ajudaria a “enturmar” com mais facilidade nas ocasiões de festejo. Em um primeiro mo mento, julguei descabido me trajar daquela forma e transmitir uma imagem errônea a outros calons, de uma espécie de provocação ou um de jogo da imitação zombeteiro e desrespeitoso. Por isso, inclinava-me a recusar essa proposta, explicando para Patrícia da seguinte forma: ‘Acho melhor não, né, Patrícia? Pessoal não me conhece, depois pode achar ruim de ter um brasileiro ali no meio vestido assim. Agradeço o convite’. E ela com convicção retrucava minha negativa: ‘Nada, você coloca um cinto, uma fivela, camisa igual de cigano, chapeuzão. Felipe tem tudo isso aqui, vê com ele. Vai ficar igual cigano. Ninguém vê a diferença, não. Estando junto da gente lá, não tem problema. Diferente dos meninos amigos nossos aí, que vão as vezes. Você está pegando as coisas rápido, o jeito de falar de cigano. Até o Leandro que está aí desde pequeninho com nós às vezes dá uma falhada. Qualquer coisa diz que é genro da Baiana (pronunciou esta última frase rindo)’. Juntamente com esse “parecer ser cigano”, que estava envolto numa tentativa de imitar o linguajar, a postura, os assuntos, as interjeições, os gestos, entre outras minúcias imprescindíveis a uma boa acolhida no ambiente de confraternização das festas, Patrícia me alertara acerca daquilo que eu deveria esperar de uma festa daquela natureza: ‘Mas você não liga não, né? Nossa festa é igual de pobre mesmo. Tem umas carnes, cerveja e já está muito bom. Não tem muita frescura, não. Coisa mais popular assim’. Expressões tão comuns ao cotidiano calon como “frescura”, “popular” e “parecer ser” eram palavras que irromperam seu significado original e se mostram carregadas de sentidos importantes dentro das esferas respectivas de performatividade, comportamento de distinção dos brasileiros e proximidade daqueles brasileiros residentes na região circunvizinha. Através do relato da minha relação com outros integrantes da turma, pretendo desenvolver primeiramente os tópicos relacionados aos conceitos de frescura e o de ser popular, para então voltar à questão do “parecer ser cigano”. Entendo essas duas expressões enquanto conceitos nativos, e preconizando-os de maneira a ficar evidente sua importância em algumas dinâmicas envolvendo calons e interlocutores não ciganos (garrons), e consequentemente, influenciando minha entrada, permanência e a construção de um espaço propício de desentendimento mútuo. E efetivamente através de certa 124 proximidade relativa com um, e distância do outro, pude ser considerado um garron amigo ou garron conhecido. Os dois imperativos lógicos, ou a maneira pela qual concebi tais moralidades valorizadas pelos interlocutores calons em que mantive contato, tiverem estreita ligação e retroalimentação, fundamentais em um controle (pacificação) aos garrons com maior proximidade afetiva dos membros da turma. No caso, a ética da frescura estava relacionada a uma miríade de comportamentos relacionados, por exemplo, ao modo de se portar nas festas, às etiquetas adequadas ao se alimentar, o ato de vestir algumas peças de roupas e de limpá-las ou não, além de outros mais difíceis de identificar (Por exemplo, algumas vezes, inesperadamente, alguém gritava afirmando minha não frescura, e eu não conseguia identificar o motivo exato dos meus interlocutores ressaltarem minha conduta.). Já em certa vez, quando ajudava Ronin a tirar algumas madeiras de sua casa, ele de repente pronuncia: ‘Olha, o Eduardo não tem frescura mesmo!’. Compreendi que esse tácito código de conduta de “não ter frescura” se observava em atividades/circunstâncias mais corriqueiras realizadas no acampamento como, por exemplo, embrenhar-se no mato por motivações diversas, pegar uma galinha para cozinhar, ir atrás dos cavalos, sentar-se no chão de terra sem nenhum anteparo, ajudar na lavagem de alguns utensílios de cozinha, ingerir café/água na xícara sem limpá-la ou apenas passando um pouco de água e, principalmente e reiteradamente, alimentar-se de forma específica, tanto no que diz respeito ao julgamento dos alimentos como consumível, quanto à maneira de ingeri- los. Sobre os momentos em que presenciei o uso da expressão frescura, é possível dizer que alguns aconteceram como flagrante elogio frente alguns dos meus comportamentos no contexto das “festas ciganas” 100, e também em momentos de socialização mais corriqueiros dentro do acampamento. E normalmente, quando havia esse enaltecimento, ele era acompanhado de uma concordância geral dos calons que presenciavam a cena. Posso citar como exemplo, de maneira mais icônica, determinadas situações vinculadas ao momento da alimentação do grupo. Recorrentemente, quando me eram oferecidos determinados alimentos, havia uma expectativa de mimetização da gestualidade e comportamento adequados ao ato de se alimentar. Sem muita reflexividade ou intencionalidade explícita de performar esses modos, eu por vezes conseguia efetivá-los quase que desapercebidamente e por introjeção, dada a constância do meu acompanhamento ao cotidiano dos calon. Quando vinha a executá- 100 Ao colocar a terminologia “festa cigana”, estou somente reproduzindo a expressão usada pelos meus interlocutores calons para se referir as festividades realizadas por ciganos calon em outros acampamentos. De maneira alguma trato o termo com uma conotação generalizante e estereotipada. 125 los de maneira certeira, a atitude gozava de um enaltecimento coletivo, como visto pelo comentário de Gilberto enquanto eu comia fígado acebolado com eles em um dos bares da região: ‘Está vendo, Ronin, o rapaz está qual nós. Tem dessa não. Se tiver que comer, ele come com a mão. Está bruto. Fica vivendo no meio de nós, uma hora ele aprende como se faz as coisas. O menino é esperto toda vida. Está catirando... aprendo a fazer umas catirinhas, né? Tomando umas mantinhas... Mas é assim mesmo, Eduardo. Preocupa não, daqui a pouco você pega o jeito... Entendeu rápido o modo de vida nosso aqui, sabe?’. 23 24 126 De maneira semelhante, em uma das festividades realizadas na cidade de Pedro Leopoldo101, no caso, uma “festinha”102, Bebeca tentava explicar aos seus parentes que aquele garron ali (referindo-se a mim) era “como eles”, e o fazia no momento em que eu acabava de dividir uma dose de cachaça com seu tio, D’Louro, comia um pedaço generoso de carne de cabrito sem usar talheres e por fim lambia os dedos em sinal de satisfação. Cabe frisar ser um costume recorrentemente usado pelos calons - e aqui amplio a afirmação a outros contextos de pesquisa - o convite aos pesquisadores para as festas promovidas pelo grupo ou por parentes mais próximos. Dessa forma, fui chamado a comparecer a elas. Ali, porém, costumava ficar em um lugar não somente ambíguo, mas em alguns momentos realmente desafiador. Tal dilema se impunha porque não me conduziam a sentar no lugar separado aos garrons/garrins convidados, que ficava em uma mesa à parte; ao contrário, sempre desfrutei dos convites para participar da socialidade masculina de maneira mais próxima. Pontuei brevemente a temática das festividades realizadas ou frequentadas pelo grupo para sublinhar a maneira como a minha não-frescura, enquanto conceito anteriormente exposto, não somente possibilitou adentrar-me nesse circuito amplo de celebrações, mas, ao frequentar espaços de presença majoritariamente calon ¸ acabei em um lugar duplamente ambíguo ou de interstício. Isto porque eu não somente gozava das inquietações costumeiras dos artifícios criados na mediação entre ethos e processos diferenciantes mas, também, porque tinha conhecimento de uma percepção por parte dos interlocutores do meu domínio de certas competências (ou seja, de sua expectativa em eu conseguir “me virar” naqueles ambientes, justamente por, segundo alguns deles, estar “pegando o ritmo”). Ainda presenciei a utilização do termo associado à ingestão da água disponibilizada no acampamento. Devido à ausência de canalização e infraestrutura relacionada à rede de esgoto e fornecimento de água, havia soluções alternativas para a obtenção de água, por isso, os próprios moradores me alertavam quanto à baixa qualidade da água ingerida pela turma. Exemplificando as controvérsias relacionadas ao consumo de água, certa vez, quando estava na casa de Ronin, acabei pedindo a um copo d’água devido ao calor. Ele, ao invés de prontamente atender o meu pedido, retrucou: ‘Olha, Eduardo, bebe dessa água não, porque 101 O município de Pedro Leopoldo fica situado aproximadamente a 40 Km do município de Belo Horizonte. 102 Posteriormente, dissertarei de maneira mais delongada e precisa sobre a qualificação das festividades, no caso, provisoriamente, “festinha”, faz referência as festa sem nenhum motivo específico, como por exemplo, por motivo de casamento, batizado, entre outros. As duas fotos abaixo foram tiradas na festa de casamento realizado no acampamento localizado, no Bairro do São Gabriel, e especificamente, a comemoração de dois casamentos. Estou na primeira foto, no canto direito, e também na segunda foto, a quarta pessoa da direita para esquerda. As fotos tem uma qualidade baixa, porque são frames do vídeo do casamento da festa cedidos generosamente por Alexia Melo. 127 não é tratada. A gente bebe porque esta acostumado, sabe? Depois você pode passar mal’. Além de uma disposição ampla da minha parte em vivenciar quaisquer experiências presentes na vida daquele grupo, também buscava transparecer uma empatia em aprender aquilo considerado básico e uma indiferença frente aquilo classificado como inadequado por outros brasileiros – o que incluía a classificação da qualidade da água. E apesar de externalizar um repúdio à postura de asco mantida por alguns garrons em relação a determinados aspectos da vida cigana, ainda assim, Ronin me entregava o copo com água advertindo-me: ‘Dá uma golada antes, e sente. Se não quiser, não precisa tomar, não. Sério, Eduardo’. Julgando um ato muito simples, ingeri sem grandes problemas. E, com olhar de assentimento, Ronin logo disse, de forma risonha: ‘Aí você falou, garoto. Está aprovado para viver no meio de nós’. Relatar esse caso pode parecer tão banal quanto aquelas anedotas sobre as dificuldades encontradas nas descrições da literatura clássica da antropologia. Porém, não entro no mérito da qualidade da água consumida no acampamento, apesar de ter entendido a demanda da comunidade em garantir o fornecimento de água tratada e saneamento básico para o acampamento. Muito menos uso o exemplo supracitado como um caso corriqueiro de possíveis contratempos enfrentados durante o trabalho de campo. Na realidade, elenco as controvérsias estabelecidas através dos usos da água pontualmente para relacionar o que trouxeram em relação àquele conceito de frescura anteriormente exposto. Segue abaixo outro fragmento etnográfico expondo justamente a relação com alguns brasileiros em decorrência de ideias díspares acerca da utilização da água e dos possíveis efeitos e reflexos de seu consumo: Fragmento etnográfico 10: “Dessa água não beberei” O sol ainda morno chega ao acampamento trazendo um brilho tênue entre as botinas dependuradas e enfileiradas na cerca, tal qual um poleiro onde descansam os passos. Calçados untados no óleo e perfilados esperando o trato final para a próxima festança ou cavalgada. Aproxima-se do meio dia e Leandro corre atrás do “carro de ovo” (carro que vende ovos vindos da “roça”). Shely, praguejando, vai atrás dos seus devedores para fazer cobrança. Juninho volta do bar à cavalo e faz questão de vir pela calçada, trotando lentamente.. 128 Nandinho deita em frente à sua casa, olhando seu cavalo pastar debaixo da sombra esperando a próxima viagem para buscar entulho. Costumeiramente, as diferentes rotinas, cada uma na sua particularidade, acabavam em momentos de descontração e de júbilo entre aqueles que repousavam dos afazeres diurnos. Segundo os calons, eles sabiam que os brasileiros achavam que eles não trabalhavam. Porém, na realidade, para meus interlocutores, eles “ralavam” em dobro, porque a catira não tinha horário para acontecer. Especificamente naquele dia, por motivações desconhecidas por mim, encontrei parte da turma reunida em uma localidade do acampamento onde nunca tinha visto qualquer aglomeração. Cumprimentava a todos, tentando entender a motivação deles estarem por aquelas bandas. Porém, coincidentemente, enquanto olhava para o “córrego do Capão” buscando encontrar alguma justificativa para aquele evento também chegava um grupo de cerca de dez pessoas com pranchetas e cadernos na mão, vestidas com roupas brancas. Dentre elas havia duas enfermeiras de campo que normalmente atendiam a turma e o restante eram alunas do curso de enfermagem da Universidade PUC- Minas. Após os lisonjeiros cumprimentos - e também o estranhamento e desconfiança tanto do lado das alunas, visivelmente apreensivas, quanto dos ciganos, curiosos em saber a razão daquela “gentaida” vir assim tão de repente ao acampamento -, uma das enfermeiras, visando quebrar o gelo, introduz os objetivos da visita: ‘Olá, pessoal. Estamos fazendo uma pesquisa para ajudar a melhorar o atendimento aqui no bairro e aproveitando para os estudantes aprenderem um pouco sobre os ciganos. Vocês se importam em responder algumas perguntas para a pesquisa?’. Antes mesmo de qualquer um da turma se pronunciar, uma das enfermeiras repara minha presença ali e já diz: ‘Você também está fazendo pesquisa? Vamos aproveitar e você ajuda a gente’. Como não sabia qual seria a receptividade do pessoal, brinquei: ‘Hoje eu sou estudante também, vou ouvir para aprender’. Ronin, na mesma hora, me deu uma olhada como quem diz: ‘Você está zoando dessa galera, né, Eduardo?”. 129 Na primeira fotografia se vê em primeiro plano uma pequena ponte sobre o córrego Capão. E em seguida vemos a quadra de futebol, e ao fundo dois conjuntos habitacionais, chamados de Diamante 1 e Diamante 2. A segunda fotografia é uma foto retirada de cima da ponte em direção ao acampamento, e registra algumas casas de brasileiros construídas na encosta do córrego. 25 26 130 A numeração das residências pode ser conferida na página 37. As estruturas em azul são tendas, e aquelas verdes são casas de alvenaria, variando com pequenas partes sustentando trechos com lona. O trecho circulado em vermelho delimita exatamente onde se encontram os afluentes do córrego capão, e também onde se passa a cena descrita no Fragmento Etnográfico 3: “Dessa água não beberei”. 27 Em seguida disse que não haveria problema algum em fazerem umas “perguntinhas” para eles. Uma das alunas mais entusiasmadas perguntou de maneira forçosa: ‘Todo mundo aqui é cigano, né?’. Quando a moça acabava de dizer isso, Ronin me deu uma cutucada de leve com o braço e instantaneamente levantei a mão, dizendo: ‘Não sou cigano não, pera aí. Vamos com calma’. Percebendo as provocações feitas, logo ele entra no jogo e, envolvendo-me com um abraço, disse: ‘Liga Não. Esse aqui é quase cigano. Sabe até o que é catira. Daqui a pouco está catireiro’. Uma das alunas olha espantada e pergunta: ‘Catira? O que é isso?’. Como se fosse uma obviedade, 131 Gilberto responde balançando os braços: ‘Vender as coisas aqui da gente mesmo, sabe?’. Logo depois olha para mim e levanta a sobrancelha. Dou uma risada contida sabendo que seu gesto facial fazia referência a uma conversa anterior, mantida dias atrás, justamente versando sobre a catira. Sem muito bem entender o motivo das trocas de olhares entres os ciganos (da mesma forma que acontecera comigo em outros momentos), uma das alunas arrisca outra pergunta: ‘E qual é etnia de vocês?’. Os ciganos Vieira, Baiana, Leandro, Bebeca e Gilberto olharam-se com estranhamento e o próprio Gilberto indagou: ‘Como assim etnia, moça?’. Percebendo a inadequação do questionamento, uma das enfermeiras103 que orientavam a atividade e de maior contato com os ciganos reelaborou a pergunta: ‘O pessoal todo aqui é Calon, né?’. De forma espantada, Ronin diz, se levantando rispidamente: ‘Aqui todo mundo é Calon, e todo cigano é Calon’. A maneira enérgica da resposta criou um clima de constrangimento e novamente houve a intervenção da instrutora, visando apaziguar os ânimos: ‘Quanto tempo você está aqui no acampamento?’. E Gilberto, estufando o peito e gesticulando as mãos de maneira ágil, responde: ‘Estou aqui desde 1986. Criei meu filho aqui. Tudo meus compradores estão por aqui. Gostamos desses lados. Vamos acostumando e acabamos gostando, e depois não quer sair’. Aquelas indagações eram um interlúdio para aplicação de um questionário mais específico referente a práticas de prevenção a doenças. Mexendo lentamente em sua prancheta, a enfermeira coordenadora do grupo arruma os óculos e diz: ‘Agora a gente vai fazer umas perguntas mais específicas para saber como anda a saúde de vocês. Vamos, gente (e faz sinal com a mão para que umas das alunas comece)’. Um pouco sem jeito, uma delas arruma o jaleco e lê de maneira robótica: ‘As mulheres fazem pré-natal?’. Antes de qualquer coisa, uma das enfermeiras interrompe novamente e “corrige” a pergunta: ‘As mulheres vão ao médico quanto estão grávidas?’. A Baiana, arrumando o vestido e visivelmente indignada, 103 Não cito o nome das funcionárias e das alunas propositalmente. Resguardo a privacidade das suas identidades devido ao teor da conversa exposta. 132 fala: ‘Que nada, só quando vai ter o neném mesmo. Antigamente a gente tinha a criança em qualquer lugar. Só vai quando tem uma complicação. Ir por qualquer frescura assim, vamos não’. Logo na sequência, uma das estudantes de enfermagem, de maneira inocente, olhando para uma das casas perto de onde estavam, indaga: ‘Todos os ciganos moram em tenda?’. Ao que Poliana respondeu: ‘Não. Eu tenho casa ali, ô’. E a aluna, de novo: ‘Os ciganos se adaptam?’. E Leandro fala perto do meu ouvido: ‘Adapta não, a gente mora obrigado debaixo das casas’. Sem conseguir segurar o riso, encosto no ombro dele e falo: ‘Que isso, que ignorância’. Ele fala baixinho para mim: ‘Ai não, né? Perguntar se a gente adapta. Esse pessoal quer saber o que?’. A Baiana responde: ‘Acostuma sim, antes aqui tinha barracas demais. Tinha até carioca morando aqui. Era gentaida (gente) demais, tudo misturado’. De maneira inesperada, Gilberto interrompe, mudando de assunto: ‘A gente vive assim. Compra uns cavalinhos aí. Cada família arruma uns 20 cavalo, vende em 15 vezes e ganhava mais ou menos uns 250 por cavalo. Coisa pouca mesmo, só para sustentar mesmo’. A coordenadora, balançando a cabeça assertivamente, tenta votar ao assunto: ‘Onde vocês evacuavam?’. Novamente os ciganos se olharam e o Danilo, meio sem graça, fala: ‘Ir no banheiro, dona. É isso?’. O Ronin, rindo, dispara: ‘A gente vai onde você está vendo aí, a gente vai no matão’, e Bebeto completa: ‘O banheiro é a natureza’. E ambos olharam para mim, provocando-me, pois anteriormente havia caído na mesma ingenuidade de fazer perguntas semelhantes. Como se não bastassem as insinuações, colocaram-me no meio da conversa. O Leandro aponta em minha direção e afirma ironicamente: ‘Esse aqui quer vir aqui e ter banheiro cinco estrelas. Com banheira e tudo’. Respondo rindo e, logicamente, sem deixar a provocação “minguar”: ‘Só uso banheiro se tiver papel higiênico perfumado’. Na tréplica, Leandro, me dando um tapinha nas costas diz: ‘Só com folha dupla, né?’. Houve uma catatonia entre o grupo de estudantes e olhares perplexos devido ao teor da conversa. Tentando mudar a “direção da prosa”, uma das estudantes questiona 133 despretensiosamente: ‘Vocês ajudam uns aos outros?’. Visivelmente incomodado, Shely coloca de maneira veemente: ‘Aqui é tudo parente, moça. A gente faz tudo junto aqui’. Ao que estudante prossegue: ‘Como é o casamento seus?’. Até o momento em silêncio, Renata responde, entusiasmada: ‘É igual o seus mesmo, mas é mais animado. Uma festença mesmo. Dura mais tempo, mas é festa de pobre, coisa simples. Tem extravagância não’. Outra aluna emenda: ‘Com quem pode casar?’. E de maneira rápida, Gilberto coloca: ‘Da época antiga mudou muito. Agora pode casar com todo mundo. Tem mais dessa não’. Na mesma hora, ele olha para os outros calons como quem insinua que aquela afirmação não era verdadeira. Tentando retomar ao questionário, a coordenadora do grupo tosse um pouco e dá uma cutucada com o braço na outra profissional da saúde que acompanhava a visita, que recomeça o questionário: ‘De onde vocês tiram a água para beber e cozinhar? E vocês já tiveram algum tipo verminose?’. A enfermeira mais velha explica: ‘Vocês já tiveram dor de barriga ou lombriga?’. Patrícia vira a cabeça olhando para os outros calons e com um sorriso discreto comenta: ‘Já tivemos os dois, mas quem nunca teve essas coisas? Isso é normal, gente. Tem nada demais uma vez ou outra dar uns revertérios.’ A coordenadora continuou: ‘Essa água é filtrada? Vocês limpam os alimentos?’. E o Gilberto: ‘A gente não usa filtro, tomamos essa água a vida toda e nunca deu nada... Passamos um paninho assim, sabe?’. A enfermeira coordenadora prosseguiu: ‘E como vocês fazem com o lixo?’. Aproveitando o ensejo, Gilberto começa a dissertar sobre o problema do bota fora: ‘Aquele lixo em frente ao bota fora está atrapalhando...’. Uma das estudantes perguntou: ‘Você bota fora... onde?’. O Gilberto, tentando esclarecer, fala: ‘Não, aquele Bota Fora ali, o lixo que colocam na frente. Atrapalha a gente demais’. Entreolhando-se, coordenadora e sub coordenadora comentam entre si: ‘Precisava urbanizar essa área para evitar o contágio de doenças’. E, ouvindo a conversa, Ronin intervém: ‘Vocês estão falando canalizar o rio?’. Uma delas disse: ‘Não só isso, precisamos de saneamento básico’. 134 Gilberto, nitidamente descrente, diz: ‘Essa história já ouvimos antes, moça. Volta e meia aparece um político dizendo que vai ajudar nós. Estamos descrentes’. Novamente, houve um momento de constrangimento. Uma das alunas se dirige ao Ronin e incita-o a outro tema: ‘E o preconceito, vocês sofrem muito?. Ele, olhando para baixo e cutucando uma pedra, comenta: ‘Alguns têm preconceito, alguns não. Aqui no bairro o pessoal conhece a gente faz tempo já. Tem problema nenhum’. A estudante continuou: ‘Eles têm medo de vocês?’. E Ronin, surpreso, começa a rir contidamente: ‘Medo? Medo não têm não. Por que eles iam ter medo? O que a gente pode fazer? Somos inofensivos. O negócio é mais cisma de roubo. As histórias são tudo mentira sobre a gente. Só as histórias dos antigos passarem fome... As mulheres gostavam de ler a mão, mas hoje as mais novas não querem aprender a ler. Muita coisa mudou, mas a festas de casamento duram três dias e três noites’. A coordenadora, demonstrando ânimo e com uma entonação de aprovação, comentou: ‘Fiquei sabendo que vocês estão estudando’. E o Vieira falou: ‘Escola a gente não gosta, não. Nunca gostou, não é nossa praia. Ficamos a vida toda sem estudar. Começar agora, depois de velho? Não entra na nossa cabeça. Muita coisa ali não é pra gente”. O grupo, percebendo que não avançaria mais, agradece e é acompanhado por todos os calons até perto do bota fora. Depois de tomarem distância, começa um burburinho gradativo e Ronin forçosamente oferece-me água, e eu o provoco: ‘Não quero pegar lombriga não, obrigado’. Após dar uma gargalhada alta, ele diz: ‘É verminose, você não entendeu nada, né? Esse pessoal fica com uma frescuraiada só... Toda vida usamos dessa água aí, e agora quer ensinar a gente o que é celto104(certo)’. 104 Durante todas as transcrições escolhi colocar os depoimentos e falas dos sujeitos no português padrão , porém em alguns casos optei deliberadamente por manter a maneira original da pronuncia. Nessas situações as palavras não estão mantidas para frisar o aspecto de não formalidade, mas serem típicas do jeito daqueles calon s se expressarem. Por exemplo, a troca da letra r pelo l era feita propositalmente pelos sujeitos de pesquisa, e recorrentemente eram usadas em situações de gozação ou de raiva. 135 O fragmento etnográfico exposto acima, referente a uma visita de alunas da PUC-Minas acompanhadas de duas coordenadoras de campo, enfermeiras do Centro de Saúde Lagoa, ilustra bem a maneira contínua que o conceito de frescura (ou não-frescura) permeava os afazeres mais banais daquela turma. Além aos fatos ali descritos, notam-se, principalmente através de questões relativas ao uso da água, alguns elementos sensíveis na denominação de alguém com ou sem frescura, dentre os quais posso citar concepções distintas acerca de cuidados com o próprio corpo, cuidado com os ambientes comuns à socialidade e alimentação do grupo. Dentro desse grande escopo, é importante afirmar o embate com alguns brasileiros em relação àquilo considerado como higiene adequada, consumo da água apropriado, saneamento e infraestrutura ideais, higienização correta dos alimentos e descarte dos resíduos sólidos. Diria que, por um lado, existe um tensionamento entre concepções hegemônicas de brasileiros acerca de higiene e uma visão diferente sobre os três elementos elencados dentro da frescura (o cuidado com o próprio corpo, o cuidado com os ambientes e a alimentação daqueles calons105). Já por outro, o conceito de frescura também esteve envolvido em duas outras miríades de acontecimentos relacionados a “bagunça”, entendendo-a como uma percepção de alguns brasileiros acerca de aspectos organizacionais da turma. Sobre esses aspectos organizacionais, lembro-me de observar que quando garrons com menor proximidade com a turma (ou, como diriam, garrons desconhecidos) entravam nas residências daqueles calons (por diversos motivos, mas principalmente por conta das negociações envolvendo catira), havia aquela preocupação do calon anfitrião em tentar desviar a atenção do convidado da organização interna do local, dizendo: ‘Repara em nada, não. Nem tive tempo de arrumar essas coisas aí. Está tudo jogado’. A maneira performática de avisar sobre a limpeza e organização dos ambientes internos das residências pode, de alguma forma, se assemelhar a situações recorrentes vivenciadas por não ciganos, porém, o interior da habitação daqueles ciganos era muito diferente das moradias de garrons (os interiores das casas da região adjacente que tive a oportunidade de visitar não tinham qualquer similitude com as residências106 calon). Eu percebia tais trejeitos somente em relação àqueles garrons desconhecidos, porque os brasileiros mais próximos não eram atentados sobre qualquer 105 Presenciei tais estranhamentos não somente comigo, mas com algumas pessoas brasileiras que frequentavam o acampamento e se deram por recusar a comer alimentos oferecidos ou vestir botas, camisas, chapéus, entre outras vestimentas envolvidas nas catiras. 106 Na realidade, poucas vezes tive oportunidade de ficar no interior das residências daqueles calon s por tempos prolongados e reconheço a carência de uma análise mais detida sobre a disposição interior dessas residências. Porém, devido à conquista de uma intimidade que possibilitasse maior trânsito dentro das habitações já no final da pesquisa, não tive tempo hábil para conseguir apresentar as especificidades dos arranjos internos delas. Registro a necessidade de aprofundar nessa temática. 136 preocupação com a organização interior das habitações107 e nem demonstravam qualquer estranhamento àquele ambiente108. A lógica com os automóveis era a mesma. Recordo-me de, ao pegar carona para as festas e adentrar-me nos carros, e nesse caso específico no carro de Bebeca, ouvir dele: ‘Você não tem frescura, não, né? A gente anda desse jeito assim mesmo. Procura um cantinho aí para você se encaixar. Sei que você não liga’ De maneira semelhante, pensando agora no seu inverso, a não-frescura esteve presente na ajuda prestada em determinadas atividades, e principalmente na disposição em auxiliar em momentos mais críticos e nas ocasiões que congregavam um grande número de pessoas em prol de um único afazer (construção de novas casas de alvenaria ou mesmo o seu reparo pontual, e também o levantamento e remanejamento das tendas). Como exemplo, posso citar o acompanhamento do começo da construção de uma das barracas, desde a preparação do terreno (com a capina do mato, a limpeza do local, a feitura dos buracos, a escolha das madeiras, a fixação das toras com terra e pedra), até a amarração final das lonas. Como não poderia somente acompanhar passivamente as tratativas envolvidas no processo de levantamento da tenda, fui incitado por Leandro e Bebeca a dar assistência de maneira superficial na preparação dos materiais. Tal encorajamento não aconteceu por real necessidade de uma mão de obra extra, mas me pareceu um momento propício para operacionalizar diversos conceitos vigentes no mundo calon, tais como a frescura, o popular, a timidez, o pegar o ritmo e o jogo da provocação109. Para além da menção óbvia à frescura vista na fala de Bebeca, enquanto eu ajudava na fixação das toras‘(Tem frescura? Enfia a mão dentro desse buraco aí e pega as pedras. Tem nada aí não, sô. Vira homem110”), houve também a menção implícita a esse conceito mediante minha inserção em uma atividade majoritariamente masculina. Relatando um pouco do processo que vivenciei logo ao chegar ao espaço delimitado e escolhido para se construir aquela nova habitação, cumprimentava Bebeca, Leandro e Danilo de maneira descontraída, como costumeiramente fazia ao interagir com a maioria dos calons. 107 Sabendo da necessidade de maior abrangência de estudos, somente pontuo sobre os significados do interior/exterior dentro da lógica do grupo para melhor fazer compreender o contexto de circulação intensa de brasileiros, e mesmo ciganos, nas localidades circunscritas à habitação. 108 Cabe analisar com mais vagar a relação de classes. Enquanto classe não uso no sen tido marxista ou marxiano do termo, que preconiza uma disputa entre polos dicotômicos e antagônicos, e sim, aproximo -me do conceito de habitus de Bourdieu, segundo o qual determinados ambientes e socializações possibilitam acesso a determinados meios, conhecimentos, práticas, construções corporais, entre outras habilidades e trejeitos. 109 Dentre os conceitos listados, até o momento desenvolvi apenas sobre a questão da frescura. Porém, mais adiante, entrarei em cada uma das denominações citadas. 110 O ato de virar homem também foi considerado por mim como um conceito nativo, já nos termos antes declarados de uma invenção de ferramentas enquanto mediadoras de mundos. Tal conceitualização, nesse caso veio associado ao pegar o ritmo e a não timidez. Tratarei mais pra frente dessas associações. 137 A primeira fotografia apresenta a instalação da tenda do primo de Gilberto, Nazaré, que está sentando em uma das escoras da habitação. Quem está o auxiliando é o filho do Vieira, Leandro, o primeiro em pé, da esquerda para direita. A segunda fotografia já a residência finalizada com o suporte da cozinha do lado de fora, a galão de água e a fiação elétrica. Imagem 28 Imagem 29 138 Principalmente aqueles que se identificavam enquanto homens. Minha aproximação provocativa era quase uma exigência feita por alguns calons nas relações interpessoais mantidas, e a extravagância da minha chegada assustara os novos moradores do acampamento, Nazaré, e seus dois filhos, Ricardo e Pedro. Se a situação de um garron desconhecido interagir de forma jocosa com calons recém chegados ao rancho já era uma cena ambígua, resolvi começar o diálogo tensionando ainda mais os comportamentos esperados e, de forma irônica, iniciei: ‘Eu vim para mandar. Quem sabe manda, que não sabe obedece’. Depois de minha fala, os dois filhos de Nazaré olham com estranheza aquela cena e, se virando para o Leandro, fazem caretas expressando nítida confusão. Leandro de imediato faz um sinal com a mão, dizendo bem baixo para que eu não ouça: ‘Relaxa, esse aí é um garron amigo nosso. Gente boa’. Tentando contornar o mal estar causando por minha brincadeira precipitada, ele vê uma ótima oportunidade de mostrar que me deixava “no chinelo” (expressão recorrentemente usada para demonstrar mais habilidade nas provocações). Estufando o peito e com um tom de explícita zombaria, começa a me gozar: ‘Você não manda nem em você mesmo’. Instantaneamente os dois rapazes começam a rir e se ajeitam como quem espera ver o calon “dobrar” 111 o garronzinho. Aproveitando o momento, o calon Leandro passa a “boca de lobo”112 para mim e, apontando para o buraco no chão, me dá um empurrãozinho. Eu mal começava a tentar executar a tarefa com um movimento desengonçado e ele me interrompe, olhando para os calons recém chegados: ‘Olha só, está parecendo uma galinha para botar ovo. Deixa ver se tem um ovo aqui. Está fazendo muito auê e o buraco continua do mesmo tamanho’. Os filhos de Nazaré, olhando um para outro, riam propositalmente alto, tentando me constranger. Quando conseguia minimamente não fazer movimentos tão extravagantes com o instrumento para cumprir aquele serviço, e até mesmo a recebia elogios de Bebeca (‘Está pegando o jeito da coisa’), rapidamente, Leandro tira a ferramenta de mim, pega nos meus dedos e diz: ‘Olha essa mão lisinha, não tem uma calo na mão. Nunca pegou numa enxada. Não sabe fazer nada. Estava quase desmaiando com uma coisinha dessa. Fiquei até com medo de você acertar alguém’. Todos ali, Bebeca, Nazaré e 111 Quando falam “dobrar” querem dizer ter habilidade de improvisação e pensamento ágil para determinadas atividades. Falarei de maneira mais detida quando abordar o tema da catira. 112 Nome de um instrumento articulado como uma tesoura que serve para fazer orifícios no chão. 139 seus filhos instigavam Leandro a continuar com a sua provocação, e eu, tentando provar que conseguia rebatê-las, retruquei: ‘Falar é fácil, quero ver vocês pegarem no pesado aqui (nesse momento ofereci a “boca de lobo” a Ricardo e Pedro)’. Leandro, com a cabeça em sinal negativo como quem dizia ‘Não mexe com quem você não conhece’ e visando não criar um clima de constrangimento e até belicoso, volta a dizer, tomando-me a ferramenta: “Dá aqui pra mim. Sou bruto, rapaz. Vou ensinar como faz bem feito. Falando sério agora, não tem como você saber fazer isso. A gente aprende a construir tenda desde pequeno. Quando pousa por aí num terreno, quem levanta ela é o homem mesmo, por isso tem que saber direitinho. Às vezes o filho ajuda, vai montar uma fogueira, caçar lenha no meio do mato. Já as mulheres vão pegar água, às vezes arrumar comida e ajudar um pouquinho a montar a tenda. Mas é o homem que faz isso, e se tiver um filho homem, ele também faz. Mas não essa grandona aqui, não. É uma menorzinha, a gente chama de locomotiva. Bem baratinha, mas qualquer coisa também, fura. Não presta... Pra ficar uns dois, três dias, segura as pontas bem. Sei construir porque tem que aprender na marra, sabe? De qualquer jeito. Um ajuda o outro a construir e vai compreendendo”. O Bebeca pega de volta o instrumento da mão do Leandro: ‘Você me respeita, me dá isso. Você fala demais, deixa o menino trabalhar. Ele é bom de serviço. Não tem tempo ruim para ele, não. Deixa ele quieto, Leandro’. Impondo-se por ser mais velho, Bebeca me protegia, e não havia como Leandro recusar o seu comando. Ainda assim não deixou barato e me jogou a “boca de lobo” de qualquer jeito, e começando a praguejar: ‘Vai trabalhar para nós aqui, então. Vou te contratar. Colocar esse brasileiro preguiçoso para ralar um pouco. Sem falar que brasileiro não sabe fazer nada direito. Se não tiver em cima, sai tudo avacalhado. Os pedreiros mesmo que estavam trabalhando lá em casa, vixe Maria. Vou falar para você, é só eu sair e quando volto a casa está tombada para um lado. Não sabem fazer um muro reto. Não sabem medir. Acaba que a gente conserta tudo. Pior, paga para fazer o serviço dos outros. Brasileiro é fogo, viu?’ (e todos calons concordaram). Logicamente, aquele discurso de Leandro era dirigido aos seus parentes calons ali presentes, e reforçava a ingenuidade e incompetência dos garrons nas construções de suas habitações, associando os brasileiros ao lugar de trabalhadores incompetentes. Bebeca, por sua vez, tentava suavizar o constrangimento da minha inserção numa atividade tipicamente reservada aos ciganos. Não foi a primeira situação em que ouvi comentários depreciativos relacionados aos brasileiros. Eles, inclusive, foram muitas vezes feitos em minha presença e dirigidos a mim, 140 (principalmente na presença de calons de fora do acampamento). Porém, em uma dessas situações, Ronin, percebendo que aqueles comentários poderiam de alguma forma me ofender, ponderou comigo: “Você entende né, Eduardo? Não é para destratar, não. É coisa nossa mesmo. Você já está entendo como as coisas funcionam”. Poderia citar outros casos de reclamações das diferentes condutas imputadas aos brasileiros não somente no caso do vínculo empregatício citado, mas também em outros aspectos, tais como a acusação de serem caretas, bobos, cafonas, sem palavra, sem valor e com preguiça113. As afirmações marcando tais distinções eram feitas orgulhosamente e também de maneira recorrente. Porém, não havia uma recusa radical ao convívio com os brasileiros, como se utopicamente houvesse um mundo sem eles e exclusivamente povoado por calons. Na realidade, houve ali o desejo de um maior resguardo do mundo dos brasileiros tanto devido a certos comportamentos condenados pela turma enquanto imorais (por exemplo, o mal trato com os mais velhos e a maneira das garrins de se vestir), quanto por causa do trânsito constante de brasileiros desconhecidos pelo acampamento (isto devido a uma das ruas do bairro, a Rua Novecentos e Um, estar localizada dentro do território cigano e ter um fluxo grande de pedestres durante o dia). Certa vez, ao me contar sobre a relação com os garrons residentes em torno do território cigano, Gilberto, de maneira reveladora, me coloca sua visão ideal da relação entre ciganos e brasileiros: “Eduardo, na minha imaginação, assim, coisa de sonho mesmo... o melhor era que existisse a cidade dos ciganos. Longe um tanto assim dos brasileiros ... nem tão longe. Daqui até lá no centro (centro da cidade, a cerca de 20 km), mais ou menos. Igual uma vilinha cigana, compreende? Os brasileiros iam lá catirar com nós e a gente iria receber eles de braços abertos. Tomava até um café, proseava um pouco. E depois os brasileiros tomavam seus rumos. E quando o pessoal daqui precisasse, também ia lá fazer uns rolos, vender umas coisinhas, eles também recebia bem a gente. Depois de fechado o negócio cada um voltava para seu canto, tranquilo. Imagina uma vilinha só de cigano. A gente chegando de tropa com as mercadorias tudo que catiramos. Ia ser bom demais”. Existe uma ampla bibliografia sobre a separação e distinção entre ciganos e não ciganos (existindo diversos nomes para denominação de não ciganos)114. Nesse contexto, pontuo a importância do conceito de frescura nessa distinção, apontando como determinadas características nele congregadas eram recorrentemente associados aos garrons. Dentre elas figuravam aspectos da relação com o corpo, com os alimentos, com a vestimenta, com a 113 Da mesma maneira, trato essas palavras como conceitos nativos que carregam significâncias diferentes daquelas usadas hegemonicamente por brasileiros. 114 Para uma discussão mais detalhada do tema, consultar: Ferrari ( 2010). 141 limpeza, com o trabalho manual, entre outros. Da mesma maneira, dentro da bibliografia cigana - e calon, especificamente - há grande referência à questão da pureza e da impureza, ligada principalmente à construção do corpo e da pessoa (FERRARI, 2010). Em minha pesquisa, porém, optei por usar a palavra frescura por ela congregar não somente a questão citada por alguns ciganólogos em referência à pureza, mas principalmente para trabalhar as questões que envolvem disponibilidade, possibilidade e vontade em situações simples de determinados trabalhos. Também, porque pode servir como medidor do grau de envolvimento dos brasileiros com o mundo calon. A própria palavra frescura revelava uma percepção específica de alguns aspectos do mundo dos brasileiros por aqueles calons, principalmente pelo fato de os conhecimentos e/ou convicções daqueles efetivamente constituírem-se como frescura do mundo cigano. E se, como anteriormente tratado, havia tanto uma afirmação da inadequação dos aspectos envoltos nesse conceito como um conhecimento da recusa do brasileiro em experienciar o cotidiano cigano, de maneira similar, ouvi aqueles calons dizerem ter ciência da insegurança dos brasileiros em relação aos ciganos. Tal sentimento era por eles dividido em duas facetas: o preconceito115 e a cisma. No caso da cisma, aproveito sua relação com a frescura enquanto um diferenciador e coloco-a na posição de uma autopercepção calon na relação com os brasileiros, concebida através da suspeita, do recolhimento e da belicosidade. Esclarecendo melhor, o pessoal da turma do Céu Azul afirmava ter consciência e domínio do imaginário dos brasileiros sobre o universo calon, reforçando haver uma visão deturpada, principalmente com a associação dos calons a estereótipos negativos. Apesar das generalizações feitas não guardarem consonância com a quase total passividade das relações com os brasileiros nos afazeres cotidianos, existiram casos onde se ficou evidente a percepção e operacionalização de uma visão específica dessa interação cigano/garron pela turma. Um caso exemplar da utilização, por parte dos calons, da suposta imagem construída sobre os ciganos pelos brasileiros116 foi em um momento de embate no acampamento referente à negociação de um dos terrenos circunvizinhos à casa de Gilberto. O desentendimento aconteceu em torno do terreno pertencente a algumas irmãs de caridade residentes nos 115 Novamente, trato tais palavras enquanto conceitos nativos, construtos realizados pelo antropólogo enquanto mediador entre dois mundos diferentes. Cabe frisar que, da mesma maneira de outros conceitos anteriores, o termo preconceito, por exemplo, não possui exatamente a mesma significância de seu uso costumeiro. Tal rememoração se faz necessária para evitar uma literalidade dos termos, para perceber como eles são operacionalizados. Tratarei posteriormente da temática do preconceito através das maneiras pelas quais foi operacionalizado o termo preconceito pelos sujeitos de pesquisa. 116 Para uma bibliografia mais especializada sobre o imaginário criado sobre os ciganos, olhar: FERRARI (2002). 142 Estados Unidos, e os calons se referiam à área como o “terreno das irmãs”. Segundo o Gilberto, uma dessas irmãs de caridade já havia visitado o local há cerca de cinco anos para murá-lo. Depois disso nunca mais voltara à região, e por isso as subsequentes negociações referentes à área eram mediadas por representantes delas no Brasil. Ainda segundo Gilberto, o terreno era subdividido em oito lotes iguais. Ficava localizado numa faixa que englobava o muro da sua casa até a extremidade oposta, e numa espécie de acordo tácito era permitido aos ciganos o acesso a essas parcelas de terra para deixarem suas criações pastarem. Porém era vetado o seu uso para moradia temporária ou permanente. O Ronin já havia comentando informalmente, em outra ocasião, o seu interesse e do seu irmão Gilberto em adquirir, dentre esses oito lotes, os dois primeiros, mais próximos à Rua Luís Cantagalli; porém, nunca mais havia ouvido menção a qualquer tratativa referente à compra desses espaços. Só voltei a ter conhecimento de qualquer negociação envolvendo o “terreno das irmãs” quando aconteceu o conflito que relato a seguir, e o associo-o à percepção da turma em relação a uma visão dos garrons sobre eles: Fragmento etnográfico 11: “Bárbaro é aquele que acredita na barbárie” “Chego correndo com uma empolgação diferente para falar com a Baiana. Estou em posse de cigarros feitos de ervas e preparados especialmente para incorporação. Era uma mistura de diversas plantas e raízes selecionadas justamente para expandir a mediunidade e facilitar trabalhos e outras demandas. Com o pacote de cigarro apertado no bolso, espio por entre o portão entre aberto da casa de Baiana e não a vejo. Bato palma sem conseguir conter minha expectativa de mostrar aquela iguaria e ver sua reação diante daquela novidade. 143 30 A imagem acima é um croqui do acampamento da turma do Céu Azul. A área sublinhada em azul marinho sinaliza os “terrenos das irmãs”, a área acima em azul compreende o “terreno das irmãs”, subdivido em oito lotes nos quais os dois primeiros seriam aqueles adquiridos por Gilberto. A delimitação pela cor roxa sublinha a extensão territorial do acampamento, que possuí duas áreas específicas dentro dele, diferenciadas por outras cores. A primeira delas, em verde escuro, delimita a parcela do acampamento proibida por Rene Santana de ocupação permanente ou temporária de habitações de ciganos ou brasileiros. Permitido somente a construção de uma pequena baia para os cavalos naquela local. Já a área sinalizada pela cor laranja possui como proprietário João Galveia, porém o uso do terreno é cedido a turma para a pastagem e descanso dos seus cavalos. A área compreendida em amarelo delimita os terrenos negociados por Gilberto e fora da pretensa área compreendida pelos terrenos de Rene Santana. A parte em vermelho delimita dois conjuntos habitacionais, o diamante de sangue 1 e o diamante de sangue 2. 144 Normalmente, Baiana sempre pedia cigarros para seus trabalhos, suas benzeduras, rezas, entre outras atividades feitas pelo seu guia, ou melhor, o guia que lhe protegia e fazia os trabalhos. Estava plantado ao lado da sua casa preparando outra série de palmadas frenéticas para ter certeza que realmente não havia ninguém na residência, porém, quando estava com as mãos erguidas já pronto, sou interrompido por Shelly: “O doidão, a velha está dormindo, vai acordar ela. A Lucinha saiu para comprar umas coisas ali na padaria, mas já volta daqui a pouco aqui”. E de maneira carinhosa me envolvia de lado com um abraço meio desajeitado e ria demonstrando que brincava ao me abordar daquela maneira. Troquei meias palavras sobre o tempo, os temas usais sem muita importância e subi o acompanhando até a casa de Ronin. E antes de chegar lá, Shely me pergunta: “O que queria com a velha”. A expressão “a velha” era uma maneira carinhosa de se referir a Baiana, a calin mais velha do acampamento, e mostrei o pocket de cigarro à ele, e em seguida houve uma reação performativa, tal como sempre via Shely fazendo. Ele arregalava o olho e dobrava os braços: “Jesus amado. Você está andando com esse tanto de Droga. Perdeu o juízo de vez homem”. E rindo, expliquei de maneira ansiosa sobre o cigarro, porém Shely não sabia para onde olhava e disparou: “Está drogado (Ronin chega na hora). Eduardo está chapado Ronin”. E ele: “Você está chapado, Eduardo?”. Solto um grande suspiro de desespero, e os dois começam a rir batendo de leve nas minhas costas. Mostro para Ronin o maço de cigarros e explico que era para uso especifico da religião e tinha propósito de ajudar nos trabalhos, e Ronin balançando a cabeça concordando, interrompe-me: “Tipo um cigarro aromático de cheiro”. E o Shely de maneira enérgica o interrompe: “Você não entendeu? É para fazer aquelas coisas da Baiana lá (e virando para mim). Isso daqui não da onda não né?”. Naquele momento estava mais confuso que os dois, e tento explicar novamente a finalidade daquele cigarro: “Isso nem fumo tem. Você pode fumar quantos quiser e não tem efeito nenhum de ficar doidão, assim”. Ao mesmo tempo em que acontecia aquele diálogo éramos 145 trespassados pelo fluxo constante de pedestres descendendo e subindo a Rua Novecentos e Um, e não conseguíamos manter por muito tempo a conversa, pois sempre alguém passava e cumprimenta-os, ou comentava que depois passaria no acampamento para concluir “aquela catira”. Entre o contingente de pessoas que passava ali, não somente os catireiros117 que chamavam atenção dois calons, além dos vizinhos mais próximos ou mesmo rostos conhecidos pela recorrência em que transitavam por ali despertavam a curiosidade de Ronin e Shely. E como sempre, atento a tudo que passava por ali, ambos suspeitam de um homem agachado que lentamente amarravam os sapatos e olhava como uma “cara ruim” para eles. Houve uma troca de olhares entre os dois calons, e Shely pega o cigarro da minha mão e ascende-o espalhafatosamente dando uma tragada forte: “Nossa esse baseado está muito bom. Vou ficar doidão demais (e falava alto aproximando- se do rapaz)”. Dando uns gritos agudos ia tragando e olhando para o homem que se apressava para acabar de arrumar o sapato e andava “catando cavavo” para longe de Shely. Por fim, o desconhecido simplesmente saiu sem conseguir finalizar o serviço. E Shely aproveitando que ele virou de costas gritava: “Isso mesmo, somos doidos demais da conta. Não mexe não”. Sem entender o motivo daquelas provocações faço expressão de discordância com a cabeça e Ronin me adverte: “Não pode deixar barato não. Os cara são folgado demais. Passa aqui encarando. Esses ai acha que cigano é tudo de errado. Se não viu o jeito que ele olhou não”. Mal acabava de pronunciar aquelas fortes palavras e um Fiat Uno estacionava no começo da Rua Novecentos e Um. Do automóvel saia um homem com roupa social e começou a medir com uma trena da parte do muro encostado na residência de Gilberto e vai subindo a partir dali. Na mesma hora, Ronin corre a procura de Gilberto e os dois vão “assuntar” o motivo daquelas medidas todas ali perto das suas casas. 117 Com o termo catireiro não faço menção àqueles que fazem catira, pois muitos brasileiros poderiam ocasionalmente realizar alguma troca, venda ou catira, e não serem considerados caiteireiro. O catireiro era aquele com “gosto” pela catira, e por isso tanto com regularidade nessa atividade e também com conhecimento e “jeito para o negócio”. 146 O rapaz, chamado Ricardo, responde que havia uma proposta de compra daquela área e estava apenas conferindo as medições certas para repassar ao ofertante. Na mesma hora, o Gilberto tenta esclarecer a situação mostrando uma série de documentos para provar a compra do terreno, especificamente os dois primeiros lotes, e por isso seria impossível alguém requerer aquela área. O funcionário olha detidamente aquela papelada, e com uma expressão de desconfiança agradece a disposição de Gilberto e devolve os documentos. O calon Ronin percebendo a indisposição daquela pessoa, marca com uma pedra até onde iriam os lotes comprados, e apontou para cima afirmando que depois da marcação poderia ser feita a medição pretendida. Coçando a cabeça Ricardo disse que entendia a situação apresentada, porém tinha ordens de fazer a medição desde o começo do murro, e dessa maneira foi descendo e começou a medir novamente partindo do muro da residência de Gilberto. Um pouco mais exaltado Shely parou do lado dele e disse: “Você não entendeu. Mede dali de cima onde está marcado. Liga ai para seu chefe e conserva direitinho que aqui não tem ladrão não. Mostramos o documento, então está tudo certo. Caça seu rumo”. E nitidamente constrangido com a situação, o rapaz tenta apaziguar os ânimos e começar a discar no celular afirmando buscar a melhor solução para o impasse. Quando acabou a ligação, o rapaz já se encontrava no alto da rua e acenou positivamente para os calons que sem muito ânimo e desconfiados responderam acenando de volta. Naquele momento, estavam reunidos na frente da casa de Baiana, Gilberto, Ronin, Poliana, Bebeca, Felipe e Shely, e aos poucos foi se retomando as conversas mais amenas, porém Bebeca fala de lado: “Olha lá o sem vergonha, ele está descendo devagarinho. Acha que não estamos vendo. Você aposta comigo que o cabeça dura vai tentar medir ali, bem debaixo do nosso nariz. Estou querendo dar um susto nele”. Descordando e balançando a cabeça, Gilberto sugeriria que não seria bom mexer com os outros e o Shely explica: “Não Gilberto, só um chega para lá. Espera ele descer mais um pouco”. Sem dar resposta negativa, Gilberto apenas sorriu de 147 Apesar de recorrentemente ouvir a afirmação dos membros daquela turma de que quem sempre queria enganar os ciganos eram os brasileiros, e de que não era somente na documentação a sua tentativa de enganá-los, parecia ser esperado um comportamento mais receoso dos garrons frente aos calons, principalmente nos assuntos e ocasiões envolvendo algum tipo de comprovação via documentação. Quando me explicava sobre a catira, Bebeca dizia de maneira clara sobre os constantes interesses maliciosos dos garrons em tentar enganá- los de alguma maneira: ‘Os garrons dizem que cigano gosta de enganar e que rouba os outros; que dá calote a rodo, a torto e a direito. Quem sempre tenta passar os outros para trás são eles. Não cumprem com a palavra. Muitas vezes falham (não pagam em dia) e nem sequer dão satisfação. Cigano nunca iria fazer isso’. Como mencionei anteriormente, a cisma era justamente esse comportamento de reatividade e suspeita em relação aos calons, figurando como um limite esperado da inserção dos garrons naquele mundo cigano. O preconceito, por sua vez, tinha dois sentidos: o de não relação total ou o de dificuldade extrema de interação por parte dos brasileiros. Por exemplo: ouvi muitas vezes a afirmação vinda dos calons de 118 Essa expressão era usada pelos meus interlocutores quando queriam pressionar alguém, principalmente para conseguir uma resolução mais breve nos momentos de catira. maneira ambígua esperando o desfecho da história: “Vocês que sabem. Olha lá heim”. Quando o rapaz estava agachado medindo os lotes, Ronin, Bebeca e Shely, levantam sincronizadamente em direção a ele, e começam a bradar: “Sai da ai”; “Você não entendeu”; “Toma rumo rapaz”; “Da linha”. O funcionário levanta assustado revelando seu semblante de extrema confusão com o “abafa118” recebido, e lentamente vai se afastando, porém para no meio do caminho ameaçando voltar. Nesse momento, Shely diz de maneira mais incisiva: “Ninguém vai mexer em terra nossa aqui não, isso aqui tem dono, está entendendo”. Na mesma hora, o homem se aproxima do carro procurando as chaves, totalmente aterrorizado, e calons percebendo a reação desproporcional apresentada por ele: “Vai embora. Somos assim mesmo. Somos bárbaros. Não percebeu? Selvagem de tudo. Male (mal) educados. Aqui só tem Chucro (e soltou um grito vendo o carro indo embora continuou). Esse não volta mais. Que atrevimento vir aqui assim e duvidar da nossa palavra.”. 148 que o brasileiro teria cisma em catirar com os ciganos. Tal suspeita, porém, não impossibilitava existirem as trocas, a convivência e coabitação entre ambos na mesma microrregião. Ainda que majoritariamente se esperassem comportamentos de frescura (repulsa ao modo de vida dos calons), cisma (visão estereotipada negativa dos calons) e preconceito por parte dos garrons, havia dois outros fatores que amenizavam essa postura reativa ao mundo calon e possibilitavam um convívio pacífico, recorrente e vital entre ambos. Um deles seria o fato de os calons serem conhecidos dentro do bairro; o outro, o de se igualarem aos garrons na categoria de ser popular119. Os dois aspectos estão intimamente ligados e se diferenciam em razão de o conceito de ser conhecido se dar relativamente ao tempo de permanência de diferentes grupos ciganos na região (aos olhos dos garrons não há distinção ou conhecimento específico de quais famílias estão e passaram pelo acampamento, mas um consenso amplo acerca da historicidade da “presença cigana” na região), enquanto o conceito popular está ligado a uma empatia e conhecimento de determinado modo de vida não exclusiva aos calons. Lembro de certa vez, ao comentar sobre os garrons desconhecidos, Leandro utilizar os dois termos citados para explicar uma empatia maior aqueles considerados populares, e ele me dizia: “Às vezes chega alguém aqui e não conhecemos o sujeito, mas se for popular que nem nós, desembolamos120 fácil” A partir dessa frase de Leandro, gostaria de expor mais sobre o que definiria esse segundo conceito. No meu entendimento, o popular estaria próximo ao domínio de uma vida compartilhada no bairro Céu Azul e, por isso, envolveria alguns fatores comuns e características difusas pela própria região adjacente ao acampamento. Dessa forma, o ser popular não era uma classificação de construção progressiva (como, por exemplo, o pegando o ritmo, onde no próprio verbo aponta para esse movimento), mas algo com maior ênfase na construção de uma trajetória mais extensa de contato com determinadas situações, posturas corporais, temas de conversa, concepções de violência e assuntos mais restritos ao cotidiano. Na classificação de um garron121 enquanto popular, essas características eram associadas a aspectos mais situacionais como, por exemplo, a partilha de determinados léxicos amplamente usados na região, principalmente durante a realização das catiras. 119 Aqui também se encaixaria a denominação garron amigo, porém, como já antes desenvolvido sobre essa classificação, foco nos dois outros conceitos de ser conhecido e popular. 120 São múltiplos os significados presentes nessa expressão, e nesse contexto está ligada à facilidade de conseguir conversar com um largo espectro de pessoas diferentes. 121 Não poderia afirmar com toda certeza que o conceito nativo de ser popular estivesse ligado à condição de ser calon, ou seja, que qualquer calon fosse popular. 149 Sublinho a linguagem como um aspecto ligado ao ser popular - e de maneira tão íntima que algumas vezes presenciei comentários acerca de uma “fala popular”. Na construção dos fragmentos etnográficos, ficou marcante uma linguagem particular dos moradores da região, e por isso escolhi manter integralmente várias expressões. Um dos exemplos do uso da intitulada linguagem popular aconteceu quando voltei ao acampamento após ficar um tempo sem visitá-lo, e na ocasião perguntei ao Felipe como estava a adaptação da pesquisadora Hannah Machado Cepik 122, que iniciara há pouco sua pesquisa no acampamento, com a aproximação ao “ritmo cigano”. Ele me respondeu da seguinte forma: “Está tranquilo demais. Ela tem a fala popular igual nós mesmo. Vocês são popular! Vem aqui e proseia tranquilo. Sem frescura, e nem nada. Tem problema nenhum” Além da linguagem, essa categoria congregou outros fatores como, por exemplo, o domínio de alguns trejeitos específicos ao se expressar, tanto na maneira de articular e cadenciar as palavras, com uma entonação e agilidade próprias na hora da fala, como em pronúncias bem precisas de determinadas expressões. E se existia um “regionalismo linguístico” 123 revelador da posição de cada garron classificando-os enquanto populares ou com/sem frescura, o próprio modo de se expressar através da linguagem verbal - nesse caso, sem levar em conta o conteúdo - também era um marcador do tipo de comportamento que ampliava as possibilidades de proximidade com os calons. A disponibilidade e voluntarismo para conversar com pessoas desconhecidas, e também uma maneira de se colocar nos diálogos com convicção, também eram valorizados enquanto qualidades positivas para aproximação e eventualmente criação de laços mais estreitos (afetivos) entre brasileiros e calons Além de uma forma particular de se comunicar, aspectos como a gestualidade, o ritmo da fala, a entonação, o conteúdo dos diálogos e principalmente o domínio de certo assuntos próximos aos calons também eram essenciais na valoração positiva de um comportamento nos momentos de interação interpessoal tanto entre brasileiros e calons, quanto entre calons. As pessoas com exímia maestria na condução de conhecimentos relacionados ao ato de catirar124, 122 A pesquisadora Hannah Machado Cepik começou a fazer campo em 2016 com a mesma turma do Céu Azul. Pude acompanhá-la durante algum tempo e vivenciar algumas situações que cito posteriormente. A sua monografia versa sobre memória e relação de gênero no acampamento e é intitulada de “Ser Calin, Ser Gajin: Noções de Memória entre ciganas do Céu Azul”. Foi defendida em 2017. 123 Não entro no mérito das controvérsias linguísticas envoltas no termo “regionalismo”. Com o termo, apenas ressalto especificidades léxicas, ortográficas e fonéticas presentes em determinadas localidades geográficas. A extensão dos grupos falantes que congregam determinadas características linguísticas também é extremamente mutável e de difícil identificação. 124 Os comentários sobre as catiras iam no sentido dos prazos, daqueles considerados “bons de pagar” e dos “caloteiros”, além da discussão dos preços de determinados produtos e sua qualidade, durabilidade e facilidade de venda. Havia também histórias de enaltecimento da trajetória pessoal (no caso, a conquista de posses através de uma grande habilidade nas catiras). 150 aos preços e modelos dos automóveis125, sabedoria no trato dos animais/crias – porcos, mulas, cavalos, galinhas126 –, experiência nas viagens127, conhecimento de diferentes tipos de construção 128 entre os temas. Porém, a ligação mais forte com os brasileiros - e, por conseguinte, a reversão das expectativas de cisma e preconceito - não se dava somente em decorrência dos temas tratados ou de comportamentos considerados mais próximos da vida daquele grupo cigano durante as interações, mas de certas vivências compartilhas e não exclusivas ao universo calon. Nesse caso, faço referência a uma gama complexa de inter-relações entre saberes construídos ao longo de uma trajetória coletiva/pessoal de experienciação de determinados contextos e a aprendizagem corporal, sensitiva e informacional de alguns temas/situações. A base do ser popular era justamente o domínio de algumas convenções, juntamente com sua atualização constante ao longo do aparecimento de imponderáveis e novidades inerentes dos devires (transformações) cotidianas. Assim aponta Roy Wagner sobre a simultaneidade da convenção e invenção na produção das realidades: “Se assumimos que todo ser humano é um ‘antropólogo’, um inventor de cultura, segue-se que todas as pessoas necessitam de um conjunto de convenções compartilhadas de certa forma similar à nossa ‘Cultura’ coletiva para comunicar e compreender suas experiências. E se a invenção é realmente tão básica para a existência humana quanto sugeri, então a comunicação e o conjunto de associações e convenções compartilhadas que permite que a comunicação ocorra são igualmente básicos. Toda expressão dotada de significado, e portanto toda experiência e todo entendimento, é uma espécie de invenção, e a invenção requer uma base de comunicação em convenções compartilhadas para que faça sentido – isto é, para que possamos referir a outros, e ao mundo de significados que compartilhamos com eles, o que fazemos, dizemos e sentimos. Expressão e comunicação são interdependentes: nenhuma é possível sem a outra” (WAGNER, 2012, p.87). As convenções associadas ao conceito de ser popular (tais como a postura específica na comunicação verbal/corporal, o conteúdo compartilhado nas conversas, as habilidades e 125 As conversas não eram somente sobre os modelos mais atuais dos automóveis, suas marcas e modelos diferentes, mas sobre histórias vinculadas a antigos veículos com notoriedade em determinadas épocas, além dos “causos” pessoais envolvendo a posse desses bens. A capacidade de reconhecer problemas mecânicos e elétricos também permeou com centralidade essas conversas. 126 Da mesma maneira que no ramo de automóveis, eram reconhecidas as habilidades de conhecimento q uanto a lugares de compra de cavalo, diferenças entre as espécies, bons tratos com as crias, habilidade no trato de doenças, além de um histórico de posse de diversos animais e de catiras os envolvendo, valorizando -se principalmente os casos de “manta” (vendas bem sucedidas) 127 No caso dos assuntos sobre as viagens, era valorizado o saber relacionado ao conhecimento de um número elevado de cidades, de diferentes rotas possíveis, do tempo de duração dos deslocamentos, da distância em quilômetros até o destino, dos caminhos alternativos para desvio, dos postos policiais e possíveis lugares de paragem de garrons conhecidos ou parentes. 128 Os assuntos referentes à construção de habitações - nesse caso, exclusivamente as de alvenaria - passavam pelo conhecimento dos preços dos materiais, pela perícia na execução das obras e por conhecimentos singulares na sua execução, tais como construção dos alicerces, colocação de tubulação, alinhamento e levantamento de paredes, reboco, entre outras habilidades. 151 conhecimentos desenvolvidos e reconhecidos coletivamente) aproximavam trajetórias de vidas díspares, ou mesmo reforçavam as diferenças construídas durante percursos dessemelhantes de sociabilidade e de concepção de mundo. Um dos exemplos reveladores dessas convenções e atualizações presentes nessa categoria pode ser visto em dois episódios sucedidos no acampamento. O primeiro ocorreu durante uma conversa nas imediações da barraca de Bandeira129 acerca da ingerência de Renê Santana, pretenso proprietário da área no território cigano. Sua visita tinha como intenção acertar o contrato realizado com alguns calons para remanejamento das tendas na área e negociação da venda de alguns lotes aos ciganos. Ao mesmo tempo, porém, havia uma resolução da Defensoria Pública do Estado proibindo qualquer modificação na área até o término da ação de regularização iniciada. Mediante o descumprimento da resolução por Renê Santana, a polícia militar foi acionada para registrar o boletim de ocorrência. Contudo, Vieira, tio de Bebeca, tinha uma opinião resistente à solicitação do efetivo policial no acampamento e, por isso, ficou contra a minha posição de chamar o efetivo. Esse episódio me rendeu uma inimizade momentânea com ele e, por conta dela, fiquei um tempo sem frequentar o acampamento (voltando posteriormente a visitar somente a família de Gilberto). Quando a situação havia se normalizado e eu gozava novamente de uma proximidade à “área de Vieira”, Bebeca ainda tentava convencê-lo a confiar novamente “no amigo garron”. Para isso, seus argumentos não entravam no mérito da correção ou não da minha atitude no caso relatado – até porque Bebeca concordava com Vieira sobre meu erro-, mas se direcionavam a dois aspectos: o primeiro relativo a características compreendidas pelo ser popular, e o segundo, ao conceito de ainda ser menino. O diálogo aconteceu sem qualquer constrangimento em relação à minha presença, com Bebeca rebatendo os olhares de desagrado de Vieira sobre mim e pronunciando em voz alta em minha defesa: “Olha só, Vieira. Coitadinho do menino. Mora aqui perto de nós, numa casa ali, bem simples. Vai lá depois dar uma olhada. Está sempre pegando ônibus aí, correndo de um lado para outro... nem um carrinho fuleiro para quebrar o galho. Não tem esposa, mora 129 Existem inúmeras delicadezas ao tratar de assuntos tão sensíveis e permeados de repercussão quanto à questão de gênero, principalmente envolvendo comunidades não hegemônicas. No caso, faço esses parênteses para justificar a minha escolha de mencionar as habitações através do nome do esposo, e no caso, cito Bandeira para fazer menção ao casal Bandeira e Márcia, e reforço que tento não transplantar uma ideia de relação e perfomatividade de gênero exterior à comunidade, e simplesmente me aproprio da maneira nativa de fazer referência às famílias através do nome dos esposos. Logicamente, quando a família é composta por um casal, pois quando a família tinham outras configurações, havia outras maneiras de citar tais agrupamentos. No caso, já havia colocado anteriormente que a atual pesquisa está mais perto do “mundo dos homens”, porém usar como parâmetro o mundo masculino ao pautar diversos temas não tem ligação alguma com qualquer posição pessoal de concordância das relações assimétricas de gênero presenciadas entre o grupo. Tais debates precisam ser feitos com a devida complexidade necessária e também exposição precisa dos comportamentos assimétricos guardando reserva sobre as diferentes concepções dessas assimetrias e a criação de espaços cosmopolíticos necessários de afetação e compreensão das especificidades de cada concepção de mundo. 152 sozinho de tudo. Está jogado no mundão. Nem o pai e mãe estão perto para acudir. Ele mesmo faz a comida dele, já trouxe para nós comer uns trequinhos aí na maior boa vontade. Volta e meia toma uma (cerveja) aqui com nós, na boa. Não fica cheio de dedos. E errar todo mundo erra. Você sabe disso. Agora o menino é amigão nosso. Já emprestou dinheiro quando precisou... ponta firme. O nome dele estava crescendo com a gente. Fazendo as coisas tudo direitinho. Menino trabalhador ele” A minha defesa era feita baseada em minha aproximação ao ser popular, que trazia uma espécie de elo entre os brasileiros e calons apesar das experiências históricas diferentes. Dessa forma, o ser popular aparecia como um critério de tangibilidade e proximidade entre ambos os lados - principalmente mediante à necessidade de contato intenso e frequente em favor das relações de troca (catira) -, além de uma pertença mais ampla envolvendo vivências particulares compreendidas por um ethos abrangendo a região do Céu Azul. No relato apresentado, pode ser vista de maneira bem nítida a tentativa de Bebeca em associar meus afazeres diários e comportamentos recorrentes de brasileiros com algum tipo de afinidade com a turma; e apesar da ideia de regime de trabalho e suas concepções serem diversas daquela imputada aos brasileiros, ainda assim existia uma valoração positiva do trabalho enquanto labuta. A expressão “menino trabalhador” era recorrentemente usada em situações de incentivo à minha permanência nos espaços de sociabilidade do grupo ou como súplica para a compreensão das minhas gafes em situações de inadequação. Também era utilizada como contra-argumentação visando evitar uma tentativa de manta130 desproporcional nas catiras em que eu me envolvia no acampamento. Nesse caso, o ser popular, enquanto conceito nativo, estava relacionado a um tipo de comportamento associado aos moradores do bairro que mantinham contato mais frequentes com a turma, e apesar daquele grupo calon não valorizar a rotina pertencente ao trabalho fixo, ou mesmo considerar o ato de trabalho como um valor por si só, havia uma empatia com o labor/esforço envolvido em certas ocupações dos brasileiros. Cabe ressaltar que o entendimento do conceito de trabalho pela turma era especificamente direcionado a ocupações, ofícios e afazeres associados algum tipo de rotina mais delimitada (mesmo aqueles serviços intermitentes ou com alto grau de autonomia). Por exemplo, quando os 130 A expressão manta traduz a conquista de um excedente monetário via catira. Uma palavra similar seria lucro, porém esta tem uma carga valorativa agregada diferente da catira, pois obter lucro não pressupõe um esforço, conhecimento dos produtos e convencimento do parceiro de troca. Já a manta dentro da catira pressupõe o domínio de uma miríade de habilidades no momento da troca pelo catireiro (quem faz catira). 153 homens eram indagados sobre possíveis trabalhos realizados no acampamento, apenas o ofício de carroceiro era elencando dentro da concepção131. Dessa forma, o ser popular estava associado a saberes específicos como, por exemplo, o tipo de ofício (trabalho), as maneiras de morar, as características e habilidades em construção (trato esses aspectos enquanto afazeres, habilidades e ocupações, conhecimentos e experiências frutos de uma vivência circunscrita a determinados contextos e enquanto fatores fundamentais de proximidade com alguns brasileiros). Por outro lado, também se relacionava ao habitus envolvendo uma construção corporal (corporalidades), processo de sofrimento social, convívio com alto índice de violência urbana e o tratamento da agressão física enquanto compreensível em certos contextos, e nesse caso, completamente inacessíveis a mim. Apesar da minha tentativa de interagir nas diversas atividades cotidianas nas imediações do acampamento e do consequente e progressivo avanço no entendimento da dinâmica do bairro, os fatores elencados acima eram de uma ordem não traduzível ou acessível de maneira mais imediata (ou através de um esforço mais explícito de inserção). Para deixar mais nítidas essas características de ordem menos performática - que são percebidas na construção social dos corpos em decorrência de uma socialização prolongada (LE BRETON, 2003) -, posso citar o exemplo do seguinte caso envolvendo alguns membros da turma do Céu Azul: 131 Logicamente, quando a turma não reconhece certas maneiras de adquirir renda enquanto trabalho, tal fato não permite aferir ociosidade por parte dos ciganos. A existência de outras maneiras legais diferentes dos trabalhos formais para adquirir recursos financeiros é justamente uma das características fundamentais para a dinâmica econômica do grupo pesquisado. Tratarei com mais vagar sobre a concepção do trabalho posteriormente, quando desenvolver mais detalhadamente sobre a catira. Fragmento etnográfico 12: “A magia está entre os quintais” Novamente, encontro-me observando as novas miudezas descobertas em cada visita feita ao quintal da casa de Gilberto. Um casal de pavão recém catirado na última ida à Bahia corre entre as crianças. As galinhas de angola povoam a tarde silenciosa com seu cacarejo estridente. Periquitos pechinchados aos arredores do acampamento. O milho plantando para complementar a dieta dos cavalos. Como dizia Bebeca: “Agradar os bichinhos”. E a as folhas de arruda e de guiné coletadas e preparadas para os banhos de limpeza feitos por Baiana. A 154 serralha (um tipo de legume) se misturava as margaridas, as Espadas de São Jorge e aos pés de Manjericão ao arredor do canteiro. De um dia para outro se levantava um galheiro posicionado em um canto qualquer no canto do muro. Por conta da minha curiosidade sobre ele, Gilberto me explica o motivo da sua construção: “Dizem por ai que a gente rouba os outros. Pode levantar nas delegacias tudo ai da região para ver se tem alguma reclamação nossa. A gente é pacífico de tudo. Não faz mal nenhum. O pessoal que fica olhando desconfiando a gente quando entra nos lugares por cisma mesmo. Acusa a gente de roubar, mas não tem anda a ver. Ficamos no nosso canto. Até que aqui ninguém faz mal não. O pessoal do bairro é tranquilo, a gente já conhecido. Agora tens uns que ficam apontando o dedo para o cigano, mas se deixar, e capaz dos outros roubarem nossas galinhas, e acusarem a gente. Por isso fazemos tudo direito. Andamos na linha para não dar motivo”. Ouvia a prosa de Gilberto enquanto ia ao mesmo tempo remanejando pequenas pedras perto das plantas para fazer um canteiro. A vida diária daquele grupo também consistia em constantemente refazer o quintal, e como tal, além dos afazeres mais corriqueiros como dar comida as galinhas, reaproveitar os objetos descartados no chão, recolher as roupas no varal, ajeitar alguns montes de terra sobressalentes, também se produzia um fluxo constante de compradores/vendedores, brasileiros conhecidos, catireiros, e parentes que transitavam naquela área e rotineiramente atualizavam um ao outro sobre as histórias ocorridas no bairro e também em outros acampamentos. Como dizia Gilberto, “sempre inventava uma moda” ali no terreiro e por isso estava sempre em movimento, ou, ainda segundo ele: “Se a gente para, enferruja”. Esse ato de fazer o quintal diariamente envolvia momentos banais como ensinar um filhote de cachorro, trocado (catirado) por algumas ferramentas, a não estragar as plantas recém-plantadas. A montagem da piscina de plástico nos dias menos aprazíveis de verão, e Patrícia me dizia: “Nunca vamos à praia. Para quê? Coisa sem graça. Preferimos essa piscininha de plástico aqui. Essa história ai de festa brasileira né com nós não. 155 Carnaval temos horror. Pessoal vai achar que a gente é palhaço com os vestidos coloridos. Aquela tal de festa junina só vamos na da escola para levar Lorena. Pessoal fica achando que a gente dança (fazendo referência a dança cigana). Capaz que vou dançar daquele jeito”. Aos poucos ia conhecendo os sons e aromas, o calor e a poeira, a excitação da primeira visita ao acampamento. As noites geladas de inverno envolta da fogueira e as previsões do tempo sobre os céus cinzentos e sombrios em pleno meio dia. Sol rachando a tintura dos chapéus. Cheiro de suor grudado na camisa. Café recém passado. Relincho ao longe, cavalos sendo amansados. Realmente disfarçado na brisa chega à chuva, como prévia Vieira. A memória conjugando o agora, o tempo de correria cigana. A horta é retomada, o rio abandonado, “isso não é córrego, é esgoto”, como sempre ouvia de Bebeca. O murro adormece no chão, logo se ocupa, logo se expulsa. Sentado na varanda do Gilberto, já começo as ser reconhecido pelos outros calons: “Eduardo, né?”. A Baiana complementa: “Doutor Eduardo, respeito que o menino é estudado”. Chegava ao quintal de Gilberto novamente, porém devido ao andamento de uma obra realizada nas imediações do acampamento mais próximo da Rua Radialista José Baluarte. A construção da casa de Leandro rendia a maioria dos assuntos presenciados entre os homens, e aquele que gerava a maioria das discussões acaloradas. Sigo Gilberto até a construção, e sento na beirada do meio-fio para acompanhar o levantamento de uma das paredes da obra. A maioria dos homens adultos, Bebeca, Vieira, Shely, Leandro, Nandinho e Ronin descansavam perto de uma árvore no final da Rua Radialista Abel dos Santos e também conversavam, principalmente, sobre a incompetência dos brasileiros contratos para executar simples orientações passadas nas obras. E ao mesmo tempo em que existia comentários depreciativos em relação a competência dos garrons contratados, e existia um orgulho de poderem contratarem brasileiros para aquela finalidade. Quando cheguei no meio da conversa daquela “ciganaiada” ( forma como a turma se referia a um agrupamento de ciganos), o tema do diálogo era justamente a 156 dificuldade dos “pedreiros (trabalhadores da construção civil) conseguirem construir, com a devida qualidade esperada, as paredes da residência de maneira alinhada, porém, mal havia chegado, e Shely reparava nas minhas vestes e comentava: “Olha só, gente. Está usando calça para tampar a tornozeleira, por isso que estava sumido. Fazendo o que não deve”. E Ronin respondendo por mim, prevendo que não conseguiria responder aquela provocação: “Só se for roubando coração. Falta dinheiro, mas sobra amor, né Eduardo”. Não era nenhuma novidade Shely e Leandro testarem-me com algumas provocações, e justamente, porque não conseguia acompanhar a agilidade deles em responder sua jocosidades, e por isso, era alvo frequente das suas brincadeiras. Naquele caso em particular, Ronin me auxiliava diante daquela situação desafiante, porque foi ele que me aconselhou a mudar meu vestuário, principalmente com o uso das calças. Segundo Ronin, a mudança na forma de se vestira era visando “pegar o ritmo deles”, ou ainda como dizia ele: “Você come aqui com gente, anda com a gente, sabe como todo mundo vive, fica aqui no meio de nós. Tem que começar a se vestir igual também”. Passada a tentativa inicial de “me dobrar”132 feita por Shely, consegui passar despercebido no meio daqueles calons. Aproveito as brincadeiras descontraídas feitas sobre os brasileiros, e insinuo ser um garron “bom de serviço” e que conseguiria cumprir os comandos nas obras (Logicamente, minha afirmação se dava dentro de um contexto de descontração, e justamente por conta do teor desinibido dos comentários me senti a vontade para também fazer apontamentos mais jocosos) Apesar da explícita ironia da minha fala, Shely aproveita para retomar suas investidas: “Sabe? Sabe mesmo? Reboca aqui então. Vem reboca aqui cigano. 132 Esse termo era usado recorrentemente dentro de algumas disputas verbais envolvendo relações de jocosidade e também nas negociações de catira para expressar o momento em que um dos envolvidos não tinha capacidade de articular uma resposta, dar uma contra proposta ou contornar a situação exposta. O ato de “dobrar” era visto como uma habilidade importante aos catireiros. 157 31 32 158 Mistura o cimento para nós e te dou cinquentinha pelando aqui na hora (cinquenta reais). Vamos ver se está bruto. Esse ai nunca que já pegou no pesado”. Quando acabava de pronunciar aquelas palavras, despontava do outro lado da rua a Juninho, e ele vinha com uma das mãos encolhidas e a outra por cima fazendo pressão. No mesmo instante se fez um silêncio geral, e todos acompanhavam com o olhar o Juninho se aproximar, suspeitando que ele havia feito alguma coisa indevida, e Vieira, de maneira desconfiada, pergunta: “O que você anda arrumando Juninho?”. Tentando disfarçar algo em sua mão esquerda, encolhia o braço e dizia repetidamente não ser nada. Nandinho chega sorrateiramente e tira uma das mãos revelando um inchaço considerável, com escoriações e sangramento nos dedos. Esperando se depara um ferimento mais severo, Nandinho olha decepcionado para o Juninho, e comenta minimizando o que via: “Para de onda, Juninho. Isso nem está ruim assim. Uma coisa atoa demais”. E Juninho concordando com a afirmação balançava a cabeça e pegava um pouco de água oxigenada para colocar desajeitadamente na mão, enquanto ela tremia de maneira involuntária. Sem conseguir esconder meu incômodo com a aparência do sangramento, transpareço em meu semblante um a preocupação com o estado de Juninho, e alerto-o em tom de brincadeira: “Isso ai vai precisar de ponto para fechar. Sua mão vai acabar caindo”. Logo, a atenção generalizada se concentrava no motivo daquele ferimento e não na gravidade dele em si. Visivelmente nervoso Juninho explicava como havia adquirido aquele corte e afirmava ser por conta de um desentendimento com sua esposa que havia tacado um aparelho celular em sua direção, e por causa do lançamento do objeto, acabará usando uma das mãos para proteger o rosto. Naquele momento houve uma gargalhada quase que uníssona de descrédito em relação à história contada, e ainda pior, houve uma cobrança pública pela “surra” que tomou da “sua mulher”. Ao ponto de Leandro comentar, “não sei qual é pior, você mentir ou apanhar da sua mulher. Você não vale mesmo”. Apesar de estar totalmente absorvido pela cena que transcorria de maneira rápida, o 159 Minha reação ao ferimento sofrido por Juninho (vista como desproporcional por Shely) e meu desconforto com as jocosidades referentes ao uso da tornozeleira eletrônica revelavam não só minha distância de um contexto com uma tolerância diferente ao contato físico, mas também outra percepção, reação e convívio com casos de vulnerabilidade social. No caso, quando havia determinadas provocações envolvendo contanto físico mais intenso por parte dos calons homens (principalmente em brincadeiras envolvendo certos tipos de afirmação de virilidade e força enquanto marcadores do “ser homem”, “macho”, “bruto”), esforçava-me para performar – logicamente, de maneira insuficiente - alguns trejeitos considerados como próprios do comportamento masculino, tais quais: cuspidas no chão, formas de sentar com as pernas abertas, ameaças de deferimentos de socos, provocações excessivas, autopromoção em relação aos ganhos pelas catiras, entre outros. Porém, a minha própria construção corporal durante minha trajetória de vida revelava uma distância intransponível da corporalidade construída por aqueles calons e mesmo por brasileiros mais próximos à turma. Ainda trabalhando com a perspectiva do ser popular enquanto um agregado de elementos compartilhados, e considerando fundamentalmente a apresentação e presença do corpo no espaço como revelador de diferenças, destaco aspectos ligados à vulnerabilidade social133 e à concepção particular cigana sobre o trabalho como marcadores importantes para o enquadramento dentro dessa nomenclatura. 133 Uso a vulnerabilidade social como consequência de alguns processos de segregação e urbanização envolvendo determinados projetos de cidade, e as consequentes relações de certas populações com o espaço urbano e também as estratégias usadas no acesso a bens. sangue pingando dos dedos de Juninho não me deixavam concentrar integralmente no conteúdo das falas, pois continuava reparando no estado do ferimento. E Shely reparando no meu semblante de assombro, intervém: “Esse ai nunca deve entrado numa briga! Não tem uma cicatriz. Olha o rosto lisinho dele. Duvido que já tomou um safanão bem dado. Vem aqui que vou te dar um chacoalhada boa”. Todos rindo dando-me pequenos cutucões, e Gilberto vem em minha defesa: “Espera ai gente ... menino é estudado, mas é simples que nem nós. Deus deu o dom do estudo para ele. Está crescendo na vida. É um homem de valor. Aprendendo a ser um homem certo. Menino é estudado só que não tem desculpa com ele não. Sem frecuraiada (frescura)” 160 No fragmento etnográfico 12: “A magia está entre os quintais”, pode-se constatar, por meio da fala de Shely, uma naturalidade em relação ao convívio ou proximidade com fenômenos envolvendo vulnerabilidade social. E, asseguro, não foi somente no contexto do relato circunscrito acima que presenciei uma visão de normalidade frente a esse tipo de situação. À época em que residi próximo ao acampamento, relatava com espanto escutar no período noturno vários barulhos de disparos de armas de fogo nas proximidades da minha residência. Havia, por parte dos meus interlocutores calons, uma minimização dos episódios sob a alegação de serem comuns na região (segundo eles, ‘as perseguições de policiais aos bandidos’). Apesar de um tratamento corriqueiro da temática, sem qualquer espanto com as reiteradas situações de vulnerabilidade social presenciadas na região (dentre elas casos envolvendo abordagens policiais inapropriadas e o constante conflito entre o efetivo policial e pessoas envolvidas com a venda de entorpecentes no bairro vizinho ao acampamento), havia um discurso comum daquela turma em referência à sensação do aumento da violência na região. A concepção e a utilização do termo “violência” pela comunidade estavam circunscritas ao aumento da incidência de determinados crimes, principalmente ao roubo, furto e assassinato. Sobre a incidência desses fenômenos nos arredores do acampamento, Gilberto certa vez comentou ter a sensação do ‘aumento dos bandidos no bairro nos últimos tempos’, porém, concomitantemente, não havia casos de desentendimentos diretos entre os ciganos e possíveis contraventores (recorrentemente classificados por membros da turma como bandidos). Devido à presença histórica dos ciganos na região, não havia constrangimento por parte desses bandidos em relação aos membros pertencentes ao acampamento, tal como apresenta Gilberto: ‘Eles (os bandidos) não mexem com o pessoal aqui, não. São bandidos, mas respeitam os mais antigos da área. A gente está aqui há um tempão já. Eles sabem disso. Não pode chegar assim do nada aprontando na nossa área. Vemos umas coisas erradas, mas não podemos fazer nada, somos pequenos. Não temos força. O que podemos fazer é só não misturarmos com eles. De jeito nenhum! Como sabem que não somos de confusão, de coisa errada... Você está aqui no meio de nós, vê que somos pessoal direito. Andamos na linha. Nem tem aborrecimento. Cada um para seu lado’. A fala indica a experienciação e percepção de fenômenos complexos relacionados à violência urbana 134 pelo prisma da impotência e presença recorrente desses delitos. Esse testemunho de algumas situações de vulnerabilidade social na região sem uma reação de 134 Cito fenômenos o da especulação imobiliária, acesso desigual a serviços básicos e moradia em área de risco como possíveis geradores ou agravadores de situações de vulnerabilidade social. 161 espanto ou inibição revela outro tipo de vivência com esses fenômenos. A maneira jocosa ao se referir à tornozeleira eletrônica citada no fragmento etnográfico 6 foi apenas um de uma série de outros comentários informais envolvendo a reclusão de brasileiros em regime semiaberto. De um lado, tais comentários indicavam um convívio indesejado (mas permanente) com situações como o grande número de encarceramentos presenciados no bairro135 e a recorrência de pequenos delitos nas adjacências do acampamento. De outro , a marcante jocosidade utilizada para tratar da temática também tinha como propósito um enaltecimento moral por parte dos meus interlocutores em vista da raridade dos casos em que os eram reclusos por conta de infrações. Segundo alguns membros da turma, os calons não cometiam atos de delinquência136 justamente por serem alvos preferenciais das abordagens da polícia. Minhas tentativas em estabelecer diálogos que perpassassem, mesmo que tangencialmente, as percepções, histórias, narrativas e sensações sobre a violência (da maneira que meus interlocutores de pesquisa a denominavam) mostravam-se infrutíferas na maioria das vezes. As dificuldades se deram pela ausência de um repertório de referências sobre os recorrentes casos de vulnerabilidade social presenciados nas redondezas do acampamento ¸ principalmente pelo pouco tempo em que tive oportunidade de residir no bairro. Além disso, eu não gozava de uma trajetória de vida envolvendo administrações de situações tão latentes dessa violência relatada pelos interlocutores de pesquisa. Dessa maneira, não obtive empatia pelos interlocutores calons pela via do conhecimento e lida diária com a questão (tratando-a enquanto característica fundamental do ser popular). Ao contrário, devido ao meu desconhecimento de uma dinâmica específica da região envolvendo o constrangimento de ocorrências vinculadas a determinados delitos, houve uma diferenciação constante da minha pessoa sob o epíteto de menino estudado, principalmente quando me silenciava diante de tais assuntos. Em um dos relatos cedidos pelos calons sobre as situações recorrentes de violência137no bairro, pude perceber uma relação de contraste entre a classificação menino estudado e o 135 Não ouvi somente do calons interlocutores de pesquisa sobre a alta indecência de determinados crimes na região, mas presenciei relatos de comerciantes do alto índice de criminalidade no bairro. Existem também reportagens, por mais que sejam limitadas, corroborando tais afirmações. Olhar a reportagem do jornal O Tempo sobre a criminalidade na Rua Maria Gertrudes Souza (anexo 1), fonte: http://www.em.com.br/app/noticia/gerais /2016/04/23/interna_gerais,755762/o-mapa-do-medo-em-bh.shtml. 136 A diferenciação com os brasileiros passava também pela afirmação enfática do não encarceramento dos ciganos, sendo enaltecido enquanto um valor, porque sendo alguns interlocutores quem precisa roubar é brasileiro que não sabe ganhar a vida. 137 À frente tratarei mais especificamente das diferenças de significados pertencen tes ao termo violência usado por membros da turma, porque, além de enquadrar alguns delitos já citados, o termo também fazia referência a 162 conceito de ser popular, empregada principalmente em momentos de diferenciação de aspectos pertencentes a determinadas convenções inacessíveis àqueles que não presenciam cotidianamente situações classificadas enquanto de violência e, também, quando em contextos relacionados a afazeres envolvendo esforço físico continuado (classificado pelos meus interlocutores ciganos como pegar no pesado). O caso teve como objeto principal a abordagem policial a algumas pessoas suspeitas de cometer delitos, realizada em frente à casa de um dos calons138 moradores do acampamento. O cigano Ronin me expôs o caso da seguinte forma: ‘Eduardo, você não acredita o que aconteceu aqui ontem. Vou contar para você entender a judiação que sofremos aqui de vez em quando... Uns marginais, bandidão139 sabe? Estavam aprontando umas bagunças por aí e do nada subiram voado (correndo) a rua na frente da casa do Simão. Por sorte a polícia parou para dar uma dura140. Com aquela barulhada toda, o Simão saiu na porta da casa dele para ver o que estava acontecendo, né? Tarde da noite, uma confusão danada. Ele tem esposa e filha, e tem que proteger a família... O Simão abriu o portão devagarinho para dar uma olhada, e os homi141 já vieram de grosseria. E falaram desse jeito: “Não está acontecendo nada, passa para dentro, agora!”. E o Simão tentou amansar ‘os homi: “Né assim que trata os outros não, pêra aí. Ouvi uma barulhada e vim ver o que era”. Era aquelas polícia de ‘caminhonetona’, toda de preto, e ameaçaram levar ele preso sem ele fazer nada. A poliça (polícia) avisou ele assim: “Você que ir detido? Então cala a boca e entra”. Ele não é bobo e nem nada, saiu quieto para dentro de casa... Compreende o que eu falo, Eduardo? Sei que você é menino estudado que não vive essas coisas aí de bandidagem, mas compreende o que eu falo? Você já é errado porque é cigano, e é duas vezes mais errado se for fazer gracinha, arrumar confusão à toa. Por isso a gente não se mete na vida dos outros’. Justamente a minha posição de menino estudado não me dava acesso às situações vivenciadas pelo grupo. Da mesma forma, minha concepção de agressão física, ou tolerância ao contanto físico de forma mais intensa, eram diferentes daquelas pontuadas pelo calons. um sofrimento social enfrentado historicamente pelos ciganos, aqui citado de maneira genérica, por membros da turma. 138 Quem relatou o fato ocorrido foi Ronin, porém, a cena se passou com outro cigano morador do acampamento que não cito pelo resguardo à sua pessoa dada à situação apresentada. Coloquei o nome fictício Simão ao invés do real. 139 Houve uma diferenciação de sentido do uso das palavras bandidinho, bandido e bandidão pelos meus interlocutores calons. A nomenclatura bandido contemplava as duas outras, enquanto o termo bandidão fazia referência aos contraventores considerados mais perigosos (como traficantes e assassinos). O termo bandidinho, por sua vez, contemplava aqueles envolvidos em infrações mais leves (por exemplo, furto e roubo sem agressão). 140 A expressão dar uma dura na frase faz menção à abordagem policial feita aos considerados bandidões. 141 A o termo os homi (os homens) faz referência ao efetivo policial, especialmente à Polícia Militar, que tem como função primária o patrulhamento do território compreendido pelo batalhão de origem de cada efetivo. 163 Minha visão de agressão física estava próxima de uma espécie de violência enquanto a comunidade a classificava na qualidade de briga (apesar do termo manter consonância com a nomenclatura usada por brasileiros, o sentido encarnado nesse conceito possui detalhes importantes). Por exemplo: era esperado que possíveis querelas acabassem em briga e, portanto, alguns desentendimentos com efetivo reflexo no âmbito da agressão física eram recorrente. Mesmo Ronin, alguém dito pacífico, havia me dito que dificilmente, ao longo da vida alguém conseguiria evitar as brigas142 porque, segundo ele, ‘você acaba defendendo um parente. Sai em defesa dele. Às vezes nem está envolvido, mas acaba sobrando’. 3.2Pegando o ritmo com o Felipe e Gilberto. “Isso me traz àquilo que os antropólogos costumam chamar de observação participante. Eles querem dizer com isso que, na medida do possível e do conveniente, o pesquisador deve viver a vida do povo que está estudando. Esse é um assunto complicado, e aqui falarei apenas de seu aspecto material. Percebi que, se eu queria saber como e por que os africanos faziam certas coisas, o melhor era fazê-las eu mesmo: possui uma cabana e um estábulo, como eles; cacei com eles, com lanças e arco-e-flecha; aprendi o ofício de oleiro; consultei os oráculos; e assim por diante. Mas é preciso reconhecer que há um certo fingimento em tais esforços de participação, e os povos que estudamos nem sempre os acolhem bem. Na verdade, entra-se numa cultura, mas ao mesmo tempo guarda-se uma distância dela. Não é possível ao antropólogo tornar-se verdadeiramente um zande, um nuer ou um beduíno; a atitude mais digna a seu respeito talvez seja a de manter-se, no essencial, apartado deles. Pois, de qualquer modo, sempre seremos nós mesmos e nada mais – membros de nossa própria sociedade, visitantes numa terra estranha. Talvez seja melhor dizer que o antropólogo vive simultaneamente em dois mundos mentais diferentes, construídos segundo categorias e valores muitas vezes de difícil conciliação. Ele se torna, ao menos temporariamente, uma espécie de indivíduo duplamente marginal, alienado de dois mundos” (Evans-Pritchard, 2005) Como almejava concretizar minhas pretensões de transpassar a superficialidade de algumas respostas protocolares às minhas indagações iniciais e, concomitantemente, propiciar uma atmosfera convidativa a um comportamento menos evasivo dos meus interlocutores, invariavelmente, eu precisava aprender a me portar de maneira adequada, enquanto “homem”, em determinados ambientes compartilhados com os calons. O sentimento de fraternidade 142 Existe uma diferença entre briga e guerra, porque a primeira era vista como algo mais comum e de curta duração, enquanto a guerra era um estado de belicosidade mais permanente. 164 nutrido junto à família de Gilberto143 me ajudou a conseguir ter melhor acesso à realidade da turma. Por exemplo: construí um relacionamento com Felipe pautado na sua tentativa de me inserir no mundo da catira e, para isso, instruía-me de maneira informal em relação às tratativas necessárias, trejeitos esperados, peculiaridades na gestualidade e obediência no tempo dos prazos, além de uma série de características e saberes necessários ao domínio da complexa negociação envolta pela catira. Apesar de uma proximidade que criamos, a razão para seu entusiasmo em me instruir no aprendizado da catira veio pela necessidade de condicionar o meu comportamento a uma conduta masculina necessária à minha permanência dentro daquela socialidade. Como esse aprendiz, não tive acesso às grandes catiras (negociações de grande valor), mas apenas às catirinhas (pequenas trocas ou compra de objetos). Apesar disso, Felipe insistia em me ensinar a ser um grande catireiro e, para isso, rotineiramente me contava alguns casos de “barganha”, ou mesmo tentava me convencer a fazer “um rolo” com suas roupas antigas de festa ou objetos antigos sem interesse. Além dessas trocas menores, esse calon ainda testava a minha confiabilidade, emprestando-me dinheiro sem motivo aparente no intuito de saber se eu pagaria no prazo certo, e a quantia acordada. Assim como, de maneira inversa, também brincava comigo pedindo-me dinheiro emprestado da seguinte forma: ‘Estou zerado para ir na festa. Não tenho nem dinheiro para gasosa. Arruma umas onças144 para mim, Eduardo. Você sabe que te pago certinho”. E quando eu me movimentava para pegar o dinheiro, ele imediatamente retrucava: ‘Precisa não, queria só saber se você tem bala na agulha145’. Devido à minha idade aproximada com a do Felipe, ele sobreveio como uma das pessoas mais adequadas em verificar minha conduta moral e compostura corpórea, visando aproximá- las de um comportamento mais aceitável a um determinado padrão masculino calon. Rotineiramente, durante o desenrolar das atividades diárias ou interações despretensiosas com os membros da turma, Felipe buscava me alinhar a uma corporalidade hegemônica masculina calon daquela turma; por isso, qualquer posição corporal estranha a um padrão postural esperado (quase imperceptível para mim, mas discernível com clareza pelos meus interlocutores) era repreendida e consequentemente alvo de provocações generalizadas. Por exemplo: quando de maneira despercebida permanecia com as pernas cruzadas ao sentar à 143 Por vezes, ouvi essa expressão, “a família do Gilberto”, referenciado um grupo de pessoas compostas pelo casal Gilberto e Patrícia, e sua filha Lorena, e o casal Felipe e Larissa. Em alguns momentos o casal Ronin e Poliana também foi contemplado nessa referência, porém, nesse caso, utilizo o primeiro sentido encerrado no termo. 144 “Umas onças”, Felipe está fazendo referência a nota de 50 reais que possui uma imagem de uma onça. 145 O termo “bala na agulha” foi usado para classificar as pessoas com grande disposição e que agiam de maneira espontânea. 165 mesa dos bares ou deixava o corpo pender de forma mais descompromissada na cadeira, acabava por virar alvo de comentários jocosos seguidos de pequenas provocações como pontapés por debaixo da mesa, ou mesmo de pequenos objetos atirados em minha direção com intuito de me estimular a “tomar tento”146. Tal sistemática se intensificava na presença de outros brasileiros frequentadores dos mesmos espaços, e alcançava seu ápice de vigilância com a chegada de calons de outros acampamentos Em certa situação, quando confraternizava com alguns calons “homens” no “bar do Nego” (imagem na pág. 167), Vieira decide me levar para conhecer o dono do estabelecimento, que costumeiramente descansava encostado do lado de dentro do balcão, observando o movimento da rua. Depois dos lisonjeiros cumprimentos, não demorou muito para que “Nego”, o dono do bar, percebesse algum desajuste na minha conduta, e assim pronunciou: ‘Esse menino aí é veado ou é P2’. Defendo-me da investida de “Nego”, Vieira minimiza: ‘Esse aí é menino estudado, está quebrando uns galhos aí para nós’. Ainda assim, “Nego” suspeitava da minha presença ali - substancialmente porque não sabia manter uma conversa sobre o preço dos carros de última geração ou sobre as dívidas mantidas pelas catiras, não conhecia os vizinhos e, por último, não gozava dos prazeres de possuir uma criação (cavalo ou mula). Se minha performance de uma determinada conduta de masculinidade não convencia nas esperadas características (como a maneira de falar com firmeza, as gírias aprendidas com muito custo, os comentários infames relacionado a sexualidade, a agressividade controlada nos socos e pontapés provocativos), minha própria corporeidade revelava uma incapacidade de conseguir mimetizar determinadas miudezas. Muitas vezes não conseguia perceber os motivos das minhas inadequações e logo acabava à deriva ao figurar dentro de um espaço duplamente ambíguo de ser um garron e, ao mesmo tempo, interessado em aceitar as recomendações e efetivamente tentar aprender minimamente alguns protocolos necessários à manutenção de certas afinidades As pequenas frivolidades que antes não percebia como essenciais para minha conduta masculina começaram a aparecer de maneira mais nítida no intercurso da pesquisa, e principalmente a partir de uma maior inserção, participação e percepção de determinadas convenções (enquanto conhecimentos e moralidades reatualizados pelos meus interlocutores). As proximidades físicas desejáveis, os gestos imprescindíveis e as entonações na voz tomavam maior nitidez nos contextos ao longo da pesquisa, e as demandas por seus 146 termo usado pelos meus interlocutores para se ater aos preceitos morais. 166 cumprimentos aumentaram ao passo que meus laços com a turma foram aumentando. Além disso, essa pertença era exigida no âmbito de uma moralidade difusa, como a cobrança por honrar minha palavra nas catiras e por conseguir mostra-me enquanto um rapaz de valor. E progressivamente, a partir de certo domínio de alguns trejeitos (às vezes feitos de maneira forçosa), aumentavam de maneira explícita as cobranças sobre as pequenas e grandes gafes cometidas. No caso, não somente Felipe percebia meus deslizes nas tentativas dessas performances, mas todos os Calons/Calins facilmente reconheciam as gafes cometidas nas minhas gestualidades despropositadas, na postura errada ao descansar, no modo estranho de sentar e no trejeito “afeminado” ao andar. Quando cometia esses desajustes em meio ao fervor das conversas envolvendo exclusivamente os homens, muitas vezes sem ao menos ter consciência do meu erro, os comentários eram generalizados, e alguns ressaltavam a impostura com dizeres permeados de ironia: “Que isso Eduardo! Não desmunheca não, se não vai acabar voando, igual borboleta”, enquanto isso, Felipe com fiel esperança do meu aprendizado, minimizava: “Pelo menos finge Eduardo, não dá na cara não. Estava quase igual cigano. Vai andar para trás? Pode não”. (A primeira imagem abaixo foi tirada no “bar do nego”, e a cena é composta por Bebeca, Zoio, Rato, e Felipe que estava presente, mas não foi enquadrado, enquanto a segunda imagem identifica em vermelho alguns bares nas imediações do acampamento frequentando pelos homens calons (cerca de 20 bares e armazéns), e especificamente o “bar do nego” está circulado em azul). 33 167 No tocante à palavra “fingir”, utilizada por Felipe no episódio descrito acima e também anteriormente por Patrícia no contexto em que ela me sugere uma vestimenta mais adequada às festividade ciganas, gostaria de retomá-la com o intuito de ampliar as significâncias subscritas em seu emprego. Posso afirmar que presenciei sua utilização pelos interlocutores calon em momentos que relatavam determinadas características, atributos e estados necessários a uma transformação, manutenção ou afirmação de uma identidade cigana calon em situações de contraste frente aos brasileiros e, também, de diferenciação interna entre os próprios calons. Esse “fingimento”147, enquanto um esforço de mimetização e imitação dentro do fluxo de aprendizagem e subjetividade (INGOLD, 2011), não tomaria todo protagonismo nesses processos de identidade, porém construiria, mediante um alcance preciso de performatividade e diferenciação constante de determinados comportamentos, um arcabouço possível de agregações e evitações entre diferentes sujeitos. Sublinharia quatro fenômenos 147 Apenas reproduzo o termo utilizado pelos meus interlocutores, e cabe frisar que tal sentido não se aproxima friso haver não um sentido de falseamento, e sim de tentativa de performance. 34 168 De diferenciação centrais, dos quais apenas o terceiro está intimamente permeado pela mecânica do “fingimento”. São eles: pegar o ritmo; enturmando; encenação/agregação; cigano legítimo/dom. À época em que se foi cogitada a possibilidade de construir uma habitação tradicional (tenda) em um lote não utilizado pelo grupo para minha estadia, foi justamente Felipe aquele que me advertiu sobre a necessidade de me adequar a um padrão de comportamento e de imperativos morais caso realmente viesse a morar dentro do acampamento. No fragmento etnográfico abaixo, busco estabelecer uma conexão entre o ato performático de pegar o ritmo e o padrão masculino calon exigido para permanecer de maneira mais estreita dentro da socialidade da turma. . Fragmentos etnográfico 13: “Enturmando”. “Logo ao chegar ao acampamento observo algumas pessoas rindo e conversando alto, sentadas em circulo ao lado da barraca de Vieira- Rosimar. O burburinho gerado pela conversa se misturava a música sertaneja soando alto das potentes caixas de som do carro de Shely estacionado logo ao lado de sua residência. Após uma longa temporada de nove dias ausente no acampamento, devido a um desentendimento justamente com um dos calons que confraternizava naquela roda, desço rápido a Rua Radialista Clara Gonçalves espiando entre a fresta do portão das casas de Larissa-Felipe e Patrícia-Gilberto (Moreno), e das casas de Poliana-Ronin, Baiana-Lúcia e Renata- Bebeto (Bebeca), porém não acho ninguém nas suas respectivas casas. Quando busco dar a volta por outro caminho pegando pela ‘Rua Novecentos e Um’, avisto Ronin solitário tocando as crias de Gilberto para o pequeno estábulo improvisado nas imediações de sua casa. Uma breve pausa no contato de uma dinâmica tão intensa em suas trocas através da catira, mudanças nas casas, câmbio de animais, circulação de objetos, conversas sobre os brasileiros já era suficiente para a produção de alguns estranhamentos e indagações dos motivos 169 do meu recuo e sumiço, porém com a mesma agilidade, retomava costumeiras conversas casuais com Ronin sobre aqueles considerados “bons de paga148” e os possíveis motivos da “pista149” estar tão fraca nos últimos meses, e estabelecia-se um clima de solidariedade. Apesar das minhas visitas constantes, sentia falta de inserir-me de maneira mais contundente em alguns circuitos frequentados pelo calons, assim como maior proximidade com o cotidiano da região, e por isso aproveitar para “assuntar” com o Ronin acerca da possibilidade de alugar imóvel na região, enfatizando uma conversa tida algum tempo atrás sobre a alternativa de morar no terreno baldio ao lado da sua casa. Ao se lembrar desse assunto, calon Ronin me provoca dizendo: ‘Ah Eduardo, papo reto. Palavra de homem. Você não aguentaria não. Usar o banheiro igual o nosso, um puxadinho ali, outro aqui. Viver sem conforto ninguém está querendo. Agora para viver debaixo de lona igual nós, aposto que ia arregar. Só cigano de sangue aguenta. Nem os mais velhos. Os mais acostumados continuam. Todo mundo mudando para casinha. Você está achando que é fácil né? Na época da chuva é um deus me acuda danado. A gente não vai te acudir não (pronuncia rindo). Imagina de madrugada no breu que só, um furo desse tamanho (mostrando com as duas mãos) minando água sem parar. Alagando o chão todo. E o Eduardo debaixo d’agua”. E retrucando ingenuamente, tento provar minha resistência a quaisquer possíveis adversidades: ‘Eu aguento Ronin, quero saber como que é também como viver na barraca’. E Ronin tranquilamente me atenta ao óbvio: ‘Está caçando sofrimento à toa, para que? Para provar o que? A gente acostumou desde novo com essa vida. E essas aí mais novos que não nasceram debaixo de lona nunca vão saber o sofrimento que já passamos. Igual você, viveram toda vida em casinha. A gente conta as histórias, né... Outra coisa, para montar, montar direito, com as lonas boas, tudo como manda o figurino é muito caro. Por baixo, você gasta uns 3.000 milhão. Comprar os paninhos, os forro, o jogo completo, ai 148 Aqueles considerados bons de paga foram os garrons e ciganos que pagavam em dias as prestações, além de não darem calotes e nem tentarem renegociar as dívidas. 149 A pista era maneira em que os interlocutores de pesquisa faziam referência ao movimento das catiras. 170 vai ficar duro antes de começar a morar. Tudo muito caro. Isso é aos poucos vai juntando, os pais dão uma ajuda. E por ai vai andando... Quero ver quem vai te ensinar como monta uma tenda, run (suspirando)! No primeiro dia vai cair na sua cabeça (falou rindo). Você vive no meio de nós aqui, já está bom”. Percebendo a recusa, nem busquei insistir e apenas soltei uma piada para descontrair: “Estou entendo, vou mudar lá para São Gabriel, construir uma tenda lá, arrumar alguém para casar. Se vocês estão recusando, tem quem queira.”. E Ronin levando à sério o comentário, explica-se: ‘Se dependesse de mim, deixava na boa. Você já está enturmado aqui com nós. O problema é o homi (homem) né? (fazendo referência ao Rene Santana). O homi (homem) não deixa. Está acordado com ele. Se deixar você fazer aí, depois lá vem o homi (homem) xingar nós outra vez. Melhor procurar uma casinha pequena, de solteiro aí e com tudo incluído. Vai atender melhor. Né nada contra você não, é porque negociou, acabou. Assunta com o Felipe que ele sabe melhor das casas para alugar’. Voltei à residência de Felipe e comecei a ouvir o som alto da TV através do portão. Como de costume o chamei batendo palma e fiquei esperando do lado de fora ser convidado a entrar. Prontamente Felipe respondeu: “Chega mais aí Eduardo”. Normalmente, alguém me recebia na porta puxando uma cadeira, oferecendo um lugar na mesa ao mesmo tempo em que já pegava uma xícara para o café recém passado: “Quer um gole?”; “Deixa de frescura moço, pode pegar”. Dessa vez, Felipe e Larissa me cumprimentaram desanimados e continuaram tentando ajustar os canais do aparelho da SKY, e somente me perguntaram: “Você sabe colocar naquele canal do homem da selva”. Só nesse momento percebo um homem de boné sentado perto do terreiro da casa que me cumprimenta e se aproxima da onde estávamos. Apesar das várias tentativas nenhuma conversa tem prosseguimento, Felipe e Larissa estão muito entretidos procurando alguma coisa na TV acabo. Realmente espantando com a situação constrangedora busco brincar com a filha deles que pega o meu celular e já entra no whatzapp. 171 37 36 35 172 Despretensiosamente, começo a introduzir meu desejo de mudar para mais perto deles: “Felipe estava querendo me mudar aqui para perto, será que tem casa aqui perto para alugar”. Naquele momento, o homem sai de fininho sem falar nada e Felipe aproveita e esbraveja: ‘Mal Eduardo, esse moço ai é meio doido. Não bate bem da cabeça não. Fica aqui só ensebando (incomodando). Diz ter o mundo e mais um pouco, mas é moo lero lero. Quer fazer catira, mas só ameaça. Desse mato não sai coelho. Fica só ciscando. Catira tem que ser na hora. No quente assim. Quer ou não quer. Se pensar demais, é porque não vai fazer negócio. Pode ser assim não, viu Eduardo. Tem que ser ponta firme. Prometer e cumprir. Manter a palavra de homem. Sustentar o nome, né? ... Vou te ajudar procurar um lugar para você aqui perto. Mas se vai querer viver no meio de nós, tem que da um trato né. Aparar a barba. Está igual aquela novela lá, Moisés do ... Egito, não sei. Precisa dar um tapa no penteado. Arrumar direitinho como uma camisa assim (mostrando uma camisa social que estava usando). Não pode usar short, igual o seu ai não. Te vender uma calça jeans, até te dou uma minha. Você tem que pegar o ritmo nosso. Vamos colocar você na linha. Daqui a pouco pessoal pensa que você é cigano. A gente sabe que não é, mas outros que não conhece vão achar’. Dentre aqueles tópicos apresentados anteriormente (e que aparecem no fragmento etnográfico acima: pegar o ritmo, enturmar, encenação/agregação e cigano legítimo), o processo de pegar o ritmo apareceu enquanto um modo específico de aprender criativamente uma gama de condutas e habilidades, juntamente com um fluxo de aprendizagem sensorial, corpóreo, de linguajar e moral aprendido inconsciente/conscientemente ao compartilhar recorrentemente momentos de socialidade no grupo. Dessa forma, pegar o ritmo traduzia um esforço de construção do corpo, da conduta, dos assuntos e do linguajar, aspectos esses constantemente aferidos nas interações interpessoais. Por exemplo, quando tive que me mudar das redondezas do acampamento para poder finalizar a escrita da dissertação, Felipe, com As primeiras imagens acima registram o espaço vago dentro do acampamento proibido, por Renê Santana, de se realizar qualquer tipo de construção. Foi improvisada uma baia para cavalo, vista na primeira imagem á direita. A última imagem sinaliza com um circulo vermelho aonde se encontra o local no acampamento. 173 pesar, me afirmou o seguinte: ‘Logo agora, manolo, que você estava pegando o ritmo? Estava andando igual nós. Falando igual nós. Vivendo no nosso meio. Sabia até catirar. Cuidar das galinhas, só faltou casar. Se for, vai esquecer tudo’. A necessidade de um processo contínuo de aprendizagem apontada por Felipe reforçava a justa medida da repetição que difere e se articula constantemente e de maneira criativa com as atualizações do cotidiano. A diferença se constrói reiteradamente pelo novo, e por isso pegar o ritmo é um processo criativo do domínio de determinados conhecimentos. Ao mesmo tempo, é fundamentalmente a maneira pela qual, de forma habilidosa, se coloca um domínio em interação com os outros. Em relação aos processos de diferenciação, aproximo-me da leitura de Sandra Richter acerca da diferença em Gilles Deluze e Gabriel Tarde: E o que confere ao tempo sua aparência de continuidade é a repetição. Em Deleuze (1988, p.136), a partir das teses sociológicas de Gabriel Tarde, a diferença habita a repetição. A repetição é a imaginação: “transvasar à repetição algo novo, transvasar- lhe a diferença, é este o papel da imaginação ou do espírito que contempla em seus estados múltiplos e fragmentados”. A repetição, nos termos de Gabriel Tarde (apud Deleuze, 1988, p.137), é processo pelo qual a diferença não aumenta nem diminui, mas “vai diferindo” e “se dá como objetivo ela mesma”. Aqui não há simbolismo nem redução ao psicológico porque é processo de individuação a partir da dialética da diferença e da repetição. (RICHTER, 2006, p. 3) Trato do fenômeno pegar o ritmo justamente pela dialética envolvendo a diferença e a repetição, como apontado acima. O interesse recai na retroalimentação entre os dois conceitos para elucidar a maneira pela qual se operacionaliza a diferença através dos processos de aprendizagem, construção, interação e atualização presentes na ação de pegar o ritmo, já que a individuação não se restringe ao repetir/imitar (no sentido daquele desejo em aprender), mas se dá através de um fluxo de eventos e da própria diferença, que se difere perante o novo. Para exemplificar essa dinâmica, posso citar a primeira vez que me paramentei com a vestimenta adequada para circulação naquele meio, uma considerada como “roupa de cigano”. Na ocasião, o primeiro calon com quem me deparei foi Bebeca, perto do Bota Fora. Logo que me viu, ele reagiu da seguinte forma: ‘Agora sim, gostei de ver. Está mais cigano que eu (e apontava para as minhas botas e depois para os chinelos dele). Você chega lá, mas falta muito para você aprender’. Após pronunciar esta última frase, Bebeca fez um assobio agudo e penetrante. De imediato seu potro, de nome Alazão, despontou no começo da rua e se aproximou de nós. Se Bebeca elogiava a maneira com a qual eu passava a me vestir adequadamente, afirmando-me enquanto cigano, ao mesmo tempo aproveitava-se da situação para uma diferenciação, marcando uma insuficiência na minha tentativa de imitar somente os trajes recorrentemente usados pelos homens calons do acampamento. Estava evidente, pois, 174 que a postura de pegar o ritmo exigia-me a atualização de uma série conhecimentos, convenções, morais e informações ainda não obtidos ou performados de maneira suficiente. No meu entendimento, dava-se ali um contraste contextual entre um dos elementos esperados do comportamento de um cigano calon homem, ou seja, o uso de uma roupa específica, e um fato inusitado do uso do vestuário típico de festas como se fosse algo cotidiano. Por isso, quando Bebeca afirmara minha maior “ciganidade”, havia ali também um aviso do uso daqueles elementos de maneira inadequada, dado o contexto. O chapéu de palha mais trabalhado, as botinas de ponta fina e a camisa social de manga comprida com cores mais fortes eram usados com maior frequência nos momentos de festividades e/ou em ocasiões especiais, como visita a um parente ou recebimento dele. Bebeca sutilmente comentou comigo: ‘Você gostou mesmo do negócio, hein? Mas não precisa disso tudo’ (fazendo referência à maneira equivocada com a qual eu tentava performar alguns elementos essenciais para pegar o ritmo). É interessante ressaltar que, da mesma maneira que o antropólogo faz uso do conceito de cultura como um contraponto para entender a experiência inventiva do outro através da sua própria construção cultural sobre uma outra “cultura150”, não poderia ser diferente que minha maneira de perceber a invenção e a obviação desse pegar o ritmo da turma passasse também por um artifício criativo meu de vivenciar essa convenção, pois ela mesma possui “efeitos contrastantes dos modos de simbolização convencional e diferenciante (WAGNER, 2012, p.25). A vivência do pegar o ritmo foi para os próprios membros do acampamento um processo constante de contraste entre uma simbolização convencional/convencionalizada e aquilo que é simbolizado mediante um efeito de reflexividade - a novidade sempre fazendo parte do estabelecido, pois apenas através da inovação a convenção se controla e se estabiliza enquanto tal. Pode soar anedótico tratar recorrentemente de alguns casos pela via da jocosidade, porém, se a experiência etnográfica em si possui um caráter metafórico ao transformar uma experiência pessoal em narrativas antropológicas com intuito de aproximar concepções diferentes de mundo, o lugar ambíguo da gozação faz emergir o fenômeno reflexivo da obviação. Friso a potência dessa articulação através das provocações, porque foi principalmente por elas que consegui evidenciar e objetificar algumas convenções/morais (símbolos convencionais) masculinas ciganas, assim como perceber sua diferenciação na tentativa de controle/refazimento frente ao novo. Se a gozação é uma espécie de ambiguidade, 150 Tal como coloca Roy Wagner, “a própria cultura é apresentada como uma espécie de ilusão, um contrapeso (e uma espécie de falso objetivo) para ajudar o antropólogo a ordenar suas experiências” (WAGNER, 2012, p. 19) 175 o trabalho do antropólogo também se apresenta como tal, e é justamente através da sobreposição da simbolização de um mundo “não cigano” com a de um mundo “cigano” que ficam nítidas as recorrentes equivocações ocorridas entre comunicações/ações engendradas. Nesse caso, a jocosidade, a provocação, o pensamento rápido para dar as respostas entram naquelas chamadas experiências do excesso. Dentre elas figuravam muitas características inerentes ao ser popular, por exemplo, a desinibição para falar, a fala ágil e, mais especificamente, o envolvimento com a bebida incitado pelo elogio do seu consumo e uma valorização do tratamento jocoso. Talvez com a exposição de outro evento essa mediação (nesse caso, a mediação dentro da mediação) que pretendo expor ao escolher a metáfora como mediador entre convenções para tentar retraduzir a realidade cigana fique mais evidente, ao passo que também modifico minhas próprias convenções e ferramentas antropológicas/culturais (leia-se cultural enquanto uma construção cultural) numa tentativa de entender a dinâmica de convenção/invenção cigana151. O caso se deu quando voltava de maneira mais discreta e comedida depois do erro cometido, daquela minha inadequação ao tentar a maneira da turma se vestir. Quando chego perto do acampamento, Ronin comenta sobre minha vestimenta, elogiando a performatividade da minha tentativa: ‘Está igual cigano, o Eduardo. Com os traje bonito. Olha só’. Indagando se realmente estaria conseguindo minimamente mimetizar aquilo que entendia como uma forma calon se de vestir, pergunto: ‘Está certo mesmo, né, gente?’, ao que Gilberto quase instantaneamente responde: ‘A gente não está falando? Cê acha que ia deixar você andar avacalhado, de qualquer jeito? Somos amigos seu. Vamos te dando o toque para você ir entendendo como a banda toca. Está bom demais’. Realmente satisfeito com a aprovação das minhas vestes, solto uma frase despretensiosa que pensei no momento: ‘Então quer dizer que estou calonando?’. Sinceramente, julguei que esse comentário espontâneo não guardaria significância e/ou seria entendido pelos meus interlocutores, porém, houve uma risada generalizada e, efetivamente, uma captura do termo inventado152, que passou ser usado recorrentemente pelos meus interlocutores para descrever minha tentativa de pegar o ritmo. A dupla mediação citada anteriormente veio através da utilização do instrumento analítico criado (pegar o ritmo) na tentativa de fazer perceptível uma “realidade cigana” pelos meus interlocutores. A minha experiência de pegar o ritmo e de vivenciar sua criação enquanto 151 Evidentemente, quando preconizo algum fato generalizante, por exemplo, “comportamento masculino calon” ou “maneira/moral calon” de conceber o mundo, não faço referência a um suposto compartilhamento geral entre diferentes grupos ciganos, e por isso, ao falar sobre alguns fenômenos observados, estou pontuando sobre a turma estudada. 152 A invenção colocada anteriormente é de outra ordem. 176 instrumento teórico esteve vinculada à minha experiência e background e, por isso, o termo calonando acabou servindo para os próprios calons criarem sua imagem da imagem que eu criava deles - um jogo de espelhos em que minha captura era capturada no meu ato de capturar. O termo calonando possibilitou uma outra forma de verbalizar o que calons pensavam da minha presença ali. De maneira mais evidente ainda, meus interlocutores calon passaram a tratar pelo nome de calonando tudo aquilo que eu externalizava enquanto pegar o ritmo, o meu entendimento desse fenômeno ou ele enquanto tal. Por exemplo: na véspera das festas, quando chegava ao acampamento nos trajes considerados adequados, antes mesmo de perguntar ou comentar qualquer assunto Gilberto, de maneira jocosa, comentava olhando para todos: ‘O Eduardo está calonando’, e todos riam como resposta. No caso, o comentário de Gilberto não era um deboche, e sim uma forma de estabelecer entre os calons uma comunicação acerca do meu comportamento de mimetizar convenções que ali eram percebidas por mim. Era evidente que na maioria das vezes não conseguia performá-las devidamente, assim como o importante não era o sucesso em si, pois não me era demandada a mesma eficiência dentro do fluxo de aprendizado/moral/desejo/vestimenta/corporalidade, ou seja, de pegar o ritmo. Assim, calonando traduzia a maneira pela qual aqueles calons assimilavam o meu modo de pegar o ritmo. São cadeias de ambiguidades sucessivas se encadeando: um rapaz solteiro (eu) tentando pegar o ritmo dentro de um contexto em que isso não é necessário e raramente acontece, além de isso ser feito dentro de suas (minhas) limitações e percepções inventadas para lidar com o mundo do outro. Por isso a resposta dos meus interlocutores foi inventar sobre minha invenção um sentido para minha presença, visto pelas diferentes formas que fui classificado durante a pesquisa: advogado, doutor, estudante, amigo, cigano, quase cigano, garron, garron desconhecido, garron amigo, quer saber de nós, catireiro, gosta de festa, ajuda nós, liderança, entre outros. Percebe-se a grande quantidade de lugares em que fui posto na tentativa do entendimento do meu lugar e das minhas intenções dentro daquela socialidade (relatei de forma mais detida no garron desconhecido). Obviamente, o grupo estava em um processo de obviar fatos novos dentro das suas convenções, ou simplesmente tentando entender a situação, e, para tal, assim como colocado por Roy Wagner, integrando a mudança e a novidade: O modo de simbolização diferenciante provê o único regime ideológico capaz de lidar com a mudança. Povos descentralizados, não são estratificados, acomodam os lados coletivizante e diferenciante de sua dialética cultural mediante uma alternância 177 episódica entre estados rituais e seculares [...] são atos de diferenciação incisivos. (WAGNER, 2012, p. 19). Da mesma maneira, tentava entender/fazer parte do processo de pegar o ritmo. Para isso, comparava fenômenos do meu próprio mundo com fenômenos vistos no mundo calon e também com esses momentos em que a simbolização aparente estava permeada de outras significâncias. Caber frisar que a perspectiva de pegar o ritmo englobou dois movimentos simultâneos, o primeiro de apreensão de um processo de diferenciação e aprendizado de aspectos daquele mundo calon citados anteriormente , e o segundo de uma participação ativa dentro desse processo em franco funcionamento. Tentei efetivamente pegar o ritmo ao mesmo tempo em que tentava entender o que seria aquele conceito. E durante o período da pesquisa transitei duplamente em um ambiente de ambiguidade entre o universo acadêmico/particular e aquele dos calons - ambos com estranhamentos, porque não torna-se cigano sem efetivamente obviar de maneira mais precisa uma série de exigências. Para tanto, as tentativas sinalizam o desejo de me enturmar, ou seja, ser um brasileiro enturmado, porém enquanto um brasileiro enturmado. Estar enturmando era se atentar ao espaço, vida, preceitos, sutilezas e principalmente convenções daquelas pessoas, dentre outros aspectos, e dentro desse jogo da imitação/construção consegui dominar trejeitos/conhecimento mais simples, enquanto outras noções ficaram mais longínquas e apenas obtive notícias, por exemplo, o acesso as catiras com um valor mais expressivo, e por último, aquelas particularidades que explicitamente resolvi não seguir, por exemplo, atitudes de reafirmação vinculadas a alguns comportamentos assimétricos de gênero. Além disso, estar se enturmando prescinde de um comportamento explícito na escolha das vestes, trejeitos performáticos da fala, e como tal se assemelha de maneira substancial ao processo de pegar o ritmo, porém me enturmar era o máximo esperado de um brasileiro em termo de aprendizagem do processo de pegar o ritmo. Logicamente, só poderia realmente realizar esta performance, conjuntamente com o processo de aprendizagem, ao passo da minha competência em criar essa outra cultura dentro do contexto das minhas próprias convenções. Reforço, novamente, que a construção da cultura do outro sobre uma aspecto cultural do uso da cultura se dá por uma imersão de aprendizado, proximidade e efetivamente por um exercício constante de mediação, e tal como apresenta Roy Wagner, por uma arbitrariedade do antropólogo. O antropólogo não cria culturas, e sim, se vale da cultura enquanto construção “cultural” como meio para tencionar suas premissas e traduzir concepções artificiais de outros mundos para aqueles de qual ele faz parte: 178 “De fato, poderíamos dizer que um antropólogo ‘inventa’ a cultura que ele acredita estar estudando, que a relação – por consentir em seus próprios atos e experiências – é mais real do que as coisas que ela ‘relaciona’. No entanto, essa explicação somente se justifica se compreendemos a invenção com um processo que ocorre de forma objetiva, por meio de observação e aprendizado, e não como uma espécie de livre fantasia” (WAGNER, 2012, p.43). Se em algum momento o termo calonando explicitou de alguma forma a insuficiência, ou mesmo, a particularidade desse fluxo de aprendizagem feito por brasileiros, lentamente esse termo foi sendo esquecido e aos poucos, conjuntamente com minha melhoria e aprimoramento na mimetização, transfigurado através da expressão enturmando. De alguma forma, o aprender e o mimetizar se tocam, porque só se pega o ritmo com uma imitação/aprendizagem, e para tal só se faz bem com uma cópia que aos poucos vai melhorando, e dessa forma se consegue se agregar a turma. Concordo com a posição de Richter ao descrever o pensamento de Bachelard sobre a imitação/mimetização ser parte fundamentada em uma imitação mais eficaz e reatualizada: O fingimento cumpre aqui papel de consolidar diferentes condutas pois é superposição temporal. Da repetição emerge a uniformidade: o ritmo é fundamentalmente a continuidade do descontínuo: “para fingir bem, é necessário precisamente dar uma impressão de continuidade ao que é essencialmente descontínuo. É necessário aumentar a densidade e a regularidade do tecido temporal ou consolidar esse tecido” (Bachelard, 1994, p.96). Porque o tempo tem várias dimensões, o tempo em Bachelard tem espessura: só aparece como contínuo devido à superposição de muitos tempos independentes. Então, as lacunas tornam-se fundamentais pois quanto mais o pensamento é lacunar, mais ele é claro; quanto mais breves suas ordens, mais poderosas. Tomados no instante, não somos senão uma seqüência de ritmos, uma série ordenada de recomeços (Richter, 2006, p.6). Enquanto mimetização faço dois parênteses, primeiro me aproximo da visão Roy Wagner sobre a constante retroalimentação entre inovação e convenção, pois a obiviação é justamente controlar e colocar em relação contextos múltiplos que criaram relações uns a partir dos outros, mas também considero esse processo enquanto um fluxo contínuo de aprendizado, não somente de maneira literal e consciente, mas também de maneira a considerar a mimetização um fator importante na construção dos corpos. Na verdade, processos conscientes e inconscientes estão dentro de uma mesma dinâmica da educação da atenção, e enquanto educação atenção expresso a interação complexa e bilateral entre ambiente/pessoas, e no caso, as construção das próprias percepções do que se é percebido. Abaixo segue mais um fragmento etnográfico que pode ajudar a explicitar esse fluxo de aprendizagem: Fragmento etnográfico 14: “Pegando o ritmo”. 179 A terra descampada recebia e guardava a memória de tantas pisadas sobrepostas no mesmo lugar. Estendem-se os mesmo gestos. Abre a pia, corta a mangueira, espira à água. O bigode pingando sereno. “Tira o bigode menino, isso é coisa de velho”, diz Leandro enquanto Felipe pega os canos amarrando-os com uma sacola. O chão se encharca de novo. O cão toma conta do piso de terra. “Sai para lá horroroso, vai molhar todo”. Derrama-se um pouco de água na latinha para tirar o excesso. “Você não liga não, né Eduardo?”, diz Poliana. Limpa rapidamente a caneca chacoalhando. Viera é o primeiro a se servir, e logo cospe o primeiro gole. “Esqueceu como faz café? Se soubesse que tava assim fazia eu mesmo... Ia na padaria e ficava satisfeito”, diz ele. “Olha o menino incomodando o Garron ai. Liga não filho, menino é assim mesmo, fuça em tudo”, fala Rosimar. O Gilberto levanta e assua o nariz. Estica as pernas. Tira a bota e fica picotando o quiabo com o canivete. Acaba o quiabo e pega um pedaço de madeira no chão. Passando o tempo, sempre dizia ele. Tira um naco de fumo de rolo e começar a preparar. O Leandro diz, com cara de nojo: “Isso queima a garganta. Sinto o cheiro ali da esquina. Deus me livre. Sou de fumar não, mas se for, prefiro fumar meu Marlboro”. O Shely retruca rindo: “Cigarro de filtro branco? Isso é cigarro de cabeleireiro, num da nem onda”. Na mesma hora, um carro “encardido” encosta na porta do Vieira, e dele sai um homem conhecido como “vereador” e grita: “Olha só os perigosos ai”. O Bebeto que descansava no papelão levanta, arruma o boné, e diz”: “Qual o quente que você tem?”. O vereador informa “Só o melhor para vocês, tem um Lorax aqui bom que só vendo. Para melhorar o sono da senhora”. O Ronin logo fala: “Esse quero não. Veceia (vicia). Depois não consegue dormir sem ele. Derruba até cavalo”. O Gilberto fala: “Quero o mosquitinho, estou numa sonhação com meu pai. Isso não é bom não”. O Ronin me cutuca e me chama: “Bora dar um pulo no Carlim Boiadeiro”. E quando percorríamos o bairro de carro, encontramos em suas mediações o carroceiro, Rafael, perto do bota fora e ele falou ao 180 38 39 181 E quando percorríamos o bairro de carro, encontramos em suas mediações o carroceiro, Rafael, perto do bota fora e ele falou ao Ronin: “Tem potrinho bom demais, talvez o Vieira queira ele. Bicho só falta falar de tão bão. O Mario carroceiro morreu e o irmão dele está vendendo tudo baratim, o cavalo com a carroça tudo. Não sei se você já viu ele. Conversa com o irmão do Mario. Ele faz um preço câmara para você. Ronin responde: “É aquele goldo (gordo) né? Grandão. Aquilo come demais, está entendendo. Vale a pena não. Não chove uma gota d’água. Não tem capim e nem ração para anirmal (animal) desse não. Ia ter que comprar dois sacos de ração para alimenta o bicho. No final das contas ia me dar é prejuízo”. Voltamos a casa de Vieira, e sem perceber, devido ao cansaço, sento-me de “cócoras” como costumeiramente os calons dali faziam. De sobresalto, Gilberto, com os olhos esbugalhados, e sorrindo de maneira satisfeita diz: “O menino está pegando o ritmo mesmo. Sentando que nem nós. Daqui a pouco está fazendo catira por ai a fora tudo”. Os homens presentes balançam a cabeça de maneira assertiva e riam olhando para mim. Como fui pego de surpresa com o frisson uníssono das gargalhadas e também com as atenções voltada para mim, acabo me retraindo e indo sentar na cadeira de plástico. E Felipe astutamente percebendo minha timidez, finge propositalmente falar sobre mim com Juninho. E percebendo o intuito da brincadeira, tiro o celular e ameaço tirar uma fotografia, afirmando que se eles falam mal de mim, como vingança poderia registrar “a sem vergonhice dele”. De forma similar, Gilberto também regulava constantemente minhas atitudes para garantir minha conduta enquanto “Um homem direito” ou “um homem de respeito”, e gozar de tal status permitia-me muitas vezes conversar sem muitas preocupações com calins desacompanhadas dos seus esposos. Apesar de evitar ao máximo esse cenário, até mesmo por resguardo, ouvia sempre, quando eles percebiam minha relutância em adentrar-me sozinho em um recinto com uma calin: “Pode ir homem, sem problemas. Tem nada ver não. Você é rapaz direito. Confiamos em você. Menino de respeito.”. E se Gilberto instruía-me dando as orientações necessárias ao comportamento adequado dentro do acampamento, era Patrícia que 182 muitas vezes tolhia o próprio Gilberto nos momentos de responder minhas perguntas, da seguinte forma: “Fala isso não Gilberto. Você está gravando isso. Não coloca isso. Ele não sabe o que fala não. Jesus Gilberto, controla a língua”. Ainda segundo Patrícia, “Se deixar Gilberto fala até sozinho”, fazendo referência ao seu jeito extrovertido de se expressar, e essa característica foi um facilitador, pois Moreno, como preferencialmente era conhecido Gilberto, além de ser bom de prosa, recebia-me de maneira acolhedora e solícita, e não somente comigo, mas aos brasileiros desejosos de algum tipo de aproximação, principalmente aqueles vistos como potenciais aliados, tanto os futuros catitireiros, quanto aqueles com alguma demanda específica relacionada ao setor público. O jeito acolhedor performado por Moreno mostrava-se cativante e amplamente reconhecido por parte dos brasileiros em que pude manter contato e ouvir diversos comentários sobre seus trejeitos hospitaleiros. Relataram-me antes mesmo de conhecê-lo sobre a forma que recepcionava com uma habilidade ímpar, isso porque, “desembolava qualquer assunto” e “não tinha tempo ruim com ele”. Da mesma forma, reiteradamente presenciei, Ronin, seu irmão mais novo, afirmar que Moreno se comportava como uma das daquelas “lideranças das antigas”, recebendo todos os brasileiros com maestria e preocupação em “receber direito” os garrons. O próprio Gilberto creditava tal modus operandi aos ensinamentos do seu falecido pai, Rafael, que sempre o instruía a manter uma boa relação com os Garrons, e por isso, não entrar em nenhum tipo de querela desnecessária, já que segundo o mesmo, “o cigano sempre sai perdendo em qualquer problema quando envolve disputas com os poderosos’. E mesmo naquelas situações protagonizadas por interlocutores com uma linguagem totalmente exótica ao que normalmente estava vinculado nas conversas realizadas nos espaços de socialidade, ou aqueles sujeitos com assuntos mais extravagantes aos costumeiros diálogos mantidos por aqueles calons, Gilberto insistia em intermediar aqueles tão estranhos “papo de Garron”, e ainda assim, buscar trazer alguma solução ou mediação aos problemas apresentados. Certa vez, ao comentar sobre os conselhos dados pelo seu falecido pai, Gilberto mencionou alguns de seus ensinamentos referentes ao incentivo a uma postura aberta as oportunidades possíveis advindas dos garrons, porém atento aos possíveis enganadores e evitando hostilidades desnecessárias que futuramente poderiam voltar-se contra eles: Fragmentos etnográfico 14: “De família a gente pega” 183 “Gilberto me chama para acompanhá-lo em um das suas andanças pelo acampamento. E logo perto da sua residência me pede para ajudá-lo a apanhar alguns ovos de galinha escondidos perto do cano de concreto que canalizava o córrego capão. Com gritos animados, incentiva-me a descer até o leito do riacho e ver se a galinha estava chocando os ovos, pois segundo ele, “Não dá para pegar quando ela está por perto não, essa aí fica zangada que só. Avança na gente. Valentona. Vamos lá, quero ver se você leva jeito para viver com nós aqui”. Não ousaria contestar o pedido de Gilberto, até porque andava nesses últimos dias, segundo suas palavras “pegando o ritmo”. E nem mesmo perguntar nada referente aquele afazer, pois da última vez que ousei me interessar pelo tema envolvendo galináceos acabei por ficar embaraçado por um motivo fútil. A situação se deu quando Ronin acabara de adquirir umas galinhas azuis, obviamente em um rolo, e ao vê-las interroguei-o de maneira tola: “Porque você foi arrumar essas galinhas azuis meu caro?”. Um pouco confuso com o comentário, Ronin no mesmo tom revelando a desadequação da minha dúvida: “Porque você usa mochila? Por que é do seu agrado. Por que você short? Porque você gosta, não tem motivo não. Para fazer uma graça. Para variar um pouco”. Foi a primeira vez que Ronin havia mencionado minha vestimenta como uma forma de diferenciar nossas escolhas. Voltando a história Gilberto, eu olhava para baixo e não identificado aonde estava o ninho, e indago Gilberto: “Está mais perto do córrego aqui Gilberto?”. Com uma boa risada, afirma de maneira irônica: “Isso não é um córrego não, Eduardo, isso é um esgoto a céu aberto, antigamente até que tinha uns peixes por ai. A gente brincava de pegar uma tilápinha, sentava e jogava conversa fora. Hoje dá para pegar latinha, lixo, e o que você está vendo ai. Vai cair não manolo. Você é rapaz esperto...”. Não acabava de me elogiar, Gilberto muda de ideia e desce em passadas largas enfia a mão no meio do mato e pegar quatro ovos, e diz: “Isso aqui é para janta. Mais tarde ... 184 40 41 185 42 Você tinha que ver menino, antigamente tinha bicho demais aqui. Andava uns marrecos ali em cima. Tinha até um galinheiro ali que o Vieira cuidava das criações dele”. Gilberto na mesma agilidade subiu com poucas passadas e falando sozinho me deixará para atrás, e em tom de brincadeira, grito dali onde estava perto do córrego: “É assim mesmo Gilberto que você trata suas visitas. Deixa elas para trás. Dá uma ajuda aqui, se não fico encalhado aqui”. Deixando os ovos em tufo de mato, Gilberto me dá um mão e me ajuda a sair de lá, e aproveita o embalo e retoma a conversa. Para com isso, tem essa de te receber mal não. Toda vida recebi você. É assim com todo mundo. Aqui eu faço seguinte, Eduardo. Falar com você. Chega um figurão me procurando, mas não sei quem é... vou deixando no banho Maria 186 Apesar de ser considerado um grande catireiro, Gilberto não se aventurava muito nas pequenas catiras. As únicas vezes que vi Gilberto realizar esse tipo de troca foi quando tentava vender alguns produtos em grande quantidade para as lojas da região, por exemplo, paçoca, panos, ferramentas, chaveiros, dentre outros materiais. Esse calon tinha a predileção pelas catiras maiores, além de conceder empréstimo de dinheiro para pequenos comerciantes no bairro. Apesar de não se interessar pelas pequenas catiras, sempre me incentivava nessa atividade, afirmando ser através da manta que se aprendia a ser um bom catireiro. Ressaltando a necessidade de treino nessa atividade pelos os brasileiros, em contraposição aos ciganos que dificilmente tomariam manta. Assim como Gilberto, ouvi de outros calons que os brasileiros seriam ingênuos nos negócios, porque compravam de maneira precipitada, sem antes verificar a providência dos materiais, sua durabilidade e real valor. Essa ansiedade na catira foi evidenciada por Bebeca quando me explica a diferença entre os garrons e brasileiros na hora dessa atividade: “Quando vendemos um carro, o brasileiro só entra nele e dá uma voltinha. E depois diz que está satisfeito. Agora, quando vou catirar um carro, viro ele de cabeça para baixo procurando algum defeito. Abro o capo. Texto os freios. Olha a roda. Só depois disso tudo penso se vou querer. E se bater uma dúvida, ainda pergunto para alguém bom de catira para dar uma olhada”. sabe? Vendo qual é a do sujeito. Muitas vezes eu não tenho inteligência para compreender as conversas, os papo de garron. Não entendo. Não me entra na cabeça. A gente não é estudado, então não compreende, mas em compensação tem a escola da vida. Desde sempre foi assim. Cigano nunca foi estudado... No meu entendimento é melhor ficar tudo na paz do que expulsar, arrumar briga à toa, à toa. Depois você cria inimizade para uma alguma coisa que podia ajudar a gente. Você receber bem, sentar, dar um dedo de proza, custa nada, e não machuca ninguém. Por ai você vai começando a entender se a pessoa está bem intencionada ou se está querendo ganhar por trás. E se o rapaz for chato, e estiver lá só para atazanar mesmo, ai você despacha sem medo. Peguei isso do meu pai, assim, de não entrar em guerra com brasileiro. Se sabe né Eduardo, as coisas boas e ruins a gente pega de família né”. 187 Essa aprendizagem dos parâmetros de qualidade e durabilidade dos diferentes produtos catirados eram aprendidos precocemente através de socialização das crianças durante as atividades envolvendo essa troca, principalmente com a inserção do calon nas catiras. Percebi esse fenômeno de aprendizagem da catira no acampamento através das investidas realizada pelos calons ainda crianças que tentavam catirar algum produto comigo. Recorrentemente, após catirar com um calon adulto, alguma criança se aproximava atrás de mim tentando conseguir me convencer a comprar um celular velho ou uma fivela usada de seu pai. Quando me ofereciam algo mais barato, por exemplo, um pano de prato, os ovos tirados das galinhas criadas nos quintais, um estojo, canetas, chaveiros, bonés dentre tantos outros pequenos objetos, “brincava” de catirar com eles. E durante esses momentos, via sendo performados de maneira exagerada alguns trejeitos típicos realizados pelos calons adultos durantes essas trocas, tais quais, as investidas com a mão estendida para se fechar o negócio, a deslegitimação do garron através da classificação de “enrolado”, a ameaça de abaixar os preços, a solicitação de uma contra proposta para fechar o acordo, e acusação da negativa da catira por conta de conta de motivos pessoais (não gostar do calon que catira no momento). Porém, não foi somente através da aprendizagem que se poderia ostentar uma fama de catireiro. Percebi, na verdade, três elementos fundamentais na construção de um bom catireiro calo, e elas perpassavam por características particulares envolvendo o dom, o berço e aprendizado. Através do relato etnográfico exposto a frente, consegue-se perceber a presença desses três elementos no cotidiano da turma: Fragmento etnográfico 15: “Catirando” Chega ao acampamento um rapaz querendo vender um anel de ouro. O Shely traz o anel para o Ronin dar uma olhada. O Ronin brinca falando, “Vamo ver se o Eduardo é cigano mesmo agora. Ele que vai dizer se é ou não é”. Respondo brincado: “Isso é ouro 18 quilate”. E o Leandro põe perto da orelha e fala: “Vamos ver se late mesmo”. O Ronin pega e passa a ponta do dedo esfregando, depois cheira e diz não é não. O Shely teima e pega o produto na barraca dele para verificar. Enquanto estava procurando o teste de ouro, o Ronin me explica que os antigos sabiam ver se ouro só de olhar e que o pai dele 188 era um grande entendido de ouro. E alguns tinha o dom de saber ver se era ouro, enquanto outros tinham o dom da catira. Perguntei se não haveria problema da pessoa querer devolver a peça, por ter arrependido, e Ronin me responde da seguinte forma: “Você olha a vontade, fica o tempo que precisar, depois que fez a catira já era. Tem mais volta não. Despois de feito, cabo! Ninguém te obrigou a comprar, comprou porque quis, porque gostou do material. Olha com calma, vê se isso mesmo. Pode até levar para casa e trazer amanhã. Fechou o acordo, é palavra de homem. Cada um para seu lado. Agora se quiser o dinheiro de volta, não tem como. Você pode comprar de volta na minha mão e pagar o arrependimento”. Aproveitando o clima propício para a catira, exponho minha vontade de vender uma botina velha para comprar uma nova. E sabendo que Vieira tinha uma botina nova, Ronin me leva até seu irmão. Começo a catirar com Vieira, e ele queria me dar somente 100 reais na minha botina velha, e eu não vendia por menos de 130. Para convencer fiz igual eles: “Coloca no pé ai que depois laceia. Preocupa não quando você anda ela cede. Chega em casa e coloca perto da geladeira que vai ficar bom demais. Fica com ela aqui, se você arrepender, depois a gente conversa. Te dou prazo até três meses para frente”. Todo mundo danou de rir e falou que eu tinha dobrado o Vieira. Bravo ele fala: “O menino, a gente só aprende tomando manta mesmo, a gente não, porque a gente sabe de berço. Vou levar por 100, ou é pegar ou largar”. Os calon classificados como bons catireiros gozavam de um prestígio dentro do acampamento, assim como, um das maneiras de mostrar proximidade com alguns garrons era justamente associá-los também como bons de catira. No caso dos brasileiros, a confiança aos considerados hábeis catireiros apareciam no amplo crédito cedido à eles na aquisição de produtos que circulavam na catira. Um dos exemplos marcantes dessa pertença através do crédito conquistado na catira, através de na frequência da compra e assiduidade no pagamento, envolveu o Danilo, brasileiro morador do acampamento. Esse garron vivia entre a turma, e as histórias de como ele se enturmou eram controversas, porém com certeza naquele momento gozava de um prestígio considerável com os calons (muitas vezes, eu era 189 comparado ao Danilo, justamente por estar em um lugar ambíguo assim como ele, porém Danilo era casado e morava dentro do acampamento). Certa vez, quando indaguei sobreo Danilo, um dos calon com maior proximidade com ele, Shely, comentou: “Nê cigano legitimo não. Ele foi abandonado ai e a chamo ele pequetito (pequeno) aqui e fomos criando. Ele vive entre a gente, vai pegando a maneira de cigano. É como se fosse. Tudo pensa que ele é cigano, mas a gente sabe que não. Mas não tem nada a ver não. O Danilo não é cigano, mas tem mais 20 milhão de crédito ai. Pode pegar emprestado com qualquer um é paga a primeira parcela só depois de um ano. Um rapaz que tem muita consideração entre a gente” Voltando a exposição dos relatos envolvendo as intermediações com cada membro desse coletivo, cito, por exemplo, um das relações mantidas com uns dos calons dessa turma do Céu Azul, vista como uma grata surpresa, sendo ela com Ronin, irmão de Gilberto. Também conhecido como Hélio, Ronin sempre esteve solícito e disposto “a jogar conversa fora” comigo, e, além disso, houve efetivamente uma estima mútua entre nós. A afeição de ambos proporcionou uma abertura às suas instruções constantes, tanto nas primeiras incursões no jogo da catira, intervindo “quando eu tomava uma manta” muito desproporcional, logicamente, dentre os aqueles com mais intimidade. Assim como, alertando-me da necessidade de pegar o ritmo quando me mudei para as imediações do acampamento, e ainda, protegendo-me de eventuais “golpes” nas quais algumas negociações mais intensas me levavam. Costumeiramente cedia-me carona até as festas, e quando me apresentava aos seus parentes variava sua anunciação entre um “Garron amigo” ou um parente distante que logo era desmascarado para diversão de todos, e evidentemente meu constrangimento. E quando chegava às festas com outro calon, Ronin sempre puxava a cadeira para que eu assentasse ao seu lado, tanto no intuito de mostrar que era seu convidado, mas também, com o objetivo de vigiar possíveis, e esperadas, gafes acometidas naquele ambiente Frente ao tratamento cuidadoso prestado por Ronin às minhas incursões aos múltiplos espaços habitados e frequentados por seus parentes, em contra partida, os filhos do Vieira – Leandro, Shely e Nandinho - principalmente o Shely, mostrava nítido desagrado com esse tipo de situação, tanto nas festas, quanto nos bares, afastando-se dos meus recintos visivelmente incomodado, ou mesmo provocava-o reiteradamente: “É Ronin, você está muito juntinho desse Garronzinho, ai. Você está brincando de burrinho153? Só pode. Vai adotar o garronzinho? Está querendo casar com ele?” (Shely). Tais represálias, apesar de serem feitas com claro tom de jocosidade, inibiam um pouco os incentivos vindos de Ronin à minha 153 “Brincar de burrinho” é uma expressão acusatória de práticas homoafetivas recorrentemente usada no contexto de ofensa e/ou provocação dirigidas aos homens. 190 soltura em ambientes de socialização frequentados por aqueles calons, principalmente, porque eram acompanhados de olhares inquisitórios, porém não impediam um solidariedade em face minhas tentativas de imitar sua performance masculina calon. Dentre os três filhos de Vieira, apenas Shely tinha proximidade suficiente para agir de maneira mais ousada/arrojada junto a Ronin, fazendo comentários jocosos como o referido anteriormente, pois, os outros dois, Nandinho e Leandro, apesar de conviveram nos mesmos ambientes do acampamento154, principalmente quando reuniam quase toda turma, não tinham intimidade suficiente para testar Ronin dessa forma. A falta de uma postura de provocação era substituída pelo respeito demostrado por Ronin que fazia questão de impor enquanto seu tio. Ronin mesmo me afirmará quando chamei-o a me acompanhar em uma ida corriqueira na casa de um deles: “Não me dou com aqueles dois não. Trata na cordialidade, mas tem intimidade não”. Logicamente, minha interação mais constante com o Ronin me impedia de alguma forma de avançar no âmbito da pessoalidade com Leandro e Nandinho, e com ambos resguardava a estratégia respectivamente de evitação/cuidado e de constante negociação pela catira, uma das maneiras recorrentes de pacificação dos brasileiros155. O trecho de campo a seguir, revela como Leandro sempre manteve suspeita e inquietude sobre minha atuação no acampamento, mas também uma inquietude sobre minha condição de pessoa estudada. 154 Não presencie nenhuma atividade que os colocasse diariamente em situações de dependência e confiança para determinadas atividades coletivas. Crônica 16: “Nas entrelinhas da atuação”. Um dos prazeres do Bebeca, sem dúvida, era tirar-me da minha zona de conforto e forçar, sem muitos embaraços, a mostrar-me mais abertamente e sem timidez nas conversas, e para isso, encurralava-me de maneira hábil com suas réplicas diante minhas perguntas corriqueiras. Sentando na varanda de sua casa havia uma “conversaiada” relativas aos lugares costumeiros de paragens, mas efetivamente presenciava uma atenção mais difusa e sem muita preocupação com os temas que buscava conduzir aos meus interesses. 191 Em uma das tentativas de trazer o rumo da proza novamente as viagens, Bebeto com um sorriso malicioso, e o faro assertivo em dia, novamente me constrangia com suas indagações: “Você não consegue fazer isso ai com o pessoal de Pedro Leopoldo não. A gente aqui é mais civilizado. Eles não têm paciência para sentar aqui com você e fica falando tanto, tanto que acaba por desnorteia qualquer um. Falar desembolado de tudo é só nós... mas me diz ai, quanto você ganha para fazer isso? Ganha muito?”. Diante daquela interrogação, por desconhecimento de como minha resposta poderia ser recebida, tento ser esquio e não dar a réplica diretamente a seu questionamento, e por isso retruco saindo pela tangente: “Oh Bebeca, eu ganho o suficiente, vamos colocar assim”. Antes, Bebeca se encontrava sentado tranquilo numa cadeira de plástico, mas diante de minha posição inconclusa, espalhafatosamente bate a mão na perna e levanta de súbito esbravejando: “Para de onda rapaz! A gente responde cada coisa e agora vai ficar escondendo o jogo? Você se acha melhor? É isso? Porque não responde, simples assim. Homem que é homem não tem vergonha de quanto ganha não”. Literalmente em um jogo de sinuca, com Ronin de um lado, Leandro e Danilo de outro, e Bebeca engenhosamente me tirando do meu lugar de segurança, respondo rápido procurando não causar nenhum mal entendido: “Que isso gente, tem nada disso não. Ganho 1500 reais. Para mime está de bom tamanho”. Na mesma hora rindo de maneira debochada, Danilo aponta para mim e fala: “Miserável o garron, gente! Olha só. Ele passa fome e eu não sabia. Dá nem para construir uma casinha, coitado”. Pessoal gargalhava, e o Bebeca percebendo minha inibição ainda reforça: “Por que você não estudou para virar juiz, doutor, alguma coisa importante na vida. Ganhar uma nota preta. Um advogado, um deputado, ai você estava bem na fita. Gente estudada tem que se dar bem. Não tinha nada melhor, não?”. Com clara feição de confiança, pelo menos querendo transpassá-la, afirmo: “É o que gosto de fazer. Vocês não mandam bem na catira, mesma coisa”. Danilo não satisfeito volta a atiçar: “Se quiser catirar como nós vai voltar mais 192 pobre ainda. Vai ficar só com as chinelas. Vamos ter que te emprestar dinheiro”. Com aquele ar desesperançoso de conseguir competir com a jocosidade provocativa, ou “brincadeira de gente grande” deles, faço uma nítida cara de esforço tentando sair daquela situação, e percebendo minha hesitação, Ronin intervém: “Eduardo, me conta aqui, o que você está fazendo mesmo?”. Aliviado, e também percebendo a solidariedade prestada novamente, informo de maneira rápida: “Estou querendo saber um pouco mais sobre os ciganos aqui do Céu Azul”. E de forma calma, Ronin força um pouco mais querendo saber: “Para que diacho isso?’. E eu medindo as palavras tento esclarecer: “Para que os outros brasileiros que não sabem nada sobre vocês saberem um pouco mais”. Olhando para os outros e retomando o ar zombeteiro decreta: “Mas você acha que nós contamos as coisas tudo assim para os Garrons?”. Literalmente engasgando, começo a elaborar uma resposta: “Não tudo né...”. Mantendo a seriedade Ronin me interrompe: “Quer saber de cigano? Só sentar e falar com nós. A gente não é bicho do mato, não. Tem que fazer igual você está fazendo, desembolando tranquilo.... e quem lê esse negócio ai?”. Quando preparava-me para contra argumentar com uma explicação pretensamente mirabolante, Bebeto me alerta: “O Leandro lê. Olha ali”. Com todo aquele alvoroço, não havia percebido que Leandro havia pegado de fininho e folheava meu caderno de campo minunciosamente a procura de alguma coisa neles. Ao perceber os olhares todos em sua direção, Leandro responde visivelmente sem graça: “Quero ver o que você está escrevendo da gente. Está errado? Estou no meio direito. Procurando se está falando bem ou mal. Até agora não consegui entender nada de nada. Está uma bagunça danada, e essa letra é um garrancho. Volta depois com tudo bonitinho que quero ver se está pela ordem. Se não vou deitar o cabelo. Ouviu bem?156”. 156 “Deitar o cabelo” não e uma expressão usada somente por aqueles calon s, mas de ampla utilização por muitos brasileiros da região circunscrita ao acampamento. Meu entendimento dela está na chave interpretativa de entrar em conflito, por exemplo, “se ele me encher muito, irei deitar o cabelo nele”. 193 Desde as primeiras entrevistas mais descompromissadas, Leandro abertamente desconfiava das minhas intenções durante a realização do trabalho etnográfico naquela turma. Seu álibi de voluntariar-se em auxiliar nos informes requeridos permitia-o rotineiramente estar de posse do meu caderno de campo, mapas, esquemas de parentesco, entre outros, e sempre com olhar atento para conferir se havia alguma menção depreciativa registrada neles. Tal fato efetivamente transformou a maneira pela qual trabalhava com aqueles dados, obrigando-me a evitar escrever comentários que pudessem ser interpretados de uma maneira negativa, e durante um período, essa vigília restringiu-me o uso de gravador e câmara fotográfica, principalmente para frustrar possíveis constrangimentos advindos desses recursos. Como mencionado anteriormente, o próprio elo construído com Ronin, freava ainda mais possíveis aproximações esporádicas com Leandro. Da rara vez que presenciei a maioria das cadeiras do bar ocupadas com todos os homens do acampamento, incluindo, Ronin, Nandinho, Vieira, Leandro e Shely juntos, esse arranjo se deu, exclusivamente, pela excepcionalidade da chegada de outra turma calon, vinda do Espírito Santo para arranchar por um tempo no acampamento. Nessa situação, Bebeca me apresentava Nazaré, ou Zaré como também era chamado, primo de Vieira, quando no meio da descontração daquele momento, chega Leandro e puxa uma cadeira e se junta à mesa. Olhando ao redor estranha minha presença no meio daquela “ciganada”, e dirigindo-se à Vieira, seu pai, perguntando: “Ué, e esse garron aqui? Ele não tem preconceito com a gente não?”. Bebeca já no “grau 157 ” intervém: “Deixa o garronzinho ai. Ele é gente boa, amigão nosso. Tem frescura não.” Esse desagrado expresso e reiterado em fornecer dados pessoais e conceder entrevistas mais cuidadosas àqueles “Garron/Garrins intrometidos158”, tanto pelo sigilo com as informações, quanto pela falta de paciência em responder uma série de perguntas muitas vezes desinteressantes159 , não teve somente Patrícia com único exemplo mais expresso. Vivenciei também uma cena quase caricata, e muito reveladora desse resguardo não somente com os pesquisadores em si, mas aos Garron/Garrins intrometidos de maneira geral, com Juninho (filho de Bandeira e Márcia) quando pedia a ele informações básicas sobre seus parentes moradores naquele acampamento: 157 Essa expressão não é exclusivamente usada por aquele grupo calon, e na verdade, figura recorrentemente no uso diário dos brasileiros localizados nos lugares circunvizinhos do acampamento. O significado dela está perto do sentido de “estar bêbado”. 158 Ouvi de forma recorrente a associação dos brasileiros à fofoqueiros e intrometidos. A associação vinha muitas vezes quando depois da saída dos brasileiros, e apesar da minha presença, era dito de forma depreciativa. 159 No início usava questionários semi estruturados como roteiro e depois fui gradativamente me inserindo ao cotidiano do grupo e abandonando gradativamente eles. 194 Crônica 17: “Pão, café, cigarro e catira”. “Atraído já pelo nascente fluxo vespertino, barulhos dos chuveiros esquentando, liquidificadores ligando, carros pegando no sereno, os cheiros de pão queimando e café passado na hora povoam o ar. Também me preparo para compor e engrossar o movimento daqueles que começavam a se dedicar aos ofícios e afazeres de toda ordem naquela manhã. Pintar o murro, trocar lâmpadas, despejar os dominós nas mesas improvisadas, tirar as peças de xadrez, colocar comida aos gatunos donos da rua, consertar placas, reforçar portões, levantar as portas das lojas e buscar assento para mais uma conversa descompromissadas com os clientes. Perpasso junto ao burburinho encorpando-o, e dele, ainda conheço pouco dos seus segredos, mas sei que o bairro não é nada sem eles. Adentro-me despretensiosamente na Rua Maria de Gertrudes, “a principal”, como costumeiramente era chamada. Passo pelos mesmos pontos de animação onde começam a rodear curiosos, comerciantes, catireiros, em suma os moradores do bairro em seus rotineiros prazeres. Como de costume rumo à padaria, e nesse caminho matutino sempre espero me deparar com algum cigano conhecido comprando seus mantimentos diários, como, pão, café e cigarro. Ainda no meio do caminho, deparo-me com Juninho despontando longe na esquina, e de lá mesmo, vejo-o segurando com as duas mãos uma pequena caixa de papelão na altura da barriga. Confesso ficar estarrecido com o encontro inesperado, e já frente a frente a ele, nenhum dois demostram muita animação. Admito não possuir muita intimidade ou ligação muita estreita com ele, e logicamente, isso não impedia suas tentativas de tentar catirar comigo, e pelo contrário, dava até mais entusiasmo na sua obstinação de me passar a manta. Depois de um comprimento formal, ele me aborda diretamente de maneira seca: “Quer comprar um celular zerado na caixa?”. Freando um pouco sua ânsia, logo de supetão já o provoco: “Primeiro, dá bom dia para os pobres, rapá! Que isso, vai com calma”. 195 Sem graça e gaguejando de forma ansiosa, como costumeiramente fazia, retrucou algo inaudível e retoma a negociação de forma exasperada: “Vamos fazer um rolo nele, te vendo baratinho”. Juninho, sabidamente, tinha gosto pela catira. Talvez, por toda tensão e ansiedade envolvendo as intermediações até o acerto final, assim como todas as brincadeiras ao se cobrar as parcelas atrasadas que envolvem uma catira quando acertada, porém, ironicamente, não dominava muito bem a arte necessária para uma boa barganha. A dissimulação, os gestos, os termos certos, a notoriedade dos preços dos produtos e sua qualidade. A rapidez no pensamento para ser classificado como aquele com “traquejo” em dar e desfazer os nós envolvendo a condução da “combinação” e da “amarração da catira”. Recorrentemente, afobava-se forçando a barra e perdendo a clientela. E até mesmo eu, mais inexperiente e recém iniciado no “jogo” sabia como deixá-lo sem muita saída, e sem reposta com as minhas contra propostas, situação considerada terrível aos catireiros. Com pouco esforço retruquei explicitamente provocando-o: “Então, você que é gente boa, me da um ano de prazo para pagar”. Sem jeito. Coçando a cabeça e curvando o pescoço para um lado e para outro, responde-me meio atrapalhado: “Um ano não dá, né manolo. Ai você me quebra”. Desfiro amigavelmente um tapinha em suas costas tranquilizando-o da peça pregada e dou uma olhada no produto pensando em revender para o Ronin, que dias atrás andava precisando de um aparelho. Depois de uma longa transação, acabo por acertar tudo da seguinte forma: pago-o com uma “corrente fuleira” e mas 100 reais, recebendo o produto, e ainda esperando de “volta” (troco) duas cervejas bancada por ele no bar da esquina. Fechado o negócio, começamos a beber de forma descontraída no bar, e depois de algumas cervejas, percebendo uma abertura e uma disposição ao diálogo, indaguei-o de maneira informal sobre algumas pessoas que julguei serem parentes dele. Depois de ouvir minhas perguntas, quase de supetão, visivelmente alterado, responde-me: “Para que você quer saber isso seu moço? Sei do que se trata não. Esse ai que você está falando é o Ricardo 196 Foi justamente Bebeca aquele a me alertar mais explicitamente, tanto dos desentendimentos mais corriqueiros, quanto aqueles com maior duração presentes entre os membros do grupo. Certa vez ao chamá-lo para me acompanhar até a casa de um dos ciganos vizinho a sua casa, ouvi uma resposta negativa com a cabeça, e em seguida me disse: “Estou desentendido com ela. Fez muita fofoca. Dando um tempo. É desse jeito que tocamos o barco. As vezes tem um desentendimento bobo, e fica ressabido, evita ter contanto até acalmar. Para dar um descanso. Sabe, parente a gente leva até o fim da vida, né. Quando acontece alguma coisa, deus me livre, quem fica do nosso lado? Quem acude? Tem hora que precisa de um conselho assim, uma inteligência a mais para fechar uma barganha boa. Vou procurar quem?”. Pode parecer desnecessário frisar a naturalidade e o caráter intrínseco com que os conflitos internos são elementos centrais que constituem a dinâmica de diversas comunidades, porém, nesse caso, atento como determinadas afinidades e evitações entre pessoas específicas ajudam entender, não somente a conjuntura particular articulada para a efetuação do trabalho de campo, e consequentemente, os rendimentos extraídos de cada interlocução, mas também como a própria maneira de organização sócio espacial das habitações revelam segmentações e dinâmicas dentro daquele território, por exemplo, a ajuda mútua nas construções, a cooperação no comércio, compartilhamento de momentos fora do acampamento, e apoio durantes as querelas nas festas. A própria constituição/lógica da distribuição das tendas/casas no acampamento, permeada por fatores dinâmicos de circulação, perpassa por interstícios espaciais relacionados a conflitos e afinidades que orientam barreiras simbólicas e os fluxos permitidos de pessoas, animais e objetos, e tais regimes internos resultam a posteriori em articulações, e permissões, de chegada e influxo de parentes no acampamento. Apesar daquele espaço-social ser composto majoritariamente por parentes, assim como ouvi reiteradamente de Felipe disser sobre os laços entre as pessoas moradoras daquele local: “aqui só tem parentaiada”, ainda assim, evidentemente, tal composição não evitava fissões internas, e pelo contrário, as segmentariedades estavam subscritas e emergiam de forma latente em momentos de maior tensionamento entre os sujeitos habitantes daquele território. (respondendo propositalmente errado o nome do Vieira). Conheço muito pouco o pessoal aqui. Estou apenas de passagem assim. Cada um fica na sua. Esse particular sobre quem é quem, vou acabar te respondendo errado. Melhor você assuntar com outra pessoa”. 197 Por exemplo, após voltar com Gilberto e Patrícia de uma das festas realizadas na cidade Pedro Leopoldo 160 por móvitos de querelas ocorridas lá envolvendo seu irmão Vieira, Gilberto irritadiço com a situação começa fazer referência à Vieira e seus filhos usando-se da espacialidade da seguinte forma: “Do lado de lá”; “Do lado deles”; “O acampamento do lado de lá”; “As barracas para lá”. Evidenciavam justamente uma série de preferências de proximidades dentro do acampamento que tinha repercussões fora dele também. Apresento de maneira breve a querela das festas para o entendimento da repercussão dessa briga: 160 Na cidade de Pedro Leopoldo existem três turmas de ciganos calons dispersos em locais díspares da cidade, e um deles possuem parentes com as pessoas calons da turma do Céu Azul. 43 198 Havia recebido há três dias um vídeo enviado por Giovane (ex morador do acampamento, do Céu Azul) me chamando para ir na festa que aconteceria na cidade de Pedro Leopoldo. Essa seria a segunda festividade que frequentaria nesse acampamento. Na sua mensagem, havia um vídeo da preparação de uma leitoa assada, e durante o processo, Giovane interrompe a filmagem fazendo zombarias com o animal. Esse calon era conhecido no Céu Azul por ser exagerado nas festividades, nos bares e no acampamento, principalmente pelo sua relação com a cerveja e a recorrência no envolvimento em brigas. Devido à sua fama de cigano brigador e de aprontar demais, acabou sendo expulso do Céu Azul e se mudou para Pedro Leopoldo. Segundo esses calons, Giovane não tinha nome, porque arrumar briga e guerra com muitos acampamentos, e por isso, recorrentemente, precisava se mudar dos pousos em que parava. Além da sua conduta ser considerada excessivamente belicosa, Giovane ainda era acusado de ter uma relação conflitiva com sua esposa, e por isso, recai sobre ele comentários depreciativos do seu comportamento de esposo. Durante meu campo não mantive muita proximidade com esse calon, e a distância não partia de mim, mas pelo contrário, Giovane justificava seu afastamento dizendo não ter paciência para os garrons. O resto dos membros da turma me diziam para não levar Giovane a sério, porque, segundo alguns calons, Giovane era louco, e não porque sofria de qualquer sofrimento mental (por exemplo, como um calon em Pedro Leopoldo que era chamado de doidinho por aparentar ter um leve retardo mental), mas devidos a suas constantes quebras das condutas para se construir um nome ou uma fama positiva entre aquela turma. Quem expressou de maneira nítida o descontentamento generalizado com esse calon foi Gilberto: “Que deus me perdoe! Giovane é meu sobrinho, as apronta demais no bairro. A gente tem um nome para manter. Agora se o sujeito fica fazendo o que dá na cabeça, quem caba levando a culpa é a gente. Para o brasileiro cigano é tudo a mesma coisa. Não sabe diferenciar quem é quem. Acaba ficando ruim para gente. Ele pedia dinheiro emprestado no nosso nome”. A suposta doideira vinculada a Giovane vinha pelo seu desrespeito pelo nome construído pela turma na vizinhança, e era justamente por conta da imprevisibilidade de seu comportamento que a turma do Céu Azul estava receosa para ir a festa em Pedro Leopoldo. Uma das irmãs de Gilberto, moradora do acampamento em Pedro Leopoldo, havia comentado que Giovane estava tentando arrumar há dias uma briga com outro calon no acampamento, e aquela informação deixou o grupo mais inseguro em ir a festa naquele pouso. Porém, Bebeca, irmão de Giovane, tentava convencer a turma do Céu Azul que aquelas informações sobre seu irmão eram falsas, e por isso não haveria problema algum do comparecimento da turma na 199 festividade. Para tentar tranquilizar ainda mais aqueles calons, Bebeca afirma garantir a boa conduta do irmão, evitando qualquer possível briga por ventura iniciada pelo o irmão. Como Bebeca gozava de prestígio com aqueles ciganos, os outros calons do Céu Azul, a turma, por fim, cedeu aos seus apelos e concordou com ida. Desta vez, ao ir à festa, peguei carona com Bebeca, pois nas outras festividades costumava ir com Ronin, justamente por ele ter trânsito livre dentre de São Gabriel e Pedro Leopoldo, enquanto Bebeca não frequentava São Gabriel por conta da querela ocorrida anos atrás (relatada no capítulo 1), e frequentava parcialmente Pedro Leopoldo, pois, não poderia ir a esse acampamento depende dos parentes de São Gabriel que estivessem lá. Segundo Bebeca, sempre se combinava por telefone, por intermédio de algum parente, a ida a Pedro Leopoldo para se evitar possíveis encontrados indesejados. A festa em Pedro Leopoldo era uma véspera (festa anterior ao casamento na igreja) de Xonado, filho de Bandeira, que havia se mudado para esse acampamento justamente para acompanhar os preparativos do casamento do filho. No dia da festa, chego ao acampamento com as roupas típicas para essa ocasião, chapéu, fivela, bota de bico fino, corrente e camisa social (diferente da usada pelo brasileiro), e contrastando com minha lisura ao vestir, Bebeca estava com as roupas que usava cotidianamente. Somente quando chegamos perto do acampamento de Pedro Leopoldo, entendi a escolha de Bebeca em não ir trajado com suas roupas de festa. Em uma distância curta do local da festa, Bebeca estaciona e começa a arrumar colocando cada peça de roupa necessária para se adequar a forma esperada de se vestir nas festas, além de fazer o mesmo procedimento com seus filhos. E percebendo que eu somente esperava sua família se arrumar, Bebeca se aproxima e me diz: “A gente não arruma antes não, para chegar todo desarrumado? Só colocamos a roupa mesmo quando está chegando. Você tem muito que aprender ainda Eduardo”. 200 Conclusão O intuito do trabalho foi contribuir de forma preliminar e entusiasmada com algumas discussões já antes desenvolvidas dentro do universo de discussões relacionadas aos diferentes grupos calons. Espero trazer com as análises efetuadas, e principalmente, com “registros de andanças e de coisas vistas” (Silva, 2009. p.175) durante a experiência compreendida pela etnografia, um contexto singular, porém em que se possa explanar e guardar consonâncias com especificidades encontradas em outras conjunturas efetuadas por empreitadas antropológicas com grupos outrem. Se peco ao não dar ênfase a voos teóricos tão ousados, julgo não ter tal esforço aviltado em outras considerações de cunho mais etnográfico, e através de uma experiência permeada por vicissitudes própria construção das relações construídas ao longo da dissertação. Por tanto, aproximo-me da posição de Geertz sobre os intuitos das fomentações teóricas e informacionais: “Em vez de seguir uma curva ascendente de achados cumulativos, a análise cultural separa numa sequência desconexa e, no entanto, coerente de incursões cada vez mais audaciosas. Os estudos constroem-se sobre outros estudos, não no sentido de que retomam onde outros deixaram, mas no sentido de que, melhor informados e melhor conceitualizados, eles mergulham mais profundamente nas mesmas coisas . Cada análise cultural séria começa com um desvio inicial e termina onde consegue chegar antes de exaurir seu impulso intelectual”. (GEERTZ, 1989, p.17) E Apesar do presente trabalho não possuir uma explanação teórica muito extensa, pretendi com minha pesquisa levantar algumas questões pertinentes ao campo de estudos sobre os calons. E por isso, minha escolha de privilegiar a etnografia veio por conta da minha entrada diferenciada em campo (tendo em vista o tempo exíguo para a pesquisa). Como obtive acesso a um amplo espectro de informações referentes à turma estudada, julguei mais interessante investir substancialmente no tratamento dos dados e na sua apresentação, através da estratégia narrativa do fragmento etnográfico e de algumas representações gráficas, do que tentar elaborar explanações teóricas mais abrangentes. Dessa forma, a riqueza substancial deste trabalho passou pelo registro de informações consideradas relevantes para se pensar questões sobre o mundo calon. Durante minha inserção no grupo, vivenciei duas experiências distintas de relacionamento com a turma, a primeira através de uma tentativa de assessorá-las nas questões relativas a regularização fundiária, e a segunda perpassando aspectos mais ligados à socialidade do grupo, principalmente conceitos nativos, como pegar o ritmo, ser popular e a frescura. 201 No primeiro tema, busquei colocar em perspectiva as diferentes atuações da liderança dentro do acampamento, desviando de uma visão centrada unicamente na liderança externa que se relaciona com os calons para outros modos de exercer a chefia dentro do acampamento. Tentei com essa escolha possibilitar o entendimento das inter-relações encontradas entre diferentes posições de mando dentro da turma, e como elas poderiam estar ligadas a qualidades desenvolvidas em vários âmbitos, por exemplo, no familiar, econômico, regional, entre outros. A partir da apresentação da composição familiar daquele grupo, viso ter contribuído para ligação íntima entre contextos circunscritos dos acampamentos e as atuações dos diferentes tipos de lideranças. A apresentação do funcionamento da chefia dentro da turma do Céu Azul teve como intuito auxiliar no entendimento do processo de regularização fundiária enfrentado pelo grupo. A apresentação do histórico do início do processo, juntamente com os embates ocorridos ao longo do seu desenrolar, envolveram substancialmente a posição de diferentes lideranças frente a um contexto de insegurança jurídica da área compreendida pelo grupo. Apesar de não existir um conflito possessório entre os calons e o possível proprietário da área compreendida, vínculos históricos foram mantidos com esse pretenso titular da área desde a chegada dos ciganos na região onde está localizado o acampamento. O intuito do segundo capítulo foi justamente contribuir de maneira preliminar com informações relativas ao caso de regularização envolvendo a turma do Céu Azul, e revelar a particularidade desse caso frente a outros contextos de conflito fundiário enfrentado por outros calons. Cito tangencialmente evento semelhante enfrentado pelos calons do São Gabriel, buscando com essa apresentação ressaltar as devidas diferenças encontradas em cada contexto. Pretendi com essa comparação, apesar de sucinta, alertar para especificidades vivenciadas por cada um dos desses grupos, e friso a necessidade de um olhar mais sensível sobre fenômenos envolvendo questões fundiárias envolvendo grupos calons, principalmente através de um olhar mais sensível a suas historicidades, uso diferenciados do território e sua construção, além das circunstâncias próprias de cada conjuntura particular. A apresentação delongada, e algum ponto discricional, de meu envolvimento ativo dentro do processo, teve como intuito, justamente servir como um exemplo de atuação precipitada junto ao grupo. Através de alguns erros e premissas errôneas adotadas por mim durante fase da assessoria à comunidade, percebi um entendimento da turma por outras premissas, distante de parâmetros de garantia do direito territorial e, na realidade, o grupo se importava com a garantia da sua fama de pacífico no bairro, além da manutenção de uma proximidade não 202 belicosa que evitassem o confronto com os garrons. A incredulidade no funcionamento imparcial de alguns órgãos e instituições públicas, juntamente com o receio da influência exercida pelo pretenso proprietário da área, Renê Santana, traziam uma complexidade ímpar para o processo, pois revelavam questões como a decisão da liderança cigana nas negociações com o pretenso proprietário, e a necessidade de entender as relações com os brasileiros, não enquanto uma luta pela conquista dos direitos ciganos, mas pela manutenção de uma série de vínculos, econômicos e afetivos no bairro. Por tanto, pretendi contribuir, apesar de pontualmente e com maior fôlego no âmbito dos dados etnográficos (logicamente selecionados e relatados mediante uma argumentação exposta durante a dissertação), com possíveis construções de políticas públicas voltas às comunidades ciganas, calons, resguardando as devidas especificidades laborais, de mobilidade, parental, assim como os contextos nos quais cada turma está inserido. Espero ter elucidado com minha vivência e engajamento junto ao grupo, as delicadezas e esclarecimentos na relação entre os calons e os garrons no âmbito das negociações envolvendo a permanência no pouso permanente. Da mesma forma, com a segunda parte dessa dissertação, busquei expor algumas situações vistas em campo, e julgadas enquanto interessantes para se pensar uma maneira calon masculina de se comportar (apesar do déficit de bibliografia do tema no texto) e se construir enquanto tal. Através da minha condição homem, solteiro, letrado e garron, busquei fazer uma reflexão das implicações dessas características para minha aceitação e posterior tentativa de me agregar de forma criativa ao cotidiano do grupo. Através de relatos mais longos e descritivos, visei trazer e expor algumas cenas compreendidas pelo cotidiano da turma. O tamanho reduzido do grupo interlocutor de pesquisa possibilitou apresentar de forma mais diminuta algumas nuances da vida calon, e por isso optei em trazer as questões através dos próprios interlocutores. Com esses relatos espero ter contribuído de alguma forma com a inspiração de possíveis pesquisas futuras no grupo, além do fornecimento de material etnográfico que possa elucidar ou ensejar possíveis novas pesquisas na área. Além disso, busquei contribuir com essa pesquisa para o campo cigano ao trazer à luz situações inusitadas de campo, que para além das suas particularidade e idiossincrasia, revelam conceitos importantes ao grupo, por exemplo, pegando o ritmo. E com o relato detalhados dos seus afazeres diários faço um paralelo com concepções que julguei singulares no contexto, por exemplo, a relação com os garrons através de conceitos como popular e frescura. 203 Por fim, reconheço a falta de uma maior sistematização dos dados expostos, mas espero que as informações etnográficas possam suscitar possíveis novos desdobramentos referentes à atuação do antropólogo junto a comunidades ciganas, principalmente no tocante ao conflito fundiário, assim como visibilizar processos criativos de aprendizado e relação mantida com os garrons em diferentes âmbitos. 204 Bibliografia: ACTON, T. (1974). “Gypsy politics and social change”. London and Boston, Routledge & Kegan Pau. ARIÈS, Philipe. (1989). “O Tempo da História”. Coleção Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Ed 2. ALMEIDA, Mauro W. Barbosa de. (2013). “Caipora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.7-28. 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Anexo 1 / 2009 Anexo 2 / 2013 211 Anexo 3 Anexo 4 212 Anexo 5 Anexo 6 213 Anexo 7