MARCELO DE REZENDE PINTO OS POBRES E O CONSUMO UMA TEORIA SUBSTANTIVA DA EXPERIÊNCIA DE CONSUMO DE ELETRÔNICOS Tese apresentada ao Centro de Pós- graduação e Pesquisa em Administração – CEPEAD/FACE da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Administração. Área de concentração: Mercadologia e Administração Estratégica Orientador: Prof. Dr. José Edson Lara Belo Horizonte 2009 AGRADECIMENTOS Após quase quatro anos entre disciplinas e aulas, idealização do projeto de tese, realização da pesquisa de campo e, finalmente, a elaboração da tese, muitos foram os momentos vivenciados, as pessoas envolvidas, os sonhos acalentados, as angústias e as ansiedades enfrentadas, as tristezas e as frustrações sofridas, as alegrias e as vitórias conquistadas, os encontros e os desencontros reconhecidos, as lições aprendidas, os conhecimentos apreendidos; enfim, toda uma história construída. História esta que não foi uma peça solitária. Pelo contrário, contou com vários personagens que, nesse momento, me sinto no dever e na alegria de externar meus agradecimentos. Em primeiro lugar, e não poderia deixar de ser diferente, foi graças à minha não só esposa Danielle, mas também amiga, companheira, amante, consultora, que foi possível e ao mesmo tempo recompensador passar por todas as situações do dia-a-dia nesses quase quatro anos da tese. Nesse tempo, se fiquei ausente fisicamente ou nos pensamentos, se pareci tenso ou angustiado, se perdi a paciência ou fui rude, se me envolvi desequilibradamente no trabalho ou não te dei a atenção merecida, é hora de pedir desculpas. Contudo, aproveito esse momento também para deixar expressado e publicado algo que não me parece interessante esconder ou deixar nas entrelinhas: com ela, tenho a certeza de que aprendi e continuarei aprendendo tudo a respeito de amar e ser amado. Outro personagem central nessa história foi meu orientador – Prof. José Edson Lara. Profissional que aprendi, ao longo não só nesses quatro anos, mas desde 2001 quando ingressei no CEPEAD como aluno de mestrado, a respeitar e admirar. Durante toda a caminhada do doutorado soube conduzir com esmero todo o processo de orientação com bom- senso, sensibilidade e capacidade para proporcionar ao orientando o alcance de seu limite máximo. Só resta agradecer, mais uma vez, pela confiança e pela aposta em meu potencial. Gostaria de citar o Centro de Pesquisas e Pós-graduação em Administração (CEPEAD) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que serviu como importante cenário da história construída ao longo da minha estada como doutorando. Pela formação que me proporcionou, posso dizer que tenho orgulho dessa instituição. Não só com a instituição, mas também seria interessante reconhecer o papel essencial de todos os professores que tive a oportunidade de rever no doutorado (Carlos Alberto, Ricardo, Reynaldo) mas também aos professores e professoras que passei a conhecer e admirar a partir de disciplinas do curso de doutorado (Carrieri, Esther, Ana Paula, Marluza). Em especial, ao Prof. Alexandre Carrieri, que se mostrou sempre receptivo a discutir questões relacionadas ao meu problema de pesquisa e me incentivar “a navegar por mares nunca dantes navegados” na pesquisa do consumidor. Não poderia deixar de mencionar também meus agradecimentos ao Prof. Carlos Alberto que, há mais de seis anos atrás, me apresentou um desafio: escrever um texto sobre uma metodologia, até então desconhecida para mim: a grounded theory. Principalmente nos três primeiros semestre do doutorado fizeram parte do meu dia-a- dia e ajudaram a construir a história da minha tese os colegas de turma de 2006 – Carolina, Luiz Alex, Luiz Carlos, Luiz Rodrigo e Robert. Ainda que por pouco tempo e apesar de sermos de áreas distintas, foi recompensador conviver e aprender um pouco com cada um de vocês. Um personagem importante na minha fase de trabalho de campo certamente foi o Sr. José Alfredo Cardoso. Ser Humano (com “H” maiúsculo) como ainda não conheci igual, me incentivou a trabalhar com os moradores do Aglomerado, me acolheu, sem restrições, na Associação Espírita Christopher Smith, me disponibilizando tanto as dependências quanto todo o corpo de funcionários e voluntários da organização no que fosse preciso para levar adiante minha pesquisa. Sendo assim, na “Associação” (como carinhosamente gosto de chamar a organização que me acolheu durante o tempo da pesquisa empírica), tive o privilégio de conhecer pessoas muito especiais, não só por terem me “facilitado” o trabalho de campo, mas principalmente por ter me mostrado o poder recompensador da ajuda ao próximo, seja com bens materiais e, sobretudo, com palavras amigas e reconfortantes nos momentos mais difíceis. Outro personagem que já fazia parte da minha história acadêmica desde o mestrado e que tornou-se mais que um colega de trabalho na PUC Minas foi o Leonardo. Mais que um parceiro dedicado, competente e exímio “escritor” de textos com aspas duplas na publicação de artigos, posso dizer que aprendi muito com ele, seja na discussão sobre nossas “viagens” epistemológicas e metodológicas, seja nas referências sobre grounded theory. Na fase da elaboração do projeto de tese, gostaria de agradecer as contribuições dos professores da banca de qualificação: Ana Lúcia, Carlos Alberto e José Humberto. À Profa. Ana Lúcia ainda cabe um agradecimento especial, visto que, mesmo sendo “estrangeira” ao campo da pesquisa do consumidor, me forneceu relevantes referências sobre antropologia, etnografia e trabalhos envolvendo indivíduos pobres. Devo muito da tese aos meus entrevistados e entrevistadas no Aglomerado da Serra. Toda a história da minha tese não teria sido possível sem a participação deles. Por isso, só tenho a agradecê-los e pedir desculpas pela minha presença intrusa e pelas vezes que fui insistente e até incômodo com minhas especulações. Tenho muito a agradecê-los também pelas lições de vida, de solidariedade, de luta e sofrimento, mas também de muita fé que tive a oportunidade de conhecer e aprender. Além dos meus entrevistados, pude conhecer pessoas que muito me ajudaram com apontamentos sobre a realidade da favela por terem muito conhecimento acerca do cotidiano dos seus moradores. Todos eles também me acolheram e não colocaram objeção nas diversas visitas que fiz aos seus respectivos ambientes de trabalho, sempre dispostas a dar contribuições para alguma dúvida ou questionamento meu. Penso ser adequado também agradecer aos profissionais que me auxiliaram em algumas tarefas da tese: as duas transcritoras das entrevistas e o professor que procedeu à revisão gramatical em tempo tão curto. Para não me estender por demais, quero deixar registrado o meu agradecimento àqueles que, de uma forma anônima ou cujos nomes não contemplados aqui, também fizeram parte da história, contribuindo de alguma forma para tornar possível o seu desfecho feliz. Aqui também poderiam ser incluídos aqueles que, por puro esquecimento do protagonista, não foi incluído à lista. Por fim, vale mencionar aquele que é o grande “regente” de toda essa história e ao qual só resta agradecer, humildemente, por tudo – Deus. RESUMO A partir da constatação de que ainda são incipientes os estudos que buscam relacionar as experiências de consumo em uma perspectiva social, atrelada à percepção de que pouco se pesquisou sobre os consumidores pobres urbanos, esta tese tem por objetivo geral investigar como as experiências de consumo de eletrônicos pelos consumidores de baixa renda interagem com o sistema cultural e simbólico envolvido no fluxo da vida social cotidiana. Por meio de uma abordagem interpretativista e construtivista de pesquisa e baseada em um arcabouço epistemológico-metodológico no qual se conjugou três “movimentos” – a fenomenologia, a etnografia e a grounded theory – a pesquisa, de cunho qualitativo, buscou conhecer como os consumidores de baixa renda de um dos bairros pobres da cidade de Belo Horizonte vivenciam suas experiências de consumo de aparelhos eletrônicos numa perspectiva simbólica e socialmente construída. Para atender aos objetivos propostos, conduziu-se uma pesquisa de inspiração etnográfica a fim de se vivenciar o dia a dia dos consumidores no seu ambiente natural por meio de entrevistas em profundidade, observações e notas de campo. Os dados da investigação empírica foram examinados com base na Análise de Conteúdo. Com a intenção de ir além das descrições, o trabalho também visou à construção de uma teoria substantiva por meio da grounded theory construtivista tal como proposta por Strauss e Corbin (2008) e Charmaz (2006). A teoria substantiva gerada salientou que nas experiências de consumo de aparelhos eletrônicos de consumidores pobres é possível perceber uma intensa relação com o sistema cultural e simbólico construída entre os sujeitos pesquisados. Devido ao forte apelo simbólico dos aparelhos eletrônicos, como categoria central do estudo julgou-se adequado a escolha da categoria “Questões simbólicas”. Contudo, diversas outras categorias emergiram do estudo e serviram para explicar o fenômeno: identificação com o bairro, violência e tráfico, influências sociais, papel dos relacionamentos, compartilhamento de objetos e espaços, posse e uso dos eletrônicos como distinção. Para a elaboração da teoria mostraram-se importantes também as categorias formas de aquisição dos aparelhos, experiências de compra, dilemas de compra à vista e a prazo, uso do crédito, percepção do consumidor de baixa renda e sonhos de consumo. Sendo assim, espera-se que os resultados a partir da elaboração da teoria substantiva possam contribuir para preencher lacunas no conhecimento tanto no que se refere à literatura atinente às experiências de consumo quanto no que tange às características dos consumidores pobres. Palavras-chave: Consumo, Experiências de Consumo, Antropologia do Consumo, Consumidor de Baixa Renda. ABSTRACT As the studies which examine the experience of consumption from a social perspective are incipient, and coupled with the perception that little research has been done on low-income, urban consumers, the general objective of this work was to investigate the interaction of the experiences of consumption of electronics by low-income consumers with the cultural and symbolic system involved in the flow of everyday social life. Through an interpretative and constructivist research approach and based on a three “movement” epistemological- methodological outline in which are joined together – phenomenology, ethnography, and grounded theory – this qualitative research attempted to discover how low-income consumers from one of the poorest neighborhoods of the city of Belo Horizonte experience consumption of electronic goods, from a symbolic and socially-constructed perspective. To this end, the research, which was inspired by ethnography in order to assess the consumers‟ day-to-day in their natural setting, was carried out by way of in-depth interviews, observations, and field notes. The empirical data were submitted to content analysis. With the intention of going beyond description, a substantive theory was developed by way of constructivist grounded theory, as proposed by Strauss and Corbin (2008) and Charmaz (2006). The substantive theory which was generated revealed an intense relationship between the cultural and symbolic system and the experience of consumption of electronic goods of the investigated low-income consumers. Because of the strong symbolic appeal of electronic goods, the choice of “Symbolic Questions” as the central category of this study was deemed appropriate. Nevertheless, various other categories emerged in this study and contributed to explain this phenomenon: identification with the neighborhood, violence and drug dealing, social influence, the role of relationships, sharing of objects and spaces, possession and use of electronic goods as a distinction. For the elaboration of the theory, the categories of electronics purchase, buying experiences, dilemmas of up-front and installment payment methods, use of credit, low-income consumer perception, and consumption desires were also important. These results based on the elaboration of a substantive theory are expected to contribute to filling in the literature gaps on the relationship between consumption experiences and poor consumers. Key-words: Consumption, consumption experiences, anthropology of consumption, low- income consumers. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Tipos de experiência segundo Pine II e Gilmore (1998) 49 Figura 2 – Movimentação do significado 60 Figura 3 – Pressupostos básicos do debate subjetivismo versus objetivismo 109 Figura 4 – O arcabouço epistemológico metodológico proposto para a tese 115 Figura 5 – Indução, dedução e validação na grounded theory 131 Figura 6 – Localização do bairro Aglomerado da Serra 142 Figura 7 – Vista parcial da Vila do Cafezal 146 Figura 8 – Vista parcial de uma parte do Aglomerado da Serra 147 Figura 9 – Uma representação de teoria positivista 222 Figura 10 – Esquema referente à categoria central da teoria 226 Figura 11 – Esquema geral da teoria 228 Figura 12 – Esquema referente às categorias relacionadas à experiência de consumo 230 Figura 13 – Esquema referente à categoria causal “relacionamentos” 231 Figura 14 – Esquema referente a categoria “experiências de compra” 233 Figura 15 – Esquema referente à categoria “identificação com o bairro” 235 Figura 16 – Esquema referente à categoria “sonhos de consumo” 236 Figura 17 – Esquema referente à categoria “percepção sobre o consumidor de baixa renda” 237 Figura 18 – Esquema referente à categoria “busca por distinção” 238 Figura 19 – Esquema referente às ações e/ou interações dos consumidores no tocante à experiência de consumo de aparelhos eletrônicos 242 Figura 20 – Formas de aquisição de aparelhos 243 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Uma discussão acerca de três obras sobre o nascimento do consumo 32 Quadro 2 – O consumo por diferentes visões 33 Quadro 3 – Evolução dos estudos envolvendo o consumidor na disciplina de marketing 37 Quadro 4 – Duas perspectivas na pesquisa do consumidor 39 Quadro 5 – Classificação das escolas de marketing 42 Quadro 6 – Definições de experiência 45 Quadro 7 – Estágios das experiências de consumo 46 Quadro 8 – A cultura de consumo e suas características 57 Quadro 9 – Algumas questões relacionadas à pobreza no Brasil 83 Quadro 10 – Debate subjetivismo versus objetivismo nas ciências sociais 108 Quadro 11 – Uma comparação entre as abordagens de Strauss e Glaser 132 Quadro 12 – Fases propostas para a pesquisa 140 Quadro 13 – Breve descrição das entrevistadas 152 Quadro 14 – Descrição dos entrevistados 154 Quadro 15 – Categorias e seus principais sub-categorias e códigos associados 156 Quadro 16 – Os elementos do Atlas/ti 159 Quadro 17 – Conectores com símbolos e descrições utilizados no Atlas/ti 160 Quadro 18 – Conectores com símbolos e descrições utilizados no Atlas/ti 161 Quadro 19 – Questões a serem observadas na auditoria para a etapa de trabalho de campo 161 Quadro 20 – Questões a serem observadas na auditoria para a etapa de análise de dados 162 Quadro 21 – Questões a serem observadas na auditoria para a etapa de construção da teoria 162 Quadro 22 – Categorias da experiência de consumo dos eletrônicos 212 Quadro 23 – Sentimentos e sensações evocados pelos aparelhos 214 Quadro 24 – Situações na experiência de consumo 219 Quadro 25 – Notas relacionadas à definição da categoria central 225 Quadro 26 – Características dos três comportamentos dos consumidores a partir dos dados da pesquisa 240 Quadro 27 – Critérios para avaliação da teoria substantiva 244 Quadro 28 – Oito tipos de valor segundo Holbrook (1999) 265 Quadro 29 - Comparação entre os oito tipos de valor segundo Holbrook (1999) e os resultados da teoria substantiva 266 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Classes de renda mensal domiciliar – Brasil 90 Tabela 2 – Classes de renda mensal domiciliar – Grande Belo Horizonte 91 Tabela 3 – Percentual de renda familiar por classes econômicas – Brasil e Grande BH 91 Tabela 4 – Indicadores de pobreza para Belo Horizonte e regionais, 1991 e 2000 92 Tabela 5 – Posse de bens por classe de rendimentos no Brasil 93 Tabela 6 – Renda média do responsável pelo domicílio, taxa de alfabetismo e média de anos de estudo por Regionais do Município de Belo Horizonte - 2000 143 Tabela 7 – População, renda média do responsável pelo domicílio e anos de estudo para a Regional Centro-Sul e algumas Unidades de Planejamento dessa Regional - Município de Belo Horizonte – 2000 144 Tabela 8 – Classes de rendimento mensal por UP´s da Região Centro-Sul do Município de Belo Horizonte - 2000 145 Tabela 9 - População, área e densidade populacional para o Município de Belo Horizonte, para a regional Centro-Sul e suas UP´s correspondentes – 2000 145 SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT LISTA DE FIGURAS LISTA DE QUADROS LISTA DE TABELAS 1 INTRODUÇÃO 14 1.1 - Problemática e objetivos da pesquisa 19 1.2 – Justificativa e relevância do trabalho 23 1.3 – Organização da tese 28 2 O CONSUMO E A PESQUISA DO CONSUMIDOR 30 2.1 – O consumo 30 2.2 – A evolução da pesquisa do consumidor na disciplina de marketing 36 2.3 – A pesquisa do consumidor na teoria de marketing 41 2.4 – Experiência de consumo 43 3 O CONSUMO EM UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA 53 3.1 – Sociedade de consumo 53 3.2 – Conceitos de cultura e cultura do consumo 55 3.3 – A teoria da cultura do consumo 61 3.4 – A disciplina antropológica e a antropologia do consumo 63 3.5 – O consumo numa perspectiva antropológica 67 3.6 – Proposta téorica da tese 76 4 OS POBRES E O CONSUMO 80 4.1 – Uma breve discussão sobre a pobreza no mundo, no Brasil e em Belo Horizonte 80 4.2 – O pobre nas ciências sociais brasileiras 84 4.3 – Estudos sobre consumidores pobres na literatura internacional 86 4.4 – Mensurando a pobreza no Brasil 89 4.5 – Estudos sobre consumo relacionados aos consumidores pobres no Brasil 94 5 POSICIONAMENTO EPISTEMOLÓGICO E PROPOSTA METODOLÓGICA 105 5.1 – O debate dos paradigmas nas ciências sociais 105 5.2 – O interpretativismo 110 5.3 – O interpretativismo na pesquisa do consumidor 112 5.4 – Proposta epistemológica e metodológica da tese 114 5.4.1 – A fenomenologia 115 5.4.2 – A etnografia 120 5.4.3 – A grounded theory 126 5.5 – Possibilidades de integração 135 6 PERCURSO METODOLÓGICO 138 6.1 – Classificação da pesquisa 138 6.2 – Revisão da literatura e definição da questão da pesquisa 140 6.3 – Delimitação da pesquisa 141 6.3.1 – O “locus” da pesquisa 142 6.4 – Trabalho de campo 147 6.4.1 – Construção do roteiro de entrevista e guia de observação 150 6.4.2 – Seleção dos entrevistados 151 6.4.3 – A condução das entrevistas e das observações 154 6.5 – Análise dos dados 155 6.6 – Retorno à literatura 163 7 O CONSUMO DE ELETRÔNICOS NA PERCEPÇÃO DOS CONSUMIDORES DE BAIXA RENDA 164 7.1 – O bairro no seu cotidiano 165 7.2 – A casa e a família dos moradores 169 7.3 – Identificação com o bairro 176 7.4 – Violência e tráfico 178 7.5 – Influências sociais 180 7.6 – O Papel dos relacionamentos 182 7.7 – Compartilhamento de objetos e espaços 185 7.8 – Lazer e entretenimento 187 7.9 – Distinção 189 7.10 – Formas de aquisição dos aparelhos eletrônicos 192 7.11 – Experiência de compra 197 7.12 – Dilema: pagamento à vista ou pagamento a prazo? 201 7.13 – Crédito: uso do carnê e do cartão 203 7.14 – Percepção do consumidor de baixa renda 206 7.15 – Sonhos de consumo 209 7.16 – Experiência de consumo de eletrônicos 211 8 UMA TEORIA SUBSTANTIVA DA EXPERIÊNCIA DE CONSUMO DE ELETRÔNICOS DE CONSUMIDORES DE BAIXA RENDA 221 8.1 – Uma breve discussão sobre teoria 221 8.2 – Construindo a teoria 224 8.2.1 – A categoria central: questões simbólicas do consumo de eletrônicos 224 8.2.2 – A hipótese fundamental da teoria 227 8.2.3 – Condições causais 231 8.2.4 – Condições interventoras 234 8.2.5 – Condições contextuais 239 8.2.6 – Ações ou interações 241 8.3 – Avaliação do rigor e da fundamentação empírica da teoria 244 9 (RE)ENCONTRO COM A LITERATURA 247 9.1 – Pobres urbanos 248 9.2 – Consumidores pobres 252 9.3 – Aspectos antropológicos do consumo 256 9.4 – Experiências de consumo 266 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS 271 REFERÊNCIAS 289 APÊNDICES 309 14 1. INTRODUÇÃO Imagine-se vivenciando a seguinte situação, em uma “simples” manhã de domingo. Era quase nove horas da manhã, quando decidi, com um grupo de cinco pessoas, iniciar a “subida” ao Aglomerado da Serra, mais precisamente a uma das regiões que o compõem denominada “Vila do Cafezal”. Essa era uma rotina constante para mim há alguns meses, pois desenvolvia um trabalho social com crianças carentes do bairro. Contudo, naquele domingo a “tarefa” tinha um aspecto diferenciado, pois seria o primeiro dia em que começaria o trabalho de campo da minha pesquisa de doutoramento, com o objetivo de tentar compreender questões relacionadas às experiências de consumo de pobres urbanos. O número de voluntários naquele dia era bastante pequeno; somente cinco pessoas. Uma delas utilizava um carro para levar os objetos mais pesados, como sacos de pão, garrafas de café com leite e sacos de roupas para serem distribuídos. Sempre achei que o principal problema dessa atividade era o baixo número de voluntários, o que dificultava o bom andamento das ações desenvolvidas. Também pensava que isso era devido ao dia e ao horário da atividade (domingo, pela manhã) e a um certo “preconceito”, ou “medo”, das pessoas com relação à favela. Começamos a caminhada pela Rua Mem de Sá, onde, pelo fato de ser domingo, havia um grande fluxo de carros e pessoas. Era fácil perceber que o movimento nos pequenos mercados, padarias e bares era bastante grande. Todos os voluntários sempre iam em grupo, conversando sobre temas gerais. Após andar uns dez minutos, chegamos ao final da rua, onde já começamos a avistar a favela. Também era possível visualizar as obras da Prefeitura de Belo Horizonte. Era um trabalho de urbanização bastante arrojado, cujo principal objetivo é abrir ruas naquela região da favela e construir prédios para os moradores “despejados” das casas desapropriadas. Os moradores chamam essas construções de “predinhos”. Nesse ponto, avistamos também uma escada estreita, recentemente construída, de cimento e com um corrimão em algumas partes de madeira. Essa escada, bastante longa e inclinida, que contornava um morro íngreme, era a “porta” de acesso ao Cafezal. Ao começar a subir, era possível verificar que em alguns trechos passamos por becos onde as casas, muito simples, foram construídas sem qualquer tipo de planejamento. A sensação era de que o conjunto de moradias fazia parte de montanhas de tijolos, lajotas, telhas e vergalhões à vista 15 que pareciam constituir um emaranhado de cômodos sem uma ordem ou uma organização entre as casas, becos e ruas. Além disso, não dava para perceber exatamente onde era a frente da casa ou os fundos e onde começava e terminava os “domínios” de cada uma das moradias. Em quase todas as casas, as janelas e as portas estavam abertas. Em algumas delas, dava para verificar que no interior havia alguns eletrodomésticos, como fogão, geladeira, até outros aparelhos como liquidificadores, fornos de micro-ondas. Mas as paredes não eram rebocadas e no chão não havia revestimento. Porém, havia água encanada. Em algumas casas havia uma antena parabólica, próxima à laje. As pessoas, quando nos viam, chegavam às portas e janelas para nos cumprimentar. Também constatei que em uma parte desses becos havia uma pequena corrente de água suja, provavelmente de esgoto. O terreno por onde passava era bastante inclinado, o que certamente dificultava o trânsito de pessoas mais velhas ou doentes. Após o término da escada, continuamos a ter acesso a becos. Em uma pequena parte, o terreno era plano, mas logo em seguida percebemos outro trecho bastante inclinado. Todos esses trechos eram calçados, ora com asfalto, ora com pedras. As características das casas continuavam as mesmas: muito simples, com a sensação de que estavam em constante construção. Não havia naquele trecho como ter acesso por carro. O único meio de transporte possível de ser usado seria bicicleta ou moto. Em todos os momentos, era fácil distinguir vários outros becos menores que derivavam desse que nós estávamos. Ao longo da caminhada, também era possível perceber que o “clima” no bairro era de tranquilidade, pois era comum encontrar grupos de crianças vestidas de forma simples, algumas delas conversando despreocupadamente, sentadas nas laterais dos becos, outras andando de bicicletas ou brincando com objetos simples. Passamos na frente de um comércio que era um misto de bar e mercearia, no qual o fluxo de pessoas era grande. Homens bebiam cerveja e comiam uma espécie de tira-gosto. Em frente ao comércio, de um carro aberto, vinha uma música que reconheci como de um grupo de pagode. Algumas mulheres subiam o morro sempre com alguma sacola que parecia conter alimento, que, provavelmente, seria preparado para o “almoço de domingo”. Todo o trajeto, desde o início da escada até chegar ao nosso destino, durou cerca de vinte minutos. Fomos recebidos por um grupo de mulheres vestidas com roupas bastante simples, as quais, com semblante alegre, nos acolheu com muita satisfação. Pronto! Minha sensação naquele momento era de que aquele ambiente seria o meu “laboratório” de pesquisa nos próximos meses e que aquelas pessoas fariam parte de meu universo de pesquisa. Outros 16 pensamentos, porém, povoavam minha mente e contribuíam para compor um turbilhão de sentimentos que me deixavam, ao mesmo tempo, ansioso para começar a pesquisa e angustiado e apreensivo por não saber o que aconteceria nos próximos meses. Algumas questões, todavia, pareciam me acompanhar a todo momento. Para muitas pessoas que eu conhecia, aquela parte da cidade era uma área misteriosa, arriscada e deprimente. Apesar de estar a poucos minutos a pé de bairros tradicionais de Belo Horizonte, quem faz esse percurso quase sempre tende a cruzar a fronteira entre o familiar e o desconhecido. Muito desse desconhecimento advém de uma imagem construída de que ali seria um antro de marginais e bandidos, de gente pobre e sem qualificação; enfim, um lugar no qual impera pobreza, desorganização e violência. No mesmo sentido, os habitantes do lugar seriam “apenas” alvo de interesse de programas assistenciais do governo ou identificadas como réus em casos criminais ou integrantes indiferenciados das “massas”, as crianças seriam malnutridas e malcuidadas, e a deliquência juvenil alcançaria níveis alarmantes. Ainda que muito desse “estereótipo” possa fazer algum sentido na prática, fiz questão de lembrar que há algo importante nesse quadro marcado por pobreza e violência, que, não raramente, é negligenciado por um analista desatento: ali vivem seres humanos. Como tais, são pessoas que trabalham, se relacionam, sonham, consomem; enfim, constroem sua realidade comum vivenciando seu cotidiano. Aquelas mulheres, as crianças e todo o contexto pareciam ser muito diferentes do que havia ouvido falar do local e dos “conselhos” que havia recebido para andar pelo bairro. Apesar de a violência estar presente no dia a dia daquelas pessoas, boa parte delas vivia o seu cotidiano de trabalho a fim de tentar manter um padrão de vida digno para suas famílias. Aliás, conforme bem salientado por Barros (2007), sempre é útil reforçar que mesmo num ambiente de extrema carência material é possível perceber uma hierarquia de escolhas moldadas socialmente e que orienta o modo de vida das pessoas que ali convivem. Nesse ponto, recordei-me das leituras que vinha fazendo nos últimos meses e da minha decisão de, no meu trabalho de doutorado, tentar trazer à baila questões relacionadas ao “fértil” universo vivenciado pelos consumidores de áreas pobres urbanas, que, apesar de conter uma “constelação de experiências”, ainda não foi devidamente investigada pelos pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, inclusive aquela relacionada à pesquisa do consumidor. 17 Foi nesse ambiente e a partir da minha decisão que surgiu a motivação de conduzir uma pesquisa que faria parte da elaboração da minha tese de doutorado, da qual surgem dois grandes temas que parecem compor a “espinha dorsal” do trabalho: pobres urbanos e consumo. Os estudos sobre consumo ocupam hoje uma posição de relevância tanto no campo do marketing, mais especificamente na área da pesquisa do consumidor, como nas ciências sociais (CAMPBELL, 1991). Esse interesse pelo consumo veio acompanhado de uma considerável troca interdisciplinar e estabeleceu pontes entre pesquisadores dos mais diversos assuntos, como é o caso das relações entre marketing, comunicação e antropologia. Esse movimento merece atenção e explicação, pois consumir é uma das atividades mais básicas do ser humano, além de ser um dos fenômenos mais importantes das sociedades modernas (BARBOSA e CAMPBELL, 2006; D‟ ANGELO, 2003). Na visão de Barbosa e Campbell (2006), o consumo é um processo social profundamente elusivo e ambíguo. É elusivo pois, ainda que seja um pré-requisito para a reprodução física e social de qualquer sociedade humana, somente se toma conhecimento de sua existência quando é classificado, nos moldes dos padrões ocidentais, como supérfluo ou ostentatório. Do contrário, sua presença em nosso dia a dia passa inteiramente despercebida ou é apreendida como falta ou carência. É considerado ambíguo porque, algumas vezes, é entendido como uso, manipulação e/ou experiência; em outras vezes, como exaustão, esgotamento e realização. É importante frisar que, conforme Barbosa e Campbell (2006), essa ambiguidade se inicia na própria etimologia do termo consumo, derivado do latim consumere, que significa “usar tudo”, “esgotar” e “destruir”, e do termo inglês consummation, que significa “somar”, “adicionar”. Vale afirmar que no Brasil o significado do termo consumo ficou mais próximo da primeira dimensão, que tem sentido negativo. Dessa forma, o consumo tornou-se um campo de investigação complexo, que engloba várias atividades, atores e um conjunto de bens e serviços que não se restringem necessariamente aos providos sob a forma de mercadorias. Atrelado a essa constatação, Barbosa (2006) ressalta que no Brasil é negado a determinados grupos sociais o status de membros de uma sociedade moderna e de consumo, uma vez que é enfatizada nos estudos a dimensão de minoria discriminada e excluída. Isso é claramente perceptível nos estudos envolvendo os segmentos sociais C e D, pesquisados quase que exclusivamente com foco em sua carência material e desigualdade social. O que não deve ser deixado de lado é a percepção de que o padrão de vida dos consumidores pobres 18 não pode ser pensado apenas como uma função do nível de rendimentos. De um lado, a relação renda-consumo é sempre mediada pela família, no âmbito da qual se tomam as decisões sobre o que consumir e sobre como conseguir a renda necessária para a realização de um projeto grupal, do que a casa própria talvez seja o melhor exemplo. De outro lado, a decisão sobre o que consumir não é totalmente arbitrária, mas está informada por toda uma série de padrões e costumes, além do fato óbvio de ter de atender a uma série de necessidades. O estilo de vida e o gosto são elementos culturais e sociais. Ou seja, por mais que se deixe espaço livre para as opções individuais, elas se dão sempre com referência a um conjunto de regras que são compartilhadas por um grande número de pessoas, por grupos sociais. Tanto em um sentido como em outro - ou seja, a maneira como se tomam as decisões e os valores que a orientam -, pode-se dizer que a experiência do consumo é um fenômeno social constituído por ações cotidianas (CALDEIRA, 1984). As ações cotidianas, entendidas aqui como um vasto espectro de processos conscientes e inconscientes, compreendem desde tarefas simples, como amarrar um cadarço de sapato, abrir portas e procurar roupas em uma loja, até tarefas mais complexas, como dirigir um veículo ou namorar. Em termos de consumo, é agora óbvio que um grande número de processos conscientes e inconscientes tomam lugar naquilo que foi previamente considerado uma atividade banal ou rotineira. Essas ações e processos revelam um diálogo e transações envolvendo identidade, status, aspirações, capital cultural e posição em um grupo social (PATERSON, 2006). Sendo assim, no entender de Barbosa (2006), tem sido ignorado pelos pesquisadores brasileiros um conjunto de temas de investigações que levem a uma melhor compreensão dos atos de consumo, de seus sujeitos e contextos, como: análises históricas baseadas em fontes primárias; pesquisas de campo e etnografias sobre práticas, padrões e rituais de consumo e compra de diferentes grupos sociais, faixas etárias, gêneros e religiões; mecanismos de mediação aos quais se encontra submetida à cultura material e seu papel no mundo contemporâneo; e estudo dos objetos e o que eles ensinam sobre a sociedade brasileira. A partir da minha decisão de tentar investigar as experiências de consumo de pobres urbanos dessa região de Belo Horizonte, cabe destacar que a tese visa lançar luz sobre essas temáticas e, dessa forma, contribuir para preencher esta lacuna no conhecimento. 19 1.1 Problemática e objetivos da pesquisa Dois pontos sustentam a “espinha dorsal” desta tese: consumo e pobres urbanos. Entretanto, a preocupação não é simplesmente tentar investigar questões relacionadas ao comportamento de compra, tão comum nos estudos no campo da pesquisa do consumidor. Mais do que isso, é lançar mão de um conceito que extrapola os fenômenos atinentes à compra: as experiências de consumo. Desde meados da década de 1980, percebeu-se na literatura internacional relacionada à pesquisa do consumidor a busca por uma extensão da abordagem predominante que via o consumidor simplesmente como um tomador de decisão racional (ADDIS e HOLBROOK, 2001). Uma das perspectivas apresentadas para ir além da visão do consumidor como um tomador de decisão refere-se à noção experiencial do consumo até então negligenciada pelos pesquisadores, que pode ser caracterizada por um fluxo de fantasias (sonhos, imaginação, desejos inconscientes), sentimentos (emoções tais como amor, ódio, raiva, inveja, divertimento) e diversão (prazer hedônico derivado de atividades divertidas, alegres e prazerosas) associado ao consumo (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1982). Contudo, para além dessa abordagem, é possível incorporar uma série de questões que até então não ocupavam um lugar de destaque na pesquisa do consumidor. Em primeiro lugar, o papel do significado e do simbolismo presente no consumo, sem se esquecer de que os consumidores utilizam bens e serviços para dizer alguma coisa sobre si mesmos, para reafirmar suas identidades, para definir sua posição no espaço social, para declarar seu pertencimento a um ou outro grupo, para falar de gênero e etnia, para celebrar ou superar passagens, para afirmar ou negar sua relações com os outros ou para atribuir quaisquer outros significados (ADDIS e HOLBROOK, 2001; DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006; SLATER, 2002; McCRACKEN, 2003). Em segundo lugar, o verdadeiro papel do consumo, que precisa alcançar explicações que extrapolem o “comportamento” que se verifica nos atos de compra ou nos processos decisórios que antecedem e sucedem essas ações. Por fim, pretende-se trazer à baila algo que raramente faz parte das preocupações dos pesquisadores do consumo, que é investigar situações do cotidiano vivenciadas em contextos específicos de grupos que constroem socialmente sua realidade. No Brasil, ainda que todo esse movimento de busca por novas perspectivas para a pesquisa do consumidor seja bem mais recente, pode-se também perceber nos últimos anos a tentativa de alguns autores da área de marketing de “arejar” o campo com novas abordagens, 20 metodologias e propostas de pesquisas (CASOTTI, 1999; ROSSI e HOR-MEYLL, 2001; CERCHIARO, SAUERBRONN e AYROSA, 2004; FARIA, 2004; SAUERBRONN e FARIA, 2006; MELLO, 2006; ROCHA e ROCHA, 2007; LOURENÇO et al., 2007; SAUERBRONN, 2008; PINTO e SANTOS, 2008). Essa perceptível abertura serviu para explicitar e (re)afirmar que a arena dos estudos de consumo, dominada quase que exclusivamente por concepções tradicionais, passou a ser “invadida” por perspectivas alternativas que ganham, paulatina e timidamente, notoriedade e espaço nos fóruns de marketing. Contudo, na perspectiva da noção experiencial do consumo, pode-se verificar que algumas lacunas e desafios permanecem evidentes no tocante à definição e delimitação do conceito e, principalmente, à dificuldade para estabelecer adequadamente os elementos, dimensões ou variáveis associados à compreensão da experiência de consumo (BRASIL, 2007). Uma dessas lacunas está relacionada à negligência por parte dos pesquisadores de uma discussão acerca das dimensões simbólicas das experiências de consumo construídas na interação social entre os indivíduos. Isto é, os consumidores contemporâneos definem as experiências de consumo como representantes de algo mais do que situações aparentemente comuns. Nesse sentido, expressando valores por meio do consumo, é possível verificar a celebração de sua ligação com a sociedade como um todo. No mesmo sentido, percebe-se também que pouco se pesquisou sobre aspectos culturais, simbólicos e ideológicos do consumo no Brasil. Pode-se afirmar que a análise das relações entre as pessoas e os objetos permite explorar diversas características individuais e culturais que levam à possibilidade de se configurar um retrato das pessoas e dos grupos sociais. Nesse sentido, a investigação do caráter simbólico e dos significados sociais e psicológicos do consumo vem atraindo a atenção dos acadêmicos de marketing, mais precisamente daqueles da área do comportamento do consumidor. Contudo, percebe-se que a ascensão de tal interesse representa a evolução do conhecimento para além dos estudos cujas fronteiras se limitavam a encarar o consumo como um fenômeno essencialmente utilitarista e racional (D‟ANGELO, 2003). Adjacente a essa percepção de que existem lacunas no conhecimento no que tange aos aspectos simbólicos das experiências de consumo, também se observa uma pequena preocupação por parte dos pesquisadores do consumidor em compreender questões relacionadas ao consumo no que se refere ao mercado chamado de “baixa renda”, “popular” ou “emergente”. Em países como o Brasil a pouca preocupação com esse mercado é intrigante por alguns motivos. Em primeiro lugar, vale analisar a pesquisa divulgada pelo Instituto 21 Brasileiro de Economia (IBRE), da Fundação Getúlio Vargas, em 2005: enquanto 10% dos brasileiros mais ricos detinham 45,31% da riqueza nacional, os 50% mais pobres se apropriavam de apenas 14,07% da riqueza produzida. Isso leva à constatação de que boa parte da população sobrevive com poucos recursos financeiros. Em segundo lugar e complementar à constatação anterior, verifica-se que no Brasil 67% da população é oriunda dos níveis econômicos C e D, segundo a pesquisa realizada em 2000 pelo IBOPE utilizando o sistema denominado “Critério de Classificação Econômica do Brasil”, proposto pela Associação Nacional de Empresas de Pesquisas (ANEP). No tópico 4.4, discute-se este assunto com mais detalhes. Na área acadêmica, ainda que se possam encontrar alguns estudos na literatura estrangeira com foco nesse assunto (PRAHALAD e HAMMOND, 2002; PRAHALAD, 2005), o tema no Brasil ainda pode ser considerado em construção. Somente a partir do ENANPAD do ano de 2005 é que a temática começou a emergir como preocupação dos pesquisadores da área gerencial. De qualquer forma, é importante considerar que esses consumidores, ainda que possam ser caracterizados pela “escassez” de recursos, estão inseridos em um sistema de valores, bem como na sociedade de consumo. Ou seja, mesmo que não tenham condições materiais de comprar todos os produtos e de adquirir serviços oferecidos, esses consumidores entram em contato com os símbolos e valores desse universo. É de interesse, portanto, enfatizar que, ao comprar diferentes produtos, como roupas, objetos pessoais e aparelhos eletrônicos de uso doméstico, os consumidores de baixa renda dão sentido a esses produtos em termos de suas próprias vidas e culturas. Ademais, ao concentrar o foco em questões que envolvem a materialidade dos objetos, é possível captar a experiência do consumo no mesmo sentido em que se pode discutir e descobrir as influências culturais em sua utilização (FISHER, 2006). Cumpre ressaltar também a importância que os consumidores de baixa renda atribuem aos aparelhos eletrônicos, visto que estes têm poder de fascínio e representam importante espaço em seu imaginário. Isto é, o consumo de tais aparelhos é repleto de simbolismo, que merece investigação. Na pesquisa conduzida por Castilho (2007) com indivíduos pobres da cidade de Porto Alegre, entre todas as categorias de produtos que se impõem no dia a dia desses consumidores, os eletrônicos parecem ser os bens mais privilegiados, no sentido de que proporcionam a eles o sentimento de pertencimento ao mundo moderno e de compartilhamento de símbolos de uma sociedade de consumo mais ampla. Ademais, em termos mais objetivos, a posse desses aparelhos serve para estimar o poder de compra das pessoas e famílias urbanas, segundo o sistema intitulado “Critério de 22 Classificação Econômica Brasil”, proposto pela ANEP. Vale ressaltar que pretende-se investigar na pesquisa o consumo de aparelhos eletrônicos considerados “supérfluos”, tais como televisão, aparelhos de som e DVD. Neste contexto, é revelador citar um relato de uma pesquisa conduzida por Barros (2006a) com empregadas domésticas no Rio de Janeiro. Uma das famílias pesquisadas afirmou ter adquirido um aparelho de DVD, porém relatou não se incomodar com o acúmulo de contas de luz mensais sem pagamento. Esse caso, conforme salientado pela autora, mostra que o desejo por inclusão na sociedade de consumo falou mais alto. Surge daí o interesse em empreender uma pesquisa empírica na qual se investigue a forma como os consumidores brasileiros oriundos das classes mais populares vivenciam suas experiências de consumo. Como as teorias gerais sobre o consumidor não conseguem explicar todos seus aspectos relevantes relacionados a esse público, urge construir uma teoria ressaltando o consumo dos chamados “consumidores brasileiros de baixa renda”. Assim, com o intuito de colaborar com a construção de um referencial teórico que preencha essa lacuna no conhecimento no campo da pesquisa do consumidor, pretende-se desenvolver um trabalho a partir da seguinte questão de pesquisa: Como os consumidores de baixa renda vivenciam suas experiências de consumo de produtos eletrônicos? A partir da questão proposta, o objetivo geral do trabalho consiste em: Investigar como as experiências de consumo de eletrônicos pelos consumidores de baixa renda interagem com o sistema cultural e simbólico envolvido no fluxo da vida social cotidiana. Destacam-se como objetivos específicos:  Identificar e analisar os aspectos mais relevantes do processo de consumo de produtos eletrônicos a partir da percepção dos consumidores de baixa renda;  Verificar quais são os aspectos simbólicos do consumo atribuídos pelo consumidor de baixa renda aos produtos eletrônicos;  Investigar a função utilitarista dos produtos eletrônicos para o consumidor de baixa renda; 23  Examinar as diversas situações do cotidiano vivenciadas pelos consumidores de baixa renda que contribuem para a construção de significados na experiência de consumo de aparelhos eletrônicos;  Propor uma teoria substantiva1 que vise explicar o processo de construção de significados nas experiências de consumo de produtos eletrônicos com base na realidade vivenciada dos consumidores de baixa renda. Para se atingir esses objetivos, adotou-se uma perspectiva interpretativa de investigação, a partir da conjugação de três “movimentos”: a fenomenologia, a etnografia e a grounded theory, os quais, conjugados, formarão o arcabouço epistemelógico-metodológico da tese. Assim, torna-se possível comentar as principais justificativas e a relevância da pesquisa. 1.2 Justificativa e relevância do trabalho A proposta deste trabalho caminha no sentido de contemplar questões atinentes a um dos campos que, em consequência de seu dinamismo, diversidade e complexidade, vem crescendo de forma pujante desde sua inauguração, nos idos anos de 1950: a pesquisa do consumidor. Entendido como uma “grande tenda” (SOLOMON, 2002) na qual podem conviver e fertilizar perspectivas de várias disciplinas das ciências sociais, o campo parece ser convidativo a pesquisadores que optam por enveredar por novas e profícuas “trilhas” de investigação. Com efeito, a tese parece possuir características que podem torná-la relevante para o contexto acadêmico. Primeiramente, vale ressaltar que, a despeito da representatividade numérica do mercado consumidor “popular”, ou de baixa renda, principalmente em países como o Brasil, este segmento não vem sendo investigado de forma adequada pelos pesquisadores do consumidor no País. Assim, este trabalho pode servir para lançar luz sobre uma temática complexa, multidisciplinar e merecedora de atenção por parte dos pesquisadores do campo de marketing, mais precisamente da pesquisa do consumidor. 1 Uma teoria substantiva, conforme será discutido no capítulo 5, é específica, limitada em seu escopo, rica em detalhes e aplicável somente em um dado contexto social. Ela não tem a preocupação de generalização estatística para além de sua área, pois procura aprofundar a explicação de uma realidade local e particular que é constituída pelas experiências vividas por um grupo e traduzida pelos próprios sujeitos (DEY, 1999; GOULDING, 2002). 24 O trabalho foca uma temática que tem sido ignorada por pesquisadores brasileiros, ao negligenciarem, segundo Barbosa (2006), um conjunto de temas de pesquisa que não levem em consideração, entre outros, os padrões e rituais de compra de diferentes grupos sociais, o estudo dos objetos e o que ele nos ensinam sobre a sociedade brasileira, as instituições e a cultura do capitalismo e o modo como estas interferem nas lógicas de consumo de diferentes grupos sociais. O curioso a notar é que no campo de pesquisas das ciências sociais brasileiras, conforme Sarti (1996), pelo menos até a década de 1980, os grupos de baixa renda da população eram marcados pela lógica da “falta”. Enquanto a questão da pobreza sempre esteve presente na literatura acadêmica brasileira, especialmente nos trabalhos de inspiração marxista, o tema de consumo raramente foi eleito (BARROS, 2007). No campo do marketing, especificamente os integrantes dessa parcela significativa da população foram desqualificados como consumidores. Na visão de Barros (2007, p. 8), “pobreza e consumo seria uma conjunção pouco provável, já que os pobres estariam mergulhados em um mundo marcado pela subsistência e pela procura do atendimento a „necessidades básicas‟”. É importante ressaltar que o trabalho vai ao encontro da sugestão proposta por Holbrook e Hirschman (1982) e Addis e Holbrook (2001) quando defendem a ideia de que os pesquisadores precisam investigar com maior rigor os aspectos experienciais do consumo. Ou seja, é relevante levar em consideração nos aspectos experienciais do consumo a incorporação de uma dimensão social, ressaltando o seu significado simbólico-cultural, que não se limita ao consumidor individual, isolado, obediente e sempre fiel a uma simples ordem econômica, material e funcional do consumo, mas que está sempre em trânsito, sendo criado e transferido, desfilando fugaz no mundo culturalmente constituído, nos produtos e serviços e nos próprios consumidores. Nessa mesma linha, vale destacar que o simbolismo do produto é um grande ponto cego do marketing (ROOK, 1985) e que entender os significados que as pessoas atribuem às suas posses e à forma como a identidade do indivíduo é “moldada” por essas posses é questão central para o entendimento do consumidor (BELK, 1988). Para Rook (1985), apesar do reconhecimento generalizado de que muitos produtos e serviços são estímulos simbólicos, relativamente poucos trabalhos empíricos investigaram a dinâmica do consumo simbólico. No Brasil, esta constatação do autor é ainda mais marcante. Complementarmente, o trabalho tem por base teórica o campo de estudos originados na antropologia do consumo. Em estudos desse campo, parte-se de uma crítica às 25 interpretações apoiadas em teorias econômicas (principalmente as de base neoclássica funcionalista) que reduzem o fenômeno do consumo à esfera individual, na qual as pessoas são vistas como seres puramente racionais, que realizam suas compras por meio de uma escolha em função da busca de maximização de sua utilidade. Essa lógica calculista, originada do modelo economicista, não permite a possibilidade de discussão da dimensão simbólica e social do consumo (BARROS, 2006a). Na perspectiva da antropologia do consumo, o consumidor é abordado como um ser dotado de consciência e razão, que toma decisões racionais, mas não no sentido utilitarista do termo. Ao contrário, ele é inserido em um nexo complexo e relacional, de forma simbolicamente informada e socialmente situada, permitindo-lhe construir sua racionalidade sobre essa lógica simbólica para ler a realidade. O enfoque da antropologia do consumo se torna fundamental para compreender essa racionalidade e as formas pelas quais os consumidores criam novos sentidos para os objetos, produtos e serviços (MIGUELES, 2007). Visto que a visão dominante no campo da pesquisa do consumidor persiste em abordá-la com base no modelo economicista ou como fenômeno psicológico (CHAUVEL, 1999), os resultados gerados a partir deste trabalho podem servir tanto de contrapeso como de alternativas ao que é veiculado normalmente a respeito da pesquisa científica sobre o consumidor brasileiro. No que tange aos aspectos epistemológicos e metodológicos propostos para a execução do trabalho empírico da tese, vale enfatizar que neste caso também é possível identificar traços relevantes para a pesquisa do consumidor. Em primeiro lugar, a adoção de uma perspectiva interpretativa para se atingir os objetivos propostos para este trabalho permite uma contribuição ao campo da pesquisa do consumidor, uma vez que, segundo Rocha e Rocha (2007), a adoção de referenciais amparados em uma abordagem mais próxima ao subjetivismo e baseada no interpretativismo é fenômeno recente no Brasil e em outros países. Em segundo lugar, visto que adotou-se no estudo um arcabouço epistemológico- metodológico interpretacionista, a partir da conjugação da corrente fenomenológica, no projeto de uma pesquisa de inspiração “etnográfica” e da metodologia proposta por Glaser e Strauss (1967) conhecida como grounded theory, é lícito afirmar que o projeto é coerente com as principais preocupações de pesquisadores do campo da administração nos últimos anos. Tais preocupações visam buscar soluções alternativas capazes de lançar mão de teorias- metodologias complementares que permitam lidar com as ambiguidades, fluidez e contradições da “vida real”, ao mesmo tempo em que explorem os significados construídos e 26 as experiências vividas pelas pessoas. Ou seja, este estudo torna-se relevante pela proposta de elaborar uma teoria substantiva a partir da conjugação de três abordagens complementares: a fenomenologia, a etnografia e a metodologia denominada grounded theory. Essa combinação é proposta e defendida por Pettigrew (2000), Charmaz e Mitchell (2001), Ayrosa e Sauerbronn (2006) e Goulding (2005). Também é importante salientar que o trabalho descritivo dos estudos com base na disciplina antropológica, com sua capacidade de levantar perspectivas diferentes e interpretações alternativas, apresenta um material tanto provocativo quanto estimulante para repensar a realidade social (DURHAM, 1996). Não menos importante é a constatação de que a proposta é lançar mão de um método de inspiração etnográfica, o qual é um modo privilegiado de análise cultural e, com efeito, é importante para o entendimento dos sistemas simbólicos que articulam os objetos de consumo e o cotidiano dos atores sociais (ROCHA e ROCHA, 2007). A escolha da utilização da abordagem etnográfica e do método da grounded theory é pouco usual, uma vez que verifica-se uma preferência por parte dos pesquisadores brasileiros por estudos com enfoques de orientação positivista ou funcionalista em detrimento de métodos de orientação fenomenológica (CARVALHO e VERGARA, 2002). Rook (1985) relata que a maioria das pesquisas sobre consumidor (quase sempre baseados em metodologia quantitativa concebidas para processar análises computacionais estatísticas) depende de técnicas em que a interação do pesquisador com seus entrevistados é baixa ou inexistente. Na visão dele, tais abordagens apenas arranham a superfície da vida real dos consumidores, pondo em risco a relevância de grande parte da pesquisa com eles. No Brasil, em levantamento realizado por Pinto e Lara (2007) com base em estudos relacionados à área de comportamento do consumidor publicados em periódicos brasileiros entre 1997 a 2006, constatou-se a forte predominância de trabalhos com base empírica, de abordagem positivista e da utilização de métodos e técnicas quantitativistas tradicionais de pesquisa e coleta de dados. Assim, seria interessante a elaboração de trabalhos que levem em consideração a compreensão do fenômeno observado, extraindo dessa compreensão tanto lições teóricas como práticas, não simplesmente prescrições de ações universais. Outra questão a se considerar é que as teorias substantivas decorrentes da grounded theory são especialmente importantes quando a ocorrência de um fenômeno social em uma área específica é insuficientemente explicada pelas teorias gerais. Toma vulto, portanto, a preocupação em levar o trabalho para além da “simples” descrição do fenômeno estudado. 27 Essa tendência pela teorização se deve à percepção de que se, de um lado, muitos bons trabalhos de caráter descritivo já foram realizados no Brasil, de outro, poucos têm se “atrevido” a encarar o desafio do desenvolvimento teórico local, seja pela extensão ou pelo refinamento de teorias existentes, seja pela construção de novas teorias. Em outras palavras, a proposta da pesquisa caminha no sentido de se juntar àqueles estudiosos interessados em encontrar teorias-metodologias complementares que permitam lidar com as ambiguidades, fluidez e contradições da “vida real” vivenciada pelos consumidores. Ou seja, as metodologias propostas para a investigação podem se constituir em uma possibilidade de se chegar àquilo que os consumidores realmente fazem, a partir de estudos que privilegiem uma visão de “perto e de dentro” com o pesquisador, procurando entender a lógica que orienta a vida desses consumidores em seu próprio contexto construído histórica e culturamente. Ainda no contexto acadêmico, mais precisamente no âmbito do ensino da administração, com os resultados do trabalho os atores do mundo acadêmico poderão ter à disposição uma descrição rica da realidade nacional, bem como uma teoria, alternativa à literatura predominantemente estrangeira, que ressalta as peculiaridades culturais e sociais do consumidor brasileiro. Dessa forma, trabalhos como este podem contribuir para a formação de uma massa crítica de conhecimentos para explicar fenômenos de consumo por parte de diferentes grupos sociais ou “subculturas” que envolvem tamanha complexidade, além de uma série de ambiguidades e idiossincrasias. Por fim, conforme salientado por Barros (2006b), investigar os significados do consumo dos segmentos de baixa renda pode ser um caminho revelador para os profissionais da área de comportamento do consumidor que tenham a pretensão de compreender melhor esse grupo, tirando-os de sua “invisibilidade” e passando, de fato, a qualificá-los como consumidores que são. Ademais, a ampliação desse debate do consumidor de baixa renda pode significar mais espaço para a percepção por parte dos empresários brasileiros de novas oportunidades de negócios e atendimento das necessidades ainda pouco investigadas, dessa parcela significativamente da população brasileira (BARROS, 2007). Em um ambiente em que, não raramente se reconhecem dificuldades de ingressos em determinados mercados, bem como rejeições de produtos consagrados, além de pesquisas de mercado que sinalizavam o sucesso de determinados produtos e, posteriormente, mostraram fracassos, a incorporação de debates envolvendo o “fator cultural” nos negócios pode oferecer uma contribuição interessante (BARBOSA, 2006). 28 1.3 Organização da tese Esta tese foi organizada em dez capítulos incluindo esta Introdução, na qual se apresentam os objetivos, as justificativas e a relevância do estudo. No capítulo 2, discute-se o tema “consumo” e apresenta-se um overview sobre o campo da pesquisa do consumidor, com ênfase na evolução dos estudos na disciplina de marketing e nas escolas da teoria de marketing. É nesse capítulo também que insere-se uma discussão sobre as experiências de consumo, com a intenção de identificar lacunas nessa temática. O capítulo 3 tem por objetivo tecer alguns comentários acerca do consumo em uma perspectiva antropológica, por meio da descrição sucinta das principais obras e autores que compõem esse campo. Foi necessário introduzir alguns conceitos sobre sociedade de consumo, cultura, cultura de consumo e o campo denominado pelos autores de teorias da cultura do consumo. O capítulo finaliza com uma seção na qual se apresenta a proposta teórica da tese, baseada na interlocução entre as literaturas de experiência de consumo e a perspectiva antropológica do consumo. No capítulo 4 desenvolvem-se algumas discussões de temas tangentes à tese como “a pobreza no Brasil e no mundo” e “os pobres nas ciências sociais brasileiras”, bem como uma breve descrição dos principais estudos envolvendo consumidores de baixa renda no mundo, com especial atenção aos estudos brasileiros. No capítulo 5 buscou-se apresentar o “arcabouço” epistemológico e metodológico proposto para a pesquisa empírica. Optou-se por comentar cada ponto do “arcabouço”, com base no paradigma interpretativista e nos movimentos da fenomenologia, da etnografia e do método da grounded theory. No capítulo 6, foram discutidos os passos que compuseram o percurso metodológico da tese. No capítulo 7, descrevem-se os principais elementos da teoria que emergiram ao longo do processo de pesquisa, com a preocupação com a inserção de trechos das entrevistas para ilustrar a descrição. 29 No capítulo 8, destacam-se os elementos da teoria substantiva por meio da construção de esquemas para facilitar o entendimento das relações entre os elementos, incluindo a discussão acerca da avaliação do rigor e da fundamentação empírica da teoria gerada. No capítulo 9, seguindo a orientação proposta para os estudos com base na grounded theory, elabora-se uma revisitação às teorias já consolidadas propostas pelos diversos autores dos campos da antropologia do consumo e das experiências de consumo, a fim de confrontar com os resultados da teoria substantiva gerada no trabalho. Por fim, no capítulo 10, formulam-se as conclusões do trabalho, com ênfase nas contribuições do estudo, assim como nas limitações do trabalho e nas indicações para pesquisas futuras. 30 2. O CONSUMO E A PESQUISA DO CONSUMIDOR A proposta metodológica desta tese baseia-se em uma perspectiva interpretativista que conjuga três “movimentos”: a fenomenologia, a etnografia e a grounded theory. Os estudos baseados na grounded theory não devem iniciar-se com uma lista de conceitos concebidos anteriormente, muito menos com uma estrutura teórica orientadora. Contudo, julgou-se necessária a construção de três capítulos que buscarão discutir os principais conceitos dos temas tratados no trabalho, para propiciar o apontamento de lacunas na literatura, razão pela qual se enseja a construção de uma teoria substantiva. Este capítulo, que inaugura a discussão teórica da tese, inicia-se com a explanação acerca de como o consumo vem sendo estudado principalmente pelas ciências sociais. Nessa discussão, são salientadas as análises feitas por diversos autores, porém prioriza-se a corrente que situa o consumo com forte conotação simbólica e, por conseguinte, é governado por representações coletivas, emoções codificadas, sentimentos obrigatórios e sistemas de pensamento e pela ordem cultural que o inventa, o permite e o sustenta, tal como defendido por Rocha (2002). A segunda e a terceira seção do capítulo têm por objetivo construir a evolução histórica do campo da pesquisa do consumidor na disciplina de marketing, ao mesmo tempo em que busca situar os estudos de consumo nas diversas escolas de marketing propostas por Sheth, Gardner e Garrett (1988). O capítulo ainda contempla uma seção que busca discutir um dos pilares da proposta teórica desta tese, a qual se constitui em uma das dimensões do consumo que ainda permanece relativamente lacunar na literatura: a noção experiencial do consumo. 2.1 O consumo Embora o consumo seja frequentemente visto como algo mundano, para não dizer fútil, da vida social, um olhar mais cuidadoso sobre ele e suas implicações pode levar a conexões sobre um mais apurado entendimento de alguns dos elementos mais centrais da sociedade contemporânea, quais sejam: as crenças acerca do que é a verdade e a realidade (BARBOSA, 2006). Segundo McCracken (2003), o consumo moderno é, acima de tudo, um artefato histórico, visto que suas características atuais são o resultado de vários séculos de 31 importantes mudanças tanto sociais como econômicas e culturais no Ocidente. No mesmo sentido, o consumo moderno foi a causa e a consequência de tantas mudanças sociais, cuja emergência marcou a transformação do mundo social. Assim, é possível afirmar que essa “grande transformação” do Ocidente incluiu não apenas uma “revolução industrial” mas também uma “revolução do consumo”, que teria modificado os conceitos ocidentais de tempo, espaço, sociedade, indivíduo, família e Estado (CAMPBELL, 2001; McCRACKEN, 2003). Diante da constatação do “peso” que pode ser atribuído ao consumo nessa grande transformação, McCracken (2003), a partir da análise de obras de três autores considerados pioneiros, revisita seus diversos pontos de vista com o intuito de mostrar como eles podem ser organizados e inter-relacionados na criação de uma perspectiva geral das origens e do desenvolvimento do consumo moderno. O QUADRO 1 apresenta, resumidamente, as análises de McCracken (2003) acerca das obras de McKendrick (1982), Williams (1982) e Mukerji (1983). Cumpre destacar que não há consenso entre os autores no que tange aos termos fundamentais da revolução do consumo. Para além de entendê-lo como um artefato histórico, ao longo dos séculos, o consumo, por conseguinte, tornou-se um campo de investigação complexo, ambíguo e elusivo, visto que passou a englobar várias atividades, atores e um conjunto de bens e serviços que, frequentemente, não se restringem necessariamente aos fornecidos sob a forma de mercadorias (CAMPBELL, 2001; BARBOSA e CAMPBELL, 2006). No Brasil, em decorrência da inexistência de estudos dedicados a estudar o consumo, a sociedade de consumo e suas especificidades, bem como do pouco interesse dos pesquisadores em consolidar linhas investigativas relacionados a esses temas (BARBOSA, 2006), é plenamente aceitável afirmar que muito pouco se sabe sobre como se consolidou a sociedade do consumo no País e como se deu a “grande transformação” econômica, social e cultural, conforme apresentada por McCracken (2003). Ademais, muito pouco se sabe sobre o consumidor brasileiro, visto que ainda são poucos os estudos que se preocupam em incorporar uma abrangente análise histórica do consumo no Brasil. Uma das tentativas, ainda que focada nos últimos cinquenta anos, foi a empreendida por Richers (2000), que buscou caracterizar o consumidor brasileiro na evolução político-econômica do Brasil a partir dos anos 1950 até o início do século XXI. 32 QUADRO 1 – Uma discussão acerca de três obras sobre o nascimento do consumo AUTOR OBRA COMENTÁRIOS Neil McKendrick The Birth of a Consumer Society: The Commercialization of Eighteenth-Century England (1982) O autor reivindica a descoberta do nascimento da revolução do consumo na Inglaterra do século XVIII. O objetivo do trabalho é documentar o desenvolvimento do aspecto da demanda na Revolução Industrial, além de iluminar como essa transformação de gostos e preferências contribuiu para a grande transformação. Foi ignorada, segundo o autor, a revolução do consumo, companheira necessária da revolução industrial, uma vez que uma mudança nos meios e fins produtivos não poderia ter ocorrido sem uma mudança comensurável nos gostos e preferências dos consumidores. Para isso, McKendrick examina a história da comercialização da moda, das cerâmicas e do ato de fazer barba do século XVIII, além da contribuição de alguns comerciantes da época em desenvolver os anúncios em jornais do período. Rosalind H. Williams Dream Worlds: Mass Consumption in Late Nineteenth-Century France (1982) As análises da autora, que se localizam na Fança do século XIX, trazem um entendimento mais claro da natureza do consumo nos dias modernos, condenando a comercialização da sociedade atual e os excessos e as ilusões do “mundo do sonho de consumo”. Williams estuda os quatro estilos de vida que emergiram deste mundo de sonho na França: o burguês, o de massa, o elitista e o democrático a partir de um rico arsenal de conceitos das Ciências Sociais. Ela observa as implicações da revolução do consumo para a competição por status. Mas também nota os modos mais notáveis pelos quais os novos bens e hábitos de consumo ingressaram na fabricação da sociedade ocidental como agentes decisivos da mudança e de socialidade. Chandra Mukerji From Graves Images: Patterns of Modern Materialism (1983) Essa autora tenta localizar o advento de uma cultura consumista na Europa dos séculos XV e XVI por meio do desenvolvimento de três aspectos do materialismo: consumismo, bens capitais e pensamento materialista. Ela encontra evidências de um “consumismo hedonista” no primeiro período moderno. Mukerji usa esta descoberta para argumentar que o consumismo deu-se anteriormente ao advento do capitalismo e, mais que isso, que o consumismo ajudou a criar o capitalismo. Ao buscar a explicação de como o consumo contribuiu para a grande transformação, essa autora leva em consideração o caráter simbólico e comunicativo de todos os objetos. Fonte: McCracken (2003) Na tentativa de organizar o que normalmente se discute sobre o tema, Rocha (2006a) enfatiza que quando se fala em consumo o discurso é proferido a partir de três enquadramentos preferenciais. No primeiro, o consumo pode ser explicado como essencial para a felicidade e a realização pessoal, o que caracteriza o enquadramento hedonista. Outro tipo é o que explica o consumo sob uma perspectiva moralista, na qual o tom é denunciatório. 33 Nesta perspectiva, o consumo é percebido como uma atividade “maligna” ou antissocial (MILLER, 2007). Como exemplo citado por Miller (2007), a crítica ambientalista coloca o consumo como sinônimo de destruição. Por último, o consumo pode ser explicado pelo enquadramento naturalista, no qual ora atende à necessidades físicas, ora responde a desejos psicológicos. O QUADRO 2 procura sintetizar os principais argumentos de cada uma dessas visões. QUADRO 2 – O consumo por diferentes visões VISÕES DO CONSUMO PRINCIPAIS ARGUMENTOS DEFENDIDOS Hedonista É o consumo pelo prisma da publicidade no qual o sucesso traduz-se na posse infinita de bens que conspiram para a felicidade perene. Essa visão é considerada o mainstream do consumo, motivo pelo qual é intensamente utilizada na mídia. Moralista O consumo é responsabilizado por uma infinidade de problemas sociais e mazelas da sociedade contemporânea, como violência urbana, ganância desenfreada, individualismo exacerbado ou toda sorte de desequilíbrios mentais, familiares e até ecológicos. Essa postura leva à ideia de que falar mal do consumo é politicamente correto. Naturalista Essa visão tem por base a mistura dos vários significados recobertos pela ideia de consumo, confundindo a dimensão cultural e simbólica com outros significados que a palavra recobre muitas vezes relacionada à ideia de consumo como algo natural ou biológico. Fonte: Rocha (2006a) É possível avançar por novos enquadramentos conceituais sobre o consumo que ultrapassem a forma costumeira de encará-lo como uma dimensão apenas residual, imoral, individual ou utilitária e que busque compreendê-lo como uma espécie de facilitador ou propiciador de certas relações sociais. Assim, a ideia de um consumo no plano simbólico implica atrelar aos significados da compra de certos bens ou serviços (no caso, especialmente aqueles destinados ao reforço da construção de certas identidades sociais por meio do vestuário, de preparos corporais, de bens culturais, etc) as dinâmicas de sociabilidade às quais se entrelaçam. Nesse sentido, os shoppings e as instituições similares são efetivamente espaços onde tais fusões – bem como o jogo de comunicações e redefinições entre estas no plano das interações sociais – têm um peso decisivo (FRÚGOLI JÚNIOR, 2008). Para Laburthe-Tolra e Warnier (1997, p. 416-417), “o consumo pode ser definido como o uso de bens e serviços que desempenha uma dupla função: produzir a identidade, o sentido e a sociabilidade, ao mesmo tempo em que satisfaz as necessidades dos 34 consumidores”. Também para esses autores o consumo é fonte de identidade pessoal e coletiva, uma vez que os bens são produtores de sentido. Ou seja: “São signos que permitem a comunicação entre os iniciados, a inclusão por identificação ao grupo, a intromissão em um grupo ao qual o sujeito deseja pertencer e a exclusão de indivíduos ou grupos que não compartilham das normas recebidas” (LABURTHE-TOLRA e WARNIER, 1997, p. 417). Ademais, os hábitos de consumo imitam a organização social e sua dinâmica, ao mesmo tempo em que o uso dos bens e o gosto estético são classificados e classificadores, permitindo que os estratos sociais se distingam uns dos outros. Barros (2006a) entende que o consumo pode ser percebido como uma combinação de elementos tangíveis e intangíveis, em que a individualidade de cada ator está inserida em um conjunto interligado de relações sociais e culturais. Na visão de Slater (2002), o consumo é uma categoria sociológica profundamente elusiva. Para este autor, o caráter elusivo se daria em virtude de que, definido como um processo social, o consumo conecta questões das nossas vidas cotidianas com questões centrais da nossa sociedade e época. Dessa forma, ele se relaciona tanto com a forma com a qual devemos ou queremos viver quanto questões relativas à forma de como a sociedade é ou deveria ser organizada, sem falar da estrutura material e simbólica dos lugares em que vivemos e a forma como nele vivemos. O consumo também pode ser visto como um processo social que diz respeito a múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e serviços. Ao mesmo tempo, pode ser encarado como um mecanismo social entendido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de identidades. Ou, ainda, como uma estratégia utilizada no dia a dia pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos de direitos, estilos de vida e identidades ou como uma categoria central na definição da sociedade contemporânea (BARBOSA e CAMPBELL, 2006). Complementarmente, com base no interesse para esta tese, cabe enfatizar que o consumo pode ser entendido como eminentemente cultural. Isso porque, em primeiro lugar, todo consumo envolve significado. Ou seja, um indivíduo, para “ter uma necessidade” e agir em função dela, precisa ser capaz de interpretar sensações, experiências e situações, ao mesmo tempo em que precisa dar sentido a vários objetos, ações e recursos em relação a essas necessidades. Em segundo lugar, o consumo é sempre cultural, porque os significados envolvidos são partilhados; isto é, as preferências individuais são formadas no interior das culturas. Em terceiro lugar, todas as formas de consumo são culturalmente específicas. Isso quer dizer que elas são articuladas conforme ou em relação a formas de vida significativas e 35 específicas. Por fim, é por meio de formas de consumo culturalmente específicas que (re)produzimos culturas, relações sociais e a sociedade. Em outras palavras, conhecendo e usando os códigos de consumo de sua cultura, um indivíduo reproduz, demonstra, sua participação em uma determinada ordem social (SLATER, 2002). No estudo das teorias do consumo, é revelador mostrar-se desfavorável às suposições referentes à motivação, que se encontram não só na economia clássica, como também nos escritos de Sombart e Veblen. Basicamente, a objeção foi de que, na totalidade dos casos, o “motivo” é psicologicamente interpretado para se referir seja a uma emoção, seja à tendência de aumentar a satisfação. Essa concepção dos “motivos” como “molas de ação” leva-os mais a serem universalmente atribuídos a todos os seres humanos do que localizados em específicas situações históricas e socioculturais. É claramente necessário rejeitar essa concepção da natureza da motivação e reconhecer seu caráter essencialmente criado como produto da intenção humana consciente de si mesma (CAMPBELL, 2001). Na visão de Slater (2002: 132), o argumento mais convincente é que [...] a cultura não “influencia o consumo, nem dá formas específicas a uma necessidade básica, e sim que a cultura constitui as necessidades, os objetos e as práticas de que compõem o consumo. Não é um acréscimo, e muito menos uma decoração frívola, superficial ou luxuosa pintada em cima dos desejos naturais pelas civilizações opulentas... somente em virtude da natureza cultural da vida social é que podemos ter necessidades ou identificar objetos que possam satisfazê-las. O domínio do consumo é aquele no qual homens e objetos são postos em contato. É pelo consumo e em seu interior que algumas das práticas mais humanas são evidenciadas. Diferentemente da esfera da produção, em que tudo tende a ser funcional, prático e até mesmo, desumano, o consumo seria o modo final de inserir o objeto produzido na sociedade como objeto social (ROCHA, 1995; DaMATTA, 1995). Conforme salientado por DaMatta (1995), a carne é diferente da comida; a casa é diferente do lar; o cigarro da fábrica é diverso daquele que conota uma sentimentos e impressões variadas. Ou seja, é nesses circuitos simbólicos de trocas sociais que se realiza o consumo. Essa operação ajusta-se ao processo de construção das identidades sociais, seguindo de perto os modelos culturais que definem os “tipos” ideais de cada segmento ou grupo, classe ou bairro, no jogo complexo das heterogeneidades coletivas. Ou seja, são os objetos que trazem a presença e/ou ausência de identidades, visões de mundo ou estilos de vida. Roupas, automóveis, bebidas, cigarros, comidas, habitações e enfeites dos mais diversos não são consumidos de forma neutra; pelo contrário, são antropomorfizados para levarem a seus consumidores as individualidades e 36 universos simbólicos que a eles foram atribuídos (ROCHA, 1995; DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006). Uma questão parece ganhar vulto em toda essa discussão: as múltiplas dificuldades que enfrentam as proposições teóricas, que procuram dar conta de todas as esferas do consumo. Isso se daria muito em decorrência da heterogeneidade dos processos, atividades, itens e atores envolvidos, o que dificultaria a explicação por meio de uma abordagem generalizante. Dessa forma, fica latente a noção de que o que se aplica à moda e a roupas não pode ser falado sobre a comida e a alimentação, muito menos no tocante à música (BARBOSA e CAMPBELL, 2006). Nesse contexto, é interessante considerar o que Barbosa e Campbell (2006), com base em outros autores, chamam de “sistemas de consumo”, que implica a compreensão dos processos e produção, distribuição e comercialização de cada bem e serviço analisado para permitir explicar seu consumo. Dessa forma, pode-se afirmar que, para melhor compreender o consumo em toda a sua complexidade e riqueza de possibilidade de conversação com outros campos do conhecimento diante de sua multidisciplinaridade, parece ser difícil ou indesejável desvencilhá-lo dos aspectos culturais que permeiam as relações sociais. Nesse sentido, o próximo capítulo tem o objetivo de discutir com maiores detalhes os aspectos culturais do consumo, bem como utilizar o aporte antropológico para embasar as questões importantes que permeiam esta tese. Contudo, julgou-se interessante, ainda na sequência desse capítulo, apresentar algumas discussões acerca da pesquisa do consumidor no campo do marketing para, em seguida, focar esforços no entendimento de uma das perspectivas importantes do consumo e ainda pouco explorada: a noção experiencial. 2.2 A evolução da pesquisa do consumidor na disciplina de marketing Inicialmente, cumpre destacar que na disciplina de marketing, o consumo, historicamente, vem sendo entendido como algo individual. De acordo com essa perspectiva de alcance micro, as necessidades do consumidor são vistas como inatas e não socialmente construídas, e o papel dos profissionais de marketing se limita a oferecer produtos e serviços que possam oferecer maiores benefícios do que os da concorrência (BELK, 1995). O próprio termo que designa o campo no marketing, comportamento do consumidor, traduz uma tradição behaviorista, reificando o indivíduo como eixo central a partir do qual se 37 pensa o consumo (ROCHA, 2002). Ratificando essa questão, para Thompson, Locander e Pollio (1989) o termo comportamento do consumidor parece ser um anacronismo, pois reflete uma era em que a psicologia era dominada pelo behaviorismo. Assim, para esses autores a maioria das pesquisas sobre o consumidor na contemporaneidade deveria ser rotulada como “cognição do consumidor”, dado o viés dos pesquisadores em considerar apenas aspectos ligados ao processamento de informação, estruturas mentais, tomada de decisão e custo- benefício entre outras. Contudo, é possível perceber nos últimos anos uma tendência de incorporação de novos referenciais e possibilidade de conversação (HOLBROOK, 1987) com outros campos de conhecimento, conforme será discutido posteriormente nesta seção e no próximo capítulo. Ao se buscar traçar uma “evolução” histórica dos estudos envolvendo o consumidor na disciplina de marketing, pode-se afirmar que os primeiros estudos datam de meados da década de 1950. A partir daí, a área vem evoluindo, incorporando novas subáreas e campos de pesquisa. Essa evolução pode ser visualizada no QUADRO 3. QUADRO 3 - Evolução dos estudos envolvendo o consumidor na disciplina de marketing (continua) DÉCADA COMENTÁRIOS Década de 1950 Nesta década, identificam-se três separadas áreas de pesquisa: 1 – Determinantes psicológicos do comportamento do consumidor; 2 – Determinantes sociais do comportamento do consumidor; 3 – Tomada de decisão por parte do consumidor. Métodos oriundos da psicologia, tais como técnicas projetivas e entrevistas em profundidade, foram incorporados aos estudos do comportamento do consumidor DÉCADA DE 1960 Um grande número de estudiosos de diferentes áreas começou a focar esforços para a área de comportamento do consumidor. Linhas de pesquisas: 1 – Lealdade à marca de produtos de mercearias; 2 – Utilização do método de experimentos no campo do comportamento do consumidor; 3 – Teoria do risco percebido em comportamento do consumidor; 4 – Teorias compreensivas de comportamento de compra. Nessa década, foi criada a mais conhecida teoria do comportamento do consumidor, foi proposta por Howard e Sheth (1969). 38 QUADRO 3 - Evolução dos estudos envolvendo o consumidor na disciplina de marketing (conclusão) Década de 1970 Nos anos da década de 1970, houve a consolidação da ACR (Association for Consumer Research), fundada em 1969. Também houve a organização do JCR (Journal of Consumer Research) em 1974. Novas linhas de pesquisas foram desenvolvidas: 1 – Comportamento de compra industrial; 2 – Estudo do comportamento de consumo de serviços públicos como cuidados da saúde, transporte, nutrição, etc; 3 – Comportamento de compra familiar; 4 – Relacionamento entre atitude e comportamento; 5 – Processamento de informação Década de 1980 Nesta década, a ênfase das pesquisas recaiu sobre temas como rituais e simbolismo, comportamento de fantasia e experimentação e o impacto da religião no comportamento do consumidor. Também houve uma corrente contra a mensuração quantitativa nas pesquisas e uma maior preferência por mais pesquisas de tradição qualitativa DÉCADA DE 1990 A partir dos anos 1990, aconteceu o desenvolvimento marketing de relacionamento. Assim, passou-se a discutir mais tópicos como atitudes de consumidores, relações pessoais, tendências de comportamento entre outros fatores socioculturais. Os estudos passam a se preocupar também com a contextualização do ambiente. Pode-se assinalar também as melhorias das avaliações quantitativas proporcionadas pelo avanço tecnológicos e softwares poderosos de análise de dados. Pode-se afirmar que nessa década, houve um crescimento nesse campo do movimento conhecido como pós-modernismo, uma forma de investigação que inclui objetivos e métodos diferentes. DÉCADA DE 2000 A entrada do novo século estabelece uma perspectiva do comportamento do consumidor baseada em um “marketing experiencial”, ou seja, a sensação de que os produtos e serviços proporcionam aos consumidores, experiências sensoriais, afetivas, cognitivas, físicas e sociais. Novas técnicas de pesquisas estão sendo incorporadas a partir de uma maior conversação com outras áreas tais como filosofia, sociologia e antropologia. Fonte: SHETH, GARDNER e GARRETT (1988); BELK (1995); ENGEL, BLACKWELL e MINIARD (2000); VILAS BOAS, BRITO e SETTE (2006); Belk (1995) argumenta que a emergência de uma “nova” concepção da pesquisa do consumidor teve início a partir de meados da década de 1980 e ganhou força nos fóruns internacionais do campo nos anos de 1990. O QUADRO 4, adaptado do trabalho desse autor, expõe as principais características das duas perspectivas de pesquisa do consumidor. Complementarmente, Belk (1995) ressalta que a “nova” perspectiva parte da premissa de que os consumidores não são autômatos que recebem, passiva e obedientemente as informações produzidas pelas organizações e maximizam suas satisfações por meio de escolhas orientadas simplesmente pelo custo-benefício, mas sim que os seres humanos são conectados socialmente e são participantes de múltiplas interações culturais. A partir dessas considerações, o autor coloca em discussão algumas questões. Primeira, as classes sociais não 39 devem ser entendidas somente como uma variável classificatória baseada em renda ou profissão, mas sim na realidade do consumo, envolvendo conceitos relativos de pobreza e riqueza, excesso e falta, culturas periféricas e subculturas, bem como desejos e frustrações. Segunda, a família não pode ser encarada como uma unidade de tomada de decisão; pelo contrário, deve ser vista como um grupo frágil e simbolicamente rico, no qual as relações são mediadas pelo consumo. Um automóvel não é somente um meio de transporte, mas um objeto composto de sentimentos diversos, tais como fantasia, divertimento, prestígio, poder, conexão, alienação e agressividade. Por fim, Belk (1995) também enuncia alguns tópicos que podem constituir uma “agenda” de pesquisa para o campo do consumo. Entre eles, o consumo simbólico, estudos relacionando consumo, posse e propriedade, o consumo em festivais e em rituais, as investigações tendo por base perspectivas críticas e os estudos culturais. QUADRO 4 – Duas perspectivas na pesquisa do consumidor A “VELHA” PERSPECTIVA A “NOVA” PERSPECTIVA Positivista Experimentos/Surveys Quantitativa Teorias a priori Não-positivista Etnografia Qualitativa Teorias emergentes Econômica/Psicológica Sociológica/Antropológica Micro/Gerencial Foco na compra Ênfase na cognição Americana Macro/Cultural Foco no consumo Ênfase nas emoções Multicultural Fonte: Adaptado de BELK (1995) No Brasil, em virtude da importação de teorias desenvolvidas nos ditos países centrais, vale afirmar que é possível perceber uma defasagem de ideias que retratam uma compreensão tardia da realidade. Um autor que realizou um amplo balanço sobre os estudos de marketing foi Vieira (1998, 1999, 2000). Em 1998, ao estudar os artigos de marketing publicados no Encontro Nacional da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Administração (ENANPAD) na década de 1990, constatou uma concentração de pesquisas em comportamento do consumidor, estratégias de mercado, marketing de serviços e sistemas de informação de pesquisa de marketing. Já em 2000, ao analisar 272 artigos publicados no Enanpad e a Revista de Administração da USP (RAUSP) e a Revista de Administração de Empresas (RAE), verificou que houve um nítido direcionamento dos estudos no sentido de conhecer melhor o consumidor brasileiro. Corroborando a constatação de Vieira (2000), o 40 estudo publicado por Faria et al (2006) também concluiu que o campo que visa estudar o comportamento do consumidor tem tido o maior número de publicações durante todo o período de 2000 a 2005. Os autores visualizaram que houve um salto considerável de participação de estudos em comportamento do consumidor no período pesquisado. Em um estudo conduzido por Pinto e Lara (2007), no qual se analisou a produção acadêmica relacionada ao comportamento do consumidor entre 1997 e 2006, pode-se afirmar que a tendência de trabalhos converge para as seguintes características: a grande maioria dos trabalhos é de base empírica (82,35%), de abordagem positivista e utilizando métodos e técnicas quantitativistas tradicionais de pesquisa e coleta de dados (80,10% do total). De fato, esses resultados parecem confirmar que os estudos relacionados à pesquisa do consumidor no Brasil ainda mantêm forte influência da “velha” perspectiva, conforme a exposição de Belk (1995) já apresentada. Nesse ponto, vale ressaltar a visão de McCracken (2003), ao esclarecer que, nos últimos anos um desenvolvimento em conjunto vem ocorrendo entre as disciplinas de antropologia e comportamento do consumidor. Primeiramente, os acadêmicos ampliaram a definição de comportamento do consumidor. Dessa forma, os estudos vêm procurando investigar toda a interação entre o produto e/ou serviço e o consumidor antes e depois do momento da compra. Em segundo lugar, os pesquisadores começaram a ir além da preocupação com o “processo de tomada de decisão” para absorver o papel de outros processos cognitivos (especialmente simbólicos) e o papel de afeto. Por fim, os acadêmicos vêm buscando desenvolver pesquisas que transcendem o individualismo metodológico e o foco microcósmico, herdado da psicologia, considerando os sistemas e contextos culturais e sociais mais amplos do consumo. Em termos gerais, nessa abertura de campo, o consumo passa a ser visto menos frequentemente como uma pequena fatia da realidade do indivíduo e mais comumente como um conjunto de fenômenos diversos, sistemáticos, abrangentes e plenamente culturais (McCRACKEN, 2003). A partir dessa evolução, torna-se importante focar a discussão sobre como a pesquisa do consumidor tem sido classificado na teoria de marketing. 41 2.3 A pesquisa do consumidor na teoria de marketing Este tópico foi incorporado ao capítulo de consumo pelo fato de se julgar necessário tentar situar os estudos de consumo no campo definido por alguns autores como “teoria de marketing”. Cumpre ressaltar, todavia, que na teoria de marketing a classificação das diversas escolas ainda não leva em consideração os estudos de consumo, como se pretende desenvolver nesta tese, entendido como um campo de investigação que incorpora um conjunto de fenômenos diversos, sistemáticos, abrangentes e plenamente culturais, mas sim aos trabalhos focados mais tradicional e precisamente no comportamento do consumidor. Para denotar as similaridades entre as várias escolas de pensamento de marketing, Sheth, Gardner e Garrett (1988) propuseram uma matriz 2 X 2, que será utilizada para classificar as várias teorias e permitir uma compreensão entre as várias escolas de pensamento em termos de seus valores, orientações e filosofias básicas de motivação e comportamento humano. O fundamento para essa classificação apóia-se nas duas dimensões de perspectiva interativo versus não interativo e nas duas dimensões de perspectiva econômica versus não econômica. A dimensão interativa versus não interativa baseia em questões sobre o papel do marketing e seus objetivos. As escolas de pensamento baseadas em processos interativos incorporam o conceito de balanço de poder entre vendedores e compradores no mercado. Em contraste, isso não é assumido por escolas de pensamento baseadas na perspectiva não interativa. Já a segunda dimensão foca na orientação econômica versus não econômica das teorias e é utilizada para enfatizar as diferentes abordagens para atingir os objetivos de marketing, assim como os pontos de vista de vendedores e compradores. As escolas de perspectiva econômica adotaram uma forte explicação econômica nas ações dos atores de marketing, enquanto a perspectiva não econômica apoia-se no argumento de que as ações de produtores, membros dos canais de marketing e consumidores poderiam não ser explicadas somente por análises econômicas (SHETH, GARDNER e GARRETT, 1988). A matriz pode ser visualizada no QUADRO 5. De acordo com os autores, as escolas de perspectiva não interativa e econômica são aquelas que emergiram quando o marketing se distanciou da economia. Essas escolas têm grande relevância para a análise e prática do marketing. As três escolas de abordagens interativa e econômica surgiram uma década depois das escolas de perspectiva não interativa 42 e econômica. Elas demonstram visões mais avançadas e sofisticadas das atividades de marketing. Já as escolas baseadas em perspectivas não interativa e não econômica se desenvolveram durante as décadas de 1960 e 1970, e representam uma grande mudança na orientação do marketing, visto que houve a emergência do interesse em influências comportamentais, sociais e psicológicas na disciplina. Por fim, o último grupo de escolas que utilizam a orientação interativa e não econômica emergiram mais recentemente. As integrantes desta perspectiva baseiam-se mais nas ciências comportamentais do que nas ciências econômicas e tanto compradores como vendedores são utilizados para analisar e entender as transações de mercado. QUADRO 5 - Classificação das escolas de marketing PERSPECTIVA NÃO INTERATIVA PERSPECTIVA INTERATIVA PERSPECTIVA ECONÔMICA Commodities Funcional Regional Institucional Funcionalista Gerencial PERSPECTIVA NÃO ECONÔMICA Comportamento do consumidor Ativista Macromarketing Dinâmica organizacional Sistemas Troca social Fonte: SHETH, GARDNER e GARRETT (1988) A partir dessa classificação, pode-se afirmar, portanto, que a escola do comportamento do consumidor baseada nas perspectivas não interativa e não econômica será a utilizada neste estudo. Essa escola, segundo Sheth, Gardner e Garrett (1988), representa uma mudança significativa na história do pensamento de marketing. A análise desses autores sugere duas razões para a rápida evolução e alta popularidade da escola de comportamento do consumidor: (a) a emergência do conceito de marketing; e (b) o campo de conhecimento estabelecido na ciência comportamental. Com relação à primeira razão, é lícito enfatizar que depois da Segunda Guerra Mundial a economia americana começou a mudar de uma economia centrada nos vendedores para uma economia centrada nos compradores. A extraordinária capacidade de produção tinha gerado um excedente e começava a se perceber uma dificuldade para vender o que era produzido. Dessa forma, vários autores começaram a focar esforços no entendimento de como o consumidor deveria ser conquistado para fazer frente à grande concorrência. 43 No tocante ao campo de conhecimento estabelecido na ciência comportamental, havia também uma crescente realização de um considerável corpo de conhecimento oriundo das ciências comportamentais que poderia ser útil para funções de negócios, especialmente o marketing. Assim, conhecimentos da antropologia e da psicologia cognitiva, entre outros, passaram a contribuir para os estudos do comportamento do consumidor. Ao finalizar esta seção, não seria equivocado afirmar que a proposta teórica defendida nesta tese caminha no sentido de ir além da proposição de Sheth, Gardner e Garrett (1988) ao buscar ampliar a escola do comportamento do consumidor com a adoção de novas perspectivas. Entre elas, seria possível a proposição de novos “olhares” sobre o fenômeno do consumo com o aporte de referenciais da antropologia, da psicologia, da filosofia, da medicina e de outros campos do conhecimento. Nesse novo “olhar” para o consumo, poderiam surgir diversas linhas de pesquisa tais como aquelas que poderiam investigar questões culturais, históricas e sociais relativas ao consumo, aspectos experienciais envolvidos nos atos de consumo de diversos produtos e serviços, aspectos neurológicos influenciadores e explicadores de diversos comportamentos de consumo entre diversas outras possibilidades. Dessa forma, para além dessas perspectivas baseadas fundamentalmente nas ciências comportamentais, desde meados da década de 1980, percebeu-se na literatura internacional relacionada à pesquisa do consumidor uma busca por uma extensão da abordagem predominante que via o consumidor simplesmente como um tomador de decisão racional (ADDIS e HOLBROOK, 2001). Uma das perspectivas apresentadas para ir além da visão do consumidor como um tomador de decisão refere-se à noção experiencial do consumo até então negligenciada pelos pesquisadores. Nesse contexto, a proposta desta tese caminha no sentido de investigar uma das dimensões do consumo que ainda permanece lacunar – a noção experiencial do consumo –, discutida a seguir. 2.4 Experiência de consumo A noção de experiência entrou no campo do consumo com o artigo seminal de Holbrook e Hirschman (1982), em que destacavam a crescente importância, até então negligenciada pelos pesquisadores de consumo, da “visão experiencial”, marcada por um fluxo de fantasias (sonhos, imaginação, desejos inconscientes), sentimentos (emoções tais como amor, ódio, raiva, inveja, divertimento) e diversão (prazer hedônico derivado de 44 atividades divertidas, alegres e prazerosas) associado ao consumo. Ainda que o artigo desses pesquisadores seja considerado um marco no campo da pesquisa do consumidor, é possível encontrar algumas insinuações sobre questões envolvendo a perspectiva experiencial do consumo em trabalhos de autores como Wroe Alderson, que, em 1957, enfatizava a importância da experiência no consumo em seu trabalho Marketing Behavior and Executive Action ou no livro Quality and Competition, do economista Lawrence Abbott, também datado da década de 1950. Além do mais, um recente trabalho conduzido por Stanley Lebergott, em 1993, intitulado Pursuing Happiness traça o conceito de experiência de consumo por meio de contribuições de John Maynard Keynes, Alfred Marshall e, até mesmo, Adam Smith (HOLBROOK, 2006a). Apesar disso e passados quase trinta anos da publicação do trabalho de Holbrook e Hirschman (1982), o conceito ainda parece ser elemento chave da pesquisa do consumidor (CARÙ e COVA, 2003), embora seja fácil perceber que algumas lacunas e desafios permaneçam evidentes (BRASIL, 2007). Essas lacunas são facilmente visíveis ao se encontrar diferentes definições para o conceito e, principalmente, ao se identificar uma dificuldade para estabelecer adequadamente os elementos, dimensões ou variáveis associadas à compreensão da experiência de consumo (BRASIL, 2007). Para Holbrook (2006b), essas dificuldades advêm da insistência de muitos autores do campo do comportamento do consumidor em adotar a perspectiva do processamento de informação aliada à visão de que o consumidor é uma “máquina” racional, objetivando sempre a maximização de questões utilitárias, e limitada à sua capacidade cognitiva (atenção seletiva, percepção distorcida e memória restrita, entre outros). Atrelado a isso, os métodos que normalmente acompanham essas perspectivas, que foram consagradas, principalmente a partir da década de 1980, como experimentos, surveys e modelagens, dificilmente conseguem pesquisar adequadamente questões chaves relacionadas às experiências de consumo. Com relação à dificuldade para se estabelecer uma conceituação para o termo experiência de consumo, Carù e Cova (2003) tentaram propor uma contribuição no sentido de estabelecer a definição da palavra experiência em diferentes áreas do conhecimento. O QUADRO 6 apresenta essas definições. No campo das ciências gerenciais, esses autores concluíram que definições não são unitárias. Para Holbrook e Hirschman (1982), uma experiência é uma ocorrência pessoal, não raramente com significante importância emocional, fundada na interação com estímulos de produtos e serviços consumidos. No mesmo sentido, na visão desses autores, vale ressaltar 45 que a abordagem experiencial é fenomenológica e considera o consumo como um estado primariamente subjetivo de consciência, com uma variedade de significados simbólicos, respostas hedônicas e critérios estéticos. Pullman e Gross (2003) estabelecem que experiências são inerentemente emocionais e pessoais, e abrangem fatores como interpretações pessoais de uma situação com base em um histórico cultural, experiências anteriores, humor e traços de personalidade. QUADRO 6 – Definições de experiência ÁREA DO CONHECIMENTO DEFINIÇÃO Ciência No sentido genérico herdado das ciências positivas, uma experiência é similar a um experimento baseado em fatos e dados objetivos que podem ser generalizados. É importante reconhecer uma distinção entre experiência em geral e uma experiência científica. Uma experiência comum fornece ao indivíduo um conhecimento particular, enquanto uma experiência científica oferece um conhecimento universal válido para todos. Filosofia Uma experiência é um “teste” pessoal que geralmente transforma o indivíduo. A experiência é importante quando o que acontece é traduzida em conhecimento, não somente quando ela permanece como uma simples ocorrência vivida. Sociologia e Psicologia Uma experiência é uma atividade subjetiva e cognitiva que permite a um indivíduo se desenvolver. A noção de experiência é geralmente definida como uma “atividade cognitiva”, “um teste”, um meio de construir a realidade, e, acima de tudo, verificá-la. Antropologia e Etnologia Experiência é a forma na qual indivíduos vivem sua cultura e, mais precisamente, como eventos são recebidos pela consciência. A experiência se distingue do conceito de evento, considerado como alguma coisa geral que acontece com os outros, com a sociedade, com o mundo. A experiência é qualquer coisa de singular que acontece com o indivíduo. Também se diferencia do mero comportamento individual, que pode ser descrito por um observador externo e diz respeito à rotina vivenciada pelo consumidor. Fonte: Elaborado com base em Carù e Cova (2003) Nesse sentido, as experiências de consumo não focam apenas aspectos funcionais e “objetivos” dos produtos, mas sim todos os eventos, atividades e “detalhes” capazes de proporcionar valor em todas as fases do consumo, por exemplo, o design do ambiente, a interação com outras pessoas, a “construção” de sentimentos e significados, e, até mesmo, aspectos emocionais (BRUNER, 1986). 46 Em uma visão mais operacional da abordagem experiencial, Schmitt (2000) define experiências como acontecimentos individuais que ocorrem como resposta a algum estímulo, não sendo espontâneas, mas induzidas. O autor também ressalta que as experiências são resultados do encontro e da vivência de situações, sendo estímulos criados para os sentidos, para os sentimentos e para a mente. Pine II e Gilmore (1998), no mesmo sentido, propõem que uma experiência ocorre quando uma companhia intencionalmente usa produtos e serviços para engajar consumidores em uma atividade que cria um evento memorável. Na visão desses pesquisadores, dessa forma, as experiências são inerentemente pessoais, existindo somente na mente das pessoas que participam dela. Assim, dificilmente duas pessoas terão a mesma experiência, porque cada experiência deriva de interação estabelecida entre o evento e o estado mental do indivíduo. Também é importante ressaltar que na perspectiva experiencial a experiência de consumo não deve ser reduzida às atividades de compra - isto é a experiência no ponto de venda (FALK e CAMPBELL, 1997; UNDERHILL, 1999) -, muito menos às atividades pós- compra, mas inclui uma série de outras atividades que podem ser divididas em quatro grandes estágios. O QUADRO 7 descreve esses estágios. QUADRO 7 – Estágios das experiências de consumo ESTÁGIO DA EXPERIÊNCIA DE CONSUMO DESCRIÇÃO Experiência pré-consumo Envolve a busca por algo, planejamento, sonhos, prever ou imaginar a experiência Experiência de compra Deriva da escolha, pagamento e encontro do serviço e do ambiente Experiência de consumo central Inclui a sensação, a saciedade, a satisfação/insatisfação, irritação, transformação Experiência de consumo lembrada Envolve o ato de olhar fotos para reativar na memória o experiência vivida, que é baseada nas histórias descritas e nos argumentos divididos com os amigos, e que recebe uma classificação na memória. Fonte: Elaborado com base em Carù e Cova (2003) a partir de Arnould et al. (2002) A partir dessa classificação, pode-se argumentar dois pontos. Em primeiro lugar, essa divisão em quatro estágios da experiência de consumo leva à constatação de que os pesquisadores do consumo adotam uma conceituação de experiência mais próxima do que é usada nas ciências sociais e na filosofia. Em segundo lugar, pode-se levantar a questão de que boa parte dos estudos de consumo no campo do marketing tem sido reduzida à tomada de 47 decisão e a processos derivados desse processo. Contudo, parece plausível acreditar que essa é apenas uma das partes que compõem o consumo. Isso leva à constatação de que sentimentos diversos, como prazer, emoção, alegria, raiva, frustração, reconhecimento e tédio não derivam exclusivamente do ato de compra, mas o fato de comprar pode ser uma forma de socialização. Ou, como enfatizam Carù e Cova (2003), a experiência é definida como um episódio subjetivo na construção e transformação do indivíduo, porém com uma ênfase nas emoções e sentidos vividos durante a imersão. Destaca-se aí uma lacuna na noção de experiência de consumo, na qual não se discute a dimensão simbólica dessas experiências, construída na interação social entre os indivíduos. É interessante notar que a noção de experiência se encaixa na discussão de uma cultura pós-moderna. Featherstone (1995) destaca que nos shoppings, nas galerias e nas grandes lojas de departamentos a compra raramente é uma transação econômica racional e calculista de maximização de utilidade. Ao contrário, nas cidades pós-modernas constata-se que a compra precisa se transformar numa experiência na qual as pessoas tornam-se espectadores que se movimentam em meio a imagens espetaculares, projetadas para produzir suntuosidade e luxo ou, até mesmo, evocar conotações de lugares exóticos e uma nostalgia das harmonias emocionais do passado. Os parques temáticos oferecem bons exemplos de locais onde ocorre um “descontrole” emocional, com a fruição de sensações e prazeres. Outros locais de diversão, tais como resorts e museus, podem também ser citados como locais nos quais os espetáculos oferecidos são simulações, prova de que estão em busca de sensações e experiências liminares, sem a nostalgia do real. No que concerne à busca por estabelecer elementos, dimensões e variáveis, a literatura é ainda mais lacunar. Muito dessa situação advém da constatação de que como experienciamos apenas nossa vida, raramente temos condições de investigar e conhecer as experiências dos outros por completo (BRUNER, 1986). Para esse pesquisador, existem inevitáveis gaps entre a realidade, a experiência e a expressão delas, compondo tensões que constituem o problema crucial na antropologia da experiência. Contudo, na visão de Thompson, Locander e Pollio (1989), a experiência não pode ser considerada apenas como algo completamente subjetivo, localizado “dentro” do indivíduo. Ao mesmo tempo, não deve ser entendida como se o indivíduo fosse livre de sua subjetividade. Assim, para Bruner (1986) é importante entender que a experiência emerge em um ambiente em que o indivíduo exerce um papel importante, pois ele próprio tem condições não apenas de se envolver, mas, principalmente, de moldar sua ação. 48 Alguns modelos vêm sendo propostos, entre eles o modelo servicescape, proposto por Bitner (1992), ainda que este não tenha sido concebido na perspectiva experiencial. Para Bitner (1992), as respostas ou reações podem ser divididas em três grupos: respostas cognitivas, respostas emocionais e respostas físicas. O estudo de Pullman e Gross (2003) foca a criação de experiências considerando contextos. Segundo esses autores, experiências podem ser definidas em um contexto físico, um contexto relacional e um determinado período de tempo. Goulding (2000), ao pesquisar experiências de visitantes de museus, conclui que a qualidade da experiência é derivada de quatro grandes grupos de fatores: sociocultural, cognitivo, orientação psicológica e físico/ambiental. Ainda que se defenda a posição de que modelos e esquemas sejam uma redução da complexidade de um fenômeno e que, portanto, devam ser utilizados com parcimônia em um campo de tão evidente complexidade como a pesquisa do consumidor, achou-se conveniente apresentar nesta seção o esquema conceitual de experiência de consumo proposto por Pine II e Gilmore (1998). Fica registrada aqui, por conseguinte, a ressalva de que o esquema apresentado tem por objetivo muito mais discutir as contribuições de autores sobre as experiências de consumo do que tentar limitar questões tão amplas em um esquema simplificador. Esses pesquisadores tentaram sintetizar um esquema conforme FIG. 1, o que permite analisar as experiências ao longo de duas dimensões: a) tipo de participação do consumidor; b) tipo de relacionamento com o evento. Na primeira dimensão, busca-se contemplar a participação do consumidor na experiência. Ou seja, em um extremo do continuum, tem-se a participação passiva do consumidor, na qual eles não afetam ou influenciam diretamente a performance da experiência; no outro extremo, pode ser verificada a participação ativa do consumidor, que, ao contrário, exerce papel fundamental na performance da experiência, contribuindo diretamente para a “criação” da experiência. Já na segunda dimensão, busca-se descrever o relacionamento do consumidor com o ambiente, ou contexto, em que a experiência ocorre. Dessa forma, é possível criar duas situações. Uma delas seria a absorção, situação em que o indivíduo está absorvido pela experiência, porém mantém-se relativamente estranho ao contexto. A outra seria a imersão, na qual ocorre uma total imersão física e mental do indivíduo. 49 FIGURA 1 – Tipos de experiência, segundo Pine II e Gilmore (1998) FONTE: Pine II e Gilmore (1998) A partir da conjugação das duas dimensões, é possível delimitar quatro categorias de experiências: entretenimento, educacional, estética e escapista. As experiências de entretenimento seriam aquelas nas quais o consumidor somente responde aos estímulos da experiência, mas não se envolve em nenhuma atividade. As experiências educacionais, por sua vez, levam a uma participação mais ativa do consumidor, que, porém, permanece mais absorvido do que imerso, visto que quase sempre é apenas ouvinte, contribuindo pouco para a construção do conhecimento gerado. Já as experiências escapistas seriam uma conjugação de experiências de entretenimento e educacionais, uma vez que envolvem o engajamento do consumidor em algum tipo de atividade. Por fim, as experiências estéticas seriam aquelas nas quais o consumidor está imerso, porém participa passivamente. Cabe destacar, segundo Pine II e Gilmore (1998) que esses tipos são genéricos e, como tais, devem servir apenas como uma forma didática de classificar as experiências, até mesmo porque nas situações do cotidiano boa parte das experiências pode conter as mais variadas combinações das quatro categorias. Absorção Participação passiva Participação ativa Entretenimento Educacional Escapista Estética Imersão 50 Schmitt (2000) também criou uma categorização das experiências de consumo: de sentido, ou sensoriais; emocionais; de pensamento, ou cognitivas; de ação; e de identificação. As experiências de sentido, ou sensoriais são aquelas geradas por meio dos sentidos (visão, som, tato, paladar e olfato). As emocionais normalmente estão relacionadas às emoções tanto positivas como alegria, prazer, divertimento e afeto, e outras como negativas, como raiva, medo, frustração e vergonha. As experiências de pensamento, ou cognitivas, referem-se aos apelos ao intelecto, por exemplo, o engajamento do consumidor por meio de surpresa, provocação e interesse. As experiências de ação referem-se às vivências físicas e corporais vivenciadas tanto individualmente como no grupo social. Por fim, as experiências de identificação levam em conta que uma experiência vivida pode servir para as pessoas se identificarem umas com as outras e com outros grupos e culturas por meio do consumo. Outra tentativa de entendimento das experiências de consumo por meio da construção de uma classificação em dimensões ou elementos é a de Lofman (1991). Na visão desse pesquisador, todos os aspectos experienciais do consumo poderiam ser representados por seis elementos: contexto, estímulos sensoriais, respostas afetivas, processos cognitivos, atividades e avaliação. O contexto compreende os objetos e as outras pessoas que compõem o ambiente no qual a experiência ocorre. Os estímulos sensoriais representam os inputs captados no ambiente externo, por meio dos cinco sentidos, que podem despertar sentimentos e sensações fortes. Já as respostas afetivas estão relacionadas à formação das emoções em geral, bem como as alterações fisiológicas delas derivadas, traduzidas pelos sentimentos e pelos estados de humor gerados durante o consumo. Por sua vez, os processos cognitivos têm a ver com os pensamentos e com a imaginação do indivíduo estimulados pelo consumo, além dos benefícios funcionais e psicológicos obtidos durante o consumo. O pesquisador se refere ao quinto elemento – atividades – como os eventos comportamentais ocorridos durante o consumo, incluindo as ações realizadas pelo indivíduo durante a experiência e as reações aos elementos e estímulos do contexto em que a experiência ocorre. Por fim, a avaliação tangencia reflexões sobre elementos como ações, pensamentos e sentimentos do próprio indivíduo. Os julgamentos de avaliação do consumo estão relacionados à satisfação com o uso e com os resultados do uso, assim como à apreciação do produto em si. O autor faz questão de ressaltar que há uma interdependência entre esses elementos, o que pode traduzir a complexidade existente nas experiências de consumo. No Brasil, Azevedo Barbosa (2006) propõe um esquema referencial para a compreensão do processo de oferta e consumo de experiências extraordinárias em serviços. 51 Tal esquema estabelece que uma experiência extraordinária em serviços é função dos elementos da oferta de serviços (experiências sensoriais, afetivas, físicas e relacionais) somados ao processo de consumo ou à experiência do consumo em si. É importante lembrar que o processo de consumo sofre influência das dimensões das experiências extraordinárias (motivação, expectativa, interação, envolvimento, satisfação e encantamento). Outros trabalhos no Brasil que tiveram por objetivo entender as experiências de consumo foram o de Zilles (2006), que buscou identificar e analisar os elementos que compõem a experiência de consumo de usuários de veículos fora da estrada (offroad). O estudo que envolveu pesquisas em profundidade com um grupo de “jipeiros”, permitiu identificar uma profunda conexão dos consumidores com o contexto em que a experiência ocorre, bem como a importância deste na avaliação e processo de geração de valor da experiência. A pesquisadora também concluiu que somente a partir da vivência com os consumidores foi possível perceber detalhes como pessoas, cores, sons, sentimentos, fantasias e desilusões relacionadas às experiências vividas pelos pesquisados, impressões que não seriam permitidas por estudos focados apenas em medidas comportamentais. Outro estudo é o de Liberali (2001), o qual tentou entender o consumo de experiências com clientes de cinemas em shoppings centers da cidade de Porto Alegre. No que tange às abordagens metodológicas para o estudo das experiências de consumo, percebem-se estudos baseados em epistemologias positivistas e orientadas tanto à mensuração quanto à quantificação das experiências. Entre eles, podem ser identificados os de Havlena e Holbrook (1986), Laverie, Kleine III e Kleine (1993), Richins (1997), Mathwich, Malhotra e Rigdon (2001), Brakus (2001) e Pullman e Gross (2003). Porém, destacam-se neste campo, estudos que se apoiam em abordagens de cunho mais humanistas e, portanto, fenomenológicas e interpretativistas das experiências de consumo. Thompson, Locander e Pollio (1989) apresentam o método fenomenológico-existencial como uma importante alternativa para o estudo das experiências do consumidor. Shankar, Elliot e Goulding (2001) defendem a utilização de análise de narrativas como uma potencial contribuição para o entendimento de como os consumidores estruturam e interpretam suas experiências de consumo. Outro estudo que tentou conciliar diversas abordagens de pesquisa, como focus group, entrevistas em profundidade, observação participante e, até mesmo, surveys, para se entender as experiências de consumo extraordinários nos encontros de serviços foi conduzido por Arnould e Price (1993). Pode ser citado também o trabalho de Holbrook (2006b), que, numa abordagem interpretativista, propõe o uso de fotografias para evocar experiências dos 52 indivíduos. Na mesma linha, Goulding (2000), a partir de uma abordagem interpretativa e utilizando a metodologia da grounded theory, pesquisou as experiências de consumo de visitantes de museus nos Estados Unidos. Diante de todas essas discussões, algumas questões que ainda não foram devidamente contempladas pelos pesquisadores do consumidor parecem emergir: “Seria possível estabelecer uma interlocução entre o campo da experiência de consumo e o entendimento do consumo como algo eminentemente cultural, construído socialmente nas relações entre os indivíduos?”; “Quando afirmamos que o consumo é uma experiência e que qualquer ato de consumo é essencialmente cultural, como aspectos simbólicos podem influenciar as experiências de consumo?” e “Como se dão essas conexões nas situações cotidianas de consumo?” A partir dessas inquietações é que se julgou importante elaborar o próximo capítulo da tese, cujo objetivo é discutir as questões atinentes ao consumo, em uma perspectiva antropológica. 53 3. O CONSUMO EM UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA Este capítulo apresenta uma discussão teórica acerca do consumo em uma perspectiva antropológica. Está estruturado em seis seções, de modo a abordar as ideias centrais de alguns autores desse campo. Na primeira seção aborda-se brevemente o tema “Sociedade de consumo”. Em seguida, na segunda, são apresentados e discutidos os conceitos de cultura e cultura do consumo que embasaram a elaboração de alguns comentários acerca da linha de pesquisa nomeada pelos autores como “Teoria da cultura do consumo”. Na quarta, expõem-se algumas questões atinentes às bases gerais sobre as quais se sustenta a antropologia, seguindo-se por uma discussão sobre a antropologia do consumo. Na quinta, destacam-se as principais discussões acerca do consumo em uma perspectiva antropológica a partir dos trabalhos de autores mais diretamente relacionados com as questões levantadas nesta tese. Por fim, na sexta seção, procura-se realçar algumas lacunas na literatura dos campos discutidos, enfatizando a aderência entre os temas e a convergência desses referenciais para o entendimento das experiências de consumo de eletrônicos de consumidores de baixa renda em uma perspectiva antropológica. 3.1 Sociedade de consumo Na atualidade, tem-se tornado um lugar-comum referir-se à sociedade na qual se vive como o locus perfeito para o desenvolvimento e dominação da “sociedade de consumo”, que se desenvolveu a partir de uma “cultura do consumo”. No senso comum, um fluxo de imagens relacionado à sociedade de consumo, quase sempre, remete à ideia de grandes shoppings centers, compostos por inúmeras e sofisticadas lojas com objetos cada vez atrativos e interessantes, desenvolvidos para aguçar a percepção dos cinco sentidos das pessoas, que passariam a consumi-los sofregamente em busca de um “ideal” de estilo de vida “feliz” e gratificante. O fluxo de imagens também faz menção ao materialismo exacerbado, ao consumo compulsivo e à alienação do homem moderno, erodindo a natural relação entre as pessoas, que passam a viver em função dos objetos que possuem ou que almejam possuir. Se, de um lado, essa noção de sociedade de consumo faz algum sentido pelo fato de representar aspectos coerentes da vida moderna, de outro, o termo é um dos inúmeros rótulos 54 utilizados por diversos profissionais para se referir à sociedade contemporânea, o que leva, certamente, a uma dificuldade para se definir e delimitar o que realmente representa. Para alguns, a sociedade de consumo seria aquela que pode ser caracterizada por um tipo de consumo: o consumo do signo, ou commodity sign. Para outros, ela incorporaria peculiaridades sociológicas, como consumo de massas e para as massas, altas taxas de consumo e de descarte de mercadorias, influência da moda, sociedade de mercado e sentimento permanente de insaciabilidade. Ou seja, a noção de sociedade de consumo parece representar um “guarda-chuva”, que abarca diferentes autores, linhas de pesquisa e inúmeras ideias e associações (BARBOSA, 2004; FINE, 2002). Apesar da amplitude do campo, é possível estabelecer, isolar e explorar alguns temas que vêm sendo associados à noção de sociedade de consumo. Um desses temas está relacionado à origem da sociedade de consumo, que, como não poderia deixar de ser, é alvo de muitas controvérsias. O que caracteriza o trabalho de vários autores que estudam o tema (MILLER, 1995; CAMPBELL, 2001; SLATER, 2002; McCRACKEN, 2003; BARBOSA, 2004) é que uma “Revolução do Consumo” precedeu a Revolução Industrial e foi um ingrediente central da modernidade e da modernização ocidental, pois a transformação dramática do abastecimento, logicamente, pressupõe o desenvolvimento e a ampliação do consumo (CAMPBELL, 2001). Barbosa (2004) aponta algumas características que teriam propiciado a transição da sociedade tradicional para a sociedade de consumo. Em primeiro lugar, o rompimento da relação de dependência entre status e estilo de vida e de independência em relação à renda. Na atual sociedade de consumo, são fundamentais a noção de liberdade de escolha e a autonomia na decisão da forma como queremos viver. Em segundo lugar, a mudança do consumo de pátina para o consumo de moda. A pátina pode ser caracterizada como a marca do tempo deixada nos objetos, criando uma indicação de que estes pertencem e são usados pela mesma família há gerações. A moda, por sua vez, é um mecanismo social expressivo de curta duração, marcado pela valorização do novo e do individual (BARBOSA, 2004). Complementarmente, Campbell (2001) afirma que outros fatores poderiam ter contribuído para a emergência da sociedade de consumo: a expansão geral das atividades das horas vagas, a revolução do prazer e a ascensão do amor romântico. Muito da literatura atinente ao tema “sociedade de consumo”, quase sempre implicitamente, tem contribuído significativamente para buscar um entendimento, a partir de diferentes perspectivas e ênfases, sobre a forma como o consumo tem sido socialmente 55 (re)construído (FINE, 2002). Se os trabalhos de autores mais tradicionais como Veblen e de Simmel, com suas visões de distinção e emulação, parecem já não oferecer uma completa sustentação para a compreensão da sociedade de consumo moderna, seria interessante a incorporação de outros referenciais para o entendimento do consumidor, diante da complexidade da sociedade de consumo. Nesse sentido, uma vez que muito do que se fala sobre sociedade de consumo faz menção a questões relativas à cultura do consumo, a próxima seção busca tecer comentários a esse respeito. 3.2 Conceitos de cultura e cultura do consumo Visto que o objetivo desta tese é compreender como os consumidores de baixa renda vivenciam suas experiências de consumo - ou seja, entender como se dão suas experiências simbólicas no tocante a motivações, atitudes, conflitos, valores e imagens que dão sentido ao seu comportamento -, torna-se essencial discutir o conceito de cultura e cultura de consumo. Etimologicamente, cultura é uma palavra latina com a raiz de culto; derivada do verbo colo (ere) e aplicada a domínios tão diferentes como os campos (colere agros), as letras (litteras) e a amizade (amicitian) (ZILLES, 2005). A partir de expressões de autores latinos, como Cícero e Horácio, Zilles (2005, p. 171), chega à definição clássica de cultura como a “ação que o homem realiza, quer sobre o seu meio, quer sobre si mesmo, visando a uma transformação para melhor” . Esse conceito leva em consideração a formação do homem, o seu melhorar-se e o seu refinar-se. De outro lado, indica o produto dessa formação, isto é, o conjunto de modos de viver e pensar cultivados, civilizados, que também costumam ser conhecida pelo nome de “civilização”. Em uma perspectiva pós-moderna, Featherstone (1995) afirma que cultura é um termo problemático e essencialmente contestado, pois abrange um amplo leque de significados. Normalmente, tem sido usado para designar normas, ideias, crenças, valores, símbolos, linguagens e códigos. No entanto, também pode enfatizar o processo de desenvolvimento espiritual e intelectual da pessoa, os redutos e práticas artísticas e intelectuais especializadas ou todo o modo de vida de um grupo, povo ou sociedade (que seria uma concepção antropológica). Dessa forma, de interesse neste trabalho é a discussão de cultura em um sentido antropológico. Ainda que o conceito de cultura se encontre fragmentado por várias 56 reformulações, algumas definições são possíveis. Laraia (2002) defende que as diversas correntes da antropologia concordam que as culturas são sistemas (compostos por padrões de comportamentos socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades de seres humanos aos seus embasamentos biológicos. Geertz (1989) dá uma definição mais ampla e essencialmente semiótica para cultura. Assim, O conceito de cultura denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (GEERTZ, 1989, p. 66). Geertz (1989) assume que a análise da cultura não pode basear-se na ciência experimental em busca de leis, mas em uma ciência interpretativa, em busca de significados. Complementarmente, ele acentua que quando entendida como um conjunto de mecanismos simbólicos para o controle do comportamento a cultura fornece o vínculo entre o que os homens são capazes de se tornar e o que eles na realidade se tornam, um por um. Assim, tornar-se humano seria tornar-se individual. Os homens se tornam individuais direcionados pelos padrões culturais, que são sistemas de significados criados historicamente, os quais dão forma, ordem, objetivo e direção a suas vidas. Conforme Sahlins (2003), a cultura representa o fato de que toda a vida social é significativa e que as necessidades e usos só podem surgir no interior de um determinado modo de vida. Isto é, somente em virtude da natureza cultural da vida social é que se pode ter necessidades ou identificar objetos que possam satisfazê-las. Rocha (1989) também percebe a cultura como “versões” da vida; teias, imposições de uma “política” dos significados que ao mesmo tempo que orientam também constroem nossas alternativas de ser e estar no mundo. Todas as dimensões de uma cultura – da comida à música, da arquitetura à roupa e tantos mais – são pequenos conjuntos padronizados que trazem dentro de si algum tipo de informação sobre quem somos, o que pensamos e o que fazemos. Esses conjuntos são logicamente entrelaçados e compõem o código, o sistema de comunicação mais amplo, que seria a própria cultura de determinada sociedade” (ROCHA, 1989, p. 89). Contudo, o homem precisa de bens para comunicar-se com os outros e para tentar compreender o que se passa à sua volta. As duas necessidades podem ser convertidas em uma só, visto que a comunicação somente pode ser construída em um sistema estruturador de significados (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006). Assim, toma corpo uma espécie de 57 subcampo, que atravessa as ciências sociais com o propósito de buscar compreender com profundidade o estudo das relações pessoa-objeto, levando-se em consideração que os bens, ao mesmo tempo em que são uma instância da cultura material, também são uma oportunidade para a expressão do esquema categórico estabelecido pela cultura (McCRACKEN, 2003). Nesse contexto, o termo cultura do consumo refere-se à forma dominante da reprodução cultural desenvolvida no Ocidente durante a modernidade. Ou seja, segundo Slater (2002, p. 17), ... está ligada a valores, práticas e instituições fundamentais que definem a modernidade ocidental, como a opção, o individualismo e as relações de mercado .. a cultura de consumo não é a única maneira de realizar o consumo e reproduzir a vida cotidiana, mas é, com certeza, o modo dominante, e tem um alcance prático e uma profundidade ideológica que lhe permite estruturar e subordinar todas as outras. Slater (2002) enfatiza que o tema central da cultura do consumo é o modo pelo qual ela articula as questões no tocante ao modo como devemos ou queremos viver, à forma de organização da sociedade. Isso tudo é feito no plano da vida cotidiana: a estrutura material e simbólica dos lugares onde vivemos e nosso modo de viver nesses lugares, o alimento que comemos, as roupas que usamos, os tipos de escassez e desigualdade que sofremos, e assim por diante. Se a cultura do consumo tem fortes vínculos com a vida moderna como um todo, é o próprio Slater (2002) que tenta sintetizar algumas características por meio das quais a cultura de consumo tem sido identificada, conforme pode ser visualizado no QUADRO 8. QUADRO 8 – A cultura do consumo e suas características (continua) CARACTERÍSTICAS DISCUSSÃO A cultura do consumo é cultura de consumo. A noção de “cultura do consumo” implica que as práticas sociais e os valores culturais, ideias, aspirações e identidades básicos são definidos e orientados, no mundo moderno, em relação ao consumo, e não a outras dimensões sociais, como trabalho ou cidadania, cosmologia religiosa ou desempenho militar. Ao falar da sociedade moderna como uma cultura do consumo, as pessoas não estão se referindo apenas a determinado tipo de necessidades e objetos, mas a uma cultura de consumo. Assim, consideram-se os valores dominantes da sociedade como valores que não só são organizados pelas práticas de consumo, mas também derivados delas. 58 QUADRO 8 – A cultura do consumo e suas características (conclusão) A cultura do consumo é cultura de uma sociedade de mercado. O consumo moderno é mediado pelas relações de mercado e assume a forma do consumo de mercadorias: são consumidos mercadorias, serviços e experiências que foram produzidos exclusivamente para serem vendidos no mercado a consumidores. A cultura do consumo é, portanto, cultura capitalista. Historicamente, desenvolvida como parte desse sistema. A cultura do consumo é, em princípio, universal e impessoal. A cultura do consumo parece ter identificação com a ideia de consumo de massa, uma vez que exemplifica a generalização do consumo de mercadorias de toda a população. As relações de mercado são anônimas e universais: o consumidor não é um “freguês” conhecido, e sim um sujeito anônimo que só pode ser imaginado e formulado como um objeto. A cultura do consumo identifica liberdade com a escolha privada e a vida privada. A cultura do consumo prevê que ser consumidor é fazer escolhas; isto é, decidir o que quer, pensar na maneira de gastar o dinheiro para obtê-lo. A “liberdade” da cultura do consumo é definida de uma forma particular que é crucial para a modernidade, principalmente sua versão liberal: a escolha do consumidor é um ato privado. Isto parece dizer que todo ato particular de consumo não tem importância pública. Ou seja, consome-se não com a finalidade de se construir uma sociedade melhor, mas para aumentar os prazeres e confortos privados. As necessidades do consumidor são, em princípio, ilimitadas e insaciáveis. Na cultura do consumo, a necessidade ilimitada – o desejo constante de consumir mais e a produção constante de mais desejos – é considerada não apenas normal para seus membros, mas essencial para a ordem e o progresso socioeconômico. A ideia de necessidade insaciável está relacionada às noções de modernização cultural: a grande produtividade da indústria moderna é considerada como uma reação e um incentivo à capacidade dos desejos das pessoas de se tornarem mais sofisticadas, refinadas, imaginativas e pessoais, bem como à aspiração de ascender social e economicamente. A cultura do consumo é um meio privilegiado para negociar a identidade e o status em uma sociedade pós-tradicional. Em uma sociedade pós-tradicional, a identidade social tem de ser construída pelos indivíduos – uma vez que não é mais atribuída ou dada -, e nas circunstâncias mais desnorteantes possíveis: não só a posição das pessoas deixou de ser fixa na ordem do status, como a própria ordem é instável e mutante, e é representada por produtos e imagens igualmente cambiantes. Nesse sentido, os bens podem significar identidade social, mas nos processos fluidos de uma sociedade pós-tradicional, a identidade parece ser mais uma função do consumo do que o contrário, que era a visão tradicional. A cultura do consumo representa a importância crescente da cultura no moderno exercício de poder. A cultura de consumo tem forte afinidade com signos, imagens e publicidade. Os problemas de identidade e status promovem uma nova flexibilidade nas relações entre consumo, comunicação e significado. A noção do sujeito social enquanto indivíduo que cria e define a si mesmo está relacionada à autocriação por meio do consumo, isto é, por meio do uso de bens e serviços que os consumidores se formulam enquanto identidades sociais e exibem essas identidades. Fonte: Adaptado de Slater (2002) 59 Porém, é na pós-modernidade que o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação (o que caracteriza a cultura de consumo) passam a ser ainda mais centrais para o entendimento da sociedade contemporânea. Isso envolve a simbolização e o uso de bens materiais como “comunicadores”, não apenas como utilidades. Além disso, os princípios de mercado – oferta, demanda, acumulação de capital, competição e monopolização – operam dentro da esfera dos estilos de vida, bens culturais e mercadorias (FEATHERSTONE, 1995). Dessa forma, pode-se constatar que cultura e consumo encontraram uma forte ligação, pois o consumo é moldado em todos os seus sentidos por considerações culturais. Os consumidores usam o significado dos bens de consumo para expressar categorias e princípios culturais, cultivar ideias, criar e manter estilos de vida, (re)construir noções de si e sobreviver a mudanças sociais (McCRACKEN, 2003). O consumo deve ser visto não como consumo de valores de uso, de utilidades materiais, mas como o consumo de signos (BAUDRILLARD, 2005; FEATHERSTONE, 1995). Nesse ponto, é importante enfatizar a visão de Belk (1988). Esse autor defende a idéia de que os consumidores consideram seus pertences como parte deles. Ele também propõe que os objetos constituem uma extensão do self de cada pessoa. Dessa forma, conforme bem salienta D‟angelo (2003), é necessário destacar a dimensão social e coletiva dos produtos e das atividades de consumo, podendo-se estabelecer a ligação entre os significados assumidos na relação do indivíduo com os objetos e sua inserção em determinados grupos sociais. Assim, a leitura sobre o comportamento de consumo deve se dar por meio da busca de significados que são criados e transferidos, uma vez que os bens de consumo têm uma significância que vai além de seu caráter utilitário e de seu valor comercial (McCRACKEN, 2003). Para esse autor, uma das grandes limitações das atuais abordagens do estudo do significado cultural dos bens de consumo é a dificuldade de se perceber que esse significado está em constante trânsito. Isso quer dizer que “o significado cultural se localiza em três lugares: no mundo culturalmente constituído, no bem de consumo e no consumidor individual” (McCRACKEN, 2003, p. 100). A FIG. 2 tenta resumir todas essas relações, que serão discutidas. 60 FIGURA 2 – Movimentação do significado Fonte: McCRACKEN (2007) Segundo McCracken (2003), de modo geral, o significado cultural é absorvido do mundo culturalmente constituído para um bem de consumo. O mundo culturalmente constituído pode ser entendido como o mundo da experiência cotidiana, por meio do qual o mundo dos fenômenos se apresenta aos sentidos dos indivíduos, formatado e constituído pelas crenças e pressupostos de sua cultura. A “transferência” desse significado se dá por meio tanto da publicidade como do sistema de moda. A publicidade funciona como uma importante forma de transferência, uma vez que é por meio dela que se vincula ao bem de consumo uma representação do mundo culturalmente constituído nos moldes de um anúncio específico. Já o sistema de moda tem o propósito de investir e desinvestir os bens de suas propriedades significativas. Em seguida, o significado é absorvido do objeto e transferido para um consumidor individual, por meio de rituais de posse, de troca, de arrumação e de despojamento. Os rituais Mundo culturalmente constituído Bens de consumo Consumidor individual Publicidade/sistema de moda Sistema de moda Ritual de desapropriação Ritual de posse Ritual de troca Ritual de cuidados pessoais 61 de posse estão relacionados ao tempo considerável que os consumidores destinam às tarefas de limpar, discutir sobre, comparar, refletir sobre, mostrar ou fotografar muitas de suas novas posses. Já os rituais de troca têm a ver com aqueles momentos nos quais os consumidores buscam estabelecer influência interpessoal por meio da troca de objetos ou presentes. Por sua vez, o objetivo do ritual ligado à arrumação é proceder às dores características necessárias para assegurar que aquelas propriedades especiais e perecíveis que residem em certas roupas ou em certos penteados serão “insinuadas” para fora dos bens que lhes servem de suporte e postas para viver no consumidor individual. Por fim, o ritual de despojamento leva em consideração que um objeto precisa ser esvaziado do significado antes de ser passado adiante, bem como precisa ser novamente limpo quando for incorporado pelo novo dono. Assim, no entender de McCracken (2003), o sistema de consumo supre os indivíduos com os materiais culturais necessários à realização de suas variadas ideias do que é ser homem ou uma mulher, uma pessoa de meia-idade ou idoso, um pai, um cidadão ou um profissional. Assim, “todas essas noções culturais estão concretizadas nos bens, e é através de sua posse e uso que o indivíduo as assimila em sua própria vida” (p. 119). A partir dessas discussões atinentes à cultura do consumo, achou-se adequado incluir uma sucinta discussão acerca da linha de pesquisa ou fluxo de pesquisas, interessada na relação cultura e consumo, e toda a complexidade envolvida, chamada “teoria da cultura do consumo”, que parece ter um importante papel no desenvolvimento dessa tese. 3.3 A teoria da cultura do consumo Os últimos vinte anos da pesquisa do consumidor têm produzido um fluxo de pesquisas interessados em analisar aspectos socioculturais, experienciais, simbólicos e ideológicos do consumo. Cunhada por autores como “teoria da cultura do consumo” (ARNOULD e THOMPSON, 2005; McCRACKEN, 2003), muitas das discussões advindas dessa linha de pesquisa vêm sendo publicadas em periódicos internacionais importantes, tais como European Journal of Marketing, Culture, Markets, and Consumption, International Journal of Research in Marketing, Journal of Consumer Culture e Journal of Marketing. Segundo Arnould e Thompson (2005), a teoria da cultura do consumo não é unificada, pois refere-se a uma família de perspectivas teóricas que direcionam as relações dinâmicas entre as ações de consumo, o mercado e os significados culturais. Mais do que ver a cultura como um 62 sistema homogêneo de significados compartilhados coletivamente, a teoria da cultura do consumo explora a distribuição heterogênea dos significados e a multiplicidade de grupos e manifestações culturais que existem nas diversas formações socio-históricas atuais. Ou seja, a linha de pesquisa também conceitualiza um sistema interconectado de imagens, textos e objetos produzidos comercialmente, que os grupos utilizam por meio da construção de práticas, identidades e significados sobrepostos para a criação de sentidos de seus ambientes e para orientar as experiências e vidas de seus membros (KOZINETS, 2001). Esses significados são envolvidos e negociados pelos consumidores em situações e relacionamentos sociais. Nesse sentido, cumpre salientar alguns pontos que parecem não poder passar despercebidos pelos pesquisadores do campo. Em primeiro lugar, as teorias da cultura do consumo podem ser entendidas como uma construção de experiências, significados e ações. Ou seja, a cultura do consumo não determina a ação como força causal, mas sim como um imbricado sistema de valores, sentimentos e pensamentos que são construídos e negociados na interpretação da vida social (THOMPSON e HIRSCHMAN, 1995). Em segundo lugar, a perspectiva da teoria da cultura do consumo tem sido embasada por meio tanto de estudos empíricos que analisam como as manifestações particulares de cultura do consumo são constituídas, mantidas, transformadas e formatadas pelas forças históricas mais amplas (tais como narrativas culturais, mitos e ideologias) quanto de específicas circunstâncias socioeconômicas e sistemas de mercado particulares (ARNOULD e THOMPSON, 2005). Outra questão, mais relacionada à questão metodológica, remete ao fato de que as teorias da cultura do consumo focam as dimensões experienciais e socioculturais do consumo, que não são plenamente acessíveis por meio de experimentos, surveys ou modelagem de banco de dados. Em suma, a teoria da cultura do consumo é organizada a partir de uma série de questões teóricas atinentes ao relacionamento entre a identidade individual e coletiva dos consumidores: a cultura criada e corporificada no mundo vivido dos consumidores; processos e estruturas das experiências vivenciadas; e a natureza e o dinamismo das categorias sociológicas, por meio das quais essa dinâmica da cultura do consumo é influenciada. Dessa forma, ela pode contribuir para o desenvolvimento teórico relacionado à pesquisa do consumidor ao gerar novos “construtos” e insights teóricos e estender o conhecimento existente com o aporte da disciplina antropológica (ARNOULD e THOMPSON, 2005). 63 Em um país com uma diversidade social e cultural tão grande como o Brasil, a lista de possibilidade para a realização de pesquisas que retratem a realidade vivida pelos consumidores em práticas que se estendem de situações corriqueiras até as não tradicionais de consumo torna-se bastante extensa. Ganham espaço também os estudos regionais, nos quais seria possível investigar hábitos, rituais e mitos de consumo de infinidade de produtos e serviços, bem como as posses e as experiências que podem ser construídas simbolicamente pelos indivíduos envolvidos. Fica implícita, contudo, a necessidade de entender como se formou a base entre a disciplina da antropologia, preocupada com a cultura, e as relações com o consumo, campo esse cunhado como antropologia do consumo. A próxima seção tem a finalidade de discutir como aconteceu essa aproximação para embasar a discussão referente ao consumo em uma perspectiva antropológica. 3.4 A disciplina antropológica e a antropologia do consumo Uma vez que o desenvolvimento desta tese teve como orientação principal, em sua base teórica, a abordagem antropológica do consumo, torna-se essencial tecer alguns comentários sobre a antropologia do consumo. Contudo, é de interesse também apresentar algumas bases gerais sobre as quais se sustenta a disciplina antropológica. A antropologia, historicamente, foi desenvolvida como o estudo do outro, entendido como outra sociedade, outra cultura, outro grupo social; ou seja, aquele que se comporta de modo diferente (JAIME Jr., 2001). Em outras palavras, “a Antropologia configurou-se como uma tentativa de compreender a diversidade cultural, em um encontro radical com a alteridade” (JAIME Jr., 2001, p. 69). Outro conceito importante é o dado por Laplantine (2000), que define a antropologia como o estudo do homem inteiro e o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas. Ele também defende que a antropologia não é somente o estudo do que compõe uma sociedade, mas sim o estudo de todas as sociedades humanas, inclusive a nossa - ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas. Mais precisamente, a antropologia se constitui, em larga medida, “na observação de universos microscópicos, pela análise de pequenos quadros do cotidiano, pelo estudo meticuloso do detalhe da prática social” (ROCHA, 1989, p. 44). 64 Vale ressaltar que até os anos 1960, conforme Laburthe-Tolra e Warnier (1997), a palavra antropologia foi exclusivamente reservada na França à antropologia física. Anos mais tarde, conservando ainda este sentido, recebeu duas acepções suplementares: a de antropologia estrutural, edificado por Claude Lévi-Strauss; e a de antropologia como sociologia dinâmica e comparativa, no sentido que George Balandier dá a essa expressão. Laplantine (2000) explica que existem cinco áreas principais da antropologia, às quais um pesquisador deve estar sensibilizado quando trabalha de forma profissional em alguma delas, uma vez que elas mantêm relações estreitas entre si. a) Antropologia biológica - consiste no estudo das variações dos caracteres biológicos do homem no espaço e no tempo. b) Antropologia pré-histórica - estuda o homem por meio dos vestígios materiais encontrados no solo. c) Antropologia linguística - estuda a linguagem como parte cultural de uma sociedade. d) Antropologia psicológica - consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. e) Antropologia social e cultural (ou etnonologia) - diz respeito a tudo que constitui uma sociedade: seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, e assim por diante. Fica evidente, portanto, que é na área da antropologia social ou etnologia que se insere a temática desta tese. No Brasil, pode-se afirmar que a partir dos anos de 1980 inaugurou-se um período fértil e produtivo da investigação antropológica. Esse crescimento do interesse por trabalhos na área deve-se ao fato de que as pesquisas vêm se concentrando, em grande parte, em temas de interesse geral imediato, isto é, muito do que é cotidiano e familiar em nossa sociedade urbana: hábitos e valores de moradores de determinadas comunidades ou bairros tanto quanto o modo de vida dos bairros da periferia, das favelas, os movimentos sociais urbanos e as formas de lazer popular, entre outros. Em suma, está-se produzindo uma nova e interessante etnografia de nós mesmos (DURHAM, 1986). 65 Entre os vários temas que foram, ao longo dos anos, sendo incorporados ao vasto espectro da antropologia, um deles é de vital interesse para esse trabalho: a antropologia do consumo. Na visão de Laburthe-Tolra e Warnier (1997), a antropologia do consumo é o mais recente e o menos desenvolvido dos ramos da antropologia econômica, uma vez que as abordagens dominantes tanto na antropologia quanto na economia foram organizadas e estão, portanto, focadas ou em torno da produção ou a partir da distribuição. Com efeito, nestes dois tipos de abordagem o consumo é visto como um fenômeno óbvio, periférico e como desfecho natural, em consequência de tudo o que se decidiu nas duas etapas anteriores. Também para esses autores, a antropologia do consumo só emergiu no campo da disciplina a partir dos estudos de André Leroi-Gourham, Mary Douglas e Edward Hall, todos eles publicados após a década de 1970. Para Laburthe-Tolra e Warnier (1997), o texto fundador da antropologia de consumo é de autoria de Edward T. Hall. O estudo de Hall (1989), intitulado em português de “A dimensão oculta”, trata da estrutura da experiência nos domínios do consumo relativo ao espaço, como a arquitetura, o mobiliário, a decoração interior, as cores e a iluminação. O trabalho desse autor leva a uma antropologia dos estilos de vida e do consumo cultural, ligada intimamente à ocupação do espaço. Ademais, Hall (1989) defende que mesmo fazendo toda a força possível, o homem jamais conseguirá despojar-se de sua cultura, pois ela penetrou as raízes de seu sistema nervoso e, desse modo, determina a forma como ele percebe o mundo. Ele ressalta também que o homem e suas extensões formam um sistema inter-relacionado. Dessa forma, é um grande erro agir como se fossem uma coisa e sua casa, suas cidades, sua tecnologia ou sua língua algo diferente. Assim, as pesquisas de André Leroi-Gourham, Mary Douglas e Edward Hall tiveram o efeito de atenuar a supervalorização das funções de produção e distribuição, conforme o entendimento de até então. A partir desses estudos seminais, a complexidade e a importância do consumo não foram mais colocadas em dúvida, principalmente nas sociedades industriais, que puderam se qualificar, passando de um excesso ao outro, como sociedades de consumo. A partir daí, é importante ressaltar que o campo da antropologia do consumo, hodiernamente, se constitui, em boa parte, a partir de uma crítica às interpretações apoiadas em teorias econômicas que reduzem o fenômeno do consumo à esfera do indivíduo, visto como um ser racional que realiza suas compras por meio de uma escolha em função da busca de maximização de sua utilidade. Dessa forma, a preocupação da antropologia do consumo é 66 mostrar o consumo como um fato social total, ou seja, o consumo é visto como por meio de interpretações que envolvem significados culturais e coletivos (BARROS, 2006b). Como sinalizam Douglas e Isherwood (2006), a antropologia do consumo tem a função de rejeitar a abordagem materialista do consumo, uma vez que os bens devem ser vistos como o meio, “menos como objetos de desejo do que como fios de véu que disfarça as relações sociais que cobre” (p. 275). Assim, a atenção é dirigida ao fluxo de trocas, e os bens apenas marcam o padrão. No mesmo sentido, Barros (2004) afirma que, de modo geral, os autores da antropologia do consumo trouxeram novas luzes ao fenômeno do consumo ao agregarem, pelo menos, dois aspectos importantes. Primeiramente, esses autores deslocaram a análise do nível do indivíduo para o nível da ação social e da elaboração coletiva de significados. Em segundo lugar, mudaram o foco de investigação da produção para o consumo, uma vez que é nessa esfera que se reconhece o modo pelo qual a sociedade se distingue e se comunica. Rocha e Barros (2004, p. 14) também colocam três pontos importantes que parecem pertinentes para pensar o consumo como questão antropológica: Em primeiro lugar, o consumo é um sistema de significação e a principal necessidade social que supre é a necessidade simbólica. Em segundo, o consumo é como um código e através dele são traduzidas boa parte das nossas relações sociais e elaboradas muitas das nossas experiências de subjetividade. Em terceiro, esse código, ao traduzir sentimentos e relações sociais, forma um sistema de classificação de coisas e pessoas, produtos e serviços, indivíduos e grupos. Em uma perspectiva mais voltada para buscar uma interface com o campo da administração e mais precisamente com a área da pesquisa do consumidor, cabe enfatizar que a antropologia do consumo permite compreender não apenas os atos de compra, mas toda a sociabilidade contemporânea, a motivação do homem no trabalho, os significados que ele cria para a sua vida, a forma como percebe as ameaças à sua família, a sua fragilidade no caos urbano, o modo como busca inserção social, reconhecimento e prestígio, e, até mesmo, como se manifesta politicamente. O esforço antropológico por compreender o consumo é, portanto, uma tentativa para situar-se nessa complexidade, abandonando temporariamente as grandes teorias para ver o consumidor de um modo mais indutivo e buscando compreender quais são os sentidos que as pessoas atribuem à sua ação, qual é a lógica que informa seu raciocínio, como se estruturam suas decisões cotidianas, como elas percebem suas necessidades em meio às pressões do dia a dia e o que consideram relevante na hora de alocar os seus recursos (MIGUELES, 2007). 67 Dessa forma, os conceitos aqui brevemente discutidos podem oferecer um arcabouço teórico considerável para ampliar os horizontes da pesquisa do consumidor, que deve buscar interpretar os diferentes significados atribuídos pelos consumidores a cada produto ou categoria de produto situado em um momento de sua vida social e em uma sociedade de consumo altamente complexa. A próxima seção tecerá algumas discussões acerca do consumo em uma perspectiva antropológica, na visão de autores desse campo. 3.5 O consumo em uma perspectiva antropológica O interesse deste tópico é esclarecer como diversos autores discutiram o consumo com base em uma abordagem antropológica. Uma das primeiras teorias do consumo surgiu no início do século XX, no livro A Teoria da Classe Ociosa de Thorstein Veblen, em que sustenta a tese de que há uma modalidade de consumo que é ostentatório, realizado com a finalidade de demonstrar a condição social. O autor chama esse consumo de “conspícuo”, manifestado socialmente pela classe ociosa. Ou seja, a diferenciação significativa entre as ocupações da classe ociosa e as demais implicava a hierarquia da sociedade. O aparecimento de uma classe ociosa coincide com o início da propriedade, uma vez que as duas instituições resultam do mesmo conjunto de forças econômicas (VEBLEN, 1988). A “novidade” apresentada por Veblen em sua obra reside no fato de ele ampliar ou mudar o foco da forma de compreender o objetivo da aquisição e da acumulação de bens para além do objetivo economicamente legítimo da aquisição, que caberia à teoria econômica explicar. Ele concebe o consumo como um atendimento tanto das necessidades físicas do consumidor como de suas necessidades mais elevadas, espirituais, estéticas, intelectuais ou outras. Em outras palavras, esta última classe de necessidades seria atendida indiretamente pelo consumo de bens, segundo a maneira pela qual é familiar aos leitores de obras econômicas. De interesse para esta tese também é a afirmação de que o padrão de gastos aceito pela comunidade ou pela classe à qual o indivíduo pertence determina, em grande extensão, o seu padrão de vida. O motivo do consumidor é um desejo de se conformar com o uso estabelecido, para evitar comentários desfavoráveis e para viver segundo as regras aceitas de decência na qualidade, quantidade e grau dos bens consumidos, assim como no digno emprego de seu tempo e esforço (VEBLEN, 1988). 68 Marshall Sahlins no livro Cultura e Razão Prática segue a mesma linha de Veblen ao defender uma crítica antropológica da ideia de que as culturas humanas são formuladas a partir da atividade prática e do interesse utilitário. Para ele, o significado é a propriedade específica do objeto antropológico. As culturas são ordens de significado de pessoas e coisas. Sahlins (2003) afirma que o funcionalismo utilitário é uma cegueira funcional, visto que o conteúdo é apreciado somente por seu efeito instrumental, sendo sua consistência interna, por consequência, modificada por sua utilidade externa. Porém, nenhuma explicação funcional por si só é suficiente, já que o valor funcional é sempre relativo a um esquema cultural. Dessa forma, as finalidades assim como as modalidades de produção vêm do lado cultural, ou seja, os meios materiais da organização cultural como a organização dos meios materiais. Por sua vez, as forças materiais por si só não têm vida. Seus movimentos específicos e consequências determinadas somente podem ser estipulados agregando-as às coordenadas da vida cultural. Dessa visão cultural derivam simbolicamente, todas as utilidades. Na medida em que “utilidade” é o conceito de “necessidade” apropriado a uma ordem cultural, ele deve incluir uma representação, por meio das propriedades concretas do objeto, assim como das relações entre pessoas. Isto é, “o „sistema de necessidades‟ deve ser sempre relativo, não avaliável como tal pela necessidade e, em conseqüência, simbólica por definição” (SAHLINS, 2005, p. 151). No caso dos bens, para o autor, eles ficam como um código-objeto para a significação e avaliação de pessoas e ocasiões, funções e situações. Assim, operando em uma lógica específica de correspondência entre contrastes materiais e sociais, a produção é, portanto, a reprodução da cultura em um sistema de objetos. Outro autor que discute antropologicamente o consumo é Jean Baudrillard, que opta por seguir uma linha do consumo como um elemento de discriminação e diferenciação social. Para Baudrillard (2005), o consumo é uma atividade sistemática de manipulação de significados, com ênfase maior na expressividade, e não em seus aspectos funcionais. Isto é, mais do que isso, a mercadoria é o próprio significado. Nesse sentido, a circulação, a compra, a venda e a apropriação de bens e de objetos/signos diferenciados constituem, hodiernamente, a nossa linguagem e o nosso código, por intermédio do qual toda a sociedade se comunica. Seria, dessa forma, a estrutura de consumo, a sua língua em relação à qual as necessidades e os prazeres individuais não passam de efeitos de palavra. Um dos argumentos que resume o entendimento de Jean Baudrillard sobre o consumo é que as pessoas não consomem coisas, mas apenas símbolos. Os bens, portanto, não fariam sentido em termos de seu lugar funcional, 69 e sim de seus “valores de signo”, relacionados a sistemas de significado. Ao comprar uma parte do sistema, compra-se o sistema de signos como um todo, o que quer dizer que, contemporaneamente, compra-se um modo de vida. Os argumentos de Baudrillard parecem fazer algum sentido quando é possível perceber que as estratégias de marketing, conduzidas principalmente pelas organizações varejistas, tendem a estar cada vez mais voltadas para oferecer conceitos de “estilos de vida” atraentes, coerentes com a compra de um modo de vida, que levarão o consumidor a uma “sólida” identidade social no interior de um universo significativo. A obra da antropóloga Mary Douglas e do economista Baron Isherwood, publicada pela primeira vez em 1978 com o título de The world of goods: towards an anthropology of consumption, é considerada um clássico da antropologia do consumo. Os autores defendem a ideia de que o consumo é algo ativo e constante em nossa vida diária e nela desempenha um papel central como estruturador de valores que constroem identidades, regulam relações sociais, definem mapas culturais, e assim por diante. Nesse sentido, os bens são investidos de valores criados socialmente tanto para expressar categorias e princípios quanto cultivar ideias, fixar e sustentar estilos de vida ou enfrentar mudanças. Douglas e Isherwood (2006) criticam a perspectiva racional dos modelos de pesquisa do consumidor, pois a noção do indivíduo racional é uma abstração impossível da vida social. Na visão deles, seria absurdo agregar milhões de indivíduos que compram e usam diversos produtos e serviços sem considerar as transformações que provocam ao compartilharem o consumo. Ademais, “os bens não são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas ou pontes” (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006, p. 36). Complementarmente, como o valor é conferido pelos juízos humanos, cada bem depende de seu lugar numa série de outros objetos complementares. Ao invés de tomar um objeto de cada vez, a abordagem antropológica captura todo o espaço de significação em que os objetos são usados depois de comprados. “Toma a realidade como dada e acredita que ela é socialmente construída” (p. 41). Para Douglas e Isherwood (2006), haveria três grandes conjuntos de bens: os de consumo geral (primário), os tecnológicos (secundário) e os informacionais (terciário). Os bens primários se limitariam às camadas mais pobres da população, pois, para atingir o topo - ou seja, os bens terciários -, é preciso não somente um nível de renda mais elevado, mas também maior competência para julgar e escolher. Nesse sentido, é interessante a visão de Bourdieu (1989), uma vez que sua análise foca a distinção: o consumo tem o poder 70 classificatório de comunicar a diferença e de transformar-se em um meio de comunicação e relacionamento. Esses autores ressaltam que as posses materiais, ao mesmo tempo em que fornecem comida e abrigo, também têm outro importante uso: estabelecem e mantêm relações sociais. Dessa forma, em vez de supor que os bens sejam primeiramente necessários à subsistência e à exibição competitiva, eles são necessários também para dar visibilidade e estabilidade às categorias da cultura, sendo prática da investigação etnográfica supor que todas as posses materiais carregam significação social e concentram parte principal da análise cultural em seu uso como comunicadores. Em síntese, os bens, na perspectiva de Douglas e Isherwood (2006), são acessórios tanto para os rituais quanto para a marcação. Funcionam como acessórios dos rituais, pois o consumo pode ser tratado como um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos. Ou seja, servem para conter a flutuação dos significados. Também são acessórios para a marcação, pois podem servir para marcar os intervalos entre meses, anos, acontecimentos importantes, fases da vida, e assim por diante. Portanto, os bens são a parte visível da cultura, por estarem organizados em perspectivas e hierarquias que podem dar espaço para a variedade total de discriminações de que a mente humana é capaz. Os bens, nesse sentido, são portadores de significado, que está nas relação entre todos os bens, assim como a música está nas relações marcadas pelos sons, e não em qualquer nota. Vale afirmar também que o ser humano individual, despido de sua humanidade, não tem utilidade como base conceitual para, a partir dela, fazer um retrato da sociedade da sociedade humana. Isto é, nenhum ser humano existe senão fixado na cultura de sua época e lugar. Assim, três posições intelectuais encorajam tal abordagem. A primeira seria a fenomenologia, que coloca o indivíduo diretamente em um contexto social, tratando o conhecimento como um empreendimento de construção conjunta. A segunda seria o estruturalismo, cuja teoria implícita do conhecimento vai além dos esforços do pensador individual, e enfoca processos sociais do conhecimento. A terceira seria a etnometodologia, que defende que a realidade é socialmente construída e também que a realidade pode ser analisada como estruturas lógicas em uso (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006, p. 36). Assim, a pesquisa que conduzida para a tese se enquadra mais na primeira posição, a da fenomenologia. Outro autor importante nesse contexto é o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Alguns argumentos importantes desenvolvidos por ele têm aderência à questão do consumo, em uma 71 perspectiva antropológica. Bourdieu afirma que o consumo é cultural visto que ao consumir as pessoas tanto exercem seus gostos ou estilos quanto os exibem, os quais não são uma questão de capricho pessoal; são estruturados socialmente. Ao expressar ou exibir seus gostos, com efeito, os consumidores estão afirmando aos outros indícios de sua posição social (BOURDIEU, 1989; 2007a; 2007b). Um conceito central de Bourdieu é o de habitus, que pode ser considerado como uma estrutura de “disposições”, isto é, um sistema de classificação, regras e expectativas que predispõe o indivíduo a fazer certas escolhas e ações. O papel do habitus é produzir interiorização de crenças, verdades, comportamentos e atitudes. Objetiva produzir o efeito (reprodução, permanência no tempo-espaço, continuidade, capacidade de transferência, compartilhamento de valores) de informar a todos os outros a sua condição de reconhecimento/reconhecido. Assim, o espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições (ou do habitus) ao sistema de separações diferenciais nas propriedades dos agentes, isto é, em suas práticas e nos bens que possuem (BOURDIEU, 1989). Ao estender o conceito de habitus ao modo de vida do consumidor, é possível estabelecer que todo objeto escolhido, assim como todo ritual de consumo, está ou pode estar voltado a cálculos precisos de movimentos e restrições possíveis. Por exemplo, Bourdieu (2007b) insinua que a cultura e o consumo da classe operária são determinadas pela “escolha do necessário”. Ao afirmar que “nada é mais estranho às mulheres das classes populares que a ideia, tipicamente burguesa, de transformar cada objeto de seu interior na ocasião de uma escolha estética” (p. 355), ele parece querer dizer que elas não podem se dar ao luxo da estética por causa da pobreza econômica, mas que o “necessário” é escolhido a partir de um habitus, fruto de uma estrutura de cognições, ao mesmo tempo em que é formada por experiências coletivas e de longa data e transmitidas das limitações econômicas de sua posição de classe. Cabe destacar que Bourdieu (2007) acaba por atribuir grande atenção à defesa de que o consumo é um modo de reprodução dos mecanismos de manutenção da dominação entre as classes. Prova disso é que sua análise se prende em tentar buscar elementos que possam tanto distinguir quanto separar as classes. Assim, as classes dominantes tenderiam a procurar a produção social da diferença, enquanto os grupos “na base” acabariam por reforçar o sistema de distinção social em decorrência do seu habitus. 72 Daniel Miller, outro antropólogo e estudioso do consumo, também pode ser citado como uma referência importante. Miller (2002) resgata um tema abandonado pelos antropólogos no século XIX, a “cultura material”, o qual, ao lado dos diferentes usos a que ela é posta, não é uma consequência direta dos mecanismos da economia capitalista. Tanto o capitalismo quanto o marketing desempenham um papel importante na criação do desejo, mas não são os únicos determinantes de onde, quando e como as relações sociais estarão sujeitas a um processo de comoditização. No âmbito dessa subdisciplina, o autor salienta que o ato de comprar deve ser visto como um meio de descobrir, mediante a observação cuidadosa das práticas das pessoas, algo sobre seu relacionamento. Ainda que muito mal visto pela sociedade moderna, pois é sempre atrelado a diversos aspectos negativos e pejorativos, o ato de comprar é a interpretação do outro como o sujeito que deseja. O objetivo de comprar, portanto, não reflete tanto comprar o que as pessoas desejam, mas lutar para continuar se relacionando com os sujeitos que desejam essas coisas. Miller (2002) também enfatiza que não são as mercadorias que simbolizam as pessoas, mas é o ato de comprar que constitui os relacionamentos, interfere neles e remete novamente a eles. Assim, o ato de comprar pode revelar contradições entre a autoimagem e a idealização ou a desvalorização do eu pelos outros. Pode, inclusive, expressar a natureza do poder. Relacionando cultura e consumo, McCracken (2003) é outro pesquisador defensor da ideia de que o consumo é moldado, dirigido e constrangido em todos os aspectos por considerações culturais. A contribuição desse autor para o entendimento do consumo em uma perspectiva antropológica se direciona para pelo menos cinco questões importantes. A primeira questão está relacionada à tentativa de construção da história do consumo a partir do século XVI na Europa. Com base em estudos de historiadores e pesquisadores do consumo, McCracken (2003) parece aceitar a tese de que foi ignorada pela história tradicional a “revolução do consumo”, que seria companheira necessária e essencial para a revolução industrial, uma vez que uma mudança nos meios e nos fins produtivos não poderia ter ocorrido sem uma mudança nos gostos e preferências dos consumidores. Ainda que essa ideia seja contestada por alguns economistas (FINE, 2002), McCracken (2003) argumenta que o consumismo deu-se anteriormente ao advento do capitalismo, que ajudou a criar o capitalismo. A segunda questão guarda relação com o conceito de pátina que consiste em pequenos signos de idade que se acumulam na superfície de objetos como mobília, pratarias, cutelarias, 73 construções, joias, roupas e outros objetos de manufatura humana. A pátina funcionaria como uma espécie de prova visual do status do seu proprietário, permitindo a seguinte inferência: Quanto maior a pátina em certos objetos, mais longo o tempo durante o qual o proprietário goza de certos status. Porém, hodiernamente, a pátina foi suplantada pelo sistema “moda” de consumo, recolhendo-se em sua posição atual como estratégia utilizada somente pelos muito ricos. A terceira questão tem a ver com a discussão conduzida por esse autor no tocante ao movimento de significados no mundo dos bens, conforme foi apresentado na FIG. 2, na seção anterior. A quarta questão seria a discussão do McCracken (2003) chama de “significado deslocado”, a qual consiste da “remoção” de um significado cultural da vida cotidiana de uma comunidade e sua realocação em um domínio cultural distante. O que é interessante ressaltar é o fato de que os bens são pontes para o significado deslocado e, desta feita, os objetos contam não quem nós somos, mas quem nós gostaríamos de ser. O uso dos bens para retomar o significado deslocado, portanto, funcionaria como um dos mecanismos do consumo da sociedade moderna e contribui para perpetuar o apetite consumista. Assim, o deslocamento do significado é uma estratégia importante de que as culturas e os indivíduos lançam mão para lidar com a discrepância entre o “real” e o “ideal”. Por fim, a quinta contribuição de McCracken (2003) para o campo do entendimento do consumo em uma perspectiva antropológica está relacionada com o que ele chama de “efeito Diderot”, que sugere que os bens de consumo, de alguma maneira complementares, são ligados por certa comunalidade ou unidade. Ou seja, as coisas têm uma espécie de harmonia ou consistência e, portanto, “andam juntas”. Isso se daria por alguns motivos. Em primeiro lugar, porque os consumidores “leem” o significado de um produto específico a partir daqueles que o acompanham. Em segundo lugar, o significado dos bens de consumo deriva da posição que ocupam em um sistema de bens e da relação deste sistema com um sistema de categorias culturais. Por último, os bens “andam juntos” porque suas propriedades simbólicas os agrupam. São os aspectos culturais significativos dos bens que contribuem para atribuir suas harmonias secretas. Outro autor que contribui para as discussões da antropologia do consumo é Colin Campbell. Em primeiro lugar, Campbell (2001) advoga em defesa de que anteriormente à Revolução Industrial houve uma Revolução do Consumo que é negligenciada pelos pesquisadores. Ou seja, ele compreende que a Revolução Industrial constituiu uma dramática 74 transformação, pois houve um concomitante desenvolvimento e ampliação do consumo. Contudo, essa nova propensão ao consumo teve origem em uma mudança de valores e atitudes, uma mudança que não se confinou ao significado econômico do comportamento do consumidor. Essas mudanças, que constituiriam uma revolução do consumo, foram provenientes da expansão das atividades das horas vagas, inclusive a leitura de romances, juntamente com a ascensão da moda e do amor romântico. Além disso, Campbell (2001) percebe o consumo moderno como consequência do padrão de gratificação das pessoas. Dessa forma, o consumo é alimentado por sentimentos românticos existentes na associação de imaginário por parte dos consumidores. Ele também defende a ideia do comportamento de compra hedonista. A chave para o desenvolvimento do hedonismo moderno está no deslocamento das sensações para as emoções, uma vez que é por causa destas últimas que a estimulação poderosa e prolongada pode combinar com qualquer grau significativo de controle autônomo. Em outras palavras, o hedonismo do consumo moderno não se refere simplesmente à satisfação da necessidade, mas à busca do prazer pelo prazer, o que parece estar associado a uma ênfase na intensificação das experiências emocionais, compreendidas como experiências situadas no mundo interno do eu. O autor também faz, a exemplo de McCracken (2003), algumas ponderações a respeito do fenômeno da moda, que, segundo ele, representa a mais relevante de todas as instituições do consumismo moderno. A moda proporciona uma resposta à questão dos motivos pelos quais os consumidores individuais estariam ávidos de seguir novas modas, sem recorrer à sugestão de que eles, ao fazê-lo, são manipulados ou de que isso é o resultado da obsessão com o status social. Ao invés disso, a moda pode ser entendida como uma introdução ajustada de controlados elementos de novidade naqueles produtos de alta significação estética para permitir a concretização dos devaneios. Outra parte do consumismo contemporâneo está relacionada à importância dada às representações dos produtos mais do que aos próprios produtos. Essas representações abrangem não somente anúncios e catálogos comerciais, mas também revistas, periódicos, cartazes, cartões, calendários e até obras de arte. Adjacente a isso, pode ser assinalada a prática de “olhar vitrinas” como uma forma de se “entregar às compras” sem adquirir absolutamente nada, a não ser o prazer da experiência proveniente do uso imaginativo dos objetos vistos. Ou seja, “experimentar” mentalmente as roupas examinadas ou “ver” os móveis arrumados dentro de sua sala. Por fim, Campbell (2001) afirma que o espírito do consumismo moderno é tudo, menos materialista, isto é, sua motivação básica é o desejo de experimentar, na realidade, os 75 dramas agradáveis de que já desfrutaram na imaginação. Assim, cada “novo” produto é visto como uma nova possibilidade de concretizar essa ambição. Isso fica evidente em boa parte dos anúncios publicitários quando falam mais de sentimentos, desejos e anseios do que argumentos primariamente racionais ou remetem a valores coletivos de aceitabilidade e identidade social e apresentam imagens do exótico, do natural, do surreal e do inconsciente, em vez de fatos empíricos ou discussões baseadas em questões racionais. Em suma, o trabalho de Campbell (2001) contribui para o entendimento do consumo no sentido de que conclui que existe uma relação entre a ética romântica e o espírito do consumismo moderno, classificado como hedonismo autoilusivo, o qual se caracteriza pelo anseio de experimentar, na realidade, os prazeres criados e desfrutados na imaginação, o que irá resultar no incessante consumo de novidade. Essa perspectiva, marcada pela insatisfação com a vida real e pela avidez por novas experiências, seria o cerne de muita conduta típica da vida moderna e reforça as bases de instituições fundamentais, como a moda e o amor romântico. A ética romântica, nesse caso, teria uma congruência básica com esse espírito e tem dado origem a um tipo de caráter e a uma conduta ética que conduzem à adoção de tais atitudes. Complementarmente, o movimento romântico participou de maneira decisiva no nascimento do consumismo moderno, uma vez que operou no sentido de suplantar as forças do tradicionalismo e proporcionar um impulso renovado à sua dinâmica. Roche (2000), da mesma forma que Campbell (2001), ao traçar o nascimento do consumo entre os séculos XVII e XIX, também defende o argumento de que o consumo já era uma realidade bem antes da Revolução Industrial, e comercial, iniciada no século XVIII. Na visão do autor, o consumo pode ser considerado inseparável da dimensão familiar, na qual as despesas não se organizavam em torno do indivíduo, agente econômico isolado, e sim do conjunto pais-filhos, essa coletividade dinâmica na qual se construíam as identidades individuais. Nas despesas e, portanto, nas escolhas que caracterizavam a economia do cotidiano, mesclavam-se de maneira complexa os fatores de socialização, o cultural e o antropológico e também o social e o econômico, o nível de renda e a distância entre rendas, e a representação dos atores. O consumo das famílias não era apenas o produto dessas condições; era também uma maneira de definir e de comportar segundo um conjunto de normas de identidades e de conhecimentos. Vale destacar que, para Roche (2000), os objetos do dia a dia, nesse contexto, mesmo os mais comuns, contêm engenhosidades, escolhas, uma cultura, ao mesmo tempo que um saber e um acréscimo de sentido. Vê-se isso em seu modo de aquisição, no qual a moral, os 76 princípios que os distinguem e as escolhas pessoais intervêm na parte do orçamento a ele dedicado, na maneira de sua utilização, em que se revelam um ensinamento e uma moral do uso das normas, e nas regras do decoro, no modo de sua posse, em que a magnificência e o desperdício dos grandes contrastam com o subconsumo ostentatório dos burgueses ou com o consumo compulsivo dos novos-ricos. Para finalizar o tópico com o intuito de promover uma excursão pelos autores que veem o consumo em uma perspectiva antropológica, vale lançar mão da seguinte citação que parece resumir a visão geral: Para entender o consumo, é preciso conhecer como a cultura constrói a experiência na vida cotidiana, como atuam os códigos culturais que dão coerência às práticas e como, através do consumo, classificamos objetos e pessoas, elaboramos semelhanças e diferenças. E assim ver que os motivos que governam nossas escolhas entre lojas e shoppings, marcas e grifes, estilos e gostos – longe de desejos, instintos ou necessidades – são relações sociais que falam de identidades e grupos, produtos e serviços. O consumo é um sistema simbólico que articula coisas e seres humanos e, como tal, uma forma privilegiada de ler o mundo que nos cerca. Através dele a cultura expressa princípios, estilos de vida, ideais, categorias, identidades sociais e projetos coletivos (ROCHA, 2006b, p. 86). A partir da discussão desses autores quanto à visão antropológica do consumo, percebe-se uma carência de teorias que levem em consideração a questão simbólica do consumo de consumidores no contexto cultural brasileiro. Todas as obras e autores citados desenvolveram suas teorias em outros contextos históricos e culturais. Ademais, os consumidores de baixa renda, não raramente, são sequer mencionados nesses estudos. É, portanto, nessa lacuna do conhecimento que se insere a proposta teórica desta tese, a qual será discutida na próxima seção. 3.6 Proposta teórica da tese Conforme será discutido detalhadamente nos capítulos 5 e 6, elaborados com vistas a apresentar e explanar o posicionamento epistemológico e o percurso metodológico da tese, os estudos baseados na grounded theory não devem partir de conceitos concebidos anteriormente, muito menos de um referencial teórico “fechado”. Pelo contrário, o pesquisador deve se limitar a consultar a literatura existente sobre a área substantiva em estudo, a fim de se posicionar diante perspectivas teóricas existentes e, principalmente, verificar pontos nos quais ela é incompleta, lacunar ou simplificada para explicar determinado fenômeno. Assim, no caso desta tese, esta seção foi elaborada com o objetivo de detectar 77 possíveis lacunas na literatura acerca das temáticas referentes às experiências de consumo e das teorias atinentes à cultura de consumo e da antropologia do consumo. Além de perceber essas lacunas, “atrevidamente”, o objetivo é propor algumas interlocuções entre esses campos que tenham sido negligenciados pelos pesquisadores do consumidor. De início, vale discutir que as raízes da abordagem experiencial, como oposta à perspectiva funcional, podem ser encontradas na emergência de variados tipos de produtos e de serviços, para os quais o que é comprado é uma experiência mais do que o objetivo material. Essa noção vai ao encontro dos objetivos desta tese, visto que busca-se compreender a experiência de consumo que inclui elementos que se referem a fantasias, sentimentos e alegrias um tanto distanciadas de qualquer conexão que possa existir nas decisões de compra racional. Assim, nota-se uma característica da corrente de teorias pós-modernas do consumo, na qual se verifica a supremacia da produção de símbolos pelos consumidores em lugar da produção de bens pelo produtor. Ou seja, os consumidores contemporâneos definem determinados objetos e experiências de consumo como representantes de algo mais do que objetos aparentemente comuns. Nesse sentido, expressando esses valores por meio do consumo, é possível verificar a celebração de sua ligação com a sociedade como um todo e com determinadas pessoas em especial (BELK, WALLENDORF e SHERRY, 1989). Portanto, a discussão que ganha relevo e apresenta aderência ao tema desta tese certamente remete ao papel do simbolismo envolvido nas experiências de consumo. Esta faceta do consumo é estudada por alguns pesquisadores interessados principalmente no consumo de produtos como um canal para o consumidor comunicar seus valores por meio dos significados desses bens. A questão do simbolismo tem sido direcionada para outros conceitos adicionais, como a forma como o significado simbólico dos produtos serve como fonte de valores pessoais. Nessa perspectiva, os significados atribuídos aos objetos resultam de uma construção social (ADDIS e HOLBROOK, 2001). A interpretação do consumo como uma experiência holística é uma face adicional da visão experiencial que deve ser levada em conta. Quando aplicada mais generalizadamente, a perspectiva holística sugere que o uso dos produtos não é separado e isolado do resto do mundo do consumidor. Isto é, o produto está fortemente relacionado aos sentimentos da pessoa, às relações com outras pessoas, a sociedade como um todo e a vida total do consumidor. Solomon (1998) refere-se a esse conceito como “constelação do consumo”, que identifica uma série de produtos usados em conjunto para definir, comunicar e “representar” um papel social. Dessa forma, para Solomon (1998) os profissionais de marketing devem considerar a inter-relações e relações entre 78 experiências porque quando algo é consumido a experiência depende não somente de um produto único, mas também de uma interação holística, do mesmo modo que vários outros produtos, como parte do sistema de consumo. É importante salientar que parece haver uma interlocução entre o campo da experiência de consumo e o campo da teoria da cultura do consumo que não tem sido contemplada pelos pesquisadores do consumidor. Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que as experiências de consumo levam em consideração questões eminentemente simbólicas e permeadas por sensações diversas, como sonho, imaginação, alegria, prazer e status. É justamente neste ponto que se apoia todo o referencial da teoria da cultura do consumo, pois as práticas de consumo e posse, particularmente as dimensões hedônicas, estéticas e ritualísticas, têm sido a mais amplamente estudada constelação de fenômenos identificados com a cultura do consumo. Ratificando essa questão, conforme salientado por Carù e Cova (2003), as relações com o mercado é somente uma das formas de relacionamento do consumidor. Outras, todavia, estão mais presentes na sua vida cotidiana e, portanto, podem ser consideradas como muitas mais decisivas em suas experiências: as relações sociais. Assim, segundo a sociologia do consumo, “as relações sociais moldam as experiências de consumo”. Em segundo lugar, partindo-se do pressuposto de que a base do marketing é a troca e que essa troca, muitas vezes, é simbólica - ou seja, ela é construída no nível da ação social e é impregnada de significado de elaboração coletiva da sociedade de consumo -, pode-se perceber também que muitas dessas trocas são construídas não em uma abordagem tradicional, mas sim em uma perspectiva experiencial, da qual o consumidor participa ativamente do processo quase sempre marcado por sensações diversas. Ademais, vale frisar que as duas abordagens parecem contribuir para aumentar o conhecimento até então existente acerca dos processos culturais que participam das construções de experiências no mercado, além de aumentar nosso entendimento das estratégias dos consumidores no tocante à produção, mediação e consumo de experiências. Ou seja, a interlocução que parece existir entre os dois campos converge na premissa de que nos aspectos experienciais do consumo não podem ser negligenciada a dimensão social, ressaltando o seu significado simbólico-cultural. Significado que não se limita ao consumidor individual, isolado, obediente e sempre fiel à simples ordem econômica, material e funcional do consumo, mas que está sempre em trânsito, sendo criado e transferido, desfilando fugaz no mundo culturalmente constituído, nos produtos e serviços e nos próprios consumidores. 79 A título de sumarização, a proposta teórica da tese caminha no sentido de tentar conciliar ou buscar interlocuções entre a literatura atinente às experiências de consumo na perspectiva das teorias da cultura do consumo; ou seja, construir um conhecimento ou estabelecer relações teóricas que busquem integrar a noção experiencial do consumo com o sistema cultural e simbólico dos sujeitos envolvidos no fluxo da vida social cotidiana. O próximo capítulo, que finaliza a parte teórica da tese, buscará fazer um breve apanhado acerca das discussões sobre pobreza e, principalmente, tentar relacionar esse tema com o consumo por meio da descrição de trabalhos já publicados na literatura internacional e brasileira. 80 4 . OS POBRES E O CONSUMO Este capítulo foi incluído na tese com a intenção de relacionar os dois temas centrais do trabalho: pobreza e consumo. Assim, o objetivo foi revisitar, ainda que resumidamente, as discussões sobre pobreza na literatura tanto internacional quanto nacional. Com vistas a relacionar os dois temas e, principalmente, perceber lacunas na literatura e questões ainda em aberto, buscou-se também fazer uma sumarização de estudos publicados no Brasil. A organização do capítulo compõe-se de cinco seções. A primeira tem por objetivo apresentar uma breve discussão sobre a pobreza no mundo, no Brasil e em Belo Horizonte. A segunda aborda a forma pela qual os pobres urbanos vêm sendo estudados nas ciências sociais brasileiras. A terceira relaciona alguns dos estudos envolvendo os consumidores pobres na literatura internacional. A quarta seção trata de apresentar estatísticas a fim de tentar mensurar a pobreza no Brasil e, em especial, exibir alguns dados focados no município de Belo Horizonte. A quinta e última seção busca sumarizar e descrever estudos sobre consumo relacionados aos pobres no Brasil, a fim de estabelecer um “retrato” atualizado envolvendo esse campo de pesquisa. 4.1 Uma breve discussão sobre a pobreza no mundo, no Brasil e em Belo Horizonte Certamente, pobreza é um tema central para várias áreas de conhecimento, perpassando quase todos os campos das ciências sociais, principalmente nos últimos anos, quando ganharam relevo questões ligadas ao desenvolvimento humano. Já na década de 1990, conforme enfatizado por Davis (2006), o pobreza urbana se tornaria o problema mais importante e politicamente explosivo do próximo século. Contudo, conceituar pobreza é algo extremamente complexo, visto que as tentativas podem levar em conta algum “juízo de valor”, em termos tanto relativos como absolutos. Não obstante, a pobreza pode ser estudada levando-se em conta, ou não, aspectos econômicos, sendo contextualizada de forma dependente ou não da estrutura sociopolítica da sociedade (CRESPO e GUROVITZ, 2002). Ademais, vale considerar as especificidades da pobreza em contextos diversos como áreas rurais e urbanas, também o sendo entre áreas urbanas, conforme o grau de urbanização. Características demográficas, como distribuição da população por idade, implicam diferentes necessidades e visões sociais distintas do que vem a ser pobreza. Comparações intertemporais 81 também apresentam dificuldades devido a novos valores e modificações nas condições de vida (ROCHA, 2006). Crespo e Gurovitz (2002) defendem que, basicamente, três concepções sobre a pobreza foram desenvolvidas ao longo do século XX: sobrevivência, necessidades básicas e privação relativa. O enfoque da sobrevivência predominou nos séculos XIX e XX, até a década de 1950. Essa concepção, que foi adotada na Inglaterra e teve grande influência na Europa, apontava que a renda dos mais pobres não era suficiente para a manutenção do rendimento físico do indivíduo (CRESPO e GUROVITZ, 2002). Nas modernas economias monetizadas, nas quais uma parcela ponderável das necessidades das pessoas é atendida por meio das trocas mercantis, é aceitável que a noção de atendimento às necessidades seja operacionalizada de forma indireta, via renda. Assim, busca-se estabelecer um valor monetário associado ao custo do atendimento das necessidades médias de uma pessoa em uma dada população. Quando se trata de necessidades nutricionais, esse valor é denominado “linha de indigência” ou de “pobreza extrema”. Quando se refere ao conjunto mais amplo de necessidades, trata-se da chamada “linha de pobreza”. Vale destacar que comparações internacionais baseadas no enfoque de renda são problemáticas, quer se adote o conceito de pobreza relativa ou absoluta (ROCHA, 2006). A maior crítica no que tange a esse enfoque é seu caráter limitador das condições de vida, justificando baixos níveis de assistência social. Já a conotação de necessidades básicas significa ir além daquelas de alimentação, para incorporar uma gama mais ampla de necessidades humanas, tais como educação, saneamento e habitação. Essa abordagem apresenta alguns aspectos que parecem pertinentes. Em primeiro lugar, ela é interessante porque abandona a renda como indicador-chave e adota parâmetros que refletem resultados efetivos em termos de qualidade de vida, e não em termos de insumos ou instrumentos. Em segundo lugar, a abordagem estabelece objetivos e mede resultados para a sociedade como um todo, não se restringindo a uma subpopulação pobre. Por fim, enfatiza o caráter multidimensional da pobreza e o reconhecimento da inter-relação entre as diversas carências (ROCHA, 2006). Por fim, a partir de 1980, a pobreza passou a ser entendida como privação relativa, o que deu ao conceito uma abordagem mais abrangente e rigorosa, por meio de uma formulação científica e de comparações entre estudos internacionais, com ênfase no aspecto social. Assim, sair da linha de pobreza significava obter: regime alimentar adequado, certo nível de conforto e o desenvolvimento de papéis e de comportamentos socialmente adequados (CRESPO e GUROVITZ, 2002). Esses autores destacam que o enfoque da privação relativa 82 teve uma evolução considerável a partir dos estudos de Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 1999. O conceito de Sen introduz variáveis mais amplas, com foco nas privações que as pessoas podem sofrer em diversas esferas da vida. Dessa forma, ser pobre não significa somente privação material. As privações sofridas determinarão o posicionamento dos cidadãos nas outras esferas. O desafio, porém, não se limita à definição. Outra questão que se impõe na discussão sobre pobreza está relacionada à escolha dos procedimentos de mensuração adequados. Trata- se de identificar os traços essenciais da pobreza em determinada sociedade. É generalizada? Ou, ao contrário, é restrita geograficamente? Quais são seus determinantes? É um fenômeno crônico ou está pontualmente associado a mudanças econômicas e tecnológicas? Quais são seus sintomas principais? Quem são os pobres em termos de um conjunto de características básicas? Ou, em outras palavras, qual é o perfil dos pobres? (ROCHA, 2006). Assim, a partir dessas inquietações, julgou-se adequado criar indicadores sociais sintéticos que objetivassem mensurar o nível de pobreza com as mesmas vantagens do PIB per capita como indicador econômico. Nesse sentido, várias foram as tentativas. Em 1977, um grupo de pesquisadores criou o physical quality of life index (PQLI), que reunia em um índice único três características para refletir a qualidade de vida: mortalidade infantil, esperança de vida com um ano de idade e taxa de alfabetização. Mais recentemente, nos anos de 1990, foi proposto pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) o chamado “Índice de desenvolvimento humano” (IDH), que sintetiza, de certa forma, a discussão sobre índices sintéticos de desenvolvimento humano. Também nessa época foi criado o “Índice de pobreza humana” (IPH). Ressalta-se que o Brasil, em 2000, situava-se em 74º lugar entre os 174 países sobre os quais o PNUD computou o índice. Com relação ao IPH, o país colocou-se em 17º lugar no ranking de 88 países subdesenvolvido (ROCHA, 2006). No Brasil, o tema “pobreza” tornou-se uma questão central para os diferentes segmentos da sociedade brasileira, principalmente a partir do sucesso da estabilização iniciada em 1994. A importância do tema ganhou vulto porque revelou o entendimento de que a persistência da pobreza tem influência direta nos diversos problemas nacionais, como informalização do mercado de trabalho, questão agrária, déficits de oferta de serviços públicos básicos, aumento da criminalidade e favelização (ROCHA, 2006). A hipótese frequente em vários estudos sobre o tema é de que o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres (BARROS, HENRIQUE e MENDONÇA, 2000). 83 Rocha (2006), analisando um conjunto significativo de estudos e pesquisas sobre o tema “pobreza no Brasil nas últimas décadas”, sugere vários pontos de consenso quanto à questão. O QUADRO 9 apresenta esses pontos. QUADRO 9 – Algumas questões relacionadas à pobreza no Brasil PONTO DESCRIÇÃO O que se entende por pobreza no Brasil? É bastante frequente no Brasil associar pobreza à fome. Entretanto, na maior parte das vezes isto é incorreto, pois o número de pobres e indigentes está sendo definido a partir da renda e não da situação nutricional. Assim, embora os indigentes sejam definidos como aqueles cuja renda familiar per capita é insuficiente para a aquisição de uma alimentação adequada, eles não são necessariamente subnutridos. Portanto, a questão crítica da subnutrição se distingue do conceito mais geral de pobreza. O declínio de longo prazo e a estabilidade recente Os indicadores de pobreza para o Brasil permitem indicar quatro patamares distintos nos últimos 30 anos. Entre 1970 e 1980, verifica-se uma redução significativa da incidência de pobreza como efeito direto das altas taxas de crescimento da renda. Ao longo dos anos 1980 até 1993, a incidência de pobreza oscilou ano a ano, acompanhando as flutuações macroeconômicas de curto prazo. A redução drástica da inflação em 1994 permitiu uma sensível redução da incidência de pobreza, a qual se estabilizou num novo patamar entre 1995 e 1999. Já no século XXI, pode-se dizer que os indicadores de pobreza têm ficado praticamente estáveis, encobrindo apenas ocorrências localizadas e episódicas de aumento ou redução. Pobreza e desigualdade de renda Há consenso, no Brasil, de que a persistência da pobreza está vinculada à desigualdade. Os coeficientes de Gini associados à distribuição de renda no Brasil são dos mais elevados do mundo, tanto quando se considera o rendimento das pessoas, quanto se trata do rendimento familiar per capita. Urbanização e desigualdades regionais Sob uma perspectiva de longo prazo, a principal alteração na espacialização da pobreza no Brasil foi a redução sustentada da pobreza rural. Ou seja, os pobres urbanos são largamente a maioria, cerca de 80% dos pobres brasileiros. A heterogeneidade da pobreza È bastante compreensível que os indivíduos e famílias pobres apresentem características diversas, em se tratando de um país como o Brasil. São ilustrativos dessa diversidade, os perfis dos pobres nas principais metrópoles do país e as áreas rurais, principalmente da região Nordeste. Educação, renda e pobreza É amplamente conhecido que, a longo prazo, a redução da pobreza absoluta e da desigualdade de renda passa, necessariamente, por mudanças estruturais no sistema educacional que possa garantir acesso à escola e à educação de boa qualidade para os mais pobres. Pobreza e mercado de trabalho Mesmo trabalhadores envolvidos em atividades formais em tempo integral recebendo o salário mínimo podem ser pobres, em função da composição de sua família e do baixo valor desse salário. A vulnerabilidade das crianças Devido às características do ciclo de vida das famílias, crianças são especialmente vulneráveis à pobreza. Mais da metade das crianças com menos de quatro anos são pobres, e tal proporção declina com o aumento da idade. O bom desempenho da política antipobreza O acúmulo de informações sobre a pobreza no Brasil e sobre as experiências voltadas para o atendimento aos pobres levaram ao crescente distanciamento entre políticas antipobreza e iniciativas filantrópicas de caráter tradicional. Quanto custa eliminar a pobreza? Apesar das reconhecidas dificuldades operacionais, mecanismos antipobreza baseados na transferência de renda vêm ganhando importância, nos últimos anos, principalmente a partir do governo Lula em 2003. A justificativa básica para esse tipo de mecanismo se baseia no fato de que, numa economia moderna e monetizada, a cidadania plena depende de que se disponha de renda suficiente para o atendimento das necessidades no âmbito do consumo privado. Fonte: ROCHA (2006) 84 Apesar da complexidade referente à discussão sobre o tema “pobreza”, uma questão que não pode ser deixada fora de foco está relacionada à noção de que a pobreza não é uma questão da quantidade de bens que se possui, mas de como os indivíduos percebem suas necessidades e as satisfazem dentro dos padrões estabelecidos na sociedade (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006). Assim, parece útil tentar tecer alguns comentários acerca da forma como as ciências sociais brasileiras vêm entendendo e pesquisando os pobres. 4.2 O pobre nas ciências sociais brasileiras Para os objetivos desta tese, torna-se útil discutir como os indivíduos pobres vêm sendo estudados nas ciências sociais. Nesse ponto, vale destacar que os estudos brasileiros, sobretudo a partir dos anos de 1970, focalizaram os pobres a partir de seu lugar na produção, tendendo a pensá-los a partir de uma concepção de homo economicus, própria de uma perspectiva sociológica, de inspiração marxista. Os pobres, nessa perspectiva, foram identificados como destituídos de meios materiais, simples vendedores da força de trabalho. Corporificando a carência material, eles foram mecanicamente destituídos de recursos simbólicos, como se à opulência no mundo capitalista correspondesse riqueza material (SARTI, 1996). Outra concepção dos pobres urbanos privilegiou a cultura como componente simbólico da ação humana. Boa parte dos trabalhos nesse paradigma lançou mão de análises etnográficas, destacando a existência de um modo de vida (ou práticas) e de representações próprias das camadas populares. Os temas privilegiados foram tanto o cotidiano, o trabalho, a família, a sexualidade, as relações de gênero e o lazer quanto o poder, a violência ou a experiência política (SARTI, 1996). Percebe-se, no entanto, que não foi dada a devida importância a estudos com o propósito específico de se pesquisar o consumo de pessoas pobres. Na corrente chamada “cultura da pobreza”, afirma-se que, devido à situação dos pobres em uma sociedade estratificada e altamente individualista, como a capitalista, estes desenvolvem uma cultura exclusiva, que se caracteriza pelo mínimo de organização acima da família e pela falta de integração às instituições da sociedade mais ampla. Isso se explicaria tanto pela propensão à apatia, à falta de interesse na política e à ausência de cultura de classe 85 quanto por uma pobreza cultural decorrente do desconhecimento do estoque simbólico da sociedade abrangente. O perigo disso reside em supor que a pobreza tenha o mesmo significado em diferentes partes do mundo, em que a população pobre tem origens étnicas muito distintas. Suas características objetivas, aquelas que são registradas em censos e tabelas estatísticas, podem muito bem dever-se a processos culturais distintos e ter, portanto, significados também distintos para os que vivem na pobreza. Além do mais, a pobreza é um conceito comparativo e sua qualidade relativa aos outros gira em torno da desigualdade social. Esta não é uma consequência de sua cultura, mas o resultado de políticas públicas que provocam uma real privação material e uma real exclusão dos pobres nos campos ocupacional, educacional e político (ZALUAR, 1985). Vale destacar aqui também o alerta de Sarti: A pobreza não deve ser vista somente como uma questão econômica ou de falta material. A pobreza tem dimensão social e simbólica. O universo simbólico dos pobres reflete e devolve a imagem da sociedade onde vivem. Não se trata, assim, de um universo específico dos pobres, mas dos elementos socialmente dados que são por eles mobilizados e articulados para viverem e atribuírem um sentido à vida, num mundo onde precisamente se localizam como pobres (SARTI, 1996, p. 112). Adjacente à discussão referente aos pobres nas ciências sociais brasileiras, o interessante a notar é que, embora existam inúmeras áreas nas quais a carência material esteja presente de forma quase absoluta, as regiões das cidades conhecidas como favelas ganharam destaque como sinônimo de pobreza. Conforme Zaluar e Alvito (1998), as favelas ficaram registradas como áreas de precariedade urbana, resultado da pobreza de seus habitantes, formadas de habitações irregulares construídas sem arruamentos, sem planos urbanos, sem esgotos, sem água, sem luz. Assim, a partir da noção de que a favela é o lugar da carência, da falta e do vazio é que surgiram imagens do pobre, morador da favela, estigmatizado pela “marca do perigo”, dono de uma identidade social pautada pela ideia da pobreza, miséria, crianças na rua, família desagregada, criminalidade, delinquência. Tais imagens são realimentadas pelos veículos de informação, que trazem notícias sobre a favela sempre do ponto de vista negativo, enfatizando o tráfico de drogas e a violência. Por causa dessas crenças, o fato de um indivíduo morar em uma favela o transforma num estigmatizado, sendo- lhe atribuída uma condição “desviante” de anormalidade e periculosidade (ZALUAR e ALVITO, 1998; RINALDI, 1998). 86 No que tange ao consumo dos pobres, não são apenas os rendimentos e a opção da família em termos gerais que determinam a maneira do quê, como e quando consumir. O consumo é também determinado culturalmente. O que se procura por dentro da casa segue um padrão de gosto que é comum e que faz parte do estoque simbólico e referencial do conjunto dos trabalhadores de baixa renda. Dessa forma, se os rendimentos restringem o que se pode ter, eles não o determinam diretamente. A conexão entre a renda do trabalho individual e o consumo é feita sempre pela mediação da família. Ela é a unidade social na qual se dá a reprodução do trabalhador e, nesse sentido, é uma unidade de consumo. De fato, o consumo é o fim que articula as outras dimensões da família. Ou seja, a maior parte dos projetos de consumo é familiar, não só no sentido de que eles são pensados em função de todo o grupo doméstico, mas também no sentido de que depende do esforço de pelo menos alguns de seus membros. A família tem, assim, um papel bastante específico para os trabalhadores e sua sobrevivência (CALDEIRA, 1984). Os estudos oriundos das ciências sociais sobre pobres urbanos, portanto, parecem revelar a especificidade cultural do universo desses estratos. Assim, compreender como se estrutura a visão de mundo dos integrantes desses segmentos é ponto importante para se alcançar o entendimento mais profundo de suas práticas de consumo (BARROS, 2007). Nesse contexto, a fim de trazer novos elementos para a discussão do tema, a próxima seção destacará alguns estudos constantes da literatura internacional que tiveram por objetivo compreender os consumidores pobres. 4.3 Estudos sobre consumidores pobres na literatura internacional Na literatura internacional, linhas de pesquisa foram criadas e inúmeros periódicos foram lançados com o objetivo de investigar as diversas questões relacionadas ao consumo. Conforme já comentado no capítulo 2, o campo tem se mostrado fértil para pesquisas diversas envolvendo áreas do conhecimento distintas, como economia, sociologia, psicologia e a antropologia, o que levou ao desenvolvimento de uma vasta literatura que ajuda as organizações com ou sem fins lucrativos, agências governamentais e profissionais a entender por que as pessoas consomem. Contudo, é possível verificar que essa literatura é voltada para um tipo de consumidor “padrão”, ou seja, aquele oriundo das classes médias ou altas de países considerados desenvolvidos. Essa literatura é falha ou lacunar quando aplicada às pessoas na base da pirâmide social (HILL, 2002a). Na visão desse autor, ao invés da abundância e de 87 altos gastos com produtos e serviços, esse consumidor considerado pobre é definido por carências materiais e, consequentemente, por poucos gastos. As comunidades desses consumidores têm como características principais: alto nível de desemprego, infraestrutura decadente, falta de moradia adequadas, altos índices de violência, uso e tráfico de drogas e ocorrência de doenças. Ao fazer uma retrospectiva dos estudos envolvendo consumidores pobres nos Estados Unidos, Hill (2002a) percebeu que a preocupação em se pesquisar esse tipo de consumidor teve uma ascensão na década de 1960, quando um considerável grupo de acadêmicos voltou sua atenção para o exame das características e hábitos de compra dos consumidores de baixa renda. Entre esses estudos, segundo Hill (2002a), podem ser citados os de Holloway e Cardozo (1969) e Richards (1966). Esses estudos se basearam em dados censitários para comparar o padrão de consumo dos pobres com o das classes mais abastadas. De acordo com Mattoso (2005b), um dos estudos pioneiros sobre o comportamento do consumidor de classes populares foi o publicado por David Caplovitz, em 1963. Segundo a pesquisadora, esse estudo mostrou que os consumidores pobres pagavam mais por bens e serviços do que o resto da sociedade porque não teriam a habilidade e os meios de transporte para procurar ofertas. De interesse nesse estudo é a constatação de que os consumidores pobres praticavam o consumo compensatório, que é uma forma de lidar com suas inabilidades de progredir na escala social por outros meios - ou seja, o gasto em marcas de prestígio e produtos caros como forma de compensar o baixo status (MATTOSO, 2005b). Durante as décadas seguintes, esse tipo de estudo deixou de ser foco dos pesquisadores de consumo. Segundo Hill (2002a), um ressurgimento do interesse acadêmico no estudo de consumidores pobres aconteceu na década de 1990, resultante da instabilidade econômica do final dos anos de 1980. Vale destacar que esse interesse também pode ser devido à importância que passou a ser destinada aos chamados “países emergentes”, principalmente do grupo dos BRIC, formado por Brasil, Rússia, Índia e China, que despontaram a partir daquela década como prováveis “potências” econômicas do século XXI. Boa parte dos consumidores desses países pode ser considerada pobre em relação ao padrão de consumo verificado nos países desenvolvidos. São desse período, portanto, os estudos que procuraram conhecer com mais detalhes os consumidores de baixa renda. Coleman (1983), tentando apresentar algumas ideias que sugerem que a classe social tem importância no comportamento de compra dos indivíduos, percebeu que as pessoas mais pobres tendem a morar mais perto uma das outras e a depender 88 muito do auxílio de parentes em situações do cotidiano. A mesma constatação foi feita por Sivadas, Mathew e Cury (1997) ao sugerirem que as camadas mais pobres da população tinham contatos pessoais mais restritos geograficamente. Holt (1997) concluiu que os consumidores pobres têm a tendência de ter um comportamento mais voltado para questões locais, ou seja, uma tendência de comprar produtos e serviços e ter amigos mais próximos de sua casa. Complementarmente, Holt (1998) no artigo intitulado Poststructuralist Lifestyle Analysis: conceptualizing the social patterning of consumption in postmodernity defende a idéia de que não é adequado descrever padrões de comportamento por meio de modelos ou esquemas de classificação, uma vez que os modelos de consumo são organizados culturalmente e constituídos pelo contexto social particular. Ademais, advoga a favor do estudo de estilo de vida em uma perspectiva cultural a partir de uma construção coletiva. Outro autor que se dedicou a estudos de consumidores pobres é Alan Andreasen. Em um de seus trabalhos, Andreasen (1993) criticou o que outros autores chamaram de “consumo compensatório”, uma vez que explicou as diferenças de consumo entre os pobres em função do tamanho das famílias, sempre mais numerosas e estágios no ciclo de vida, entre outras razões. Contudo, é o próprio Hill, em outros trabalhos (1990, 1993, 2002b), que parece ser um proeminente pesquisador dos consumidores pobres, seguindo uma linha etnográfica na condução de suas investigações. Hill e Stamey (1990) procuraram entender as estratégias de sobrevivência adotadas por um grupo de mendigos que viviam nas ruas de uma grande cidade dos Estados Unidos. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que os pesquisados desenvolviam uma forma típica de aquisição de bens, uma vez que sobreviviam por meio do reaproveitamento de produtos descartados por moradores com melhores condições financeiras. Esse estudo é interessante para esta tese, pois ratifica a idéia de que mesmo em um ambiente de extrema “carência material”, existe uma hierarquia de escolhas que orienta o consumo. Hill (1993) faz a defesa do uso da etnografia em estudos de marketing, a partir de um estudo conduzido com pessoas sem habitação nos Estados Unidos. Anos depois, Hill (2002b) conduziu um estudo com o objetivo de perfilar os pobres americanos de acordo com seus hábitos de consumo. Além disso, procurou discutir questões relacionadas a ética de algumas práticas de negócios dirigidos aos pobres. Um desses negócios seria a indústria denominada RTO, ou “rent to own”. A partir de entrevistas com consumidores pobres usuários desse tipo de negócio, ele concluiu que a escolha desse tipo de loja se dava em função da dificuldade de se conseguir crédito de outras formas e da rapidez da transação. 89 Porém, o consumidor corria o risco de perder o produto comprado caso deixasse de pagar alguma das prestações. Por fim, na tentativa de organizar as diversas linhas de pesquisas referentes a esse campo, Mattoso (2005b) faz uma divisão interessante dos estudos envolvendo características dos consumidores pobres encontrados na literatura internacional. Segundo a pesquisadora, a maioria das pesquisas sobre o tema assume duas perspectivas dominantes: a da cultura da pobreza e a da atribuição situacional ou estrutural. Enquanto a cultura da pobreza se fundamenta na antropologia ou na psicologia social e atribui a condição de pobre a questões individuais derivadas da cultura, tais como valores, visões de mundo e traços da personalidade, a perspectiva situacional vem da economia e atribui a pobreza a questões como baixos salários, má distribuição de renda e outras variáveis relativas principalmente à estrutura da sociedade. Evidentemente, ambas as perspectivas possuem adeptos e críticos, porém podem ser consideradas complementares quando se procura entender tema tão complexo. Como o objetivo da tese é buscar contribuições para o entendimento das experiências de consumo por parte de consumidores brasileiros, a próxima seção foi incorporada ao capítulo para apresentar estatísticas atinentes à mensuração da pobreza no Brasil e em Belo Horizonte. 4.4 Mensurando a pobreza no Brasil Ainda que caibam inúmeras críticas aos diversos esquemas de classificação da população em classes e estratos, apenas para efeito de contextualização do objeto de estudo, julgou-se necessário incluir algumas estatísticas referentes à distribuição de renda e indicadores de pobreza no Brasil. Uma análise cuidadosa dos dados periodicamente divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) leva à constatação de que a distribuição de renda brasileira se caracteriza como uma das mais desiguais do mundo. Uma pesquisa apresentada em 2006 por esse Instituto divulgou que enquanto o grupo de 1% mais rico da população tinha um rendimento mensal da ordem de R$ 11.494,00, o grupo dos 10% mais pobres, recebiam R$ 73,00 por mês; o dos 10% a 20% mais pobres, R$ 221,00; e o dos 30% a 40% mais pobres, R$ 353,00. Evitando-se discussões sobre as raízes da desigualdade de renda no Brasil, outro 90 dado digno de nota, tomando por base a linha de pobreza adotada pelo Banco Mundial, que estabelece o valor de US$ 2,00 diários, o Brasil possui cerca de 25% de sua população próxima ou abaixo dela. Para ilustrar essa constatação, a TAB. 1 e a TAB. 2 apresentam, respectivamente, as classes de renda mensal domiciliar referentes ao Brasil e à região da Grande Belo Horizonte. TABELA 1 – Classes de renda mensal domiciliar - Brasil CLASSE DE RENDIMENTO MENSAL FAMILIAR DOMICÍLIOS PARTICULARES VALOR DO RENDIMENTO MENSAL MÉDIO MENSAL FAMILIAR (R$) TOTAL % Até 1 salário mínimo 7.443.665 13,3 193,00 Mais de 1 a 2 salários mínimos 12.122.949 21,6 405,00 Mais de 2 a 3 salários mínimos 8.654.894 15,4 648,00 Mais de 3 a 5 salários mínimos 10.707.610 19,1 1.012,00 Mais de 5 a 10 salários mínimos 8.517.956 15,2 1.826,00 Mais de 10 a 20 salários mínimos 3.881.117 6,9 3.606,00 Mais de 20 salários mínimos 1.855.216 3,3 9.077,00 Sem rendimento 1.616.470 2,9 - Sem declaração 1.239.641 2,2 - Total 56.039.518 100% 1.262,00 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004-2005 Com relação à distribuição de renda da Grande Belo Horizonte em comparação com a do Brasil, a TAB. 2 revela um pequeno aumento dos percentuais de domicílios nas classes de rendimento entre 3 e 10 salários mínimos. Contudo, é possível afirmar que esses números não configuram uma considerável melhora na distribuição de renda. 91 TABELA 2 – Classes de renda mensal domiciliar - Grande Belo Horizonte CLASSE DE RENDIMENTO MENSAL FAMILIAR DOMICÍLIOS PARTICULARES VALOR DO RENDIMENTO MENSAL MÉDIO MENSAL FAMILIAR (R$) TOTAL % Até 1 salário mínimo 96.887 6,9 205,00 Mais de 1 a 2 salários mínimos 238.863 17,0 412,00 Mais de 2 a 3 salários mínimos 210.642 15,0 650,00 Mais de 3 a 5 salários mínimos 318.506 22,7 1.015,00 Mais de 5 a 10 salários mínimos 267.907 19,1 1805,00 Mais de 10 a 20 salários mínimos 132.187 9,4 3.608,00 Mais de 20 salários mínimos 65.505 4,7 9,476,00 Sem rendimento 20.794 1,5 - Sem declaração 53.342 3,8 - Total 1.404.633 100% 1.598,00 Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004-2005. Complementarmente às constatações anteriores, verifica-se que no Brasil, conforme mostra a TAB. 3, 67% da população é oriunda dos níveis socioeconômicos C e D, segundo a pesquisa realizada em 2000 pelo IBOPE utilizando o sistema denominado “Critério de classificação econômica do Brasil”, proposto pela Associação Nacional de Empresas de Pesquisas (ANEP). Ainda que pesem diversas críticas acerca da metodologia utilizada por essa instituição para se mensurar esses níveis, os dados da pesquisa são coerentes com os resultados de outros estudos. Analogamente, na Região Metropolitana de Belo Horizonte constata-se pela pesquisa que 70% dos consumidores são provenientes dos níveis C e D. TABELA 3 – Percentual e renda familiar por classes econômicas – Brasil e Grande BH CLASSE TOTAL BRASIL (%) RENDA MÉDIA FAMILIAR (R$) GRANDE BELO HORIZONTE (%) A1 1 7.793 1 A2 5 4.648 5 B1 9 2.804 8 B2 14 1.669 13 C 36 927 38 D 31 424 32 E 4 207 4 Fonte: ANEP – Associação Nacional de Empresas de Pesquisa (2000) 92 Mais especificamente em Belo Horizonte, a principal fonte de dados relativa à pobreza é o Atlas de Desenvolvimento Humano da região Metropolitana de Belo Horizonte, organizado pela Fundação João Pinheiro. A TAB. 4 exibe quatro indicadores de pobreza para a cidade de Belo Horizonte: O primeiro deles – que mede a proporção de população que vive abaixo da linha de pobreza – significa o percentual da população que tem rendimento suficiente para assegurar apenas a sobrevivência. Atualmente, é adotado o valor de meio salário mínimo como linha de pobreza. O segundo - denominado linha de indigência – indica a proporção de pessoas que tem rendimento abaixo de um quarto do valor do salário mínimo. O terceiro indicador - índice do hiato de pobreza – mede a proporção da renda das pessoas pobres que precisaria ser redistribuída para que todas ficassem com o mesmo grau de pobreza. Por fim, o último indicador reflete o percentual da renda dos 20% mais pobres no total de renda apropriada. TABELA 4 – Indicadores de pobreza para Belo Horizonte e regionais, 1991 e 2000 Proporção da população que vive abaixo da linha de pobreza (%) Proporção da população que vive abaixo da linha de indigência (%) Índice de hiato de pobreza Porcentagem da renda dos 20% mais pobres no total de renda apropriada REGIONAL 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 Barreiro 25,6 17,8 8,0 6,6 37,8 42,1 4,1 3,5 Centro Sul 12,8 9,1 5,0 3,1 43,0 41,4 1,1 1,1 Leste 16,3 12,9 5,5 4,5 39,0 41,0 2,6 2,3 Nordeste 19,3 14,1 5,6 4,9 35,8 40,6 3,0 2,5 Noroeste 14,1 12,1 4,5 4,3 37,3 40,1 3,1 2,5 Norte 26,6 18,9 8,4 5,8 38,1 39,0 3,6 3,3 Oeste 19,6 14,3 6,3 5,2 38,0 42,7 2,1 1,7 Pampulha 15,1 10,7 5,4 3,6 38,0 39,0 2,1 2,1 Venda Nova 25,8 17,8 7,8 6,1 37,3 39,0 4,0 3,3 Total 18,9 14,2 6,1 4,9 38,0 40,6 2,4 2,1 Fonte: Fundação João Pinheiro – Atlas do Desenvolvimento Humano da RMBH Embora o cenário da grande desigualdade de renda brasileira seja incontestável, percebe-se nos últimos anos maior acesso da população de baixa renda a bens de consumo. Isso se deve principalmente à abertura comercial do início dos anos de 1990, a estabilização da economia com o Plano Real a partir de 1994 e, ainda que timidamente, a maior atenção por 93 parte das empresas em investirem e adequarem seus produtos e serviços aos consumidores das camadas mais populares. Vale destacar que muito vem sendo noticiado na mídia que o consumo de eletrodoméstico e de bens duráveis vem aumentando significativamente nos últimos anos. A TAB. 5 comprova que o acesso a bens de consumo é bastante amplo, mesmo se levando em conta as camadas mais pobres da população. Na pesquisa constata-se que os domicílios considerados como integrantes da base da pirâmide (considerando-se aqueles que têm um rendimento mensal de até 5 salários mínimos) possuem boa parte dos bens de consumo de consumo, como televisão em cores, rádio e máquina de lavar. TABELA 5 - Posse de bens por classe de rendimentos no Brasil Situação do domicílio e bens duráveis existentes Domicílios particulares permanentes Classes de rendimento mensal domiciliar (em salários mínimos) Total Até 1 Mais de 1 a 2 Mais de 2 a 3 Mais de 3 a 5 Mais de 5 a 10 Mais de 10 a 20 Mais de 20 SR SD Fogão 91% 96% 98% 99% 100% 99% 100% 91% 98% 98% Rádio 73% 82% 87% 92% 95% 97% 98% 71% 92% 88% Televisão em cores 70% 84% 91% 96% 98% 99% 100% 73% 94% 90% Geladeira 59% 79% 89% 95% 98% 100% 100% 70% 92% 87% Freezer 4% 7% 10% 16% 27% 42% 57% 6% 30% 17% Máquina de lavar 6% 12% 20% 36% 59% 79% 89% 18% 60% 34% Fonte: IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004-2005 Assim, os dados parecem levar a um reforço da relevância de se pesquisar o consumo de eletrônicos de consumidores de baixa renda. Conforme a pesquisa etnográfica conduzida por Castilhos (2007) sobre o consumo de pobres urbanos em uma comunidade carente em Porto Alegre, entre todos as categorias de produtos analisadas os eletrônicos (televisão, DVD, som, computador e celular) “parecem ser os bens mais privilegiados no sentido de trazerem esses indivíduos para o mundo moderno e de os fazerem compartilhar de símbolos da sociedade de consumo mais ampla” (CASTILHOS, 2007, p. 118). À mesma constatação chegou Castilho (2006) ao pesquisar as memórias, as experiências urbanas e o consumo de famílias populares em um bairro pobre de Maceió. Esse pesquisador concluiu que aparelhos de som, televisão e DVD seriam as principais opções de lazer para esses consumidores. A partir da apresentação dos dados quantitativos acerca da mensuração da pobreza no Brasil, e mais especificamente no município de Belo Horizonte, levando-se em conta os 94 objetivos desta tese, julgou-se adequado apresentar uma descrição, ainda que breve, dos principais estudos sobre consumo relacionados aos consumidores pobres no Brasil. 4.5 Estudos sobre consumo relacionados aos consumidores pobres no Brasil A fim de se estabelecer um “retrato” atualizado dos estudos relacionados aos consumidores pobres no Brasil, julgou-se necessário realizar uma pesquisa utilizando os principais veículos de divulgação da produção acadêmica em administração no Brasil. São eles:  Anais do EnANPAD, entre 1997 e 2009;  Anais do EMA – Encontro de Marketing, em suas três edições (2004, 2006 e 2008);  Revista de Administração de Empresas (RAE), entre 1961 e 2009;  Revista RAE-Eletrônica, entre 2002 e 2009;  Revista de Administração Contemporânea (RAC), entre 1997 e 2009;  Revista RAC-Eletrônica, entre 2002 e 2009;  Cadernos Ebape, entre 2002 e 2009. Vale destacar que não é intenção desta seção desenvolver uma análise exaustiva dos trabalhos encontrados, mas sim uma descrição sucinta para melhor compreensão do “estado da arte” dos estudos relativos ao tema no Brasil. Certamente, uma das autoras mais proeminentes em estudos sobre o consumo de pobres no Brasil é Carla Barros, que, nos últimos anos, vem publicando, sistemática e consistentemente, diversos trabalhos sobre o tema em uma perspectiva antropológica. Além de outros artigos que discutem a possível utilização da etnografia em estudos da área de marketing, um de seus primeiros trabalhos publicados sobre o tema “consumo de pobres” foi Barros (2006a). Nesse estudo, a pesquisadora procura analisar algumas das razões que levaram à visível “invisibilidade” do consumo de baixa renda nas pesquisas de marketing acadêmicas e de mercado. Lançando mão de autores consagrados da antropologia do consumo como Marshall Sahlins e Grant McCracken, e autoras da sociologia que estudaram classes populares no Brasil, como Cynthia Sarti e Alba Zaluar, Barros revela que investigar a fundo os significados de consumo do universo das camadas de baixa renda no Brasil pode ser um 95 caminho revelador a ser percorrido por pesquisadores de marketing e empresas que queiram compreender e/ou comercializar com sucesso seus produtos e serviços para esses segmentos até então “invisíveis” da população. Em outro trabalho, Barros (2006b) já visa apresentar os resultados de uma pesquisa com um grupo de empregadas domésticas residentes na região metropolitana do Rio de Janeiro, procurando compreender como um grupo social usualmente definido em termos de sua “carência material” constrói significados de consumo com base em uma visão de mundo predominantemente hierárquica. Esse estudo, que se baseia em uma perspectiva etnográfica de pesquisa, teve entre seus principais achados que o consumo, compreendido aqui segundo uma abordagem antropológica, aparece como um processo dinâmico que atravessa os dois universos culturais, com influências mútuas, assimilações e renegociação de significados. Posteriormente, Barros e Rocha (2007) complementam as conclusões e achados interessantes da pesquisa empreendida com empregadas domésticas, reforçando que o consumo aparece sempre como um modo de pertencimento à sociedade, além de um grande sistema classificatório. Outros dois estudos mais recentes da pesquisadora também têm foco nas camadas populares. Nestes trabalhos, Barros (2008a e 2008b) procurou investigar alguns usos da Internet por um grupo das camadas populares urbanas, enfocando certos aspectos da sociabilidade e da construção de relacionamentos, sejam eles pessoais ou comercias. Por meio de uma perspectiva baseada na antropologia do consumo e de “inspiração etnográfica”, a pesquisadora chegou a resultados que mostram uma tendência à valorização do que é conhecido e familiar, das relações já estabelecidas e da “concretude” da experiência comercial do mundo “real” em relação às incertezas que rondariam o ambiente da rede mundial de computadores. Além disso, a Internet apareceu no estudo como uma forma de adicionar, de repetir e de reforçar o que já foi dito por outros meios - que incluem o contato face a face – para o grupo de amigos que constituem a rede de convivência mais familiar e cotidiana da pessoa. Também chegou-se à conclusão que as navegações mais habituais acontecem nos sites de relacionamento, com destaque para o Orkut e MSN, ao lado do universo dos games. Nas lan houses, surgem “máquinas coletivas”, funcionando em um mundo colaborativo, já que é comum que vários usuários fiquem em torno de um mesmo computador, trocando ideias sobre a navegação e, eventualmente, alternando o controle do mouse. Ademais, ficou claro nos estudos que a forte presença dos grupos populares nas lan houses pode revelar mais um 96 aspecto da busca por inclusão e pertencimento por meio do consumo no universo cultural desses segmentos sociais, já revelada em outros trabalhos. Um estudo sobre o consumo de pobres urbanos em um bairro popular de Porto Alegre no Rio Grande do Sul, foi conduzido por Castilhos (2007). Utilizando-se da etnografia como abordagem metodológica, seu trabalho tinha por objetivo compreender e interpretar o papel do consumo na construção e manutenção de identidades individuais e coletivas em seis famílias de baixa renda. Castilhos (2007) descreveu que os informantes atribuíam maior importância à casa, aos eletrônicos, aos eletrodomésticos, aos móveis e à alimentação. Entre os achados do trabalho, dois se tornam importantes. O primeiro está relacionado à questão da moradia, que é o elemento central entre as posses das famílias pesquisadas. Na visão do autor, uma casa evolui materialmente, o que faz o proprietário evoluir na mesma medida, a partir da posse de vários aparelhos, como geladeira, fogão, cama, colchão e televisão. Em seguida, móveis como cadeiras e mesa, sofás e armários. Depois, a ordem de aquisição não fica tão clara, mas contempla eletrodomésticos como tanquinho e forno de microondas, e aparelhos de som e DVD. Outra constatação de interesse para esta tese é a constatação de Castilhos (2007) no sentido de que entre todas as categorias de produtos que se impõem no dia a dia dos pobres urbanos os eletrônicos parecem ser os bens mais privilegiados, visto que eles possuem o “poder” de trazer os indivíduos para o mundo moderno e de os fazerem compartilhar de símbolos em uma sociedade de consumo ampla. Na mesma linha dos anteriores, o trabalho de Castilho (2006) procurou desvendar o consumo como prática simbólica entre famílias que vivem em extrema vulnerabilidade social no bairro popular de Jacintinho em Maceió, capital das Alagoas, nordeste do Brasil. O autor, que pesquisou integrantes de dez famílias por meio de uma abordagem etnográfica, buscou entender como o consumo individual e coletivo de bens como eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos torna-se um dos elementos estruturantes das memórias e das novas identidades que se formam particularmente em contextos de urbanização acelerada. O autor concluiu no estudo que os pobres nordestinos constroem suas identidades em um espaço tênue entre a tentativa de superação da pobreza e das dificuldades e os perigos crescentes ligados à migração para o Sudeste. O acesso a novas estratégias de consumo, embora precário, explica parte da sedução que morar na capital possui para a população de interior. O interessante nesse estudo, na visão do autor, é a percepção da memória dos entrevistados ao discorrer extensamente sobre os aparelhos de TV, rádio e DVD que tiveram ou têm, lembrando-se de suas marcas e de quando e como foram comprados (CASTILHO, 2006). 97 O estudo de Assad e Arruda (2006) teve por objetivo conhecer e avaliar a dinâmica de compra do consumidor de baixa renda na região do Jardim Grimaldi, da Grande São Paulo. Por meio de entrevistas individuais com quatorze consumidores e de dois grupos focais com moradores dessa região, o trabalho tentou entender as preferências do consumidor pobre com respeito aos pontos de venda de varejo, especificamente de supermercados, no processo de decisão de compra e mostrar como este consumidor visualiza o estabelecimento ideal. A partir da análise de quatro estabelecimentos varejistas, a pesquisa revelou que o consumidor de baixa renda apresenta duas características marcantes quanto à frequência com que realiza suas compras, resultado da inconstância de renda: compras mensais e visitas diárias ao supermercado. Além disso, as autoras verificaram que o lay-out e a ambientação, combinados com variedade e volume das mercadorias expostas, transmitem uma imagem de fartura, bem- estar e todo tipo de sensações positivas (felicidade, liberdade, tranquilidade). Nesse sentido, são vetores poderosos para a formação de valores e símbolos para os integrantes desse segmento. Mattoso (2005a) e Mattoso e Rocha (2005) produziram trabalhos que tiveram como foco consumidores pobres. Mattoso (2005a) apresentou uma discussão sobre o conceito de classes sociais na sociologia e na antropologia com o intuito de incorporá-lo ao marketing. A partir da contribuição de diversos autores sobre a temática de classes sociais, como Karl Marx, Max Weber e Pierre Bourdieu, Mattoso (2005a), ao identificar vertentes que tentam relacionar classes sociais aos estudos de consumo, chega à conclusão que o tema tem ressurgido por meio de novos autores, que vem estudando o processo de consumo, e não os objetos de consumo. Nesta perspectiva, é considerado que um mesmo objeto de consumo pode ser usado por diferentes classes, mas como recurso para diferentes estilos de vida e com propósitos diversos. A diferença, portanto, não estaria mais nos produtos ou nas marcas, mas sim na motivação para consumi-los. O estudo de Mattoso e Rocha (2005) busca compreender o significado associado às estratégias para a solução de problemas financeiros de indivíduos adultos de baixo poder aquisitivo moradores da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Com uma abordagem interpretativa de investigação, as pesquisadoras constataram que o crédito tem o significado de distinção. Ou seja, o crédito pode ser demarcador da posição social do indivíduo, separando os pobres dos “pobres-pobres”. Isso parece querer dizer que o consumidor de baixa renda para ter uma conta bancária significa dispor de certo excedente de recursos, o que cria uma distinção em relação aos demais. As autoras também verificaram que o crédito pode 98 significar dádiva. Ou seja, existe um costume entre os integrantes das classes mais populares de ceder o próprio crédito para um parente ou amigo. Ou seja, trata-se de “emprestar o nome” para que outras pessoas possam obter um empréstimo. Na visão das autoras, isso é uma forma de hierarquização e uma obrigação, uma vez que a pessoa não pode se furtar a prestar esse “favor” quando solicitado por um parente ou amigo. O objetivo do estudo de Parente, Barki e Kato (2005) era investigar com maior profundidade os motivadores da seleção de lojas e o formato de varejo de alimentos por parte dos consumidores de baixa renda em uma região da periferia de São Paulo. Por meio de pesquisas de observação e técnicas qualitativas de investigação (entrevistas em profundidade e grupos focais) de consumidores de três lojas, identificou-se que os consumidores de baixa renda têm identidade própria, marcada por: gosto pela fartura (também ressaltado nos trabalhos de Barros (2007) e Castilhos (2007)), valorização do contato face a face, baixa autoestima e permanente busca pela dignidade. Na visão dos autores, o preço é fundamental, porém a variedade de produtos, o atendimento, o ambiente de loja e a confiança são decisivos na escolha de um estabelecimento. Ademais, o momento da compra leva esses consumidores ao paradoxo entre poder e frustração, visto que conseguir suprir a casa com necessidades básicas leva o consumidor sentir-se poderoso. Porém, sua limitação financeira enseja a frustração de não poder abastecer a casa com todos os produtos desejados. Ponchio, Aranha e Todd (2006) também utilizaram uma amostra de 450 indivíduos de baixa renda, moradores de distritos pobres do município de São Paulo para propor um instrumento de mensuração do materialismo e explorar e caracterizar as manifestações desse construto para esse segmento da população. Os autores verificaram que o materialismo não está associado à renda, o que pode levar à inferência de que há um grande número de pessoas que, embora desejem consumir bens e serviços nãoessenciais, como diversões e esportes, cerimônias e festas, não o fazem por limitação de renda. Em outro trabalho, Ponchio e Aranha (2007) publicaram mais resultados sobre a pesquisa, tentando verificar a hipótese de que indivíduos mais materialistas estão mais propensos a contratar crédito para consumo. Os resultados indicaram que as variáveis idade, gênero, renda e materialismo influenciam a probabilidade de um consumidor de baixa renda vir a contratar um carnê de crediário. Complementarmente, os achados confirmam a tese de que não apenas fatores econômicos adversos levam as pessoas a se endividarem e que o estudo da demanda por crédito para consumo deve passar por variáveis de natureza sociodemográficas e psicológicas sobre hábitos de compra e de consumo. 99 O estudo de Sobral et al (2006) tinha por objetivos estudar os atributos mais importantes da decisão de compra do consumidor de baixa renda e mostrar como as empresas estavam se organizando para atender este segmento da população. Para isso, os autores empreenderam uma pesquisa empírica, de cunho quantitativo, realizada em lojas de varejo com consumidores de baixa renda da cidade de São Paulo, analisando-se o caso do consumo de um eletrodoméstico: tanquinho (máquina de lavar menos sofisticada). Com a obtenção de 575 questionários válidos, os autores, por meio de análises estatísticas, chegaram às seguintes constatações: comprovou-se a existência de cinco fatores relacionados a um produto popular, ou seja, qualidade, acesso, requisitos do cliente, marca e valores; e identificou-se que as variáveis que mais contribuíram para a decisão de compra do consumidor foram qualidade- marca e preço. Assim, a pesquisa demonstrou que o preço é importante, mas não é o único fator que explica o fato de um produto ser popular. Dessa forma, puderam concluir que o atendimento aos mercados populares não se consubstancia somente com a adoção de estratégias genéricas de baixo custo, mas sim com a de estratégias de adequação ou fit strategy. Seguindo uma linha diferente dos trabalhos descritos anteriormente e mais focados não na perspectiva dos consumidores, mas na dos gestores no entendimento do segmento de baixa renda no Brasil, pode ser citado o trabalho de Spers e Wright (2006), no qual os autores apresentam uma análise do desempenho das empresas focadas no mercado popular, em termos de crescimento, resultados operacionais e lucratividade, em comparação com as empresas focadas no mercado de alta renda. O trabalho também tinha por objetivo iniciar uma discussão no tocante às estratégias mais adequadas para o atendimento ao mercado de baixa renda. De relevo nessa pesquisa é a constatação de que as empresas focadas no mercado popular obtiveram melhores resultados do que as empresas voltadas para as classes A e B. Também é digno de nota o fato de os autores identificarem um perfil estratégico bem definido para essas empresas: atendimento a seu público com produtos mais simples e padronizados, preços mais baixos, poucos serviços agregados e apoio dos canais de comunicação para a identificação da marca. Também na linha de trabalhos relacionados ao ambiente varejista de baixa renda podem ser citados os de Veloso e Hildebrand (2006) e Veloso, Hildebrand e Daré (2008). Neste último, o foco dos autores foi o segmento de crianças de até 14 anos oriundas de famílias de baixa renda. A pesquisa, de cunho qualitativo, tinha por objetivo analisar o comportamento desse segmento de mercado em um ambiente varejista, com o apoio teórico 100 das principais obras que tratam do desenvolvimento psicológico e do processo de socialização da criança. Com a utilização de técnicas de observação e de entrevistas com os responsáveis pelas crianças, os autores conseguiram identificar cinco categorias para análise dos diversos estágios de desenvolvimento infantil: pedido de produtos; ambiente do supermercado; relação da criança com os produtos; ensino e aprendizado; e supermercado como lugar lúdico. Por fim, concluíram que a motivação primordial dos adultos de baixa renda é utilitária. Contrariamente, para as crianças percebeu-se o fator emocional na motivação do consumo, buscando por meio dele satisfazer suas necessidades hedônicas. A partir da constatação de que a mídia, em geral, trata o segmento de baixa renda como homogêneo, Silva e Parente (2007) empreenderam um estudo quantitativo-descritivo do orçamento de uma amostra de 338 famílias de baixa renda de São Paulo oriundas da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para revelar uma heterogeneidade neste segmento, valendo-se, para tanto, dos microdados da referida base para aglomerar as famílias em grupos conforme a composição do orçamento familiar. Por meio da técnica estatística multivariada conhecida como análise de cluster, Silva e Parente (2007) detectaram cinco agrupamentos, que eles denominaram “sofredores do aluguel”, “jeitinho brasileiro”, “valorização do ter”, “batalhadores pela sobrevivência” e “investidores”. Dessa forma, puderam concluir que existe heterogeneidade marcante no segmento de baixa renda. Ou seja, mesmo que algumas características sociodemográficas e psicográficas entre os agrupamentos sejam tênues, é irrefutável afirmar que o padrão de alocação de despesas destes cinco segmentos é diferente e que a influência da restrição orçamentária, que é marcante nas famílias de baixa renda, pode gerar destoantes reflexos no comportamento do consumidor. Também relacionado às estratégias no varejo alimentício para consumidores de baixa renda pode ser citado o estudo de Monteiro, Silva e Ladeira (2008). Nesse trabalho, os autores empreenderam uma pesquisa conclusiva, que se firmou mediante um survey na cidade de Salvador, capital do estado da Bahia, totalizando 400 entrevistas pessoais com potenciais clientes de empresas varejistas de alimentos. O objetivo era identificar a percepção do consumidor em relação às estratégias executadas por cinco empresas varejistas de alimentos da cidade. Por meio de mapas perceptuais, os autores concluíram que estratégias de diferenciação como variedade de produtos, comodidade e atendimento podem ser utilizadas pelas empresas para atrair o consumidor de menor aquisitivo, e não somente o foco nas estratégias de preço baixo, como considera o senso comum. 101 Grossi, Motta e Hor-Meyll (2008) também utilizaram o segmento de consumidores pobres para conduzir um estudo exploratório capaz de explicar como eles administram suas restrições orçamentárias, identificando fatores geradores de risco percebido associados à compra de alimentos e desvendando estratégias de mitigação desses fatores empregadas por esses consumidores. A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas. Na primeira, foram realizadas entrevistas informais com pessoas de baixa renda, seguidas de observações em duas lojas de duas redes de supermercados de forte apelo popular. Na segunda, foram conduzidas quinze entrevistas em profundidade. Os informantes eram residentes na região metropolitana do Rio de Janeiro, tinham renda familiar de até 3 salários mínimos e eram responsáveis pelas compras de alimentos. Do discurso dos informantes, os autores detectaram cinco fatores que levam à percepção de risco: expectativa dos membros da família, restrições de tempo, discrepâncias na qualidade percebida dos produtos, dificuldades ocasionadas pela indivisibilidade da embalagem e importância do preço. Como estratégias para a mitigação dos fatores geradores de risco, os autores verificaram que os consumidores de baixa renda utilizam as seguintes estratégias: formulação do conjunto de consideração, fidelidade à marca ou diversificação de marcas, aumento da frequência de compra, uso dos sentidos na escolha do produto e informação pré-compra. Outro estudo ligado a comportamento de consumo no varejo de baixa renda é o de Parente, Barki e Kato (2007), cujo objetivo era descrever as características de lojas e estratégias utilizadas por algumas empresas varejistas de alimentos que conseguem atender adequadamente o consumidor de baixa renda e ter um bom desempenho. Como nas pesquisas anteriores, escolheram-se três empresas varejistas de porte distinto localizadas em regiões pobres de São Paulo e desenvolveram-se entrevistas com diretores dos estabelecimentos, análise de documentação em publicações específicas, observação direta e análise de artefatos como folhetos dos varejistas. Uma das principais conclusões do estudo é de que há uma diferença nas estratégias implementadas segundo o porte da empresa. Apesar de o senso comum apontar que a estratégia dominante para a população de baixa renda é de preços baixos, outras propostas de valor, baseadas na oferta de serviços, atendimento diferenciado e ambiente de loja agradável, também são bem recebidas por uma população com orçamento limitado. No artigo intitulado “Consumidores de Baixa Renda: uma revisão dos achados de estudos feitos no Brasil”, Chauvel e Mattos (2008), a partir de alguns estudos que pesquisaram consumidores pobres no Brasil, estruturaram uma análise em torno dos seguintes 102 temas: classe social, gestão do orçamento, experiência da compra e papel do preço e da marca nas decisões de compra. Concluíram que duas racionalidades parecem coexistir na formação de decisões de consumo: uma “dura”, material, originada da escassez de recursos, que impõe uma racionalização estrita dos gastos; outra de ordem simbólica, baseada em elementos culturais e dimensões relacionais e hierárquicas da sociedade brasileira, assim como em instituições de forte significado como a família e a religião. O objetivo do trabalho de Rocha e Silva (2008) foi realizar uma revisão dos estudos realizados no Brasil sobre o consumo dos pobres. A partir da percepção da existência de poucas pesquisas empíricas, os autores tentaram agrupar os estudos por temática, incluindo gastos familiares, uso de crédito, escolha de marcas, escolha de lojas e significado dos bens. Também discutem possíveis estratégias de marketing, o que chamam de “base de pirâmide” e citam exemplos de empresas brasileiras bem-sucedidas focadas nesse segmento. Rocha e Silva (2008) terminam o trabalho propondo uma agenda de pesquisas para o Brasil. Como oportunidades no estudo de consumo dos pobres, apontam estudos sobre os significados do consumo entre os pobres: desenvolvimento de escalas para medir aspectos do comportamento dos pobres; investigação de incidentes críticos; estudos longitudinais de consumo de famílias de baixa renda; e observação do comportamento destes consumidores no ponto de venda. Por fim, visualizam as seguintes oportunidades no estudo de práticas de marketing na base da pirâmide: estudos de casos de sucesso de empresas que atendem consumidores de baixa renda; levantamento de experiências malsucedidas de empresas no mercado brasileiro; levantamento de benchmarkings para guiar a ação empresarial; e estudos sobre desempenho de marketing e financeiro de empresas na base da pirâmide comparativamente com aquelas que atuam no topo. O artigo de Lima, Gosling e Matos (2008) tinha por objetivo desenvolver e testar um modelo de fatores que se relacionam à compra por impulso de donas de casa de baixa renda da cidade de Belo Horizonte. Numa pesquisa empírica que envolveu 502 donas de casa pertencentes às classes C e D da Capital mineira, os autores buscaram explicar o comportamento de compra dessas consumidoras em supermercados a partir de seis dimensões: valores, significado do produto, ambiente, promoção no ponto de venda, impulsividade e compra por impulso. Por meio da técnica de análise fatorial exploratória, os autores conseguiram identificar um novo subconjunto de indicadores mais adequados para compor o modelo final. A relação foi significativamente positiva entre os construtos do 103 modelo, com exceção dos pares ambiente e compra por impulso, promoção no ponto de venda e compra por impulso. Também podem ser citadas dissertações que tiveram consumidores de baixa renda como público de interesse: a de Issa Júnior (2004), que procurou explicar como se dá o processo de decisão de compra de preservativos com consumidores classificados como de baixa renda; a de Silva (2008), que tinha por objetivo identificar se o marketing de relacionamento poderia ser utilizado como ferramenta de gestão em segmentos de baixa renda; e a de Giovinazzo (2003), que tentou desvendar as estratégias de organizações que atendem as camadas mais pobres da população, por meio de uma análise financeira de crescimento e rentabilidade das empresas. Diante dessa pesquisa sobre os estudos já empreendidos no Brasil sobre consumidores pobres, é possível constatar algumas questões interessantes. Em primeiro lugar, pode-se verificar que a grande maioria dos trabalhos é ligada ao comportamento de compra no ambiente varejista. O grande motivador dos trabalhos desse tipo é procurar entender como se dá o comportamento de compra dos indivíduos pobres no ponto de venda. Ainda que utilizando-se de técnicas qualitativas de pesquisa, é facilmente perceptível que os pesquisadores partem de uma postura positivista para entendimento do consumidor, não raramente valendo-se de uma tentativa “questionável” de adaptação de modelos já consagrados na literatura de comportamento do consumidor. Atrelado a essa constatação, outro ponto a assinalar parece ser a pouca preocupação por parte dos pesquisadores em estudar os consumidores pobres na sua vida do dia a dia, tentando captar toda a riqueza dos detalhes, diferenças, incoerências, ambiguidades para construir uma interpretação que possa contribuir para a ampliação do entendimento de como realmente os pobres vivenciam seu cotidiano e a forma como eles a percebem. Ambas as constatações parecem ter importância para os objetivos desta tese visto que a proposta é compreender a experiência de consumo, e não simplesmente o comportamento de compra tanto em uma abordagem mais abrangente como, principalmente, focada na realidade dos sujeitos pesquisados, livre de “amarras” de modelos preconcebidos e buscando compreender o significado simbólico-cultural. Não é escusado destacar que o estudo conduzido na tese não parte de um “modelo” escolhido a priori, o qual poderia servir para a confirmação ou refutação de hipóteses preestabelecidas. Opostamente a essa abordagem, o estudo buscou apoiar- se em metodologias que priorizem a “liberdade” de se construir um entendimento do consumidor baseado na percepção do público pesquisado e na interação entre pesquisador e pesquisado. Essa 104 perspectiva parece mostrar-se essencial em estudos que investigam questões tão amplas e “abertas” quanto aquelas relacionadas à aspectos culturais e simbólicos do consumo. Em segundo lugar, também é interessante assinalar que boa parte dos trabalhos tinha como público-alvo de suas pesquisas consumidores das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, com poucas exceções. Isso também constitui-se em uma lacuna na literatura de consumidores pobres, pois é essencial entender que existem diferenças marcantes na “construção” e “vivência” da pobreza em diversas situações e lugares. Conforme enfatizado por Alvito (2001), somente a multiplicação de estudos etnográficos que levem em conta a inter-relação de vários fatores, incluindo os supralocais e microlocais, poderá aprofundar o nosso conhecimento de áreas pobres no Brasil. No mesmo sentido, na visão de Zaluar (1985), conforme já discutido anteriormente, não se pode deixar de considerar que a pobreza tem significados diversos em diferentes partes do mundo, visto que a população pobre tem origens étnicas muito distintas. Ademais, essas diferenças podem ser fruto de processos culturais distintos e ter, portanto, significados também distintos para os que vivem na pobreza. Por fim, vale destacar que ainda é pequena a utilização de referenciais oriundos da sociologia e antropologia para o entendimento do significado dos bens nos estudos aqui descritos, bem como de técnicas de pesquisa decorrentes desses campos do conhecimento. Essa pouca utilização, provavelmente, deve-se à ainda pequena inserção de disciplinas e linhas de pesquisa nos diversos programas de pós-graduação já consolidados no Brasil que contemplem o tema “cultura e consumo”. A título de complementação, também é digno de nota constatar que poucos estudiosos são oriundos das classes de baixa renda, o que torna mais desafiador a penetração no universo simbólico do consumo dos pobres. A partir de todas as questões destacadas neste capítulo atinentes ao consumo dos consumidores pobres, o próximo capítulo introduzirá as discussões acerca do posicionamento epistemológico e metodológico que guiará a condução da pesquisa empírica da tese. 105 5. POSICIONAMENTO EPISTEMOLÓGICO E PROPOSTA METODOLÓGICA Este capítulo tem por objetivo tecer discussões acerca do posicionamento epistemológico que julgou-se adequado ao problema de pesquisa enunciado para o estudo. A partir dessa discussão, buscou-se apresentar a proposta metodológica que norteou a elaboração da tese, baseada em três “movimentos”: a fenomenologia, a etnografia e a grounded theory, que, conjugados, comporão o arcabouço metodológico da tese. O capítulo inicia-se com breves comentários atinentes ao debate paradigmático observado nas ciências sociais nas últimas décadas. Em seguida, serão apresentadas questões gerais relativas ao interpretativismo nas ciências sociais e, resumidamente, no campo de pesquisa do consumidor. A partir dessa discussão, será apresentado o arcabouço metodológico da tese. Nesse sentido, será necessária a inclusão de uma explanação acerca dos três “movimentos”. Em primeiro lugar, a fenomenologia, enquanto um movimento que caminha desde uma vertente “inicial” descritiva – preocupada com a experiência consciente – até uma vertente interpretativa – que começou a apontar para a necessidade de “localizar” essa experiência. Em segundo lugar, a “evolução” do método etnográfico, que leva ao extremo a preocupação de contextualizar as experiências realmente vividas, conjugada com a discussão de que o trabalho etnográfico precisa ir além da descrição. Em terceiro lugar, destacando as “transformações” que vem sofrendo desde sua versão original (GLASER e STRAUSS, 1967), a grounded theory é apresentada como um “estilo” de pesquisa que pode levar a etnografia desde a “descrição do concreto” até um nível maior de abstração necessário para o desenvolvimento teórico. Por fim, será iniciado um debate, que provavelmente ficará “em aberto”, acerca das possibilidades de integração desses três movimentos – fenomenológico, etnográfico e grounded theory - na desafiante tarefa de construir o entendimento das atividades envolvendo o consumo. 5.1 O debate dos paradigmas nas ciências sociais Preliminarmente, é importante tecer alguns comentários acerca do que vem a ser paradigma. A origem da utilização do conceito de paradigmas vem de Kuhn (1970), para quem a ciência não evolui por fatos, revelando-se a pensadores inteligentes, mas, sim, desenvolve-se por meio de tensões políticas, que são resolvidas na comunidade científica em um processo cíclico entre ciência normal e ciência revolucionária, com uma dando passagem 106 à outra, e vice-versa (BURRELL, 1999). Dessa forma, na visão de Burrell (1999), ciência não é uma trilha linear de hipóteses falsificáveis, mas uma sucessão de períodos de descontinuidades da “ciência normal” e de mudança revolucionária, uma vez que formas estabelecidas de ver o mundo são substituídas durante toda a história. Embora seja difícil denotar precisamente o que a vem ser paradigma, visto que Kuhn (1970) o apresenta em pelo menos vinte formas em sua obra, algumas tentativas de delimitar o termo são possíveis. Segundo Domingues (2004), o termo vem do grego paradeigma e significa “modelo” ou “exemplo”. Dessa forma, pode ser empregado com o significado de algo que, por sua exemplaridade, deve ser imitado ou seguido, bem como com a acepção de provar e demonstrar algo com a ajuda de outra coisa que serve de guia ou modelo. Complementarmente, Domingues (2004) ressalta que o paradigma aparecerá do lado da teoria e consistirá tanto no segmento do real que aloja o princípio das coisas como no ente tido como a realidade por excelência que dá a chave do mundo dos homens. Assim, vale afirmar que o paradigma, mais do que a teoria, é uma espécie de guarda-chuva capaz de abrigar várias teorias. Para Morgan (2005), pode-se chegar a três amplos sentidos do termo: (a) visão completa da realidade, ou modo de ver; (b) organização social da ciência em termos de escolas de pensamento ligadas a tipos particulares de realizações científicas e (c) utilização de tipos específicos de ferramentas e textos para o processo de solução de quebra-cabeças científicos. Nas ciências sociais, a discussão sobre paradigmas se volta para duas posições epistemológicas opostas (MOREIRA, 2004; SANTOS, 2002). Uma dessas posições, a positivista, norteia-se pelo ideal regulativo da física social. Ou seja, parte do pressuposto de que as ciências naturais são uma aplicação ou concretização de um modelo conhecido universalmente válido. Portanto, é sempre possível estudar os fenômenos sociais como fenômenos naturais, por maiores que sejam as diferenças entre eles. A segunda posição, denominada “fenomenológica” ou “interpretacionista”, defende a ideia de que a ação humana é radicalmente subjetiva. Isto é, o comportamento humano, não pode ser descrito e muito menos explicado com base em suas características exteriores e objetiváveis (SANTOS, 2002). Para esse autor, nessa vertente seria necessário utilizar métodos de investigação e critérios epistemológicos diferentes dos tradicionais nas ciências naturais, ou seja, métodos qualitativos ao invés dos quantitativos, a fim de obter-se um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo. 107 Burrell (1999) percebe que a noção de paradigmas vem recebendo muita atenção nos últimos anos na análise organizacional. Pode-se afirmar que a discussão dos paradigmas no campo organizacional tomou corpo com o lançamento da obra Sociological paradigms and organizational analysis, de Burrell e Morgan, publicada em 1979. Nesse trabalho, os autores sugeriram que o campo da teoria organizacional seria formado por uma série de posições epistemológicas e ontológicas de base, as quais formariam algumas posições metateóricas a priori no desenvolvimento científico em análise organizacional (CALDAS, 2005). Burrell e Morgan (1979) sobrepõem dois eixos: um representaria os pressupostos metateóricos sobre a natureza da ciência (ciência “objetivista” versus ciência “subjetivista”); o outro apresentaria as premissas metateóricas sobre a natureza da sociedade (sociologia da “regulação” versus sociologia da “mudança radical”). Os quatro paradigmas originados da sobreposição dos dois eixos (funcionalista, interpretativista, humanista radical e estruturalista radical) fornecem um mapa para negociar a área de estudo, oferecendo uma forma de identificar as similaridades e diferenças básicas entre o trabalho dos vários teóricos e, em particular, o modelo de referência que eles adotam. Como qualquer mapa, ele fornece uma ferramenta para estabelecer onde você está, onde você tem estado e onde é possível estar no futuro (BURRELL e MORGAN, 1979). Segundo Burrell e Morgan (1979), no objetivismo o homem é um agente reativo que responde ao ambiente. Dessa forma, pode-se dizer que tais afirmações implicam fundamentar o conhecimento sobre a realidade que enfatiza a importância de se estudar a natureza das relações entre os elementos que compõem a estrutura social, assumindo que existe uma lei que rege tais relações. Já o enfoque subjetivista considera a realidade socialmente construída pelas interações pessoais. O homem é o construtor de uma realidade, que só existe porque foi criada pela interação social. O Quadro 10 apresenta discussões acerca dos dois enfoques. Vale ressaltar que as posições extremas de cada uma das quatro categorias são refletidas nas duas maiores tradições intelectuais que têm dominado as ciências sociais nos últimos duzentos anos. De um lado, é possível perceber o que é usualmente descrito como “positivismo sociológico”. Em essência, ele reflete a tentativa de aplicar modelos e métodos derivados das ciências naturais ao estudo das relações sociais. No outro extremo, tem-se o “idealismo alemão”. Em oposição ao positivismo sociológico, ele enfatiza a natureza subjetiva das relações sociais, negando a utilidade e relevância dos modelos e métodos das ciências sociais para os estudos desse campo. 108 QUADRO 10 – Debate subjetivismo versus objetivismo nas ciências sociais TIPO DE DEBATE SUBJETIVISMO OBJETIVISMO Ontologia Nominalista Realismo O mundo social externo para a cognição individual é feito de nada mais do que nomes, conceitos, rótulos que são usados para a realidade. O mundo social externo para a cognição individual é um mundo tangível e com estruturas relativamente imutáveis. Natureza humana Voluntarismo Determinismo Considera o homem completamente autônomo. As atividades humanas são completamente determinadas pela situação ao ambiente no qual ele é localizado. Epistemologia Anti-positivismo Positivismo O mundo social é essencialmente relativista e pode ser entendido do ponto de vista dos indivíduos que estão diretamente envolvidos nas atividades que são estudadas. Busca explicar e predizer o que acontece no mundo social por meio de relacionamentos causais e regularidades entre seus elementos constituintes. Metodologia Teoria Ideográfica Teoria Nomotética Baseia-se no ponto de vista de que só se pode entender o mundo social pela obtenção, em primeira mão do conhecimento sob investigação. Ressalta a importância de se deixar que o próprio subjetivo da pessoa revele sua natureza e características durante o processo de investigação. Enfatiza a importância de basear a pesquisa em protocolos e técnicas sistemáticas. Está preocupada com a construção de testes científicos e o uso de técnicas quantitativas para análise dos dados. FONTE: BURRELL e MORGAN (1979) No entanto, o esforço agora consiste em superar a dicotomia objetivismo/subjetivismo. Uma tentativa nesse sentido foi o trabalho de Morgan e Smircich (1980), em que se sugerem fronteiras mais permeáveis e a possibilidade de muitos matizes entre as inclinações subjetivistas e objetivistas, num continuum entre um ponto e outro. As transições seriam mais sutis e não se excluiria a inspiração de uma pelas outras (VERGARA e CALDAS, 2005). Esse continuum pode ser visualizado na FIG. 3. Contudo, passados trinta anos do início do debate incitado por Burrel e Morgan (1979), pode-se verificar atualmente uma tendência nos estudos organizacionais de forma geral de considerar outras novas perspectivas e diferentes conversações. Nesse sentido, é possível verificar uma crescente divergência de perspectivas que caracterizam o campo organizacional. Para Cabral (1998), é comum encontrar textos em administração diferentes visões de mundo, gerando uma variedade de alternativas e impondo diferentes interpretações. 109 Subjetivismo Objetivismo Pressupostos Ontológicos Centrais Realidade como uma projeção da imaginação humana Realidade como uma construção social Realidade como um campo de discurso simbólico Realidade como um campo contextual de informação Realidade como um processo concreto Realidade como uma situação concreta Pressupostos sobre a Natureza Humana Homem como puro espírito, consciência, ser Homem como um construtor social, o criador de símbolos Homem como um ator, o usuário de símbolos Homem como um processador de informações Homem como um adaptador Homem como um respondente Estâncias Epistemoló- gicas Básicas Obter insight fenomenológi- co, revelação Entender como a realidade social é criada Entender padrões do discurso simbólico Mapear o contexto Estudar os sistemas, os processos, a mudança Construir uma ciência positivista Métodos de Pesquisa Exploração de pura subjetividade Hermenêutica Análise Simbólica Análise Contextual da Gestalten Análise histórica Experimentos de laboratório, surveys FIGURA 3 – Pressupostos básicos do debate subjetivismo versus objetivismo Fonte: Adaptado de MORGAN e SMIRCICH, 1980, p. 492 O reconhecimento da diversidade da teoria e da prática nas organizações tem contribuído, desde então, de maneira mais efetiva para estimular a discussão dentro e entre as diferentes abordagens, sejam elas normais (“dominantes”) ou contranormais (“exóticas”). Fragmentação, diversidade e pluralismo parecem representar o panorama atual, em que novas formas organizacionais têm desafiado as certezas do passado e o conforto consensual, garantido pela ortodoxia funcionalista/positivista, maior diversidade, maior desacordo, mas também mais pontos de interseção e maior razão para diálogo e disputa (CLEGG e HARDY, 1999; BURRELL, 1999; LEWIS e GRIMES, 2005). Ademais, é digno de nota o fato de alguns autores preocupar-se em propor perspectivas multiparadigmáticas, indicando várias posições metateóricas relacionadas a múltiplos paradigmas (GIOIA e PITRE, 1990; LEWIS e GRIMES, 2005). Estes autores se referem ao termo multiparadigmáticas para indicar uma visão mais holística de determinado fenômeno, com o objetivo de revelar disparidades e complementaridades. 110 Dessa forma, “novas” questões teóricas e metodológicas têm (re)surgido, obrigando os pesquisadores do campo organizacional a (re)estabelecerem suas conversações com disciplinas das ciências humanas e sociais, como a psicologia, a sociologia e a antropologia. Vale destacar que os estudos relacionados à pesquisa do consumidor também se encontram neste estágio de discussão e desenvolvimento. Assim, é nesse contexto de abertura e de pluralidade, no qual abordagens de caráter interpretativo e subjetivista (“qualitativas”, por natureza) ganham relevância e espaço, que se insere a proposta metodológica desta tese. 5.2 O interpretativismo O interpretativismo teve sua origem no final do século XIX e início do século XX, nas reações de alguns historiadores e sociólogos alemães (Dilthey, Rickert, Windleand, Simmel, Weber) à então dominante filosofia do positivismo. No centro da discussão desses pensadores estava a declaração de que as ciências humanas apresentam diferenças marcantes das ciências naturais no tocante à natureza e à finalidade. Os defensores do interpretativismo defendiam a posição de que o objetivo das ciências humanas era compreender a ação humana (SCHWANDT, 2006). Nesse sentido, a partir de um ponto de vista interpretativo, o que diferencia a ação humana do movimento dos objetos físicos seria o fato de a primeira ser particularmente significativa. Dessa forma, para que determinada ação social fosse entendida, era necessário que o pesquisador compreendesse o significado dessa ação. Isto quer dizer que uma ação humana é significativa quando possui certo conteúdo intencional, que indica seu tipo de ação e/ou cujo significado de uma ação pode ser compreendido apenas como o sistema de significados ao qual esta pertence (SCHWANDT, 2006). Schwandt (2006) defende três formas de definição que considera apropriadas para a noção do que vem a ser o interpretativismo. A primeira forma aparece nos trabalhos mais antigos de Wilhelm Dilthey. Esse autor afirmava que para compreender o significado da ação humana é preciso que se entenda a intenção subjetiva do ator. Isto é, seria um ato de restabelecimento psicológico entender o que se passa em sua cabeça para entender do que ele é capaz em termos de motivos, crenças, desejos, pensamentos. Uma segunda forma seria encontrada nos trabalhos dos sociólogos fenomenológicos, entre eles Cicourel e Garfinkel, que, influenciados pelo trabalho de Alfred Schutz, tinham por objetivo entender a constituição 111 do mundo intersubjetivo e o modo como chegamos a considerar significativa nossa ação e a dos outros. Já a terceira forma está representada na análise das abordagens da linguagem inspiradas nas ideias de Wittgenstein, especialmente no trabalho de Peter Winch. Esse autor adota a noção de que existem muitos jogos executados com a linguagem, estendendo essa ideia aos jogos de linguagem de forma como estes se constituem em diferentes culturas. Cada um desses jogos possui regras ou critérios próprios, que o revestem de significado a seus participantes. Complementar às definições apresentadas por Schwandt (2006), cabe salientar que neste trabalho também é possível levar em consideração a posição de Berger e Luckmann (1985), segundo a qual “a vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 35). A fim de definir as crenças fundamentais do interpretativismo, Hirschman (1986) propõe seis características que considera essenciais para o seu entendimento: a) os seres humanos constituem múltiplas realidades, as quais somente podem ser compreendidas holisticamente. b) O pesquisador e o fenômeno sob estudo são mutuamente interativos. O pesquisador não pode se distanciar do fenômeno nem o fenômeno pode ser entendido sem o envolvimento pessoal do pesquisador. c) O pesquisador deve tentar construir uma “descrição densa” do fenômeno, descrevendo sua complexidade e significados internamente construídos. d) Uma vez que o fenômeno é engajado em um processo de criação contínua, não tem sentido designar uma série de aspectos como causas e outros como efeitos. e) O pesquisador influencia inevitavelmente a escolha do fenômeno, do método, dos dados e das conclusões. f) A pesquisa é uma construção social resultante da interação subjetiva entre o pesquisador e o fenômeno. Ou seja, o conhecimento é construído. No campo da administração, o interpretativismo questiona o objetivismo arraigado e limitante da doutrina funcionalista. Para os interpretativistas, as organizações são processos que surgem das ações intencionais das pessoas, individualmente ou em harmonia com as outras. Isto é, as pessoas interagem umas com as outras com o objetivo de interpretar e dar 112 sentido ao seu mundo. Nesse sentido, a realidade social é, portanto, uma rede de representações complexas e subjetivas (VERGARA e CALDAS, 2005). Uma questão importante salientada no trabalho de Burrell e Morgan (1979) é que o interpretativismo abriga um amplo espectro de pensamentos filosóficos, que incluem o solipsismo, a fenomenologia e a hermenêutica. Conforme Vergara e Caldas (2005), todas essas correntes têm em comum a preocupação em entender a experiência subjetiva dos indivíduos, tendo suas teorias construídas do ponto de vista daquele que age. Dessa forma, a realidade social é um processo emergente, ou seja, uma extensão da consciência humana e da experiência subjetiva. 5.3 O interpretativismo na pesquisa do consumidor Uma vez que “todo ato de consumo é visto como impregnado de significado simbólico, sendo o lócus em que se reafirmam, entre outras questões, identidade, pertencimento, hierarquia, status e poder” (ROCHA e ROCHA, 2007, p. 72), um importante papel dos pesquisadores interpretativistas prende-se à parte que eles levam ao estudar o fenômeno de uma perspectiva dos consumidores envolvidos com o fenômeno ao invés do consumidor como parte de um mundo físico (SZMIGIN e FOXALL, 2000). Ademais, esses mesmos pesquisadores devem considerar que as respostas para o entendimento dos fenômenos, além de contraditórias e confusas, não raramente estão em locais diversos, não necessariamente conectadas, mas desejando ser interpretadas (SAUERBRONN, 2008). Goulding (1999) salienta algumas noções do interpretativismo na pesquisa do consumidor: a) reconhecimento do consumidor em relação a seu próprio mundo construído culturalmente; b) reconhecimento da importância da linguagem, símbolos e gestos em relação à experiência vivida; c) entendimento de que tempo e espaço têm diferentes significados e não são conceitos universais rígidos, mas fluidos e negociáveis; d) humildade ao reconhecer a noção de “verdade” e um reconhecimento de que a observação é parte de um processo de interpretação; e e) a abordagem interpretativista pode oferecer ricos e valiosos insights e contribuir para um debate do consumo contemporâneo. Quanto aos métodos empregados nas pesquisas interpretativistas, pode-se dizer que eles são propensos a críticas, na medida em que defendem variações de uma ontologia relativista de realidades múltiplas, social e culturalmente construídas (SHANKAR, ELLIOT e 113 GOULDING, 2001). Ainda assim, os esforços de vanguarda de pesquisadores adeptos do interpretativismo têm permitido o desenvolvimento de uma variedade inovativa de técnicas de pesquisa do consumidor: filosofias e métodos existencial-fenomenológico (THOMPSON, LOCANDER e POLLIO, 1994), pós-modernismo (FIRAT e VENKATESH, 1995) e pós- estruturalismo (HOLT, 1997), entre outros. Vale ressaltar que a adoção de uma abordagem interpretativa no campo da pesquisa do consumidor é relativamente recente. Um dos primeiros trabalhos a propor a utilização de uma visão interpretativa para os estudos de consumo foi o artigo de Levy (1981), publicado no Journal of Marketing, no qual o autor advoga o uso do enfoque interpretativo nos estudos de consumo, afirmando que os produtos são usados de forma simbólica. Também na década de 1980, Holbrook e Hirschman (1982) já percebiam a necessidade de se questionar a hegemonia da perspectiva do processo de informações embasados na ideia de que esse modelo pode negligenciar aspectos importantes do fenômeno do consumo. Outros importantes estudos são datados desse período. Um deles é o de Rook (1985) que observou a existência de rituais urbanos de consumo que desempenhavam papel central no processo de consumo. Outro importante estudo é o de McCracken (1986), que sugere que a leitura do comportamento do consumidor deve ser feita por meio da busca de significados que são criados e transferidos. A partir daí, vários estudos de proeminentes autores sob essa perspectiva vêm sendo desenvolvidos, buscando trazer contribuições no sentido de propiciar opções às metodologias de natureza positivistas que representam o mainstream no campo da pesquisa do consumidor (ROCHA e ROCHA, 2007), entre eles Belk (1988), Hudson e Ozzane (1988), Belk, Wallendorf e Sherry (1989), Wallendorf e Belk (1989), Firat e Venkatesh (1995), Richins (1997), Campbell (2001), Goulding (2002) e Elliot e Jankel-Elliot (2003). Segundo Rocha e Rocha (2007), no Brasil os esforços para o desenvolvimento de estudos de consumo em uma abordagem interpretativa são pouco percebidos. A produção mais regular encontra-se nos estudos desenvolvidos no Instituto COPPEAD de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trabalhos dessa natureza vêm sendo desenvolvidos mais recentemente em outras escolas de negócios. Já é possível citar alguns estudos locais desenvolvidos com objetivo não só de discutir novas posturas epistemológicas e metodológicas para a compreensão do consumidor como também de aplicar “no campo” os pressupostos interpretativistas de pesquisa ou, ainda, de lançar luz no tocante à necessidade de geração do conhecimento de marketing em uma perspectiva nacional (ROSSI e HOR- 114 MEYLL, 2001; CERCHIARO, SAUERBRONN e AYROSA, 2004; CASOTTI, 2004; FARIA, 2004; MELLO, 2006; ALMEIDA e ROCHA, 2006; CASTILHOS et all , 2006; SAUERBRONN e AYROSA, 2006). Assim, ainda que possa reconhecer que a adoção de uma perspectiva interpretativa nos estudos relacionados à pesquisa do consumidor seja relativamente recente no Brasil (ROCHA e ROCHA, 2007), a escolha de sua utilização na tese se justifica por alguns motivos. Primeiramente, em função da característica básica do paradigma interpretativo, que é tentar entender e explicar o mundo social do ponto de vista dos atores diretamente envolvidos nos processo sociais. Em segundo lugar, porque suas teorias são construídas do ponto de vista daquele que age; ou seja, é um processo emergente, uma extensão da consciência humana e da experiência subjetiva (VERGARA e CALDAS, 2005). Por fim, essa abordagem considera que o mundo social é criado pelos indivíduos e baseia-se no pressuposto de que o mundo é coeso, ordenado e integrado. 5.4 Proposta epistemológica e metodológica da tese A partir da discussão acerca do debate no tocante aos paradigmas das ciências sociais ainda presente nos estudos em administração e mais especificamente na pesquisa do consumidor aliada à apresentação dos principais pressupostos do interpretativismo, já é possível trazer à luz o que pode ser chamado de “arcabouço” epistemológico e metodológico que norteou a construção desta tese. Cumpre ressaltar, porém, dois pontos importantes. O primeiro está relacionado à constatação de que, embora nos últimos vinte anos se perceba a emergência de um corpo razoável de pesquisas interpretativas do consumo, pode-se afirmar, principalmente no Brasil, que as abordagens relacionadas ao interpretativismo e todos os métodos e técnicas de pesquisa a ele relacionados ainda continuam na “vanguarda” da pesquisa do consumidor. O segundo ponto remete ao fato de que a intenção do pesquisador ao propor esse “arcabouço” é fruto de uma certa ousadia provocada por uma sensação de que é preciso buscar novas “trilhas” de pesquisa no campo do consumo. Além disso, é preciso propor “diferentes” questões teóricas e metodológicas, o que levará quase obrigatoriamente os pesquisadores desse campo a estabelecerem profícuas conversações com disciplinas das ciências humanas e sociais, como a filosofia, a sociologia, a antropologia entre outras. 115 A FIG. 4 busca sintetizar com elementos gráficos a proposta epistemológica e metodológica baseada em três “movimentos” (a fenomenologia, a etnografia e a grounded theory) que propiciou a elaboração da tese. As próximas seções discutirão detalhadamente cada um dos três movimentos. FIGURA 4 – O arcabouço epistemológico metodológico proposto para a tese Fonte: Elaborado pelo autor 5.4.1 A fenomenologia De início, torna-se importante entender que, etimologicamente, a palavra fenomenologia tem a sua origem em duas outras palavras de raiz grega: phainomenon (aquilo que se mostra a partir de si mesmo – an appearance) e logos (ciência ou estudo). Assim, por fenômeno, no seu sentido mais genérico, entende-se tudo aquilo o que aparece, que se manifesta ou se revela por si mesmo na consciência de alguém (COPE, 2005). Dado qualquer objeto no mundo ao nosso redor, objeto esse que nós percebemos por meio dos sentidos, fenômeno é a percepção desse objeto que se torna visível à nossa consciência (MOREIRA, 2002). INTERPRETATIVISMO – como paradigma “guarda-chuva” Fenomenologia – como uma “escola” do paradigma interpretativista baseada na busca do entendimento das experiências Etnografia – como um método de coleta de dados na e da realidade do consumidor. Descrição (foco nos relatos dos informantes) Grounded Theory – como metodologia para organizar e interpretar os dados. Conceituação (foco na abstração – teorização) 116 Nesse sentido, para aquele que é considerado o “pai” do “movimento”, Edmund Husserl, a fenomenologia é o estudo dos fenômenos puros ou absolutos, isto é, uma “fenomenologia pura”. Entendendo a palavra em um sentido etimologicamente mais profundo que significa “razão”, a qual naturalmente se exprime por meio de uma descrição reflexa, significa dizer, descrever, que a fenomenologia implica uma reflexão racional e pretende descrever fielmente e em uma atitude penetrante os “fenômenos” , as “coisas”, consideradas como meros aparecimentos na consciência. Tal descrição será feita “olhando” penetrantemente os “fenômenos”, ou seja, pela “intuição”, graças à qual os atingiremos com plena evidência, como são em si mesmos. Nada está em contato mais íntimo conosco do que a nossa própria consciência. Para Husserl, em um sentido geral, fenômeno estende-se a tudo aquilo de que podemos ter consciência, de qualquer modo que seja. Dessa forma, constituem também fenômenos para Husserl não só os objetos de consciência, mas também os próprios atos enquanto conscientes, sejam eles intelectivos, volitivos ou afetivos (FRAGATA, 1959). Em resumo, além da aparência das “coisas físicas” na consciência, também a aparência de algo intuído, de algo julgado, de algo imaginado, de algo fantasiado, de algo simbolizado, etc é também um fenômeno (MOREIRA, 2004). Portanto, em termos literais, fenomenologia significa o estudo ou a descrição de um fenômeno. Do ponto de vista epistemológico e de interesse para esta tese, mais do que uma “escola” ou uma “tradição” filosófica rígida e uniforme, o termo fenomenologia parece abraçar uma grande diversidade de “correntes de pensamento” que talvez pudessem ser mais adequadamente reunidas em uma espécie de “movimento fenomenológico” (COPE, 2005; GOULDING, 1999; COSTEA, 2000), que começou a se delinear a partir de Edmund Husserl (1859-1938) e que foi posteriormente ampliado e desenvolvido por Alfred Schutz (1899- 1959), bem como por Martin Heidegger (1889-1976) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Thiry-Cherques (2006) chega a ressaltar, a partir de inúmeras adaptações e, até, de um certo abuso por parte dos pesquisadores, a “emergência” da fenomenologia transcendental, da fenomenologia categorial, da fenomenologia descritiva e da fenomenologia estrutural, entre outras. Na visão desse autor, a fenomenologia permite essas adaptações e diversidades muito em função de que é antes uma atitude do que uma filosofia, o seu método é, antes, uma forma de pensar do que um sistema rígido de dispositivos e indicações. Numa visão mais sociológica da fenomenologia, Wolf (1980) acredita que seu papel mais importante é pôr em questão as noções recebidas, a cultura, suspendê-la, e com isso descobrir como as coisas em si nos aparecem na realidade. No mesmo sentido, a noção 117 fenomenológica de colocar em suspensão é de grande significação para a sociologia, uma vez que não se aceitam as noções recebidas e levantam-se questões a propósito delas. Ou seja, quando falham as metodologias tradicionais, habituais e costumeiras é que começa-se a refletir sobre elas. Na verdade, a colocar em suspenso as noções (WOLF, 1980). Vale destacar, para o escopo desta tese, que no âmbito desse movimento, pelo menos duas abordagens principais podem ser destacadas: uma descritiva (ou transcendental), que tem como referência os trabalhos de Edmund Husserl e outra interpretativa (hermenêutica ou existencial), inspirada, principalmente, na obra de Martin Heidegger. A abordagem descritiva, que tem suas bases fundamentadas na obra de Husserl, considera que as experiências, da maneira como são percebidas pela consciência humana, têm “valor científico” e não só podem como devem ser tomadas como objeto da pesquisa científica. Para Husserl, a informação subjetiva é fundamental para aqueles interessados em compreender a ação humana, porque essa ação é influenciada por aquilo que as pessoas percebem como real (COHEN e OMERY, 1994). Assim, nessa perspectiva, fenomenologia significa o estudo ou a descrição de um fenômeno tal como ele é dado à consciência das pessoas (MOREIRA, 2002). Por fenômeno, no seu sentido mais genérico, entende-se tudo aquilo o que se manifesta na consciência de alguém. Nessa corrente, com o objetivo de contribuir para a ordenação da reflexão que é feita sobre os fenômenos, são prescritos dois procedimentos básicos. O primeiro deles é a redução fenomenológica, que para Husserl seria a eliminação de toda ação prévia sobre a natureza do objeto, “colocando entre parênteses” ou suspensão toda e qualquer “crença” prévia acerca do mundo (FRAGATA, 1959). Essa “atitude científica” implica a necessidade de o cientista “deixar de lado” todas as pressuposições – científicas, filosóficas, culturais - para só então poder descrever e clarificar a estrutura essencial do mundo real tal como se torna presente e se mostra à consciência das pessoas (COPE, 2005; MOREIRA, 2004; LOPEZ e WILLIS, 2004; CARVALHO e VERGARA, 2002; BAUER, 2002; GOULDING, 1999). Para atingir esse estágio, seria essencial ao pesquisador tanto buscar ativamente quanto manter ao longo de todo o processo de pesquisa, o que Husserl chamou de “subjetividade transcendental” que significa que ideias, concepções e conhecimento pessoal prévio devem ser mantidos em “suspensão” pelo pesquisador sempre e quando ele estiver em campo, ouvindo as experiências vividas pelos pesquisados e/ou refletindo sobre elas (LOPEZ e WILLIS, 2004), atingida quando o pesquisador está em contato maior com os fenômenos mais puros, uma vez que 118 somente é tomado em consideração aquilo que é dado na pura imanência e, portanto, em plena evidenciação (FRAGATA, 1959). O segundo procedimento é a redução eidética, que, segundo Husserl, acontece quando o objeto é depurado de todo elemento empírico e psicológico, de forma tal que o que reste seja tão somente a sua essência, os atributos sem os quais o fenômeno já não pode ser identificado (FRAGATA, 1959). O pressuposto é de que há determinadas características em qualquer experiência vivida que são comuns a todas as pessoas que a viveram. Tais características, conceituadas como “essências universais” ou “estruturas eidéticas”, são tidas como os “fiéis representantes” da “verdadeira natureza” do fenômeno em estudo (LOPEZ e WILLIS, 2004). Atrelados a esses procedimentos, Husserl também propunha o que chamava de “ausência de pressupostos”. Ou seja, é importante começar primeiramente eliminando todas as convicções até agora admitidas e, portanto, todas as nossas ciências. Outra é a evidência apodítica, que é a “ausência absoluta de dúvida” (FRAGATA, 1959). Já a abordagem interpretativa se consolida principalmente a partir das críticas que tece acerca da fenomenologia descritiva (LOPEZ e WILLIS, 2004). Ao contrário da fenomenologia descritiva de Husserl, a fenomenologia interpretativa enfatiza que a investigação da existência humana não pode se dar colocando o mundo entre parênteses. Ao invés de procurar identificar categorias descritivas puras do “real”, o fenomenologista interpretativo busca apreender o mundo nas narrativas dos “pesquisados”, ou seja, direciona os seus esforços para descrever os significados construídos pelos indivíduos e para compreender como esses significados influenciam as escolhas que esses “seres” fazem (LOPEZ e WILLIS, 2004). A preocupação principal está, portanto, em estudar os indivíduos no ambiente em que eles vivem/convivem - ou seja, em descrever o homem como um ser no mundo -, em “dar conta” da experiência humana como ela emerge em determinado(s) contexto(s), como ela é vivida (THOMPSON, LOCANDER e POLLIO, 1989). O que autores desta corrente defendem é que a existência humana é definida pelo contexto no qual ela é “experimentada”. Além disso, os seres humanos estão ligados a “teias” do mundo real e as experiências não podem ser separadas ou “desconectadas” do contexto social, natural, cultural, material, político e histórico em que vivem. Dessa forma, no que diz respeito ao estudo das experiências humanas, a fenomenologia interpretativa se propõe a ir além da “mera” descrição de conceitos centrais e essências para trazer à tona significados imbricados nas práticas comuns da vida cotidiana, os quais nem sempre são evidentes para os praticantes, mas que poderiam ser apreendidos a 119 partir das narrativas produzidas por eles próprios (LOPEZ e WILLIS, 2004). O foco da investigação de caráter fenomenológico-interpretativo está, portanto, muito mais naquilo que as pessoas “realmente” experimentam do que naquilo que elas conscientemente sabem (ou refletem) sobre as suas experiências (SOLOMON, 1987). Nesse sentido, a atenção do pesquisador deve estar não na busca por uma suposta “subjetividade humana pura”, mas sim por aquilo que as narrativas das pessoas têm a dizer sobre o que elas experimentam diariamente no “seu mundo”. A partir dessas discussões, é possível afirmar que a fenomenologia interpretativa pode ser vista como uma continuação do “movimento fenomenológico”, com base principalmente, em uma (re)interpretação do ideal original da redução fenomenológica e eidética. Portanto, sua contribuição fundamental está na preocupação de (re)inserir o intérprete e o interpretado no mundo “real”, experimentado, vivido, e não se restringe apenas aos objetos e atores sociais isolados. Ela passa a considerar a totalidade das relações humanas, procurando compreender como a realidade se constrói em termos das experiências concretas dos indivíduos imbricados em determinado contexto/situação/fenômeno (CARVALHO e VERGARA, 2002; LOPEZ e WILLIS, 2004). A tarefa do pesquisador, portanto, é capturar esse processo de interpretação para compreender os significados do comportamento das pessoas a partir do ponto de vista delas, uma vez que aquilo que as pessoas dizem e fazem é produto da maneira como as elas interpretam o mundo em que vivem. (COPE, 2005). Assim, a abordagem interpretativa parece ser mais “útil e relevante” quando se pretende examinar as características contextuais da experiência humana. No que tange aos procedimentos metodológicos utilizados em uma investigação com base fenomenológica, Moreira (2004) afirma que há bastante semelhança na estratégia de coleta de dados e na apresentação dos resultados. Ele coloca como principais técnicas as entrevistas em profundidade, os relatos autobibliográficos e as observações participantes. A grande discussão que faz sentido para esta tese seria: De que forma a fenomenologia, principalmente na vertente interpretativa, poderia contribuir para um arcabouço de pesquisa na qual o objetivo é compreender as experiências de consumo? Ora, parece que a fenomenologia pode ser útil, conforme já dito anteriormente, na tarefa de examinar e compreender como as experiências são “vivenciadas” pelas pessoas a partir de uma construção que é histórica e socialmente construída. Assim, uma forma de contextualizar e descrever a partir do “acesso” a todo este conhecimento tácito e cultural parece ter alguma relação com as possibilidades oferecidas por estudos de base etnográfica. O argumento a ser 120 defendido é que a inclusão e a devida análise do contexto (simbólico e natural) de produção dos discursos por meio de uma abordagem etnográfica pode contribuir para uma compreensão “mais abrangente” do “comportamento humano” (HANSEN, 2006) em geral e desse “ser humano” enquanto “consumidor” de maneira específica. Nesta perspectiva, os grupos sociais precisariam ser sempre estudados a partir de uma visão “de perto e de dentro” com o pesquisador procurando entender a “lógica cultural” que orienta a vida dessas pessoas em seu próprio contexto natural (BARROS, 2007). Assim, surge a etnografia como mais um elemento do arcabouço proposto. 5.4.2 A etnografia A palavra ethnos é originária do termo grego que denota raça, povo ou grupo cultural. Combinando-se o prefixo etno com a palavra gráfico para formar o termo etnográfico, chega- se à subdisciplina conhecida como antropologia descritiva, que, em um sentido mais amplo, parece se dedicar a descrever os modos de vida da humanidade (VIDICH e LYMAN, 2006). Pode-se afirmar que o método tem uma longa história. Da forma como praticada pelos antropólogos, a etnografia envolve uma série de procedimentos interpretativos e metodológicos que evoluíram principalmente no século XX. Entretanto, a etnografia é ao menos tão velha quanto o trabalho de Heródoto e dos antigos anciãos gregos que registravam com detalhes o que viam em outras culturas (SANDAY, 1979). Para Atkinson e Hammersley (1994), a conceituação do termo tem sido objeto de controvérsia. Segundo esses autores, para alguns refere-se a um paradigma filosófico; para outros, um método que alguns pesquisadores utilizam quando acham necessário. Ademais, não é possível igualar a etnografia em somente uma tradição disciplinar. Mais importante ainda é a constatação de que a pesquisa etnográfica contemporânea é, muitas vezes, caracterizada pela fragmentação e diversidade, em função da proliferação de métodos, perspectivas e justificações teóricas, o que leva o pesquisador à constatação de que no presente chegar a um “consenso” do que constituem as características ou preceitos fundamentais da etnografia não é tarefa fácil (ATKINSON et al., 2001; SANTOS, 2008; HAMMERSLEY, 1992; DENZIN e LINCOLN, 2006). Contudo, em um “esforço” para tentar sintetizar alguns pontos em comum nas várias “vertentes”, “escolas” ou “tradições” que parecem compor o “universo” da etnografia, 121 Atkinson e Hammersley (1994) chegaram à proposição de que ela se refere a uma forma de pesquisa social com as seguintes características:  forte ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social particular, mais do que estabelecer ou testar hipóteses;  tendência de trabalhar com dados desestruturados, isto é, dados que não foram codificados em termos de uma série de categorias analíticas;  investigação detalhada de um pequeno número de casos;  análise de dados envolvendo interpretação explícita de significados e funções das ações humanas. A partir deste contexto, seria relevante lançar mão das palavras daquele que é considerado o grande sistematizador da etnografia como método de pesquisa, o pesquisador Bronislaw Malinowski, que, com a publicação em 1922 do clássico Argonautas do Pacífico Ocidental, marcou a definição do que seria o método etnográfico. Assim, pode-se afirmar que são nas palavras desse autor que entende-se os objetivos da etnografia: [...] apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua visão do seu mundo. É nossa tarefa estudar o homem e devemos, portanto, estudar tudo aquilo que mais intimamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce sobre ele. Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm suas próprias ambições, seguem a seus próprios impulsos, desejam diferentes formas de felicidade. Em cada cultura encontramos instituições diferentes, nas quais o homem busca seu próprio interesse vital; costumes através dos quais ele satisfaz suas aspirações; diferentes códigos de lei e moralidade que premiam suas virtudes ou punem seus defeitos. Estudar as instituições, costumes e códigos, ou estudar o comportamento e mentalidade do homem, sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive, e sem o intuito de compreender o que é, para ele, a essência de sua felicidade, é, em minha opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem” (MALINOWSKI, 1978, p. 33-34). Em seguida a esse movimento inaugural, um segundo espaço de aplicação do método começou a se firmar com o trabalho de pesquisadores da Escola de Chicago, os quais focaram suas pesquisas no contexto urbano da sociedade industrial, conduzindo suas investigações em grandes metrópoles. Os etnógrafos dessa Escola geraram um corpo de pesquisas embasadas em estudos locais em uma visão até então diferenciada do comportamento humano, contribuindo para o desenvolvimento de métodos originais de investigação, como a utilização de documentos pessoais, o trabalho de campo sistemático e a exploração de diversas fontes documentais (DEEGAN, 2001; BARROS, 2007). Um importante estudo é o de William Foot Whyte intitulado “Street Corner Society”. Nesse estudo, Whyte (2005), conduzindo um 122 estudo com italian americans, na década de 1950, introduz a ideia de observação participante, método que iria se tornar um dos mais utilizados e quase sinônimo de trabalho etnográfico. A partir daí, tornou-se possível utilizar a etnografia na investigação de questões pontuais originadas em sociedades complexas e investigar significados de fenômenos como consumo, moda e shopping e as diversas formas pelas quais os grupos estruturavam seus sistemas de classificação, definiam parâmetros de seu universo simbólico e construíam suas identidades enquanto tais (ROCHA e ROCHA, 2007). Outra referência importante, principalmente relacionada às questões metodológicas do trabalho etnográfico, é a de Geertz (1989), que apresenta a etnografia como uma “descrição densa”, na qual o pesquisador faz um completo relato das culturas como “teias de significados” que devem ser apreendidas. Segundo ele, duas tarefas são essenciais ao trabalho do etnógrafo: descobrir as estruturas conceituais que informam os atos dos sujeitos pesquisados, ou seja, o “dito” no discurso social; e construir um sistema de análise composto pelo que é genérico a essas estruturas, o que pertence a elas e o que se destacam contra outros determinantes do comportamento humano. Conforme Barros (2007), a etnografia permitiria, por meio das técnicas de observação participante e da entrevista em profundidade, chegar a uma compreensão do objeto de estudo, atrelada à revelação da subjetividade e singularidade inerentes aos fenômenos sociais. Complementarmente, Rocha, Barros e Pereira (2005) enfatizam, do ponto de vista metodológico, que a etnografia possui características básicas, como: utilização de entrevistas em profundidade, observação participante, análise de discurso de informantes, investigação em detalhe, perspectiva microscópica e interpretação de significados e práticas sociais. Esses autores destacam ainda como traço marcante da etnografia “a investigação por dentro da realidade de um grupo, sendo o conhecimento científico gerado a partir do ponto de vista do outro” (ROCHA, BARROS e PEREIRA, 2005, p. 123). Vieira e Pereira (2005) também acrescentam a análise de imagens como as principais técnicas utilizadas. Vale destacar que compreender a inteligibilidade de um fenômeno é, ao mesmo tempo, religá-lo à totalidade social na qual ele se inscreve e investigar as suas múltiplas dimensões. Nesse sentido, a proposta da etnografia engloba essas dimensões, que, na visão da ciência clássica, são entendidas como estanques e separadas, uma vez que podem ser compreendidas na dialética da sua diferença e complementaridade (ANDION e SERVA, 2006). Esses autores apresentam algumas dessas dimensões consideradas como particularidades da postura etnográfica na construção do conhecimento científico: a dialética sujeito/objeto, a dialética 123 indivíduo/sociedade, ou particular/geral, e a dialética subjetividade/objetividade. Com relação à primeira, na etnografia a reflexividade é realizada pelas idas e voltas constantes aos universos do pesquisador e do pesquisado, não havendo, portanto, unilateralidade nessa relação, sendo essa constantemente negociada. No que tange à dialética indivíduo/sociedade ou particular/geral, a postura etnográfica parte do caso particular, mas busca efetuar uma leitura eminentemente social dos fenômenos. A etnografia propõe considerar a particularidade dos fenômenos e contextualizá-los, interpretando-os como expressão de outros aspectos ou situações sociais, tais como questões de gênero, políticas e classes sociais. Por fim, concernente à dialética subjetividade/objetividade, a pesquisa etnográfica permite retratar tanto as dimensões objetivas quanto as subjetivas de um fenômeno. Ou seja, a interação entre pesquisador e pesquisado não é neutra, todavia se confronta sempre com realidades objetivas que são pensadas, expressas e compreendidas pelas pessoas em sua cultura (ANDION e SERVA, 2006). No campo da administração, dentre as principais características do método etnográfico, Vergara (2005) salienta as seguintes: identificação dos valores do grupo e do relacionamento entre seus integrantes; descoberta do simbolismo presente no comportamento dos consumidores; possibilidade de identificar os valores de culturas e subculturas do consumo; e determinação de uma visão mais ampla da satisfação dos consumidores, uma vez que permite o contato com os consumidores no ambiente onde os produtos são experimentados. A autora pondera também alguns pontos importantes no tocante à utilização da etnografia na administração: demanda tempo considerável para a realização da pesquisa; exige um esforço intenso por parte do pesquisador acerca da tentativa de minimizar os riscos da omissão ou da revelação de dados distorcidos; e exige do pesquisador sensibilidade para captar o observável e grande capacidade para ouvir, observar e reconhecer os momentos mais adequados para perguntar quanto à tomada de decisão do que lhe parece mais ético: apresentar-se ou não como pesquisador. No mesmo sentido, Andion e Serva (2006) também alertam para o fato de que, para se desenvolver estudos etnográficos na área de administração com a profundidade e qualidade necessárias para o avanço da teoria organizacional, faz-se necessário ir além da visão da etnografia meramente como um método de trabalho de campo. Pelo contrário, é essencial desenvolver a perspectiva da etnografia como uma estratégia global de pesquisa, o que leva a concebê-la como uma postura epistemológica do pesquisador. 124 Jaime Júnior (2001), ao relatar exemplos empíricos da utilização da etnografia em situações concretas da literatura de difusão do universo empresarial, percebeu a presença de dimensões culturais e simbólicas no universo do consumo, evidenciando o aporte antropológico na gestão de marketing. Quanto ao aporte das peculiaridades da pesquisa etnográfica no campo do marketing, mais precisamente na pesquisa do consumidor, para Barros (2002) a primeira tentativa de aproximar o conhecimento antropológico ao marketing coube à Charles Winnick, que, no final da década de 1960, escrevia o artigo Antropology´s contributions to marketing. Nesse artigo, Winnick lamentava a lentidão dos antropólogos e profissionais de marketing em se aproximarem, visto a riqueza potencial da pesquisa antropológica para o entendimento de universos culturais e suas práticas de consumo. Outros trabalhos pioneiros na discussão do método etnográfico e sua aplicação em marketing foram o de Sanders (1987), o de Sherry Jr. (1989) e o de Wallendorf e Belk (1989). Com a publicação do artigo intitulado Consuming as social action: Ethnography methods in consumer research, Sanders (1987) critica a orientação e os métodos positivistas reinantes na pesquisa do consumidor, apresentando uma perspectiva alternativa (o interacionismo simbólico) e uma “nova” abordagem de pesquisa (a observação participante) em estudos com características etnográficas. Segundo ele, as metodologias de perspectivas mais subjetivas e qualitativamente focadas poderiam ser uma boa resposta às críticas aos modelos tradicionais e aos procedimentos empíricos de pesquisa do consumo. Sherry Jr. (1989) tentou preencher o vazio existente entre as disciplinas explorando as perspectivas adotadas por antropólogos econômicos em seus estudos de fenômenos de mercado, documentando os interesses recentes em comportamento do consumidor por parte de alguns antropólogos e detalhando os conflitos ideológicos que correntemente inibem o estudo interdisciplinar de marketing e comportamento do consumidor. O trabalho de Wallendorf e Belk (1989) buscou apresentar os critérios de confiabilidade necessários para a execução de uma boa pesquisa em comportamento do consumidor. A partir daí, o método etnográfico tem sido incorporado ao dia a dia dos pesquisadores de marketing, direcionado a contribuir para que os profissionais de marketing possam solucionar algumas questões relacionadas à compreensão do consumo de indivíduos e grupos concentrados na observação e interpretação do comportamento à medida que ele acontece. Estudos nesse sentido são diversos na literatura internacional: Holt (1997), Hill (1993) e Arnould e Wallendorf (1994) entre outros. Mais recentemente, vale destacar o trabalho de Sunderland e Denny (2007) que incorporou ao método de etnografia o uso de fotos e vídeos nos estudos do consumo. 125 Especificamente no que diz respeito à pesquisa do consumidor, Elliott e Jankel-Elliott (2003) apontam que o método etnográfico pode ser útil para a compreensão profunda da experiência vivida dos consumidores, entendidos como seres sociais. Dentre os pressupostos básicos do método etnográfico que contribuem para isso, os autores destacam: a) o estudo do comportamento social no mundo real; b) a crença de que não há como apreender esse comportamento sem entender o mundo simbólico dos sujeitos, alcançando seus pontos de vista e tendo contato com os significados compartilhados em grupo e expressos na linguagem da vida cotidiana; c) a imersão em um trabalho de campo de longa duração, que aumenta a possibilidade de entrar em contato com momentos importantes e “imponderáveis” do dia a dia dos informantes, bem como com incidentes reveladores; e d) buscar a compreensão das regras locais que orientam a visão de mundo dos atores sociais. De interesse também para esta tese são as proposições de Elliot e Jankel- Elliot (2003) para algumas adaptações da etnografia tradicional, propondo o que eles chamam de quasi- ethnography ou commercial ethnography. Em virtude da dificuldade ou pouca disponibilidade dos pesquisadores em participar como membros de famílias por um largo espaço de tempo, os autores propõem desenvolver técnicas que reduzam o tempo de permanência no campo, sem que se abra mão dos outros pressupostos do método etnográfico e da abordagem antropológica sobre o comportamento social. Diante do exposto, vale destacar que a reflexão antropológica promovida pela aproximação de antropólogos ao ambiente de marketing, mais precisamente no campo da pesquisa do consumidor, tem promovido uma crítica mais contundente ao paradigma positivista, tão propagado nessa área. O método etnográfico passou a ser entendido como uma oportunidade de proporcionar melhores condições de compreensão do consumidor a partir do chamado “ponto de vista nativo”, o qual se compõe de múltiplas realidades, que vão sendo reveladas à medida que a pesquisa se desenvolve (BARROS, 2007). Ou seja, para o ambiente de consumo a etnografia leva a pesquisa para fora do laboratório e para dentro das casas, escritórios, mercados e ruas onde as pessoas vivem, comem, compram, trabalham e divertem- se. Ela permite uma visão mais holística da satisfação, frustrações e limitações do que qualquer outro tipo de abordagem de pesquisa (MARIAMPOLSKI, 2006). No Brasil, ainda são poucos os trabalhos publicados com o escopo de se discutir o relacionamento entre antropologia e marketing e, em especial, utilizar seu método de pesquisa (ROCHA et al, 1999; ROSSI e HOR-MEYELL, 2001; CASTILHOS e CAVEDON, 2003; BARROS, 2002; ROCHA e BARROS, 2004; VILAS BOAS, BRITO e SETTE, 2006; LEÃO 126 e MELLO, 2007; MARÇAL e BRANDÃO, 2008). Em levantamento conduzido por Gallon e Cunha (2007) nos anais do Enanpad entre 2000 e 2006 foram encontrados 19 trabalhos que se utilizaram da pesquisa etnográfica, com destaque para a área temática de marketing que contou com cinco trabalhos. Boa parte dos trabalhos etnográficos, entretanto, tem sofrido diversas críticas em relação à sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento teórico, seja pela extensão ou pelo refinamento de teorias existentes, seja pela construção de novas teorias fundamentadas. Segundo essas críticas, os pesquisadores que têm lançado mão do método etnográfico parecem estar tão preocupados em produzir “boas descrições”, em reproduzir o “campo” com detalhes, e em transmitir a “voz dos nativos” em sua autenticidade que pouco esforço tem sido direcionado para desenvolver conceitos “formais” com um nível maior de abstração capaz de compor uma estrutura teórica mais robusta (SNOW, MORRILL e ANDERSON, 2003; KATZ, 2001, 2002; HAMMERSLEY, 1990; PRUS, 1987; LOFLAND, 1995; FINE, 2003; MAGNANI, 2003). Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a intenção dessa crítica não é “abreviar” a etnografia, mas sim chamar a atenção para a grande oportunidade que os pesquisadores têm em mãos para procurar estabelecer relações entre os seus “ricos relatos” e um entendimento mais amplo e geral do mundo que nos rodeia (SNOW, MORRILL e ANDERSON, 2003). Nesse ponto, vale destacar a questão levantada por Pettigrew (2000), ao propor a utilização de métodos originados de outras disciplinas, como sociologia e antropologia, em pesquisas de comportamento do consumidor. Ela defende a combinação da abordagem da etnografia com a metodologia denominada grounded theory. Conforme também percebido por Ayrosa e Sauerbronn (2006) e Lourenço et al. (2007) e defendido por Charmaz e Mitchell (2001), a similaridade entre essas metodologias indica que a etnografia oferece uma forma de coleta de dados que é compatível com o método de construção de teorias proposto pela grounded theory. O próximo tópico discorrerá sobre as características da grounded theory. 5.3.3 A grounded theory Traduzida em português para “teoria fundamentada nos dados”, a grounded theory é uma metodologia de pesquisa que tem as suas origens nos trabalhos dos sociólogos Barney Glaser e Anselm Strauss. Surgiu como uma reação e se apresentou como uma alternativa à 127 hegemonia da lógica hipotético-dedutiva dos trabalhos de orientação positivista nos estudos sociológicos na década de 1960 (CHARMAZ, 2006). O objetivo principal de Glaser e Strauss (1967) era desenvolver uma metodologia, ou um estilo de se fazer pesquisa, que fosse capaz de preencher o espaço entre as pesquisas empíricas “teoricamente desinformadas” (baseada em testes e verificações ao invés de construção de teorias) e as teorias “empiricamente desinformadas” (teorias abstratas demais, distantes da realidade), que predominavam, segundo eles, nas ciências sociais naquela época. Portanto, a metodologia é útil em casos em que o objetivo da pesquisa é entender como as pessoas se comportam num contexto social e essencialmente, ela é mais comumente utilizada para gerar teoria onde pouco é sabido ou existem lacunas no conhecimento (GOULDING, 2002). Na tentativa de minimizar esse tipo de problema, Glaser e Strauss (1967) procuraram conceber um método de pesquisa em que o pesquisador, ao invés de “forçar” pressuposições ou categorias/conceitos teóricos preexistentes, ou seja, de tomar a teoria como ponto de partida, deveria procurar conceber uma teoria fundamentada em dados representativos da “realidade” dos sujeitos estudados. O termo grounded é utilizado justamente para reforçar a noção de que a teoria é construída a partir de comportamentos, palavras e ações daqueles que estão sendo pesquisados (GOULDING, 2002). A preocupação fundamental da grounded theory está, portanto, em tentar evitar que ideias preconcebidas assumam o controle do processo de construção de novas teorias. A noção, nesse caso, é começar a pesquisa não pela definição de uma estrutura teórica-analítica, mas sim com um problema geral concebido apenas em termos de perspectivas disciplinares mais amplas (DEY, 1999). Essa área substantiva de pesquisa seria suficiente como ponto de partida para que o pesquisador decida o que e onde estudar. Uma vez identificado o problema, em termos gerais, e selecionado o lugar onde esse problema pode ser estudado, o pesquisador deve permitir que as evidências, que aos poucos vão emergindo e se somando, ditem a sua agenda de pesquisa (DEY, 1999). No entanto, quando se fala de uma teoria que emerge dos dados, parece natural perguntar: Que tipo de teoria é essa? Glaser e Strauss (1967) utilizam uma classificação que considera dois tipos de teoria: formal e substantiva. As teorias formais são mais amplas, mais gerais e têm a pretensão de poderem ser generalizadas; ou seja, de se aplicarem a uma grande variedade de disciplinas, interesses e problemas (GOULDING, 2002). Em geral, são teorias que procuram simplificar e ordenar a complexidade da vida social e que não se prendem aos detalhes e/ou aos diferentes contextos (DEY, 1999). Remetem ao sentido positivista de teoria, 128 associado às grandes narrativas que procuram dar conta de um mesmo fenômeno, ainda que sob diferentes condições. As teorias substantivas, por sua vez, procuram refletir a complexidade da vida social. São específicas, limitadas em seu escopo, ricas em detalhes e aplicáveis apenas dentro dos limites de um dado contexto social. Sem a preocupação de generalização estatística para além da sua área substantiva, procura aprofundar a explicação de uma “realidade” local, particular, construída a partir das experiências vividas por um determinado grupo social (DEY, 1999; GOULDING, 2002). É gerar este tipo de teoria, especialmente importante quando se trata de um fenômeno social insuficientemente explicado pelas teorias formais existentes, que a grounded theory se propõe. O entendimento do que vem a ser teoria leva, inevitavelmente, a uma discussão fundamentada nos cânones do positivismo e do interpretativismo. Uma definição de teoria em uma perspectiva positivista leva em consideração tanto explicação como a predição dos fenômenos. As teorias positivas objetivam parcimônia, generalização e universalidade, ao mesmo tempo em que reduzem os objetos e eventos empíricos ao que pode ser agrupado em conceitos. Em resumo, uma teoria positivista consiste de uma série de proposições inter- relacionadas, buscando tratar conceitos como variáveis, especificar relações entre conceitos, explicar e predizer esses relacionamentos, sistematizar o conhecimento, verificar relações teóricas por meio de testes de hipóteses e gerar hipóteses para pesquisas (CHARMAZ, 2006). Por outro lado, uma definição interpretativa de teoria remete a um entendimento imaginativo do fenômeno estudado. Esse tipo de teoria assume múltiplas realidades emergentes, indefinição, fatos e valores ligados, a verdade como provisória e a vida social como processual. Em síntese, uma teoria interpretativa busca conceituar o fenômeno estudado para entendê-lo em termos abstratos, articular pretensões teóricas pertencentes ao escopo, profundidade, poder e relevância, reconhecer subjetividade na teorização e, portanto, o papel da negociação, diálogo e entendimento e oferecer uma interpretação imaginativa (CHARMAZ, 2006). Contudo, a definição de teoria, entendida nesta tese é a de [...] um conjunto “bem desenvolvido” de categorias (temas, conceitos) que são sistematicamente inter-relacionadas através de proposições de relação para formar um modelo teórico capaz de explicar – de maneira plausível - um fenômeno social relevante (STRAUSS e CORBIN, 1998, p. 22). 129 Essas proposições de relação procuram explicar quem, o que, quando, onde, por que, como e com que consequências um evento ocorre. É essa interligação entre os conceitos que dá aos “achados” da pesquisa o caráter de teoria. Conceitos teóricos per si (“isolados”) podem até ser utilizados para descrever determinado fenômeno social, mas são insuficientes para explicá-lo ou prevê-lo. Para tanto, é necessário conectar dois ou mais conceitos (STRAUSS e CORBIN, 1998). O foco da grounded theory está, portanto, não em testar hipóteses, mas em gerar categorias relevantes e desenvolver proposições acerca dos relacionamentos entre elas, a partir da investigação de como os atores agem, interagem e se engajam em situações/processos sociais específicos (CRESWELL, 1998). A despeito de outros critérios de avaliação da “qualidade” de uma teoria substantiva, Glaser e Strauss (1967) destacam que uma “boa” teoria substantiva precisa fazer sentido para aqueles que vivem o fenômeno que está sendo estudado, tem que “falar a mesma língua” desses sujeitos, deve ser facilmente relacionada com as experiências dessas pessoas. Esse tipo de teoria se “encaixa” e “funciona” bem porque é construído com conceitos e categorias que emergem a partir dos termos que os próprios agentes sociais usam para interpretar e organizar o seu mundo. Por mais consciente que o pesquisador esteja de que precisa capturar a “realidade empírica” dos pesquisados, é ele quem define o que “vê” nos dados e quem escolhe as palavras, os rótulos e os termos que vão constituir os códigos-categorias-teoria (CHARMAZ, 2006). Uma das formas de lidar com esse problema - a interação pesquisador-pesquisados - está no cerne da grounded theory enquanto metodologia de pesquisa. É preciso que o pesquisador interaja – se encontre - com os pesquisados quantas vezes forem necessárias ao longo de todo o processo de pesquisa, a fim de “coconstruir” com eles os sentidos das suas “palavras” e dos seus comportamentos/ações observados e de revisitar com eles os cenários nos quais eles agiram/interagiram. Vale ressaltar nesse ponto que o processo de codificação na grounded theory difere da lógica quantitativa que parte de categorias (ou códigos) preconcebidas, ou “nós criamos os nossos códigos a partir daquilo que enxergamos nos dados [...] há uma espécie de interação entre pesquisador e dados [...] os códigos emergem na medida em que o pesquisador explora os dados e constrói os sentidos deles” (CHARMAZ, 2006, p. 46). Esse processo pode levar (e, em geral, leva) o pesquisador a questões imprevistas sobre as quais ele ainda não tinha “pensado”. Sob essa perspectiva, a codificação torna-se um processo fundamentalmente 130 criativo, que inspira o pesquisador a examinar aspectos “escondidos” dos fenômenos sob investigação. Assim, uma teoria substantiva pretende descrever e explicar uma “realidade” particular, que é constituída pelas experiências vividas por um grupo e traduzida - tornada real, trazida à tona - pelos próprios sujeitos. “Os dados empíricos são considerados então como reconstruções dessas experiências. Cabe ao pesquisador, em conjunto com os sujeitos, recontar e tentar explicar essas experiências por meio de uma teoria” (BANDEIRA-DE- MELLO e CUNHA, 2006, p. 247). Nesse sentido, vale ressaltar a ideia de Charmaz (2006, p. 46) ao afirmar: “Nosso interesse está em saber o que acontece na vida das pessoas [...] em entender os pontos de vista, as situações e as ações delas dentro de um contexto, de um cenário específico”. Esse é um processo que consiste em tomar decisões sobre e agir em relação às diferentes questões que aparecem ao longo da pesquisa – o que, quando, onde, como, quem etc – e que precisam ser consideradas sob diferentes perspectivas. Qualquer proposição (ou hipótese) derivada dos dados previamente coletados deve, portanto, ser continuamente verificada (modificada, ampliada, mantida ou excluída) sempre que novas informações sejam incorporadas. Constitui-se, dessa maneira, em um esforço contínuo que o pesquisador precisa empreender de “idas” e “vindas” entre o nível conceitual, mais abstrato, bem “organizado” em categorias e relações entre elas, e o nível dos dados, mais “concreto”, mais “desorganizado”. Em todos os estágios da pesquisa, para reduzir o “grau de inadequação conceitual” da teoria que está desenvolvendo, o pesquisador precisa se engajar ativamente na busca de explicações alternativas para o fenômeno que estuda e no teste – para confirmar ou rejeitar – das categorias/conceitos que desenvolve (DOUGLAS, 2003). A FIG. 5 apresenta o processo de indução, dedução e validação da grounded theory. De acordo com a lógica abdutiva, a partir dos dados coletados em campo, princípios gerais são estabelecidos indutivamente – processo indutivo de interpretação. Desses princípios são deduzidas categorias específicas e relações entre elas para constituir um primeiro “esboço” da teoria substantiva que se pretende gerar. Com esse modelo teórico inicial “em mãos”, é preciso voltar ao campo para verificar como ele se comporta diante de um novo conjunto de material empírico (BANDEIRA-DE-MELLO e CUNHA, 2006; CHARMAZ, 2006). 131 FIGURA 5 - Indução, dedução e validação na grounded theory Fonte: HEATH e COWLEY (2004) Uma importante consideração para a implementação da grounded theory, conforme salientado por Strauss e Corbin (1998), é a importância da sensibilidade teórica do pesquisador na identificação, construção e medição dos conceitos que compõem a teoria emergente. Essa sensibilidade teórica, de acordo com os autores, refere-se à habilidade de dar significado aos dados e advém do conhecimento científico acumulado pelo pesquisador, além de sua experiência profissional e pessoal. Nesse caso, o pesquisador deve iniciar o seu trabalho de campo munido apenas de um modelo teórico parcial, composto por construtos minimalistas, que serão necessariamente reconstruídos ao longo do processo de pesquisa. É então importante ressaltar que uma teoria fundamentada não é sempre e necessariamente construída exclusivamente a partir dos dados coletados. Caso haja referências teóricas que pareçam ser adequadas para o fenômeno que está sob investigação, elas devem ser utilizadas, refinadas, modificadas e adaptadas por meio da justa (ou contra) posição das observações feitas no campo (STRAUSS e CORBIN, 1998). Com relação à coleta de dados, para Strauss e Corbin (1998) a grounded theory compartilha algumas similaridades com outros métodos de pesquisa qualitativa. A origem dos dados é a mesma: entrevistas e observações de campo, assim como documentos de todos os tipos (incluindo diários, cartas, biografias, autobiografias, jornais e outros materiais). Vídeos também podem ser usados. Os pesquisadores usuários dessa metodologia podem tanto lançar mão da utilização de dados quantitativos quanto combinar técnicas quali e quanti de análise. Uma tentativa de propor uma cronologia para a utilização da grounded theory permite ao investigar concluir que ela vem sendo usada e adaptada por diferentes disciplinas: Tempo – desenrolar da pesquisa + - Dados Dados Interpretação Indutiva Dados Dedução Validação Dados Interpretação Indutiva Dados Dedução Validação Teoria 132 sociologia, psicologia, enfermagem, antropologia, computação, medicina, educação e, apenas recentemente, administração (GOULDING, 2002, 1998; MILLS, BONNER e FRANCIS, 2006a, 2006b; CHARMAZ, 2006; CLARKE, 2005). Mills, Bonner e Francis (2006b) apontam a utilização da grounded theory em uma grande variedade de trabalhos com orientações ontológicas e epistemológicas distintas. Tratando especificamente do campo dos estudos organizacionais, Locke (2001) destaca que a grounded theory vem sendo utilizada tanto em trabalhos de caráter modernista como em trabalhos desenvolvidos sob o paradigma interpretativo e, ainda, em trabalhos alinhados com princípios pós-modernistas. É importante salientar que Glaser e Strauss se separaram após a publicação do livro The Discovery of Grounded Theory, e desde então, por meio de trabalhos independentes (com ou sem coautoria), eles têm mantido um debate que é interessante recuperar aqui acerca do desenvolvimento e da aplicação do método. Nesse sentido, Heath e Cowley (2004) apresentam no Quadro 11 uma síntese de uma comparação entre a abordagem de Glaser e Strauss no tocante à análise de dados. QUADRO 11 – Uma comparação entre as abordagens de Strauss e Glaser STRAUSS E CORBIN GLASER Codificação inicial Codificação aberta Uso de técnicas analíticas Codificação substantiva Dependente dos dados Fase intermediária Codificação axial Redução e agrupamento de categorias Contínua com a fase anterior Comparação, como foco nos dados, torna-se mais abstrata Desenvolvimento final Codificação seletiva Desenvolvimento detalhado de categorias, seleção de categorias centrais, integração das categorias Teórica Redimensionamento e refinamento das categorias que integram as categorias centrais Teoria Detalhada e descrita de forma densa Parcimônia, escopo e modificabilidade Fonte: Adaptado de HEATH e COWLEY (2004) A literatura também indica que existem três pontos de discordância entre as duas vertentes - glaseriana e strauss-corbiniana –, que dizem respeito à utilização da literatura existente, ao grau de delimitação do problema e do contexto da pesquisa e à sistematização da análise dos dados. 133 No que tange ao uso da literatura existente como meio para dar sentido aos dados, a vertente strauss-corbiana aponta que toda e qualquer literatura relevante pode, e deve, ser reconhecida e utilizada durante todo o processo de pesquisa. O pesquisador pode recorrer ao seu estoque de conhecimentos e a suas experiências passadas para formular princípios/significados/conceitos provisórios até que esses possam ser “validados” em conjunto com os sujeitos pesquisados (GOULDING, 2002). Assim, os autores adeptos dessa corrente defendem o uso da literatura técnica existente: para fazer comparações entre conceitos que “emergem” dos dados e “conceitos já descritos”; para aguçar a sensibilidade do pesquisador às nuances dos dados “brutos”; para inspirar estratégias de abordagem dos sujeitos a serem pesquisados e de coleta de dados; para fornecer dados secundários; para ajudar na formulação de questões que sirvam de ponto de partida durante as observações e entrevistas iniciais; para estimular novas questões ao longo do processo de pesquisa; para sugerir parâmetros a serem utilizados na amostragem teórica; para discutir a teoria substantiva construída – em que se parecem, em que são diferentes, como se complementam, como se contradizem. Já para vertente encabeçada por Glaser, evitar a revisão da literatura antes da coleta e análise dos dados aumenta a probabilidade de a teoria efetivamente “emergir” e ser fundamentada nos dados. O segundo ponto de discordância consiste na questão referente à definição do problema. A vertente strauss-corbiana reconhece que o pesquisador pode ir a campo sem um problema já delimitado, mas apenas com uma noção geral sobre o que ele quer estudar. Entretanto, o “campo” é somente mais uma, dentre outras possíveis, e tão relevantes quanto, fontes “imediatas” de questões de pesquisa, como: um problema “encomendado” por um professor ou por uma empresa, por exemplo; problemas ainda sem solução satisfatória encontrados na literatura técnica de uma área específica; problemas conformados ao longo da experiência pessoal/profissional do pesquisador. Na versão glaseriana, o problema (e/ou questões) da pesquisa deve emergir na medida em que se desenrola o processo de coleta e análise dos dados. A investigação deveria começar com uma abordagem muito geral para, aos poucos, com o aprofundamento do trabalho em campo, prosseguir delineando questões mais específicas. Por fim, o último ponto foca a questão da sistematização da análise de dados. Enquanto os autores que adotam a vertente glaseriana criticam a proposta de Strauss e Corbin de proporem uma sistemática de análise de dados muito prescritiva, próxima das tradições mais quantitativistas/positivistas, aparentemente mais preocupada em produzir uma descrição 134 detalhada da realidade, em que os dados deixam de falar por si, do que construir uma teoria fundamentada neles, Strauss e Corbin (1998) se defendem dizendo que as modificações propostas por eles emergiram das suas experiências práticas em campo e que são, portanto, resultado de um esforço de operacionalização dos desenvolvimentos conceituais da grounded theory apresentados por Glaser e Strauss (1967). Na versão strauss-corbiniana, a sensibilidade teórica “pura”, ou o excesso dela, atentaria contra a simbiose entre indução-dedução que está no cerne da grounded theory e poderia levar ao desenvolvimento de teorias insuficientemente fundamentadas (GOULDING, 2002). Assim, é possível afirmar que a posição defendida por Glaser se aproxima mais de uma orientação positivista de pesquisa, uma vez que aponta para uma realidade “externa”, objetiva, a ser “descoberta” nos dados por um observador neutro (CHARMAZ, 2006). A insistência de Glaser em deixar a teoria “emergir” e de evitar a presença do pesquisador, “forçando” uma teoria diferente daquela que está nos dados, é um reflexo desse ponto de vista. Strauss e Corbin (1998), por sua vez, procuram levar a grounded theory em direção a uma orientação mais interpretativista. A preocupação deles em estabelecer um conjunto de procedimentos técnicos para a análise dos dados tem menos a ver com a “dissecação” da realidade “real” e mais com o “assessoramento” do trabalho de interpretação do pesquisador. As teorias são, portanto, interpretações feitas pelo pesquisador. Os dados não vão (e não podem) escolher a sua própria estória. Essa é uma tarefa do pesquisador. É ele que vai decidir e articular, em conjunto com os seus “informantes”, a história que os dados tornam possível contar (CHARMAZ, 2006). Essa constatação do autor vai ao encontro da maior característica da grounded theory, que se situa, justamente, no conjunto flexível de estratégias analíticas que coloca à disposição do pesquisador para que ele possa construir com os seus pesquisados um entendimento interpretativo acerca do “mundo empírico” vivido/experimentado por eles (CHARMAZ, 2006). Vale enfatizar que na tese aqui desenvolvida optou-se por uma vertente que se aproxima mais da vertente strauss-corbiniana desse debate. Em primeiro lugar, por ser uma abordagem mais estruturada, “acessível” e preocupada com a operacionalização da pesquisa, conta com um arsenal de procedimentos e práticas que são importantes para possibilitar a execução de um bom trabalho em curtos espaços de tempo. Em segundo lugar, porque se afina à proposta da pesquisa, que é entender o caráter simbólico da experiência de consumo de um grupo de consumidores. 135 Também é importante salientar que a proposta da vertente strauss-corbianiana é coincidente com o que Charmaz (2006) chama de grounded theory construtivista. Na visão da autora, uma abordagem construtivista coloca prioridade no fenômeno de estudo e busca tanto dados quanto análises construídas a partir das experiências e relacionamentos compartilhados com os participantes do estudo. No mesmo sentido, um estudo construtivista procura entender como e por que os participantes constroem significados e ações em situações específicas. A teoria depende da visão do pesquisador; isto é, ele não está e não pode estar fora do contexto que está sendo investigado. Além disso, a extensão lógica da abordagem do construtivismo significa aprender como, quando e em que extensão a experiência estudada está mergulhada na ampla e, muitas vezes, escondida posições, redes, situações e relacionamentos. Não é escusado ainda ressaltar que a utilização do método da grounded theory pode ser considerada inovadora no campo da pesquisa do consumidor. No Brasil, quando encontrado nos estudos, é possível perceber apenas a citação do método como apoio ou como mero coadjuvante para justificar alguma decisão do pesquisador em um momento específico da coleta ou da análise de dados. Neste sentido, a proposição de um trabalho que busca incorporar em sua proposta epistemológica e metodológica elementos dos “movimentos” aqui apresentados – fenomenologia, etnografia e grounded theory - acena como uma possibilidade interessante de investigação para o campo da pesquisa do consumidor. Assim, a próxima seção finaliza o capítulo com uma discussão do que pode ser proposto como possibilidades de integração do que foi apresentado até aqui. 5.5 As possibilidades de integração Inicialmente, cabe ressaltar a complexidade, ou “ousadia”, de reunir em um mesmo “arcabouço” três movimentos distintos, mas não paralelos - a fenomenologia interpretativa, a etnografia e a grounded theory interpretatitivista -, que, com origens tão diversas e desenvolvidos por autores com formação tão diferenciada, acaba por tornar a tarefa bastante complexa e sujeita a debates e contestações. Porém, a proposta é tentar conciliar novas epistemologias e metodologias ainda pouco tradicionais para a compreensão do consumidor com base em uma convergência de metodologias oriundas de diferentes disciplinas e a partir de uma perspectiva preocupada com o entendimento do marketing como fenômeno social constituído por ações cotidianas. Complementarmente, pretende-se direcionar esforços no sentido de vislumbrar o estabelecimento de uma “lógica” de pesquisa que permita a 136 construção de “pequenas” teorias preocupadas em efetivamente dialogar com a “realidade” dos sujeitos pesquisados, tratando os consumidores em relação uns com os outros e com o mundo próprio deles, com o intuito de investigar toda a riqueza de situações proporcionadas pelo cotidiano, pela “vida vivida” no dia a dia. A ideia de conciliar os três “movimentos” surgiu justamente de uma preocupação originada na percepção de que os estudos interpretativos em geral, de caráter fenomenológico e/ou etnográfico em particular, tendem a negligenciar o potencial e a relevância teórica das suas pesquisas sob o argumento de que a preocupação primeira e fundamental deve ser o “trabalho de campo” e a “voz dos informantes” (particular/etnográfico/fenomenológico). Essa proximidade com o “campo”, sempre ressaltada como característica distintiva e grande força da pesquisa interpretativista, pode ser, ao mesmo tempo, sua maior limitação quando se fala da necessidade de construir proposições teóricas mais “formais, sistemáticas e abrangentes”. Apesar de bem fundamentados empiricamente e muito informativos, poucos são os trabalhos desse tipo que têm produzido novas formulações teóricas ou que, pelo menos, fazem uma ligação “clara e limpa” com as teorias existentes (SNOW, MORRILL e ANDERSON, 2003). É justamente nessa “lacuna” que se insere o pesquisador da grounded theory, que, por meio da concepção de uma teoria fundamentada em dados representativos da “realidade” (comportamentos, palavras, e ações) dos sujeitos estudados, acaba por captar e descrever a lógica da sua visão de mundo e em uma relação de troca, comparar suas próprias representações e teorias com as representações e teorias “nativas” e, assim, tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente. Assim, enquanto a adoção de um estilo grounded theory auxilia o pesquisador (fenomenólogo-etnógrafo) a lidar com a “riqueza” dos dados “de perto e de dentro” que obtém de forma mais focada, sistemática e integrada, permitindo que ele amplie as fronteiras analíticas e a sofisticação teórica do seu trabalho “de campo”, uma postura fenomenológica- etnográfica certamente colabora de maneira decisiva para humanizar a grounded theory, para reduzir a distância entre a teoria fundamentada e “a realidade que a fundamenta”, aproximando os pesquisadores do contexto e dos informantes da pesquisa, de modo que ele possa entender as experiências não só a partir de como as pessoas falam sobre ela, mas também de como elas são “realmente” vividas. Em outras palavras, a contribuição da proposta do “arcabouço” para uma pesquisa interpretativista do consumidor baseada na fenomenologia, na etnografia e na grounded theory é tentar conciliar as características até certo ponto complementares de cada uma dessas 137 abordagens. Ainda que estas epistemologias e metodologias já tenham sido utilizadas em alguns trabalhos no Brasil, o que parece relevante é a tentativa de conjugá-las em um mesmo “desenho” de pesquisa. Nesse sentido, enquanto a fenomenologia contribuiria com a busca do entendimento das experiências a partir do ponto de vista dos consumidores, a etnografia ofereceria condições de estar em campo, de dar oportunidade aos pesquisadores de vivenciar o dia a dia dos consumidores no seu ambiente e construir um conhecimento “comum” a ambos. Por sua vez, com a grounded theory o pesquisador teria a possibilidade de ir além das descrições, tão comuns nos estudos etnográficos, com a “construção” de uma teoria focada naquela situação específica. Tudo isso no escopo do interpretativismo. Por fim, cabe salientar que a proposta do “arcabouço” se adere aos objetivos da pesquisa pelo menos por dois motivos. Primeiro, porque tanto os estudos com base no interpretativismo como as características essenciais dos três “movimentos” (fenomenologia, etnografia e grounded theory) podem contribuir para investigações que incorporam no consumo diversos aspectos experienciais, principalmente quando o destaque está na dimensão social e no significado simbólico-cultural. Segundo, porque a intenção do trabalho aqui proposto caminha no sentido de contribuir para a construção de “ricas” descrições da nossa realidade cotidiana, alternativas à literatura predominantemente estrangeira, fundamentadas nas peculiaridades culturais e sociais do consumidor brasileiro. Atrelada à construção das descrições, faz-se necessária a busca pela construção de teorias locais que, no mesmo sentido das descrições, possam contribuir para o entendimento da realidade nacional. Essa “inclinação” pela “teorização” se deve à percepção de que se, de um lado, muitos bons trabalhos de caráter descritivo já foram realizados no Brasil, de outro, poucos têm se “ousado” a encarar o desafio do desenvolvimento teórico local, seja pela extensão, seja pelo refinamento de teorias existentes, seja pela construção de novas teorias. Feitas as devidas explanações acerca do posicionamento epistemológico e da proposta metodológica proposta para a condução da pesquisa empírica que compõe a tese, é possível estender a discussão para os procedimentos metodológicos que guiaram o trabalho de campo e a análise dos resultados que culminaram com a elaboração da teoria substantiva da experiência de consumo de eletrônicos por pobres urbanos. 138 6. PERCURSO METODOLÓGICO Este capítulo tem por objetivo apresentar o percurso metodológico adotado para atingir os objetivos propostos para o estudo, a partir do arcabouço epistemológico metodológico discutido no capítulo anterior. Para isso, de início, elaborou-se uma seção a fim de classificar o estudo para permitir a apresentação das fases propostas para a pesquisa. Em seguida, o capítulo foi dividido em seções e subseções para discutir o detalhamento de cada fase. 6.1 Classificação da pesquisa Em face dos objetivos propostos para o trabalho, da opção epistemológica adotada e da natureza dos fenômenos que serão investigados na tese, os quais parecem contemplar alto nível de contradição e fluidez, o estudo apresenta características exploratórias e descritivas. Assim, neste trabalho, pretende-se adotar uma estratégia qualitativa de pesquisa. A escolha se justifica por alguns motivos. Primeiramente, para Strauss e Corbin (2008) a pesquisa qualitativa refere-se a investigações sobre a vida, as histórias e os comportamentos de pessoas, bem como a funções organizacionais, movimentos sociais ou relacionamentos interativos não conduzidos por procedimentos estatísticos ou outras formas de quantificação. Em segundo lugar, na visão de Denzin e Lincoln (2006), a pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o observador no mundo, consistindo em uma série de práticas materiais e interpretativas, que transformam o mundo em uma série de representações, incluindo as notas de campo, as entrevistas, as fotografias, as gravações e os lembretes. Ou seja, a pesquisa qualitativa adere-se à proposta deste estudo, visto que envolve uma abordagem naturalista, interpretativa para o mundo, na qual os pesquisadores tentam estudar as coisas em seu ambiente natural, procurando entender ou interpretar os fenômenos em termos dos significados que as pessoas a eles conferem. Ademais, segundo Strauss e Corbin (2008), a escolha de métodos qualitativos é mais adequada quando o objetivo de uma pesquisa é tentar esclarecer o significado ou a natureza da experiência de pessoas e descobrir o que elas estão fazendo e pensando. Tradicional e historicamente, a pesquisa qualitativa foi quase sempre contemplada apenas no estágio exploratório do processo de pesquisa, com a finalidade de explorar distinções qualitativas, com o propósito posterior de desenvolver mensurações. Contudo, 139 formulações mais recentes têm a tendência de considerar a pesquisa qualitativa depois do levantamento para guiar a análise dos dados levantados ou para auxiliar na fundamentação da interpretação com observações mais detalhadas. Outra tendência é a consideração de duas correntes paralelas de pesquisa, tanto simultâneas quanto oscilantes. Finalmente, a pesquisa qualitativa pode ser considerada como uma estratégia de pesquisa “independente”, sem qualquer conexão com outra e qualquer pesquisa quantitativa (BAUER, GASKELL e ALLUM, 2002). Com relação a esta tese, vale afirmar que a escolha foi pela última opção. Ao defender o uso de métodos qualitativos nos estudos de marketing, Gummesson (2005) aponta as seguintes vantagens para o pesquisador: entendimento mais amplo dos fenômenos; simultaneidade entre a geração e análise dos dados, o que leva à construção dos resultados em parceria entre o pesquisado e o pesquisador; comparações constantes entre os dados já gerados e a literatura existente sobre a área de estudo; possibilidade do uso de aspectos intuitivos e experienciais com sistematização e rigor; interpretações alternativas que podem gerar novos entendimentos sobre uma mesma situação de pesquisa; e possibilidade de geração de um rico detalhamento de um dado fenômeno, com a incorporação de variações e contradições. Mais precisamente no campo da pesquisa do consumidor, vários são os autores que propõem o uso de abordagens qualitativas de investigação. Entre eles, Hirschman (1985), Schouten (1991), Arnould e Fisher (1994), Spiggle (1994), Zaltman e Coulter (1995), Zaltman (1996), Thompson (1997) e Goulding (1999). No Brasil, é possível destacar as propostas de Rossi e Hor-Meyll (2001), Fonseca e Mello (2005), Mello (2006), Pinto e Santos (2008), Fleck e Rossi (2009) e Ceschim e Marchetti (2009). Dado o exposto e diante da discussão conduzida no capítulo anterior, defende-se a utilização do arcabouço composto pela conjugação dos três movimentos amparados pelo interpretativismo: a fenomenologia, em sua vertente interpretativista; a etnografia; e a grounded theory, em sua versão baseada no construtivismo/interpretativismo e na abordagem proposta por Strauss e Corbin (2008). A partir da escolha metodológica, as próximas seções têm o objetivo de detalhar os procedimentos metodológicos conduzidos ao longo do estudo. Cabe destacar, contudo, que a pesquisa baseou-se no “viés” da grounded theory, cujo desenvolvimento é composto pelas fases apresentadas no QUADRO 12. 140 QUADRO 12 – Fases propostas para a pesquisa FASES ATIVIDADES OBJETIVOS I – Início Revisão da literatura Definição da questão da pesquisa Focalizar os esforços de pesquisa II – Delimitação e concepção do campo de estudo Identificação do objeto de estudo Identificação dos limites do fenômeno estudado Delimitar a área substantiva para melhorar o poder explicativo dos resultados III – Trabalho de campo Busca das significações que os indivíduos atribuem aos seus comportamentos Definição das técnicas de coleta de dados (observação, entrevistas semi-estruturadas e história de vida) Sobreposição de coleta e análise Coletar os dados e validar as interpretações IV – Análise Identificação das categorias conceituais Compreensão das relações entre as categorias Teste das proposições Amostragem teórica Construir proposições válidas e confiáveis Tentar atingir a saturação teórica V – Retorno à literatura Comparação das proposições com a literatura existente Aprimorar as validades interna e externa Fonte: Elaborado com base nos autores STRAUSS e CORBIN (2008), EISENHARDT (1989) e MELLO (2002) As próximas seções têm por objetivo discutir detalhadamente o percurso adotado para a condução da pesquisa empírica, sempre com a preocupação de se consultar a literatura relacionada. 6.2 Revisão da literatura e definição da questão da pesquisa Em estudos baseados na grounded theory, o pesquisador não começa seu projeto com uma teoria preconcebida. Ao contrário, opta por iniciar com uma área de estudo, permitindo que a teoria surja dos dados. A teoria derivada dos dados tende a se parecer mais com a “realidade” do que a teoria derivada da reunião de um conjunto de conceitos embasados por meio de especulação (STRAUSS e CORBIN, 2008). Assim, não se assume um referencial teórico a priori, visto que não se conhece o que é relevante para os sujeitos envolvidos (BANDEIRA-DE-MELLO e CUNHA, 2006). Por isso, a revisão da literatura nesta tese limitou-se a apresentar um breve estado da arte da área de conhecimento com alguns elementos relevantes, como aqueles relacionados à experiências de consumo e à abordagem antropológica do consumo, com vistas a perceber “lacunas” que poderiam ser supridas pela construção da teoria substantiva. 141 Vale destacar também que as questões de pesquisa são abertas e gerais, e não são formalizadas na forma de hipóteses específicas. Para Mello (2002), as fases de coleta de dados, análise e validação da teoria são entendidas como reciprocamente relacionadas, em um processo indutivo de interpretação e em um processo de dedução e validação de proposições. 6.3 Delimitação da pesquisa No caso desta tese, ainda que seja difícil estabelecer os limites do tema consumo visto que ele é nada mais nada menos um fenômeno que atravessa 100% a vida social e está em todo lugar (MIGUELES, 2007), pode-se afirmar que o foco central da pesquisa é a busca por entendimento das experiências de consumo dos consumidores brasileiros de baixa renda, por meio da construção de uma teoria substantiva, considerando-se, neste contexto, a percepção que esse tipo de consumidores tem de suas experiências de consumo de eletrônicos. Nos estudos baseados na grounded theory, o pesquisador não deve iniciar sua investigação com uma lista de conceitos concebidos anteriormente, muito menos com uma estrutura teórica orientadora, uma vez que os conceitos devem ter permissão para emergir dos dados. Nesse sentido, a construção teórica proposta é mais uma representação (interpretativa) do fenômeno investigado do que um “retrato fiel” dele (CHARMAZ, 2000; 2006). Ou seja, a teoria foi coelaborada, uma vez que foi fundamentada a partir do diálogo com os “nativos” por meio da construção da compreensão do fenômeno por parte do pesquisador. Dessa forma, mais do que relações causais lineares, partiu-se da existência de múltiplas “realidades”, valorizando, por conseguinte, o seu caráter situado/localizado em um contexto específico, sem esquecer que fatos e valores não se separam e que toda “verdade” é provisória (CHARMAZ, 2006). Quanto à dimensão espacial, investigaram-se consumidores de baixa renda que residem em uma das regiões do município de Belo Horizonte. A próxima seção discutirá em detalhes a localização e as características do local onde foi conduzida a pesquisa. 142 6.3.1 O locus da pesquisa O “locus” no qual a pesquisa foi desenvolvida está situado em uma das áreas mais pobres do município de Belo Horizonte denominada “Aglomerado da Serra”, composta por diversas vilas, entre elas: Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora da Aparecida, Nossa Senhora da Conceição, Santana do Cafezal, Vitório Marçola e Cafezal. Essas vilas estão localizadas em terreno de acentuada declividade, sendo cortado por nascentes e córregos em encostas íngremes, e algumas áreas apresentam risco geológico em grau alto e muito alto (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2008). O Aglomerado da Serra está situado na Regional 2 Centro-Sul (FIG. 6), que pode ser considerada a que apresenta os melhores resultados para os indicadores de renda, anos de estudo e taxa de alfabetização do município, conforme pode ser visualizado na TAB. 6. FIGURA 6 – Localização do bairro Aglomerado da Serra Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte (2008) 2 As Regionais Administrativas são divisões políticas do município de Belo Horizonte utilizadas para fins de descentralização administrativa. Atualmente, são nove Regiões Administrativas: Centro-Sul, Pampulha, Oeste, Leste, Noroeste, Nordeste, Venda Nova, Norte e Barreiro. 143 Neste estudo, para fins de caracterização da área do Aglomerado da Serra, serão utilizados os dados do Censo de 2000 relativos à Unidade de Planejamento (UP) 3 Cafezal, que se assemelha bastante a essa área. Sendo assim, pode-se afirmar que a região onde será conduzida a pesquisa está entre as quatro últimas colocações na classificação geral das UP em todos os três indicadores. Ou seja, os dados parecem comprovar que o Aglomerado, apesar de ser formado por moradores de baixa renda, está localizado em uma área relativamente nobre da cidade, o que representa uma “ilha” de população de baixa renda nessa região (TAB. 6). TABELA 6 – Renda média do responsável pelo domicílio, taxa de alfabetismo e média de anos de estudo, por regionais do município de Belo Horizonte - 2000 REGIONAIS RENDA MÉDIA (EM SM) % ALFABETISMO MÉDIA DE ANOS DE ESTUDO Centro-Sul 13,6 95,29 11,29 Pampulha 8,2 94,29 8,73 Oeste 7,4 92,61 8,08 Leste 6,1 92,70 7,46 Noroeste 5,3 93,96 7,29 Nordeste 5,5 92,67 6,89 Venda Nova 3,9 91,36 5,76 Norte 3,7 90,96 5,65 Barreiro 3,6 91,41 5,43 Fonte: IBGE - Censo Demográfico de 2000 No tocante à renda média do chefe de domicílio, pode-se afirmar que a renda média dos habitantes do Aglomerado representa 15,11% da renda média da Regional e 31,33% da renda média do município. Quando comparada com as UP de maior e menor valor, pode-se comprovar que a população do Aglomerado tem uma renda média de 9,66% da maior e de 120,38% da menor. Ou seja, essa população tem uma renda média 20,38% maior que a UP de menor renda média. 3 Unidades de Planejamento são unidades espaciais que reúnem um ou mais bairros e favelas, com características homogêneas de ocupação de solo e respeitando-se os limites das barreiras físicas, naturais ou construídas, utilizadas pela Prefeitura de Belo Horizonte com fins de planejamento. 144 TABELA 7 – População, renda média do responsável pelo domicílio e anos de estudo para a Regional Centro-Sul e algumas Unidades de Planejamento desta Regional - Município de Belo Horizonte – 2000 UP POPULAÇÃO RENDA MÉDIA (EM SM) MÉDIA DE ANOS DE ESTUDO Belvedere 4.733 21,3 13,54 Savassi 46.522 16,2 12,23 Anchieta/Sion 42.956 16,7 13,02 São Bento/Santa Lúcia 13.127 16,0 12,27 Santo Antônio 22.450 16,0 13,02 Prudente de Morais 17.411 15,2 12,63 Serra 22.971 15,2 12,52 Francisco Sales 8.374 13,2 11,79 Barro Preto 6.235 10,0 11,29 Centro 14.399 9,6 10,78 Cafezal 33.341 2,1 3,91 Barragem 14.221 1,7 3,66 Centro-Sul 260.524 13,6 11,29 Belo Horizonte 2,238.526 6,6 7,48 Fonte: IBGE - Censo Demográfico de 2000 A TAB. 8 também apresenta dados que confirmam que a área onde foi conduzida a pesquisa é composta por uma população de baixa renda, pois em 2000 cerca 56% dos domicílios eram compostos por moradores que tinham um rendimento mensal de até 2 salários mínimos. Já com relação aos anos de estudo, os habitantes do Aglomerado apresentam uma média de anos de estudo do chefe de família correspondente a 34,62% da média da Regional Centro-Sul, 52,28% da média municipal, 28,87% da média da UP mais bem colocada e 106,70% da mais mal colocada. Passando à análise de aspectos populacionais, os dados, que podem ser visualizados na TAB. 9, mostram que a UP onde foi conduzida a pesquisa (Cafezal) possui uma densidade demográfica bastante elevada se comparada seja com a densidade do município, da Regional Centro-Sul, ou das demais UP componentes da Regional Centro-sul, sendo superada somente pela UP Barragem. Isso acontece porque o tipo de ocupação do solo nesse tipo de região é caracterizado por alta densidade demográfica, com pequenos lotes, irregularmente distribuídos. 145 TABELA 8 – Classes de rendimento mensal por UP da Região Centro-Sul do município de Belo Horizonte - 2000 DOMICÍLIOS PARTICULARES PERMANENTES CLASSES DE RENDIMENTO MENSAL DOMICILIAR (EM SALÁRIOS MÍNIMOS) ATÉ ½ MAIS DE ½ A 1 MAIS DE 1 A 2 MAIS DE 2 A 3 MAIS DE 3 A 5 MAIS DE 5 A 10 MAIS DE 10 A 15 MAIS DE 15 A 20 MAIS DE 20 SR Barro Preto 0,08% 2,63% 4,59% 5,77% 15,57% 30,80% 14,75% 10,04% 13,10% 2,67% Centro 0,02% 2,51% 5,09% 6,57% 16,74% 32,96% 13,16% 9,10% 11,76% 2,08% Francisco Sales 0,14% 1,81% 3,07% 3,55% 9,01% 25,56% 14,40% 14,44% 25,63% 2,39% Savassi 0,04% 0,91% 1,84% 1,94% 5,72% 16,28% 11,62% 13,40% 45,96% 2,30% P. de Morais 0,11% 1,85% 3,54% 2,35% 5,11% 16,36% 11,72% 14,88% 40,85% 3,24% Santo Antônio 0,04% 0,97% 1,75% 1,58% 4,93% 19,14% 13,94% 15,92% 39,04% 2,69% Anchieta/Sion 0,04% 0,93% 1,60% 1,63% 4,80% 17,07% 12,98% 15,25% 43,63% 2,07% Serra 0,27% 1,75% 2,44% 2,44% 6,18% 18,55% 11,62% 14,26% 40,45% 2,04% Mangabeiras 0,41% 10,09% 13,59% 6,82% 4,43% 5,71% 4,26% 7,35% 43,38% 3,97% São Bento 0,08% 3,67% 4,82% 2,96% 4,71% 11,47% 9,30% 13,70% 45,05% 4,23% Belvedere 0,00% 0,08% 0,91% 0,58% 1,40% 5,94% 7,83% 12,04% 70,65% 0,58% Barragem 1,34% 26,94% 31,62% 13,25% 7,75% 2,87% 0,33% 0,19% 0,38% 15,33% Cafezal 0,90% 23,53% 32,96% 14,54% 9,21% 4,56% 0,86% 0,30% 0,58% 12,55% Região Centro Sul 0,22% 4,95% 7,09% 4,31% 7,02% 13,63% 10,56% 11,77% 33,43% 4,03% Fonte: IBGE - Censo Demográfico de 2000 TABELA 9 – População, área e densidade populacional para o município de Belo Horizonte, para a regional Centro-Sul e suas UP correspondentes - 2000 UP ÁREA (KM 2 ) POPULAÇÃO DENSIDADE DEMOGRÁFICA Barro Preto 1,13 6.325 5.597 Centro 1,83 14.399 7.868 Francisco Sales 1,54 8.374 5.438 Savassi 4,18 45.522 10.890 Prudente de Morais 1,83 17.411 9.514 Santo Antônio 1,91 28.450 14.895 Anchieta/Sion 2,55 42.956 16.845 Serra 1,72 22.971 13.355 Mangabeiras 7,25 5.974 824 São Bento/Santa Lúcia 2,83 13.187 4660 Belvedere 3,88 4.733 1.220 Barragem 0,46 14.881 32350 Cafezal 1,26 33.341 26.461 Região Centro-Sul 32,49 260.524 8.019 Belo Horizonte 330,98 2.238.526 6.763 Fonte: IBGE - Censo Demográfico de 2000 146 Vale ressaltar que esses números correspondem a uma média da UP Cafezal e que refletem a realidade da área do Aglomerado da Serra. Contudo, observa-se que, à medida que se alcançam áreas mais altas do bairro, é sensivelmente percebida a diminuição das condições de vida das pessoas que ali habitam. Dessa forma, conforme discutido anteriormente, como a região do Aglomerado da Serra é geograficamente extensa e possui uma população bastante numerosa, para efeitos de um estudo etnográfico, optou-se por limitar o espaço da pesquisa em somente uma das vilas que compõem o Aglomerado, a vila Cafezal. Vale destacar, todavia, que na prática a divisão do Aglomerado em diversas vilas trata-se apenas de “formalismo” adotado pela Prefeitura de Belo Horizonte, uma vez que não existe uma delimitação exata dessas divisões, o que também não é percebido pelos moradores. A FIG. 7 e a FIG. 8 permitem uma visualização de algumas partes da Vila Cafezal. FIGURA 7 – Vista parcial da Vila do Cafezal Fonte: Foto tirada pelo autor (2008) 147 FIGURA 8 – Vista parcial de uma parte do Aglomerado da Serra Fonte: Foto tirada pelo autor (2008) A escolha da Vila Cafezal como locus de pesquisa se justificou por alguns motivos. Em primeiro lugar, porque trata-se de um região carente, que parece apresentar características muito próximas de outras áreas de baixa renda localizadas em outras cidades brasileiras. Em segundo lugar, é uma das regiões mais carentes da Capital mineira, que está incrustada ou cercada por áreas nobres e bairros residenciais de alta renda e, portanto, considerados sofisticados de Belo Horizonte. Por fim, muitos dos integrantes das famílias que serão entrevistados têm acesso a informações de lançamentos, venda e promoções de produtos eletrônicos seja por meio tanto dos veículos de comunicação de massa ou por conversas informais com amigos, parentes e “patrões” quanto em visitas à shoppings centers e lojas que estão localizadas muito próximas à região. 6.4 – Trabalho de campo Uma vez que a proposta de desenvolvimento deste trabalho baseou-se na conjugação da pesquisa de “inspiração” fenomenológica, aliada aos procedimentos de uma etnografia e ao método da grounded theory, torna-se importante justificar que na pesquisa que se conduz nas cidades, em um universo cultural comum ao investigador, a participação é antes subjetiva do 148 que objetiva. Isso leva à constatação de que raramente o pesquisador precisa residir com a população que estuda e não necessita compartilhar com as suas condições de existência, isto é, de suas carências, de suas dificuldades concretas em garantir a sobrevivência do dia a dia. Porém, o pesquisador deve buscar na interação simbólica a identificação com os valores e aspirações da população que estuda. Com efeito, esse tipo de investigação tem forte tradição na antropologia brasileira, pois trata-se menos de uma antropologia da cidade do que de uma antropologia na cidade - ou seja, estudos voltados para populações que vivem nas cidades (DURHAM, 1986). Dadas as características da pesquisa, cumpre ressaltar a importância do trabalho de campo, pois ele é o elemento mais característico da pesquisa etnográfica. O trabalho de campo pressupõe uma interiorização por parte do pesquisador das significações que os indivíduos atribuem aos seus comportamentos, implicando uma integração do observador no trabalho de campo. Dois aspectos são importantes para o emprego da etnografia. O primeiro refere-se ao recurso da tomada de notas e da elaboração sistemática do diário de campo. O segundo aspecto refere-se à complementaridade de outros procedimentos para a coleta de dados durante o trabalho de campo: análise de documentos, entrevistas semiestruturadas e a história de vida (ANDION e SERVA, 2006). O trabalho de campo iniciou-se ainda no período de elaboração do projeto da tese, quando passei a conversar informalmente com os moradores, a fim de identificar alguns traços básicos do cotidiano deles, e a compreender a dinâmica das relações entre eles. Essa fase do trabalho, de forma não sistemática e eminentemente exploratória, aconteceu durante os meses de janeiro a maio de 2008 e não contou com o apoio de nenhum instrumento de pesquisa além da anotação de algumas notas sobre aspectos que considerava relevante. Posteriormente, essa fase mostrou-se interessante, porque possibilitou conhecer pessoas que seriam informantes da pesquisa. Além disso, facilitou a tarefa de construção de um roteiro inicial de entrevista e de observação. A segunda fase do trabalho de campo, que estendeu dos meses de maio de 2008 a fevereiro de 2009 foi marcada por conversas informais e visita às casas dos moradores e, principalmente, pela realização de entrevistas semiestruturadas. Nas visitas às casas dos moradores, busquei sempre perceber detalhes no tocante ao acabamento, organização e decoração dos móveis, lugar de instalação dos aparelhos ou qualquer outro aspecto que pudesse contribuir para o entendimento do dia a dia desses indivíduos. A próxima seção detalhará como foi a construção dos roteiros de entrevista e observação. 149 Finalmente, a terceira fase do trabalho de campo teve por objetivo fazer checagens com algumas das entrevistadas acerca de algumas categorias que emergiram da análise executadas e tentar aumentar a densidade da teoria em construção. Essa fase aconteceu no mês de março de 2009 e marcou o fim do trabalho de campo, pois julguei que havia atingido o que Strauss e Corbin (2008) chamam de “saturação teórica”, que pode ser descrita como “o ponto no desenvolvimento da teoria em que não surgem novas propriedades, dimensões ou relações durante a análise” (p. 143). Fetterman (1998) salienta algumas questões ou “princípios”, que não devem ser negligenciados por pesquisadores que se engajam em uma pesquisa de cunho etnográfico: permissão, honestidade, confiança, anonimato, reciprocidade e trabalho rigoroso. Com relação ao “princípio” da permissão, o pesquisador etnógrafo deve obter consentimento, formal ou não, por parte das pessoas envolvidas para conduzir seu trabalho. No caso desta tese, a todos os entrevistados foi explicado o objetivo do trabalho e seu papel na condução das entrevistas e na observação. Em algumas situações, por exemplo, algumas entrevistadas se negaram a conceder entrevistas, mas aceitaram conversar informalmente, o que foi de grande valia. Outro “princípio” é o da honestidade, que enfatiza a importância de o pesquisador estar sempre disposto a dar explicações sobre o trabalho conduzido em campo. Nesse sentido, todas as vezes que algum morador mais curioso inquiria-me sobre o trabalho, tinha o maior cuidado em explicar todos os detalhes até que ele se sentisse satisfeito. Já o “princípio” da confiança é essencial para um trabalho etnográfico, visto que todos os entrevistados e envolvidos na investigação devem confiar no pesquisador, a fim de que ele possa “penetrar” nos vários níveis de significado pertencentes a cada ação e fato observado. Para responder adequadamente a esse princípio, optei por buscar construir uma relação de confiança com cada entrevistada antes de conduzir qualquer observação em sua casa ou de conduzir a entrevista. O “princípio” do anonimato leva em consideração que o pesquisador deve, na medida do possível, evitar revelar nomes ou situações que possam causar algum tipo de transtorno ou risco para as pessoas envolvidas. Assim, decidi omitir nomes das entrevistadas, criando para cada uma delas um nome fictício. Por sua vez, o “princípio” da reciprocidade estabelece que o pesquisador pode participar ou contribuir de alguma forma com atividades pertencentes ao grupo pesquisado. No caso deste trabalho, posso afirmar que por diversas vezes fui convocado para auxiliar em alguma ação beneficente no bairro, convidado a contribuir com auxílio financeiro para a construção de alguma casa, invitado a doar roupas ou móveis para as muitas famílias carentes, sem contar as ocasiões que a mim foi solicitada a 150 condução de algum doente para um hospital. Por fim, para atender ao “princípio” do trabalho rigoroso, é possível apontar, conforme dito anteriormente, que o trabalho de campo estendeu- se de janeiro de 2008 a março de 2009, período no qual foi possível conviver com o público da pesquisa, conduzir observações e gravar entrevistas. Nesse ponto, acerca do trabalho de campo, não poderia deixar de destacar alguns pontos. Diante da riqueza de detalhes de cada conversa e visita, os principais aspectos de cada situação vividos por mim foram registrados em diários de campo, nos quais, além dos acontecimentos e descrições, havia a preocupação em se descrever os sentimentos do pesquisador e algumas interpretações que julgava pertinente atinentes tanto ao dia a dia dos informantes quanto aos seus discursos e práticas. O diário de campo, também chamado de “notas de campo”, é uma ferramenta importante para a pesquisa etnográfica, pois caracteriza- se pelo registro detalhado das observações do etnógrafo, bem como interpretações e sugestões feitas por ele (AGAR, 1980). Ao longo do trabalho de campo foram geradas mais de 60 páginas de diários de campo, digitadas em espaço simples. Como passei a frequentar o bairro, no mínimo, uma vez por semana, ao longo do trabalho de campo fui me tornando conhecido pelas pessoas do bairro, o que facilitou, por muitas vezes, conversar informalmente com elas. Não poderia deixar de registrar, por algumas vezes, ocasiões em que consegui identificar muito claramente alguma expressão ou situação que era coincidente com a descrição de autores que já haviam investigado o cotidiano de consumidores pobres em alguma outra região do Brasil. Essa sensação é especialmente interessante para os pesquisadores que optam por uma abordagem mais interpretativista para suas investigações da realidade. 6.4.1 Construção do roteiro de entrevista e do guia de observação A primeira fase do trabalho de campo serviu para conhecer a dinâmica das relações entre os moradores da Vila do Cafezal e auxiliar a composição de um roteiro inicial para as entrevistas semiestruturadas. Além disso, baseei-me na metodologia de entrevista propostas por Gaskell (2002) e McCracken (1988). Também levei em consideração a orientação de Strauss e Corbin (2008) quando indicam que perguntas de entrevista inicial ou áreas de observação devem ser baseadas em conceitos derivados da literatura ou da experiência. Ou, melhor ainda, do trabalho de campo preliminar. À medida que o trabalho de campo avançava, juntamente com a análise dos dados, o roteiro de entrevista, gradativamente, sofria alterações 151 e novas inclusões, advindas das categorias que emergiam. Uma das últimas versões do roteiro de entrevista pode ser visualizado no Apêndice A. Na última fase da pesquisa, na qual aconteceu a checagem dos dados, também utilizei um roteiro de entrevistas que pode ser consultado no Apêndice B. Nas entrevistas que conduzi com os profissionais atuantes no bairro, optei por não construir um roteiro de entrevistas, deixando, assim, a entrevista fluir baseado em questões emergentes da pesquisa com as entrevistadas. Quanto ao roteiro de observação, busquei seguir as orientações de Mariampolski (2006), que entende que a ferramenta básica para conduzir uma pesquisa observacional é o guia de observação, compreendido como o estabelecimento de atenções sobre como as visitas procederão em termos de comportamentos a serem observados, tópicos a serem cobertos, a quantidade de tempo a ser gasto em cada área e a sequência de questões ou provas que serão introduzidas. Nesse sentido, optei por construir um guia de observação para ajudar nas visitas que conduzi nas casas dos moradores. O guia de observação, que também foi sofrendo alterações ao longo do processo de pesquisa, pode ser visualizado no Apêndice C. 6.4.2 Seleção dos entrevistados A lógica da amostragem representativa é útil para muitas situações de pesquisa social, mas não se presta para situações de pesquisa na qual o objetivo é a construção de teorias (BAUER e AARTS, 2002). No caso desta tese, a mais adequada foi a denominada “amostragem teórica” (STRAUSS e CORBIN, 2008; CHARMAZ, 2006; GOULDING, 2002), pois quando construímos teoria indutivamente a amostragem é direcionada pela própria teoria (GOULDING, 2002). Assim, pode-se definir amostragem teórica como Coleta de dados conduzida por conceitos derivados da teoria evolutiva e baseada no conceito de “fazer comparações”, cujo objetivo é procurar locais, pessoas ou fatos que maximizem oportunidades de descobrir variações entre conceitos e de tornar densas as categorias em termos de suas propriedades e de suas dimensões (STRAUSS e CORBIN, 2008, p. 196). A partir do conceito estabelecido pelos autores, as entrevistadas foram intencionalmente escolhidas: foram moradoras do Aglomerado da Serra - mais precisamente da Vila do Cafezal -, que, de alguma forma, tinham alguma característica que foi julgada pelo pesquisador como relevante para o estudo. 152 Porém, neste ponto, vale enfatizar os motivos pelo quais decidi entrevistar apenas moradoras do sexo feminino para compor o corpus da pesquisa. Em primeiro lugar, como a teoria substantiva deve ter muito bem definidos seus limites, a incorporação de elementos diversos, como as diferenças advindas da construção da percepção da realidade entre homens e mulheres, poderia tornar a construção da teoria bastante mais complexa. Em segundo lugar, desde a primeira fase do trabalho de campo notei a ocorrência muito grande de famílias sem a figura do marido ou “pai de família”, arranjo no qual a mulher assume um papel fundamental de provedora de recursos para os filhos. Mesmo naquelas residências onde havia a presença do homem, notei o que Sarti (1996) realçou em seu trabalho sobre pobres urbanos: “o homem é considerado o chefe da família e a mulher a chefe da casa” (p. 43). Assim, as mulheres ocupam um papel de destaque tanto na construção de significados quanto na “vivência” do dia a dia das experiências de consumo de aparelhos eletrônicos. Outro ponto merecedor de destaque é o exposto por Gaskell (2002), quando alerta pra o fato de que, embora as experiências possam parecer únicas ao indivíduo, as representações de tais experiências não surgem das mentes individuais, mas são resultados de processos de construção social. O QUADRO 13 sumariza as principais características das entrevistadas. QUADRO 13 – Breve descrição das entrevistadas (continua) NOME FICTÍCIO DESCRIÇÃO DO ENTREVISTADO Aparecida É natural de Teófilo Otoni, norte de Minas. Mora em Belo Horizonte há mais de 30 anos, sempre na região do Aglomerado da Serra. Cursou apenas até a terceira série do ensino Fundamental. Tem 55 anos de idade. Sempre trabalhou como faxineira. Atualmente, mora sozinha em casa própria. Teve seus dois filhos falecidos recentemente. Seus rendimentos mensais são menores que um salário mínimo. Beatriz Nasceu em Porto Alegre, RS. Mudou-se para a região do Aglomerado quando tinha dois anos de idade. Casada há pouco menos de dois anos, mora com o marido numa casa cedida pela sogra. Tem 31 anos e trabalha como monitora de educação infantil numa creche da região Sul de Belo Horizonte. Cursou o ensino médio completo. Tem rendimento mensal por volta de 500 reais. Celina É natural de Belo Horizonte, mora no Cafezal há 17 anos. Tem 47 anos e trabalha como servente numa creche da Prefeitura de Belo Horizonte, mas também já trabalhou como cozinheira em restaurantes. Cursou apenas até o segundo ano do ensino fundamental. Mora com duas filhas numa casa própria. Ganha um salário mínimo por mês. Diana Mora no Cafezal desde os 6 anos de idade. Tem 37 anos, é casada e tem um filho de 5 anos de idade. Trabalha como faxineira e ganha aproximadamente 800 reais por mês. É natural de Lagoa dos Passos (Norte de Minas) e tem ensino fundamental completo. Já trabalhou como balconista e auxiliar numa loja de perfumes, porém o maior tempo foi faxineira em casa de família. Tem casa própria na favela. Eliane É natural de Belo Horizonte e mora na região do Aglomerado da Serra desde que nasceu. Já morou em diversos pontos do Aglomerado. Mora de aluguel com seu atual marido e seus oito filhos. Tem 39 anos. Cursou até o 5º ano do ensino fundamental. Sempre trabalhou como faxineira. Atualmente, é funcionária de uma empresa de serviços gerais e ganha por volta de 700 reais por mês. 153 QUADRO 13 – Breve descrição das entrevistadas (conclusão) NOME FICTÍCIO DESCRIÇÃO DO ENTREVISTADO Fátima É natural de Belo Horizonte e mora no cafezal desde que nasceu, há 24 anos. Tem ensino médio completo. Atualmente, está desempregada, mas já trabalhou como atendente em sorveteria. Solteira, atualmente mora com seus pais, ambos aposentados, e sua filha de 1 ano de idade. Sua casa está localizada em um dos melhores pontos do bairro e conta com vários eletrodomésticos. Gisele Nasceu em Belo Horizonte e mora no Aglomerado há 10 anos. Parou seus estudos na 1ª série do ensino médio. Tem 23 anos. Já trabalhou como faxineira em casa de família e como atendente em padaria. Separada, mora na casa de seu ex-marido com dois filhos pequenos. Atualmente, está desempregada e depende da ajuda de seus pais que moram próximo. Pode ser considerada a entrevistada com a pior situação financeira. Helena Nasceu em São Paulo, mas mudou-se para a região do Aglomerado da Serra há 27 anos. Cursou o ensino fundamental completo. Tem 35 anos. Trabalha como zeladora num prédio residencial, mas já atuou como ascensorista e faxineira. Separada, mora numa casa conjugada com sua mãe, juntamente com seus cinco filhos. Tem rendimento mensal de 900 reais. Ilma Nascida em Belo Horizonte, sempre morou na região do Aglomerado da Serra. Tem 20 anos e está no meio do curso de graduação em pedagogia. Trabalha num escritório de serviços jurídicos e tem rendimento de 500 reais por mês. Já trabalhou em faculdades como auxiliar de secretaria e como operadora de computador. Mora com seus pais, seus dois irmãos e um primo em casa própria. Jeane É natural de Belo Horizonte e tem 20 anos de idade. Tem ensino médio completo e atua como monitora do Núcleo de Cerâmica numa ONG localizada no bairro Serra. Já trabalhou em outras funções administrativas nessa ONG. Mora com os pais e um irmão numa casa própria. Tem rendimento bastante variável. Luciana Nasceu em Belo Horizonte, onde morou em várias regiões. Tem 37 anos, é casada e atualmente é dona de casa, mas já trabalhou como operadora de caixa em supermercados. Terminou apenas o ensino fundamental. Mora com o marido, um filho de menos de um ano de idade e um enteado numa casa conjugada com sua sogra. Marta Natural de Carmésia, mora na favela do Cafezal há 33 anos. Hoje, com 66 anos, está aposentada, mas trabalha como voluntária numa creche da Prefeitura de Belo Horizonte. Sempre trabalhou como servente ou serviços gerais. Tem apenas a segunda série do ensino fundamental. Mora em casa própria com seu marido e um casal de filhos. Neusa Nasceu em Montes Claros há 60 anos. Mudou-se para Belo Horizonte para trabalhar em “casa de família” como faxineira, há 34 anos. Já morou em outras regiões de Belo Horizonte, mas fixou-se na favela do Cafezal há 32 anos. Sempre trabalhou com serviços gerais e faxina. Atualmente, é aposentada, mas atua como voluntária numa creche da Prefeitura de Belo Horizonte. Apesar de afirmar que frequentou a escola até a segunda série do ensino fundamental, não sabe escrever. Mora de aluguel com um filho, uma nora, a irmã da nora e o filho. Fonte: Dados da pesquisa (2009) A fim de obter uma visão um pouco diferenciada dos discursos dos moradores, optei por incluir em meu rol de entrevistados alguns profissionais que atuavam no bairro. Esse procedimento mostrou-se válido visto, que pude contrastar os dados que haviam sido coletados com a visão desses profissionais que conheciam há muitos anos o perfil dos moradores do Aglomerado, bem como ter a oportunidade de ter novos insights para a elaboração da teoria. O QUADRO 14 apresenta o perfil dos quatro profissionais que participaram dessa fase da pesquisa. 154 QUADRO 14 – Descrição dos entrevistados NOME DESCRIÇÃO DO ENTREVISTADO Soraia É proprietária, juntamente com seu pai, de uma loja de móveis em uma das ruas que dá acesso ao Aglomerado da Serra. Atua na região há mais de 20 anos. É graduada em ciências sociais, mas nunca exerceu a profissão. Mora no bairro Serra. Marconi É proprietário há 18 anos de uma oficina de conserto de aparelhos eletrônicos no bairro Serra, mas já manteve oficinas em diferentes pontos do Aglomerado anteriormente. Tem curso técnico de eletrônica. Miriam Coordena uma creche da Prefeitura de Belo Horizonte na região do Aglomerado da Serra. Tem experiência como voluntária em projetos sociais com foco em jovens mães do Aglomerado há quase 40 anos. É graduada em pedagogia. Daniel Coordenou uma ONG na região do Aglomerado da Serra por três anos. É graduado em ciências sociais. Fonte: Dados da pesquisa (2009) 6.4.3 A condução das entrevistas e das observações As entrevistas, quase sempre, foram precedidas de conversas informais com as entrevistadas, a fim de que eu pudesse, além de conhecer alguns detalhes de suas vidas e de suas casas, também “quebrar o gelo” para a entrevista. As entrevistas foram conduzidas na casa das entrevistadas, com exceção de algumas delas, principalmente na terceira fase da coleta de dados, quando eu já conhecia as entrevistadas, as quais foram marcadas no local de trabalho delas. As observações foram conduzidas informalmente nas inúmeras visitas que fiz às casas dos moradores. À medida que a fase de coleta de dados avançava, as observações tornavam-se mais focadas em alguns aspectos, para facilitar posteriormente a análise dos dados. Tanto os procedimentos de entrevistas, quanto os de observação seguiram as orientações propostas por Gaskell (2002), Flick (2004) e McCracken (1988), conjugadas com as de Strauss e Corbin (2008), Goulding (2002) e Charmaz (2006) no tocante ao método da grounded theory. Entretanto, em alguns momentos percebi que os depoimentos coletados nas entrevistas não coincidiam exatamente com os comentários que no dia a dia, as pessoas faziam a respeito de suas vidas ou do que eu percebia como “real” na convivência com eles. Assim, para interpretar e desvendar o significado não só do discurso, mas da vivência à qual ele se adere, tive que lançar mão de outros tipos de dados. Os dados de observação participante, nesse sentido, sobre o cotidiano do bairro, bem como de suas casas e suas ações foram essenciais. 155 Porém, não posso deixar de reforçar que meu sentimento no início era de que os dados, por serem desconexos, fragmentados e confusos, faziam parte de um grande “quebra-cabeças” do qual eu não tinha ideia sobre como iria compor. A análise de dados com base na metodologia da grounded theory me permitiu organizar e sistematizar esse quebra-cabeça, conforme será discutido na próxima seção. Cabe registrar que as entrevistas foram gravadas com a permissão dos entrevistados. Foram, ao todo, vinte entrevistas formais, que totalizaram quase mil minutos de gravação. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas, para facilitar a análise, o que gerou quase 250 páginas de texto em espaço simples. 6.5 Análise dos dados A análise de dados consiste em uma das principais fases do método da grounded theory, visto que a teoria emerge dos dados. Ademais, é a análise que conduz a coleta de dados. Por isso, há uma interação constante entre o pesquisador e o ato de pesquisa. Ao mesmo tempo, a análise não é um processo estruturado, rígido e estático. É um processo livre e “criativo”, por meio do qual o pesquisador busca respostas analíticas para os fenômenos em análise. Nesse sentido, duas tarefas foram essenciais para a análise dos dados coletados na fase de trabalho de campo: a elaboração de questionamentos sobre os possíveis significados; e a condução de comparações, seguindo as orientações propostas por Strauss e Corbin (2008). Para esses autores, há dois tipos de comparação: teóricas e incidente-incidente. As comparações teóricas foram feitas no início das análises ou sempre que algo novo surgia dos dados. Já as comparações incidente-incidente foram feitas somente quando já existiam possíveis categorias definidas em suas propriedades e dimensões. Outra importante fase da análise dos dados foi a codificação dos dados, que é também de extrema importância para o método da grounded theory (MELLO, 2002; GOULDING, 2002; CHARMAZ, 2006). No caso desta tese, optei por seguir os procedimentos tal como proposto pelos autores. Para eles, o processo pode ser dividido em três etapas: codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva. A codificação aberta envolveu a quebra, análise, comparação, conceituação e categorização dos dados. O QUADRO 15 detalha os 156 principais códigos que, por meio da codificação aberta, puderam ser agrupados nas principais categorias que emergiram do estudo. QUADRO 15 – Categorias e seus principais subcategorias e códigos associados (continua) CATEGORIA PRINCIPAIS SUBCATEGORIAS E CÓDIGOS ASSOCIADOS Casa e família Aparelhos fazem parte da vida (3) Aparelhos ligados simultaneamente (3) Casa própria (3) Casa dos sonhos (30) Decoração do ambiente (5) Descrição de casas pelo morador (5) Estrutura familiar (10) Famílias numerosas (4) Faz “bicos” para sobreviver (6) Gosto por decorar a casa (7) Lugar de instalação dos aparelhos (28) Mora em casa pequena (5) O que não pode faltar em casa (20) Percepção sobre vizinhança (11) Posse de computador na favela (4) Posse de DVD na favela (8) Relações com a família (24) Relatos de características das casas (6) Tamanho dos móveis/aparelhos X casa (5) Compartilhamento de objetos e espaços “Aparelhos são para todos” (7) Brigas para uso da televisão (14) Compartilhamentos dos objetos (17) Compartilhamento dos espaços (2) Compra de aparelhos usados (24) Doação de aparelhos eletrônicos (4) Empréstimo dos aparelhos (10) Ganhar aparelhos eletrônicos (2) Relações com a família (24) Socialização do som (4) Troca de aparelhos entre parentes (5) Venda de aparelhos usados (2) Dilemas compras a vista x a prazo Acesso a crédito para comprar aparelhos (3) Compra a prazo (9) Formas de pagamento dos aparelhos (19) Percepção carnê X cartão de crédito (2) Percepção da utilização de carnê (3) Percepção do dilema à vista X a prazo (23) Posse de cartão de crédito (4) Preferência de compra à vista (2) Uso do carnê (3) Uso do cartão de crédito (17) Distinção “Diferenciação dos aparelhos (5) Chama a atenção nas casas (2) Decoração do ambiente (13) Definição de classe social (22) Gosto por decorar a casa (7) Lugar de instalação dos aparelhos (28) Motivo de ter TV e DVD na sala (7) Percepção do que é “o bom e do melhor” (2) Relação com pessoas mais pobres (12) Relação com pessoas mais ricas (11) Sensação de conquista (9) Sensação de recompensa (14) Status que os aparelhos conferem (9) Experiência de compra Aspectos que chamam atenção nos aparelhos (4) Atributos importantes na escolha dos aparelhos (2) Atributos importantes para escolha da loja (6) Compra a prazo (9) Decisor da compra da televisão (3) Estratégias utilizadas para compra dos aparelhos (2) Experiência de compra dos aparelhos (19) Formas de negociar atraso do pagamento (2) História sobre compra de som (1) História sobre compra de televisão (1) Imagem da marca CCE (5) Importância do desconto (2) Loja de preferência (18) Planejamento das compras (2) Preferência de marca (23) Experiência de consumo dos aparelhos “Aparelhos são para todos” (7) “Ciúme” dos aparelhos (16) “Festa” na experiência de consumo de TV e DVD (7) “Sentimento” pelos aparelhos (3) Aparelhos fazem parte da vida (3) Aparelhos ligados simultaneamente (4) Brigas para uso da televisão (14) Empréstimo dos aparelhos (10) Encanto com os aparelhos (4) Experiência de consumo torna-se um momento especial de família (5) Lembrança evocada pelos aparelhos (11) Sensação de conquista (9) Sensação de recompensa (14) Som com volume alto (10) Substituto dos aparelhos (5) Uso da televisão como distração (8) Uso da televisão como reunião de família (17) Uso da televisão e DVD para tirar o filho da rua (10) Uso da televisão como informação (7) Uso do DVD em família (9) Uso do som (13) Uso do som no Cafezal (15) Uso do som para arrumar casa (7) 157 QUADRO 15 – Categorias e seus principais subcategorias e códigos associados (conclusão) CATEGORIA PRINCIPAIS SUBCATEGORIAS E CÓDIGOS ASSOCIADOS Formas de aquisição dos aparelhos “Tirar” o produto na loja” (15) Acesso a crédito para comprar aparelhos (3) Comentário sobre aquisição dos aparelhos (11) Comércio de aparelhos roubados (3) Compra de aparelhos em bazar (18) Compra de aparelhos usados (24) Doação de aparelhos eletrônicos (4) Formas de pagamento dos aparelhos (19) Ganhar aparelhos (5) Planejamento de compras (4) Planos de adquirir novos aparelhos (18) Identificação com o bairro Ambiguidade no discurso dos jovens (3) Características do Aglomerado (3) Identificação com a favela (20) Percepção sobre a vizinhança (11) Perfil dos moradores (2) Possibilidade de mudar de bairro (3) Preconceitos contra o jovem (6) Tempo que mora no bairro (3) Influências sociais Casa de parentes (2) Casa de vizinhos para uso de aparelhos (4) Elogios pelos aparelhos (12) Influência do meio social (14) Percepção sobre a vizinhança (11) Lazer e entretenimento “Festa” na experiência de consumo de TV e DVD (7) “Gatonet” (6) Aparelhos como única opção de lazer (3) Falta dos aparelhos (7) Atividades quando não está trabalhando (15) Papel dos relacionamentos “Aparelhos são para todos” (7) “Tirar” o aparelho na loja (15) Brigas para uso da televisão (14) Compartilhamentos dos objetos (17) Compartilhamento dos espaços (2) Compra de aparelhos usados (24) Doação de aparelhos eletrônicos (4) Empréstimo dos aparelhos (10) Estrutura familiar (10) Ganhar aparelhos eletrônicos (2) Influência do meio social (14) Nome “limpo” na praça (5) Relações com a família (24) Socialização do som (4) Troca de aparelhos entre parentes (5) Venda de aparelhos usados (2) Percepção sobre o consumidor de baixa renda O que não pode faltar em casa (20) Percepção carnê X cartão de crédito (2) Percepção da utilização de carnê (3) Percepção do dilema a vista X a prazo (23) Percepção do que é “o bom e do melhor” (2) Percepção entre casa X TV (4) Percepção sobre ascensão social (2) Percepção sobre consumismo (21) Percepção sobre consumidor de baixa renda (30) Percepção sobre vizinhança (11) Preocupação com os mais pobres (4) Uso do som no Cafezal (15) Sonhos de consumo Aparelhos na casa dos sonhos (17) Casa dos sonhos (30) Chama atenção em casas mais bonitas (3) Computador como novo item de consumo (3) Decoração na casa dos sonhos (8) Planos de adquirir novos aparelhos (18) Sonhos de consumo (23) Uso do carnê e do cartão de crédito Acesso a crédito para comprar aparelhos (3) Compra a prazo (9) Forma de pagamento dos aparelhos (19) Nome “limpo” na “praça” (5) Percepção carnê X cartão de crédito (2) Percepção da utilização de carnê (3) Percepção do dilema a vista x a prazo (23) Planejamento de compras (4) Posse de cartão de crédito (4) Vida financeira planejada (4) Uso do carnê (3) Uso do cartão de crédito (17) Violência e tráfico Comércio de aparelhos roubados (3) Violência na favela (20) Fonte: Dados da pesquisa (2009) Nota: O número entre parênteses representa a quantidade de citações relacionadas a cada código. Após a identificação de categorias conceituais pela codificação aberta, a codificação axial examinou as relações entre categorias e subcategorias. Por fim, a codificação seletiva 158 refinou todo o processo, identificando a categoria central da teoria, com a qual todas as outras estão relacionadas. O resultado dessas duas fases de codificação pode ser visualizado no capítulo 8, que apresentará a teoria que foi gerada. Como técnica de análise de dados, optei pela utilização da análise de conteúdo, uma vez que o objetivo era identificar o que estava sendo dito a respeito das experiências dos consumidores de baixa renda. Para Bardin (1977, p. 42), análise de conteúdo é: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. A partir desse conceito, é importante levar em consideração que a análise de conteúdo admite tanto análises qualitativas quanto quantitativas ou, ainda, ambas (BARDIN, 1977; LAVILLE e DIONNE, 1999). Contudo, neste trabalho pensei ser mais conveniente a utilização das análises qualitativas de conteúdo, visto que as abordagens mais qualitativas tendem a conservar a forma literal dos dados. Assim, o pesquisador pode prender-se mais às nuanças de sentido que existem entre as unidades e aos elos lógicos entre essas unidades ou entre as categorias que as reúnem (LAVILLE e DIONNE, 1999). Vale comentar que, conforme já explicitado anteriormente, na grounded theory há uma sobreposição entre as fases de coleta e análise de dados. Assim, toda a fase de análise de dados começou a partir da elaboração das primeiras notas de campo e somente terminou com a redação do trabalho final. Na análise dos dados, foi de importância também a utilização dos principais conceitos referentes à fenomenologia: redução fenomenológica, redução eidética e ausência de pressupostos. Devido à grande carga de trabalho composta por tarefas mecânicas associadas ao gerenciamento de fragmentos de textos e elementos construídos pelo pesquisador ao longo do processo de análise, é possível recorrer ao que pode ser chamado de “programas de apoio a análise qualitativa” (BANDEIRA-DE-MELLO, 2006). Esses softwares contêm uma variedade de propriedades, como: mecanizar tarefas de organização e arquivamento de dados; facilidade para armazenar os comentários dos pesquisadores que podem ser ligados a palavras-índices ou segmentos de textos; propriedades para definir ligações entre palavras- índices, utilização de filtros, de tal modo que a busca de segmentos de textos possa ser 159 restringida por certas exigências (KELLE, 2002); e auxiliar o desenvolvimento da teoria e auxiliar na redação dos relatórios finais (MUHR, 1991). Em todo o processo de análise de dados, utilizei um software de tratamento de dados qualitativos, o ATLAS/ti, versão 4.1, desenvolvido pela Scientific Software Development. Este software foi criado, principalmente, visando à construção de teorias e tem como principal função o gerenciamento de dados textuais. A partir do seu uso, quatro princípios norteiam os procedimentos de análise pelo pesquisador: a) visualização: gerenciamento da complexidade do processo de análise, mantendo o contato do usuário com os dados; b) integração: a base de dados e todos os elementos desenvolvidos na análise são integrados em um único projeto; c) casualidade (serendipity): facilita a descoberta e os insights casualmente; e d) exploração: a interação entre os diferentes constitutivos do programa promove descoberta e insights (MUHR, 1991; BANDEIRA-DE-MELLO, 2006). Para operar o software Atlas/ti e compreender os relatórios gerados, é necessário conhecer seus principais elementos. O QUADRO 16 apresenta uma breve descrição de cada uma desses elementos importantes. QUADRO 16 – Os elementos do Atlas/ti ELEMENTOS TRADUÇÃO DESCRIÇÃO Hermeneutic Unit Unidade hermenêutica É composta de todos os dados e demais elementos. Neste trabalho, nomeei a Unidade Hermenêutica de “Consumo de eletrônicos por consumidores de baixa renda” Primary Documents Documentos primários Reúne todos os documentos relativos às notas de campo, entrevistas e outros materiais importantes. Na pesquisa, foram gerados mais de 50 documentos. Quotes Citações Compõem-se de fragmentos de textos que são ligados a um código. Na pesquisa, foram geradas 1.388 citações. Codes Códigos São os conceitos gerados a partir das interpretações do pesquisador e podem estar associados a uma citação ou a outros códigos. São indexados pelo nome. Neste trabalho, foram gerados 359 códigos. Memos Memorandos Podem ser utilizados para descrever o histórico das análises, bem como as interpretações do pesquisador. Foram geradas ao longo de todo o processo 32 memorandos. Netviews Esquemas São as representações gráficas das associações entre os códigos. O tipo de relações entre os códigos é representado por símbolos, conforme será apresentado no Quadro 16. Os principais esquemas construídos podem ser visualizados no capítulo 8. Comment Comentário Constituem-se de registros ou comentários do pesquisador ao longo do processo de análise e interpretação. Fonte: Elaboração própria com base em Muhr (1991) 160 Um dos principais recursos do Atlas/ti é a possibilidade de construção de esquemas nos quais são apresentadas as associações entre os códigos. Estas relações são representadas por símbolos propostos pelo software. O QUADRO 17 lista os conectores e seus símbolos. QUADRO 17 – Conectores com símbolos e descrições utilizados no Atlas/ti SÍMBOLO DESCRIÇÃO DO ATLAS/TI DESCRIÇÃO DAS RELAÇÕES == is associated with O código-origem está associado com o código-destino [] is part of O código-origem é uma parte que compõe juntamente com outras o código-destino => is cause of O código-origem causa a ocorrência do código-destino (relação causal) <> contradicts O código-origem contradiz o código-destino is a is a O código-origem é um tipo, ou forma, do código-destino *} is property of O código-origem é propriedade da categoria (código- destino) Fonte: Elaboração própria com base em Muhr (1991) Ainda fazendo parte de todas as etapas de análise de dados, é importante salientar a utilização de técnicas propostas por autores como Strauss e Corbin (2008) e Charmaz (2006) para contribuir no aprimoramento da qualidade da teoria gerada. Entre essas técnicas podem ser citadas: a triangulação, checagem com os entrevistados, tempo em campo e auditorias. O QUADRO 18 descreve, no tocante a essas técnicas, o que foi conduzido nessa tese. 161 QUADRO 18 - Técnicas utilizadas para aprimorar a qualidade da teoria gerada TÉCNICAS DESCRIÇÃO UTILIZAÇÃO NA TESE TRIANGULAÇÃO Essa técnica prevê a utilização de múltiplas fontes de dados na busca por divergências que podem revelar novos “entendimentos” sobre o fenômeno. A triangulação foi feita com base em entrevistas com profissionais que convivem com o público pesquisado por vários anos. Ademais, a técnica de observação foi utilizada para confirmar o discurso dos entrevistados. CHECAGEM COM OS ENTREVISTADOS A cada rodada de entrevistas, os dados são devidamente checados com os entrevistados. A pesquisa de campo desenvolveu-se em três grandes etapas. Porém, a fim de se evitar acúmulo de material advindo das entrevistas e notas de campo, optei por analisá-las à medida que estavam acontecendo. Após as análises, voltava-se aos entrevistados para checagem. TEMPO NO CAMPO O pesquisador deve manter-se em campo até atingir a saturação teórica. O contato com os pesquisados durou mais de 14 meses, desde o início da coleta de dados até a última entrevista. AUDITORIAS Elaboração de notas e esquemas a fim de facilitar o trabalho de outros pesquisadores no resgate e confirmação dos resultados encontrados. Foram criados três roteiros com questões de auditoria para auxiliar os leitores na avaliação do processo de pesquisa e da fundamentação empírica da teoria. Fonte: Elaboração própria Os roteiros de auditorias são formas importantes de avaliar tanto o processo de pesquisa quanto a fundamentação empírica da teoria. Assim, achei adequado elaborar três roteiros de auditoria relacionados às etapas de trabalho de campo, análise de dados e construção da teoria. Esses roteiros podem ser visualizados nos QUADROS 19, 20 e 21. QUADRO 19 – Questões a serem observadas na auditoria para a etapa de trabalho de campo QUESTÕES PARA A AUDITORIA PARA A ETAPA DE TRABALHO DE CAMPO Como as entrevistadas foram escolhidas? Quais foram as características dessas entrevistadas consideradas relevantes para a sua escolha? Como foram construídos os roteiros de entrevistas semiestruturadas? Como eles foram alterados ao longo da pesquisa para permitir um melhor entendimento dos fenômenos e maior densidade das categorias? Com base em que categorias foi feita a amostragem teórica? Isto é, como as formulações teóricas guiaram parte da coleta de dados? De que forma as observações foram conduzidas ao longo do processo de pesquisa? Fonte: Elaboração própria com base em Strauss e Corbin (2008) e Charmaz (2006) 162 QUADRO 20 – Questões a serem observadas na auditoria para a etapa de análise de dados QUESTÕES PARA A AUDITORIA DA ETAPA DE ANÁLISE DE DADOS O que está acontecendo aqui? Quais são os processos sociais básicos? Quais foram as principais categorias que emergiram dos dados? Como e por que a categoria central foi selecionada? Foi uma descoberta rápida ou precisou de tempo para ser definida ? Como o processo social observado emerge? Como os participantes agem para construí-lo? Quais são os significados que os diferentes participantes atribuem ao processo? Como eles falam sobre ele? Como eles enfatizam esse processo? Fonte: Elaboração própria com base em Strauss e Corbin (2008) e Charmaz (2006) QUADRO 21 – Questões a serem observadas na auditoria para a etapa de construção da teoria QUESTÕES PARA A AUDITORIA DA ETAPA DE CONSTRUÇÃO DA TEORIA Foram gerados conceitos a partir dos dados? Os conceitos estão relacionados nas proposições? Os resultados parecem ser significativos para a área substantiva? A teoria tem poder para perdurar e tem potencial para participar dos debates acadêmicos e profissionais? Houve casos em que as hipóteses não explicaram o que estava acontecendo com os dados? Fonte: Elaboração própria com base em Strauss e Corbin (2008) e Charmaz (2006) Por fim, cabe salientar a importância dos memorandos. Sua elaboração constitui um passo intermediário entre a coleta de dados e a escrita do relatório final de pesquisa. Os memorando constituem um método crucial na grounded theory, pois eles “aprontam” o pesquisador para analisar os dados e códigos no processo de pesquisa. Assim, escrever sucessivos memorandos ao longo do processo de pesquisa mantém o pesquisador envolvido na análise e ajuda a aumentar o nível de abstração de suas ideias. Ademais, por meio de memorandos, o pesquisador pode construir notas analíticas para explicar e preencher categorias (CHARMAZ, 2006). A partir dessas orientações, foram criados ao longo de todo o processo de análise de dados 32 memorandos, a fim de facilitar a compreensão e interpretação. 163 6.6 Retorno à literatura O retorno à literatura constitui a última fase do processo de pesquisa, envolvendo o método da grounded theory. Pode-se dizer que é uma etapa importante, visto que é o momento em que o pesquisador (re)encontra-se com a literatura existente sobre o tema investigado, a fim de comparar as proposições identificadas pela teoria substantiva. No caso desta tese, optei por elaborar o capítulo 9 com essa finalidade. Esgotadas as discussões referentes ao percurso metodológico adotado na tese, julga-se adequado focar em questões relativas à análise dos resultados. Assim, o próximo capítulo tem por objetivo apresentar as experiências de consumo de eletrônicos dos consumidores de baixa renda tal como percebida por eles. 164 7. O CONSUMO DE ELETRÔNICOS NA PERCEPÇÃO DOS CONSUMIDORES DE BAIXA RENDA Como a teoria substantiva gerada na pesquisa deve ser capaz de entender o processo de consumo de produtos eletrônicos a partir das experiências dos consumidores de baixa renda, inicialmente, neste capítulo, serão descritas os principais elementos que emergiram ao longo do trabalho de campo e das análises, os quais, por conseguinte, farão parte dos esquemas que comporão a teoria substantiva. Para isso, foram utilizados como principal fonte de dados primários os depoimentos de treze consumidoras moradoras no Aglomerado da Serra, complementados com declarações coletadas por meio de entrevistas conduzidas com proprietária de loja no bairro, dirigentes de ONGs atuantes na região e proprietário de uma oficina de conserto de aparelhos eletrônicos estabelecida nas proximidades. Além disso, como a pesquisa foi idealizada e conduzida embasada numa “inspiração etnográfica”, julgou-se adequado incorporar ao texto trechos de diário de campo elaborado pelo autor ao longo de seu trabalho com os entrevistados. Como na descrição dos procedimentos referentes ao percurso metodológico, utilizarei a primeira pessoa do singular para redigir este capítulo por julgar que, conforme ressaltado por Mello (2002), o pesquisador em uma investigação baseada no método da grounded theory deve ser o principal responsável pela coleta, análise e interpretação dos dados. Em outras palavras, o pesquisador, deve tanto comprometer-se com os resultados quanto assumir sua identidade e revelar as razões de suas escolhas ao longo de suas análises. Cumpre destacar que essa tem sido uma prática nos trabalhos que utilizam a grounded theory. Também optei por reproduzir no texto as citações tais como foram ditas na íntegra, com erros de grafia e concordância ou com uso de gírias, por considerar que desta forma estaria sendo fiel à realidade de meus entrevistados. Duas considerações, finalmente, tenho a fazer com relação a esse capítulo. A primeira remete à minha intenção de, ao invés de tentar chegar a uma versão “real” dos fatos, busquei, a todo momento, apontar as variações e as contradições que, invariavelmente, fazem parte dos diversos fragmentos narrativos da pesquisa que conduzi. A segunda é de que não parti de nenhuma construção teórica dada a priori e produzida externamente, teoria que eu poderia estar tentando provar ou refutar. Parti dos dados das interpretações que fui construindo acerca deles. A intenção é que, ao percorrer dessa maneira os meandros dos discursos e do conjunto de discursos e da vivência a que se referem, perseguindo os detalhes, diferenças, incoerências, 165 ambiguidades, pudesse construir uma interpretação para ampliar o entendimento sobre a sociedade em que vivem os informantes e sobre como eles a vivem. 7.1 O bairro no seu cotidiano E é isso, Marcelo. A vidinha aqui é até interessante. (Soraia) Conforme descrito na seção 6.3.1, o bairro no qual a pesquisa foi conduzida é uma das áreas mais pobres do município de Belo Horizonte. Mas o que importa nesta seção da tese é descrever um pouco da “geografia” do lugar, como as pessoas moram, vivem, se relacionam, constroem e realizam seus sonhos, consomem, enfim, “vivenciam” as suas experiências do cotidiano. Não poderia deixar de registrar algumas impressões que tive nas primeiras ocasiões em que visitei o bairro. Uma dessas ocasiões deixei registrada em notas no meu diário de campo datadas de 14/06/2008, conforme relato a seguir. “Era sábado e por volta das 10 e meia eu e mais duas pessoas pegamos o meu carro e fomos levar alguns mantimentos para doar para duas moradoras do Cafezal. Estava um pouco apreensivo, por dois motivos. Primeiramente, porque seria a primeira vez que conheceria aquela parte da favela, que é considerada a mais movimentada. Em segundo lugar, porque era a primeira vez que iria lá no meu carro. Até então, conhecia apenas uma parte da favela que sempre tive acesso a pé. À medida que o carro ia subindo por ruas estreitas e com alta declividade, minha apreensão aumentava consideravelmente. Para minha surpresa, todas as ruas eram asfaltadas. Passamos por vários “becos” onde mal conseguia desviar das muitas pessoas e crianças que caminhavam nas laterais. Observei, devido à “desordem” e ao aparente “caos” dos becos onde estava passando, a inexistência de quaisquer placas de trânsito que pudessem “disciplinar” o fluxo de carros e pedestres, como era comum em outras partes da cidade. Depois, vim a entender que as ruas na favela eram para o trânsito de pessoas e somente eventualmente para a passagem de carros. Por todos os lados, era possível verificar muitas casas pequenas, construídas de formas desordenada, muito próximo do local de trânsito e sem reboco. Em quase todos os lugares, ouvíamos sons altos, com diferentes tipos de música. As pessoas nos olhavam e, principalmente as mais velhas, se preocupavam em nos cumprimentar. Não encontrei com 166 outros veículos. Somente com algumas bicicletas e motocicletas. Passamos também por um ponto de intenso fluxo de pessoas entrando e saindo de pequenos comércios, como mercearias e outros estabelecimentos simples. Tudo muito simples. Como estava dirigindo e precisava manter a atenção para não atropelar nenhum pedestre, não pude visualizar cuidadosamente o conteúdo dos comércios. Em alguns minutos, chegamos a uma espécie de oficina, ou ferro-velho, onde deixamos o carro. O dono do estabelecimento era conhecido dos meus acompanhantes e permitiu que deixássemos o carro lá. Descemos uma pequena rua e logo tivemos acesso a um beco comprido para ter acesso à casa da senhora que fomos visitar. A partir de certo ponto, o caminho que percorremos tornou-se de terra e as casas ficavam ainda mais pobres. Passamos por um local, onde parecia um pequeno mercadinho, que vendia balas e doces. Novamente, por quase todas as casas que passávamos, era possível ouvir som de músicas de diferentes estilos ouvido em alto volume. Logo acima, avistamos a casa da dona Iraci, que estava acompanhada de uma de suas filhas. Ela nos recebeu com muita alegria e satisfação. Ela nos relatou que nos últimos dias estava passando bem e começava a ter disposição para andar e fazer serviços domésticos. Quando estávamos conversando, chegou outra filha dela, que morava nas redondezas. A casa era muito simples, com reboco envelhecido e com falhas. A casa era composta por três cômodos: uma pequena sala sem janelas, um quarto mais amplo e uma pequena cozinha. Não encontrei banheiro. Havia luz elétrica. Apesar do chão de cimento com muitas rachaduras, as moradoras pareciam ter cuidado com a limpeza e com a ornamentação. Nas paredes, encardidas e com reboco trincado, era possível ver diversos retratos da dona Iraci mais nova, retratos de suas filhas em diferentes idades e um quadro de uma santa católica. Na sala, muito apertada, havia uma cama com uma colcha simples, uma estante com diversos enfeites simples e um som bastante moderno da marca Panasonic no topo. Também verifiquei uma televisão de 20 polegadas de marca Sharp em cima de uma pequena mesa com uma toalha. Percebi que na televisão estava instalada uma pequena antena. Na cozinha, verifiquei um fogão e uma geladeira nova. Não cheguei a entrar no quarto, mas da sala deu para perceber que havia um pequeno frigobar” Outro momento importante pode ser encontrado no meu diário de campo datado de 21/06/2008. “Era a segunda vez que subia o morro de carro. Desta forma, minha apreensão era bem menor do que dias atrás. Assim, pude perceber mais detalhes do que no sábado anterior. 167 Muitas pessoas caminhavam nas laterais das ruas e parecia haver um maior movimento de carros, pois, por diversas vezes, tive que parar para que pudesse dar passagem para outros carros. Conforme já tinha verificado no sábado anterior, por todos os locais que passávamos era possível ouvir sons oriundos de diversas casas. Pude verificar melhor os vários tipos de comércios existentes: um comércio de verduras, frutas e legumes; uma loja de roupas, onde pude visualizar até alguns manequins; uma pequena banca com CDs e DVD piratas; botecos com bastante movimento. Numa de minhas paradas para dar passagem a outros carros, pude ver uma pequena loja em que era possível comprar equipamentos de motocicletas. Após deixarmos o carro na oficina, caminhamos para a casa da dona Iraci. Neste caminho, sempre encontrávamos com algumas pessoas que nos cumprimentam com uma certa alegria. Porém, também era possível ver, em cada ponto, alguns rapazes que nos olham com um certo ar de desconfiança. Chegamos na casa da dona Iraci, que estava sozinha. Ela ouvia um CD que não consegui identificar de qual artista. Na volta, passei por uma casa muito simples, sem reboco onde uma mulher parecia lavar algumas roupas. Como a porta de entrada estava aberta, pude verificar em um dos pequenos cômodos, que assemelhava-se a uma cozinha, uma geladeira duplex que parecia nova e um fogão que aparentava ter saído da loja há poucos dias. Em outros vários momentos que estive no bairro, pude perceber um cenário com características típicas de um bairro residencial ou, até mesmo, de cidade do interior, onde as crianças podem frequentar a rua longe do olhar cuidadoso dos pais e responsáveis. No interior do bairro, era comum encontrar crianças andando de bicicletas, soltando pipas ou até sentadas na calçada, conversando ou brincando com objetos simples. O comércio existente era bastante simples, quase sempre construído junto à casa de seus proprietários e funciona como uma continuação de sua residência. O atendimento, normalmente, é realizado pelo dono ou por algum de seus familiares como mulher e filhos. Normalmente vendem produtos básicos e não têm muito estoque disponível. A fachada e o interior do estabelecimento, no que tange ao acabamento não era muito diferente do que é verificado nas casas. Ou seja, não existe uma preocupação com o acabamento. É bastante comum encontrar pequenos botequins que, principalmente nos finais de semana, ficam bastante movimentados, com homens bebendo cerveja e comendo algum tira- gosto. Esses estabelecimentos também vendem produtos de primeira necessidade e invadem o espaço dos becos. Ademais, é fácil encontrar diversos animais domésticos, principalmente 168 cães, perambulando pelos becos. Por onde se passa, ouvem-se sempre músicas em alto volume. Às vezes, umas se confundindo com as outras”. Relevante é a percepção da relação de amizade e “proximidade” entre os moradores do bairro. Em vários trechos dos meus diários de campo, pude registrar situações em que as pessoas que eu acompanhava sempre se mostravam simpáticas e corteses com todos os vizinhos e moradores que encontravam no caminho, cumprimentando-os com sorriso nos lábios. As características geográficas do bairro facilitavam esse contato. Em primeiro lugar, devido ao grande número de becos estreitos, o contato visual é bem mais facilitado. Em segundo lugar, a proximidade das casas e o fato de as casas serem muito próximas do local de trânsito das pessoas também propiciam maior facilidade de contato. Outra questão refere-se à alta declividade dos terrenos nos quais se assenta boa parte do bairro, que força a pessoas a caminharem mais lentamente. As crianças mostram-se sempre “abertas” a conversarem, mesmo com uma pessoa “estranha”, como era meu caso. Em uma de minhas andanças no bairro, conheci uma garota que estava com seu irmão menor, com aparência de uns 5 anos. Ela me disse que tinha 10 anos e morava no Cafezal desde que nascera. De forma despretenciosa, comecei a conversar com ela. Fiquei um pouco surpreso com a “maturidade” com que ela respondia aos meus questionamentos, fato que constatei em diversas outras ocasiões ao conversar com as crianças. Ela me disse que sua mãe estava trabalhando naquele dia e que ela e seus outros irmãos menores ficavam em casa com uma irmã mais velha, de 19 anos. Relatou que ela vive numa casa de dois cômodos (quarto e cozinha) com seus outros seis irmãos. Chegou até a dizer que sua “casa é a mais feia”. Eles dormem, normalmente, juntos uns com os outros. O único que dorme numa cama separada é seu irmão de 16 anos. Ao perguntar sobre o que tem em casa, ela me disse que eles têm um fogão, uma televisão “grande”, um DVD e um som. Ela disse que gosta de assistir televisão e, por diversas vezes, assiste ao único filme que possui no DVD. Sua irmã mais velha também usa o DVD para assistir uma fita dos Rebeldes. Ao perguntar onde ficam estes aparelhos, ela me relatou, com certa riqueza de detalhes, que eles ficam numa estante no quarto. Disse também que seu irmão chegou a ganhar um computador, porém sem o monitor. Este computador também fica na estante. Perguntei para ela o que gostaria de ter em casa. Ela respondeu prontamente dizendo que preferiria ter uma geladeira, para as comidas não azedarem, mas ressaltou que queria dar para sua mãe uma casa nova, mais bonita e com um quarto para cada irmão. 169 Quanto aos hábitos de compra, por diversas vezes colhi depoimentos de pessoas que disseram não ter hábitos de fazer compras para casa poucas vezes por mês, nem em grande quantidade. Como muitos dos moradores recebem “cestas básicas”, seja das empresas em que trabalham ou de entidades beneficentes atuantes no bairro, eles, não raramente, preferem fazer as compras de mantimentos e produtos de uso cotidiano em pequenas mercearias do próprio bairro ou nos arredores. Por isso, sempre notei um grande fluxo de pessoas nos pequenos mercados. Observei também que poucas famílias possuíam carros, o que forçava grande parte deles a utilizarem de serviços de transporte coletivo, principalmente os ônibus que atendem ao bairro. Muitos dos moradores relataram que tinham que andar um grande trecho para ter acesso às linhas de ônibus, pois os veículos não conseguiram ter acesso à boa parte das ruas estreitas e becos da favela. Contudo, um meio de transporte mais comum no bairro, utilizado principalmente pelos jovens, é a motocicleta. 7.2 – A casa e a família dos moradores Ainda que não se possa generalizar, é possível determinar que a maioria das casas da favela segue um mesmo padrão de construção, tamanho e acabamento. De acordo com as pessoas que conversei e tendo em vista as casas que visitei, pode-se dizer que boa parte das moradias é composta por poucos cômodos (quatro ou cinco, no máximo) e se divide normalmente em: sala, um ou dois quartos, cozinha e banheiro, independente do número de moradores. É bastante comum a construção de casas umas junto às outras, em locais que os moradores chamam de “área”, a qual se constitui no terreno possuído pela família. Esse fato dificulta uma delimitação perfeita entre as moradias, pois o consumo de luz e água é único. Quanto ao acabamento, boa parte das moradias não tem reboco, o chão é de cimento e a cobertura é de laje, embora seja comum também a cobertura de telhas. Assim, é difícil encontrar casas com “luxos” como pinturas, azulejos e pisos. A maioria das casas, principalmente da parte mais “nobre” da favela, é servida por rede de água e esgoto. Desde o início da minha convivência no bairro, comecei a observar que uma das características marcantes de várias casas é que elas estão constantemente em obras. Depois, vim a saber que isso acontecia em virtude da disponibilidade do orçamento para a realização da construção de um novo quarto, de uma sala maior ou de um banheiro mais bem “acabado”. 170 Valorizam-se pouco os “detalhes” relacionados ao acabamento dos banheiros e cozinhas. É usual deixar canos da rede de água e fiação de chuveiros, por exemplo, à vista. Ademais, percebi que, em geral, devido ao modo improvisado e sem planejamento como as moradias são construídas, os cômodos são escuros e sem ventilação. Vale ressaltar, porém, que em algumas regiões mais altas da favela o nível de construção das casas cai consideravelmente, sendo possível encontrar “barracões” construídos com restos de madeiras e lata, não tendo acesso à rede de água e esgoto. Dessa forma, a percepção do pouco espaço, aliada à constatação de um certo “entulhamento” dos móveis e do aspecto inacabado das construções, leva ao observador, em um primeiro momento, a uma sensação de “bagunça” ou “desordem”. Porém, essa sensação vai aos poucos sendo transformada, pois pode-se observar também que existe uma preocupação explícita por parte das moradoras com o cuidado com a moradia no sentido de torná-la mais agradável. Além do mais, é bastante comum o uso de enfeites, quase sempre, bastante coloridos, quadros nas paredes, cortinas, toalhas nas mesas e outros objetos decorativos em geral, ainda que simples. A minha mãe gosta muito dessas coisas de enfeite. Então, ela compra mais coisas decorativas mesmo. (Jeane) Ah, é. Eles estão cheio de bichinhos. Você precisa de ver! Flor, tudo tem... Ah, eu gosto, muito... Eu gosto de flor... Minha menina me deu um vaso de flor desse tamanho aqui! Aí, eu pus perto do telefone ali. Mas está lindo demais! (Marta) Você vai lá, você encontra cada coisa interessantinha. Então, você põe lá, põe lá na sala: enfeite de rosas, de quadro também gosto... Apesar que... Ainda não tem, porque eu tô precisando pintar lá na sala. Eu gosto de enfeite de quadro ... Eu tenho um conjuntinho chinês que eu ganhei, de chá, pra tomar, que está na sala, para enfeitar. Ah... tem... Tem aqueles bonequinhos de artesanato, sabe, tem os bonequinhos também com dedicatória. Todas coisas que eu acho, que eu vou na feira, que eu acho interessante e acho que vai ficar bonitinho na minha sala e eu compro. (Eliane) Bom demais! E minha estante é cheinha. De cima embaixo. Essas coisas pequenininhas eu gosto demais... Você passar em uma casa e tá limpinho. E lá no Cafezal tem muito isso. Você pode entrar nas casas, e são tudo muito limpo, muito arrumada. São muito limpo e muito arrumado. Isso é muito bom, eu gosto...(Neusa) É muita coisa. Minha mãe gosta de muita coisa de vidro assim. Aí tem muita coisa, como é que chama? ... Luminária de vidro, umas peças assim, uns vasos de vidro, umas coisas assim. (Jeane) 171 Nesse caso, o enfeite tem um valor simbólico interessante. Verifiquei essa questão ao conversar com algumas donas de casa, principalmente as mais velhas, que afirmavam que embora suas casas fossem simples e mal acabadas, porém tinham orgulho em trazê-la sempre limpa e enfeitada. Sendo assim, o enfeite tem o papel de explicitar o cuidado e o asseio da moradora para com a casa. De interesse para o objetivo desta tese é a constatação de que na maioria das casas, apesar do aspecto simples e inacabado, é comum encontrar todos os tipos de aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos existentes, não raramente, os de última geração. Nesse sentido, os relatos a seguir foram retirados de diversos pontos de meu diário de campo, nas diversas visitas que fiz em diferentes casas dos moradores da favela do Cafezal. “Uma das casas que visitei naquele domingo foi a da dona Isabel, mãe da Beatriz, que é uma das minhas informantes mais importantes do Cafezal. Nesta casa, conversei informalmente com a responsável pela residência, juntamente com uma moradora da favela há mais de trinta anos. Resolvi não utilizar o gravador, para dar um aspecto mais informal à conversa. Com relação à casa, pode-se dizer que trata-se de uma moradia parecida com as diversas outras que via na vizinhança. Logo na chegada, constatei um portão de ferro que demonstra baixo estado de conservação. Ao passar por ele, do lado esquerdo, tive acesso a um tanque e, no final de um pequeno corredor, um banheiro muito simples, com um vaso sanitário sem descarga e com uma porta de madeira muito fraca e também em péssimo estado de conservação. Como a dona Isabel trabalha em sua casa como cabeleireira, ela usa este tanque para lavar o cabelo das clientes. Mais à frente, vi um pequeno corredor escuro, ao qual no final, chegamos numa pequena sala onde funciona o salão de beleza. Nesta sala, pude encontrar uma cadeira simples de cabeleireira, onde os serviços são executados, um pequeno sofá e uma televisão de 20 polegadas, que estava em cima de uma cadeira bem velha. Desta pequena sala, foi possível ver um quarto de dormir, onde encontrava-se uma cama e um pequeno guarda-roupa. Todos os cômodos eram rebocados e pintados, e o chão nesta sala era de piso cerâmica de baixa qualidade. Em cima da cama, podiam se observar muitas roupas desarrumadas. Tanto a sala quanto o quarto não têm janelas, o que torna necessária a utilização de luz artificial constantemente. Desta sala, havia uma passagem para a cozinha da casa, à qual eu não tive acesso, mas pude perceber a existência de uma geladeira pequena, mas aparentemente nova, um fogão de quatro bocas e um liquidificador na pia. Durante todo o tempo de conversa, a televisão esteve ligada num volume que, por vezes, chegava a me incomodar. Ao conversarmos sobre o uso de aparelhos eletrônicos no dia a dia, dona Isabel 172 confirmou que ela não consegue ficar em casa sem estar pelo menos ouvindo a televisão, o que a leva a considerar o aparelho como uma “pessoa” da casa, pois ficava ligada o dia todo”. Outro relato relevante é o descrito a seguir. “A outra casa que visitei na semana seguinte foi a de uma moradora a poucos metros da dona Isabel. Todos a chamam de Eda. Para ter acesso à casa, é preciso descer uma pequena escada de cimento em curva. Como era a segunda vez que ia até esta casa, pude perceber que a porta de entrada estava sempre aberta, apesar do grande fluxo de pessoas na rua. O primeiro cômodo era uma sala de estar de pouco espaço. O chão era de cimento, mas parecia encerado. Da porta de entrada, pude visualizar um pequeno sofá e uma televisão de plasma de 42 polegadas, um pequeno som e um DVD num rack simples, decorado com vários enfeites. Nas duas vezes que fui à casa, a televisão estava ligada sem que ninguém estivesse assistindo. Pude perceber que a televisão estava sintonizada no canal de TV paga de desenho animado. A sala era escura e abafada, pois não tinha janela. A única fonte de luz vinha da porta. Fiquei bastante surpreso ao perceber que a televisão daquele porte e categoria estava “descontextualizada” do local e do tipo de móveis ao redor. Logo depois, tive acesso a um quarto de dormir, no qual encontrei duas camas beliche, uma cômoda de sucupira e um pequeno guarda-roupa com as portas ligeiramente abertas, pois pareciam empenadas. As camas estavam desarrumadas, com muitas roupas. Neste quarto, havia uma janela com uma cortina simples. Todas as paredes da casa eram rebocadas e pintadas. Nas paredes, foram coladas alguns desenhos e, então, colados alguns nomes. Pude verificar que algumas partes da parede estavam rabiscadas de giz de cera. Em cima da cômoda, vi uma televisão de 29 polegadas ligada a um play station. A televisão foi “ornamentada” com diversas figuras autocolantes de super-heróis. Ao sair do quarto foi possível visualizar ao fundo a cozinha da casa, que estava ocupada com uma geladeira, um fogão e uma pequena mesa. Tentei, por diversas vezes, marcar uma entrevista ou, pelo menos, uma conversa informal com essa moradora sobre a utilização de produtos eletrônicos, mas ela sempre arranjava uma desculpa e se negava a conversar qualquer assunto comigo”. Outra descrição de uma das casas que visitei pode ser verificada a seguir. “A casa era muito simples, com reboco simples com falhas, e de telha. A casa era composta por três cômodos: uma pequena sala sem janelas, um quarto mais amplo e uma pequena cozinha. Não encontrei banheiro. Havia luz elétrica. Apesar do chão de cimento com muitas rachaduras, as moradoras pareciam ter cuidado com a limpeza e com a ornamentação. Nas paredes encardidas, era possível ver diversos retratos da dona da casa mais jovem, 173 retratos de suas filhas e um quadro de uma santa que não consegui identificar. Na sala, muito apertada, havia uma cama com uma colcha simples, uma estante com diversos enfeites e um som bastante moderno da marca Panasonic no topo. Também verifiquei uma televisão de 20 polegadas de marca Sharp em cima de uma pequena mesa com uma toalha. Percebi que na televisão estava instalada uma pequena antena. Na cozinha, verifiquei um fogão e uma geladeira nova. Não cheguei a entrar no quarto, mas da sala deu para perceber que havia um pequeno frigobar”. O importante a ressaltar é que muitas das casas, principalmente aquelas cujos proprietários são moradores antigos do bairro, representam algo que me “saltou aos olhos” em várias conversas. A casa para eles é a “consolidação” de muitos anos de trabalho e sacrifício, e significa “conquista”, “orgulho”, “dedicação”, “recompensa”. Alguns deles chegam a se emocionar ao comentarem as dificuldades e carências a que a família foi submetida ao longo de anos a fim de conseguir construir sua casa própria e mobiliá-la adequadamente. Outros também se recordam, com certa dose de nostalgia, dos inúmeros problemas que enfrentaram quando o bairro ainda era “tudo matagal” e não havia rede de esgoto, água encanada, energia elétrica e transporte próximo. Na loja de móveis instalada no Aglomerado da Serra, ouvi algumas histórias contadas pelos vendedores e entregadores que ilustram a questão do pequeno espaço existente nas casas. Em uma dessas situações, um guarda-roupa precisou ser devolvido porque não conseguiu entrar pela porta, nem pela janela da casa do comprador, mesmo sendo parcialmente desmontado. Outra vez, um dos entregadores caiu em um cômodo da casa ao lado ao tentar se apoiar na parede, que era feita de um tipo de madeira de qualidade bastante inferior. Também não é incomum precisar pedir a permissão para invadir o quintal ou a “laje” do vizinho para fazer passar algum móvel de maior tamanho. No tocante às famílias dos moradores, pude chegar a algumas constatações que parecem interessantes para minha pesquisa. Primeiramente, verifiquei a existência de novos “arranjos” familiares que fogem ao tradicional “marido-mulher-filhos”. Pude constatar isso desde os primeiros contatos com os moradores do Cafezal. Essa impressão foi aumentando à medida que avançava minha pesquisa de campo. Muitas das minhas entrevistadas mais velhas tiveram oito filhos. Porém, isso não foi característica marcante das mulheres mais velhas. Das minhas entrevistadas que estavam na faixa dos trinta anos, uma delas tinha oito e outra cinco filhos, número muito acima da média nacional. 174 Para corroborar com esse fato, uma vez, por exemplo, tentei conduzir uma conversa com vários meninos e meninas entre oito e doze anos sobre sua família, seus hábitos, etc. Praticamente obtive os mesmos relatos. As crianças eram oriundas de famílias numerosas, pois muitas delas tinham mais de cinco irmãos. Além disso, moravam com avós, tios, tias e padrastos. Como estava próximo do Dia dos Pais, perguntei a eles quem vivia com seu pai “legítimo”. Das nove crianças que estava conversando somente uma delas relatou que vivia em sua casa com seu pai biológico. Em outra circunstância, algum tempo depois, fiquei um tanto intrigado quando perguntei ao grupo de crianças com quem eles moravam. Quase todos disseram fazer parte de uma estrutura familiar que foge às regras convencionais de uma família tradicional formada por pai, mãe e filhos. Com a exceção de um menino que relatou que mora com seu pai, mãe e seus quatro irmãos, todos os outros disseram morar com a avó, tios e tias. Alguns até disseram morar com outros primos na mesma casa. Duas meninas me disseram não conhecer seus pais. Uma delas me informou que mora com seu padrasto. Também não é incomum, como relatou uma de minhas entrevistadas, que mesmo em casas pequenas, residir pessoas com fraco laço de parentesco. Outras vezes, sobrinhos, afilhados e, até mesmo, filhos de parentes ou vizinhos mais pobres são incorporados à família. No caso de uma senhora que conversei, ela morava em uma casa de apenas três cômodos, com um de seus filhos, uma nora, a irmã da nora juntamente com seu filho pequeno. Ao conversar com moradores mais velhos, pude ter a mesma impressão. Uma senhora aparentando idade avançada me relatou uma vez que tivera dez filhos, nove mulheres e um homem. Apesar de nenhum filho morar com ela, ela tinha em sua casa sempre a presença de vários netos, quase sempre, por volta de oito ou nove deles. Ela afirmou, com certo sentimento de revolta misturado com indignação, que suas filhas não gostavam de cuidar das crianças e as “socavam” na sua casa para que ela cuidassem de todos eles. A percepção de profissionais que trabalham com moradores da região também ratifica essa constatação. As casas normalmente só têm uma mãe presente que trabalha que... mais arrimo de família... O pai que tem, provedor mas ausente. Então, assim, a história do pai ausente é impressionante. Ou pai ausente ou quando o pai está em casa, fica bebendo, batendo, fica não sei quê. Ou o pai foi assassinado, ou pai não conhecido ou mora em outra cidade. Isso é muito forte. (Daniel) Agora, tem um perfil da família. Poucos são os maridos que bancam dentro de casa. De um modo geral, os maridos já foram embora. Eles por problema de alcoolismo, droga e moral. Então minha grande preocupação com as meninas maiores é que rara, são raras as meninas que moram com o pai. De modo geral elas moram com o companheiro da mãe, e elas tão ficando mocinha. Então, isso tudo é problemático. 175 São esses novos formatos familiares. Não é uma família tradicional... Muitas... Isso na favela tem demais. A mãe, muitas vezes, tem filhas que são drogadas. Então, as avós que assumiram as netas, né... (Miriam) Aliada e complementar a esta questão dos novos “arranjos”, são plenamente perceptíveis os fortes laços familiares entre os moradores da favela do Cafezal. Isso fica explícito nas várias citações dos entrevistados. Continuo tendo aqui. Minha família continua aqui. Eu não, né, não vou deixar minha família de maneira alguma. E fazem muito barulho. Aí, eu acho que foi por isso também que eu resolvi a casar e morar um pouco distante. Mas eu sinto muita falta da minha mãe. (Beatriz) Eu moro com meus pais e com meus três irmãos e um primo que tá morando agora com a gente. E, direto e reto, sempre minha tia tá lá em casa. Então, digamos que são sete pessoas. (Ilma) Ah, eu sinto bem quando as minhas irmãs tão lá, que vão tudo pra lá, lá pra casa. Meu irmão... Aí que eu me sinto bem. (Celina) Sempre aniversário de um tem um churrasquinho. Tipo assim, sempre faz um caldo né. Nesse tempo mais frio faz um caldo, convida os parentes, que tudo mora perto, a minha família por parte da minha mãe, a família por parte do meu marido. Então, a gente sempre tá reunindo. (Diana) Lá em casa era muito badalado. Era um entra e sai. Natal lá na minha casa era muito... Na casa da minha mãe nós era seis irmãos. Agora são cinco, faleceu um. Então, a casa sempre foi muito cheia. Eu mais meu irmão, a gente sempre teve muito amigos, entendeu? Muito cheia, sempre festinha, sempre ficava lá. Então, muito bom, muito gostoso. (Eliane) Ah, eu vou lá todo dia na casa da minha mãe. Todo dia eu vou pra lá. Aí, eu saio de lá de noite. (Gisele) É assim, lá em casa são dois andares né. Eu moro na parte de cima e ela mora na parte de baixo. Minha mãe, ela é muito sozinha, sabe, Marcelo. Então, eu não saio da casa dela, não. Então eu e minha mãe assim, apesar de todas as diferenças, somos muito unidas. (Helena) Essas questões relacionadas tanto à casa como à família dos moradores da favela do Cafezal, parecem ter considerável influência na construção da identidade com o bairro e, consequentemente, nas experiências de consumo das famílias. 176 7.3 Identificação com o bairro Desde o início do trabalho de campo, uma das questões que se apresentou com maior dose de ambiguidade foi quanto à identificação dos moradores com a favela do Cafezal ou com o Aglomerado da Serra. Em meu diário de campo, em diversos pontos, é possível encontrar situações nas quais algum morador evitava nitidamente afirmar que morava na favela, referindo-se ao local com nomes de outros bairros limítrofes. Muitas vezes, eles chegavam a afirmar que residiam no bairro Santa Efigênia, Novo São Lucas e mais comumente, na Serra. Eu moro aqui na Serra ...” (Ilma) Eu adoro morar aqui. Gosto muito de morar aqui no Santa Efigênia. (Eliane) O dirigente de uma ONG atuante no bairro Serra chegou a me avisar que eu deveria, ao relatar o objetivo do meu trabalho, omitir a informação de que o estudo tinha como foco os moradores do Aglomerado da Serra, mas sim consumidores de produtos eletrônicos da região Centro-Sul de Belo Horizonte. Muito provavelmente a informação poderia gerar alguma resistência dos moradores decorrente do preconceito que muitos deles sentem ao informarem que moram em uma favela. A transcrição de uma fala de uma das minhas entrevistadas deixa isso bastante evidente. Porque eu queria morar num bairro, e não numa vila, entendeu? Por causa do preconceito... (Helena) No meu convívio com moradores do bairro, ouvi histórias de preconceitos com relação a jovens moradores da região. Em uma delas, um rapaz de aproximadamente 20 anos que trabalha em uma das ONG existentes na região, chegou para trabalhar pela manhã chorando, trêmulo e visivelmente transtornado. Algum tempo depois, quando pôde contar o que havia acontecido, relatou que, como tinha um problema cardíaco, o médico o havia recomendado andar com um remédio na carteira, que deveria ser ingerido caso tivesse alguma indisposição ou mal-estar. Naquele dia, ele foi parado por um grupo de policiais. Ao ser revistado, um dos policiais achou o referido comprimido, que havia amassado e virado um pó branco. O jovem foi agredido e obrigado ingerir o pó. Caso contrário, seria levado à delegacia. Como o remédio, entre outras funções, tinha um efeito vasodilatador, o rapaz tremia tanto pelo efeito do remédio quanto pelo sentimento de raiva, humilhação e vergonha que havia passado logo 177 pela manhã. Também ouvi diversas vezes moradores de pontos diferentes do Aglomerado afirmarem que, para evitar problemas com a polícia, eram obrigados a andar com a carteira de trabalho para comprovar que eram trabalhadores e “honestos”. Como a região se desenvolveu muito nos últimos anos, foi possível perceber que as pessoas mais velhas têm um sentimento mais desenvolvido de identificação com o bairro, pois tiveram a oportunidade de conhecer mais outros moradores, de ver o bairro crescer e de desenvolver um sentimento mais forte de “grande família”. Já os moradores mais jovens se mostram um pouco menos engajados e menos “integrados” à comunidade. Contudo, apesar de ressaltarem que gostam do lugar e se sentem felizes com a vizinhança, é evidente que eles prefeririam morar em outro lugar. Dessa forma, a dualidade é marcante, e os discursos, não raramente, são contraditórios, o que pode levar à possibilidade de uma mistura de sentimentos e sensações. Ah, eu queria comprar uma outra casa e morar em outro lugar. (Fátima) Agora, meu irmão não ... Ele não fala nem onde ele mora, porque ele não gosta muito, né de ir lá e levar amigo lá em casa. Ele não leva de jeito nenhum, ele tem pavor, tem pavor, tem pavor! (Ilma) É muito perto do centro, sabe, mesmo por esta tragédia que eu passei, mas eu me sinto muito bem aqui, graças a Deus. Meus filhos nasceram aqui, foram criados aqui, nunca tiveram problema com ninguém lá, sabe ? (Neusa) Os meus vizinhos, em todos os lugares que eu morei aqui no Cafezal, meus vizinhos foram ótimos, ótimo, muito bom mesmo. (Neusa) Os vizinhos são, assim, uma, parentes mesmo, continuação da minha casa. São muito próximos da gente. (Eliane) O sonho do meu marido é mudar daqui. Então, a gente está esperando a indenização pra gente poder mudar, sabe... Então, quando a gente for, aí nós vamos comprar em outro lugar, se Deus quiser. (Marta) Meu marido se pudesse a gente... Ele gostaria de mudar pra um bairro mais distante. Eu, não. Principal, assim, a questão de trabalho, entendeu? A questão das escolas, da confiança e da convivência com as pessoas que eu já tenho desde criança, entendeu? Se eu precisar de sair, de viajar, de sair e deixar meus filhos na casa de uma pessoa que eu sei que vai olhar, de confiança, eu tenho onde deixar e posso ir tranquila, entendeu? Aí, eu já tive a oportunidade, já conversei, mas eu não quero mudar daqui, não. De jeito nenhum. (Eliane) A coordenadora de uma creche da Prefeitura de Belo Horizonte que atua na região do Cafezal cita uma situação que percebi muito claramente no meu convívio na região. Muitos moradores, ao receberem um imóvel da Prefeitura, muitas vezes, se negam a mudar de suas casas. 178 Ah, mais aqui é meu pedaço, eu gosto é daqui, já acostumei aqui, eles tão me oferecendo predinho... Umas famílias estão resistindo de ir para os predinhos, porque eu já acostumei com o meu canto. Eu quero a minha casa. (Miriam) Muitos moradores têm sido retirados de suas casas e transferidos para moradias que têm sido construídas por meio do projeto Vila Viva, iniciativa da PBH em parceria com o Governo Federal para diminuir o número de favelas e vilas da cidade. Mas, em muitos casos, a resistência tem sido grande por parte dos moradores, que optam por receber uma indenização e morarem mais perto de suas residências originais. 7.4 Violência e tráfico Mais a televisão pra nós tá sendo usada como uma forma de tirar ele da violência, né, tirar ele da rua. (Luciana) Ainda que não seja objeto de análise a questão da violência e do tráfico de drogas existente no bairro em que conduzi a pesquisa, optei por acrescentar esta categoria por alguns motivos. Inicialmente, porque as questões relacionadas à violência e ao tráfico sempre emergiam tanto das conversas informais com os moradores quanto das entrevistas semiestruturadas com as entrevistadas da pesquisa. Este fato fica evidenciado nos inúmeros trechos do meu diário de campo, em que, por diversas vezes, presenciei comentários e ouvi histórias dos moradores, inclusive até de crianças, sobre o assunto. Em segundo lugar, por acreditar que, de alguma forma, a violência poderia influenciar os hábitos dos moradores, interferindo em suas experiências de consumo. É bastante comum ouvir comentários dos moradores, principalmente após os finais de semana, de que o filho de tal moradora foi assassinado e que “fulano” foi baleado na noite anterior. Assim também, é considerado fato normal uma família ter um de seus membros morto pelo tráfico ou pela polícia. O dia a dia dos moradores, principalmente os mais velhos, é marcado por sentimentos de solidariedade, com o oferecimento de pêsames pela morte de algum parente ou conhecido. As crianças comentam, com certa naturalidade, o assassinato de algum tio, primo ou, até mesmo, parentes mais próximos. Uma de minhas entrevistadas, por exemplo, teve seu filho de 23 anos morto pela polícia, o que me levou a atrasar por alguns meses o contato com ela. Além disso, tive acesso a alguns relatos de violência contados por moradores do bairro que retratam muitas das situações vivenciadas por eles. Uma dessas histórias foi comentada 179 pela coordenadora de uma creche da Prefeitura que conduz trabalhos sociais na favela. Havia uma moça grávida de sete meses que a procurara para pedir ajuda. Ela era “casada” com um rapaz que, além de ser usuário de droga, nos últimos tempos, também havia se envolvido com o tráfico. Este rapaz torturava esta moça, ameaçando de morte, junto com seu filho. Também a tratava com desprezo e chegava a levar outras mulheres para sua casa para se relacionar sexualmente. Essa moça havia relatado que não tinha com quem contar, pois sua mãe sofria de problemas psiquiátricos e estava internado já há algum tempo em um hospital público da cidade. Tempos depois, vim a saber que esta moça deu à luz a um menino, mas continuava a viver sob tensão com seu marido por não ter outra opção. Outros relatos retratam a entrada de jovens ainda crianças no tráfico. Segundo alguns moradores, alguns meninos na faixa de 13 ou 14 anos já começavam a trabalhar para o tráfico. Muitos deles são abordados pelos traficantes, que oferecem oitocentos reais por semana para que eles trabalhem como “olheiros”. A partir do momento que entram no tráfico, a saída é quase sempre impossibilitada pelos traficantes, que promovem constantes “queimas de arquivo”. Muitos jovens que entram “nessa vida” não passam dos 20 anos. Muitos pais e mães de família citam o tráfico e a violência como o principal problema que enfrentam por morar no bairro. Ao conversar com alguns moradores que conheceram o bairro desde quando era “tudo matagal”, eles são unânimes em afirmar que essa situação piorou muito nos últimos vinte anos. No início, havia mais tranqüilidade. As pessoas podiam entrar e sair da favela sem maiores receios. As crianças podiam brincar na rua sem maiores preocupações dos pais. Como a violência afeta a todos, eles procuram encontrar explicações para a situação, mas caem no lugar comum de culpar o governo pelas poucas oportunidades de trabalho e pelas famílias, cujas mães saem para trabalhar, deixando os filhos na rua à mercê dos traficantes. Neste contexto, a partir da percepção de que manter o filho longe da influência dos traficantes é uma estratégia que parece ser eficaz, percebi que algumas famílias utilizam a televisão ou o DVD para manter os filhos em casa. Pude constatar que algumas mães optam por incentivar que seus filhos, quando não estão na escola, permaneçam na televisão, seja assistindo a programação normal, seja assistindo algum filme alugado ou comprado no DVD. Ainda que essa pareça ser uma “estratégia” que não seja eficaz para todas as faixas etárias, muitas moradoras ressaltaram que a utilizam com bons resultados, uma vez que as crianças têm certo fascínio por filmes e programas televisivos. 180 Eu tiro ele da rua e boto ele pra assistir um filme. Mando ele alugar um filme... Ele enterte, vai pra hora dele ir pra escola já. Quando eu chego em casa, ele tá chegando da escola. (Helena) Porque o meu filho, ele estuda à tarde. Como meu marido fica na mercearia, então eu não gosto que meu filho fica na rua. Então eu compro bastante filme pra ele, pra ele ficar mais em casa, pra ele ficar assistindo até na hora dele ir pra escola, ele almoçar. À noite, na hora que ele chega da escola e que eu chego mais tarde também, pra ele ficar em casa. (Diana) Ainda no tocante à relação entre uso dos aparelhos eletrônicos e violência, em outros momentos a utilização principalmente da televisão parece ser também uma importante oportunidade para reunir a família. Estas questões serão discutidas com maiores detalhes na seção 7.16. Na próxima seção, será discutido como os consumidores de baixa renda percebem as diversas influências que recebem de amigos e parentes e da mídia no seu dia a dia. 7.5 Influências sociais Na época, porque tava que nem tipo uma febre, né, saiu, todo mundo foi comprando... (Eliane) De interesse para os objetivos desta tese é a questão das influências sociais que os pobres urbanos percebem nos seus relacionamentos com amigos, parentes e com a mídia de uma forma geral. Devido à proximidade das casas, que são construídas muito próximas uma das outras e ao compartilhamento de objetos e espaços, tema que será discutido na seção seguinte, percebi que existe uma influência forte por parte dos vizinhos e parentes no tocante ao comportamento de consumo. Verifiquei essa questão ao conversar com a dona de uma loja de móveis localizada nos arredores do Aglomerado da Serra. Segundo ela, quando algum modelo de móvel agradava, acontecia uma “corrida” à loja. Em poucos dias, o estoque, que não era grande, acabava rapidamente. As influências sociais também podem ser verificadas na compra de eletrônicos. O dono de uma oficina de conserto de aparelhos eletrônicos localizada no Aglomerado da Serra relatou que o consumo de aparelhos eletrônicos na região sempre acontecia em ciclos. Nos últimos anos, havia acontecido a “febre” dos DVD e que mais recentemente estava em ascensão a compra de computadores. Na visão dele, bastava que um morador comprasse determinado aparelho para que outros se interessassem em adquirir. 181 Porém, algumas entrevistadas sentem o poder que a mídia, principalmente as propagandas veiculadas na televisão, exerce sobre os consumidores. Essa visão, contudo, é mais comum nas consumidoras mais jovens. Eu penso mais que seja das propagandas mesmo, né? Às vezes, a gente vê, assim, dentro da propaganda. Às vezes, tá passando na rua e vê na loja: “Ah, esse aparelho é legal. Podia colocar assim, assim, assado lá em casa”. (Ilma) Eu tenho irmãs que moram fora também, né, e elas ficam me cobrando demais isso. Aí, eu preciso, principalmente, por causa da internet. (Luciana) Está bem comum. Acho que aí a gente nota a influência da mídia, a questão do consumismo mesmo. As pessoas veem e acham bonito, e a mídia põe na sua cabeça que aquilo é bom, e você vai lá e compra. (Ilma) A questão da influência pode ser também comprovada pela importância que os moradores dão aos elogios que recebem ao adquirirem determinados produtos eletrônicos para suas casas. Isso quer dizer que a opinião de outros moradores, de alguma forma, parece interferir nas suas escolhas de consumo. O pessoal elogia a minha casa, né, porque a gente mora num lugar desses, né, e a minha casa é razoável. Aí, eles me elogia. (Diana) “Olha, cê comprou DVD! Que bacana! Que legal, e tudo. Ah, trocou a televisão! Nó, que legal!” Esses comentários assim: “Ah, cê comprou uma televisão? Que chique!”. (Fátima) Ah, já aconteceu assim das minhas irmãs falar: “Ah, graças a Deus tá melhorando, tá progredindo!” É bom, né, elogios, né? (Luciana) Contudo, uma das grandes constatações que o trabalho de campo verificou foi a relevância do papel dos relacionamentos na vida dos pobres urbanos, que têm grande importância para o consumo de uma forma geral e, mais especificamente, de produtos eletrônicos. 7.6 O papel dos relacionamentos Esta categoria emergiu dos dados quando verifiquei que os relacionamentos são extremamente importantes no cotidiano dos moradores do Cafezal. Conforme já discutido anteriormente, este relacionamento pode ser atribuído à proximidade entre os moradores, pois as casas são construídas muito próximas umas das outras. O fato de em um mesmo terreno, ou 182 “área”, como os moradores chamam, se instalarem várias famílias pode contribuir para o aumento da importância dos relacionamentos dos pobres urbanos. Não raramente, muitos namoros e casamentos ocorrem entre integrantes das famílias vizinhas. Dessa forma, é comum que os filhos, após o casamento, passem a residir nas proximidades, o que reforça os laços familiares. Nesse contexto, as relações de vizinhança envolvem conflitos e alianças. Em muitos casos, ocorrem situações desagradáveis por motivos de fofocas e outros problemas relacionados à convivência muito próxima entre as pessoas. Ainda que o básico das redes sociais construídas esteja embasado nas relações de parentesco, os “parentes”, quase sempre, são selecionados em um contexto mais amplo de relacionamentos sociais. Verifiquei, por diversas vezes, situações de ajuda mútua entre as moradoras de casas próximas, em que as mulheres, sem muita “cerimônia”, se dirigiam à casa da vizinha para pedir “emprestado” alguma panela, algum utensílio a ser utilizado para afazeres domésticos ou, até mesmo, um pouco de arroz, farinha, açúcar ou tempero que havia faltado para terminar o preparo de alguma refeição. Em outras ocasiões, o empréstimo de roupas entre parentes, principalmente mulheres, é também bastante comum. Este relacionamento “estreito” parece ter certa influência nas formas de consumo dos pobres urbanos que pesquisei. Uma questão que emergiu desde a primeira entrevista foi o “empréstimo” do nome de alguém que tenha acesso ao crédito (que pode ser o patrão, um familiar, um vizinho) para comprar algo. No “vocabulário” dos pobres urbanos essa situação é chamada de "tirar", que pode ser vista como uma forma de aquisição de produtos por parte dos consumidores de baixa renda que não têm acesso aos sistemas de crédito. O interessante é que este hábito é comum em todas as faixas de idades e conhecido por todos. Aí, eu fui trabalhar na casa dela e pedi ela pra “tirar” pra mim. E aí eu pagava com serviço. Desse jeito que eu consegui pagar. (Aparecida) Essa compra, na época, ela foi assim, porque eu ainda não podia “tirar” um som porque eu recebia muito pouco e tal. Aí, então, a minha prima Jaqueline foi comigo e ela tirou pra mim, e eu comprei. Eu que paguei e tal. Ela só tirou. (Beatriz) Eu “tirei” pra uma ex-sogra minha. Deu certo. Eu tirei pra sogra atual, a que era, a que eu separei agora. Não deu certo, sujou. (Eliane) Foi, foi eu que comprei. Pedi o vizinho pra “tirar” pra mim, porque nem o crédito nas lojas eu não tinha. Então, o vizinho que “tirou” pra mim. (Marta) Eu tenho este armário que foi uma amiga que “tirou” para mim, mas já tem dois anos. Na época, eu não tava ”fichada”. Então, Cacilda que “tirou” para mim. Mas já paguei ... (Neusa) 183 Apesar de comum e altamente utilizado, o “procedimento” é visto como arriscado por algumas das entrevistadas, pois envolve a possibilidade de ter o “nome sujo”, que é bastante mal visto. Por isso, muitas delas tomam cuidados para evitar problemas, embora busquem negar o “favor” com uma certa dose de cautela. Já pedi isso, mais tem tantos anos! E na época, eu não trabalhava de carteira assinada ainda, não, sabe? Então não tinha como eu “tirar” realmente. Agora, dependendo de algumas pessoas, eu não “tiraria”, não, porque depois eu ia ter que pagar dívida de uma coisa que não tá comigo. Eu não vou deixar meu nome ficar sujo, que eu posso precisar, de repente, pra poder comprar qualquer uma coisa e meu nome tá sujo e eu não posso “tirar” mais. Então, depende muito da pessoa. (Helena) Nos últimos anos, com a introdução de cartões de crédito nas camadas mais populares, vários consumidores de baixa renda tiveram acesso a este importante instrumento de crédito utilizado. Alguns comerciantes com quem conversei, relataram que nos últimos anos algumas “bandeiras” de cartões de crédito têm destinado esforços em aumentar sua base de clientes com foco no consumidor de baixa renda. A dona da loja de móveis que entrevistei informou que o percentual de utilização de cartão de crédito por parte dos moradores do Cafezal tem aumentado muito e que, atualmente, representa cerca de 20% das vendas. Dessa forma, também verifiquei que é comum o empréstimo do cartão para a compra de produtos para terceiros. Aí, minha mãe tem, meu irmão tem. Então, assim, pra que eu vou ter? Minha mãe tem dois. Eu estou assim: “Não sei pra que dois”. Aí, usa, né? (Ilma) Aliada à questão dos relacionamentos, percebi que a vizinhança tem uma influência marcante na vida dos moradores da favela. Muitas entrevistadas não economizam elogios ao se referirem aos vizinhos, chegando a tratá-los como parentes. Também é comum tratar a casa dos vizinhos como “continuação” das suas moradias. Ia sempre pra lá. Quando um vinha para minha ou ia pra casa do outro. É assim, sabe, tudo vizinho perto. (Aparecida) Ótima! Os meus vizinhos são meus parentes chegados, meus irmãos... (Neusa) No caso de doença, ô meu filho, eles chegam até carregando água no balaio pra mim, graças a Deus... (Marta) É tudo parente. Então, é isso, se eu precisar de alguma coisa... Fica assim, sendo segunda casa. É aquele entra, aquele sai, aquele me empresta, aquele me dá. Então meus vizinhos era tudo parentes... (Eliane) 184 Os vizinhos são, assim, uma, parentes mesmo... Continuação da minha casa. São muito próximos da gente. (Fátima) Lá em casa, às vezes, o que acontece, como um mora numa casa, outro mora noutra, apesar de morar no mesmo bairro, aí o que faz: “Ah, não. Vou ver minha mãe no domingo”. Aquela coisa: vou ver minha mãe, vou ver minha avó, vou na casa de mãe, casa de vó, aquela coisa. Então, junta o pessoal, um ou outro faz uma carne, faz um churrasco, uma coisa assim. Mas é coisa simples e, às vezes, nem faz. Junta todo mundo e fica conversando. Minha vó faz uma macarronada, e todo almoça junto com ela. Senta ali e conversa, bate papo... (Ilma) Muitas vezes, a força dos relacionamentos entre os moradores transforma-se em ajuda. A intermitência dos empregos, atrelada à inconstância na renda e ao desemprego, que sempre faz parte da vida cotidiana dos moradores da favela, intensifica a relação de dependência da rede de parentesco e de amizade. É bastante comum a organização de mutirões para auxiliar na construção ou melhoria da casa de algum morador, que passa a contar com a participação de familiares, vizinhos e amigos. A fala de uma coordenadora de creche atuante no Aglomerado da Serra há muitos anos retrata esta realidade. Elas lutam pra construir um muro. Eles se ajudam, ah... “Na hora que ele chegar do serviço, vai me ajudar a construir o meu muro. Ele vai cobrar tanto. Eu tô pagando por mês o material”. Isso aí é voz corrente, se vê que nas favelas todos tem depósito de material, na boca da favela, todos, muito forte, porque eles constroem mesmo. Elas que fazem a massa. Qualquer coisa eles ajudam, eles pegam no pesado. Então tudo deles ali é junto... (Miriam) A partir dessa situação, verifiquei a influência dessa proximidade entre os moradores na forma de compartilhamento de objetos e espaços, que será discutida na próxima seção. Porém, de interesse é a discussão que pode ser suscitada quanto à forma de que o relacionamento interfere na experiência de consumo dos aparelhos eletrônicos. Cheguei a ouvir de uma jovem de aproximadamente 20 anos uma história interessante. Ela gostava de passar os finais de semana ou, quando era possível, na casa de sua colega, pois lá ela podia ouvir rádio e assistir televisão. Ainda que a casa de sua colega fosse bastante simples e a televisão não “pegasse tão bem”, ela preferia ficar lá do que na sua própria casa. Contou que quando chegava na casa da colega passava horas do dia deitada na sala para assistir a televisão, sem se incomodar com os outros moradores da residência. Os trechos das entrevistas destacados abaixo dão uma boa noção do nível de relacionamento existente entre os moradores que pesquisei. 185 Não, assim, todo mundo assiste junto, né? Quando vão assistir alguma coisa, é tudo junto. (Helena) Ó, tipo assim, porque o padrinho dele tava sem máquina né, que mora lá perto. Aí, ele tava sem máquina de lavar roupa. Aí, ele trocou. (Beatriz) Com aquela intenção, vão todo mundo lá para casa com aquela intenção num domingo à tarde. Mais se vão pra almoçar, a gente vai fazer almoço, vai conversar. Aí, depois, sim, a gente vai assistir o filme. Mais não é prioridade, mais que a gente utiliza, utiliza. Eu prefiro ligar o sonzinho lá fora. (Eliane) Eu acho assim, igual, têm os pontos positivos, que nem quando a gente está em casa ali o seu sonzinho. Você junta todo mundo, a galerinha, ali. Vou juntar os meus amigos, chamar a família mesmo mais pra perto. Tem um pessoal ali que gosta. Aí vai dizer: “Ah, essa música eu estou dedicando pra você”. Eu sempre escuto isso, sabe? (Ilma) Colocava uma caixa lá no terreiro de um lado e do outro puxava a fiação assim, sabe, do som mesmo. Puxava, deixava o som lá dentro de casa e as caixas lá fora. Nosso Deus! Gente, o que que isso? ... Pra eles e pra mais quem quisesse ouvir, né, os vizinhos. (Aparecida) 7.7 Compartilhamento de objetos e espaços Eu vejo essas coisas rodando, sabe, assim... (Daniel) Relacionada à questão da importância dos relacionamentos entre os pobres urbanos, outra questão que emergiu no meu convívio com o grupo pesquisado foi o compartilhamento de objetos e espaços. Em várias ocasiões, percebi muito claramente que existe o hábito de troca e empréstimo de aparelhos, roupas e objetos tanto entre integrantes de uma família quanto entre pessoas conhecidas e vizinhos. Conforme dito na seção anterior, entre as donas de casa é fácil observar a “troca” de mantimentos e pequenos objetos domésticos. As seguintes transcrições mostram isso. Meu irmão também. Sempre foi criado com a gente, né. Então tudo o que a gente teve ele sempre teve também. Compra roupa, compra pra todo mundo; compra sapato, compra pra todo mundo. Então, sempre tudo pra todo mundo. (Ilma) Se eu chegar na casa dos meus antigos vizinhos e tiver um DVD que eu não vi e eu fiquei interessada, aí eu pego emprestado. E se eles chegarem lá em casa também empresto, porque já tem esse convívio. Lá em casa era assim: “ô fulano, você tem isso aqui, você tem?” “Me empresta isso, me empresta aquilo!” Era assim que a gente convivia. (Eliane) 186 Além do compartilhamento, é bastante comum a venda de produtos entre os integrantes das famílias, muito em decorrência, conforme já comentado anteriormente, da proximidade entre os moradores, pois muitos precisam passar pela casa do vizinho para ter acesso à sua residência. Outras vezes, da janela de uma das casas o morador vê o que está acontecendo na casa do outro. Além disso, ainda existe um compartilhamento das áreas comuns entre as casas, como as lajes, os becos e os quintais. A “laje” da casa é valorizada pelos moradores, pois representa um espaço importante da casa que leva a uma forma de distinção da moradia, uma vez que pode ser utilizada para receber amigos e parentes, bem como pode servir de local de convivência da família. Nesse sentido, a análise do coordenador de uma ONG no bairro Serra sobre esta questão parece ir ao encontro do que é comentado. [...] eu já vi muita troca assim de “Essa bicicleta era de fulano, eu comprei”, “Essa moto comprei de beltrano, celular”... Existe esse compartilhamento. Acho que as coisas circulam um pouco, até porque muitas vezes como as famílias são grandes, quer dizer, essas famílias são grandes na mesma casa, e vai lá, o filho casa e faz lá um quartinho lá, um puxadinho lá, o outro também, na própria área dele. Então existe esse compartilhamento de produtos, aparelhos, produtos. Acho que é muito forte, né... (Daniel) Complementarmente, a fala da dona de uma loja de móveis na região do Aglomerado parece ratificar a situação de compartilhamento. Ele vende. Eles passam pra frente, pro vizinho, pra um irmão, pra quem que for. (Soraia) Uma história que ouvi e me intrigou logo no início do trabalho de campo também contribui para ilustrar a questão do compartilhamento entre os pobres urbanos que pesquisei. Um morador havia adquirido uma moto no crediário. Mas, depois de apenas três meses, decidiu vendê-la. Ao ser perguntado por que havia ficado tão pouco tempo com o veículo que era seu grande sonho de consumo, ele relatou que esta aquisição havia se tornado um “pesadelo” para ele, pois todos seus amigos, vizinhos e conhecidos queriam a moto emprestada, seja para fazer algum transporte particular ou simplesmente para “dar uma voltinha”. Este morador chegou a relatar, com certo ar de insatisfação, que, apesar de ter usado a moto pouco tempo, ela já estava avariada pelo uso imprevidente de seus “amigos”. Como não queria criar um “mal-estar” com eles, optou por desfazer de seu grande sonho de consumo. 187 No tocante ao uso dos aparelhos eletrônicos, pude observar que o mesmo acontece. Como as famílias são numerosas e as casas são pequenas, o compartilhamento de todos os aparelhos quase funciona como regra geral. Nas conversas informais, sempre as pessoas afirmavam que a televisão, o DVD e o som eram instalados na sala para favorecer a utilização de todos. É interessante enfatizar que também notei a preocupação das mães em mostrar para seus filhos, desde criança, a importância de se compartilhar todos os objetos da casa. Ah, se eu tiver lá duas ou três televisão e uma estiver desativada, eu emprestaria, até daria. (Eliane) Compra de aparelho lá em casa, nós tem esse hábito: se eu compro, é nosso; se ele compra, é nosso. Então, em geral, nós compramos. (Luciana) Ah, só na sala. O som é pra todos. Pra todo mundo... Todo mundo usar. (Eliane) Normalmente, a da sala, porque aí todo mundo junto e porque senão meu quarto fica uma bagunça. (Helena) Devido ao compartilhamento, muitas vezes, é necessária a intervenção da mãe para conter alguma discussão ou briga que pode ocorrer entre os integrantes da família. Quase sempre a mãe lança mão de sua autoridade para definir critérios de utilização dos aparelhos. Não, mais aí, não. A gente tem que entrar num acordo. “O, tal fulano de tal assiste tal coisa tal dia. Outro fulano assiste tal outra coisa outro dia”. A gente vai revezando, porque se eu for ligar os dois aparelhos ao mesmo tempo, chega fim do mês eu não consigo pagar conta de luz, meu filho! (Helena) Uma das questões importantes que também emergiu na pesquisa foi o papel importante que os aparelhos eletrônicos assumem no dia a dia dos consumidores pobres urbanos. A próxima seção tem por objetivo descrever por que esses aparelhos podem ser considerados uma importante forma de lazer para os moradores da favela. 7.8 Lazer e entretenimento Ah, porque se cê tá trabalhando, é ótimo uma música ambiente. E chegar em casa também é mania de chegar e já ligar a televisão, ver o que que tá acontecendo. Faz parte sim. (Jeane) Desde as primeiras entrevistas e conversas informais percebi que as opções de lazer e entretenimento dos moradores da favela não são muitas. Como não é comum a oferta de atividades de lazer e entretenimento nas áreas pobres, seus moradores se limitam a ter como 188 opção o uso de televisão, som e filmes alugados para serem assistidos no DVD. Tive a oportunidade de observar que essa situação é vivenciada tanto pelos mais velhos quanto pelos mais novos. Visto que muitos deles dificilmente frequentam outras partes da cidade, a não ser para visitar, esporadicamente, algum parente, e como as opções de lazer no bairro são quase inexistentes, vários deles chegaram a afirmar que há anos não têm uma vida social e que só saem de casa para trabalhar ou para alguma tarefa não relacionada à diversão. Vários deles são enfáticos ao considerar a televisão ou o som como a mais importante fonte de lazer e entretenimento existente de suas vidas. Para aqueles que têm filhos, a maior parte das atividades fica por conta dos cuidados com eles. Quanto aos mais jovens, o som é sempre uma companhia interessante. É, basicamente, por essas razões que os aparelhos eletrônicos parecem ter tanta importância no cotidiano desses consumidores. Nas várias visitas que conduzi às casas de inúmeros moradores da favela, era bastante comum observar a existência de vários aparelhos eletrônicos ligados simultaneamente, muitas vezes, sem pessoas por perto. Em uma dessas ocasiões, cheguei a conversar informalmente com uma moradora que estava com a televisão e com o som ligados. Em alguns pontos da conversa, o ruído dos dois aparelhos chegava a incomodar, atrapalhando o entendimento do que estava sendo discutido. Em uma das minhas entrevistas semiestruturadas na casa de uma moradora, a televisão ficou ligada todo o tempo. Conforme já descrevi em outros pontos, muitas casas ficam com o som ligado o dia todo e até altas horas da noite, sendo utilizado pelas mulheres enquanto arrumam a casa e no momento de conversar com amigos e parentes. Dessa forma, a televisão, o som e o DVD assumem papel importante e central na vida dos pobres urbanos, uma vez que estes parecem ser uma das poucas opções de lazer e entretenimento destes consumidores. Algumas entrevistadas chegaram a afirmar que a vida ficaria quase insuportável sem os aparelhos eletrônicos, pelo fato de eles fazerem parte de qualquer casa. Uma declarou estar muito aborrecida porque havia perdido o acesso aos canais de TV paga por meio do que os moradores chamam de “Gatonet” ou “TV a gato”. Segundo ela, sua família “não sabia mais fazer outra coisa” do que assistir aos filmes que ainda não estavam disponíveis em DVD. Um dos donos de uma loja de aluguel de filmes no Cafezal relatou que o consumo de fitas vem aumentando consideravelmente nos últimos anos, principalmente aquelas voltadas para o público infantil e evangélico. Porém, também verifiquei que os moradores da favela 189 começavam a optar por comprar certos filmes ao invés de alugá-los, principalmente em decorrência do baixo preço dos produtos “piratas”, que muitos moradores exibiam sem maiores constrangimento em suas estantes ou racks, próximos dos aparelhos eletrônicos. A posse e o uso dos bens não parece ser a única forma de entendimento das experiências de consumo dos pobres urbanos que pesquisei, pois algumas outras questões precisam ser investigadas. Entre elas, parece emergir uma categoria que posteriormente mostrou-se importante para a construção da teoria substantiva: a ocorrência de distinção. 7.9 Distinção Olha, eu estou na média, eu estou na média. Mas uma coisa que eu tenho um pouquinho moderna que pouquinha gente no bairro tem é uma máquina de lavar roupa. (Helena) Desde o início do meu convívio com os moradores da favela, comecei a perceber que, ao mesmo tempo em que havia certa tendência de homogeneidade entre as pessoas quanto aos seus hábitos, costumes, maneiras de pensar e formas de aquisição de produtos, era possível sentir que também existiam algumas diferenças entre eles que precisavam ser mais bem investigadas. Apesar de serem sutis e aparentemente irrelevantes, à medida que o estudo avançava, pude começar a perceber que estas diferenças eram objetivadas em “detalhes”, tais como localização da casa no bairro, tempo de residência no bairro e, até mesmo, posse dos bens domésticos. Em primeiro lugar, notei certa distinção quando os moradores mostravam diferenciar- se quando diziam residir na parte “mais nobre” da favela, ou seja, na parte mais antiga e mais “desenvolvida”, na região mais plana e mais baixa, a qual tinha acesso aos principais serviços urbanos, como água encanada, esgoto, ruas asfaltadas, linhas de ônibus e escolas. Essa constatação ficou implícita em muitas conversas informais que tive com os moradores, que se referiam à parte pior da favela como “a parte lá de cima”, como o local onde se encontravam as piores casas, esgoto a céu aberto e maiores índices de violência. Na “melhor região” havia lojas e mercados maiores. Também observei uma distinção entre aqueles que eram pobres e outros que eles consideravam “mais pobres”. Então, a gente tem que se pôr no lugar, né? Às vezes, a gente se põe no lugar das pessoas e a gente fica: “Nó, como é que fulano não tem, e tal, e a gente fica reclamando das coisas...”. (Fátima) 190 Eu gostaria que muitas pessoas também sentissem, né, o que eu sinto, de poder usufruir das coisas que, de certa forma, lutei pra conseguir e que elas tivessem oportunidade também, sabe, de conseguir isso também. (Helena) Muitos não têm condição de comprar nada. Deixa o coração meio apertado. Eu conheço casos assim. Mais é difícil né, cê fica meio assim; “Nó, que pena né?! Se eu pudesse ajudar e tal!”. (Jeane) Alguns moradores se sentiam “orgulhosos” de serem os primeiros moradores e terem vivenciado todo o crescimento e desenvolvimento do bairro. Ouvi alguns relatos de moradores que gostavam de contar, em tom nitidamente saudosista, as mudanças tanto positivas quanto negativas ocorridas na região nos últimos trinta anos. Nesse sentido, o fato de residir há muitos anos também confere distinção ao morador. Outra grande fonte de distinção advém da posse da casa própria. Ou seja, o fato de possuir “um teto” era uma condição valorizada tanto pelas pessoas entrevistadas quanto por outros moradores com os quais conversei informalmente durante a pesquisa. Embora a posse da casa fosse algo essencial, também percebi que outro aspecto distintivo mantinha relação com o acabamento da residência, em especial o reboco e a pintura. Apesar de considerados como elementos supérfluos, alguns poucos moradores que tinham suas casas rebocadas e pintadas gostavam de ressaltar que suas residências eram “diferentes” e se destacavam das demais. Somado a este aspecto do acabamento das casas, vale destacar também o papel dos enfeites como algo diferenciador, pois muitas moradoras faziam questão de ressaltar que gostavam de manter enfeites na sala e na cozinha, o que seria uma forma de dizer que, embora sua casa fosse simples, havia uma preocupação com a limpeza e com o bem-estar, inclusive com a tentativa de criação de um ambiente bonito e agradável principalmente para as visitas. De interesse para esta tese, outra importante fonte importante de distinção está relacionada à posse de aparelhos eletrônicos. Em quase todas as casas que visitei, foi possível encontrar diversos aparelhos eletrodomésticos como fogão, geladeira, forno e micro-ondas. Também a maioria tinha televisão, DVD e som, o que pode levar à constatação de que estes aparelhos não servem mais para conferir distinção para uma casa na região da pesquisa. Nesse caso, a distinção pode direcionar para o modelo e o tamanho da televisão, bem como ao acesso a canais de TV a cabo, que começava a ser introduzido na favela. De fato, no final do meu período de coleta de dados, passei a observar em vários pontos da favela faixas anunciando, a preços especiais e convidativos, a contratação de serviços de TV a cabo. Contudo, muitos moradores ainda insistiam na utilização do que era chamado por eles de 191 “gatonet”, ou “TV a gato”, que consiste no acesso às redes de comunicação das empresas sem autorização e pagamento. Não sei o que aconteceu. É um aparelho agora que tem nas casas, né, que aí não tem jeito mais de “puxar o gato”, entendeu? E era muito bom, né? (Jeane) Ademais, com o lançamento pela indústria da tecnologia de aparelhos mais avançados, mais potentes e com design inovador, muitos moradores buscaram se diferenciar de seus pares com a obtenção destes produtos. As televisões de plasma ou de LCD, por exemplo, mesmo os modelos menores, ainda eram considerados objetos de luxo por parte dos moradores do Cafezal. No mesmo sentido, percebi que o computador (principalmente o uso da internet) começava a fazer parte do cotidiano, em especial, dos consumidores mais jovens da favela. Estes pontos podem ser citados como possíveis focos de distinção entre os moradores. Outra questão que também pode ser mencionada tem a ver com a localização dos aparelhos nas casas. Quase sempre os mais novos e mais modernos são instalados na sala, ou seja, de modo a permitir melhor visibilidade pelos vizinhos ou pelas visitas. Duas explicações podem ser dadas para essa questão: primeira, relacionada com a preocupação com o compartilhamento dos aparelhos; segunda, com a distinção; isto é, os consumidores utilizam a posse dos bens para criar um diferencial entre a vizinhança. Portanto, não é preciso somente ter o aparelho; é preciso mostrar que tem. Pude constatar que a posse de aparelhos eletrônicos também confere à dona de casa uma suposta preocupação com o bem-estar de seus filhos, isto é, uma forma de “minimização” dos aspectos negativos decorrentes de se morar em uma favela com poucas oportunidades de lazer e entretenimento. Pelo fato de os moradores de baixa renda residentes na região na qual foi conduzida a pesquisa serem de baixa escolaridade e trabalharem em empregos de baixa qualificação, tive a preocupação de incluir em meu roteiro de entrevistas uma discussão referente à classe social à qual os entrevistados fazem parte. As respostas foram variadas, mas todos afirmaram ser de classe baixa. As citações retiradas das falas das entrevistadas que sintetizam a maioria das respostas são as seguintes. Ah, é morar dentro do aglomerado. As casas lá foram adquiridas assim, através de projetos da Prefeitura. Isso pra mim é. Salário também, abaixo de dois salários mínimos também. E, principalmente, esse ponto aí também, né, de comprar sempre tudo parceladinho, dividido. Isso aí eu acho que são características da classe baixa. (Luciana) 192 Ah, é a classe baixa né, que tem uma renda não tão favorável assim que dá pra consumir poucas coisas. É isso. Nem tudo que a gente quer a gente consegue. (Jeane) É possível afirmar que, ao contrário do que sustenta parte da literatura referente aos consumidores pobres, não é adequado considerá-los como uma classe homogênea, obediente a padrões fixos e “enquadrada” em modelos ou esquemas classificatórios instransponíveis. As camadas populares, como bem enfatiza Caldeira (1984), estão o tempo todo transitando por entre esses diversos planos, realidades, níveis e sistemas explicativos. Cumpre ressaltar, portanto, que tanto a fragmentação de papéis quanto a heterogeneidade das experiências vividas são a marca registrada da vida cotidiana deste tipo de arranjo social e, como tal, deve ser analisada com cuidado pelos pesquisadores. Voltarei a esta discussão no capítulo 9, quando a teoria substantiva gerada será confrontada com a literatura sobre a temática. 7.10 Formas de aquisição dos aparelhos eletrônicos Inicialmente, vale ressaltar, conforme já discutido na seção 7.6, que uma das formas de aquisição de aparelhos eletrônicos por parte dos consumidores de baixa renda é por meio do “empréstimo” do nome, ou “tirar”, no vocabulário utilizado por eles. Com a introdução do uso do cartão de crédito nas camadas mais populares, os pobres urbanos tiveram acesso ao crédito, e com isso houve aumento na compra de aparelhos novos nas lojas. Mesmo com a emergência dos cartões de débito e crédito, o hábito de “empréstimo” do nome manteve-se, pois passou a ser utilizado o empréstimo do cartão, principalmente de crédito. Contudo, foi possível verificar algumas outras formas de aquisição que foram surgindo nos relatos que obtive dos meus pesquisados. Entre as formas, podem-se destacar: compra em bazares existentes no próprio bairro, compra de aparelhos usados de vizinhos, parentes e amigos, e compra de aparelhos de procedência “duvidosa”. Notei que uma modalidade de obtenção de produtos “não tradicional” por parte dos moradores do Cafezal é por meio de bazares, sejam beneficentes ou não. O curioso a notar é que vários objetos são comprados neste tipo de comércio. Sua ocorrência é bastante comum em áreas pobres e se constitui em uma oportunidade para os consumidores terem acesso a produtos de melhor qualidade e com preços mais baixos. 193 Um sonzinho, pequenininho assim, comprei aqui no bazar, também da creche... Como eles estavam vendendo, né, e eu teria que comprar, eu fui e comprei na mão deles. E eles tava vendendo ela baratinha. Ela é imagem muito boa. (Celina) Minha mãe frequenta bazar. Então, então eu acho que vale a pena comprar lá ... (Jeane) Aqui no bazar? Aqui mesmo eu já comprei uma televisão... Eu já comprei. Mas só que eles está precisando de consertar, consertar a televisão... Se precisar, eu compro. Se precisar de um colchão, cama, né, porque sempre é caro. A cama dos meninos estão quebrando, de madeirazinha... Então, se chegar aqui e estiver no meu alcance, eu compro. (Marta) Meu filho ... o bazar é tudo de bom!... (risos) Às vezes, é uma alegria só! É oportunidade prá nós pobres conseguir comprar coisas bonitas e baratas! (Eliane) A partir da emergência desta categoria de análise, passei a pesquisar e constatei a existência de bazares em alguns pontos do bairro e nos arredores. Um deles, de caráter beneficente, visitei-o algumas vezes, conforme pode ser verificado na descrição abaixo constante no meu diário de campo datado de 12/10/2008. “Cheguei na Associação4 naquele dia cedo e logo notei um grande movimento de pessoas, pois além de estar acontecendo o bazar, era um domingo especial, em virtude da comemoração do Dia das Crianças. Achei interessante observar e acompanhar o comportamento das pessoas em um bazar beneficente, porque muitas das entrevistadas citaram que compram diversos produtos (roupas, sapatos, móveis e até alguns aparelhos eletrônicos) nesse tipo de comércio, que é bastante comum em áreas pobres. É importante frisar que esses bazares beneficentes são promovidos quase sempre por entidades de caridade, igrejas, organizações não governamentais, com o intuito de angariar recursos para as obras assistenciais. Os produtos vendidos são, em sua maioria, oriundos de doações de voluntários e obtidos por meio de campanhas. No caso desse bazar, que acontece sempre no segundo domingo de cada mês, o objetivo é levantar recursos para a manutenção de uma creche que abriga quase 100 crianças oriundas do Aglomerado da Serra em horário integral. Ainda que a creche tenha o apoio da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a Associação arca com quase todas as despesas de alimentação e material escolar das crianças. Na entrada da Associação, desde cedo, foi possível observar uma pequena fila, que começa a se formar, basicamente, com donas de casa da região mais pobre do bairro Santa Efigênia e Aglomerado da Serra. Eram pessoas muito simples, que pareciam não ter muitos 4 Trata-se de uma associação espírita localizada no bairro Santa Efigênia, chamada “Associação Espírita Chistopher Smith”. Por estar muito próxima geograficamente da favela do Cafezal, muitos dos trabalhos assistenciais são focados para os moradores da favela. Para fins dessa descrição, achei melhor utilizar a referência “associação” para me referir à organização. 194 recursos para comprar produtos em lojas tradicionais. Elas faziam questão de esperar na fila para serem as primeiras a ter acesso aos produtos, na esperança de conseguir comprar algo de melhor qualidade. Aproximadamente às 9 horas, o portão foi aberto, e todas elas tiveram acesso a um salão no qual os produtos estão expostos. Trabalhavam no bazar cerca de 20 voluntários, que se distribuiram nas várias “seções”: roupas mais baratas, sapatos, bijouterias, brinquedos, livros, material escolar, artigos de casa, móveis e até um local mais isolado, chamado pelos voluntários de “butique”, onde eram vendidas roupas de melhor qualidade e em melhor estado de conservação. Observei que os preços eram extremamente baixos. Podia-se encontrar roupas (camisas, calças, blusas) de R$ 1,00 a R$ 5,00. Brinquedos podiam ser comprados a R$1,00 ou R$ 2,00. Os preços maiores eram cobrados nos produtos da “boutique”, que foram fixados por volta de R$ 10,00. Algumas mercadorias, como brinquedos, bijouteiras, livros, material escolar e artigos de casa, estavam expostos em grandes mesas. Algumas roupas estavam acomodadas em mesas e outras eram penduradas em “araras”, para facilitar o manuseio dos consumidores. Os sapatos eram colocados no chão e quase todas as roupas da “boutique” estavam expostas em “araras”. Naquele domingo, não havia muitos móveis para venda, mas já foram vendidos em outras datas armários, camas, sofás e até aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos, como som, televisão, videocassete, geladeira, máquina de lavar e computadores. Ao perguntar para alguns voluntários, vários me disseram que uma cama simples mas em bom estado pode ser vendida por volta de R$ 50,00 e que, dependendo do estado de conservação de uma televisão, podia-se chegar ao valor de até R$ 80,00. Vários voluntários me informaram que existe uma demanda considerável por móveis e eletrônicos por parte dos compradores do bazar. Quando aparece alguma mercadoria desse tipo, ela é vendida rapidamente e pode, inclusive, até causar briga entre os pretendentes à compra. É muito comum também a ocorrência de certa negociação e ferrenha pechincha por parte dos compradores de produtos desse tipo. Na saída, foi instalado um “caixa”, no qual um voluntário controlava o pagamento das compras. Todos os pagamentos eram feitos em dinheiro e muitos compradores, que são serventes da Associação, pediam para parcelar os valores devidos das compras, o que era plenamente atendido. Muitas delas pagavam as compras com cédulas muito amassadas. Verifiquei que a maioria das compras é de roupas para crianças. Também notei que boa parte das compras não ultrapassava R$ 10,00. Foi possível observar que existe certa informalidade 195 nas compras, pois algumas compradores se dirigiam aos voluntários pedindo que se aparecesse algum produto de seu interesse o avisasse rapidamente. Presenciei uma dessas situações: uma senhora simples insistiu, por diversas vezes, que se aparecesse uma televisão ela tinha muito interesse na aquisição. Perguntei informalmente a uma das compradoras por qual motivo ela frequentava um bazar daquele tipo, e ela me disse que sempre visitava o bazar em busca de roupas para seus filhos. Na visão dela, como não adiantava comprar roupas de boa qualidade para as crianças, pois eles as estragavam rapidamente, ela optava por comprar peças mais simples, para economizar. Me disse que sempre quando tinha oportunidade também frequentava outros bazares da região. No início, o fluxo de pessoas era bastante alto, o que forçava os voluntários a ter bastante trabalho no controle do fluxo e na apresentação das mercadorias. Notei que duas ou três senhoras apresentavam comportamento diferente das demais, pois estavam comprando diversos produtos em grande quantidade. Fiquei sabendo depois que se tratava de “sacoleiras”, pessoas que compram produtos em bazares para revender mais caro em outros estabelecimentos. Fui informado também que uma dessas “sacoleiras” mantinha um pequeno comércio de roupas próximo à favela. Por volta das 11 horas, como o movimento tinha diminuído sensivelmente, foi decidido que o portão seria fechado para finalizar o bazar daquele domingo. Depois desse horário, os voluntários iniciaram o desmonte das mesas e “araras”, e a acomodação das mercadorias não vendidas que seriam utilizadas no bazar do próximo mês. Ao final, todos os voluntários estavam satisfeitos, pois naquele domingo o bazar havia rendido a quantia de R$ 700,00. Também percebi que muitos dos moradores da favela „montavam‟ sua casa por meio de doações de móveis, aparelhos e utensílios domésticos feitas por patrões, familiares, amigos ou pessoas conhecidas que se sensibilizam com a situação na qual alguns moradores vivem. É importante ressaltar que existe entre os moradores certo costume de solicitar ajuda das pessoas. Por diversas vezes, fui abordado e solicitado a contribuir com dinheiro, roupa, material de construção ou algum outro tipo de auxílio por parte de alguns moradores”. Meu pai, ele no serviço, ele ganhou uma televisão lá. Tá até hoje lá em casa essa televisão. Tá em bom estado, e tudo mais. (Jeane) A pequena que fica no quarto do meu filho foi a minha filha que me deu, quando eu cheguei de Pedro Leopoldo, e a outra foi a Selma, irmã da Dalina. (Neusa) 196 Desde quando eu casei, porque foi ganhado. Foi ganhado. (Aparecida) Não. O computador foi ganhado. Foi uma das minhas patroas que me deu. (Eliane) Eu tenho uma televisão e um radinho, daquele radinho, sabe, toca fita, mais tá estragado. O moço que me deu... (Gisele) É digno de nota a constatação de que os moradores não veem com maus olhos a doação de aparelhos ou a compra de aparelhos usados em bazares. Teja funcionando, uê, beleza! Não tem problema nenhum. (Helena) Sim, comprei de alguém. Não sei. Foi minha mãe que tava olhando isso, e ela falou: Ah, não, vamos dá uma olhada e tal. Eu falei... Ela me deu os dados e eu falei: Não, então tá ok. Eu fui fazendo as perguntas pra ela lá. Acho que ela fez e eu falei: Não, pode comprar então, que isso aí tá tranquilo. Uma procedência tranqüila. Então comprou, e funciona bem até hoje. (Ilma) É interessante ressaltar que os consumidores da favela com quem conversei mostraram certa resistência em consertar os aparelhos eletrônicos. Muitos disseram não compensar, pois o valor cobrado do conserto ficava próximo do valor de um novo. Pude confirmar esta questão ao conversar com o dono de uma loja especializada em conserto de aparelhos eletrônicos que atualmente está localizada na Rua do Ouro, no bairro Serra, mas já teve oficinas de conserto em vários pontos do Aglomerado da Serra. Com experiência de vinte anos de atuação e morador do bairro, ele relatou que seu movimento vem caindo gradualmente nos últimos anos, pois a maioria dos consumidores não gosta de consertar aparelhos, preferindo, muitas vezes, adquirir um novo ou usado que esteja em bom funcionamento. Porém, todos os moradores da favela conhecem uma forma de aquisição de aparelhos que parece fazer parte da rotina: o comércio de aparelhos roubados ou obtidos de forma irregular ou ilegal. Ainda que muitos moradores evitem se estender na discussão quando perguntados sobre a questão, ouvi depoimentos que provam que esta é uma forma importante de acesso dos moradores, principalmente a aparelhos mais novos e atualizados tecnologicamente. Tem um moço que trabalhou pra gente. Ele que fazia as entregas pra gente, né, que a gente terceirizava isso a quem precisasse de um CD, aquele CD de carro. Pergunta: Que modelo que cê quer? É! (Soraia) Eu fico com medo deles comprar e criar um problema. E aqui você sabe que a gente não pode confiar em ninguém. Tem ficar sempre atento. Ppor exemplo, se alguém 197 falar: “Tô vendendo som”, eu não deixo eles comprar. Não deixo porque não deixo, não. Só compro se for em bazar daqui. (Neusa) Além das formas de aquisição dos produtos eletrônicos, de importância para esta tese é a experiência de compra dos consumidores de baixa renda, questão que será discutida na próxima seção. 7.11 Experiência de compra É muito doido isso. Muito mesmo. Esse lance de ter de consumir, como é forte! É impressionante! (Soraia) Uma vez que um dos objetivos específicos do estudo é investigar formas e rituais de compra de produtos eletrônicos por consumidores de baixa renda, achei conveniente inserir na investigação, principalmente nas entrevistas, algumas questões relacionadas à experiência de compra. Cumpre ressaltar, porém, que a categoria de análise discutida nesta seção trata da experiência de compra “tradicional”, realizada em lojas do ramo, ainda que, conforme já apresentado, foi possível constatar que existem diversas outras formas de acesso dos consumidores de baixa renda aos produtos eletrônicos. Logo no início, percebi alguns traços marcantes que foram sendo confirmados à medida que a pesquisa avançava. Um deles está relacionado à figura do decisor e à do efetivador da compra: quase sempre este papel está reservado à dona de casa, ainda que esta conte com o apoio e auxílio de outros membros da família que participam ativamente tanto do processo de busca de informação quanto da decisão. Verifiquei que não é muito comum nas famílias que pesquisei o homem ou o pai de família se envolver neste tipo de compra, sendo reservado a ele somente o papel de usuário dos produtos. Normalmente, os grandes influenciadores da compra são os filhos, que “pressionam” os pais a trocarem de aparelhos ou a comprar alguma “novidade”. Observei que muitas das minhas entrevistadas percebiam a importância de pesquisar preços e juros, uma vez que boa parte das compras é realizada a prazo. Porém, durante toda a pesquisa mantive a impressão de que a preocupação com os juros era mero discurso, pois muitos deles não tinham uma noção real dos cálculos que deveriam ser feitos para se chegar a uma taxa de juros considerada justa e “adequada” às compras de aparelhos eletrônicos. 198 Uma questão que emergiu na pesquisa está relacionada à pesquisa que os consumidores de baixa renda fazem no momento de comprarem qualquer aparelho eletrônico. Como eles fazem estas compras no centro da cidade e devido à proximidade destas lojas, ouvi de alguns moradores que eles chegam a promover uma “via sacra” em cada uma delas, a fim de conseguir as melhores condições de pagamento, uma vez que os produtos seguem relativamente um mesmo padrão. A percepção do custo-benefício também é bem percebida por estes consumidores. A gente, sempre qualquer coisa que a gente vai comprar, a gente pesquisa vários preços. A gente vai em várias lojas diferentes. A gente sempre olha juros. (Ilma) Olha, a gente vai muito pela pesquisa, né. Pelo menos assim a gente tem que pesquisar os preços, e tudo pra ver qual que é o preço mais em conta, né, contando também com a qualidade também do aparelho, né. A gente vai pesquisando, né, ver qual loja que tá mais em conta. (Fátima) A minha mãe sempre olhava e sempre trazia encartes pra gente ver. “Ah não, então a gente decidiu. Vamos no Ponto Frio”. Aí, a gente foi. Só que a gente foi no Ponto Frio, foi na Ricardo, foi nas Casas Bahia. A gente nunca vai num lugar só. Aí, acabou que, por fim, lá a gente teve a proposta mais tranquila assim, até de pagamento, preço, e a gente comprando de televisão, vinha um outro de DVD também. Falei: “Ah, então aqui, por enquanto, o preço tá valendo a pena, a forma de pagamento é viável, é tranquila pra gente. Tem um a mais aí que seria o DVD que tá vindo junto com a televisão e não tá cobrando”. (Ilma) Outra constatação da pesquisa está relacionada à participação de vários membros da família na experiência de compra dos produtos eletrônicos, o que reforça o que foi dito anteriormente no tocante à importância da família no uso dos aparelhos eletrônicos e no compartilhamento dos objetos. Fui lá com eles escolher né, todos eles: o som, o DVD. Todos eles, e escolhi. (Luciana) E eu fui com minha filha e com minha sogra também na época, né. (Eliane) Minha filha que foi comigo e minha nora. Que minha filha, ela já sabia, sabia mais ou menos, que ela já tinha comprado lá, no Ricardo Eletro, Ricardo, né. Aí, a minha filha já foi e foi lá direto, e foi nas Casas Bahia, e aí a gente foi lá e tirou lá, rapidinho. Minha filha já estava por dentro. (Neusa) Quanto aos atributos dos aparelhos, a principal preocupação dos entrevistados guarda relação com a sua durabilidade. Neste caso, parece que esta é a grande percepção de qualidade dos produtos. Porém, no caso do som a percepção da qualidade está relacionada à potência, pois, como os próprios moradores enfatizam “som tem que ser alto”. Uma das entrevistadas, por exemplo, relatou que uma vez havia tentado fazer uma surpresa para seu marido 199 comprando um som para ele. Porém, ao ligar o som, ela percebeu a frustração do seu cônjuge, pois o aparelho não tinha uma alta potência, mesmo na última gradação do volume. Em suma, o que era para ser uma feliz surpresa acabou se transformando numa “briga” na loja, pois o marido fez questão de levar o som até o estabelecimento onde havia sido comprado e obrigou o gerente a trocá-lo por um mais potente. A marca dos produtos foi outra relevante questão que surgiu no trabalho de campo. Ainda que vários moradores tenham enfatizado que não dão importância para a marca, todos eles sabiam de cor todas as marcas de eletrônicos existentes nas lojas, bem como as marcas dos produtos de suas casas e as dos aparelhos de seus vizinhos e amigos. Muitos deles afirmaram ter preferência por alguma marca a partir de suas experiências positivas com elas. Observei também certa rejeição à marca CCE, que surgiu espontaneamente em várias entrevistas. A gente vê tanta gente falar da CCE, sabe? Inclusive, uma vizinha minha comprou uma televisão da CCE, e com prazo de três meses ela estragou. Ela foi lá na casa, e a televisão tá lá encostada lá. Mandou arrumá e tem quase um ano, e eles não deu solução de nada. (Aparecida) Ela tá até precisando trocar também. Ela tá dando defeito. CCE é um problema. (Luciana) Como não existe loja de eletrônicos nos arredores da favela do Cafezal, não percebi uma preferência clara por alguma loja específica. Os nomes normalmente citadas foram Casas Bahia, Ricardo Eletro e Ponto Frio, redes tradicionais no segmento de eletrodomésticos e eletrônicos. Muitos consumidores relataram que já compraram em várias destas lojas no centro de Belo Horizonte, utilizando como critérios de seleção o preço, as condições de pagamento e até o atendimento. Já no tocante às formas de busca de informação para a compra de produtos, os pesquisados ressaltaram o uso da televisão como principal meio de comunicação das empresas com seus clientes. Porém, no dia a dia dos consumidores percebi uma forte influência de comentários e conselhos de amigos, parentes e vizinhos na escolha de compra, tal como já descrito na seção sobre influências sociais. Pois é, então eu vejo aí, eu comparo o preço: “Esse aqui tá melhor que esse. Eu vou naquele!” Mais, normalmente, eu vejo pela televisão. Lá eles dão informação; tal coisa, tal dia, tá tal preço. Aí, eu acho conveniente. Aí, eu vou lá e compro. (Helena) 200 Os entrevistados enfatizaram a importância do atendimento como principal atributo a ser considerado por uma loja de eletrônicos. É interessante comentar que não foi relatado nenhum caso de mau atendimento ou outro tipo de situação indesejada no relacionamento com as lojas. O pessoal são todos muito educados. Mais, normalmente, os vendedores têm que ser muito educados mesmo, senão eles não vender nada, né? (Helena) É o atendimento que sempre puxou mais ele e eu. Tem vez que ele entra na loja: “Não, não gostei daqui, não. Vamos pra outra”. (Luciana) Eu gosto, assim... Sei lá, eu fico olhando assim na vitrine primeiro pra ver o que é. Mas o atendimento também ajuda demais, porque uma pessoa educada pra poder atender a gente... “O que a senhora interessa, aí e tal”... “Eu posso fazer isso pra senhora e tal, etc...” Isso é muito importante também. (Marta) Por fim, atrelado à experiência de compra dos aparelhos eletrônicos, considerei de interesse relatar algumas informações que obtive ao visitar as casas dos moradores da favela e uma loja de moveis localizada em uma das ruas de acesso à favela. Verifiquei que os consumidores pobres que pesquisei dão preferência aos móveis que contêm espelhos e portas com vidros. Segundo a proprietária da loja de móveis que entrevistei, os racks para acomodarem as televisões, sons e DVDs que têm maior preferência são aqueles que possuem partes com espelhos e portas com vidros. Normalmente, os moradores do Cafezal optam por móveis com pezinhos, para facilitar a limpeza, pois boa parte das moradoras utiliza água para lavar a casa. Também preferem os que utilizam material de sucupira, uma vez que, devido às constantes mudanças de residências, estes oferecem maior durabilidade. Pude perceber tanto na casa dos consumidores quanto na loja de móveis que as empresas do setor moveleiro, atentas ao perfil destes consumidores, vêm procurando desenvolver modelos de móveis menores que se adaptam mais facilmente às casas pequenas dos moradores de favela. Muitos, por exemplo, têm criado guarda-roupas com portas de correr para economizar espaço. Além disso, como gostam de enfeites diversos, os consumidores que pesquisei preferem cores mais fortes, como vermelho e vinho, principalmente para os sofás, toalhas de mesa e colchas de cama. No mesmo sentido, têm preferência por destinar espaço aos tapetes e quadros em suas salas. 201 Uma questão que esteve presente em todas as fases do trabalho de campo tem relação com o dilema enfrentado pelos consumidores de baixa renda: pagamentos à vista ou a prazo. A próxima seção tem por objetivo apresentar a percepção dos consumidores neste sentido. 7.12 Dilemas: pagamento à vista ou pagamento a prazo Ah, mais é, filho, eu não tenho condições de pagar à vista de jeito nenhum... É dez pagamentos, é dez pagamentos... (Marta) Esta categoria foi incluída na discussão e faz parte da teoria substantiva em decorrência do dilema entre pagar a compra à vista ou a prazo, muito comum de ocorrer com os consumidores de baixa renda que pesquisei. Nas entrevistas e nas conversas informais que mantive com os moradores sobre o tema, constatei que o dilema é marcante nas decisões do consumidor e está bastante presente nos discursos, independente da idade. Neste caso, o grande dilema é juntar o dinheiro e comprar o produto à vista ou ter o bem "na hora", com dívidas para pagar, muitas vezes, com juros altos. Ainda que eles percebam que o ideal seria poupar parte de seus rendimentos e comprar o produto à vista, é aceito que, em decorrência dos parcos recursos que recebem, é difícil, na prática, conseguir guardar um dinheiro por vários meses. Era juntar, guardar, e tal, pra poder comprar à vista. Só que, aí, então, seria bom comprar a vista, pelo fato de que você parcelando tem aumentos, e os aumentos dobram o preço. Então, né, vamos... Só que, por exemplo, pessoas simples não têm como, de repente, guardar um dinheiro, juntar um dinheiro, né, porque sempre tá precisando, sempre tá fazendo alguma coisa. Então, fica difícil a gente entender a situação. (Aparecida) É, porque se for pra juntar vai demorar muito tempo. Então, eu acho que as pessoas não conseguem juntar dinheiro assim e acaba que esse dinheiro vai e precisa e tal. Mais é furada, né. Mas pros pobres, pra classe baixa, a gente não tem outra opção se não for juntar ou comprar a prazo. Então, se quer uma coisa imediata, infelizmente, vai ter que ser. (Jeane) Prefiro comprar à prestação, porque dinheiro nós não conseguimos de jeito nenhum. Porque em uma casa você tem de tudo pra você comprar, porque você é dono de casa, você sabe. Tudo você tem que comprar e tudo você tem que pagar. Então, nunca que o salário de 415 dá pra você fazer tudo isso. Então, você tem que comprar a prestação, porque de todo jeito você tem que tirar aquele dinheiro da prestação pra você pagar. (Marta) Em algumas situações, a posse de bens é colocada como algo “urgente”, o que justificaria a compra a prazo para dar acesso rápido ao consumo, fato aceitável por nossa sociedade atual, marcada pela velocidade e rapidez. A grande questão, porém, é que, na visão 202 destes consumidores, conforme pude ver na pesquisa, todos os aparelhos são importantes e é relativamente inconcebível uma casa não ter aparelhos como geladeira, fogão, televisão, som e outros. Muitos consumidores, por exemplo, ao serem perguntados sobre o que aconteceria se ficassem sem os aparelhos eletrônicos, chegaram a afirmar: “Não conseguiria viver sem eles de jeito nenhum” ou “Arranjaria um meio de comprar outros rapidinho”. Ia depender da minha precisão, né. Se eu tivesse precisando muito daquele aparelho, eu faria prestação, sim. Por exemplo, geladeira, a gente não pode deixar de ter em casa; fogão, né, tem coisas que a gente não pode deixar de ter dentro da casa da gente. Então, a gente faz a prestação pra gente... (Fátima) Se eu estiver precisando muito, muito, mas muito mesmo do produto, eu, se fosse o meu caso, eu compraria a prazo com juros. Mas eu, claro, eu faria uma pesquisa de preços pra ver quais são os menores juros, quais os benefícios que eu vou ter ou não, né, porque é meio complicado o prazo de pagamento, em quantas parcelas e os valores, lógico. (Ilma) Em outras situações, a compra a prazo, atrelada ao pagamento de juros, é vista como um “mal necessário”. Os seguintes trechos dos discursos das entrevistadas retratam isso. Porque assim eu fico livre de vez. Juntei, vou lá e pago, e pronto! Mais se não tiver como, eu faço assim, umas seis... De seis a dez prestação. Mais que isso também eu não gosto, porque demora muito tempo pra pagar... E quanto mais tempo cê demora pra pagar uma coisa,você vai ter que pagar uma coisa e vai tirar uma coisa sua que você precisa ali diariamente. (Helena) O carnê, eu acho que é uma roubalheira. A Casas Bahia, se você vai comprar uma televisão lá de 12 vezes, você paga duas televisão. Eu acho assim, nesses 12 meses, se você economizar o valor daquela prestação, 6 meses você vai lá e compra um. (Eliane) Porém, a grande constatação é que os pobres urbanos tiveram nos últimos anos acesso ao sistema de crédito, que pode ter alterado o comportamento de compra destes consumidores. Assim, o uso do carnê e do cartão se disseminou entre os consumidores de baixa renda. As Casas Bahia, na visão de uma das entrevistadas, teria sido a primeira empresa a ter percebido a oportunidade, o que também contribuiu para esta importante e aparente irreversível mudança de hábito de consumo. 203 7.13 Crédito: uso do carnê e do cartão Compro muito parcelado. Em geral, sempre no cartão de crédito. Mas já comprei muito no carnê. (Luciana) Desde o início do trabalho de campo, esta categoria surgiu como algo de grande relevância para a pesquisa. É escusado afirmar que diferentes formas de acesso ao crédito para a compra de produtos diversos, tais como o uso tanto do carnê de pagamentos e o do cartão de crédito, estão bem disseminadas entre os pobres urbanos. Porém, o que se percebe é que, apesar de boa parte deles afirmar que preferem pagar à vista por causa da percepção do pagamento abusivos de juros, os entrevistados disseram espontaneamente que eles optam por fazer compras utilizando formas de crédito, pois seria uma das poucas, se não a única, oportunidades de ter acesso ao consumo, principalmente de aparelhos novos e mais modernos. Assim, desde o início da pesquisa destinei grande atenção nas observações e entrevistas na questão envolvendo o uso de carnê e de cartão de crédito. A dona de uma loja de móveis que entrevistei informou que mais de 90% de suas vendas são feitas a prazo, por meio seja do uso de promissórias seja do cartão de crédito. A utilização de cheques tem diminuído consideravelmente. Verifiquei bastante esta situação nas oportunidades que tive de permanecer no interior da loja para observação. Em um dessas ocasiões, em uma tarde de observação, foram várias as pessoas que se chegavam à loja com o intuito de saldar alguma prestação que estava em aberto. No momento da entrevista, que durou pouco mais de uma hora, fomos interrompidos pelos menos três vezes por parte de clientes solicitando o pagamento de carnês. Nas várias entrevistas que conduzi com as entrevistadas e nas conversas informais, a questão do acesso ao crédito foi bastante discutida. As seguintes falas das entrevistadas confirmam a importância que os pobres urbanos dão para o acesso ao crédito para a realização de seus desejos de consumo. Vale destacar que os consumidores pesquisados utilizam as formas de crédito principalmente para a compra de roupas, móveis, material de construção, produtos eletrônicos, eletrodomésticos e, em caso de emergência, remédios. Como o foco da pesquisa é a questão dos eletrônicos, pude verificar que, fora algumas situações excepcionais nas quais os consumidores aproveitaram alguma promoção de vendas executadas pelas redes de varejo, todos os consumidores utilizaram alguma forma de crédito para obter seus produtos. 204 Aqui, todo mundo que trabalha pode ter tudo que quiser. Tem muita facilidade pra você comprar. Mas você vê os outros comentando, televisão passando, tem muita facilidade... Tem muita facilidade... (Neusa) Não. À vista eu não ia comprar porque eu não ia ter condição de comprar ele à vista, né. Iater que comprar ele a prazo mesmo. (Aparecida) Compro muito parcelado. Em geral, sempre no cartão de crédito. Mas já comprei muito no carnê. (Luciana) Prefiro comprar à prestação, porque dinheiro nós não conseguimos de jeito nenhum. Porque em uma casa você tem de tudo pra você comprar, porque você é dono de casa, você sabe. Tudo você tem que comprar e tudo você tem que pagar. Então, nunca que o salário de 415 dá pra você fazer tudo isso. Então você tem que comprar à prestação, porque de todo jeito você tem que tirar aquele dinheiro da prestação pra você pagar. (Marta) É uma coisa que eu adquiri do meu suor mesmo. Eu fui, paguei assim, e fui pagando né, em dez pagamentos. (Celina) Eu lembro que um dos DVDs foi à vista, porque tava na promoção, e ele aproveitou e comprou. E só podia pagar à vista por causa da promoção. Aí, só podia pagar à vista. (Fátima) Aí, ela pegou e me disse que a máquina dela era muito boa, que tava um preço bom, sabe? Essa eu demorei 18 meses pra pagar (risos), porque na época, um pouco caro. Pra quem tem 5 filhos, não é brinquedo! Então, tem que medir, como diz minha mãe, água e fubá, né? (Helena) Ah, ela comprou a prestações né. Foi ela que pagou. Custou a pagar, mais pagou. (Jeane) Paguei no cartão de credito né, 10 vezes, 15 vezes. Foi lá no Extra. (Luciana) Alguns moradores do Cafezal percebem que atualmente é possível observar uma maior facilidade na obtenção de crédito. Muitos deles relataram que antigamente as lojas eram mais “criteriosas” no processo de concessão de crédito. Ou seja, era necessário ter “carteira assinada”, possuir endereço fixo, apresentar uma série de documentos e não ter o nome “pendurado” nos órgãos de proteção ao crédito. Contudo, nos dias de hoje, conforme um dos entrevistados, “as lojas estão fazendo „vista grossa‟”, o que faz com que qualquer um “tenha um „carro zero‟”. Com relação à posse de cartão de crédito, uma constatação da proprietária da loja de móveis que mantém um comércio na região há mais de trinta anos está relacionada com a introdução desta modalidade de crédito entre os consumidores de baixa renda. Segundo ela, algumas “bandeiras”, como Mastercard, têm destinado grandes esforços para atender as classes mais populares. Ela me relatou também que atualmente do total de vendas da loja de móveis quase 20% são pagos com cartão, percentual muito maior do que verificado há três anos. Pude constatar isso quando solicitei a algumas de minhas entrevistadas que me 205 mostrassem os tipos de cartões que utilizavam. Nas entrevistas, pude perceber que em todas as famílias vários integrantes têm cartões de crédito. Às vezes, até mais de um. As seguintes verbalizações retratam esta situação. Tenho. Eu tenho o meu; ele tem o dele. Quando o meu não dá, a gente pega o dele. (Luciana) Ah, usam. Minha filha mesma usa muito. Eu também uso, que eu também tenho. (Neusa) Praticamente assim, usado o cartão. No final do mês paga. Aí, começa a usar de novo, paga novamente. Comprado, praticamente, quase sempre é cartão. Em geral, supermercado, farmácia, essas coisas assim. (Luciana) Aí, minha mãe tem, meu irmão tem. Então, assim, pra que eu vou ter? Minha mãe tem dois. Eu estou assim, “Não sei pra que dois”. Aí, usa, né? O pessoal também usa mesmo... (Ilma) Uma das entrevistadas chega a generalizar a utilização do cartão de crédito, afirmando que muitos dos consumidores chegam a abusar desta possibilidade de crédito. Eu acho que eles usa mais cartão. Não tem uma pessoa que eu conheço que não tenha cartão de crédito. No meu convívio, todos têm, 2 ou 3, até mais. (Eliane) Porém, cumpre ressaltar que algumas das entrevistadas têm uma percepção mais crítica acerca do uso do cartão. Algumas pessoas que eu conheço têm. Mas a maioria está se enforcando por causa de cartão, né? Então, o povo se enforcou por causa de tanto do cartão. Tinha cartão em vários locais e em vários bancos, e acabou se enforcando, porque o cartão ele é dinheiro e, ao mesmo tempo, ele não é dinheiro, né? Aí, o que acontece? Você compra pra pagar em não sei quantas prestações e no final do mês você vai lá e paga. Mas aquilo ali vira uma bola de neve porque você tem que pagar juros altíssimos se você passar do prazo. (Helena) Ouvi mais de uma vez relatos de pessoas que tiveram problemas com o uso do cartão de crédito. Algumas delas até hoje estão impedidas de usar seu “nome” para fazer compras por estarem em débito com as operadoras. Uma das entrevistadas, que hoje prefere usar o cartão de crédito somente em casos muito especiais, fez o seguinte relato. Porque eu acho, assim, que cartão de crédito, eu embolei o meio de campo. Tinha três. Aí, eu embolei o meio de campo. Meu nome foi parar no SPC. Aí, eu tive que pagar todos, ficar assim pagando o mínimo. Aí, só, né, aí eu fui pagando devagar e... Fui lá e tive que ir... cancelando... cancelando... (Eliane) 206 Pude constatar nos discursos de algumas das entrevistadas uma tendência de planejamento das compras. Conforme já comentado, muitas vezes, os consumidores de baixa renda têm receio de ter o “nome sujo” e de isso comprometer suas futuras compras. Planejo. Tem que planejar. Tem que pensar direitinho nas compras pra não extrapolar, né? (Luciana) A gente faz pesquisa de preço. Ela [a mãe] faz. Eu aprendi isso com ela. E todo mês ela fica assim, ela já tem as datas, ela já fala:“Tal mês vai entrar tal cheque”. Então ela tem essa... Ela compra a prazo, mas ela se programa. (Ilma) Durante a pesquisa de campo, decidi incluir em minha investigação uma tentativa de entender como os próprios consumidores de baixa renda se definiam. Esta ideia me ocorreu devido à constatação a que cheguei nas análises preliminares das primeiras entrevistas, nas quais percebi que as entrevistadas não raramente assumiam uma postura um tanto defensiva com relação a diversos temas, mas o que não era corroborado quando se perguntava sobre o comportamento dos outros moradores ou vizinhos dos entrevistados. Além disso, a coordenadora de uma creche da Prefeitura de Belo Horizonte que atuava em projetos sociais na favela há quase quarenta anos me deu um “conselho” a partir de sua experiência com este tipo de público: “Você aborda mais ou menos a família e depois você confirma com a vizinhança”. Devido à proximidade física das casas, é fácil saber obter a informação de que necessita “acessando” a vizinhança. A próxima seção tem o objetivo de apresentar e discutir a questão da percepção do consumidor de baixa renda por ele mesmo. 7.14 Percepção do consumidor de baixa renda Com certeza, são muito consumistas. Nossa! ... Demais da conta! Aquela coisa! Quando ela vê uma pessoa que tem alguma coisa, aí ela faz de tudo e o impossível. Nunca vi querer tanto ... (Ilma) Ao iniciar a análise dos dados coletados no trabalho de campo, pensei que seria conveniente apresentar uma descrição juntamente com uma discussão sobre a percepção dos consumidores de baixa renda no que se refere tanto ao consumismo quanto à forma como eles veem o consumo de modo geral entre seus vizinhos, parentes e amigos. Ficou bastante explicitado nos discursos que os moradores da favela reconhecem que existe um comportamento generalizadamente consumista entre eles. Pude constatar isso de duas formas. Primeiramente, colhi diversos depoimentos que comprovam que as pessoas, principalmente 207 nos últimos anos, vêm se preocupando progressivamente com a compra de aparelhos para a casa. O proprietário de uma loja de conserto de aparelhos eletrônicos que reside no Cafezal diz ser corriqueira a situação de moradores cujas casas estão em péssimas condições de habitação, mas possuem uma televisão e um DVD novos. Muitas vezes, moradores deixam uma televisão relativamente nova para consertar e não retornam. Ao serem procurados, percebe-se que já adquiriram uma mais moderna no crediário. Outra forma de constatação dessa realidade, pude perceber nas inúmeras visitas que fiz às casas dos moradores. De fato, conforme já relatei, casas muito simples possuem quase todos os aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos disponíveis no mercado. Assim, acho que muita gente deixa de comprar tipo uma reforma na casa, por exemplo, pra comprar uma televisão tão cara que é essas de LCD, essas televisões de plasma. Deixa de fazer alguma coisa pra comprar uma televisão. (Jeane) Porque, olha, a gente está com uma televisão, agora, daí a pouco tem o lançamento de outro. Aí, vem com aquele preço absurdo, aí passa uns 2, 3 anos, essa TV de plasma, né, quase todo mundo já tem, os pobrezinho tem, os faveladinho tudo já tem [risos] (Eliane) As citações acima são exemplos de que a compra de eletrônicos é fato comum entre os pobres urbanos e de que, na maioria das vezes, não são levados em consideração na tomada de decisão de compra aspectos como a situação financeira da família ou outras necessidades, como a melhoria da casa. A percepção sobre consumismo é bastante clara entre os moradores da favela. Muitos chegam a afirmar que conhecem diversas pessoas de sua convivência que não têm controle sobre seus gastos, o que as leva a contrair dívidas e, posteriormente, chegam a ficar com o “nome sujo”. Eu penso que consumista é aquela pessoa que não pode ver nada que tudo quer, tudo tem que comprar. Às vezes, tá passando e acha interessante e vai lá e compra. Não quer saber de preço, não pesquisa, nada. Tá comprando, não quer saber, não. E se tem outros carnês pra pagar, tá comprando do mesmo jeito. Tá endividada, e quer comprar. Não pesquisa preço nem nada. (Ilma) Porque eu vou ficar vivendo através de contas? Uma amiga minha tá devendo não sei quantos; “Helena, eu tô doidinha já!”. E ela tá esperando neném, né. Aí, ela tá assim: “Como que eu vou pagar isso agora?” Eu falei: “Não, agora cê vai ter que pagar, né, fia. Seu nome vai pro SPC! Eu acho loucura fazer uma conta de um certo valor e que cê sabe que não vai ter esse dinheiro assim. (Helena) 208 Tive a oportunidade de visitar a casa da amiga dessa entrevistada. De fato, pude constatar que sua casa, apesar de pequena, escura e sem ventilação, é bem mobiliada e possui muitos aparelhos eletrônicos, como televisão de plasma de 42 polegadas com acesso à TV a cabo, outras duas televisões menores e diversos outros aparelhos eletrodomésticos. Também tive a preocupação nas conversas informais e nas entrevistas semi- estruturadas de tentar investigar como os consumidores percebem seus vizinhos, amigos e parentes residentes na favela quanto ao comportamento de consumo. É escusado dizer que a grande maioria tem a percepção de que todos são consumistas em excesso. É curioso notar que muitos deles não se veem como consumistas, mas acham que todos à sua volta são. Ah, são consumistas porque compra uma televisão 29. Aí, o próximo projeto é comprar um computador. E depois que compra um computador bom, aí já faz um projeto de tá aparelhando a casa com outros eletrodomésticos. (Marconi) Algumas pessoas eu tenho certeza também que pensam igual a mim. Mas a maioria, não, até em função da mídia mesmo, né, dos conhecimentos que eles têm, porque a questão do consumismo, do capitalismo, está muito inserida neles. Então pra eles: Ah, porque se a sua televisão não é tela plana, ela não é boa, porque a minha é de tela plana. O pensamento deles é... Aí começa a comparar: “Porque eu tenho isso e você não tem”. Às vezes, vê uma coisa diferente na casa das outras pessoas “Ah, eu também quero ter”. Se acha diferente, que é o mais moderno, sabe. Então, acho que o consumismo ali pra eles está muito grande. (Ilma) Porque compra mesmo. A gente, principalmente no final do ano, né, que acontece, promoção ali de 6 vezes, vai no outro, pega o carnê, chega em janeiro e fevereiro é um absurdo, porque seu salário fica todo e nossa, não dá. Aí, vem escola, né? Aí eu acho que é melhor... Mas que eu já conheço que embola, embola sim. (Eliane) Algumas pessoas que eu conheço, sim. Tipo assim, já tem televisor em casa, aí compra outro, compra outro, se puder comprar 5 compra e põe tudo dentro de casa... (Helena) Dado esse contexto no qual fica clara a importância do consumo na vida dos pobres urbanos, a próxima seção tem o objetivo de discutir o que os consumidores de baixa renda reconhecem como sonhos de consumo. 209 7.15 Sonhos de consumo Para entender um pouco mais o universo das experiências dos pobres urbanos pesquisados, julguei ser interessante tentar investigar questões relacionadas a seus principais sonhos de consumo. Indiscutivelmente, o grande sonho de consumo das entrevistadas está relacionado à conquista de uma casa própria, constatação que também confirmei em inúmeras conversas informais que mantive com os moradores. Muitas delas chegaram a enfatizar que a casa não precisaria ser muito grande ou espaçosa, mas deveria ser “bem construída” e “bem montada”, com móveis sofisticados, tapetes (uma citação que apareceu em várias entrevistas de forma curiosamente espontânea), aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos diversos. A citação que emergiu espontaneamente nas falas das entrevistadas que se referiam à casa do sonho foi: a sala de estar ou de televisão deveria necessariamente estar decorada com um tapete. Todavia, foi devidamente questionada em outras fases da coleta de dados. As entrevistadas pareciam considerar o tapete como algo que distinguiria uma casa “sofisticada” de uma casa simples, muito em decorrência da constatação de que boa parte das moradias no bairro não tem piso ou revestimento. Nesse caso, o tapete seria o “diferenciador” e retrataria conforto, sofisticação e satisfação, proporcionados pelas cores e pela maciez do tecido. Algumas outras questões relevantes relacionadas ao sonho da moradia emergiram nas entrevistas. Uma delas se refere à organização das casas, em que tudo teria seu lugar certo e deveria estar sempre limpo com o chão constantemente encerado. Outra questão ressaltada pelos entrevistados: as casas deveriam ser construídas em um terreno plano. Também seria ideal ter um espaço para um quintal ou jardim. Além disso, confirmando o que já foi discutido nas seções anteriores, seria uma casa na qual fosse possível comportar e receber todos os integrantes das famílias, que não raramente são bastante numerosas. Nesse sentido, as casas deveriam ter quartos “reservas” para receber aqueles parentes que necessitassem. A preocupação com as visitas também foi marcante nas falas das entrevistadas. Ah, a primeira coisa que eu ia comprar pra mim é... arrumar minha casa. A primeira coisa que eu ia era arrumar minha casa, que minha casa molha quando chove. (Gisele) A primeira coisa que eu ia fazer é comprar uma casa pra mim. (Ilma) Uma casa. Uma casa, porque há muitos anos que eu moro lá. Na verdade, e eu queria uma nova ... (Marta) 210 Ah, eu queria sair daqui pra um bairro melhor, uma casa grande, tipo assim, quatro quartos, porque lá em casa sempre tem que ter mais um, né, por causa dos meus sobrinhos. Eles tão sempre dormindo lá em casa ... (Diana) É interessante ressaltar que uma atenção especial foi dada ao espaço de convivência na “casa ideal” sonhada. Várias entrevistadas citaram a sala de televisão como este local de interação da família. Este cômodo da casa, para ser um espaço adequado para assistir televisão e filmes, deveria, além de todos os aparelhos modernos, ter um aspecto aconchegante, amparado por diversos itens de decoração, como sofás espaçosos e confortáveis, tapetes sofisticados e almofadas para promover uma experiência agradável para todos os integrantes da família e visitas. Os enfeites e os adornos também deveriam ser usados para “alegrar” o ambiente. Ademais, na visão das entrevistadas, não poderia faltar o home theater, aparelho que algumas sabem o que é, mas não conseguem pronunciar o nome correto. Porém, além da casa, outro grande sonho de consumo do grupo de moradores da favela do Cafezal que pesquisei estava relacionado à posse de aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos diversos. O computador emergiu como um aparelho que começa a ser a meta de aquisição de vários dos consumidores que pesquisei, principalmente para uso dos filhos mais jovens. Nas visitas que fiz às residências, verifiquei que o computador não é novidade nas casas de consumidores de baixa renda, ainda que boa parte deste aparelho tenha sido adquirido já usado ou ganhado de terceiros. Além disso, como boa parte deles já possui televisão, DVD e som, a vontade, na visão deles, seria adquirir produtos mais modernos, como as televisões de 29 polegadas ou os modelos de plasma ou LCD. Não apareceu entre minhas entrevistadas a pretensão de ter acesso a outros bens de consumo, como carros e motocicletas, considerados como essenciais para outros grupos de consumidores. Assim, é possível iniciar a discussão que motivou a elaboração desta tese: as experiências de consumo dos eletrônicos. A próxima seção tem o objetivo de descrever como os consumidores pobres veem e vivenciam suas experiências de consumo nas mais diversas situações do seu cotidiano. 211 7.16 Experiências de consumo dos eletrônicos É, todo mundo ali assistindo alguma coisa e conversando na santa paz, sem discussão, sem briga. O momento que eu mais amo na minha vida, é esse momento. (Helena) Conforme já apresentado no capítulo introdutório da tese, toda a pesquisa foi construída a partir da seguinte questão: Como os consumidores de baixa renda vivenciam suas experiências de consumo de produtos eletrônicos? Com o trabalho de campo, pude verificar a existência de uma riqueza de detalhes relevantes que emergiram tanto nas conversas informais e em observações quanto nas entrevistas semiestruturadas no que tange a esta questão. Por isso, a experiência de consumo dos eletrônicos foi uma das categorias mais importantes da pesquisa. Logo no início do trabalho, comecei a perceber o que iria constatar até o final do meu convívio com os moradores: os aparelhos eletrônicos pesquisados (televisão, som e DVD) fazem parte da vida dos consumidores pesquisados nas mais esperadas e comuns situações do cotidiano como única forma de distração, fonte de informação e de atualização de notícias e possibilidade de se “desligar” dos problemas cotidianos. Porém, foi percebido que os consumidores percebem os aparelhos eletrônicos e vivenciam o seu uso em inúmeras outras situações que não haviam sido pensadas preliminarmente na pesquisa. Como exemplos, podem ser citados o uso da televisão e do DVD para tirar o filho da rua e como momento importante para a reunião de família, além de ser uma forma de distinção e de aproximação entre vizinhos, parentes e amigos. Não se pode deixar de mencionar que a posse e a utilização dos aparelhos também evocam uma série de sensações e emoções. Diante da riqueza de situações e detalhes, o QUADRO 22 sintetiza as principais categorias que emergiram da pesquisa acerca da vivência dos consumidores pobres urbanos com os aparelhos eletrônicos. Vale destacar que todas essas categorias surgiram espontaneamente nas primeiras entrevistas e foram, nas etapas seguintes, investigadas com maior profundidade. Conforme já comentado em outros pontos deste capítulo, a televisão é o aparelho mais presente e mais valorizado pelos moradores da favela em que ocorreu a pesquisa. Em muitas casas, era comum a existência de duas ou três televisões. Em boa parte das situações, percebi que a televisão permanecia ligada o tempo todo, mesmo sem a presença de espectadores. Assim, inúmeras foram as situações nas quais o uso da televisão se fazia importante: como lazer e entretenimento, proporcionados pelas emoções de assistir filmes e novelas, como fonte 212 de informação, por meio de telejornais e programas diversos, como uma forma de “fuga” da realidade, dos problemas e das frustrações vivenciados no dia a dia, como um momento importante de reunião de família e, até mesmo, como diminuição da solidão. QUADRO 22 – Categorias da experiência de consumo dos eletrônicos Uso dos aparelhos eletrônicos Televisão Distração e entretenimento Fonte de informação “Fuga” da realidade Reunião de família Diminuição da solidão DVD Entretenimento Manter o filho em casa Filmes que relembram o passado Som No cotidiano Arrumar a casa Reunião de família e amigos Lembrança do passado Fonte: Pesquisa de campo Ah, significa meio de comunicação né, de cê ficar bem informado, jornal. Ou, mesmo, programas humorísticos, né. Assistir, ficar, sei lá. Pode ser ficar um pouco feliz de assistir, de esquecer alguns problemas. (Aparecida) Olha, a televisão, ao mesmo tempo assim que cê pode ver coisas de lazer, também pode trazer muita informação também assistindo jornal, né. Assim, abre as portas pro mundo, né? (Fátima) Um momento de lazer, porque é o momento que eu tô ali com meus filhos, assistindo a minha novela, assistindo a um filme. Então, é um momento de lazer. Pra mim é. (Helena) Também, que eu gosto muito de novela, né. Novela... E é bom a gente saber alguma notícia. Ver notícia é bom. Jogo, eu gosto de jogo... (Neusa) A televisão serve pra um momento ali de reunião também, da família. (Celina) Porque quando eu perdi a minha filha, o meu filho que me dava aquela sustentação, né, eu perdi ele. Então, agora, se eu tô em casa, eu ligo o rádio e ligo a televisão, que aí eu tô vendo um e ouvindo o outro. (Aparecida) Quanto ao uso do DVD, foi possível perceber que, como as oportunidades de lazer em áreas pobres são escassas e como no orçamento familiar não é permitido muitos gastos com atividades do tipo, os consumidores de baixa renda têm o acesso aos filmes como principal 213 forma de entretenimento, especialmente nos finais de semana. É interessante notar que o uso do DVD popularizou-se muito nos últimos anos por alguns motivos. Em primeiro lugar, pelo fato de ser um aparelho relativamente barato, o que facilita a aquisição por parte dos consumidores de baixa renda. Em segundo lugar, conforme já discutido, pela política agressiva de crédito concedido pelas redes varejistas ofertantes de aparelhos eletrônicos, que facilitou o acesso a estes bens de consumo. Por isso, boa parte das casas já tem pelo menos um aparelho de DVD. Cumpre ressaltar que os filmes em DVD foram citados como uma “estratégia” interessante para manter os filhos pequenos em casa, longe da rua. Acho que usa muito o DVD. As pessoas gostam muito de assistir filme, esse tipo de coisa. Então, tão sempre alugando filme. Eu vejo até pela movimentação da locadora lá. Então, com certeza muitas têm DVD. E agora também a gente escuta música, né, pelo DVD. Então, às vezes não tem aparelho de som ou, às vezes até tem, mais não toca CD. Põe no DVD, funciona do mesmo jeito. (Ilma) Com frequência demais, principalmente final de semana. Final de semana vai na locadora, a gente compra muito DVD Pirata (risos)... Todo mundo compra, todo mundo compra... Não tem como... Não tem como... Compra os DVDs pirata. Sai lançamento assim, quando chega, a gente vai, reúne mesmo, para tudo, para tudo. Eles fica lá no quarto ou na sala lá. (Eliane) Eu tiro ele da rua e boto ele pra assistir um filme. Mando ele alugar um filme. (Helena) Mais a televisão pra nós tá sendo usada como uma forma de tirar ele da violência né, tirar ele da rua, porque ficar na rua, no Aglomerado e ficar na rua, então a gente mantém televisão e filme num modo de tirar ele da rua. (Luciana) Já no que tange ao som, é possível afirmar que trata-se de um aparelho eletrônico de grande penetração nas classes populares, e por isso tem uma grande preferência pelos consumidores de baixa renda. Pude verificar essa questão desde o início do trabalho de campo, pois sempre era possível ouvir o som, sempre em volume alto, oriundo de várias casas. Essa situação pode ser verificada em diferentes dias da semana, porém é especial nos sábados e domingos. De acordo com o relato de alguns moradores, não importa o estilo e muito menos o ritmo da música. O interessante é ter algum som para acompanhar todas as atividades do cotidiano, como arrumar a casa, para as mulheres; fazer algum conserto doméstico, para os homens; e, principalmente para fazer parte de conversas entre amigos ou alguma comemoração. Algumas entrevistadas mais velhas, que também gostavam de utilizar o som em diversas ocasiões do dia a dia, relataram que o som tinha a função de relembrar momentos especiais vividos no passado. 214 Na parte da manhã, assim, quando estou em casa, pra arrumar casa, fazer alguma coisa, bom por uma musiquinha. (Beatriz) O som. Sempre tem som, sempre. Independente de tamanho, do modelo, sempre tem. O pessoal ama música. Então, sempre tem, seja radinho de pilha, não importa, mas tem que ter. Sempre tem. (Ilma) Prefiro ter a opção de ir lá no rádio, botar na rádio que eu gosto, sabe, e arrumar casa ouvindo meu rádio. Eu prefiro o som ... Da limpeza da casa, porque é bom demais arrumar casa com música [risos] (Helena) A questão do som, do rádio, eles gostam das mesmas músicas, tanto os pequenos como os maiores. Acho que já vai crescendo no ritmo deles, sabe? E canta também. Já sabe das letras... (Eliane) Ah, a gente fica conversando, ouvindo música. (Diana) Usa, usa. Agora, lá agora onde eu moro mesmo tem uns vizinhos que é direto, mas assim usam. Os moradores já acostumaram. Eles não ligam. Cada um liga o som, num sabe, num CD. Fica aquela barulhada. Mas só que o povo acostumou. Não liga, não. (Neusa) Ainda que seja percebido um grande compartilhamento de aparelhos e espaços, vale destacar o “cuidado” que os consumidores de baixa renda têm com seus aparelhos eletrônicos, o que evoca uma série de sentimentos e sensações. O QUADRO 23 sintetiza alguns dos sentimentos e sensações que emergiram espontaneamente no trabalho em relação à posse e ao uso dos aparelhos eletrônicos. QUADRO 23 – Sentimentos e sensações evocados pelos aparelhos Sentimentos e sensações Encanto Apego Ciúme Sensação de conquista e recompensa Lembrança Envolvimento Amor pelos filhos Fonte: Pesquisa de campo Ao longo do trabalho, pude constatar a importância que os consumidores de baixa renda atribuem aos aparelhos eletrônicos, visto que estes têm poder de fascínio e representam um importante espaço no imaginário desses consumidores. Na visita às casas, muitos deles gostavam de mostrar com orgulho suas novas aquisições: um novo som mais potente ou a compra de um computador para os filhos. No mesmo sentido, pude verificar certo 215 encantamento por parte dos consumidores com os avanços da tecnologia, que permitiam oferecer tanta informação, entretenimento e cultura pelos aparelhos. Outros sentimentos também puderam ser verificados na convivência com os pobres urbanos que pesquisei. Os seguintes trechos das falas das entrevistadas evidenciam os sentimentos evocados pelos aparelhos. Eu já acostumei com eles. Chega um certo ponto que cê acostuma com as coisas que cê tem, as coisas que cê comprou, que cê adquiriu, né? (Celina) Não, não é ciúme, que menino né, cê já viu né; não pode ver nada que estraga. Então, eu não posso ficar deixando mexer. (Fátima) E eu tenho o som até hoje. Funciona superbem. Eu sou apaixonada, tenho muito ciúme do meu som. Um arranhadinho assim, eu já fico: “Quem que arranhou? Por quê? O que que aconteceu? Me explica o que que é isso?”. (Ilma) Por diversas vezes, tanto nas falas das entrevistadas quanto nas conversas com os moradores da favela, pude observar, independentemente da idade ou do gênero, que todos eles percebem a posse dos aparelhos eletrônicos como uma recompensa e, até mesmo, como uma forma de distinção para com os mais pobres, conforme já discutido. No mesmo sentido, é possível notar uma sensação de conquista por ter conseguido, apesar das adversidades, ter condições de ter uma casa “moderna”, com tudo que há “de bom e de melhor”. Os trechos das falas das entrevistadas evidenciam toda esta questão. Ah, eu acho que é uma conquista que a gente tem, né, que a gente trabalha e vai conquistando, né. A gente sempre quis ter essas coisas. (Diana) O aparelho, por mais simples que seja, né, mostra que cê tá melhorando, que cê tá progredindo, porque antigamente era difícil demais cê adquirir umas coisas dessas, né? (Luciana) É um lucro que eu tive do meu trabalho, né, que eu conquistei com meu suor, né, trabalhando ali a finco, né, pra poder conseguir. (Aparecida) Ah, porque assim, meu pai trabalhou a vida toda. Ele trabalha desde novo. Então, assim, é justo ele comprar e ter as coisas, né, pelo esforço que ele teve e tudo. Agora, ele tá aposentado, é justo ele ter uma televisão em casa, uma distração, já que ele não gosta de sair muito. Então, assim, pra ele é ótimo. (Fátima) Ah, que Deus me deu muita força pra eu ter comprado. É meu esforço, é meu suor. Eu olho praquilo ali e agradeço a Deus porque eu tenho disposição pra trabalhar. Ah, que eu me esforcei né, pra ter. É uma coisa que eu adquiri do meu suor mesmo. Eu fui, paguei, assim, e fui pagando né, em dez pagamentos. (Celina) 216 Ah, eu acho que recompensa, né, porque a gente acorda cedo pra ir trabalhar, a gente quer melhorar, né, quer ter produtos bons em casa, pra gente, pelo menos na hora do descanso a gente tá ali, né, vendo uma coisa sempre que a gente quer com a televisão boa, ver um filme... (Diana) Em alguns momentos nas entrevistas, notei que a experiência de consumo dos aparelhos era um momento especial de recordação ou lembrança de bons momentos da vida vivenciados. Uma das entrevistadas, por exemplo, muito emotiva, contou que seu aparelho de som não funcionava mais, porém não se desfaria dele por nada, uma vez que era uma grande lembrança de seu filho falecido há alguns anos. Uma outra entrevistada, mais jovem, sempre lembrava do seu ex-namorado, pai de sua filha, ao rever alguns filmes que havia ganhado de presente. Para outra, o uso do som era motivo para lembrar uma das fases mais divertidas da adolescência e da juventude com uma turma de colegas. Cabe ressaltar também que para muitas das entrevistadas a posse e o uso dos aparelhos eletrônicos representam uma forma de demonstrar amor, cuidado e atenção e de proporcionar maior conforto para seus filhos, já que a casa em que moram é bastante simples. Ou seja, ter uma boa televisão, um DVD e um som é, na visão de algumas entrevistadas, uma “prova” de que elas são boas mães e que se preocupam com o bem-estar de seus filhos. No mesmo sentido, seria uma forma de “minimizar” o fato de morarem em um bairro pobre e com estrutura urbana precária. É interessante comentar que as entrevistadas mais velhas também demonstram ter estes sentimentos não por seus filhos que já têm sua independência, mas por seus netos. Ah, assim, eu acho o seguinte, que cada coisinha que a gente compra e que a gente consegue comprar é um momento especial na vida da gente; “Olha, eu consegui. Eu queria comprar tal coisa e comprei!”. Mais, como eu já disse antes, satisfação que eu tenho de olhar pros aparelhos lá de casa, é chegar e falar assim: Olha, meus filhos têm, entendeu? Comprei porque o meu filho queria tanto, e eu consegui comprar! Maior orgulho! Eu tenho o maior orgulho quando eu consigo comprar alguma coisa que eu ou então meus filhos queira. (Helena) E ter um sonho e o sonho ter realizado, entendeu? Mesmo assim, em prol dos meus filhos, sabe, e eles ficam tão assim alegres quando chega uma coisa nova dentro de casa!,Eles ficam eufóricos, fica alegres. Aquilo ali pra mim já pagou o esforço. (Eliane) Atrelado aos objetivos da tese, busquei investigar as situações vivenciadas pelos consumidores na experiência de consumo de aparelhos eletrônicos. Para ilustrar algumas dessas situações de consumo, pensei ser conveniente incluir a descrição da experiência de 217 consumo de uma das famílias que acompanhei, originadas de um trecho de meu diário de campo. “Havia combinado com uma de minhas entrevistadas que gostaria de passar um dia na sua casa para conhecer como era o uso dos aparelhos eletrônicos por toda a família. Achamos mais conveniente marcar um domingo, dia no qual todos estariam em casa. Por isso, naquele dia cheguei cedo. Para ter acesso à casa, tive que descer uma escada. Tratava-se de um conjunto de casas que foram construídas uma ao lado da outra. Da escada, portanto, dava para visualizar o interior das casas. Ao chegar, logo percebi que, por se tratar de uma casa pequena e composta por nove moradores (pai, mãe e sete filhos), os espaços precisavam ser compartilhados. As paredes eram rebocadas, porém não eram pintadas. O chão, que era coberto com um piso de baixa qualidade, apresentava diversas rachaduras. A casa era coberta por uma laje, o que tornava o ambiente bastante quente. A ventilação era proporcionada por algumas pequenas janelas e basculantes. Na sala, vi uma televisão, juntamente com um DVD que possuía a função de karaokê. Ambos estavam localizados em uma pequena estante de madeira de baixa qualidade decorada com diversos pequenos enfeites. Dois pequenos sofás e uma mesa com apenas duas cadeiras compunham o ambiente. Havia apenas dois quartos (um para o casal e outro para os filhos mais velhos). Fiquei sabendo que duas das crianças dormiam na sala e outras duas no quarto do casal. Na cozinha, observei a existência de um fogão e uma geladeira, ambos de modelos antigos. Verifiquei uma certa desordem, com pratos e talheres espalhados pela mesa e panelas com restos de comida no fogão e na pia. Disse para todos que eu não queria ser tratado com cerimônia, que seria uma visita comum. Num primeiro momento, todos ficaram um pouco desconfiados, mas em seguida, como comecei a brincar com as crianças, todos já sentiam mais à vontade. Logo que cheguei, observei que a televisão já estava ligada em um volume alto. Pouco tempo depois, vi que uma das filhas mais velhas pegou um som portátil e foi ouvir um CD na parte de cima da casa, a chamada “laje”. Tratava-se de um CD com músicas diversas. Algum tempo depois, uma de suas irmãs e duas colegas vizinhas já estavam na “laje”, conversando. Enquanto a dona da casa preparava um leite para dois dos filhos mais novos, outros comiam biscoitos e tomavam café. Vez por outra, vinham até a sala, assistiam um pouco de 218 televisão e logo em seguida pegavam algum dos brinquedos que começavam a ficar espalhados pela sala. Percebi que eram brinquedos simples. Pelo estado de conservação, inferi que eram utilizados por várias das crianças. Algum tempo depois, presenciei uma briga entre dois dos filhos, pois um queria ver um DVD que havia conseguido com um de seus colegas vizinhos e outro queria assistir um jogo na televisão. A mãe teve que intervir com autoridade, mandando um deles assistir o jogo numa pequena televisão que estava no quarto do casal. Porém, depois de algum tempo, ele estava de volta para assistir o filme. Com a exibição do filme, quatro das crianças ficaram sossegados de frente para a televisão. A aparente tranquilidade só foi quebrada quando chegou uma das irmãs da dona da casa com outros dois meninos. Um deles trouxe uma bola e convidou aos outros para brincar na rua em frente. Dessa forma, o filme foi retirado para ser assistido mais tarde, o que causou certa indignação em um deles, que queria continuar assistindo. Mais uma vez, a mãe teve que intervir dizendo que todos voltariam a assistir o filme depois do almoço. Realmente, o filme voltou a ser exibido após o almoço com a presença de cinco dos filhos mais os dois primos que haviam chegado pela manhã. As duas filhas mais velhas que ouviram som quase a manhã toda, haviam saído com algumas colegas. Eles se espalhavam pela sala, alguns no sofá e outros deitados no chão. Quase sempre, o filme era interrompido com o comentário ou choro de algum deles, o que causava uma reclamação dos mais velhos. Novamente, a mãe tinha que intervir para evitar maiores problemas. A dona da casa e sua irmã decidiram não assistir o filme, optando por ir para a cozinha para “colocar as fofocas em dia”. Também conversei com a dona da casa. Ela me relatou que aquele dia todas as crianças estavam mais tranquilas. Em outras ocasiões, principalmente na época da compra do DVD com karaokê, havia brigas intermináveis entre os filhos, pois todos queriam utilizá-lo ao mesmo tempo.” A partir deste relato das conversas informais e das entrevistas semi-estruturadas conduzidas por mim ao longo do trabalho de campo, pode-se chegar ao QUADRO 24, que busca resumir as principais situações verificadas por mim relacionadas às experiências de consumo de aparelhos eletrônicos. 219 QUADRO 24 – Situações na experiência de consumo Situações na experiência de consumo Compartilhamento Brigas “Festa” Momento especial Fonte: Pesquisa de campo Uma das situações mais corriqueiras que verifiquei em meu trabalho de campo foi o compartilhamento de objetos. Nesse sentido, os consumidores de baixa renda têm por hábito compartilhar tanto aparelhos eletrônicos como filmes e outros objetos de consumo. Porém, como as famílias são numerosas e na mesma casa convivem irmãos, primos e outros parentes, é bastante comum a ocorrência de brigas e desavenças entre as crianças e, até mesmo, entre os adultos que não raramente têm gostos diferentes no tocante à programação televisiva e em relação a filmes e tipos de música. Mais tipo assim: ele quer assistir uns dois filmes seguidos. Assim, a gente briga por causa disso: “Ah, mais até agora assistindo esse filme e tal? Agora é minha vez!”. A briga é assim mesmo. Ou, então, fica assistindo um programa e vai assistindo o outro. Assim, não deixa a gente escolher. (Jeane) Briga na televisão tem, né? Como agora lá em casa tem duas, numa a gente... Lá em casa tem duas, mas aí, como uma está lá num canal específico, o outro quer desenho... Um quer assistir DVD, fica no quarto; o outro quer assistir desenho, fica na sala. (Eliane) Aí, cê tá ali assistindo alguma coisa e de repente eu brigo com meu pai. Acho que já até aconteceu assim. Cê tá assistindo uma coisa, e ele quer assistir outra. “Não, mais eu tô assistindo e tal”, e ele sai assim, pra rua... Se eu tivesse deixado ele assistir, sabe, ele ficava mais presente em casa. (Ilma) Porém, apesar das confusões advindas de brigas e desavenças que a experiência de consumo dos eletrônicos pode trazer às famílias, ficou muito explicitado pelos meus informantes que a utilização dos eletrônicos, muitas vezes, é um momento de “festa”, no qual a família pode estar junta e desfrutar de horas alegres e agradáveis de convivência. Ó, quando eles pedem pra locar eu que loco, né, porque eu tenho que saber quanto que é, que filme que ta locando, sabe. Então, quer dizer, fazem pipoca, fazem suco, compra refrigerante, faz um bolo e monta lá na sala. (Eliane) Normalmente, senta um pouco no sofá, um pouco no chão, um pouco deita lá na cama, e fica assistindo cá da sala, sabe, da porta do quarto. Normalmente, quando tá assistindo filme, a gente enche uma vasilha de pipoca, né. A gente mais fala do que 220 assiste, né, normalmente. É tanta coisa pra discutir durante o dia que aí a gente acaba... Metade do filme a gente assiste, metade fica sem assistir. [risos] (Helena) Ô gente, aqui em casa não tem nada de diferente que esses meninos têm que ficar aqui em casa. Aí, todo mundo fica lá em casa. Aí, ás vezes, eu cismo de alugar um filme. Aí, eu tenho que fazer pipoca. Eu faço pipoca (eu acho o máximo). Faço pipoca pra todo mundo. Aquela meninada tudo sentada, sujando as camas tudo, mais fica lá. (Ilma) Por fim, vale destacar que a experiência de consumo dos aparelhos pode se transformar em um momento especial da família, tanto positivamente, quando a família se reúne e compartilha de momentos agradáveis, quanto negativamente, nas vezes em que o consumo torna-se motivo para brigas e reclamações, conforme foi ressaltado por algumas entrevistadas em momentos diferentes da pesquisa. Então, o que a gente faz? Aluga vídeo. Então senta todo mundo ali na sala, junta todo mundo pra ver vídeo. Aí sempre tem aquela coisa: “Ah, traz assim, traz um vídeo de terror que eu quero ver”. Junta a família inteira, sabe? É um momento gostoso... (Ilma) É, todo mundo ali assistindo alguma coisa e conversando na santa paz, sem discussão, sem briga. O momento que eu mais amo na minha vida, é esse momento. Que quando tem esse momento e tá faltando um, não é a mesma coisa. Esse é o momento especial na minha vida. É esse. (Helena) A partir do relato do consumo dos aparelhos eletrônicos, conforme percebido pelos consumidores de baixa renda pesquisados, será possível, no próximo capítulo organizar os elementos de uma teoria substantiva para explicar a experiência de consumo dos pobres urbanos. 221 8. UMA TEORIA SUBSTANTIVA DA EXPERIÊNCIA DE CONSUMO DE ELETRÔNICOS DE CONSUMIDORES DE BAIXA RENDA Este capítulo tem o propósito de apresentar e discutir os elementos da teoria substantiva, que busca explicar as experiências de consumo de aparelhos eletrônicos dos consumidores de baixa renda. Para isso, inicialmente, julguei adequado acrescentar uma discussão, ainda que sucinta, acerca do que vem a ser teoria nas diferentes perspectivas das ciências sociais. A partir daí, iniciei a apresentação da construção da teoria substantiva, com ênfase na descrição da categoria central da teoria, a qual representa o fenômeno em estudo. Na sequência, são apresentadas as demais categorias que constituem os elementos do esquema teórico que explicam o fenômeno. A última seção do capítulo tem o objetivo de fornecer uma avaliação da teoria substantiva. 8.1 Uma breve discussão sobre teoria Ao pensar sobre teorização em grounded theory, torna-se essencial buscar um entendimento da definição de teoria nas ciências sociais. A definição de teoria adotada nesta tese é a proposta por Strauss e Corbin (2008): [...] um conjunto “bem desenvolvido” de categorias (temas, conceitos) que são sistematicamente inter-relacionadas através de proposições de relação para formar uma estrutura teórica que explique alguns fenômenos relevantes sociais, psicológicos, educacionais... (STRAUSS e CORBIN, 2008, p. 35). Para estes autores, uma teoria é mais do que um conjunto de resultados; ela oferece uma explicação sobre os fenômenos. Assim, buscar gerar teorias sobre determinados fenômenos em vez de propor apenas um conjunto de resultados torna-se uma importante tarefa para aqueles pesquisadores que almejam o desenvolvimento de um campo do conhecimento. Porém, é essencial salientar que, a partir das duas posições epistemológicas “opostas” referentes aos paradigmas das ciências sociais – o positivismo e o interpretativismo –, não é difícil concluir que essa oposição também tem forte influência na forma como os pesquisadores entendem, definem e “constroem” suas teorias sobre os fenômenos sociais. Dessa forma, podem-se citar dois tipos principais de definição de teoria: uma definição positivista e outra interpretativista. 222 A definição positivista concebe teoria como o estabelecimento de relações entre conceitos abstratos que cobrem uma ampla faixa de observação empírica. A visão positivista vê seus conceitos teóricos como variáveis e constrói definições operacionais de seus conceitos por meio de teste de hipóteses, com mensuração empírica reaplicável e acurada. A teoria positivista busca causas, favorece explicações determinísticas, verifica relações teóricas por meio de teste de hipóteses e enfatiza generalidade e universalidade. Nesta visão, os objetivos da teoria são: explicação e predição (CHARMAZ, 2006). Complementarmente, de acordo com a vertente positivista de teoria, Bacharach (1989) propõe que uma teoria pode ser vista como um sistema de construtos e variáveis no qual os construtos estão relacionados uns com os outros por proposições e as variáveis estão relacionadas por hipóteses, conforme pode ser visualizado na FIG. 9. O autor, a partir da FIG. 9, define construto como termos que, ainda que não observáveis direta ou indiretamente, podem ser aplicados, ou mesmo, definidos com base em observações. Já variável pode ser definida como uma entidade observável que é capaz de assumir dois ou mais valores. Assim, um construto pode ser visto como uma configuração mental de um dado fenômeno, enquanto uma variável pode ser vista como um configuração operacional derivada de um construto. Por fim, fronteira compreenderia as suposições sobre valor, tempo e espaço. FIGURA 9 – Uma representação de teoria positivista Fonte: Adaptado de BACHARACH (1989) CONSTRUTOS VARIÁVEIS CONSTRUTOS VARIÁVEIS Proposições Hipóteses Fronteira 223 Já os proponentes de uma visão interpretativista de teoria, da qual são adeptos Strauss e Corbin (2008), Charmaz (2006), Clarke (2005) e Goulding (2002), autores que embasaram a discussão de grounded theory dessa tese, veem o entendimento teórico como abstrato e interpretativo e o entendimento proposto pela teoria como interpretação do pesquisador sobre o fenômeno pesquisado. As teorias interpretativistas, portanto, enfatizam a subjetividade presente na vida social e, mais do que buscar a causalidade, dá prioridade à exibição de padrões mais do que à apresentação de razões lineares. Ademais, as teorias interpretativas buscam entendimentos imaginativos do fenômeno estudado. Este tipo de teoria: assume realidades múltiplas e emergentes; contextos histórica e socialmente construídos; fatos e valores como interligados; verdade como provisional; e a vida social como processual. Para Charmaz (2006), resumidamente, uma teoria interpretativista busca:  conceituar o fenômeno estudado para entendê-lo em termos abstratos;  articular reivindicações teóricas pertencentes ao escopo com profundidade, poder e relevância;  reconhecer a subjetividade na teorização e, ainda, o papel da negociação, diálogo e entendimento; e  oferecer uma interpretação inventiva. A partir dessa breve discussão, cumpre ressaltar que a teoria desenvolvida nesta tese se aproxima da vertente interpretativista, visto que, conforme discutido no capítulo 5, julgou-se mais adequado escolher a corrente da grounded theory, denominada “construtivista”, que coloca prioridade no fenômeno de estudo e busca tanto dados quanto análises construídas a partir das experiências e relacionamentos compartilhados com os participantes do estudo. No mesmo sentido, qualquer análise é contextualmente situada no tempo, lugar, cultura e situação (CHARMAZ, 2006). Ademais, como o objetivo da tese é buscar um entendimento de como um grupo de consumidores vivencia suas experiências de consumo, deve-se privilegiar a construção de “pequenas” teorias múltiplas relacionadas ao consumidor mais do que uma teoria “única”, “potente” o suficiente para explicar todos os fatos e situações (FIRAT e VENKATESH, 1995). 224 8.2 Construindo a teoria Conforme discutido no capítulo anterior, o entendimento das experiências de consumo de aparelhos eletrônicos vivenciadas pelos pobres urbanos em estudo nesta pesquisa deve considerar aspectos que extrapolam fatores econômicos ou puramente racionais dos consumidores. Por meio das descrições e discussões conduzidas acerca dos vários temas que emergiram do trabalho de campo, pode-se perceber que a experiência de consumo na visão desses consumidores é permeada por questões simbólicas e fruto de uma construção histórica e social que somente pôde ser descortinada a partir de uma convivência com o grupo pesquisado. Nesse sentido, ainda que seja possível perceber alguns aspectos racionais no discurso dos entrevistados, somados a algumas variáveis de cunho situacional inerentes ao cotidiano deles, as questões simbólicas explicam a maior parte do fenômeno das experiências de consumo de eletrônicos por consumidores de baixa renda, e por isso é considerada a categoria central do estudo. 8.2.1 A categoria central: questões simbólicas do consumo de eletrônicos A partir das análises e discussões sobre a percepção dos consumidores pobres conduzidas nas fases de codificação aberta e axial, e, principalmente, na etapa final da codificação seletiva, pode-se finalmente, tentar responder à questão que acompanha o pesquisador em uma investigação baseada no método da grounded theory: Sobre qual fenômeno tratam os dados? No caso desta tese, o fenômeno está relacionado à forma como os pobres urbanos vivenciam suas experiências de consumo de aparelhos eletrônicos. Diante das análises, pareceu válido considerar que a experiência de consumo é permeada de questões simbólicas, fruto de uma construção social e contextual na qual os consumidores são atores atuantes. Como tal, influenciam e são influenciados. Durante toda a fase de coleta de dados, foi possível perceber no cotidiano dos moradores da favela, fato explicitado, muitas vezes, nas falas das entrevistadas, que a experiência de consumo de aparelhos eletrônicos tem forte componente cultural. Por isso, defini como categoria central da teoria substantiva em construção a categoria “questões simbólicas”. Pode-se ressaltar que por questões simbólicas estão referenciadas vários dos fatores culturais, sociais e históricos que fazem parte do cotidiano dos pobres urbanos que pesquisei. 225 Segundo Strauss e Corbin (2008), a categoria central representa o fenômeno a ser explicado pela teoria. Entre as várias características que estes autores estabelecem para a escolha da categoria central da teoria, as principais são: todas as outras categorias importantes podem estar relacionadas a ela; a categoria deve aparecer frequentemente nos dados, - ou seja, há indicadores apontando para esse conceito; o conceito consegue explicar variações e também o ponto principal dos dados; o nome ou frase utilizada para descrever a categoria central deve ser suficientemente abstrata, a fim de que possa ser usada para fazer pesquisa em outras áreas substantivas. Para se chegar à definição da categoria, foi necessário realizar um processo de abstração e um constante questionamento no tocante aos conceitos e categorias envolvidos. O QUADRO 25 mostra algumas notas registradas em memorandos que auxiliaram no processo de interpretação e definição da categoria central. QUADRO 25 – Notas relacionadas à definição da categoria central NOTA DE MEMORANDO REFERENTE À DEFINIÇÃO DA CATEGORIA CENTRAL DO ESTUDO Frente a todas estas orientações, a categoria “questões simbólicas” parece ter todos os elementos da teoria substantiva que está sendo construída para explicar as experiências de consumo de consumidores de baixa renda. Porém, é sempre importante lembrar que para se chegar à definição da categoria central foi necessário realizar um processo de abstração e um constante questionamento acerca dos conceitos e categorias envolvidos. Neste sentido, algumas questões que podem ser salientadas são as seguintes: 1) Por que o compartilhamento dos espaços e objetos leva à transferência de simbolismo aos aparelhos eletrônicos? 2) Como ocorre esta transferência? Em que medida ela se dá? 3) Como este simbolismo foi verificado e observado ao longo do trabalho de campo? 4) Essa transferência acontece sempre independente de características do consumidor ou das condições intervenientes? Fonte: Pesquisa de campo (2009) Contudo, para definir adequadamente o significado da categoria central da teoria, torna-se importante discutir suas propriedades e dimensões. Assim, a dimensionalização das propriedades de uma categoria é um processo fundamental para o desenvolvimento da teoria, visto que tem como função agregar maior poder explicativo. No mesmo sentido, a dimensionalização da categoria central permite que sejam identificados padrões que partilham da mesma variação dimensional ao longo das propriedades (MELLO, 2002). 226 Um ponto que não pode ser negligenciado remete ao fato de que para a apresentação das categorias, bem como suas propriedades e relações, é necessária a utilização do que Strauss e Corbin (2008) chamam de “modelos”. No caso desta tese, para evitar alguma “confusão” ou conotação positivista, julguei mais pertinente o uso da palavra esquema tanto para apresentar as propriedades quanto para caracterizar as relações entre as categorias que emergiram ao longo do estudo. Assim, a noção de esquema parece estar associado à forma e à ideia e pode ser aplicada tanto à descrição quanto à explicação de fenômenos, bem como contribuir com uma representação para entendimento do que é observado (MORA, 2000). Porém, também não poderia deixar de explicitar que uma das limitações desses esquemas é que o fluxo parece linear, o que parece não corresponder à realidade. Na visão de Strauss e Corbin (2008), uma metáfora mais apropriada seria bolas de bilhar, cada uma batendo nas outras em diferentes ângulos, estabelecendo uma cadeia de reações. A FIG. 10 explicita as várias propriedades da categoria central, com base na percepção dos pobres urbanos pesquisados. FIGURA 10 – Esquema referente à categoria central da teoria Fonte: Dados da pesquisa (2009) 227 A partir da FIG. 10 e conforme apresentado no capítulo anterior, os consumidores transferem em suas experiências de consumo com os aparelhos eletrônicos uma forte carga simbólica, por exemplo, sensação de conquista e recompensa, forma de satisfação dos filhos, meio de diferenciação entre os moradores e possibilidade de reunir a família. A experiência de consumo, portanto, parece levar à ocorrência de sensações e sentimentos como cuidados com os aparelhos, “ciúme”, gosto por elogios. Ademais, é carregada de questões afetivas, como uso do som e/ou da televisão para a reunião de família, “os aparelhos são para todos” e aparelhos fazem parte da vida. Dessa forma, como se revelou nos dados, a posse e a experiência de consumo dos aparelhos eletrônicos por parte dos consumidores de baixa renda não está somente associada a questões utilitárias, mas também a diversos aspectos simbólicos. O valor simbólico dos aparelhos se constrói não somente entre todos os membros das famílias, mas também por meio da rede de relacionamentos, que, por ser ampla, inclui parentes, vizinhos e amigos. Porém, emergiu dos dados que as moradoras, ou “mães de família”, exercem papel importante nessa “construção” simbólica, na medida em que constituem a ligação nas famílias. Assim, já é possível enunciar a hipótese fundamental e o esquema geral da teoria que foi construída a partir da percepção dos consumidores pesquisados. 8.2.2 A hipótese fundamental da teoria Na visão de Strauss e Corbin (2008), é importante definir hipóteses ou declarações relacionais, uma vez que elas unem dois ou mais conceitos, explicando aspectos concernentes ao “o que”, ao “por que”, ao “onde” e ao “como” de um fenômeno. Além disso, por meio delas, pode-se deduzir uma série de proposições específicas que irão compor o esquema teórico. A partir dos exercícios de interpretação conduzidos ao longo de todo o processo de análise dos dados, que se iniciou desde as primeiras observações verificadas em campo, decidi enunciar uma hipótese fundamental da teoria que emergiu dos dados. Vale destacar que a relação foi discutida com algumas das entrevistadas na última fase de coleta de dados e que vários exercícios de comparação forneceram suporte empírico para validá-la. 228 H1: Em um ambiente marcado por alto grau de relacionamento e compartilhamento de espaços e produtos, os consumidores de baixa renda transferem aspectos simbólicos aos aparelhos eletrônicos nas suas experiências de consumo. A hipótese enunciada afirma que, a partir de um contexto altamente relacional, no qual há um grande compartilhamento de espaços e objetos, os consumidores tendem a transferir para seus aparelhos eletrônicos uma grande carga simbólica. Para facilitar o entendimento da hipótese fundamental do estudo, julguei ser interessante construir um esquema que tenta ilustrar o que foi proposto. O esquema geral da teoria que é apresentado na FIG. 11. Vale destacar que optei por ser parcimonioso na elaboração de hipóteses da teoria, por acreditar que uma teoria substantiva deve sempre permanecer “aberta” a novas questões e flexível para abarcar as várias características dos fenômenos sob investigação. FIGURA 11 – Esquema geral da teoria Fonte: Dados da pesquisa (2009) 229 É possível verificar nesse esquema, contudo, que, além da forte influência dos relacionamentos e do compartilhamento de espaços e objetos, também emergiram dos dados alguns aspectos que têm influência na construção do valor simbólico dos aparelhos eletrônicos. Conforme pode ser visualizado no esquema geral da teoria, alguns aspectos, como as influências sociais, busca por distinção, sonhos de consumo, falta de opções de lazer e entretenimento, também estão associados com os aspectos simbólicos das experiências de consumo. Cabe comentar, nesse ponto, que todos esses aspectos já parecem configurar algumas noções que serão discutidas mais detalhadamente no capítulo referente ao reencontro com a literatura: no entendimento das experiências de consumo numa perspectiva antropológica, é essencial levar em consideração que há um contexto mais amplo de formação dos significados dos bens que antecede, ou engloba, os processos individuais de escolha, dando-lhes foco e direção. Assim, somente em relação a esse contexto e a esses significados mais amplos é que são acionados os processos cognitivos dos indivíduos, sua memória e suas decisões (MIGUELES, 2007). A partir da análise dos dados, considerei a categoria “experiência de consumo dos aparelhos eletrônicos” como parte da categoria central, uma vez que é nessas experiências de consumo que “afloram” os aspectos simbólicos. Assim, preocupei-me em incluir no esquema geral da teoria a experiência de consumo como parte da categoria central do estudo. Dessa forma, também julguei ser essencial criar um esquema com todas as categorias relacionadas com as experiências de consumo de aparelhos eletrônicos, que é apresentado na FIG. 12. 230 FIGURA 12 – Esquema referente às categorias relacionadas à experiência de consumo Fonte: Dados da pesquisa (2009) Uma vez que o objetivo da construção de uma teoria é proporcionar uma explicação ou um entendimento de um fenômeno, torna-se importante alguns tecer alguns comentários acerca dos componentes básicos que irão compor a teoria. Um desses componentes básicos é o que Strauss e Corbin (2008) chamam de “condições”. Assim, Condições são conjuntos de fatos ou acontecimentos que criam situações, questões e problemas pertencentes a um fenômeno e, até certo ponto, explicam por que e como as pessoas ou grupos respondem de determinadas maneiras (STRAUSS e CORBIN, 2008, p. 130). Esses autores propõem que os pesquisadores devem rotular as condições em três tipos: causais, interventoras e contextuais. Essa tarefa tem por objetivo principal tentar organizar parte das relações complexas entre as condições e sua relação subsequente com as ações ou interações. Assim, as próximas seções foram acrescentadas ao capítulo com a finalidade de apresentar e discutir cada uma dessas condições para facilitar o entendimento do fenômeno sob investigação. 231 8.2.3 Condições causais Esta seção apresenta e discute as condições que determinam as questões simbólicas da experiência de consumo dos aparelhos eletrônicos. Estas condições, denominadas de “causais” representam conjuntos de fatos ou acontecimentos que influenciam os fenômenos (STRAUSS e CORBIN, 2008). Conforme apresentado na seção anterior e explicitado na FIG. 11, os dados revelaram importantes categorias, presentes no dia a dia dos moradores, que pesquisei que foram pesquisadas e classificadas como condições causais: estrutura familiar, organização das casas, compartilhamento de espaços e objetos, relacionamentos e vizinhança. Porém, a categoria que parece reunir todas as questões foi aqui denominada “relacionamentos”. Para se compreender melhor cada uma dessas condições causais, julguei adequado apresentar um esquema para a categoria mais importante. A FIG. 13 explicita as relações e propriedades encontradas no tocante à categoria “relacionamentos”. FIGURA 13 – Esquema referente à categoria causal “relacionamentos” Fonte: Dados da pesquisa (2009) 232 A categoria “relacionamentos” foi considerada uma das principais classificadas como condição causal no esquema teórico. Esta decisão foi tomada por algumas razões. Em primeiro lugar, a categoria foi uma das primeiras “revelações” dos dados, visto que foi uma das questões mais importantes que emergiu do trabalho de campo. Em segundo lugar, durante toda a pesquisa essa era uma questão recorrente, uma vez que eu sempre percebia traços que confirmavam a importância dos relacionamentos no dia a dia deste grupo de consumidores. Situações como construção de casas muito próximas uma das outras ou na própria “área” da família quando algum filho ou filha resolvia constituir um novo núcleo familiar, “empréstimo” do nome para comprar algum objeto, ajuda mútua entre os moradores quando algum deles estava passando por alguma dificuldade e compartilhamento dos espaços e dos objetos levaram à constatação de que a categoria “relacionamentos” tinha forte influência na construção do simbolismo dos aparelhos eletrônicos. Em terceiro lugar, boa parte da literatura referente aos consumidores pobres também chega à conclusão de que as “redes” sociais construídas no seio das comunidades carentes constitui fator importante para o entendimento dos pobres urbanos. Diante dessa constatação, cheguei às seguintes proposições: P1: A forma como os consumidores convivem com seus familiares e vizinhos e o modo de organização dos espaços determina o nível de relacionamento entre eles. P1.1: Os arranjos familiares e o alto número de membros das famílias contribuem para aumentar o relação intrafamiliar. Uma categoria importante que parece, ao mesmo tempo, fazer parte da categoria central e ter uma função interventora no fenômeno é aquela aqui denominada “experiência de compra”. Porém, decidi incluí-la na categoria central, pois ela é parte da experiência de consumo dos aparelhos. Ou seja, os consumidores, a partir do momento que experienciam a compra de seus aparelhos eletrônicos, já iniciam um processo de transferência de valor simbólico a eles. A FIG. 14 apresenta as relações existentes e as propriedades relacionadas à categoria “experiência de compra”. 233 FIGURA 14 – Esquema referente à categoria “experiências de compra” Fonte: Dados da pesquisa (2009) Pode-se observar que são várias as propriedades da experiência de compra dos aparelhos eletrônicos. Essas propriedades são interessantes porque representam as características ou atributos, gerais ou específicos, de determinada categoria. No caso da experiência de compra, as principais são as preferências de marca e loja, atributos importantes na escolha da loja e na escolha dos aparelhos e aspectos que chamam atenção nos aparelhos. No esquema, é possível observar que duas categorias influenciam a experiência de compra: “tempo que mora no bairro” e o “ciclo de vida do morador”. Essas duas categorias influenciadoras serão discutidas com maiores detalhes na seção referente às condições contextuais. Também é apresentada no esquema a categoria “forma de aquisição de aparelhos”, como parte da experiência de consumo. Por sua vez, a experiência de compra é parte da experiência de consumo. Aqui, cabe uma breve observação. Boa parte da literatura referente à pesquisa do consumidor na disciplina de marketing considera apenas a experiência de compra como sinônimo de consumo. Opostamente, a noção defendida nesta tese é a de que o consumo 234 envolve uma série de estágios, que tem início na construção social de significados e não termina na experiência no ponto de venda, mas se mantém continuamente nas diversas ações do cotidiano. Além das condições causais já descritas, existem as condições interventoras, cuja presença altera a ação das condições causais e contribui para determinar as formas pelas quais os consumidores atribuem valor simbólico aos aparelhos eletrônicos. Nesse sentido, a próxima seção pretende discutir as condições interventoras. 8.2.4 Condições interventoras Condições interventoras são aquelas que, segundo Strauss e Corbin (2008), mitigam ou alteram o impacto das condições causais no fenômeno. Das categorias que emergiram da pesquisa de campo, por meio das análises conduzidas, cheguei às seguintes condições interventoras: identificação com o bairro, sonhos de consumo, busca por distinção e percepção sobre consumismo e sobre o consumidor de baixa renda. Contudo, é importante salientar também, ainda que moderadamente, o papel da violência e da falta de opções de lazer e entretenimento para os moradores. Uma das condições interventoras está relacionada à identificação com o bairro. A FIG. 15 apresenta as relações entre a categoria “identificação com o bairro” com os códigos que emergiram durante a pesquisa. 235 FIGURA 15 – Esquema referente à categoria “identificação com o bairro” Fonte: Dados da pesquisa (2009) Por meio da FIG. 15, é possível perceber que algumas questões estão associadas com a categoria “identificação com o bairro”, ainda que esta seja uma categoria que apresentou maior nível de ambiguidade, pois muitos moradores, ao mesmo tempo que se diziam satisfeitos e perfeitamente integrados ao bairro, sentiam-se discriminados ou “incomodados” por morar em uma parte da cidade considerada “ruim” por outras pessoas. Porém, em todo o trabalho de campo ficou explícito que o relacionamento com integrantes da família, com vizinhos e com os moradores em geral contribui para a maior identificação com o bairro. Percebeu-se também que outros fatores contribuem para que os moradores tenham maior identificação, por exemplo, tempo que mora na comunidade e proximidade com o centro e com bairros importantes de Belo Horizonte. Vale destacar alguns pontos que funcionam como uma espécie de “inibidor” da identificação com o bairro: a discriminação que os moradores sofrem por morar na região e, principalmente, o desejo de alguns de se mudar para outras partes da cidade. Outra condição que parece interferir nos aspectos simbólicos das experiências de consumo é a categoria “sonhos de consumo”, conforme explicitado na FIG. 16. 236 FIGURA 16 – Esquema relacionado à categoria “sonhos de consumo” Fonte: Dados da pesquisa (2009) Percebeu-se ao longo da pesquisa que os consumidores de baixa renda “acalentam” diversos sonhos de consumo. Nesse sentido, conforme explicitado no esquema da FIG. 16, a casa própria parece ter um forte destaque, uma vez que, ao serem perguntados sobre qual seria sua sonho de consumo ou o que adquiririam caso ganhassem uma quantia considerável de dinheiro, quase todos citam uma casa “arrumadinha”, nas palavras deles, como algo essencial. Além da casa, sempre foi citada a importância de se possuir modernos aparelhos eletrônicos. Porém, notei também que, nos últimos anos, o computador passou a assumir o papel de novo item de desejo de consumo dos moradores, principalmente mas casas em que residiam pessoas mais jovens ou crianças. Cabe destacar no esquema apresentado que os sonhos de consumo sofrem influências sociais e o efeito da busca de distinção. 237 FIGURA 17 – Esquema referente à categoria “percepção sobre o consumidor de baixa renda” Fonte: Dados da pesquisa (2009) Uma das categorias que emergiu na pesquisa foi a visão das entrevistadas sobre algumas questões que ajudam a levantar alguns traços característicos do consumidor de baixa renda no tocante a diversos aspectos. Entre eles, podem ser citados os dilemas vividos por eles quanto à forma de pagamento (à vista ou a prazo), a percepção sobre a utilização de carnê e cartão de crédito, a percepção sobre o que significa consumismo ou ser consumista, a definição concernente à qual classe social eles pertencem e a ascensão social, a percepção sobre a vizinhança e a percepção sobre utilização do som e DVD. Essa categoria emergiu dos dados e foi interpretada como condição interventora, visto que, de alguma forma, influencia a transferência de carga simbólica para os objetos, principalmente os aparelhos eletrônicos, nas suas experiências de consumo. Outra categoria importante emergentes dos dados foi “busca por distinção”. O esquema da FIG. 18 apresenta as relações desta categoria com os códigos gerados. 238 FIGURA 18 – Esquema referente à categoria “busca por distinção” Fonte: Dados da pesquisa (2009) “Busca por distinção” parece ser uma categoria importante, visto que, conforme explicitado no capítulo anterior, entre os pobres urbanos não é possível perceber uma homogeneidade quanto aos seus hábitos, costumes, maneiras de pensar e formas de aquisição de produtos. Percebi muito claramente que a posse de aparelhos é uma forma reconhecida de diferenciação com relação a vizinhos, amigos e parentes. No tocante aos aparelhos eletrônicos, muitos consumidores preferiam mantê-los na sala. Ou seja, caracterizaria uma forma de distinção, uma vez que seria um local onde todos poderiam vê-los. A decoração das casas ganha relevo com relação a esta categoria. Verificou-se que os consumidores destinavam grande atenção a aspectos decorativos das casas. Ou seja, a forma de decoração dos ambientes servia como distinção, entre eles: o fato de a casa ser pobre, porém “enfeitada”, conferia uma distinção ao morador. O mesmo pode ser dito com relação à preocupação com a limpeza. 239 É importante destacar dois pontos importantes no esquema apresentado na FIG. 18. O primeiro deles tem a ver com a existência de dois códigos que parecem ter alguma influência em vários das categorias: “tempo que mora no bairro” e “ciclo de vida do morador”. Percebi ao longo de todo o trabalho de campo que o tempo de residência na favela, que, evidentemente, tem uma relação com o ciclo de vida do morador, exerce um efeito considerável na postura do consumidor quanto a diversos aspectos levantados na pesquisa e terá influência na definição de comportamentos diferenciados dos consumidores. Esse efeito será discutido na próxima seção. O outro ponto relaciona-se com a relação de causalidade verificada entre a categoria “busca por distinção” e o código “planos para adquirir novos aparelhos”. Ou seja, a busca por distinção funciona como um impulsionador para a compra e uso dos aparelhos eletrônicos entre os pobres urbanos. Assim, a partir das discussões anteriores, foi possível chegar às seguintes proposições acerca das condições interventoras: P2: O ciclo de vida do consumidor e o tempo que reside no bairro contribuem para determinar a busca por distinção. P3: A busca por distinção determina o impulso dos consumidores a adquirirem novos aparelhos eletrônicos. Com a discussão acerca das condições interventoras, é possível apresentar as condições contextuais, inclusive com a apresentação de tipos de comportamentos dos consumidores. 8.2.5 Condições contextuais Importante também para a construção de uma teoria substantiva é a delimitação das condições contextuais. Para Strauss e Corbin (2008), essas condições contextuais compreendem os conjuntos específicos de condições que se cruzam dimensionalmente neste momento e local para levar a um conjunto de circunstâncias e/ou problemas aos quais as pessoas respondem por meio de ações ou interações. No caso desta tese, seria a combinação das condições causais (relacionamentos, compartilhamento de espaços e objetos) e as 240 condições interventoras (identificação com o bairro, sonhos de consumo, busca por distinção e percepção sobre consumismo e sobre os consumidores pobres). Com essa combinação, foram identificados três tipos de comportamentos dos consumidores: “acomodado”, “cauteloso” e “afoito”. Cabe destacar, contudo, que essa “categorização” não tem o objetivo de enquadrar os consumidores em “rótulos” ou grupos fechados. Pelo contrário, a ideia é exercitar a construção da teoria por meio da demonstração de que, a partir da teoria gerada, é possível identificar entre os consumidores de baixa renda uma série de condições que se combinam e podem favorecer ao aparecimento de comportamentos diferenciados. O QUADRO 26 apresenta, a partir das condições causais e das condições interventoras, as características dos três comportamentos dos consumidores. QUADRO 26 – Características dos três comportamentos dos consumidores a partir dos dados da pesquisa CATEGORIAS “ACOMODADO” “CAUTELOSO” “AFOITO” CONDIÇÕES CAUSAIS Relacionamentos + + + + + + Compartilhamento de espaços e objetos + + + + + CONDIÇÕES INTERVENTORAS Identificação com o bairro + + + - Sonhos de consumo - - + + + Dilemas à vista e a prazo - - - + Busca de distinção - - + + + Percepção sobre o consumidor pobre - - + + + Tempo que mora no bairro + + + - Fonte: Dados da pesquisa (2009) O QUADRO 26 mostra que as ações interventoras modificam a ação das condições causais para cada tipo de comportamento dos consumidores. Isso quer dizer que o consumidor com comportamento “acomodado”, ainda que sofra alta influência dos relacionamentos e compartilhe moderadamente os espaços e objetos, tem poucos sonhos de consumo, não se importa tanto com a distinção oferecida pelos aparelhos eletrônicos, reconhece fortemente o dilema entre compra à vista e a prazo, e percebe o consumidor pobre de forma pessimista. Ademais, tem forte identificação com o bairro e com a vizinhança, decorrente do grande tempo que mora no local. Todo esse contexto o força a ter um comportamento de “passividade” diante dos aspectos simbólicos transferidos aos aparelhos eletrônicos, reconhecendo, muitas vezes, somente a importância utilitária desses aparelhos. Pelo fato de serem mais velhos e, não raramente, avessos a contrair dívidas por meio de cartões de créditos e carnês, o consumidor com esse comportamento também tende a ser pouco sensível aos 241 “apelos” simbólicos promovidos pela mídia quanto à posse dos aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos em geral, o que vai determinar a destinação de pouco valor para os aparelhos eletrônicos. Já o consumidor com comportamento rotulado de “cauteloso” também sofre alta influência dos relacionamentos e compartilha, habitualmente, espaços e objetos com seus familiares e vizinhos. Além disso, tem alguns sonhos de consumo busca timidamente distinção nos aparelhos e objetos que compra, percebe o consumidor pobre de forma positiva e não vê negativamente os dilemas referentes às compras à vista e a prazo. Porém, pelo fato de não ter muito tempo de residência no local, não tem forte identificação com o bairro. Assim, o consumidor com comportamento “cauteloso” gosta de mostrar-se atualizado com relação às novidades eletrônicas lançadas pela indústria, mesmo que não procure utilizar esses aparelhos para diferenciar-se dos vizinhos e parentes. Por fim, o consumidor com comportamento denominado de “afoito” sofre alta influência dos relacionamentos com vizinhos, parentes e amigos, e compartilha constantemente espaços e objetos. Apesar de não se identificar muito com o bairro, por causa principalmente do pouco tempo que nele reside, tem muitos sonhos de consumo, visto que mostra-se totalmente aberto e propenso a comprar novos aparelhos eletrônicos, não se incomoda com os dilemas normalmente atrelados às compras à vista e a prazo, busca fortemente se diferenciar de seus pares, tem boa percepção sobre o consumismo e vê a posse e o uso dos aparelhos como forma de distinção. Dessa forma, é altamente sensível aos apelos promovidos pelos meios de comunicação de massa e não se importa com as possíveis consequências de um uso abusivo dos cartões de crédito e de carnês. Além disso, vê os aparelhos eletrônicos como uma forma de diferenciação e não hesita em adquirir produtos de tecnologicamente mais avançados. 8.2.6 Ações ou interações Esta seção tem por objetivo discutir aquilo que é definido por Strauss e Corbin (2008) como “ações” ou “interações”, que são atos propositais ou deliberados praticados para resolver um problema e, ao fazê-lo, moldar os fenômenos de alguma forma. Em outras palavras e no contexto da pesquisa conduzida na tese, seria o que os consumidores fazem para 242 ter acesso aos aspectos simbólicos dos aparelhos eletrônicos. A FIG. 19 apresenta o que foi percebido na pesquisa no tocante às ações ou interações dos consumidores. FIGURA 19 – Esquema referente às ações e/ou interações dos consumidores no tocante à experiência de consumo de aparelhos eletrônicos Fonte: Dados da pesquisa (2009) Conforme a FIG. 19, é possível observar que são inúmeras as ações ou interações que levam os consumidores a ter acesso às experiências de consumo dos aparelhos eletrônicos e, assim, ter a oportunidade de, efetivamente, participar da rede de significados que surgem a partir dessas experiências. Conforme discutido no capítulo anterior, as formas de acesso são diferenciadas e “criativas”, como por meio de empréstimo ou troca dos aparelhos entre familiares, amigos e vizinhos, compras de aparelhos em bazar e utilização de formas diversas de compra a prazo. Complementarmente, é interessante verificar também a utilização da “gatonet” e a compra de fitas piratas para ter acesso às experiências de consumo. 243 Ademais, julguei adequado incluir um esquema que apresenta as formas de aquisição dos aparelhos por parte dos consumidores de baixa renda pesquisados. Esse esquema está apresentado na FIG. 20. FIGURA 20 – Formas de aquisição dos aparelhos Fonte: Dados da pesquisa (2009) A FIG. 20 mostra que são inúmeras as formas de aquisição dos aparelhos eletrônicos. Conforme já discutido no capítulo anterior e nos esquemas deste capítulo, os consumidores de baixa renda têm acesso aos aparelhos eletrônicos principalmente por meio de compras a prazo, compras essas facilitadas pelo aumento da facilidade de crédito. O esquema mostra que os consumidores têm acesso aos aparelhos por meio de bazares e da compra de aparelhos usados de vizinhos, parentes e amigos. Outra forma de aquisição é o que eles denominam “tirar” o aparelho, que é o “empréstimo” do nome. Alguns deles também têm acesso aos aparelhos por meio de doações. 244 Para finalizar o capítulo, esgotadas as discussões acerca dos elementos gerados na teoria substantiva, achei importante acrescentar uma seção na qual serão discutidas alguns critérios de avaliação do rigor e da fundamentação empírica da teoria. 8.3 Avaliação do rigor e da fundamentação empírica da teoria A partir de todo o processo de interpretação que culminou com a elaboração dos esquemas apresentados anteriormente, é importante fazer uma avaliação do rigor e da fundamentação da teoria. Assim, na última seção desse capítulo, conforme a proposição de Bandeira-de-Mello e Cunha (2006), busquei discutir a avaliação da qualidade da teoria substantiva desenvolvida à luz de seis critérios: grau de coerência (fit), funcionalidade, relevância, flexibilidade, densidade e integração. Resumidamente, o QUADRO 27 apresenta esses critérios e suas contribuições para a teoria desenvolvida. QUADRO 27 – Critérios para avaliação da teoria substantiva CRITÉRIOS DESCRIÇÃO CONTRIBUIÇÃO GRAU DE COERÊNCIA (FIT) As categorias criadas devem emergir dos dados, e não de pressupostos do pesquisador. Confere credibilidade à teoria e permite que ela seja entendida por terceiros. FUNCIONALIDADE A teoria deve explicar tanto as inter- relações dos conceitos quanto as variações encontradas. Uma teoria substantiva deve ser útil para o entendimento de um fenômeno e ser útil para os envolvidos. INTEGRAÇÃO Todos os construtos devem estar relacionados a uma categoria central e expressos em termos de proposições derivadas de um esquema teórico. A integração evita a existência de falhas na lógica explicativa da teoria. RELEVÂNCIA A teoria deve emergir fruto da sensibilidade teórica do pesquisador, o qual deve ser capaz de identificar a categoria central mais relevante para explicar o fenômeno. A relevância é verificada pelo reconhecimento imediato do significado da categoria central pelos envolvidos. FLEXIBILIDADE A teoria deve ser passível de modificação, permitindo seu enriquecimento com a introdução de novas categorias e propriedades. Uma teoria deve estar aberta para o aprimoramento de sua capacidade de explicação de um fenômeno. DENSIDADE A teoria deve possuir poucos elementos- chave e um grande número de propriedades e categorias relacionadas. A densidade confere maior validade aos conceitos da teoria. Fonte: Adaptado de Bandeira-de-Mello e Cunha (2006) 245 Quanto ao primeiro critério – grau de coerência –, cabe destacar que todos os códigos gerados ao longo das fases de codificação aberta e axial emergiram dos dados. Também, tive a preocupação de evitar termos “emprestados” da literatura. Dessa forma, todas as categorias foram definidas e identificadas por meio de exames detalhados dos dados, possibilitadas por meio do que Charmaz (2005), recorrendo a um dos “pais” da grounded theory, Barney Glaser, chamou de “sensibilidade teórica”, que é a tentativa de entendimento das situações investigadas por meio de múltiplos pontos de vistas, a partir de constantes comparações, respostas aos questionamentos referentes a cada etapa da análise e construção de ideias. Os critérios da funcionalidade e da integração podem ser verificados por meio da construção do esquema teórico que organizou a hipótese geral da teoria em torno da categoria central. Uma vez que a teoria substantiva construída nessa tese tinha por objetivo explicitar como os consumidores de baixa renda vivenciam suas experiências de consumo de aparelhos eletrônicos, optei, dado o grau de complexidade que envolve tal objetivo, por criar três padrões, ou formas, de variação, dadas as condições causais e interventoras. Fica implícito, todavia, que é importante a volta ao capítulo no qual descrevo detalhadamente cada categoria para se resgatar o fenômeno estudado. Com relação à relevância, vale ressaltar que este critério é especialmente importante, pois o reconhecimento por parte dos envolvidos tanto das propriedades como das relações entre as categorias é uma forte evidência da qualidade da teoria, bem como de sua coerência e utilidade. Como houve a preocupação de incluir na fase de pesquisa de campo algumas entrevistas para checagem das principais categorias, pude perceber que as entrevistadas concordavam com boa parte das interpretações. Quando havia alguma “inconsistência”, aproveitei a oportunidade para tentar aumentar a densidade das categorias. Como a pesquisa foi desenvolvida num bairro pobre com características que se assemelham a outras regiões da cidade de Belo Horizonte e de outras cidades do Brasil, é possível afirmar que a teoria desenvolvida neste estudo tem bom potencial de extensão para outras situações de consumo e locais, o que lhe confere maior poder explicativo. No mesmo sentido, mostra que ela é relevante e coerente para outros casos na área substantiva. Dessa forma, pode-se dizer que o critério de flexibilidade também foi verificado. Por fim, no que se refere à densidade e à fundamentação empírica das categorias, no caso da teoria gerada neste estudo, foram gerados 359 códigos, 1388 citações e 32 notas de análises, ou memorandos. Dos 359 códigos gerados, 338 são de primeira ordem, ou seja, aqueles que são diretamente ligados às citações, e os outros 21 são construtos teóricos 246 abstratos. Conforme comentado por Mello (2002) em sua pesquisa sobre o fenômeno da adaptação estratégica das pequenas construtoras de edificações, a relação entre códigos abstratos, códigos de primeira ordem e citações, na ordem de 21/338/1388 , respectivamente, parece fornecer evidências de que há um grau de densidade teórica, visto que poucos construtos teóricos estão relacionados a um número significativo de outras categorias e citações. Além disso, a densidade das categorias principais da teoria foi representada graficamente nos esquemas apresentados anteriormente. A categoria central do estudo – “questões simbólicas do consumo de eletrônicos” – possui 30 ligações com outros códigos. Em resumo, o fenômeno estudado na tese, que é a experiência de consumo de aparelhos eletrônicos na perspectiva de consumidores de baixa renda, é significativo e contribui para o campo da pesquisa do consumidor no Brasil. No mesmo sentido, algumas questões referentes às lacunas relacionadas tanto às noções experienciais do consumo quanto a aspectos simbólicos envolvidos nas experiências de consumo parecem ter sido contempladas na pesquisa. Assim, torna-se importante retornar à literatura, com o intuito de ressaltar as implicações da teoria para os campos de conhecimento envolvidos. O próximo capítulo tem esse objetivo. 247 9. (RE)ENCONTRO COM A LITERATURA Este capítulo foi incorporado à tese pelo fato de constituir uma etapa importante em estudos envolvendo a grounded theory, pois o retorno ao conhecimento existente sobre a temática pode ser um estágio importante no sentido de que os resultados possam ser confrontados com a literatura tanto para confirmá-los quanto para apontar onde a literatura é falha, excessivamente simplista ou explica o fenômeno apenas parcialmente (STRAUSS e CORBIN, 2008). Isto é, “trazer a literatura para a redação não apenas demonstra sentido acadêmico, mas também permite ampliar, validar e refinar o conhecimento no campo” (STRAUSS e CORBIN, 2008, p. 61). Ademais, segundo Charmaz (2006), essa etapa é uma oportunidade para os pesquisadores demonstrarem domínio dos trabalhos relevantes já empreendidos no campo de estudo, mostrar sua competência para identificar e discutir as mais significantes ideias e contribuições desses trabalhos, assim como explicitar interlocuções entre a teoria gerada e os estudos anteriores. Na visão de Eisenhardt (1989), o (re)encontro com a literatura pode proporcionar duas possibilidades. Primeira, caso a teoria gerada seja convergente com a literatura existente, trata-se de uma situação na qual a teoria gerada possui poder explicativo e validade interna, pois associa contextos e conceitos diferentes que anteriormente não tinham relação. Opostamente, caso a teoria gerada seja divergente da literatura, é uma oportunidade para o trabalho, uma vez que pode levar a tentativas de explicar o fenômeno de outra forma e de auxiliar na delimitação da abrangência da pesquisa e da área substantiva. No caso da pesquisa empírica conduzida nesta tese, o objetivo do capítulo é realizar uma discussão contrastando os principais resultados da teoria substantiva criada com os conceitos e a perspectiva teórica adotada e com resultados de outros estudos que envolveram a temática focada no trabalho. Nesse sentido, para orientar e organizar a discussão, dividiu-se o capítulo em quatro grandes seções. Na primeira, apresentam-se as comparações dos resultados do estudo que tiveram foco nos pobres urbanos, principalmente no contexto brasileiro. Em seguida, na segunda seção, a proposta é resgatar os estudos que desenvolveram a temática do “consumo popular” das classes de baixa renda, ou pobres urbanos, para contrastar com os resultados da teoria gerada. A terceira seção visa estabelecer em quais pontos a literatura referente à antropologia do consumo, bem como a relacionada aos aspectos simbólicos do consumo, coincide ou contradiz os resultados encontrados no trabalho. Por fim, retoma-se a literatura específica de experiência de consumo revisada no capítulo 2. 248 9.1 Pobres urbanos No capítulo 4, foram abordadas, ainda que sucintamente, algumas questões relacionadas aos estudos sobre pobreza no mundo e no Brasil, além de discussões acerca da forma como os pobres vêm sendo investigados pelas ciências sociais brasileiras. Nesta seção, alguns dos resultados desses estudos são contrastados com os resultados da teoria substantiva de consumo de aparelhos eletrônicos gerada no estudo. Para tal, optou-se por utilizar os estudos de Caldeira (1984), Zaluar (1985), Sarti (1996), Zaluar e Alvito (1998) e Alvito (2001). O interessante a destacar, de início, é que, mesmo que as pesquisas citadas tenham sido conduzidas em épocas distintas (décadas de 1980 e 1990) e em localidades diferentes (São Paulo e Rio de Janeiro), muitos dos relatos dos pesquisadores relacionados à organização das ruas e becos, e à construção das casas, bem como a inúmeras situações do cotidiano da vida dos moradores dessas áreas pobres, eram muito idênticos aos vivenciados por mim durante o trabalho de campo realizado em uma favela de Belo Horizonte durante o ano de 2008 e parte do de 2009. No trabalho de Caldeira (1984), um dos pontos ressaltados que parece ter aderência nos resultados da teoria substantiva gerada na tese é o da família. Na visão da autora, a família tem um papel bastante específico para os trabalhadores e sua sobrevivência, pois nela se vive uma experiência coletiva que contrasta com outras que aparecem como individuais. Necessidades individuais ligadas à reprodução da força de trabalho, como alimentação, vestuário e habitação, são satisfeitas coletivamente mediante a participação em um grupo doméstico que une e redistribui os recursos de seus membros. Assim, a família aparece como o “núcleo de atividades coletivas”, constituindo-se em um grupo dentro do qual as pessoas tomam coletivamente decisões que afetam seu destino comum. A importância da família também foi percebida por Sarti (1996). Ao procurar compreender com que categorias morais os pobres organizam, interpretam e dão sentido a seu lugar no mundo, a pesquisadora chegou à conclusão de que a família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o núcleo da sua sobrevivência material e espiritual, mas é o próprio substrato de sua identidade social. Ou seja, a família tende a ser uma questão ontológica para os pobres. Sua importância não é funcional, seu valor não é meramente 249 instrumental, mas se refere à sua identidade de ser social e constitui o parâmetro simbólico que estrutura sua explicação do mundo. Ratificando a colocação de Sarti (1996) acerca do papel da família para os pobres urbanos, cumpre destacar que, conforme Guedes e Lima (2006), as redes sociais fazem com as famílias sejam abertas. Nesse sentido, as famílias nucleares contidas nas casas assumem, quase invariavelmente, a formatação de famílias extensas. Tal como apresentado no capítulo 7, verificou-se a importância da rede social de parentesco e vizinhança, na qual netos, sobrinhos, afilhados e, até, filhos de vizinhos mais pobres são incorporados como filhos e considerados como tais. Do mesmo modo, na visão dessas autoras, essas redes sociais facilitam a inserção no mercado de trabalho dos pobres urbanos, uma vez que a circulação de saberes, habilidades e competências específicas produz, ao mesmo tempo, reconhecimentos que levam à socialização do capital social contido em relações simétricas e assimétricas, possibilitando, dessa forma, a obtenção de empregos ou serviços temporários. Não se pode deixar de considerar também uma série de obrigações mútuas, que se expressa nas várias formas de ajuda e auxílio a parentes, vizinhos e amigos, que funcionam tanto como uma espécie de amálgama das relações como no principal motivo de conflitos e dissensões constantes. Conforme será explanado na próxima seção, o papel da família e o do relacionamento com vizinhos e parentes que passam a compor uma “grande família” constitui aspecto chave para a teoria substantiva e serve para explicar muitas das questões ligadas ao consumo dos consumidores pobres. Outra questão discutida por Caldeira (1984) que parece vir ao encontro dos resultados da teoria substantiva tem a ver com a questão da moradia. Uma vez que ficou explícito no capítulo 7 que a moradia representa a “consolidação” de muitos anos de trabalho e sacrifício, e que significa “conquista”, “orgulho”, “dedicação” e “recompensa”, Caldeira (1984) ressalta que a casa para os pobres urbanos confere dignidade a quem a possui. Isto é, na luta imediata pela subsistência e pela melhoria do padrão de vida em uma grande cidade, a casa própria significa para os trabalhadores pobres escapar ao aluguel, ao cortiço e à favela e, principalmente, sobreviver de uma maneira um pouco menos penosa. Ser proprietário acaba sendo uma necessidade, que justifica todas as privações. Várias delas estão ligadas ao processo de autoconstrução (caracterizado pelo ritmo parcelado, comprometimento familiar e ausência de apoio institucional), que acaba tendo implicações não só na vida das famílias, como também no produto final – a casa – e na cidade. Esse processo está relacionado, por 250 exemplo, à formação de certo tipo físico de espaço: é um dos grandes responsáveis pelo aspecto de colcha de retalhos, que tem o bairro como um todo ou as suas casas. Também relacionado ao aspecto da moradia, a pesquisadora reforça a ideia de que a agregação constante e sem um plano prévio definido, a partir do fundo do terreno, de espaços e detalhes, à medida que se vai conseguindo material, acaba impondo improvisação às ruas e ao próprio bairro como um todo. A pesquisa conduzida por Alvito (2001), complementarmente, caminha nesse sentido ao constatar que, embora seja verdade que todo espaço habitado pelo homem seja um produto socialmente construído, no caso da favela isso assume uma dimensão radical. Para ele, as favelas são um espaço que não somente foi construído pelo homem, mas também pelos mesmos homens que lá habitam, com suas próprias mãos, ao longo dos anos. Tanto quanto nas descrições desse pesquisador, no trabalho de campo foi bastante comum colher depoimentos de moradores relatando que sua casa foi a “síntese” de 30, 40 ou mais anos de trabalho de toda a família. O trabalho de Zaluar (1985) também traz algumas questões que parecem reforçar os resultados da pesquisa empreendida nesta tese. Em primeiro lugar, vale a discussão de que, embora a pobreza seja pensada primordialmente como a restrição ao consumo, ela também se associa ao trabalho. A presença desta associação entre pobreza e trabalho se justifica pela visão disseminada entre eles de que o “pobre” tem que trabalhar para conseguir o dinheiro que lhe permite sobreviver, enquanto que o “rico”, por definição, já tem o dinheiro e não precisa trabalhar para viver. Nesse sentido, podem-se perceber inúmeros arranjos internos à unidade doméstica para manter o padrão de vida que separa a miséria da pobreza e afasta o espectro da fome, socializando o esforço de gerar renda entre os vários membros da família e mantendo ainda obrigações assistenciais aos parentes, especialmente os mais novos e os mais velhos, incorporados ao grupo doméstico sempre que sua sobrevivência o exija. Nesse contexto, vale trazer à baila uma constatação de Zaluar (1985) quando advoga que a comida é o principal veículo por meio do qual os pobres urbanos pensam a sua condição, pois é ela que explica a preocupação constante com a possível falta, e a ginástica efetuada no orçamento doméstico para que se chegue até o fim do mês “com comida dentro de casa”. A preocupação com a comida é algo que ficou claro em algumas citações das entrevistadas durante o trabalho de campo. 251 Minhas panelas não fica... Não podia ficar as panelas na geladeira. Mas as minhas panelas só fica no fogão. Com comida, então, eu preocupo demais, com a comida, apesar de eu ser pobre assim ... E, então, a gente foi criando os meninos assim, sem faltar batata frita, sem faltar carne, que eles gostavam muito. Então estas coisas não faltam na minha casa, graças a Deus. Deus não deixa faltar. (Neusa) O de comer pros meus filhos. Tipo assim, porque o importante é ter as coisas de comer dentro de casa, né: um leite, uma comida, um iogurte, né, negócio pros meninos. Porque um biscoito, um pão assim, de manhã cedo, ter um pão pra eles comer... É isso que tem que ter, né. (Gisele) Eu acho que a alimentação não pode faltar. Acho imprescindível a alimentação, uma boa alimentação, que a partir dela cê vai ter uma saúde tranqüila. Aí, cê não vai ter que mexer com médico, cê vai evitar um gasto. A partir daí, cê, tendo uma saúde tranqüila, cê vai poder mexer com trabalho, vai procurar trabalho, se você não tiver... (Ilma) Zaluar (1985) também destaca o papel de destaque que os aparelhos eletrônicos ocupam na moradia dos consumidores pobres urbanos, os quais são sempre exibidos na sala e costumeiramente enfeitados com cobertas coloridas, para chamar atenção. Tais objetos são “consumidos” socialmente também pelo simples fato de serem vistos e trazerem respeito e marca de relativa prosperidade a quem os possui, que leva ao conceito de distinção, conforme proposto por Pierre Bourdieu. Esta questão será discutida detalhadamente na próxima seção. Sarti (1996) traz à baila algumas considerações que também parecem ser coincidentes com a teoria substantiva elaborada. Uma delas tem a ver com a sociabilidade local. No trabalho da pesquisadora, ficou bastante óbvio que os moradores gostam do bairro onde vivem. Se pudessem, evidentemente, gostariam de morar em um bairro melhor, porém foi lá que puderam realizar muitos de seus sonhos, como o casamento, a criação dos filhos e a “conquista” da casa própria. No mesmo sentido, os moradores saem pouco de casa e do bairro e quase sempre não têm opções de lazer e entretenimento. Outra consideração, que também foi discutida no capítulo 7, está relacionada a uma espécie de distinção que é comum entre os próprios moradores do bairro. Um dos eixos dessa distinção responde à hierarquização social do espaço físico e geográfico do bairro. Em outras palavras, é como se os moradores dividissem o bairro em áreas distintas. Da mesma forma que Sarti (1996), notei certa distinção quando os moradores mostravam diferenciar-se quando diziam residir na parte “mais nobre” da favela, ou seja, na parte mais antiga e mais “desenvolvida”, na região mais plana e mais baixa, a qual tinha acesso aos principais serviços urbanos, como água encanada, esgoto, ruas asfaltadas, linhas de ônibus e escolas. 252 De outro lado, uma constatação de Sarti (1996) não foi plenamente percebida no trabalho de campo que antecedeu à elaboração da teoria substantiva. A autora reforça que entre os pobres urbanos é marcante a força simbólica de padrões relacionados ao papel de gênero na família, reafirmando a autoridade masculina pelo papel central do homem como mediação com o mundo externo, e fragilizando socialmente a família, onde não há um homem “provedor” de teto, alimento e respeito. Na pesquisa empreendida, ao contrário, verificou-se que essa divisão não é mais tão significativa. Prova disso foi o grande número de lares “chefiado” por mulheres. No que tange aos estudos envolvendo os moradores de favelas no Brasil, vale a consideração de Zaluar e Alvito (2004) que é condizente com a proposta desta tese: investigar as relações existentes em uma favela é combater certo senso comum que apenas reproduz parte das imagens, ideias e práticas correntes que lhe dizem respeito. É tentar mostrar que a favela não é o mundo da desordem, que a ideia da carência, de falta, é insuficiente para entendê-la. Pelo contrário, é, sobretudo, mostrar que a favela não é periferia, nem está à margem da sociedade ou da civilização. Ou, como enfatiza Leeds (1998), é buscar entender que as favelas são comunidades estáveis, com residência a longo prazo e populações que abrangem várias gerações, dependendo de quando surgiram. Essa relativa estabilidade produziu na memória das favelas uma coesão social e um senso comunitário que, geralmente, criam um sentimento de lealdade e identidade com determinada comunidade e também com a condição de favelado. Esse sentimento, conforme discutido no capítulo 7, ainda que com certa ambiguidade relacionada principalmente ao tempo de residência no bairro, é possível de ser percebido tal como expresso pela pesquisadora. A partir da exposição desse referencial, que busca explicar como os pobres urbanos organizam, interpretam e dão sentido a seu lugar no mundo, a próxima seção tem o objetivo de discutir como se dá o consumo entre eles. 9.2 Consumidores pobres De início, conforme exposto no capítulo 4, a preocupação dos pesquisadores em investigar questões relacionadas aos consumidores pobres começou nos anos de 1960, declinou nas décadas seguintes e somente ascendeu como temática de interesse nos anos de 1990, em virtude da importância que passou a ser destinada aos chamados “países emergentes”, os quais possuem grande número de consumidores em situação de pobreza. 253 Mesmo assim, são poucos os estudos constantes na literatura internacional sobre a temática. Dessa forma, os resultados desses trabalhos não parecem muito relevantes para a discussão desta tese, uma vez que foram realizados em outros contextos sociais e culturais. No mesmo sentido, cabe salientar que no Brasil ainda são incipientes os estudos que buscam compreender o consumo das “classes populares” ou de baixa renda. Alguns dos estudos são oriundos de pesquisadores atuantes nas ciências sociais e, portanto, não tinham como foco principal o consumo. Por outro lado, conforme apresentado no capítulo 4, os estudos envolvendo as temáticas de pobreza na perspectiva do consumo são poucos e, normalmente, investigaram o comportamento de compra em estabelecimentos varejistas e pesquisaram públicos residentes nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. As exceções podem ser atribuídas aos trabalhos de Barros (2006a, 2006b) e de Castilhos (2007). Mesmo assim, esse contexto parece sinalizar que o conhecimento nesse campo pode ser considerado em construção. Apesar dessas limitações, esta seção busca confrontar os resultados desses estudos com os da teoria substantiva gerada. Embora muito focados no comportamento de compra no ponto de venda, alguns achados relatados pelos pesquisadores nos estudos conduzidos no Brasil no campo da pesquisa do consumidor foram verificados no trabalho de campo conduzido para a elaboração desta tese. Entre eles podem ser citados: gosto pela fartura, principalmente de alimentos, tendência de contrair empréstimos, importância dos relacionamentos entre consumidor e varejista, utilização intensiva do “empréstimo” do nome e opção por visitas quase diárias a pequenos supermercados ou mercearias “de vizinhança” ao longo do mês em consequência da intermitência da renda. A constatação interessante é que não é adequado considerar o pobre urbano como possuidor de características únicas e imutáveis, mensuráveis por meio de instrumentos que buscam construir padrões de comportamentos. Muito pelo contrário, a pesquisa do consumidor pobre deve caminhar no sentido de buscar a construção de um conhecimento embasado nos detalhes, diferenças, incoerências e ambiguidades presentes no cotidiano desses indivíduos. No trabalho de Caldeira (1984), um dos pontos ressaltados que parece ter aderência aos resultados da teoria substantiva gerada na tese é o da família. Na visão da autora, o consumo é feito sempre por meio da mediação da família. De fato, o consumo é o fim que articula as outras dimensões da família já apontadas, ou seja, o fato de se estruturar como uma unidade de produção de valores de uso e como uma unidade rendimentos. A maior parte dos projetos de consumo é familiar, no sentido não só de que eles são pensados em função do todo 254 o grupo doméstico, mas também de que dependem do esforço de pelo menos alguns de seus membros. Em suma, a família tem um papel bastante específico para os trabalhadores e sua sobrevivência. Isso leva a ressaltar outro aspecto relevante no que diz respeito à casa e ao consumo. De fato, não são apenas os rendimentos e a opção da família em termos gerais que determinam a maneira de construir e arrumar a casa. O consumo é também determinado culturalmente: o que se procura por dentro da casa segue um padrão de gosto que é comum e que faz parte do estoque simbólico e referencial do conjunto dos trabalhadores de baixa renda (CALDEIRA, 1984). Dada a sociabilidade concentrada no local de moradia, conforme também evidenciado na teoria substantiva, há entre os pobres da periferia a tendência de estreitar os laços com a rede de vizinhança em detrimento dos parentes de sangue, exceto se estes também se concentrarem na localidade, compartilhando a vida cotidiana. O que define que um vizinho possa ser mais importante que um parente é a confiança (SARTI, 1996). Sarti (1996) e Barros (2007) também demonstraram em seus trabalhos como o universo dos trabalhadores pobres é constituído por uma rede de obrigações morais, tal qual discutido por Mauss (1974). Conforme enfatizado por Barros (2007) em seu estudo sobre empregadas domésticas, o consumo dos pobres urbanos é bastante dinâmico, uma vez que comporta movimentos em várias direções, implicando posses definitivas dos bens, posses temporárias ou simples consumo, sem posse. Nesse contexto, uma “constelação” de objetos pode servir para criar, mediar e estabelecer relações sociais, pois os objetos podem ser dados, devolvidos, vendidos, emprestados ou utilizados conjuntamente, por meio de uma série de arranjos possíveis. Essa constatação ficou bastante clara no trabalho de campo, pois em muitas situações ficou explícito o compartilhamento de objetos, espaços e, consequentemente, aparelhos eletrônicos, que são o foco de estudo nessa tese. Como explicitado por DaMatta (1997), a sociedade brasileira é relacional, na qual o valor fundamental é relacionar, juntar, confundir, conciliar. Dessa forma, nesse “sistema” socialmente construído os indivíduos são obrigados a visitar pessoas, comer bebidas, dar presentes, assinar manifestos, frequentar locais e, até mesmo, casar, não porque individualmente se quer, mas porque há uma demanda relacional. Ou seja, é a relação que exige, e não o indivíduo que deseja. A partir dessas considerações acerca da sociedade brasileira, alguns pontos merecem destaque. No capítulo destinado a descrever o consumo de eletrônico na perspectiva dos consumidores de baixa renda, uma das questões emergentes que merece análise na literatura 255 está relacionada às “redes” de reciprocidade, constituídas, basicamente, por amigos, parentes e vizinhos. Essas “redes” parecem possuir duas características marcantes. Primeiro, contribuem para as mais diversas práticas de consumo, constituindo um universo caracterizado por obrigações mútuas entre as partes envolvidas. A contribuição para o consumo se dá na forma como os consumidores se relacionam tanto no empréstimo de produtos, aparelhos e até dinheiro como também no empréstimo do nome para as compra no crediário (“tirar”, no vocabulário dos entrevistados). Não retribuir, nesse caso, determinaria afastamentos ou, até mesmo, a redefinição dos relacionamentos. Em segundo lugar, todas essas redes estariam inseridas em de um sistema de dar-receber-contribuir, conforme analisado por Mauss (1974). Dessa forma, para Mauss (1974) a reciprocidade está na base das relações sociais. A dádiva do “empréstimo do nome” não se esgota com a quitação das parcelas. Conforme também percebido por Castilhos (2007), tal como no caso de um presente recebido, o aparelho “tirado” por outro no nome de uma pessoa “materializa” para sempre uma espécie de marca desse valor, tal como o que McCracken (2003) chama de “pátina”, que pode ser entendida como uma propriedade física e simbólica dos bens de consumo, a qual foi um dos meios mais importantes de que dispunham os indivíduos de alta classe para se distinguirem dos de baixa classe. Contudo, essa relação não se perpetua sem um estado de constante tensão entre as partes, muito em virtude do receio de “sujar” o nome. Adjacente à questão dos relacionamentos, uma das categorias emergentes na pesquisa foi a relacionada ao dilema entre comprar à vista ou a prazo e ao papel do crédito na vida dos pobres urbanos. Com relação aos dilemas, embora boa parte das entrevistadas tenha certa consciência do risco de contrair dívidas que podem se tornar impagáveis no futuro, pode-se afirmar que a teoria substantiva tem coerência com outros estudos (CASTILHO, 2007; BARROS, 2007) que também verificaram que os pobres urbanos vivenciam no seu dia a dia essa constante necessidade de encarar o crédito como a única forma viável de aquisição de diversos bens. Assim, veem o crédito como uma das forma de consumo antecipado. No que tange ao papel do crédito, de acordo com Mattoso e Rocha (2005), e coincidente com o que foi comentado nos parágrafos anteriores, para os consumidores de baixa renda o crédito pode ser entendido como um sistema de obrigações que circula entre a rede de amizade e parentesco desses consumidores. Na visão das autoras, isso é uma forma de hierarquização e uma obrigação, uma vez que a pessoa não pode se furtar a prestar esse 256 “favor” quando solicitado por um parente ou amigo. Essa constatação foi também verificada no trabalho de campo conduzido no estudo. Quanto ao consumo de aparelhos eletrônicos entre os pobres, foram poucos os estudos que contemplaram esta temática. Na literatura internacional, o estudo de Doran (1997) ressalta que o consumo de televisão em cores na China adquire significado simbólico de acordo com sua cultura. Além disso, a posse desses bens pode estar significando alguma informação relevante para o seu grupo social. A televisão para eles significa uma vida moderna, ser bem colocado financeiramente, ter sucesso profissional. No Brasil, o trabalho de Castilho (2006) que pesquisou consumidores de baixa renda na cidade de Maceió, estado de Alagoas, verificou que os consumidores sabem discorrer extensamente sobre os aparelhos de TV, rádio e DVD que tiveram ou têm, lembrando-se de suas marcas e quando e como foram comprados. Essa constatação, que também pôde ser verificada no trabalho de campo desta tese, parece caminhar no sentido de que os aparelhos eletrônicos têm um papel central na vida desses consumidores nas mais esperadas e comuns situações do cotidiano como única forma de distração, fonte de informação e atualização de notícias, possibilidade de “desligar” dos problemas cotidianos. Porém, foi percebido também que os consumidores percebem os aparelhos eletrônicos e vivenciam o seu uso em inúmeras outras situações que não haviam sido pensadas preliminarmente na pesquisa. A pesquisa conduzida por Castilhos (2007) com indivíduos pobres em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, também parece fornecer pontos coincidentes com a teoria substantiva, visto que foi verificado que todos os aparelhos eletrônicos (televisão, som, DVD, computador e celular) exercem um poder de fascínio sobre os consumidores pobres, por carregarem uma grande carga simbólica. A próxima seção busca direcionar o foco para a revisitação das discussões relacionadas aos aspectos antropológicos do consumo que permearam as análises para a elaboração da teoria substantiva. 9.3 Aspectos antropológicos do consumo Nos capítulos 2 e 3, foram revisitados alguns conceitos básicos subjacentes ao problema desta pesquisa: experiência de consumo, perspectiva antropológica do consumo e teorias da cultura do consumo. Como o método da grounded theory não utiliza nenhum arcabouço teórico fechado a priori e busca relacionar os elementos da teoria substantiva à medida que estes emergem dos dados, é importante que os resultados sejam comparados com 257 os desenvolvimentos teóricos existentes para se validar a teoria. Contudo, não é demais frisar que a teoria substantiva localiza-se nas lacunas das teorias existentes; ou seja, onde as teorias não conseguem explicar completamente um determinado fenômeno. No caso desta tese, a proposta teórica era tentar buscar entender como os consumidores de baixa renda vivenciam suas experiências de consumo em uma perspectiva antropológica do consumo. Assim, torna- se necessário revisitar alguns dos autores que de alguma forma contribuíram para a construção de uma literatura com o olhar da antropologia do consumo. Nesse sentido, na perspectiva da antropologia do consumo, os estudos de Thorstein Veblen conduzidos no início do século XX podem ser utilizados para iniciar a discussão. Uma das principais argumentações desse autor vão ao encontro dos resultados da teoria substantiva: existe uma modalidade de consumo que é ostentatório, realizado com a finalidade de demonstrar a condição social e que pode ser denominado de “consumo conspícuo”, ou seja, é manifestado em direção a uma diferenciação significativa e leva em consideração a hierarquia da sociedade. No caso da tese, os aparelhos eletrônicos parecem funcionar como uma espécie de identificação da posição dos pobres urbanos não para efeitos de comparação com outras parcelas da população em geral, mas em relação aos próprios moradores do bairro, para diferenciá-los dos “muito-pobres”. Outra constatação verificada na teoria substantiva que pode ser explicada pelos estudos de Veblen (1988) tem a ver com a decisão dos consumidores de instalarem seus aparelhos eletrônicos sempre à vista de vizinhos e pessoas conhecidas. Ademais, os eletrônicos servem para ajudar a construção de relacionamentos e trocas sociais. Na fase da análise dos dados para a elaboração da teoria substantiva, algumas noções sobre os fatos da vida econômica na vida social, conforme fornecido pela interpretação de Sahlins (2003), também parecem ter tido ressonância. Para ele, visto que os objetos não têm qualidade intrínseca e que a utilidade dos bens é elaborada e permanentemente reelaborada na estrutura das trocas de uma comunidade cultural, vale destacar que os aparelhos eletrônicos se constituem de uma combinação até certo ponto indissociável entre praticidade e simbolismo tal como discutido nos capítulos 7 e 8. É nesse mesmo sentido que foram desenvolvidas algumas análises para a construção da teoria substantiva com o suporte da perspectiva da cultura material proposta por Douglas e Isherwood (2006). A ideia importante desses autores é que é por meio dos significados públicos vinculados aos bens e de seus usos públicos que o consumo organiza a ordem social, trazendo à tona divisões, categorias e classificações sociais, entre outros. São essas classificações que determinam os significados das coisas e refletem a própria ordem social. 258 Em outras palavras, os significados e rituais de consumo demarcam, portanto, as categorias e as classificações que constituem a ordem social. Complementarmente, esses significados são utilizados nas práticas do dia a dia para construir e manter relações sociais. Outra importante consideração de Douglas e Isherwood (2006) que teve aderência à teoria substantiva gerada tem a ver com o conceito de consumo. Para esses autores, o consumo funciona como um fluxo de informações que integra as pessoas em um mundo social inteligível. Dessa forma, os indivíduos usam o consumo para dizer alguma coisa sobre si mesmos, de sua família, do lugar onde vive, etc. Nesse contexto, vale discutir as implicações de algumas contribuições de McCracken (2003) para o entendimento das experiências de consumo de aparelhos eletrônicos. Uma das contribuições desse autor, que também foram estudadas por Rook (1995), faz menção aos rituais de consumo. Para McCracken (2003), estes podem ser categorizados em rituais de posse, rituais de troca, rituais de arrumação e rituais de desapropriação. Os rituais de posse foram percebidos no consumo de eletrônicos, uma vez que muitos consumidores “personalizavam” seus aparelhos seja tanto na forma de exibição ou na decoração deles por meio de enfeites e colagem de desenhos. De fato, o ato de personalização é uma tentativa de transferir o significado do próprio mundo do indivíduo para o bem, que passa a refletir suas próprias experiências, os conceitos de si e do mundo. Em outras palavras, nas buscas do consumo de produtos personalizados, os consumidores projetam seus desejos nas mercadorias para, em seguida, se expressarem por essas mercadorias, emprestando delas suas qualidades (GUIMARÃES, 2003). Os rituais de troca, tal como discutido no capítulo 7, podem ser visualizados no compartilhamento dos objetos que caracterizam o cotidiano dos pobres urbanos. Já o objetivo dos rituais de arrumação é assegurar que as propriedades especiais serão “insinuadas” para fora dos bens que lhes servem de suporte. Finalmente, nos rituais de desapropriação foi percebido um ponto importante. Apesar do bem precisar ser esvaziado do significado antes de ser passado adiante, os rituais de desapropriação constituem uma parte importante do dia a dia dos consumidores, visto que existe um compartilhamento dos objetos. Nesse sentido, são importantes para se entender as experiências de consumo. Para as análises que culminaram com a construção da teoria substantiva de experiência de consumo de eletrônicos por consumidores de baixa renda, levou-se em consideração que esses rituais, tal como defendido pelo autor, é um tipo de ação social dedicado à manipulação do significado cultural, com o intuito tanto de comunicação como de categorização coletiva e 259 individual. Assim, o ritual pode ser considerado como uma oportunidade para afirmar, evocar, assinalar ou revisar os símbolos e significados da cultural material, tornando-se, assim, uma poderosa e versátil ferramenta para a manipulação do significado cultural. As ideias de Campbell (2001) também foram importantes, na medida em que ele considera que a sociedade de consumo atual caracteriza-se tanto pela importância dada à emoção e ao desejo quanto ao papel do individualismo. Campbell (2001) defende a tese de que o consumo, ao invés de aprofundar a “crise de identidade” tão enfatizada pelos pós- modernistas, é uma atividade por meio da qual os indivíduos conseguem resolvê-la. Corroborando com o que já foi dito por outros autores, o self do indivíduo é definido pelos seus gostos e preferências pessoais e o consumo teria o poder de funcionar como uma forma de conhecer e reconhecer quem ele é. As análises de Bourdieu (1989, 2007a, 2007b) parecem ter alguma relação com os resultados da pesquisa, embora algumas ponderações sejam necessárias uma vez que o contexto que o autor abordou em seus estudos seja bastante diverso do investigado na tese. A primeira questão está ligada ao conceito de habitus, que pode ser utilizado neste estudo para tentar caracterizar sistemas de classificação, regras e expectativas que predispõem o indivíduo a fazer certas escolhas e ações. O conceito de habitus parece ser adequado, uma vez que é possível afirmar que, ao contrário do que sustenta uma parte da literatura referente aos consumidores pobres, não é adequado considerá-los como uma classe homogênea, obediente e fiel a padrões fixos, pois as camadas populares, como bem enfatiza Caldeira (1984), estão o tempo todo transitando por entre esses diversos planos, realidades, níveis e sistemas explicativos. Assim, vale destacar que os resultados da pesquisa parecem corroborar com autores que advogam a favor da ideia de que não há um único grupo de características que possam ser utilizadas para classificar os consumidores pobres. Pelo contrário, somente a “multiplicação” de estudos etnográficos que levem em conta a inter-relação de todos os fatores constituintes das práticas do cotidiano desses indivíduos, incluindo questões supra- locais e microlocais, poderá aprofundar o conhecimento do consumidor de áreas pobres (ALVITO, 2001). A importância das discussões de Bourdieu (2007) para a teoria substantiva encontra eco na compreensão da natureza cultural do consumo, que o indivíduo exerce quando exibe seu gosto ou estilo. Porém, esse gosto não é uma questão de capricho pessoal; ele é estruturado socialmente ou estratificado em relação a diferentes tipos de cultura. A grande questão é que, ao expressar seu gosto, os indivíduos dão outros indícios de sua posição social. 260 Além disso, para Bourdieu (2007), mais importante do que a posse em si, o interessante é investigar o uso de que os indivíduos são capazes de fazer com esses bens. No relato da pesquisa, ficou explicitado que os pobres urbanos buscam distinção por meio dos seguintes aspectos: localização da casa, posse da casa própria e consumo de aparelhos eletrônicos. Ou seja, parece que é pela posse dos bens, e mais precisamente pelo consumo que os pobres se distinguem uns dos outros. Prova disso é que entre os entrevistados, a todo momento, era possível perceber uma forma de busca de distinção entre os “pobres” dos “muito-pobres”. Outra constatação é que os aparelhos eram sempre instalados na sala, local onde poderia ser avistado pelos outros moradores ou pelos transeuntes da rua. O termo-chave para esse processo social é o que Bourdieu (2007) chama de “distinção”, termo que parece englobar o sentido de sistemas classificatórios por meio dos quais os indivíduos distinguem as coisas, bem como o uso dessas coisas e de seus significados para conseguir distinção nas relações sociais. Alguns aspectos ressaltados por Miller (2002) podem ser considerados coincidentes com os resultados da teoria substantiva gerada. Miller (2002) enfatiza que comprar é um ato de amor, e por isso as compras tornam-se um dos meios fundamentais para a construção de relacionamentos tanto de amor e carinho quanto de preocupação, obrigação e responsabilidade na vida do cotidiano. Ou seja, os estudos envolvendo a cultura material não devem abordar a compra não só como uma coisa em si, mas como um meio de descobrir algo sobre seus relacionamentos. Assim, conforme comentado no capítulo 7, o ato de comprar e consumir eletrônicos tem um significado importante para os pesquisados, visto que esses aparelhos representam uma forma de demonstrar amor, cuidado e atenção, e de proporcionar maior conforto a seus filhos e outros familiares. Ficou evidenciado que ter uma televisão nova, um DVD moderno e um som mais potente significa uma “prova” de que elas são boas mães e se preocupam com o bem-estar de seus filhos. Além disso, seria uma forma de “minimizar” o fato de morarem em um bairro pobre e com estrutura urbana precária. Além disso, a pesquisa corrobora com a tese do autor de que, sobretudo os ricos, devido à sua facilidade de acesso aos diversos bens disponíveis na afluente sociedade de consumo, são materialistas. Muito pelo contrário, consumir é algo inerente ao ser humano e o desejo por ter bens e usufruir deles não está somente relacionado à quantidade de recursos disponíveis, nem a conta bancária. Ou seja, conforme Leitão, Lima e Machado (2006), o 261 consumo é distintivo e demarcador de vidas e memórias, indiferentemente das classes sociais, e isso parece não ter relação direta com poder aquisitivo. A destacar também é a noção de que existem apenas poucos objetos puramente utilitários, neutros, de modo algum carregados de significados sociais. Quase todos são dissimuladores, têm um papel duplo, servem de “simulacro funcional, atrás do qual os objetos continuariam a desempenhar seu papel de discriminadores sociais” (BAUDRILLARD, 2005). Em outras palavras, esse autor parece dizer que os indivíduos deixaram de consumir produtos, mas sim passaram a consumir signos. Ou seja, o que se compra com o bem de consumo e por meio dele é a posição social que ele indica em relação a todos os outros signos-mercadorias do sistema. Complementarmente, conforme advoga Featherstone (1995), os consumidores, numa condição pós-moderna estão livres para consumir os diversos bens de consumo disponíveis simplesmente pela autoimagem que podem espelhar, assim como pelo diversos sentimentos que as experiências de consumo podem proporcionar. Na teoria substantiva desenvolvida na tese a partir da pesquisa de campo conduzida no estudo, ficou explicitado que muitos dos consumidores compravam produtos eletrônicos de “última geração” e, raramente, conseguiam usufruir de todos os recursos presentes nos aparelhos ou com as inovações neles desenvolvidas. Pôde-se constatar que, assim como defendido por Baudrillard (2007) e Featherstone (1995), os consumidores pobres pesquisados parecem se encantar e se deixar seduzir pela estética dos aparelhos eletrônicos e com os símbolos a ele relacionados, bem como vivenciar com eles uma série de sentimentos, como distração, entretenimento, “fuga” da realidade, reunião de família e lembrança do passado. No que tange às discussões atinentes às teorias da cultura do consumo, tal como explanadas por Arnould e Thompson (2005), é digno de menção que os resultados da tese se coadunam com a proposta dos autores que envidam esforços na construção de perspectivas que buscam a execução de estudos empíricos que almejam tanto analisar como as manifestações particulares de cultura do consumo são constituídas, mantidas, transformadas e formatadas pelas forças históricas mais amplas (tais como narrativas culturais, mitos e ideologias) quanto se embasar em específicas circunstâncias socioeconômicas e sistemas de mercado particulares. Contudo, algumas discussões se fazem necessárias em virtude de que algumas questões teóricas defendidas por alguns autores não foram devidamente consideradas coincidentes com os resultados da teoria substantiva. Uma desses desenvolvimentos teóricos 262 ficou conhecido como teoria trickle-down, que, estabelecida pela primeira vez por George Simmel, era uma engenhosa descrição da mudança da moda. Na análise de McCracken (2003), grupos sociais subordinados, seguindo principalmente o princípio da imitação, buscariam estabelecer suas reivindicações por um novo status adotando o vestuário dos grupos superiores. Estes, seguindo o princípio da diferenciação, respondem adotando novas modas, renunciando a antigos marcadores de status e abraçando novos. Dessa forma, a teoria sustenta que o processo de imitação e diferenciação tem um caráter tanto progressivo quanto sucessivo. Embora a teoria tenha sido desenvolvida para explicar mudanças na moda, ela vem sendo utilizada pelos pesquisadores para outros campos de estudo. No caso das experiências de consumo de aparelhos eletrônicos, não se verificou esse “movimento”, uma vez que o processo de difusão parece não ocorrer de forma tão passiva, como se não houvesse alguma forma de assimilação um tanto diferenciada do que é padrão das classes dominantes. Prova disso foi a constatação da posse de aparelhos eletrônicos de última geração, incluindo celulares e computadores, nas casas dos moradores da favela do Cafezal e até mesmo a utilização da “gatonet” como forma de acesso aos canais da TV paga. Ademais, muitos moradores buscavam criar alguma forma de diferenciação em seus objetos, como a decoração especial dos aparelhos ou a “personalização” destes por meio de adesivos e outros artefatos colantes. Também são dignas de nota algumas críticas que podem ser feitas ao modelo de McCracken (2003) referentes ao movimento dos significados, conforme apresentado e discutido no capítulo 3. Para o pesquisador, no modelo aludido, o movimento de transferência do significado é único e se dá apenas em uma direção, ou seja, da sociedade para o indivíduo ou, ainda, de fora para dentro. Contudo, percebeu-se na teoria gerada que existe uma sobrevalorização marcante por parte dos consumidores de baixa renda pesquisados quanto à questão dos relacionamentos, “empréstimo” de nome e compartilhamento de objetos, situações em que os indivíduos podem expor seus significados a sua rede de parentes, amigos e vizinhos. Nesse sentido, o esquema proposto por McCracken (2003) parece negligenciar essas questões, uma vez que o movimento dos significados é duplo, isto é, se dá em todos os sentidos, sendo construído, mediado e negociado na vivência do dia a dia do cotidiano nas mais variadas situações. Dando continuidade às discussões críticas acerca das propostas defendidas por McCracken (2003), outra questão está relacionada ao que ele chama de “efeito Diderot”, que sugere que os bens de consumo são “ligados” por uma espécie de harmonia, ou consistência, 263 com outros bens. Em outras palavras, o efeito Diderot pressupõe que o significado de um bem é mais bem comunicado quando este bem é cercado pela complementaridade de outros bens que carregam a mesma significação. Em se tratando da teoria substantiva gerada, pode- se afirmar que na situação vivenciada pelos consumidores de baixa renda, pelo menos nas experiências de consumo de eletrônicos esse efeito parece não ser tão forte ou deveria ser analisado com ressalvas, pois não existem evidências dessa complementaridade quando se observa as casas simples com a presença de tantos aparelhos eletrônicos relativamente sofisticados. Ainda que não diretamente relacionado à perspectiva antropológica do consumo, porém tangente à noção experiencial do consumo, um conceito que pode ser utilizado nesse capítulo de (re)encontro com a literatura é o de valor na ótica do consumo, desenvolvido por Holbrook (1999). Esse autor define valor do consumo como uma experiência de preferência relativamente interativa; isto é, refere-se à avaliação de algum objeto por algum sujeito. Nesse caso, o sujeito em questão é um consumidor, ao passo que o objeto de interesse poderia ser um produto: um bem manufaturado, um serviço, um candidato político, um destino turístico, um concerto musical, uma causa social, etc. Wagner (1999) complementa que o valor é intangível, podendo ser derivado de características tangíveis de um objeto e influenciado pelas características de um sujeito, incluindo seus valores pessoais. Holbrook (1999) considera que os valores de consumo possuem quatro importantes características. Primeiramente, é interativo. Isso quer dizer que corresponde a uma interação entre algum sujeito e algum objeto. É possível caracterizar dois extremos: o subjetivismo, que pressupõe que o valor depende completamente da natureza da experiência subjetiva; e o objetivismo que considera que o valor reside no objeto em si. Uma posição intermediária sustenta que o valor depende das características de algum objeto físico, mas não pode ocorrer sem o envolvimento de algum sujeito que aprecia essas características. A segunda característica é que o valor do consumo é relativista; ou seja, é comparativo, pessoal e situacional. O valor é comparativo, porque nós somente podemos estabelecer o valor de um objeto em referência a um outro que foi avaliado pelo mesmo indivíduo. O valor também é pessoal, pois varia de um indivíduo para outro. Por fim, o valor do consumo é situacional, porque depende do contexto em que é avaliado. Já a terceira característica está relacionada à noção de que o valor do consumo é preferencial. Isso implica que ele engloba um julgamento preferencial. O conceito geral de preferência inclui uma ampla variedade de termos relacionados como, afeto, atitude, avaliação, predisposição, opinião e tendência de resposta. 264 Por fim, a última característica significa que o valor do consumo é uma experiência; isto é, ele reside não somente no produto comprado, nem no objeto possuído, mas, principalmente na experiência do consumo envolvida. Assim, todo produto pode propiciar experiências. Isto coloca a experiência como posição central na criação do valor do consumo. Complementarmente, Holbrook (1999) desenvolveu um arcabouço para categorizar os vários tipos de valor na experiência de consumo: a) valor intrínseco versus valor extrínseco; b) valor auto-orientado versus valor orientado para os outros e c) valor ativo versus valor passivo. Com relação à primeira categoria, valor extrínseco pertence ao relacionamento no qual o consumo é recompensado por sua instrumentalidade funcional e utilitária ao servir como meio para atingir propósitos, objetivos ou metas. Valor intrínseco ocorre quando alguma experiência de consumo é apreciada como um fim em si mesma como autojustificante ou lúdica. Vale ressaltar que os valores intrínsecos estão associados a experiências do produto em si, enquanto valores extrínsecos estão relacionados às experiências proporcionadas pelo produto, mas não no produto em si. Já no que tange à segunda categoria, o valor é auto- orientado quando o consumidor recebe a recompensa dos aspectos do consumo para seu proveito, ao passo que o valor orientado para os outros é dependente da reação de terceiros. Por fim, o valor é ativo quando ele engloba uma manipulação física ou mental de algum objeto tangível ou intangível; ou seja, quando envolve coisas feitas por um consumidor ou com um produto como parte de uma experiência de consumo. Por sua vez, o valor do consumo é reativo quando ele resulta de apreensão, apreciação, admiração ou resposta a algum objeto (HOLBROOK, 1999). Cruzando essas três classificações, Holbrook (1999) propõe a qualificação de oito tipos de valores dentro da experiência de consumo: eficiência, excelência, status, estima, jogo, estética, ética e espiritualidade. O QUADRO 28 discute esses oito tipos de valores propostos pelo autor. 265 QUADRO 28 – Oito tipos de valor segundo Holbrook (1999) TIPOS DE VALOR DESCRIÇÃO Eficiência (conveniência) Envolve valor extrínseco que resulta do uso ativo de um produto ou experiência de consumo como um meio de atingir algum propósito auto-orientado. Pode ser visto como conveniência. Excelência (qualidade) Envolve uma apreciação reativa de alguma habilidade potencial de uma experiência ou objeto de servir como um meio extrínseco para algum fim pessoal auto-orientado. Ou seja, alguém admira algum objeto ou valoriza alguma experiência por sua capacidade de atingir algum objetivo pessoal. Status (sucesso) Designa a manipulação ativa de um comportamento de consumo próprio como meio extrínseco de auto-orientação de atingir uma resposta favorável de alguém. Em resumo, os consumidores escolhem os produtos e experiências, em parte, como uma série de símbolos pretendendo construir uma imagem de sucesso na forma de status aos olhos dos outros. Estima (reputação, materialismo) Envolve uma contrapartida reativa do status, ou seja, valor extrínseco, reativo e orientado para os outros. Compreende a ideia de que os produtos passam a ser importantes a medida que incrementam a auto- estima e a reputação do indivíduo e se transformam na expressão do ser. Jogo (play) Envolve jogar, mas também pode ser entendido como brincar, divertir- se, ou também atuar, exercer um papel. Estética (beleza) Refere-se a uma apreciação de alguma experiência de consumo avaliada como um fim auto-orientado em si mesmo. Ética (virtude, justiça, moralidade) Envolve fazer alguma coisa para o bem dos outros – isto é, a preocupação de como isto afetará os outros ou como eles reagirão a isto. Espiritualidade (fé, sacralidade, mágica) Envolve uma aceitação, adoção, apreciação, admiração ou adoração de um Outro onde este Outro pode constituir algum poder divino, alguma força cósmica, alguma entidade mística, ou mesmo algum ser interior inacessível. Fonte: Elaborado com base em HOLBROOK (1999) Com base na teoria substantiva construída na tese, pode-se afirmar que as experiências de consumo de aparelhos eletrônicos por parte dos consumidores pobres são coincidentes com boa parte dos tipos de valores propostos pelo autor. O QUADRO 29 tenta captar algumas das principais relações encontradas entre a teoria substantiva e os oito valores propostos por Holbrook (1999). Vale destacar que os tipos de valor relacionado a ética e espiritualidade não foram plenamente observados no trabalho de campo e na teoria substantiva, e por isso não foram explicitados no quadro. 266 QUADRO 29 – Comparação entre os oito tipos de valor segundo Holbrook (1999), e os resultados da teoria substantiva TIPOS DE VALOR DISCUSSÃO Eficiência (conveniência) Os produtos eletrônicos, além de carregarem uma considerável carga simbólica, também são utilizados para atividades triviais e utilitárias. Muitos consumidores utilizam seus aparelhos para se informar, diminuir a solidão e arrumar a casa. Excelência (qualidade) Percebeu-se que os consumidores de baixa renda admiram sobremaneira a posse de diversos aparelhos eletrônicos, valorizando todas as experiências de consumo relacionadas a esses bens como forma de atingir objetivos pessoais e sociais. Status (sucesso) Os consumidores de baixa renda utilizam o consumo de seus aparelhos eletrônicos para construir uma imagem de sucesso ou de distinção aos olhos dos outros consumidores. A posse e o consumo dos eletrônicos funcionam tanto como uma forma de pertencimento quanto parece contribuir para a determinação de um posicionamento em um grande sistema classificatório. Ademais, com os eletrônicos, esses consumidores buscam uma “aceitação” por meio de respostas favoráveis de parentes, vizinhos e amigos. Estima (reputação, materialismo) A posse e o consumo dos aparelhos eletrônicos incrementam a auto- estima e a reputação dos consumidores. Ficou explicitado na pesquisa que os eletrônicos proporcionam a sensação de recompensa, conquista, assim como realização do sonho dos filhos, preocupação, amor e afeto pelos filhos. No mesmo sentido, percebeu-se o materialismo presente na composição cultural dos pobres urbanos. Jogo (play) O consumo de aparelhos eletrônicos, conforme descrito no capítulo 7, faz parte da vida dos consumidores e está presente nas várias atividades do cotidiano, o que os fazem assumir papéis diferenciados nas várias ocasiões, como reunião de família, conversa com amigos e diversas outras tarefas comuns do dia a dia. Estética (beleza) Como esse valor refere-se a uma apreciação de alguma experiência de consumo avaliada como um fim auto-orientado em si mesmo, pode-se dizer que os consumidores de baixa renda apreciam os momentos de consumo de eletrônicos. Para isso, destinam diversos esforços nesse sentido, como pedir aparelhos emprestados ou comprar aparelhos usados ou de procedência duvidosa. Fonte: Elaboração própria (2009) Com a discussão acerca do valor do consumo tal como proposto por Holbrook (1999) e sua aderência aos resultados da teoria substantiva gerada na tese, é possível revisitar as principais contribuições teóricas dos autores do campo das experiências de consumo. 9.4 Experiências de consumo Ao retornar a literatura referente ao campo das experiências de consumo, inicialmente, torna-se importante destacar alguns pontos. Em primeiro lugar, conforme discutido no 267 capítulo 2, a literatura sobre a noção experiencial do consumo é lacunar e pode ser considerada ainda em construção, embora alguns modelos e esquemas explicativos já tenham sido propostos por alguns autores. No Brasil, os estudos relacionados a essa temática são incipientes e são poucos os pesquisadores do campo do consumo que se dispuseram a debruçar sobre as questões referentes ao campo. Em segundo lugar, é interessante enfatizar que muito do que se publicou sobre o tema leva a crer que as experiências de consumo compõem-se prioritariamente de algo extraordinário (ARNOULD e PRICE, 1993) ou extremamente diferente, que irá marcar a vida do consumidor por um longo tempo. A ideia defendida nesta tese caminha no sentido de propor que as experiências de consumo podem ser entendidas também por eventos, atividades que perpassam todas as fases do consumo e fazem parte do cotidiano dos indivíduos no seu dia a dia. É justamente nessa lacuna que a teoria substantiva gerada na tese pode contribuir para os estudos referentes às experiências de consumo. Por fim, também é digno de menção que boa parte da literatura, incluindo os trabalhos seminais, como o de Holbrook e Hirschman (1982), não leva em consideração questões relativas à cultura do consumo e suas influências nas experiências de consumo. A proposta de Schmitt (2000), que foi devidamente revisada no capítulo 2, parece ter aderência aos resultados obtidos da teoria substantiva, uma vez que nas experiências de consumo de eletrônicos por parte dos consumidores de baixa renda se fazem presentes as cinco categorias: são sensoriais, pois o consumo dos eletrônicos apela para os cinco sentidos; são emocionais, visto que remetem a sentimentos e emoções diversas, tal como apresentado no capítulo 7; são cognitivas, porque tendem a apelar para o pensamento e para o intelecto; são de ação, pois envolvem diversas atividades; e, principalmente no caso da teoria gerada, são de identificação, uma vez que as experiências são eminentemente sociais, nas quais ganha relevo o relacionamento entre os integrantes da família, vizinhos e amigos, bem como forma de distinção. O interessante a ressaltar é que enquanto as emoções, sensações e pensamentos podem ser consideradas experiências individuais a ação e a identificação são compartilhadas e definidas socialmente. No mesmo sentido, a classificação proposta por Lofman (1991) acerca das experiências de consumo em seis dimensões pode ser confrontada com a teoria substantiva gerada neste estudo. Cabe destacar que as seis dimensões são intimamente relacionadas. Ou seja, muitas vezes, torna-se difícil delimitar as fronteiras para cada uma delas. A primeira dessas dimensões – contexto – está relacionada a uma série de outros eventos, pessoas e objetos que propiciam a experiência. Ou seja, compreende tanto os objetos 268 quanto outras pessoas que compõem o ambiente em que a experiência ocorre. Esta dimensão mostrou-se importante na teoria gerada, pois verificou-se que as experiências de consumo de eletrônicos entre consumidores pobres estão permeadas por diversos fatores culturais e simbólicos que vão compor um ambiente, conforme discutido nos capítulos anteriores, marcado por fortes relacionamentos, compartilhamento de espaços e objetos e busca por distinção, entre outros. Verificou-se também que não raramente as experiências de consumo dos aparelhos transformam-se numa oportunidade para aproximar as pessoas, reunir a família e propiciar uma “festa”. A segunda dimensão apontada por Lofman (1991) tem a ver com os estímulos sensoriais. Nessa perspectiva, os consumidores se utilizam de bens ou serviços para buscar atividades que envolvem sensações, sentimentos e emoções. No trabalho, ficou bastante claro que o consumo dos aparelhos eletrônicos tem o poder de proporcionar várias dessas sensações, o que permite afirmar que existe profunda relação entre os consumidores e seus aparelhos eletrônicos, fazendo com que alguns cheguem a enfatizar que “os aparelhos fazem parte de sua vida”. Essa afirmação vai ao encontro do que defende Belk (1988) ao enfatizar que os produtos podem ser entendidos como extensão de nosso self. Dessa forma, à medida que os aparelhos são entendidos como uma “extensão” dos sentidos do consumidor, por conseguinte, novas sensações e sentimentos podem ser derivados da experiência de consumo. Por sua vez, as respostas afetivas são consideradas a terceira dimensão proposta pelo pesquisador. Elas são relacionadas à formação das emoções em geral, bem como às alterações fisiológicas delas derivadas, traduzidas pelos sentimentos e pelos estados de humor gerados durante o consumo. Durante o trabalho de campo, foi fácil perceber que as experiências de consumo de eletrônicos proporcionam emoções fortes, pois representam muito da vida cotidiana dos consumidores pesquisados: alegria, tristeza, melancolia. Ademais, diversos outros sentimentos afloram por meio do consumo desses aparelhos: encanto, apego, ciúme, sensação de conquista e recompensa, envolvimento e amor pelos filhos, tal como descrito detalhadamente no capítulo 7. Já a quarta dimensão – processos cognitivos – refere-se tanto aos pensamentos e à imaginação do consumidor estimulados pelo consumo de um bem ou serviço quanto às associações construídas durante o consumo. Pode-se perceber que na teoria substantiva gerada muitas dessas associações foram percebidas: as experiências de consumo relacionadas à “fuga” da realidade por meio do uso da televisão, à possibilidade de reunião de família e ao auxílio na tarefa de tirar o filho da rua. 269 A quinta dimensão proposta por Lofman (1991) é concernente às atividades que podem ser entendidas como os eventos comportamentais ocorridos durante o consumo, incluindo desde as ações realizadas pelo indivíduo durante a experiência até como as reações aos elementos e estímulos do contexto em que a experiência ocorre. Na teoria substantiva gerada, ficou bastante clara que são várias as atividades que motivam o indivíduo a experienciar o consumo de aparelhos eletrônicos. Tais motivos se estendem desde às estratégias de compra dos aparelhos até o consumo propriamente dito. Entre as principais atividades, podem ser citadas: a compra de aparelhos em bazar, compra de aparelhos usados, troca de aparelhos entre parentes, vizinhos e amigos, compartilhamento dos objetos, uso da “gatonet” e, até, utilização da casa dos vizinhos para ter acesso ao consumo dos aparelhos. Por fim, a última dimensão tem a ver com a avaliação. Na visão do próprio pesquisador, os julgamentos de avaliação do consumo estão relacionados à satisfação com o uso, os resultados do uso e a apreciação do produto em si. Dessa forma, é possível afirmar que todas as outras dimensões que constituem as experiências de consumo – que já foram apresentadas e discutidas – são objeto dos julgamentos dos consumidores. Levando-se em consideração a tipologia desenvolvida por Pine II e Gilmore (1998) acerca dos tipos de experiências, cabe enfatizar que as experiências de consumo de aparelhos eletrônicos por parte dos consumidores de baixa renda têm elementos de todas as quatro categorias propostas. Assim, pelo fato de as teorias, esquemas e propostas relacionados à noção experiencial do consumo revisitados nesta tese terem sido desenvolvidos em outros contextos sociais, nenhum desses desenvolvimentos teóricos conseguem isoladamente explicar as experiências de consumo de eletrônicos de consumidores pobres em toda a sua complexidade, principalmente porque boa parte delas não envidam esforços no entendimento do cotidiano do consumidor com todas suas nuanças. Ademais, poucos autores ainda são relutantes em tentar captar um pouco da lógica simbólica e dos significados culturais presentes nos diversos atos da noção experiencial do consumo. Assim, a teoria substantiva desenvolvida nesta tese traz algumas contribuições para a literatura, ao menos, pelos pontos destacados a seguir. Inicialmente, o esforço empreendido no estudo que culminou com a teoria substantiva gerada vai ao encontro daqueles pesquisadores do campo do consumo preocupados e direcionados em explorar os significados construídos e as experiências vividas pelas pessoas, ditas “comuns”, que em seu cotidiano, trabalham, se relacionam, sonham, consomem; enfim, vivem em diferentes contextos, seja em 270 grandes centros urbanos ou em pequenas cidades, seja em luxuosas casas em bairros sofisticados ou em apertados cômodos em favelas ou vilas, seja comprando em grandes shoppings centers ou na mercearia da esquina. A decisão de investigar um público de baixa renda que, apesar de sua incontestável “força” numérica, ainda é negligenciado pelos pesquisadores do consumo, é uma forma de trazer novos e desafiadores “olhares” para o mundo do consumo. Outro ponto merecedor de destaque está relacionado com a pretensão da pesquisa de propor uma integração da noção experiencial do consumo e da teoria da cultura do consumo, a qual pode ser encarada como uma tentativa de entender os diversos relacionamentos que podem surgir entre os consumidores, entre empresa e consumidor, entre as marcas e os consumidores diretamente em um contexto social, tratando a experiência como um empreendimento de construção conjunta. Não menos importante é salientar a proposta epistemológica e metodológica da tese, que buscou aproximar e conjugar três “movimentos” distintos de pesquisa para permitir a elaboração de uma teoria substantiva por meio da grounded theory que englobasse elementos advindos tanto da abordagem fenomenológica quanto de uma perspectiva etnográfica. Nesse sentido, a teoria substantiva da experiência de consumo de eletrônicos por consumidores de baixa renda, que não tem a pretensão de ser completa, muito menos definitiva, procurou entender a lógica que orienta a vida dos consumidores de um bairro pobre da cidade de Belo Horizonte levando em consideração o contexto construído, histórica e socialmente, no qual eles vivenciam suas experiências e lidam com ambiguidades e contradições, ao mesmo tempo em que constroem sua própria história. Diante de todas as discussões apresentadas neste capítulo com o intuito de trazer à tona pontos divergentes e convergentes entre a literatura e a teoria desenvolvida para explicar o fenômeno da experiência de consumo de eletrônicos de consumidores pobres, o próximo capítulo tenta sintetizar todos resultados da pesquisa, assim como apresentar as contribuições que o estudo pode fornecer à literatura e aos gestores de bens e serviços focados no consumidor de baixa renda. No mesmo sentido, torna-se possível salientar as limitações percebidas no trabalho e, por conseguinte, propor algumas recomendações para estudos futuros. 271 10. CONSIDERAÇÕES FINAIS As primeiras frases da tese, que serviram de abertura para o capítulo de Introdução, tentaram expressar, ainda que superficialmente, uma variedade de emoções e sentimentos, traduzida em forma de texto, que vivenciei em uma das minhas primeiras “subidas” à Vila do Cafezal, com o intuito de iniciar meu estudo referente à investigação das experiências de consumo de eletrônicos de consumidores pobres. Naquela ocasião, eram muitas as expectativas e várias as indagações acerca da minha proposta de pesquisa, pois não sabia o que aconteceria nos próximos meses, de que forma seria a recepção dos moradores com relação a minha pesquisa, como se desenrolaria a análise dos dados e quais problemas ou desafios enfrentaria. Todavia, passado mais de um ano, estava eu novamente a manter minha rotina de frequência ao bairro para executar mais uma tarefa de trabalho social. Contudo, meus sentimentos eram outros quando comparados com os da primeira vez. Havia tomado a decisão de que aquele domingo de sol quente de fim de verão (era meados do mês de março) seria o último dia que “subiria” ao Cafezal, pelo menos até o final da análise final dos dados e da elaboração da última versão da tese. Essa era uma decisão “estratégica” para permitir que eu me distanciasse um pouco das situações vividas e, assim, pudesse ter melhores condições de “mergulhar” nos dados e, a partir deles, “construir” uma teoria que refletisse a realidade dos pesquisados. Não poderia dizer que ao longo de toda a caminhada até o Cafezal e, posteriormente, durante o trabalho que se estendeu pela manhã toda, eu sentia um misto de tristeza e de alívio. Tristeza porque foi naquele ambiente que conheci pessoas, ouvi relatos tristes de histórias de vida, presenciei momentos de alegria, compartilhei histórias e memórias dos moradores, passei por momentos de frustração e angústia, enfim, vivenciei um pouco do que é fazer parte daquela comunidade de pobres urbanos. Ao mesmo tempo, era perceptível um sentimento de alívio, pois eu achava que havia feito um trabalho cuidadoso, o qual, apesar das eventuais falhas, poderia contribuir para o preenchimento de uma lacuna no conhecimento. E, mais do que isso, tinha a impressão de que os resultados da pesquisa poderiam servir de subsídios para uma maior reflexão sobre todas as temáticas envolvidas. Naquele dia, dado o meu estado de extrema sensibilidade, era mais fácil “atrelar” aos diversos rostos dos diversos moradores que fazia questão de cumprimentar cada citação dos entrevistados ou as mais de 300 categorias que foram criadas pelas análises das entrevistas e dos diários de campo que pareciam compor um extenso quebra-cabeça, que precisaria ser 272 visto e revisto, ordenado e reordenado por diversas e incansáveis vezes até que as informações e as relações tivessem determinada lógica e produzissem um sentido. Lembrei-me de todas as vezes que “incomodei” meus entrevistados com perguntas e questionamentos que não faziam parte de seu cotidiano ou quando alguns dos entrevistados, por receio ou desconhecimento, se negavam a discutir comigo algumas questões que eu achava pertinentes. Recordei-me dos momentos de angústia e incerteza quando percebia que os relatos não pareciam fazer sentido, ao mesmo tempo em que vinham à mente todos os desafios que enfrentei nos quase quinze meses de trabalho de campo para “acessar” toda a riqueza de detalhes que compõem as experiências de consumo, principalmente quando vistas na ótica simbólica. Vieram à tona também os dias de desânimo e desamparo, quando eu, após horas de trabalho debruçados sobre os dados, percebia que toda minha análise havia sido equivocada e que no dia seguinte teria que recomeçar. Por tudo isso, no final daquela manhã de domingo preferi “sair de fininho”, sem buscar fazer despedidas, nem explicar o motivo da minha futura ausência. A volta para casa teve um significado importante para mim: eu havia me transformado nesse período em um pesquisador mais cuidadoso, mais detalhista, mais afeito a questões que apenas a condução de um trabalho de base interpretativista e baseado na experiência da vida cotidiana vivida poderia proporcionar. De uma impressão, que, aliás, foi se transformando e ganhando vulto ao longo de todo o processo de pesquisa, eu parecia estar convicto: o consumo, dado o seu caráter multifacetado e polissêmico, é um elemento central para o entendimento de uma série de questões relacionadas à sociabilidade contemporânea, tais como a construção de identidade, a motivação do homem no trabalho, os significados que ele cria para a sua vida, a forma como percebe as ameaças à sua família, a sua fragilidade no caos urbano, o modo como busca inserção social, reconhecimento e prestígio, e, até mesmo, como se manifesta politicamente (MIGUELES, 2007). As experiências de consumo em uma perspectiva social e cultural dos chamados “consumidores de baixa renda”, “pobres urbanos” ou oriundos das “classes populares” parecem compor um exemplo típico e, ao mesmo tempo, pouco explorado em estudos acadêmicos, de todas as possibilidades elencadas anteriormente. Foi justamente nessa temática que se inseriu a proposta da pesquisa conduzida nesta tese, a qual foi devida e amplamente discutida nos capítulos anteriores. Esse capítulo tem, portanto, o objetivo de finalizar a tese. Compõe-se de cinco seções. A primeira visa apresentar um sumário das principais conclusões da pesquisa, destacando os 273 elementos gerados pela teoria substantiva. As duas seguintes buscam, respectivamente, discutir as implicações conceituais da teoria substantiva gerada na literatura e ressaltar as contribuições para os gestores. A quarta seção assinala as limitações da pesquisa e, por fim, a última, direciona o foco das discussões para as recomendações para trabalhos futuros.  Conclusões gerais De acordo com o que foi apresentado no capítulo 1 desta tese, a questão norteadora do trabalho foi como os consumidores de baixa renda vivenciam suas experiências de consumo de produtos eletrônicos? A partir do objetivo geral enunciado, que consistiu em: “Investigar como as experiências de consumo de eletrônicos pelos consumidores de baixa renda interagem com o sistema cultural e simbólico envolvido no fluxo da vida social cotidiana”, optou-se por uma perspectiva interpretativa de investigação, a partir da conjugação de três “movimentos” – a fenomenologia, a etnografia e a grounded theory – que, conjugados, formaram o arcabouço epistemelógico-metodológico da tese. Vale destacar que um dos objetivos específicos da pesquisa foi “Propor uma teoria substantiva que pudesse explicar o processo de construção de significados nas experiências de consumo de produtos eletrônicos conforme a realidade vivenciada dos consumidores de baixa renda”. Ao longo do processo da pesquisa, que contou com elementos constantes dos referenciais concernentes aos “movimentos” fenomenológico, etnográfico e da grounded theory, algumas categorias emergiram da análise dos dados: identificação com o bairro, violência e tráfico, influências sociais, papel dos relacionamentos, compartilhamento de objetos e espaços, eletrônicos como opção de lazer e entretenimento, posse e uso dos eletrônicos como distinção, formas de aquisição dos aparelhos, experiências de compra, dilemas de compra à vista e a prazo, uso do crédito, percepção do consumidor de baixa renda, sonhos de consumo e, por fim, experiências de consumo dos eletrônicos. A partir das análises conduzidas nas fases de codificação aberta, axial e seletiva, conforme estabelecido operacionalmente pela grounded theory, foi possível iniciar a proposição da teoria substantiva, a partir da elaboração de uma série de esquemas para apresentar tanto as propriedades de cada categoria emergente da análise quanto as relações entre as categorias. Uma vez que as experiências de consumo dos aparelhos eletrônicos têm forte componente cultural, foi definida como categoria central do estudo “questões 274 simbólicas”. No mesmo sentido, a percepção de que os relacionamentos e, consequentemente, o compartilhamento dos objetos e espaços exercem um papel fundamental nas vivências dos pobres que pesquisei possibilitou a elaboração da hipótese fundamental da teoria, descrita a seguir. H1: Em um ambiente marcado por alto grau de relacionamento e compartilhamento de espaços e produtos, os consumidores de baixa renda transferem aspectos simbólicos aos aparelhos eletrônicos nas suas experiências de consumo. Dada a sua importância, a categoria “relacionamentos” foi considerada como condição causal no esquema teórico. Dessa forma, chegou-se as seguintes proposições: P1: A forma como os consumidores convivem com seus familiares e vizinhos e o modo de organização dos espaços determina o nível de relacionamento entre eles. P1.1: Os arranjos familiares e o alto número de membros das famílias contribuem para aumentar o relação intrafamiliar. Além das condições causais, buscou-se definir também as condições interventoras das questões simbólicas atreladas às experiências de consumo de eletrônicos. Algumas dessas condições interventoras foram constatadas: identificação com o bairro, sonhos de consumo, busca por distinção, percepção sobre consumismo e percepção sobre o consumidor de baixa renda. De forma mais moderada, segundo as análises, podem ser incluídas as categorias “papel da violência” e da “falta de opções de lazer e entretenimento” para os moradores. Assim, foi possível estabelecer as seguintes proposições acerca das condições interventoras: P2: O ciclo de vida do consumidor e o tempo que reside no bairro contribuem para determinar a busca por distinção. P3: A busca por distinção determina o impulso dos consumidores a adquirirem novos aparelhos eletrônicos. Sobre as condições contextuais da teoria substantiva, buscou-se delinear as características de três comportamentos de consumidores: “acomodado”, “cauteloso” e “afoito”. Conforme ressaltado no capítulo 8, essa “categorização” não tem o objetivo de 275 enquadrar os consumidores em “rótulos” ou estratos “fechados”, procedimento comum nos estudos de base positivista. Pelo contrário, a ideia é de que no exercício de construção da teoria substantiva é possível identificar entre os consumidores de baixa renda uma série de condições que se combinam e podem favorecer o aparecimento de comportamentos diferenciados. De fato, isso parece confirmar que entre os pobres urbanos não existe uma homogeneidade. Também de importância para a elaboração da teoria é a definição do que os autores chamam de “ações” ou “interações”, que são os atos propositais ou deliberadamente praticados para resolver um problema, moldando, dessa forma, os fenômenos de alguma forma. A partir das análises, foram inúmeras as ações ou interações que levam os consumidores a ter acesso às experiências de consumo dos aparelhos eletrônicos e, assim, alcançar a rede de significados que surgem nessas experiências. As formas de acesso podem ser consideradas diferenciadas e “criativas”, como: por meio de empréstimo ou troca de aparelhos entre familiares, vizinhos e amigos, compra de aparelhos em bazares, utilização de formas diversas de compra a prazo, doações e “gatonet”. Dessa forma, diante de uma descrição sucinta dos resultados da pesquisa, cabe enfatizar que o objetivo geral, bem como os objetivos específicos do estudo, tal como expressos no capítulo 1, foram devidamente alcançados, visto que conseguiu-se explicar como as experiências de consumo de eletrônicos pelos consumidores de baixa renda interagem com o sistema cultural e simbólico envolvido no fluxo da vida social cotidiana por meio da elaboração de uma teoria substantiva. Ao finalizar a seção de conclusões gerais acerca dos resultados da pesquisa, não é escusado colocar algumas questões que, além de pertinentes, parecem ser essenciais para esse capítulo. Em primeiro lugar, ao se debruçar sobre a teoria substantiva gerada no trabalho, parece ser útil enfatizar que não somente é possível, mas essencial avançar por novos enquadramentos conceituais sobre o consumo e o consumidor que ultrapassem a forma costumeira de encará-los somente por meio de uma dimensão residual, individual ou utilitária advinda de uma visão reduzida. Uma das grandes conclusões do trabalho é que deve-se compreender o consumo como uma espécie de facilitador, propiciador e “construtor” de relações sociais. Assim, a ideia das experiências de consumo no plano simbólico implica atrelar aos significados dessas experiências as dinâmicas de sociabilidade às quais se entrelaçam. 276 Em segundo lugar, é importante salientar que os resultados obtidos referem-se especificamente ao fenômeno pesquisado na área substantiva: as experiências de consumo de eletrônicos por consumidores de baixa renda de uma das vilas que compõem um dos bairros pobres da cidade de Belo Horizonte. Generalizações para outras localizações de outras partes de Belo Horizonte ou do Brasil devem ser feitas com cautela e conduzidas criteriosamente. Contudo, experiências de consumo de eletrônicos em outros bairros pobres com características próximas às da Vila do Cafezal podem servir para “testar” o poder explicativo da teoria substantiva desenvolvida neste trabalho. Não menos importante é a constatação de que, ciente das várias decisões tomadas ao longo de toda a elaboração do trabalho, desde a sua concepção até as análises finais, aliada à percepção referente ao dinamismo e ao movimento do mundo social, bem como da vida que nele transcorre e da maneira de interpretá-la, uma certeza é óbvia: querer encaixar os consumidores moradores da Vila do Cafezal em alguns modelos predeterminados certamente seria violentá-los. Conforme dito anteriormente e levando-se em consideração uma declaração “feliz” de Caldeira (1984), os vários pedaços que formam os discursos acerca das experiências vividas por esses indivíduos não são como peças de um quebra-cabeças que, uma vez colocadas em seu devido lugar, revelam uma imagem global. Curiosamente, elas assemelham-se mais a peças de um caleidoscópio que, dependendo do movimento, compõem, para a surpresa do pesquisador, figuras diferentes. Ou seja, outros pesquisadores podem “ver” algo revelador e “detalhes” não percebidos anteriormente. Em outros momentos, com os mesmos elementos, pode-se produzir uma interpretação diferente ou, até, conflitante. Eu próprio, a partir desses dados, posso fazer outra análise... A apresentação dessas questões abre espaço para a discussão que será conduzida na próxima seção atinente às implicações conceituais da teoria substantiva gerada nesta tese na literatura.  Implicações conceituais na literatura Conforme já discutido em outras partes da tese, a motivação do trabalho pode ser atribuída à incapacidade das teorias gerais relacionadas à pesquisa do consumidor de explicar as experiências de consumo em uma perspectiva simbólica de pobres urbanos. No capítulo 9, os resultados da teoria substantiva gerada foram comparados com a literatura, buscando 277 identificar pontos de aderência e lacunas. Buscou-se contrastar a teoria substantiva da experiência de consumo de aparelhos eletrônicos de pobres urbanos com outros estudos já conduzidos no Brasil sobre pobres urbanos, consumidores pobres, aspectos antropológicos do consumo e experiências de consumo. Percebeu-se que boa parte dos achados da pesquisa é coincidente com outros estudos e que muitos dos apontamentos dos autores são aderentes às diversas categorias e relações geradas ao longo da construção da teoria. Os pontos discrepantes foram devidamente discutidos. Nesta seção, contudo, a intenção é destacar as implicações da teoria gerada na literatura referente à pesquisa do consumidor. A pesquisa do consumidor, tradicionalmente, teve suas origens na economia e, mais recentemente, encontrou forte “abrigo” nas teorias oriundas das várias escolas da psicologia, ainda que algumas contribuições possam ter sido buscadas também em estudos no campo da sociologia. Contudo, como o objetivo da tese é explicar as experiências de consumo de pobres urbanos, parece que a perspectiva econômica não consegue contribuir para o entendimento da noção experiencial do consumo, uma vez que vê o mercado como redes de trocas entre vendedores e compradores, intermediadas por acordos sobre preços, constituindo-se em um modelo eficaz de alocação em condições de escassez. Ou seja, a abordagem do fenômeno do consumo que predomina na disciplina da economia é aquela associada à teoria microeconômica da utilidade marginal, sendo a utilidade o nome que se dá à qualidade intrínseca do item do consumo de que o consumidor extrai satisfação. Por sua vez, a psicologia interpreta o consumidor no nível micro como alguém isolado do seu meio social. Na perspectiva psicológica, ganham importância questões como percepção, aprendizagem e memória, motivação, personalidade e atitudes. Dessa forma, a aderência de questões psicológicas para o entendimento das experiências de consumo em um contexto de construção de significados também parece ser limitada. Somente mais recentemente a abordagem sociológica e antropológica, mais precisamente no campo da antropologia do consumo, passou a contribuir para o entendimento do consumo como ato social construído histórica e culturalmente, além de deslocar o nível de análise para a elaboração coletiva de significados. Porém, pode-se verificar que a literatura neste campo é lacunar quanto às questões eminentemente experienciais das atividades de consumo. A tradição de pesquisas denominada consumer culture theory, ou teoria da cultura do consumo, em português, traz relevantes contribuições para o campo ao explorar a distribuição heterogênea dos significados e a multiplicidade de grupos e manifestações 278 culturais que existem nas diversas formações sócio-históricas atuais. Contudo, ainda não incluiu a noção experiencial do consumo em suas investigações. Por seu turno, a literatura referente às experiências de consumo que teve seu início com a publicação do artigo seminal de Holbrook e Hirschman no início da década de 1980 e que vem sendo timidamente desenvolvida ao longo dos últimos quase trinta anos, não conseguiu incorporar em seus elementos, além daquelas vislumbradas inicialmente como fantasias, sentimentos e diversão, questões referentes à perspectiva simbólica, conforme entendida pela teoria da cultura do consumo. Assim, pode-se afirmar que os resultados desta tese parecem “inaugurar” um campo de estudos que busca preencher a lacuna verificada entre a noção experiencial do consumo, entendida em uma perspectiva simbólica. Em outras palavras, a tese buscou construir um conhecimento teórico que integrou a noção experiencial do consumo com o sistema cultural e simbólico dos sujeitos envolvidos no fluxo da vida social cotidiana. Vale destacar que essa abordagem parece ser original e se constitui, portanto, na principal implicação do estudo para a literatura. Não se pode deixar de registrar que essa contribuição foi possível por meio da articulação de uma proposta epistemológica e metodológica interpretativista de pesquisa baseada em três “movimentos” – a fenomenologia, a etnografia e a grounded theory – a qual propiciou o entendimento das experiências dos consumidores vivenciadas no seu dia a dia e no seu ambiente cotidiano por meio da geração de uma teoria substantiva. Tanto a fenomenologia quanto a etnografia, ou a grounded theory, isoladamente, já podem ser consideradas abordagens de pesquisas não tradicionais no campo da pesquisa do consumidor, pelo menos no Brasil. Dessa forma, a conjugação delas, que se pode constituir no que se denomina “triangulação”, e sua devida implementação nesta tese também podem ser considerada como uma contribuição útil para os estudos do consumidor. No tocante à temática dos pobres urbanos, o trabalho parece contribuir, como já enfatizado em outros pontos da tese, para trazer para discussão nos meios acadêmicos questões não somente relacionada ao consumo, mas também a outros aspectos relevantes de uma considerável parcela da população que vem sendo caracterizada tradicionalmente por meio de uma ótica de “perdas e ausências”. As situações relatadas na tese e a teoria substantiva gerada podem servir de apoio ou comparação para futuros estudos oriundos de outros contextos desse imenso país chamado Brasil envolvendo esse estrato da população. 279 Cabe também discutir nesta seção que os resultados gerados nessa tese por meio da teoria substantiva podem contribuir para o ensino em Administração, mais precisamente no campo da pesquisa do consumidor. Trabalhos como o que foi conduzido nesta tese trazem à baila, entre outros pontos, a questão da confiabilidade das teorias gerais sobre o consumidor, normalmente embasadas na literatura predominantemente estrangeira. Essa confiabilidade pode ser questionada quanto à sua capacidade explicativa em contextos específicos, como no caso de experiências de consumo de aparelhos eletrônicos por consumidores brasileiros de baixa renda. Dessa forma, os resultados do trabalho, se baseia numa descrição rica da realidade nacional, bem como em uma teoria gerada a partir das peculiaridades históricas, culturais e sociais do consumidor brasileiro, podem oferecer elementos para um debate profícuo no ambiente acadêmico. A próxima seção tem o propósito de apresentar as contribuições que os resultados da tese podem proporcionar aos gestores das organizações.  Contribuições para os gestores Ainda que o objetivo principal desta tese não tenha um caráter prescritivo ou utilitarista sobre o entendimento do consumo dos pobres urbanos, a partir dos resultados gerados é possível apresentar algumas contribuições para os gestores de empresas, principalmente aquelas que buscam direcionar seus produtos e serviços para os estratos de consumidores de baixa renda. Uma primeira consideração está relacionada à constatação da necessidade de “revisão” por parte de inúmeros empreendedores de alguns “mitos” acerca do consumidor pobre. Pode-se dizer que existe um certo “preconceito” (eminentemente equivocado) atrelado à oferta de produtos mais simples, de “qualidade inferior” e, provavelmente, com preço mais baixo ao mercado consumidor, como se a opção de atender os segmentos mais pobres levasse a empresa a ter uma “posição inferior” ou de “segunda linha” em relação aos concorrentes e aos outros segmentos do mercado. O fato de muitos gerentes, executivos e empreendedores serem oriundos das classes altas e médias da população pode contribuir para aumentar esse preconceito. Também é de se ressaltar que, devido à “invisibilidade” do consumo dos consumidores pobres, promovida pelo “esquecimento” da força numérica desse estrato da população, não raramente muitos institutos de pesquisa e as próprias empresas acabam incorrendo em uma subavaliação do seu potencial de consumo. 280 Conforme apresentado principalmente no capítulo 7, entre os pobres urbanos existe uma expressiva informalidade nas relações de trabalho, além da ocorrência das redes de reciprocidade, que, em conjunto, vão implicar uma renda “flutuante”, cujo volume não faz parte dos registros oficiais. Assim, parece plausível afirmar que o volume de recursos destinado ao consumo de bens e serviços por parte desses consumidores é muito maior do que se acredita. Somado a isso, ainda pode-se apontar a questão da “ilegalidade”, relacionada ao uso de serviços públicos, como água, luz, telefone e, até, a “gatonet”. Ademais, conforme já comentado em outras partes desta tese, carência material não significa carência simbólica. Ou seja, o fato de o consumidor não possuir recursos financeiros em quantidade suficiente para ter acesso a todos os produtos e serviços não o coloca como desprovido de sentimentos, sonhos e ambições, muito menos destituído da capacidade de construir e negociar significados em suas diversas experiências da vida no cotidiano. Dessa forma, seria essencial, conforme defendido por Barros (2007), qualificar esses indivíduos como “consumidores”. A partir dessas considerações, as seguintes implicações gerenciais podem ser apontadas. Visto que duas características principais das comunidades de consumidores pobres são o relacionamento e o compartilhamento de objetos e espaços, aliadas a “permeabilidade” das fronteiras entre a casa e a rua, o que faz com que boa parte das atividades de consumo de aparelhos eletrônicos ganhe expressiva publicidade, seria interessante para as empresas ofertantes desses bens fomentar a propaganda boca a boca entre os consumidores. Assim, as empresas deveriam canalizar mais esforços no monitoramento das impressões causadas pelas experiências de consumo desses aparelhos. Adjacente a essa questão, pode-se levar em conta que as empresas precisam pesquisar ações mais focadas de comunicação que possam atrair a atenção dos consumidores pobres. Ademais, é essencial “formatar” as mensagens por meio de uma linguagem que lhes seja atraente. No caso do Aglomerado da Serra existe uma emissora de rádio comunitária, a Rádio Favela, que poderia servir como um canal interessante de comunicação com os consumidores. Outras formas de comunicação mais focadas seriam a promoção de eventos e o patrocínio de alguns eventos que tenham algum tipo de inserção nas comunidades pobres. A utilização de ações de responsabilidade social e/ou de campanhas de marketing social focadas em regiões de baixa renda para promover a conscientização dos valores das marcas dos produtos e serviços também poderia ser uma estratégia interessante a ser implementada. Quanto às características dos produtos eletrônicos, pelos resultados da pesquisa, já explanados nos capítulos anteriores, ficou bastante claro que o som não precisa ter muitas 281 funções especiais. A grande preocupação da maioria dos consumidores está relacionada à potência. Ou seja, a qualidade do aparelho está diretamente à capacidade de volume do aparelho. No caso da televisão e do DVD, os consumidores parecem ser indiferentes ao oferecimento de funções extras dos aparelhos. No entanto, gostam de botões e “detalhes” coloridos, além da opção de certo espaço para possibilitar a “personalização” dos aparelhos com a colagem de adesivos e figuras autocolantes. Vale destacar também que é importante levar em consideração o espaço das moradias desses consumidores. Quase sempre os aparelhos são instalados em ambientes pequenos, sem ventilação e iluminação. Além disso, os móveis que sustentam os aparelhos são de qualidade inferior. Nesse sentido, essas características podem servir de subsídios para a criação de novos produtos focados para o segmento de consumidores de baixa renda. Como as lojas que comercializam produtos eletrônicos estão situadas em áreas centrais da cidade ou localizadas em shoppings centers, ganha importância a questão do frete. A entrega em domicílio é algo valorizado pelos consumidores pobres. Dessa forma, a prática de levar o produto à casa do consumidor parece conferir visibilidade às aquisições, além de demonstrar preocupação com a segurança e comodidade com o consumidor. Contudo, algumas adaptações precisam ser feitas pelas empresas para oferecer esse serviço aos moradores de favelas. Devido à pequena largura das ruas e à declividade dos terrenos, é essencial utilizar veículos menores para ter acesso a boa parte desses locais. Os profissionais que atuam como motoristas e entregadores também devem ser, de preferência, da própria comunidade. Outra consideração está ligada inevitavelmente à questão do crédito. Embora o fácil acesso às diversas formas de crédito já seja uma realidade entre os pobres urbanos, é importante que as empresas invistam em novas formas de financiamento de produtos eletrônicos que estejam de acordo com a realidade desses consumidores. Como a intermitência dos empregos é comum nesse segmento, as instituições fornecedoras de crédito deveriam oferecer empréstimos com a inclusão do “seguro-desemprego”, de forma a reduzir a inadimplência. Com relação ao amplo comércio e utilização de CDs e DVDs “piratas”, tão comum entre as camadas pobres da população e verificado de forma explícita no trabalho de campo da tese, a recomendação é que as empresas busquem soluções conciliatórias para a situação, pois não parece existir uma política ou ação realmente eficaz que possa coibir a comercialização desses produtos falsificados. 282 Por fim, cumpre destacar a importância que os gestores devem passar a destinar a questões experienciais e simbólicas do consumo. Isto é, torna-se essencial para os profissionais que buscam ofertar aparelhos eletrônicos entender que o consumo de tais bens não se limita à dimensão utilitária e funcional. Mais além, fazem parte da vida de suas vidas e são “companheiros” de suas várias atividades do cotidiano e servem para moldar comportamentos, preferências, relações sociais, estilos de vida, padrões de consumo, sem falar na própria identidade e autoconceito do indivíduo. Vista todas as possíveis contribuições gerenciais vislumbradas a partir dos resultados do estudo, torna-se importante trazer para discussão as limitações da pesquisa, foco da próxima seção.  Limitações da pesquisa Ao analisar todo o percurso conduzido ao longo do processo deste trabalho de tese, é útil trazer para debate algumas limitações percebidas no que tange tanto aos métodos utilizado quanto aos resultados da pesquisa, que culminaram com a geração da teoria substantiva, sem se esquecer da literatura que serviu de base para comparação. Porém, de início, torna-se interessante mencionar o que McCracken (2003), fazendo menção a Thorstein Veblen, chamou de “penalidade de tomar a iniciativa”. Para esse autor, a ausência de uma tradição acadêmica em determinado campo de estudo confere a este mesmo campo uma expressiva diversidade de qualidade e de abordagem. Nesse sentido, os pesquisadores que se “aventuram” nos domínios desse campo têm que assumir, além das responsabilidades acadêmicas de praxe, as implicações e riscos de todo empreendimento pioneiro, encontrando seu próprio caminho em um território “não mapeado”. No caso desta tese, parece cabível essa observação, pois tanto a adoção de uma abordagem interpretativa baseada na conjugação dos três “movimentos” da fenomenologia, da etnografia e da grounded theory quanto a tentativa de construir um conhecimento teórico que visa integrar a noção experiencial do consumo com o sistema cultural e simbólico dos sujeitos envolvidos no fluxo da vida social cotidiana parecem ser um desafio considerável, e por isso candidatas a sofrer alguma “penalidade” pela ousadia. A pesquisa conduzida nesta tese possui características das abordagens interpretativas, e como tal recebe influência dos preconceitos e pressupostos do pesquisador nas descobertas e 283 nas análises dos dados, o que pode se constituir em alta dose de subjetividade da pesquisa. No caso desta tese, em que a pesquisa foi conduzida por apenas um pesquisador, pode-se dizer que o risco de as interpretações possuírem vieses e reflexos de ideologias e interesses pessoais é considerável. Porém, buscou-se a minimização dessas limitações, seja por meio da conjugação de diferentes tipos de coleta de dados por meio de entrevistas pessoais e observação, seja por intermédio das entrevistas com profissionais que atuam na região em que foi desenvolvida a pesquisa. Ademais, lançou-se mão das orientações de diversos autores, conforme discutido no capítulo de percurso metodológico, para garantir a “confiabilidade” dos dados de campo e das interpretações conduzidas. Ganha destaque também a noção de que a teoria substantiva gerada no estudo não tem a pretensão de ser generalista, pois, conforme já discutido em outros capítulos, a finalidade da teoria é explicar a ocorrência de um fenômeno circunscrito a determinada área. Nesta pesquisa, fica claro que a área substantiva é delimitada pelas experiências de consumo de aparelhos eletrônicos de pobres urbanos localizados em uma das regiões mais pobres da cidade de Belo Horizonte. Contudo, quanto maiores variações forem incorporadas à teoria, por meio da introdução de novos casos e situações, maior tende a ser o seu poder explicativo. A decisão de pesquisar apenas mulheres pode se constituir em uma limitação do trabalho. Apesar da percepção de que a teoria substantiva deve ter muito bem definida seus limites e de que a incorporação de elementos diversos, como as diferenças advindas da construção da percepção da realidade entre homens e mulheres, poderia tornar a construção da teoria bastante mais complexa, os resultados parecem ter possuir esse viés relacionado à questão de gênero. O fato de no Brasil ainda persistir no campo da pesquisa do consumidor um predomínio de estudos de base positivista e voltados para buscar explicações oriundas da teoria microeconômica, da psicologia cognitiva, bem como usuários dos métodos quantitativos tradicionais de análise dos dados, também pode ser citado como uma limitação do trabalho, pois propicia maior dificuldade para comparação dos resultados. A utilização das metodologias utilizadas nesta tese, bem como da abordagem interpretativista, ainda é considerada de vanguarda nos estudos do pesquisador no Brasil, o que também não facilita o treinamento de pesquisadores nas tradições teóricas e métodos de correntes como da consumer culture theory. Atrelada às questões anteriores, é digno de nota assinalar a subjetividade presente nos trabalhos de cunho etnográfico. Tal subjetividade impõe ao pesquisador a sua presença no dia 284 a dia dos seus entrevistados e, principalmente, o registro das observações em primeira pessoa. Ainda que essa recomendação seja reforçada por vários autores defensores do método da etnografia e da grounded theory, a decisão de, em partes da tese, relatar as observações sempre na primeira pessoa pode “incomodar” alguns leitores e, até mesmo, pesquisadores experientes. A despeito dessas limitações, muitos dos resultados da pesquisa, bem como várias das reflexões trazidas à baila pelas discussões conduzidas ao longo dos textos que compõem a tese, parecem abrir novas e profícuas “trilhas” de investigação no que concerne tanto aos consumidores de baixa renda quanto às experiências de consumo numa perspectiva simbólica. Algumas dessas “trilhas” poderão ser apresentadas na próxima seção.  Recomendações para trabalhos futuros Em face da existência de poucos estudos brasileiros no tocante ao consumo de pobres urbanos, atrelada à constatação de que ainda pouco se pesquisou sobre os aspectos experienciais do consumo, principalmente em uma perspectiva que leva em consideração uma realidade histórica e socialmente construída, as possibilidades para a criação de linhas de pesquisas que possam conduzir diversas investigações parece extensa. Vale destacar, contudo, um ponto essencial. Advogou-se ao longo da tese que para a investigação de fenômenos ligados ao consumo de pobres, bem como à noção experiencial do consumo, seria mais adequado adotar uma perspectiva interpretativista de pesquisa, na qual se privilegiasse ao mesmo tempo a busca de significados profundos e a preocupação com o entendimento do consumo como fenômeno social constituído por ações cotidianas. Dessa forma, a ideia de utilizar elementos dos três “movimentos” propostos para compor o arcabouço metodológico da tese – fenomenologia, etnografia e grounded theory –, conjugados ou separadamente, pode servir de inspiração para as investigações dos fenômenos aqui elencados. Assim, como são diversas as possibilidades, e a intenção aqui não é fazer uma lista exaustiva, julgou-se adequado dividir as proposições em duas partes. Na primeira, discutem- se as possibilidades de pesquisa na temática “consumo de pobres urbanos” e na segunda, algumas proposições de estudos quanto às experiências de consumo em uma perspectiva simbólico-cultural. 285 Quanto à temática “consumo entre os pobres urbanos”, diversas investigações poderiam caminhar no sentido de buscar entendimento no que tange às diferenças verificadas entre os próprios consumidores, opondo-se ao senso geral de que eles têm as mesmas características e, dessa forma, devem ser tratados de forma homogênea e unificada. Ainda que com as devidas adaptações, corretamente contextualizadas, esses estudos poderiam lançar mão das combinações dos capitais tais como propostas por Bourdieu (2007a). Atrelado a isso, pode-se pensar em como os pobres urbanos constroem suas identidades por meio da distinção. A pesquisa conduzida na tese, que culminou com a geração de uma teoria substantiva focou nas experiências de consumo de aparelhos eletrônicos de pobres urbanos. Não se pode esquecer de que a preocupação era direcionar esforços tentando estabelecer uma “lógica” de pesquisa que permitisse, efetivamente, dialogar com a “realidade” dos sujeitos pesquisados; em tratar os consumidores em relação uns com os outros e com o mundo próprio deles; e em redescobrir “detalhes” e a riqueza de se conhecer atos presentes na “vida vivida” cotidianamente. Fica evidente, portanto, que as possibilidade são inúmeras para se investigar outras situações nas quais a noção experiencial de consumo torna-se importante para esses consumidores, tais como as experiências de consumo de roupas e acessórios, alimentos, móveis, eletrodomésticos, veículos, objetos de decoração, produtos de beleza e/ou cosméticos, serviços de entretenimento e lazer. Ganham espaço também os estudos regionais nos quais seria possível investigar hábitos, rituais e mitos de consumo de uma infinidade de experiências de consumo de produtos e serviços, bem como o significado das posses e das experiências pode ser construído simbolicamente pelos indivíduos envolvidos. Complementarmente, muitas investigações poderiam ser propostas com foco exclusivamente nas experiências de compra dos consumidores de baixa renda, as quais poderiam aprofundar o conhecimento existente quanto ao ambiente varejista e à forma como os consumidores percebem as inúmeras estratégias relacionadas à atmosfera das lojas. O leque de possibilidades, nesse caso, também é extenso, pois são vários os formatos de varejo para cada um dos produtos comercializados. Além disso, é bastante comum entre os pobres urbanos a compra de produtos por meio de venda direta, quase sempre via revendedores. Conforme apresentado no capítulo 7, os consumidores de baixa renda também lançam mão de tipos de comércio não tradicionais, como bazares e “sacoleiras”, para terem acesso aos produtos. Todas essas questões oferecem profícuas possibilidades de pesquisa. A pesquisa também mostrou que a ocorrência de comércio denominado “pirata” é bastante comum nos bairros populares. Pesquisas poderiam ser conduzidas para tentar mapear 286 os significados e valores dos produtos “piratas” para os consumidores pobres. O uso de formas “não legais” de acesso às redes de TV por assinatura, como a “gatonet”, tal como designado pelos próprios moradores, também pode ser fonte de profunda investigação e entendimento para os pesquisadores tanto das classes populares quanto para os que de dedicam a entender o consumo em uma visão mais ampla. No que se refere às possibilidade de investigações da temática “experiências de consumo”, é útil ressaltar que este estudo, em sua base teórica, baseou em uma interlocução da literatura relativa às experiências de consumo com a corrente de pesquisas denominada “teorias da cultura do consumo”. Como apresentado em outras partes da tese, os trabalhos que se aderem a essa “tradição” de pesquisa teriam em comum, principalmente, a busca pela complexidade dos significados culturais presentes nas diversas situações de consumo, a fim de mapear a heterogeneidade de significados construídos pelos diversos grupos integrantes de uma dada sociedade. Empiricamente, os estudos têm por finalidade compreender como manifestações particulares da cultura de consumo são moldados no seio de um processo dinâmico do contexto histórico e social em que estão inseridas. Por isso, a lista de possibilidades não é menos extensa. Fica evidente que as propostas podem caminhar no sentido não somente de questões simbólicas do cotidiano dos consumidores em diferentes situações ou experiências de consumo, mas também discussões relacionadas às idiossincrasias dos consumidores originadas das mais diversas classes sociais, regiões, idade, grupos sociais e “tribos” dos quais eles fazem parte. No campo das experiências de consumo é fácil perceber que algumas lacunas e desafios ainda permanecem evidentes, principalmente no que tange à abrangência do conceito e ao estabelecimento adequado dos elementos, dimensões ou variáveis associadas a ele. Por outro lado, no que se refere aos estudos relacionados à cultura do consumo, Arnould e Thompson (2005), ao proporem uma agenda de pesquisas, estabelecem as seguintes fronteiras a serem transpostas: a) identidade do consumidor; b) culturas de mercado; c) “modelos” sociohistóricos de consumo; e d) ideologias de mercado e estratégias interpretativas dos consumidores. Não é escusado salientar que as temáticas de pesquisa compõem um campo de investigação complexo, uma vez que englobam várias atividades, atores e um conjunto de “bens” que não necessariamente podem ficar restritos sob a forma de mercadoria, dado o caráter eminentemente “intangível” do consumo na perspectiva experiencial e diante da subjetividade do simbolismo verificado nas diversas situações do cotidiano que podem ser contempladas nos estudos desse tipo. 287 De forma mais ampla, a criação de frentes de pesquisas poderia perpassar diversos campos de estudos que fazem fronteira com a pesquisa do consumidor. No entendimento do relacionamento entre empresa e consumidores, poderia ser pesquisado o papel dos relacionamentos na experiência de consumo e o modo como os códigos culturais podem influenciar os relacionamentos e interferir nas experiências de consumo. No oferecimento de serviços de forma geral, as investigações poderiam partir dos seguintes questionamentos: Como situações de prestação de serviços como turismo, diversão, lazer e entretenimento nas quais fica evidente a noção experiencial do consumo podem ser influenciadas pelos códigos culturais elaborados coletivamente? Em que medida os serviços, igual ou diferentemente dos produtos, podem ser utilizados para dizer alguma coisa sobre os consumidores, para reafirmar suas identidades, para definir sua posição no espaço social, para declarar seu pertencimento a um ou outro grupo, para falar de gênero e etnia, para celebrar ou superar passagens, para afirmar ou negar sua relações com os outros? No campo das questões envolvendo marketing e sociedade, a preocupação poderia ser até que ponto as experiências de “consumo coletivo”, entendido a partir do conjunto de serviços fornecidos pelo Estado, sofrem influência dos códigos culturais estabelecidos. Ademais, como os códigos culturais influenciam e/ou dificultam a mudança de comportamentos sociais que são eminentemente experienciais, ou como as campanhas de marketing social podem se apropriar dos sistemas culturais para construir mensagens mais eficazes. Uma indagação interessante seria: De que modo as campanhas de responsabilidade social são interpretadas pelos consumidores e podem influenciar as experiências de consumo dos produtos social e ambientalmente corretos? Diante dos desafios impostos aos profissionais do campo da comunicação, as propostas de pesquisas poderiam ser no sentido de discutir quais mensagens normativas a mídia veicula sobre consumo ou como os consumidores interpretam as mensagens veiculadas na mídia e formulam respostas críticas. Complementarmente, de que forma os produtos e serviços adquirem sentido ao serem inseridos nas redes de relações sociais construídas na mídia e quais aspectos culturais são utilizados para se comunicar as experiências de consumo. Outras recomendações poderiam ter como base outros aspectos pouco pesquisados das experiências de consumo, por exemplo, o descarte de produtos, que também envolve uma discussão interessante acerca das teorias trickle-down, trickle-up e pátina, tais como apresentadas por McCracken (2003). No caso da tese, a questão do descarte ganha um contorno extra, pois é bastante comum a questão da doação de aparelhos, móveis e outros objetos de consumo diário para e entre os pobres urbanos. Assim, seria interessante mapear a 288 trajetória desses objetos, o que poderia contribuir para esclarecer um pouco da sociedade brasileira. No que concerne às escolhas metodológicas adotadas no trabalho, à grounded theory, discutiu-se no capítulo 6 que são várias as suas vertentes, fruto principalmente de diferenças em sua operacionalização, na medida em que foram desenvolvidas em diferentes contextos por variados autores. Nesse sentido, torna-se importante destacar a possibilidade de novas investigações que possam lançar mão de outras abordagens para a construção de teorias, como a denominada “Análise Situacional”, de Adele Clark. Finalmente, duas questões poderiam ser enfatizadas. Ficou claro que este trabalho não tem o propósito de exaurir o assunto. Pelo contrário, cabe destacar que uma teoria substantiva deve ser aberta e flexível o suficiente para incorporar novas descobertas e, assim, proporcionar maior poder explicativo sobre determinado fenômeno. As propostas apresentadas anteriormente caminham no sentido de fornecer indagações para prover novas investigações, que serviriam para aumentar o espectro de variações da teoria gerada nesta tese. A segunda questão, intimamente atrelada à primeira, propõe que nos trabalhos em que se utiliza o método da grounded theory com a conjugação ou não de outros métodos, torna-se importante promover estudos em grupos capazes de proporcionar uma maior eficiência ante o esforço de um pesquisador isolado. Dessa forma, ganha vulto a importância de grupos de pesquisas que possam compartilhar tanto dilemas, angústias e dificuldades quanto a feliz e recompensadora sensação de descoberta, que, aliás, “coroa” o trabalho de qualquer pesquisador. 289 REFERÊNCIAS ADDIS, Michela; HOLBROOK, Morris B. On the Conceptual Link Between Mass Customization and Experential Consumption: An explosition of subjectivity. Journal of Consumer Research. V. 1, 1, p. 50-66. 2001. AGAR, Michael H. The Professional Stranger. Orlando: Academic Press, 1980. ALMEIDA, V. M. C.; ROCHA, A. M. C. O efeito pátina nas marcas: uma reflexão sobre a inscrição de signos conotativos da passagem do tempo nos objetos de consumo. 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Dissertação (Mestrado em Administração) - Programa de Pós- graduação em Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. 309 APÊNDICES APÊNDICE A - GUIA DE ENTREVISTA Trajetória do respondente  Onde você nasceu?  Qual sua idade?  Qual sua escolaridade?  Qual sua profissão? Em que você já trabalhou?  Há quanto tempo mora no Aglomerado da Serra?  Tem casa própria? Com quem mora?  Em que classe social você se considera?  O que significa ser [pobre, classe média, rico] nesse caso?  O que gosta de fazer quando não está trabalhando? Consumo de eletrônicos  O que não pode faltar em sua casa?  Você tem os seguintes aparelhos eletrônicos em sua casa?  TV  Som  Vídeo  O que eles significam para você?  O que significa para você ter esses aparelhos?  Quais foram os últimos eletro-eletrônicos (TV, som, DVD) que você adquiriu em sua casa?  Por que quis comprar esses aparelhos?  Quem decidiu?  Quem comprou?  Quem pagou?  Como pagou?  Quem mais usa a TV, som ou vídeo em sua casa?  Em quais situações isso acontece?  Como esses aparelhos são usados? 310  Descreva a forma de uso destes aparelhos em sua casa.  Onde esses aparelhos estão em sua casa? Por quê?  Qual a importância que você dá à posse de produtos eletrônicos em sua casa? Por quê?  Qual produto eletro-eletrônico você pretende adquirir nos próximos meses?  Por que você quer adquirir esse produto?  Como pretende pagar?  Você se lembra da última compra de aparelhos eletrônicos para sua casa? O que aconteceu?  Por quanto tempo, aproximadamente, você pretende ficar com estes aparelhos?  Fale sobre uma compra marcante de aparelhos eletrônicos que você viveu. Quando foi? O que aconteceu?  Quais são as principais emoções que você já teve, utilizando estes aparelhos?  O uso destes aparelhos permite lembrar alguém querido ou especial? Por quê?  Você comenta sobre a compra ou funcionamento destes bens para outras pessoas?  O que mais te encanta nestes produtos? (design, funcionamento, status, etc)  Descreva os prazeres e/ou alegrias que estes produtos te proporcionam.  Você sente prazer em receber elogios pelo produto ? Isto já aconteceu com você ? Como foi?  A posse destes aparelhos proporciona sensação de recompensa por seu esforço no trabalho e na vida? Fale um pouco sobre isso.  Você ficaria sem estes produtos? O que colocaria no lugar deles?  Você compraria esses produtos usados? Por quê? E em bazares beneficentes? Em quais situações? Isso já aconteceu com você? Comente um pouco sobre isso.  Sua família já ganhou algum aparelho eletrônico? Vocês já doaram algum aparelho eletrônico para alguém? Quando isso aconteceu? Fale um pouco sobre isso.  Tem alguma marca de sua preferência? Por quê?  A marca de eletrônicos é importante para você? O que uma boa marca significa para você?  Você tem alguma loja de sua preferência? Comente um pouco sobre ela. 311  O que mais te chama atenção nas propagandas de produtos eletrônicos? Você se lembra de alguma? O que mais te chamou atenção?  Como você se sente em relação às pessoas que não têm estes produtos?  Você acha que estes produtos te dão status?  Como os seus vizinhos usam estes aparelhos? Comente um pouco sobre isso. Você concorda com este tipo de uso? Você tem alguma crítica a fazer na forma como eles usam? Por quê?  Que emoção você associa aos seus aparelhos de televisão, som e DVD?  Quem limpa ou faz faxina nestes aparelhos?  Você deixa as crianças usar estes aparelhos? Quando? Por quê?  Você tem ciúme desses aparelhos? Você emprestaria esses aparelhos para outras pessoas, como um vizinho, por exemplo?  O que acha das pessoas que gostam e gastam muito dinheiro comprando aparelhos eletrônicos de última geração?  Se você ganhasse um prêmio na loteria, qual (is) produto (s) eletrônico (s) você adquiriria? Por quê?  Qual seu maior sonho de consumo? Fale um pouco sobre ele(s).  Para terminar, vamos fazer um exercício de imaginação. Pense que você está chegando na casa de seus sonhos. Descreva esta casa. Como seria a decoração? Quais aparelhos eletrônicos teriam nesta casa? Onde eles estariam instalados? Como eles seriam? Quem você gostaria de receber em casa?  Há alguma coisa que não foi discutida aqui que você acha que é interessante comentar sobre o consumo de produtos eletrônicos? 312 APÊNDICE B - GUIA DE ENTREVISTA - CHECAGEM Experiência de consumo de eletrônicos Identificação  O que tem de bom de morar no bairro?  O que tem de ruim de morar no bairro?  Se você pudesse, você mudaria daqui? Por quê?  Para onde mudaria? Descreva o que seria um bom local para morar.  O que os vizinhos têm de bom? E de ruim? Sociabilidade  Os aparelhos de som, TV e DVD aumentam ou diminui a “sociabilidade” na família, ou seja, aumenta ou diminui as “interações” na família?  A experiência de consumo dos eletrônicos proporcionaria um oportunidade para a família se reunir para conversar?  Som, TV e DVD fazem parte da vida das pessoas?  Tendência de seguir padrões: de quem? (vizinhos?, artistas?, patrões?, revistas?, casas de pessoas mais ricas?)  Como são gerenciadas as “brigas”, discussões, preferências na experiência de consumo dos eletrônicos em casa? Lazer e entretenimento  Televisão, som e DVD como uma das poucas opções de lazer e entretenimento?  O que é uma casa sem televisão, som e DVD? Violência  Uso dos aparelhos como possibilidade de fuga da violência?  Seu uso seria uma opção para tirar as crianças das ruas e da violência?  O que é preferível a violência das ruas ou dos filmes da televisão? Sala de televisão  Por que os aparelhos estão sempre na sala?  Formas de agregação da família?  Aspectos físicos sempre citados (tapete, almofadas, etc)  Tamanho dos aparelhos discrepantes com relação ao tamanho das casas Formas de aquisição  Compraria esses produtos usados?  Adquiriria esses produtos em bazares? 313  Emprestaria esses aparelhos para outras pessoas?  Já ganhou esses aparelhos de alguém? Já doou? Percepção do público de baixa renda  O público de baixa renda é consumista?  Gosta muito de aparelhos eletrônicos?  Usa muito cartão de crédito  Compra produtos eletrônicos desnecessários? Experiência de compra  O que não pode faltar numa loja de eletrônicos?  Quais são as características de um bom vendedor de loja de eletrônicos?  A marca de eletrônicos é importante? O que significa uma boa marca? Dilema A vista X Prazo e Uso de cartão  O que é preferível : comprar a prazo com juros ou não ter o produto?  Qual é a forma mais usada?  O que as pessoas pensam sobre isso?  Usa cartão ou carnê? Qual é o mais preferível?  Como gerencia o uso de carnê ou cartão de crédito? Distinção  Os aparelhos eletrônicos diferenciam uma casa de outra?  O que a sua casa tem de diferente das outras do bairro? Compartilhamento  É comum compartilhar objetos com vizinhos, amigos e parentes?  Compartilharia seus aparelhos com outras pessoas?  Como é o compartilhamento dos aparelhos dentro de casa? Geral  Há alguma coisa que não foi discutida aqui que você acha que é interessante comentar sobre o consumo de produtos eletrônicos? 314 APÊNDICE C - GUIA DE OBSERVAÇÃO O contexto  Localização da casa  Rua  Estrutura da casa  Número e tamanho dos cômodos  Vizinhos  Janelas  Portas  Condições de iluminação e ventilação  Tipos de móveis  Existência de outros aparelhos eletrodomésticos (geladeira, fogão, microondas, máquina de lavar, etc)  Enfeites e decoração em geral  Arrumação da casa Eletrônicos  Cômodo no qual os eletrônicos estão instalados  Local onde os eletrônicos estão instalados (estante, mesa, cadeira, etc)  Marca dos aparelhos  Estado de conservação dos aparelhos  Enfeites que estão próximos dos eletrônicos  Adesivos nos aparelhos Experiência de consumo  O que normalmente é veiculado na televisão (canal, tipos de programas, etc)  Quem normalmente assiste a televisão  Forma de assistir  Como o som é utilizado  Se usa rádio, qual estação  Tipos de CDs utilizados  Tipos de DVDs utilizados  Postura das pessoas que estão assistindo a televisão  Tempo que fica ligado  Gradação do som da televisão e do som